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Trabalho Final

CURSO DE LIT ERAT URA INFANTIL/JUV ENIL: LINGUAGENS DO


IMAGINÁRIO II - 2º. semestre de 2020

Prof. Dr. André Luiz Ming Garcia

Aluna: Renata de Souza – nº USP 3268338

A VOZ DO SUBALTERNO EM REINAÇÕES DE NARIZINHO

Poucas vezes no extenso curso de Letras, praticamente concluído na


Universidade de São Paulo, tive contato com a obra de Monteiro Lobato.
Isso só aconteceu plenamente agora no final da graduação para a Disciplina
Literatura Infantil, quando li várias obras do autor dedicadas ao público
infantil.

A prosa de Lobato é muito agradável, como é a do seu quase


contemporâneo Machado de Assis, o que leva o leitor (no caso eu) a
consumir muitas páginas em intervalos curtos de tempo. A literatura de
Lobato estimula a imaginação através do mundo fantástico que ele criou e
ao mesmo tempo incentiva a ação, a investigação: Que criança após ler o
Saci não teve vontade de executar o plano de capturar um?

Esta introdução começa com impressões subjetivas antes de apresentar


o objetivo do presente trabalho porque este é um ensaio com a pretensão de
uma visão bem panorâmica sobre as Obras Infantis de Monteiro Lobato.
Portanto, há possibilidade de comparar Lobato a escritores ingleses como o
Machado de Assis ou o nosso contempor âneo Neil Gaiman, pela ligeireza e a
leveza dos seus textos, onde acontece uma espécie de “sabotagem do tempo”
numa matéria literária que aproxima a experiência da vida com a de um
sonho.

Também como Machado, Monteiro foi crítico do Romantismo, e,


enquanto o texto do primeiro me parece um convite à primazia da ação à da
imaginação, Lobato parece colocar o sonho/pensamento como uma espécie
de combustível para o motor. Não que Machado desdenhe da Sorte ou do
Sonho em seus livros, não trata disso e sim da des confiança de que a vida
dos ricos seria muito mais fácil e assim eles teriam muito mais tempo para o
Mundo das Ideias.

— Aumenta-se o sítio, vovó — propôs Pedrinho. — A


senhora compra as fazendas dos vizinhos. Para que serve
dinheiro? Depois que saiu o pet róleo, a senhora ficou
empanturrada de dinheiro a ponto de enjoar e nem
permitir que se fale em dinheiro nesta casa. Aumenta -se o
sítio. Tão fácil...
O objetivo deste trabalho é analisar a voz da personagem tia Nastácia
à luz de estudos sobre arquétipo/es tereótipo de personagens em posição
subalterna na literatura pós -colonial.

Percorrendo sua obra, podemos afirmar que Monteiro Lobato leu os


gregos clássicos e exalta Péricles, sua Atenas, Sócrates e a Democracia em
muitos trechos. O ideal de Paideia na Rep ública do Sócrates de Platão não é
para todo mundo como sabemos, a democracia ateniense não se aplica a
escravos, mulheres e crianças, o povão deve ser conduzido pela aristocracia.
O Sócrates de Platão também foi inspiração para a censura advinda do
processo de cristianização através de suas críticas sobre o mau exemplo dos
heróis.

Quem são os Heróis do Pica Pau Amarelo? Quem a Musa cantará?

A estreia de Monteiro Lobato na literatura infantil aconteceu em


dezembro de 1920 com o lançamento do livro A menina do narizinho
arrebitado, com 43 páginas e ilustrado pelo artista paulistano Voltolino, que
havia publicado a Revista o Pirralho junto com Oswald Andrade entre
outras. Segundo o artigo do blog A menina centenária , sobre as primeiras
capas das obras de Monte iro Lobato, o livro narra as aventuras de uma
menina (órfã), Lúcia, neta de uma senhora idosa (o personagem não é
nomeado na narrativa). Elas moram em um sítio junto com a cozinheira
negra Anastácia. Lúcia tem o apelido de Narizinho Rebitado. Todas as
tardes, Narizinho vai passear com sua boneca de pano, Emília, no ribeirão
que passa no fundo do pomar do sítio de sua avó. Certo dia, depois de dar
comida aos peixinhos, ela conhece um besouro de casacão e o Príncipe
Escamado, o rei do Reino das Águas Claras, que a convida para conhecer
seu reino. Lá ela conhece personagens fabulosos e inacreditáveis e ao final
acorda do que seria um fantástico sonho. No mesmo ano em que lançou
Narizinho Arrebitado (1921), Lobato publicou um novo livro para o público
infantil: O sacy. Nessa obra, o autor apresentou ao seu público um novo
personagem, Pedrinho, primo de Narizinho que mora na cidade e vem passar
as férias no sítio da avó.

Nos dois primeiros livros já temos um lugar e uma família, a cena e as


principais personas sob re as quais Lobato desenvolverá as Reinações de
Narizinho (nome da coletânea das obras infantis). Narizinho é a primeira
personagem _ se a ordem importasse _ e as crianças têm protagonismo na
narrativa uma vez que são os principais sujeitos das aventuras. Pedrinho tem
atributos de herói, Narizinho se torna princesa ainda na infância provando
sua realeza e, à Emília, a Marquesa de Rabicó, é difícil atribuir uma
característica principal. Emília foi criada por tia Anastácia embora pertença
a Narizinho; as bonecas costumam ser filhas das garotinhas, entretanto,
Narizinho apresenta um comportamento que não é o padrão materno em
relação à Emília depois que esta começa a falar. Apesar disso, a boneca não
tem embates com Narizinho e sim parece disputar o protagonism o com
Pedrinho.
Nota-se que Lobato apresenta uma configuração de família brasileira
não padrão; já na Grécia antiga muitos heróis eram órfãos e criados por um
tutor, mas neste caso trata-se de uma menina. Em vez de um centauro, duas
idosas fazem o papel de tutoras. O Visconde seria uma espécie de agregado
da casa com função de conselheiro e também criação de Anastácia.
Anastácia trabalha e não tem parentes ou descendentes, Dona Benta é
erudita.

Em 1985, Gayatri Chakravorty Spivak, desenvolve um dos argum entos


mais incisivos dos estudos pós -coloniais contemporâneos: “ O subalterno,
como tal pode, de fato, falar? ”. Trinta e cinco anos depois, o termo “lugar
de fala”, popularizado pela filósofa Djamila Ribeiro, tem lugar de destaque
nas pesquisas de Humanidad es na Universidade de São Paulo; a qual teve
seu público modificado pela política de cotas nos últimos anos. Quanto
importa para a crítica literária o sexo e a classe social do autor(a), por
exemplo? Classificando aqui Linguística e Literatura como ciência s
humanas.

Trechos de uma entrevista dada por Monteiro Lobato em 1943, podem


dar uma ideia da posição do olhar do autor em relação às pessoas que
inspiraram a personagem Nastácia:

Na chácara do Visconde havia u ma ex escrava JOAQUINA,


que aos domingos me levava com ela a batear nos córregos,
com uma peneira, e às vezes com grande susto apareciam
baratões d’água, e até mesmo cobras d’águas, e a peneira
ia parar longe, com grande susto. Ela era uma excelente
cozinheira e nas noites de inverno gostava de contar
histórias para as crianças, que nos reuníamos todos em
volta dela como pintinhos em volta da galinha para
ouvirmos suas histórias. “Daí ter surgido a figura de “Tia
Anastácia” ou “Tia Nastácia”: inveterada contadora de
histórias, muito resmunguenta e excelente quituteira.

... Joaquina passou então a viver com “uma velha de mais


de sessenta anos, que mora lá muito longe, numa casinha
branca e que se chama dona Benta de Oliveira”. (RIBEIRO,
1984, p.123)

[...] esse Pedro de Castro costumava falar em sua avó, de


nome Benta. Achei curioso o nome e mais tarde, quando
precisei batizar a vovó de Narizinho, foi a avó de Pedro
Castro quem me forneceu o nome [...]. (RIBEIRO, 1984,
p.124)

Pesquisadores contemporâne os apontam a existência de estereótipos


preconceituosos nas narrativas pós -coloniais. Entre estes tipos _ criticados
principalmente nas narrativas cinematográficas de Hollywood _ está a Mãe
Preta atendente de todas as demandas do mundo, apelidada Mammy na gíria
popular, sua função é cuidar dos protagonistas brancos esquecendo-se
completamente da própria vida e família , também o Negro Mágico, jovem ou
velho, conhecedor de todas as artes, possuidor de sabedoria e força , mas,
que em vez de ajudar um irmão, aca ba tutorando um protagonista branco no
grande feito heroico. O resultado da miscigenação é o mulato (a), figura de
caráter sensual e vingativo.

Seguem exemplos das participações da personagem Nastácia no livro


Pica Pau Amarelo, quando o Mundo das Fadas muda-se para o Sítio.

Nesta passagem logo no início da narrativa, a personagem recebe


pouca atenção de Dona Benta enquanto a interroga sobre a administração de
tantos hóspedes, como se fossem preocupações menores, diante de tão
grande acontecimento Anastáci a preocupa-se com o trabalho:

— Nossa Senhora! Isto vai virar "hospiço ." Sinhá não se


lembra daquela vez que eles entupiram a casa de reizinhos
e príncipes e princesas? Nossa Senhora, onde iremos
parar? — Fazemos uma cerca, Nastácia. Eles ficam
morando para lá da cerca. Só virão aqui quando
quisermos. — Cercas, Sinhá? Pois se até muro com caco de
vidro em cima gente pula, quanto mais eles, que são uns
demoninhos... — Quindim fica de guarda à cerca,
passeando de cá para lá — e na porteira eu boto um
cadeado. O Visconde tomará conta da chave. A negra deu
uma grande risada. — Ché, Sinhá! Tudo é muito bonito e
fácil no "pape." Mas eu quero ver! O Visconde chaveiro,
ha, ha, ha! Dona Benta, que estava com preguiça de
discutir, mudou de assunto. — Olhe, para o almoço faça
um frango assado com farofa — e uns pastéis de palmito.
— O palmito acabou, Sinhá. "Seu" Pedrinho gastou ontem
o último para fazer uma tal de bica d’água. — Mande
buscar meia dúzia no Elias Turco. — O palmito do Elias é
falsificado, Sinhá. Só casca. — Então, então...

— Credo, Sinhá! Que vai ser de nós de hoje em dia nte?


Quanta estrepolia, meu Deus! Se isto desta vez não pegar
fogo (pág 13)

Então, Anastácia sai de cena para cuidar da comida, perdendo assim


todo o espetáculo:

... Mas tia Nastácia, que havia voltado para a cozinha,


interrompeu a festa com um grito: — O jantar está na
mesa. Depressa, se não esfria. Com grande sentimento,
todos deixaram a cerca, porque ainda havia muito que ver.
(pág 14)

— O que é criança! — exclamou tia Nastácia. — Brincam a


vida inteira, e quanto mais brincam mais querem brincar.
E foi pena essa correria hoje, porque fiz um docinho de
batata roxa que está mesmo do céu. Prove Sinhá. Dona
Benta comeu sossegadamente o doce de batata roxa; em
seguida encaminhou -se sem pressa nenhuma para a cerca
Num trecho seguinte, quando a Quimera pergunta “quem aqui manda”,
sua função é descrita pelo sábio Visconde como a de provedora mor na
democracia do sítio.

_ Não há disso por cá. Somos uma democracia. Há Dona


Benta, que é a Tesoureira, ou a Dona. Há dois príncipes
herdeiros: Narizinho e Pedrinho. Há a Lambeta -Mor, que é
uma tal Marquesa de Rabicó. Há o M inistro da Defesa
Nacional, que é o Marechal Quindim. Há a Provedora Mor
das Co midas, que é tia Nastácia. Há o Sábio dos Sábios,
que é o ilustríssimo Senhor Visconde de Sabugosa ...

Nastácia é sempre referenciada quando aparece um problema que


envolva alimentação, saúde ou outros cuidados:

— E não escapava duma boa dose de Erva -de-santa -maria


com óleo de rícino (Emília implica com Pedrinho) —
observou Emília. — Doce demais gera lombrigas, diz tia
Nastácia.

Nesse mo mento tia Nastácia entrou com a bandeja de café


com mistura — bolinhos, torradas, pipocas. (para D.
Quixote que come e em seguida dorme)

...previna tia Nastácia da visita de D. Quixote. Diga -lhe


que prepare qualquer coisa para ele come r.

O Visconde, sem dúvida, porque se caísse e quebrasse


perna ou braço, tia Nastácia o consertaria num pingo de
tempo.

— Corra lá dentro e diga a tia Nastácia que traga um café


bem quente, com bolinhos.

— Quebrada, sim, com um ossinho aparecendo. Mas há de


sarar. Tia Nastácia tem um remédio ótimo para isto. Numa
semana ou duas põe -no bom. Depois de num instante
consertar o Visconde, tia Na stácia despiu a perninha de
Polegar para o exame .

Verifica-se pelas ações da narrativa, que tia Nastácia tem uma função
social muito importante no sítio, mas, em vez de grande reconhecimento por
parte das outras personagens, Nastácia vai compor a parte cômica da
narrativa, retratada sempre muito inocente e supersticiosa, é vítima
frequente de peças e críticas a sua origem popular ; também transparecem
aspectos infantis no seu caráter. Dona Benta, apesar de também idosa,
recebe tratamento diferenciado por parte das crianças e outros personagens.

Apesar da dor que sentia, o Visconde riu -se à idéia de


aparecer no terreiro de Dona Benta montado na Quimera!
O espanto de tia Nastácia! ... (Visconde planeja assustá -la
como a uma criança)

Quando aquela esquisitíss ima trempe surgiu no terreiro,


tia Nastácia vinha entrando na varanda com duas
moringas d’água. "Credo" — urrou a pobre negra
largando tudo no chão — e caiu desmaiada.

— "Nastácia! Nastácia!" Foi o mesmo que sacudir uma


pedra. Nisto voltou os olhos para o terreiro e deu com a
Quimera. "Ai!..." O seu susto foi tamanho que também
desmaiou.

...

Final cômico da cena:

— Que é dos bolinhos? — reclamou Dona Benta.

— Ah, Sinhá, "Seu" Sancho comeu tudo — e mais tudo


quanto havia na copa, o pernil de porco, a pamonha de
milho verde que fiz para sobremesa. Ele é muito pior que
Rabicó, Sinhá...

Exemplos das participações da personagem tia Nastácia no livro


Histórias de tia Nastácia:

No trecho a seguir, Emília vai demonstrar seu descontentamento


vilipendiando tia Nastácia ao final do d iálogo. A ironia nessa passagem é a
de que hoje a crítica literária conhece (superficialmente) a riquíssima
mitologia Yoruba e a de outros povos escravizados. Literatura Africana mais
do que Clássica, não perde nada para Gregos e Hebreus, ao contrário, coloca
no bolso e volta troco porque não foi nem corrompida pela escrita ao longo
dos milênios; é uma Ilíada e Odisséia raiz, um Esopo ao vivo, mas, enfim, a
ignorância.

— Mas isto não é para entender, Emília — respondeu a


negra. — É da história. Foi assim que minha mãe Tiaga me
contou o caso da princesa ladrona, que eu passo para
diante do jeito que recebi.

— E esta! — exclamou Emília olhando para dona Benta. —


As tais histórias populares andam tão atrapalhadas que as
contadeiras contam até o que não entendem. Esses
versinhos do fim são a maior bobagem que ainda vi. Ah,
meu Deus do céu! Viva Andersen! Viva Carroll!

— Sim — disse dona Benta. — Nós não podemos exigir do


povo o apuro artístico dos grandes escritores. O povo...
Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia,
sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa
não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas
igualmente ignorantes, e passá -las para outros ouvidos,
mais adulteradas ainda.
— Outra coisa que noto nessas histórias, vovó — observou
Narizinho — é que não dispensam reis e rainhas e
príncipes e princesas encantadas. Por que é assim?

— Essas histórias, minha filha, vieram de Portugal, e são


dum tempo em que em todos os países do mundo só havia
reis. Isso de presidentes de república é coisa moderna. São
histórias dos tempos dos reis. E para a imaginação do povo
os reis, as rainhas e os príncipes eram a coisa mais
maravilhosa que havia. Hoje tudo está mudado. Cada vez
há menos reis, a não ser nos baralhos. E já não há aquele
"cão", que quando via um rosário rebentava num grande
estouro e fedia enxofre. O povo é muito conservador, de
modo que as histórias que de pais a filhos a gente do povo
conta são corocas, vêm do tempo da Idade Média, quando
não existiam jornais nem livros.

— Pois cá comigo — disse Emília — só aturo essas


histórias como estudos da ignorância e burrice do povo.
Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não tê m
humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras —
coisa mesmo de negra beiçuda, como tia Nastácia. Não
gosto, não gosto e não gosto…

...

— Não sei, menina — respondeu a preta. — A história eu


ouvi assim e por isso conto assim. Pássaro de pluma é
pássaro de pena, parece.

— E já viu pássaro que não seja de pena, sua tola? — disse


Emília. — O que vale é que você mesma confessa não ter
culpa das idiotices da história, senão eu cortava um
pedaço desse beiço...

— Emília, respeite os mais velhos! — ralhou dona Benta.

— A senhora me perdoe — disse a pestinha — mas, cá para


mim, isso de respeito nada tem com a idade. Eu respeito
uma abelha de um mês de idade que me diga coisinhas
sensatas — mas. se Matusalém vier para cima de mim com
bobagens, pensa que não boto fogo na barba dele? Ora, se
boto!...

...

— Bom — disse Pedrinho. — Nesse caso, temos nas


histórias populares o ciclo dos príncipes Joãozinhos que
saem a correr mundo em procura de velhas que ensinam
remédios e mais coisas milagrosa s. As que tia Nastácia já
contou parece pertencerem ao mesmo ciclo. Já estou
cansado desse "ciclismo".

...
— E tenho razão — disse a ex-boneca. — Não há nada mais
lindo que uma pombinha bem branca, com aqueles olhos
tão redondos. A minha ave predileta sempre foi a
pombinha. E a sua, tia Nastácia? A negra teve vergonha de
dizer. A ave predileta de tia Nastácia sempre fora uma
galinha bem gorda, das boas para fazer de molho pardo.

...

— Dona Benta — exclamou tia Nastácia horrorizada —


tranque a boca dessas crianças. Estão ficando os maiores
hereges deste mundo. Chegam até a defender o canhoto,
credo!... — Olhe, Nastácia, se você conta mais três
histórias de diabo como essa, até eu sou capaz de dar um
viva ao canhoto — respondeu dona Benta. Tia Nastácia
botou as mãos e pôs-se a rezar.

...

— A gente vê aí o dedo das contadeiras de histórias. São


em geral donas de casa, ou amas, ou cozinheiras, criaturas
para as quais as formigas não passam dumas gatuninhas,
porque vivem invadindo as prateleiras e guarda -comidas
para furtar açúcar. Se fosse escrita por um filósofo, a
história não teria esse fim, porque os filósofos nem sabem
que há guarda-comidas no mundo. Só enxergam o céu, as
estrelas, as leis naturais, etc. Mas as tia s Nastácias sabem
muito bem das formiguinhas que furtam açúcar.

...

— Ué! — exclamou tia Nastácia. — Pois para que serve


carneiro senão para ser comido? Deus fez os bichos cada
um para uma coisa. A sina dos carneiros é a panela.

Emília danou.

— Bem se vê que é preta e beiçuda ! Não tem a menor


filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe? Todos os
viventes têm o mesmo direito à vida, e para mim matar um
carneirinho é crime ainda maior do que matar um home m.
Facínora!...

— Emília, Emílial — ralhou dona Benta.

A boneca botou-lhe a língua.

Sobre o português da venda tia Nastácia emite uma crítica incisiva:

(Pedrinho) … eu a um deles por que faziam aquilo ao


coitado, o moleque respondeu: "Ah, então não sabe que
esse portuga é o velho mais ridículo do mundo? Da casa
dele não sai nem uma cuia d'água."
— E é ridico mesmo — ajuntou tia Nastácia. — Pobre que
bate lá, pedindo esmola, só ouve uma coisa: "Deus o
favoreça, irmão!" E ele tem uma barrica de dinheiro
enterrada no quintal.

— Não generalize — observou dona Benta. — Há os ricos


ridículos, mas há també m os generosos. Rockefeller não
distribuiu toda a sua fortuna em benefício do mundo?

Através dos exemplos, pretendeu -se argumentar que há um ponto de


vista construindo uma crítica por toda a obra , um “autor crítico do mundo”
que surge do texto com uma visão correspondente ao seu lugar social atravé s
das falas de suas personagens , apresentando muitas vezes um olhar limitado .

Do ponto de vista estético, percebe -se a defesa de uma supremacia


ocidental bem questionável hoje em di a.

— Seria no meu, se eu fosse princesa — disse Emília. —


Acho D. Quixote o suco dos sucos. A loucura chegou ali e
parou. Adoro os loucos. São as únicas gentes interessantes
que há no mundo. (Emília sobre D. Quixote )

Tia Nastácia, a espiar lá da copa, resm ungou: "Credo!


Essas crianças inventam cada bicho careta ..." (tia
Nastácia ao ver D. Quixote )

Narrador sobre a chegada do herói grego ao sítio :

Os meninos não largavam o herói Belerofonte. Era a


primeira vez que viam diante de si um herói dos tempos
heró icos da Grécia — sim, porque a Grécia teve tempos
heróicos antes de ter tempos iguais aos de todos os outros
países. Nesses tempos heróicos tudo lá eram maravilhas —
deuses e semideuses, ninfas e faunos pelas florestas,
náiades e tritões nas águas, silfos nos ares. O tremendo
Hércules andava realizando aqueles prodígios
denominados "Os Doze Trabalhos de Hércules", cada qual
mais assombroso. Ah, a Grécia foi a verdadeira juventude
da Imaginação Humana. Depois da Grécia essa imaginação
foi ficando adulta e se m graça — lerda. Nunca mais teve o
poder de criar maravilhas verdadeirame nte maravilhosas.
Aquele herói Belerofonte, por exemplo...

Era tão formoso o herói que todos não tiravam dele os


olhos — até tia Nastácia o espiava lá da copa, de minuto
em minuto. Perto dos gregos antigos, as gentes de hoje
parecem verdadeiras corujas.

Ainda em Histórias de Tia Nastácia :

— Pobres índios! — exclamou Narizinho. — Se as histórias


deles são todas como essa, só mostram muita ingenuidade.
Acho que os negros valem mais que os índios em matéria
de histórias. Vá, Nastácia, conte uma história inventada
pelos negros.

Dona Benta depois de contada e debatid a a história inventada pelos


negros:

— Vocês precisam ler — disse dona Benta — as histórias


de macacos que Rudyard Kipling conta naquele livro de
Mowgli, o Menino Lobo. Esses macacos de Kipling são os
Bandarlogs, nome de certos macacos da Índia. Os outros
animais os desprezam, por causa da sua leviandade, da sua
falta de seriedade, das suas molecagens. São uns perfeitos
louquinhos, os macacos.

BIBLIOGRAFIA:

AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco - O Negro
no Imaginário das Elites Sé culo XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. 48.ed. Ilustr. Manoel V. Filho.


São Paulo: Brasiliense, 1993.

LOBATO, Monteiro. O picapau amarelo. 34.ed. Ilustr. Manoel V. Filho. São


Paulo: Brasiliense, 1994.

RIBEIRO, José Antônio. As diversas facetas de MONTEIRO LOBATO. São


Paulo, coedição Associação Cão Guia de Cego, 1984

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra


Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Be lo
Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

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