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Anarquismos e Governamentalidade
Nildo Avelino∗
Resumo:
O artigo propõe uma problemática de estudo intitulada “anarquismos e
governamentalidade” através da qual a anarquia é descrita como um posicionamento crítico
frente ao poder cuja análise do governo é tomada não através das formas ou da origem do
poder, mas a partir das práticas de governo, ou do como o poder governamental é exercido.
Trata-se de um posicionamento em que a inteligibilidade do político é analisada em termos
de relações de força e o governo em termos de tecnologia. Por meio desta problemática é
possível não somente aproximar a atitude anárquica dos estudos em governamentalidade,
como também apontar, a partir da configuração dada à anarquia por Proudhon, a
possibilidade de uma relação de procedência: de que maneira e em que medida seria
possível falar de uma procedência dos estudos em governamentalidade na anarquia
esboçada por Proudhon no século XIX? Inicialmente, retoma-se o deslocamento operado
por Michel Foucault que levou da linguagem da guerra para o governo, inaugurando os
estudos em governamentalidade; em seguida a anarquia é descrita através da concepção
proudhoniana que não somente analisa o político em termos de relações de força, mas toma
essas mesmas relações como prisma reflexivo para a análise.
∗
Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisador no Modys (Mondes et Dynamiques des Sociétés) da
Université Jean Monnet e da Université Lumière Lyon 2, membro associado do Centro de Cultura Social de
São Paulo. Av. Duque de Caxias nº 42 apto. 145, São Paulo/SP, CEP 01214-000, Brasil. 00 55 11 34050456.
nildoavelino@gmail.com
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1. Introdução
Existe uma análise histórica do anarquismo muito conhecida entre os
pesquisadores. São leituras desqualificadoras que atribuem aos anarquistas um certo
“fracasso objetivo” ou “fracasso histórico” de suas lutas devido sua inabilidade político-
partidária de liderança das massas e sua recusa de se constituir em partido político. Nestes
estudos, o anarquismo dos anos 1930, por exemplo, é abordado de maneira indireta, “em
obras que têm como objeto central o Partido Comunista Brasileiro, a legislação trabalhista,
a atuação política dos trabalhadores ou o movimento operário em geral” (AZEVEDO,
2002:30-31). Desta forma, provoca-se um deslocamento da análise que leva da ação
operária para a ação partidária em que o pesquisador, preocupado em explicar a
participação política do operário no quadro do getulismo, acaba por qualificar a militância
anarquista de anacrônica, de pré-política, de proto-industrial e coisa que o valha. Como é
evidente, trata-se de uma análise insuficiente do anarquismo, incapaz de se pronunciar
sobre as festas, os piqueniques, os concertos musicais etc., que considerou supérfluo e
derrisório o cotidiano operário do qual se ocupava as organizações sindicais e que,
pautando-se no “modelo partidário da tarefa histórica do proletariado” e no “modelo
estrutural do Estado e do Capitalismo” (Ibid.:37), fez o movimento vivido ceder lugar para
imagens de um operário fraco, imaturo e desprovido de consciência de classe. Em oposição
a este tipo de análise, e para preencher o enorme vazio que provocaram na historiografia do
anarquismo no Brasil, a partir da década de 1990, surgem alguns trabalhos que se tornaram
um ponto de partida obrigatório para novas pesquisas: Rago (1987), Seixas (1992),
Lopreato (2002), Azevedo (2002), entre outros, vieram para mostrar, com riqueza de
detalhes, o potencial deste cotidiano operário até então inexplicado.
Entretanto, existe um outro aspecto deste problema que pertence não ao campo
da história propriamente dito, mas ao domínio da ciência política. Talvez fosse possível
afirmar que, de maneira análoga ao campo da história, existe no domínio da política um
tipo de análise que lhe é correlativa e que procura apontar a inadequação e o fracasso da
crítica anarquista ao poder político e ao Estado, todavia, com a substancial diferença de
que, se no campo da história a oposição sustentada pelos autores citados foi suficiente para
preencher as lacunas, no domínio político o debate permanece em aberto e encontra seu
ápice em nossos dias. Esta análise política, menos conhecida que sua correlata no campo da
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história, emerge com os anos 1990 quando aparecem estudos colocando em evidência um
certo número de analogias entre o pensamento anarquista dos séculos XIX e XX e o que se
convencionou chamar de pensamento pós-estruturalista, categoria que contém o prejuízo da
síntese, como observou Vaccaro (2004:7), mas que foi utilizada para referir-se às reflexões
de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e François Lyotard. Em relação a
Foucault, a aproximação com o pensamento anarquista deu-se, sobretudo, no retournement
efetuado por ele a partir do segundo volume da sua História da Sexualidade, no qual se
ocupará do sujeito ético. No Brasil, os efeitos iniciais dessas experimentações podem ser
vistos no dossiê organizado por Edson Passetti, publicado na revista Margem, da Faculdade
de Ciências Sociais da PUC-SP, em 1996, que apresentou alguns estudos realizados nesta
perspectiva. Esse dossiê foi responsável pela introdução da problemática anarquismo e pós-
estruturalismo. Grosso modo, uma literatura substancial sobre o assunto é encontrada em
Todd May (1994), Saul Newman (2001, 2005), Lewis Call (2002), Salvo Vaccaro (2004),
Daniel Colson (2001, 2004), Tomás Ibáñez (2006), Vivien García (2007). No Brasil, são os
trabalhos de Edson Passetti (2003a, 2003b) e Margareth Rago (2001, 2004) que abordam o
tema. É uma literatura extensa que, de algum modo, adota o anarquismo e o pós-
estruturalismo como postura analítica, e que foi responsável pela introdução do anarquismo
na universidade, talvez pela primeira vez na história, não como simples objeto de
conhecimento, mas irrompendo no ambiente universitário como instrumento analítico e
ferramenta crítica para análise da realidade. Exemplos concretos dessa irrupção no Brasil
podem ser vistos com a introdução do anarquismo como matéria regular no currículo de
Ciências Sociais da PUC-SP, em 1988, e com a criação em 1997 do Nu-Sol, núcleo de
pesquisa sobre anarquismo do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da
PUC-SP, editor da Revista Verve e coordenado por Edson Passetti. Experiência igualmente
importante é a constituição do Anarchist Studies Network, grupo inglês especializado no
estudo do anarquismo ligado à PSA-Political Studies Association, coordenado por Ruth
Kinna – também editora da importante revista inglesa Anarchist Studies – Alex Prichard e
Dave Berry.
Todavia, nas páginas desta literatura, um animado, e algumas vezes violento,
debate foi travado, evidenciando a existência de diferenças fundamentais que desenhou ao
menos dois procedimentos analíticos distintos: um “pós-anarquista” e outro anarquista. São
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o poder constitui para os anarquistas uma força repressiva. A imagem com a qual opera é aquela
de uma força que comprime – e às vezes destrói – ações, eventos e desejos com os quais mantém
contato. Essa imagem é comum não apenas a Proudhon, Bakunin, Kropotkin e em geral aos
anarquistas do século XIX, mas também àqueles contemporâneos. É uma tese sobre o poder que
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o anarquismo compartilha com a teoria liberal da sociedade, que considera o poder como uma
série de vínculos à ação, principalmente prescritos pelo Estado, cuja justiça depende do estatuto
democrático desse Estado.
teórico é constituído pela French Theory. Ainda que Newman (2008) tenha recentemente
escrito que o pós (“post”) do pós-anarquismo não deve ser compreendido como após o
(“after”) anarquismo e que, ao invés de dispensar a tradição do anarquismo clássico, o pós-
anarquismo procura explorar e radicalizar suas possibilidades, afirma ao mesmo tempo que
o “anarquismo tende a permanecer fortemente resistente aos desenvolvimentos [da
modernidade e do pós-estruturalismo], funcionando ainda no interior de um sistema
epistemológico do humanismo Iluminista”, daí a necessidade da sua atualização
(“updating”).
A análise de Todd May é ainda mais grave. Ao supor que o poder é repressivo, a
questão que se coloca é: quando seu exercício será legítimo? Para liberais e marxistas a
legitimidade do poder depende de certas regras, para os anarquistas, ao contrário, o
exercício do poder não é jamais legítimo visto que a natureza humana é sempre boa. Este é,
segundo May, o “núcleo duro” do projeto anarquista: atribuir natureza ou essência humana
e considerá-la boa e dotada dos caracteres necessários para a convivência conforme a
anarquia. Entretanto, May faz uma concessão. Suponhamos, ele diz, “que os anarquistas
tivessem outra idéia do poder, vendo-o não como simplesmente repressivo, mas também
produtivo” (Idem:86), neste caso, a crítica anarquista, tendo por traço distintivo a negação
absoluta do poder, seria impossível; não teria sido possível ao anarquismo justificar sua
resistência radical ao poder. Deste modo, aquilo que separa a crítica do poder anarquista
daquela liberal e marxista é precisamente o elemento que a torna condenável: o poder como
irremediavelmente repressivo, seu exercício implica, em toda parte e sempre,
indiferenciação e constância opressora.
Meu argumento é que esta indiferenciação das relações de poder que provoca a
rejeição global de seu exercício e supõe uma natureza humana, não procede do anarquismo,
ou pelo menos do anarquismo de Proudhon. Talvez fosse possível encontrar sua
procedência nas análises que Max Weber realizou da dominação, mas esse não é meu
problema aqui1. Está igualmente fora de propósito estabelecer precedências para afirmar a
pós-modernidade avant la lettre do chamado “anarquismo clássico”. Meu intuito é,
retomando a proposição de Colson (2001:10), mostrar como Foucault e Deleuze “não
1
A questão foi abordada em Avelino (2008), que também mostra que a reflexão sobre o poder do anarquista
italiano Errico Malatesta não pode ser compreendida a partir dessa indiferenciação.
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somente conferem sentido ao pensamento libertário propriamente dito, (...) mas eles
mesmos ganham sentido no interior deste pensamento que elucidam e renovam”. Como
sugeriu Colson (2004:28), com Foucault e Deleuze irrompe “uma concepção filosófica que
não era nova, mas que, esquecida, revestia todos os traços de uma novidade fulminante.”
Essa filosofia é o anarquismo. Assim, para marcar uma aproximação positiva entre pós-
estruturalismo e anarquismo, utilizo o tipo de análise da política em termos de relações de
força próprio aos estudos foucaultianos em governamentalidade.
se é verdade que o sistema das táticas penais pode ser visto como analisador das relações de
poder, o elemento que será considerado central é o elemento da luta política em torno do poder e
contra ele; é todo o jogo dos conflitos, das lutas que existem entre o poder tal como ele é
exercido em uma sociedade e os indivíduos ou grupos que buscam, de uma maneira ou de outra,
escapar desse poder, que o contestam localmente ou globalmente, que contradizem suas ordens e
suas regras. (...) É, portanto, a noção de ‘guerra civil’ que deve ser colocada no coração de todas
essas análises das penalidades.
Com efeito, poder-se-ia mostrar que a guerra civil (...) habita, atravessa, anima, investe o poder
em toda parte. Encontram-se precisamente os sinais disso sob a forma desta vigilância, desta
ameaça, deste monopólio da força armada, numa palavra, de todos os instrumentos de coerção
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conduziu a uma crítica extremista do poder – visto segundo um modelo repressivo – pela
esquerda (...). Uma análise fechada das disciplinas oposta às teses marxistas da exploração
econômica como princípio para compreender os mecanismos do poder não era suficiente, e
reclamou a investigação de problemas globais de regulação e ordem da sociedade, bem como as
modalidades para a conceitualização deste problema. Daí a questão do governo – termo que
substituiu gradualmente a noção de ‘poder’, considerada por Foucault como uma palavra muito
ambígua.
Trata-se, em suma, de orientar, para uma concepção do poder que substitua o privilégio da lei
pelo ponto de vista objetivo, o privilégio da interdição pelo ponto de vista da eficácia tática, o
privilégio da soberania pela análise de um campo múltiplo e móvel de correlações de força, onde
se produzam efeitos globais, mas nunca totalmente estáveis, de dominação. O modelo estratégico,
ao invés do modelo do direito. E isso, não por escolha especulativa ou preferência teórica; mas
porque é efetivamente um dos traços fundamentais das sociedades ocidentais o fato de as
correlações de força que, por muito tempo tinham encontrado sua principal forma de expressão
na guerra, em todas as formas de guerra, terem-se investido, pouco a pouco, na ordem do poder
político. (Ibid.:97)
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se interpretar é se apossar, pela violência ou astúcia, de um sistema de regras que não possui em
si nenhuma significação essencial, impondo-lhe uma direção, dobrando-lhe a uma nova vontade,
fazendo-lhe entrar em um outro jogo e submetendo-lhe a outras regras, então o devir da
humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia deve ser precisamente sua história:
história das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, história do conceito de liberdade ou da
vida ascética, como emergências de interpretações diferentes.
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Sobre a noção de acontecimento cf. Branco (2008).
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singular” que não possui “outra realidade que a acontecimental, e cuja inteligibilidade não
coloca em funcionamento nada mais que uma lógica estratégica.”
Todavia, não é o bálsamo liberal das relações inócuas de governança. Se as
relações de poder não assimilam-se a simples formas de guerra e dominação, é porque é
preciso configurá-las em termos de relações agônicas, relações que são “ao mesmo tempo
de incitação recíproca e de luta, (...) de provocação permanente” (FOUCAULT,
2001b:1057), e fazem com que essas duas estratégias, que são distintas uma da outra,
estejam também sempre “prontas a se transformarem uma na outra.” (FOUCAULT,
1993:89) Como bem notou Mitchell Dean (2007:11), em Foucault as relações de poder se
tornam políticas “quando ultrapassam um certo limiar de intensidade, e quando a luta não
está apenas no corte e na perfuração da palavra, mas sobre os meios pelos quais a decisão
para lutar pode ser forçosamente imposta, e quando os riscos recaem sobre matérias de vida
e de morte.” No tipo de sociedade como a nossa, a intensidade deste agonismo encontra
uma gravidade na ordem do governo: é o governo, e a resistência que ele provoca, que
torna altamente politizável a ubiqüidade das relações de poder. Deste modo, trata-se de
fazer funcionar uma análise que coloque em evidência a lógica estratégica do poder; e é
uma análise desse tipo que oferece Proudhon.
Explicar a origem do mal pela lei das Antinomias: quer dizer, explicar a priori por uma aplicação
da lei serial a causa da ordem e da desordem na sociedade; da igualdade e da desigualdade da
Propriedade e da Comunidade, da Monarquia e da Democracia etc. Generalizar mais ainda a
questão: a Propriedade e a Comunidade sendo dois elementos constituintes e necessários à
ordem, explicar sua luta (...). A causa intelectual, a Razão metafísica da ordem e da desordem
social, das revoluções como dos progressos políticos. (...) Em uma palavra, relacionar a uma
causa única, a uma lei do espírito humano, à uma fórmula serial, todos os fatos sociais, de ordem
e de desordem, de bem e de mal, de progresso e de ruína. (Proudhon, 2004:63-64)
maneira, pergunta: “o que é o poder na sociedade? O que produz o governo e o que faz
nascer o Estado?” (Idem:690). Para a Igreja, o governo é de constituição divina; para a
filosofia, resulta da renúncia voluntária à soberania; Proudhon, declara “a insuficiência
radical de todas estas concepções” para afirmar no “governo uma coisa que, malgrado tudo,
a humanidade se obstina e que nem a violência, nem a astúcia, nem a superstição, nem o
medo são suficientes para explicar. A priori, eu afirmo que a instituição política exprime,
não uma convenção ou um ato de fé, mas uma realidade.” (Idem:691) Essa realidade é
constituída pela força coletiva cuja existência Proudhon explica do seguinte modo. “Todo
ser, pelo simples fato de existir, de ser uma realidade, não um fantasma, possui em si, num
grau qualquer, a faculdade ou a propriedade, a partir do momento que se encontra na
presença de outros seres, de atrair e de ser atraído, de pensar, de produzir, de resistir
minimamente ainda que pela inércia, às influências externas.” (Idem:693) Esta propriedade
Proudhon a nomeia força: ela é o atributo e a demonstração da existência dos seres.
“Subtraiam a atração, a existência dos corpos não estará mais assegurada.” (Id.)
A força é a base do poder político. Todavia, é preciso compreendê-lo bem, a
força não é nem brutalidade nem motricidade; não se trata de um fenômeno quantitativo
que, em analogia com um tipo de poder elétrico ou de motor, seria operado para uma
variedade de objetivos sobre coisas e pessoas. Numa tal concepção de poder como
capacidade quantitativa o pressuposto é que a vontade daqueles que têm mais poder
necessariamente prevalece sobre a vontade daqueles que têm menos poder. Como
observaram Hindess (1996) e Miller (1987), essa concepção contém o inconveniente de
fazer o exercício do poder aparecer, no momento em que se colocam relações desiguais
entre esses que empregam poder para alcançar seus objetivos e aqueles que sofrem seus
efeitos, simplesmente como instrumento de dominação e repressão. A concepção de
Proudhon é manifestamente diferente, ele diz: “o que produz o poder na sociedade e
constitui a realidade desta própria sociedade, é a mesma coisa que produz a força nos
corpos tanto organizados quanto desorganizados e constitui sua realidade, a saber, a relação
das partes.” (PROUDHON, 1988b:695) O poder é, portanto, uma relação, não possui outra
realidade que a relacional. Esta concepção, Proudhon tem plena clareza, subverte “todas as
idéias sobre a origem do poder, sobre sua natureza, sua organização e seu exercício.”
(Idem:699) O poder é uma relação, é imanente à sociedade como a atração é à matéria.
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Gurvitch (1980:136) sugeriu que o método de Proudhon, ao recorrer à experiência para captar a diversidade
em todos seus pormenores, constitui um empirismo. Lubac (1985:167), nomeando Proudhon “novo
Heráclito”, atribui-lhe uma concepção agonista da sociedade e do universo.
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Proudhon tinha clareza que a economia política não era um simples ramo do saber relativo
à produção da riqueza e à organização do trabalho, mas que também abrangia a esfera
governamental, tanto quanto o comércio e a indústria. Além disso, o método serial mostra
também como o chamado governo direto, defendido pelos democratas rousseaunianos
jamais foi outra coisa na história que “a época palingenésica das aristocracias destruídas e
dos tronos destroçados” (PROUDHON, 1979:89). O contrato é a fórmula através da qual,
“mesmo na ausência de qualquer realeza, aristocracia e sacerdócio, é possível sempre
colocar a coletividade abstrata do povo à disposição do parasitismo da minoria e da
opressão da maioria” (Idem:96). Portanto, ali mesmo onde frequentemente foi visto uma
grande novidade, o nascimento da igualdade e da liberdade entre os homens, o serialismo
de Proudhon evidenciou a repetição monótona do velho princípio de autoridade.
Em suma, o importante na análise serial “é que a história não considera um
elemento sem definir a série da qual ele faz parte”, ela não compreende “os acontecimentos
por um jogo de causas e efeitos na unidade informe de um grande devir, vagamente
homogêneo ou rigidamente hierarquizado” (FOUCAULT, 1999b:55-56). A analítica serial
não toma para a análise objetos gerais e previamente constituídos, nem tampouco
previamente categorizados em períodos, épocas, nações ou culturas (FOUCAULT,
2001a:1144). Negligencia os universais, os absolutos, para se ocupar das relações. “Todo
nosso erro, nossa loucura, nossa desmoralização, diz Proudhon (1990:1164), começa
precisamente no instante em que pretendemos transpor o abismo que nos separa do
absoluto. (...) todavia, forçados a admitir sua hipótese, como nos livrar da sua fascinação?”
A resposta proudhoniana encontra forte ressonância em nossa atualidade. “O único objeto
da ciência é, portanto, saber como as coisas estão enlaçadas e se engendram; como se
produzem e se desvanecem os seres; como se transformam as sociedades e a natureza.”
(PROUDHON, 1869:17, grifos meus). O como designa sempre relações: se a idéia, diz
Proudhon (1988b:35), emerge concorrentemente e ex aequo de duas fontes, o eu e o não-eu,
o sujeito e o objeto, decorre desta dupla origem que a filosofia diz respeito à relação
(rapports). A relação, de outro lado, tomada em seus elementos constitutivos, é
necessariamente dualista: ela é, como “indica também a etimologia da palavra rapport ou
relation, retorno de um ponto a outro, de um fato, de uma idéia, de um grupo etc., a um
outro.” Agora, como notaram Deleuze & Guattari (2005:16), é no nível das relações que
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