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As Origens Mediterraneas do Renascimento LUIZ MARQUES ao se deve pensar que o Renascimento é assim chamado “apenas” porque recuperou na medida do possivel os modelos poéticos, retoricos, filosdficos ¢ visuais da civili- greco-romana. Ele é certamente, e antes de tudo, isso mesmo, Operacao, de per se, basta para Ihe garantir uma posicao ‘ional na histéria da cultura ocidental. Mas como toda ten- de reapropriagio do passado 6, inevitavelmente, uma recria- do passado segundo a perspectiva do presente, ao tentar recon- ar para si o mundo antigo, o Renascimento criou uma ideia ‘mundo antigo que, por sua vez, gerou as coordenadas mentais undo moderno. A ideia em histéria é mais importante que o que a pedra. Se nao fosse assim, por que Florenca, obviamente menos rica que Roma em vestigios do mundo romano, seria neira desse processo? Alids, a relativa escassez florentina de ios do passado péde ser mais estimulante que a abundancia a desses vestigios, pois a escassez permite mais liberdade de encéo” da meméria. Nao esquegamos que em histéria, a memo- de um fato é em si, insignificante. O que é relevante, 0 que faz undo dos homens mover-se, é 0 contetido emocional de que o pode ser suporte. Em fisica, 0 significado da repeticio de um to € infimo, para nao dizer nulo. Quando uma pedra cai de » esse evento apenas confirma pela enésima vez a lei da gravi- . Em histéria, na experiéncia humana constituida pela dimen- afetiva da meméria, toda recorréncia, toda repeti¢ao de um fato, 215 Luiz Marouss de uma ideia, de um enunciado, de uma obra de arte, nada te: uma repeticao, pois o simples fato de ser percebido como uz acontecimento, um re-nascimento, muda seu significado e 0 faz de irredutivelmente novo. As vanguardas modernistas, obce= pelo novo, esqueceram-se de que é impossivel repetir. Nas pa que seguem, procuraremos demonstrar de modo circunsta como a modernidade nasce das diversas reacdes quimicas do 2 fecundado pelo novo na histéria da arte e das ideias dos XIIl e XIV. Deve-se, com efeito, comecar pelo comeco, isto & artistas que desencadearam esse processo: Nicola Pisano, seu © Giovanni Pisano, Cimabue e, naturalmente, Giotto. Os protage tas desses primdrdios da Idade Moderna sao, como é facil ente italianos, Mas nao apenas. A Italia mostra o caminho, mas se até certo ponto de uma estrada de mio dupla, pois as clites, os ratos e os artistas italianos apreciam, acolhem e se deixam i ciar pela poesia, pela musica e pela arte das cortes da Cats e de Castela, pelas cidades setentrionais, pela sofisticacio ext da corte da Borgonha, pela poesia troubadour francesa e sobre provengal e, enfim, pela pericia técnica dos artesaos alemies. O Renascimento elaborou os elementos necessarios para sua pria compreensao. Seus modelos antigos e suas origens medic foram analisados por seus proprios historiadores. Maquiave sua obra A Primeira Década de Tito Livio explora como a Republica romana pode fornecer modelos de compreensio da a¢ao histérica por ele vivida. Por outro lado, faz notar na He de Florenca como a historia florentina do seu século deita raize Toscana do século XIII, e néo por acaso sua biografia de Ca Castracani (1281-1328) mostra em estado de nascimento tudes exemplares do condottiere moderno. Da mesma man grandes literatos italianos dos séculos XV e XVI, de Polizia Cristoforo Landino ¢ a Pietro Bembo, compreendem bem com destino da expressdo poética italiana havia-se formulado ent séculos XILI e XIV, na encruzilhada entre a aspereza concey de Dante (1265-1321) ea elegancia suprema e algo melancé 216 AS ORIGENS MEDITERRANEAS DO RENASCIMENTO (1304-1374), que sonha com uma Roma antiga entre as cardinalicias da corte dos papas de Avignon. quanto na politica ¢ na literatura, o Renascimento nas artes “comeca” bem antes do Renascimento, isto é, no século XII, snais uma vez, essa percep¢ao das raizes é mérito de um his- do proprio Renascimento: Giorgio Vasari (1511-1574), ‘a justamente com uma biografia de Cimabue (c. 1240- suas Vidas dos mais insignes Arquitetos, Pintores e Escultores sezbue aos nossos dias, publicadas pela primeira vez em 1550 e versdo muito ampliada e revista, novamente em 1568, Em © Renascimento nao precisou aguardar as grandes matrizes tivas formuladas pela historiografia do século XIX para reender como uma unidade histérica de trés séculos, um que tem infcio no terceiro quarto do século XIII e que se ©m uma terrivel crise de identidade, de autonomia politica e ‘onia cultural ao longo do terceiro quarto do século XVI. origens de um fendmeno histérico tio complexo como 0 imento devem por forga ser tao complexas quanto o fen6- de que sao origem. E, de fato, uma das caracteristicas essen- cultura no século XIII, especialmente nas regides banhadas iterraneo, é seu carater coral. Sabemos hoje, gracas aos his- matrizes sio elaboradas prevalentemente, como se sabe, por uma plé- historiadores de cultura alema, dentre os quais quatro ao menos devem brados: Jacob Burckhardt (1818-1897), Die Kultur der Renaissance 2 (1860), com mais de uma traducio em portugués; Ferdinand Tus (1821-1891), Geschichie der Stadt Rom im Mittelalter von V. bis vhundert, 1859-1872 (traducio italiana, Trim, Finaudi, 3 volumes, Georg Voigt (1827-1891), Die Wiederbelebung des classischen Alterthunts = erste Jahrhundert des Humanismus, Berlim, 1859, 2 edigdo muito ‘a em dois volumes, Berlim, 1880-1881, 3* ed., Berlim 1893 (tradu- ‘ana, Florenga, Sansoni, 1968); ¢ Henry Thode (1857-1920), Franz i und die Anféinge der Kunst der Renaissance in Italien, Berlim, 1885, edicao ampliada, 1904 (traducao italiana aos cuidados de L. Bellosi, Ed. Donzelli, 1993). Cf. W.K. Ferguson, The Renaissance in Historical . Cambridge (Mass.), 1948, 217 Luiz Marques toriadores italianos do Renascimento, gracas também a Burckharde, que devemos comecar no século XIII a histéria do Renascimenta. Mas, ao contrario de Burckhardt, sabemos também que seus limites geograficos nao se limitam a peninsula itdlica. Trata-se de um pro- cesso historico resultante da interacdo entre vastas areas da Europa ocidental, mas particularmente entre quatro polos culturais direta~ mente tributdrios de uma meméria comum da Antiguidade e mais intima e ininterrupta relacdo: (1) a Itdlia meridional sob do nio dos Imperadores Hohenstaufen, até 1250, no limite até 12 (2) a Itélia central, ou seja, a Toscana, a Umbria eo Lacio, com s capitais culturais: Florenga, Pisa, Siena e Roma; (3) a Franga ao do rio Loire, correspondente sobretudo as antigas provincias ro: nas da Aquitania e da Gallia narbonensis, a brilhante civilizacao. lingua d’Oc, em vias de ser conquistada a ferro ea fogo na Cru: albigense (1208-1249) pelos reis Capetinos de Paris, e (4) 0 & plexo catalao-valenciano-aragonés, que, desde finais do século entrelaca-se indissociavelmente com a histéria da Sicilia, e, di Alfonso de Aragao, com as de Napoles, Miléo, Mantua e Ferrara. Estes quatro polos tecem uma trama cultural continua que afi: sua diversidade e sua complementaridade desde sua constituicao século XIII, que se consolida e se aprofunda ainda mais duran longa experiéncia provengal do papado (1305-1378), ¢ na qual hé lugar para se falar em simples difusio do modelo florentin: claro que os estimulos artisticos mais importantes que mobili esta teia cultural pan-mediterranea nascem na Itdlia central. seria um erro desconhecer, por exemplo, as influéncias da Pp siciliana e dos poetas provencais sobre 0 Dolce Stil Nuovo, o mento literario toscano em que Guido Cavalcanti e Dante se fo ram. Seria igualmente perigoso, como bem mostrou Cesare G subestimar as afinidades entre as figuras monumentais de Gi em Padua (Fig. 43, p.473) eas das esculturas da tribuna (icond: da catedral de Bourges, de meados do século XIII, infeliz; conservadas em estado apenas fragmentario. Estas afinidades proclamadas por Dante que considera 0 poeta provencal s 218 As OrniGzNS MeprrerraANzas Do RENASCIMENTO il miglior fabbro (o melhor artifice). Ao lado do precedente a contribuigao ibérica (leia-se sobretudo: arabe) & esca- do poema de Dante foi bem sublinhada em seu tempo por rande estudioso, Miguel Asin Palacios”, que tao bem explo- s efeitos culturais da estada do mestre de Dante, Brunetto em 1260, como embaixador florentino junto 4 corte hispa- Alfonso, o Sabio. Seja isto dito e redito, para que jamais se seca que o Renascimento, mesmo quando se alastra pela Europa ‘e, adquirindo feigdes proprias, permanece, em suas raizes, into da civilizacao do Mediterraneo ocidental, vale dizer da greco-romana. As interagées politicas, linguisticas, lite- s ¢ artisticas entre esses quatro polos de cultura mediterranea ago do século XIII poderiam ser tema de uma exploracio em adidade, alias nao ainda exaustivamente realizada pelos histo- es contemporaneos. Mas se nossa questao é detectar as com- ites mais imediatamente responsdveis pela dindmica cultural o XIII que gerou o Renascimento italiano, entao devemos concentrar nos dois grandes espectros de forgas que gravitam xno dos dois partidos em que se divide a Italia do século XII: ‘ibelinos e os Guelfos, vale dizer, as forcas aliadas ao Império e se alinham com a Igreja. Estes dois campos estao, na primeira do século XIII, dominados por duas personagens emble- as: o Imperador Frederico If (1194-1250) e néo um papa pora nao falte aqui um grande: Inocéncio III), mas um certo anni di Pietro Bernardone (1181/82-1226), que se fez conhe- > como Francisco de Assis e que a Italia elegeu como seu patrono. hamo-nos por ora no imperador. eto de Frederico I Barbarossa, Frederico II foi o ultimo gover- e efetivo de uma dinastia que logo se extinguiria, mas que ou o Sacro Império Romano-Germanico por dois séculos, os enstaufen, cujo castelo e dominios situavam-se em Schwaben ia, 1919. Luiz MARQues (ou Sudbia ou ainda Suévia), uma regiao histérica da atual Aleman meridional. Apenas por amor A exatidao, Frederico II, morto & 1250, foi ainda sucedido por um Hohenstaufen, Manfredi, seu ilegitimo com a notavel Bianca Lancia, mas este nao conseguiu fato opor-se av avango de Carlos I de Anjou, irmao de Luis IX, g © derrota e mata em 1266 na batalha de Benevento, inaugurande dominio angevino cm Napoles ¢ em parte do sul da Itdlia. Apé morte de Frederico II, 0 Sacto Império Romano-Germanico ira reduzindo aos poucos aos territérios de lingua alema, em prove na Ttdlia, da alianca da Igreja e de varias cidades com a casa z francesa e, ao norte, com o avan¢o, sobretudo a partir da segun metade do século XIV, da Borgonha e das cidades da Flandres. velho Império medieval sé se recuperara a partir de Maximilias para atingir um novo apogeu com seu filho, Carlos V (1500-15: Em 1994, por ocasiio das comemoragies do oitavo centenéria d seu nascimento, realizou-se em Bari, capital da Aptilia (no sul Itdlia), wma grande exposicao dedicada a Frederico II. Nao por acs seu titulo era Frederico II Imagem e poder, pois dela resultou jus mente uma renovada imagem do imperador que nascera em Jest.» Italia, que se considerava “siciliano” ea quem o reino da Sicilia ( entao compreendia a ilha e a porcdo meridional da peninsula) de sua condicao de poténcia europeia no século XIII, tanto no pl politico-militar quanto cultural. O Império romano nunca dex de ser uma referéncia convencional para os Imperadores caroline € otonianos, digamos dos séculos IX a XII. Frederico II foi, e tanto, o primeiro a assumir concreta e completamente essa assou ¢o, a ponto de se fazer intitular “Imperator Romanorum Cae Augustus” (César Augusto, Imperador dos Romanos). Essa ima: de propaganda oficial baseada na total identificacao com os gos imperadores romanos espelha-se em todos os aspectos de governo ¢ de sua vida privada. Por exemplo, na monetacio do ret sobretudo nos Augustales, moedas de ouro cunhadas entre 122 1250 em suas casas da moeda de Brindisi e de Messina, em a anverso surgia a Aguia imperial de Roma e, no reverso, sua & 220 AAs ORIGENS MepiTERRANEAS DO RENASCIMENTO saperador romano, com a inscricéo: ROMANOR REX 1212; ORUM IMPERATOR SEMPER AUGUSTUS ET REX 1220 (Rei dos Romanos 1212; Imperador sempre Augusto “S2nos ¢ Rei da Sicilia 1220). No seu retrato fragmentario do Civico de Barletta, talvez originariamente um retrato eques- mperador apresenta-se vestido a maneira dos antigos impe- com uma clamide afivelada no ombro por uma fibula onde vada a sigla SP.QR. (Senatus Populusque Romanorum = > e Povo de Roma). A inscrig¢ao na base o chama de César Ja por esse retrato, embora em estado tao lacunar, pode- Seder que é na escultura que o impulso da cultura artistica m direcao ao antigo se manifesta com mais forga, gracas legiao de ateliés empenhados em construir, novamente em “fe, uma nova imagem do soberan 0 a maneira de um antigo = Pouco resta infelizmente da atividade desses marmorarii, mas =2 cultura escultérica capaz, pela primeira vez, de imitar a gran- tiga, que surgird, talvez no atelié do es spetacular Castel del » © primeiro escultor da estirpe de que descendem os grandes ores do Renascimento: Nicola Pisano (1220/25-c, 1283), na dade, Nicola de Apulia, como o nomeiam dois documentos de ©, pois é da Apiilia, capital do reino de Frederico II, que ele vem stalar na Toscana, por volta de 1245, provavelmente envolvido ora¢ao escultérica de outro magnifico castelo de Frederico II Prato, perto de Florenca. Sea divi ida da poesia toscana Para com ciliana é reconhecidamente §tande, a transferéncia de Nicola, Teteto ¢ escultor, para a Toscana Promove uma das grandes dacées de uma regio por outra na histéria da arte italiana, omo dito acima, Vasari empenha-se em reconstituir a geénese, a estessao ea plenitude da arte do Renascim ento ao longo dos sécu- XIUL-XVI. Ele divide esses trés séculos (1260-c. 1560) em trés =ces, que se sucedem em constante Superacao até Michelangelo, dramatica do marmore, pelas sombras profundas obtidas de buril, nos abundantes e encaracolados cabelos, barbas, » como Burckhardt, avesso a idealizacio, e o romantismo ico de ‘Thode, frequentador dos circulos wagnerianos e genro ‘Wagner. Mas o antagonismo ideoldgico entre 0 imperador e os iscanos foi real, como bem 0 atesta a vivida cronica de frei bene (Cronica fratris Salimbene de Adam), na qual se 1é: Credo certissime quod sicut Deus voluit habere unum specialem amicum quem similem sibi faceret, scilicet beaturn Franciscum, sic diabolus Ycilinum. “Creio como certo que assim como Deus quis ter um amigo especial que fez similar a si, ou seja, 0 beato Francisco, assim [fez] 0 diabo em Fzzelino”. Ezzelino III da Romano, cognominado 0 Feroz (1194-1259), era, =m de genro, o condottiere de confianca de Frederico II que ater- izou sobretudo as cidades do norte da Itdlia. Mas é claro que a 'stao das origens do Renascimento nao pode se reduzir a este rentamento bipolar, que, de resto, foi ef&mero, pois com a morte Frederico II em 1250 ¢ 0 exterminio dos Hohenstaufen em 1266 229 Luiz Marques (Manfredi) e em 1268 (Corradino), os aliados contra 0 Impera na Italia, na falta do inimigo comum, Passam a se digladiar entre O espectro das aliangas se recompée ¢ a luta atinge novos apices crueza, como entre franciscanos e dominicanos, entre as tendénci internas do franciscanismo, entre a Inquisicao papal e certos Sp iuali franciscanos e, sobretudo, entre 0 papado e a coroa franc: reinante agora nao apenas em Napoles, mas também no prép: Colégio Cardinalicio, o que levara trés cardeais franceses ao tr. pontificio entre 1261 e 1285. O dominio francés sobre 0 papado tal que ele acabard, como se sabe, por “aprisiona_lo” por quase t 0 século XIV em Avignon, novo “cativeiro da Babilénia’ Para além do eventual esgotamento interno de suas energias arte bizantina na Italia foi, portanto, abatida, primeiro por Frederi Je, em seguida, em mais vastas tegioes da Itdlia e da Europa, Pi triunfo do poder politico ¢ cultural francés, 0 que explica bem introdugao de tantas caracteristicas da cultura Qotica na arqui tura, na escultura e na pintura italiana da segunda metade do sé XIII. Nao se deve esquecer que a influéncia francesa entra na It também pela Universidade de Paris, pois nela ensinam, e em ambiente formam seu pensamento, os Standes tedlogos itali das Ordens mendicantes, como 0 dominicano 8. Tomas de Aquii S. Boaventura, o mais ilustre Geral dos Franciscanos, ambos mo: em 1274. Seria, portanto, plausivel pensar que a arte italiana, face tao multipla hegemonia francesa, viesse ase configurar em finais século XIII e mais ainda no século de Avignon (1306-1378) co: um capitulo, provincia ou dialeto da arte golica europeia. Ora, nao foi isso o que ocorreu. Diversas raz6es hist6ricas socioldgicas ajudam a compreender os limites da penetracio gotico na Itélia, mas todas concorrem em Ultima instancia uma sd: a forga de referéncia da cultura antiga na peninsula. essa referencia que permitiu uma dupla assimilagao da arte bi tina e da arte gotica, sem que, Por isso, a Itdlia se transform: em simples provincia de uma ou outra dessas espléndidas ras. Com Frederico II Nicola Pisano, 0 Império nao se quer 230 As ORIGENS MrprrerRANzas Do RENASCIMENTO iental, nem germanico. Ele se pretende novamente romano. vem o domjnio francés e a influéncia gotica € tal que, em um =ro momento, de 1257 a 1261 e provavelmente até a morte de eventura em 1274, a decoracio dos vitrais e afrescos da basilica ascana de Assis é confiada a ateliés goticos anglo-franceses e . Mas eis que, sob o papa franciscano Nicolau IV (1288- manifesta-se a rejeicao a tal empreendimento patrocinado = igreja dos papas franceses e por S. Boaventura, parisiense de <0. F esta resistencia de fundo, para além das rivalidades de gue leya ao abandono da decoragio gética ea cooptacao de foscanos ¢ romanos em Assis. Nao sabemos se a dialética © existe na histdria (talvez nao seja ela mais que um patrimd- 2 flosofia da histér: Mas se existe, podemos flagra-la aqui to, desde que, naturalmente, a assimilagao/rejeicéo dessa dupla encia converta-se em momento Preparat6rio para uma sintese - E €0 que ocorre. ava de fato dar uma expressao Positiva a esta dupla rejeicio cio e do gotico. Faltava uma arte que nao fosse nem bizan- nem gotica, mas que nao se definisse tampouco apenas por resisténcias a uma outra. Faltava, em suma, uma arte nacional =na, como nacional era a sintese operada por Dante no dominio agua e da expressao literdria, nao obstante a unifica¢ao politica er esperar ainda por meio milénio. Enquanto a escultura de Pisano nao encontrava uma expressao mais geral na pintura, =spaco continuo da narrativa pictérica, sua arte nado Ppodia sealcar andigao de gesta nacional. E no encontro de Nicola Pisano com bue, que se produz essa fecundacdo, na Toscana, da pintura 2 escultura, por meio da qual a Itélia moderna se reconcilia com a¢a0 ao mesmo tempo visual e narrativa da civilizagéo romana. encontro se realizou efetivamente nos anos 1270. Sabemos por i que Cimabue pintou nesses anos nao apenas para os fran- -2nos de Florenga, mas também para os de Pisa, e que dentre as as que ali criou conta-se a Maestd do Louvre (Fig. 47, p. 474) .Ja 1927, um dos grandes historiadores da arte do século XX, Pietro 231 Luiz Marqurs ‘Toesca, percebia no laminado plastico das pregas da Virgem, ¢ dobram de fato pela primeira vez na historia da pintura, 0 estudod relevos do ptilpito do Batistério, “como se Cimabue contemplase entdo, para além do classicismo bizantino, o de Nicola Pisano e seus colaboradores’. Tange-se aqui o momento de engendrame dessa sintese. Mas ela passarA da semente a arvore, ela s6 ganhars escala de uma sociedade, nos afrescos da Basilica Superior de Antes de entrar na Basilica, é importante recapitular 0 caminis até aqui percorrido para se ter bem claro 0 que entender por es sintese criadora de uma arte nacional. O encontro de Cima com os relevos do pulpito de Nicola Pisano, por efetivo que tes sido, nao passa de uma metéfora, ou melhor de uma metonim® parte pelo todo), dessa sintese. De um lado, Nicola Pisano é ape um estimulo para Cimabue, que jd conhecera a escultura rons diretamente em Roma em 1272, ¢ se afastara decisivamente da bizantina de Giunta Pisano, em prol de uma nova monumentali no Crucifixo de San Domenico em Arezzo, dos anos 1260 (Fis. p. 475), eem prol de uma verdadeira adesao A escultura no Cru: de Santa Croce, pintado provavelmente antes de 1274, isto é, 2: da Maesta do Louvre. De outro lado, o classicismo estrito de Nicola Pisano nos re do pulpito do Batistério de Pisa, que, como visto acima, mais pz cem relevos de um sarcéfago do século TIT, é um episédio ext: e quase singular de classicismo na escultura do século XIII. Ele se repete tal qual nos escultores toscanos como Arnolfo di Can € nem mesmo na obra sucessiva de Nicola Pisano. Isto seja ¢ para que se coloque na devida perspectiva o significado de retorno em solo italiano as suas referéncias antigas. Toda imit como toda tradugao, ¢ uma operacao cujo resultado depende b camente da natureza das relacées existentes entre 0 modelo € imagem. Na tradugao, o texto resultante é, em principio, tanto = fiel ao original quanto maior for a afinidade entre a lingua de gem ea lingua de destino. Uma traducao, por exemplo, do m rim arcaico para 0 portugués de nossos dias ¢ um salto no abis 232 AS ORIGENS MEDITERRANEAS DO ReNascimento sridade no qual 0 que sobrevive do original é forgosamente Pouco, pois as diferencas entre as duas civilizag6es em con- S20 praticamente intransponiveis. No polo oposto, de Cicero para o italiano moderno (e em medida m: uas neolatinas em uma tra- enor para geral) é uma operagao de espelhamento = dois momentos, entre dois aspectos de um mesmo universo stico, vale dizer, de uma mesma civilizagao. Este exemplo 6 Precisarmos nosso ponto: a transfusio da arte antiga na ional italiana de Cimabue, mediada pelo episédio Nicola >. nado € uma simples e mecanica copia da escultura romana © toscana dos anos 1260-1280. E uma espécie de anam- 2 qual a arte moderna re-conhece e revive a antiga porque de modo ja a continha dentro de si, jd que ambas pertencem, ‘a, A mesma tradicio mediterranea. sorde-se aqui, para concluir essa tecapitulacao, 0 que foi dito sobre o carter coral das origens do Renascimento, resultante =ra¢do entre vastas dreas da Europa ocidental, mas Particu- “nie entre quatro polos mediterraneos diretamente tributarios sa memoria comum da Antiguidade greco-romana: a Italia sional sob dominio dos imperadores Hohenstaufen, no limite 266; a Italia central; a Franca ao sul do rio Loire e o complexo valenciano-aragonés. A escultura antiga age nesse contexto um estimulo desencadeador de uma cultura nacional porque a = cultural mediterranea atingiu no século XIII suficiente riqueza plexidade para compreender seu potencial e incorporé-lo. Tal 0 pela qual, ao se Teapropriar da escultura antiga, a Italia » € em particular a Toscana, nada mais fara que exprimir de 9 privilegiado uma tendéncia a fazer mais programaticamente ate a cultura antiga, tendéncia inerente a toda peninsula itdlica 9 limite, a toda a cultura do Ocidente mediterraneo. orto em 1226, Francisco foi canonizado por Gregério [IX em 16 julho de 1228. No dia Seguinte, o proprio papa lancava a pedra ental de sua igreja. Seu grande campandrio em forma de © quadrada é datado de 1239, data em se sup6e ja construidas Luiz Marques as estruturas murais da dupla igreja, inferior e superior, com sua cripta romanica para receber os despojos do santo e os peregri- nos, sobre a qual se eleva uma imensa igreja iluminada por vitrais e coberta, a primeira na Itdlia, com ogivas goticas, Consagrada em 1253 por Inocéncio IV, a decoragao dos vitrais da basilica comegara jéem 1257, mas, segundo estudiosos como Cesare Brandi e Luciane Bellosi, a verdadeira campanha de decoracao da Basflica superior tem inicio somente em 1288 8tacas ao apoio do papa franciscane. Nicolau IV, prolongando-se até 1298-1300°. Neste lapso de um decénio ou pouco mais, assiste-se a sucesso da geracao de Cimabue (1240c. — apés 1302), entao Por volta dos 50, pela nova geracao de Giotto (1267c.-1337), em um frenesi de trabalho que avanga, ine xordvel, atropelando as resisténcias de uma corrente jd entéo agoni- zante do franciscanismo “radical”. Pois a basilica padece de uma contradic¢ao insohivel: de um la ela é a matriz dos franciscanos, e deveria em principio refletir, menos em parte, as conviccdes de uma de suas faccdes, os francisca- Nos spiritual, intransigentes na luta para manter vivo o exemplo vifico de pobreza e despojamento do santo fundador, Acreditan na iminéncia do fim do mundo (Francisco teria vindo anuncié-t inaugurando a terceira e tiltima idade da humanidade, a do Espiri Santo), os spirituali sé podiam tejeitar, como babildnico, o faus das catedrais géticas e das basflicas marméreas de Roma. Mas, outro lado, a basilica nao pertencia, juridicamente, aos franciscan ¢ sim ao papado, que a geria através de um cardeal, apoiado outra facgao dos franciscanos, os conventuali, mais déceis a Roma a Realpolitk. De modo que, por uma dessas ironias de que a histéri da Igreja é rica, é em homenagem ao mais devotado amigo da “In Pobreza” que se edificara, sob férreo controle papal, o mais estre: — 6 C. Brandi, “Sulla cronologia degli affreschi della chiesa superiore di Assi In Giotto il suo tempo. Atas do Congresso, Roma, 1971, PP. 61-66; L. Bell Cimabue, Miléo: Ed. Federico Motta, 1998, 234 AS ORIGENS MEDITERRANEAS DO RENASCIMENTO. mplexo pictorico de toda a Italia medieval, abundantemente ecido nas abébodas estreladas com folhas de ouro. ‘@ maneira, essa decoracdo, por sua vastidao, por sua uni- =complexidade tematica e decorativa, pelo carater excepcional eas valores artisticos, coroa a longa e ininterrupta experiéncia Sesco na Itdlia medieval desde o periodo carolingio. Mas muito ¢ como um ponto de chegada, a Basilica superior de Sao cisco de Assis deve ser entendida como o Antigo Testamento ‘a italiana do Renascimento. Ela anuncia sua gesta, da Brancacci de Masolino e Masaccio (1428) ao texto extremo pela Paolina de Michelangelo (1550), da mesma maneira que zo Testamento anuncia o Novo, que, por sua vez, 0 confirma iza na plenitude da historia. mo é de praxe, o programa decorativo comega no presbilério € septo da Basilica ¢ evolui em diregao 4 fachada interna oci- , estendendo-se sempre dos registros superiores das paredes nferiores para que, obviamente, a pintura de cima nao respin- a de baixo. Esses afrescos do presbitério e do transepto, con- as na maior parte a Cimabue e a seu atelié, estavam arruinados época de Vasari (1550) e muitos deles sofreram uma alteracio mica que inverteu a relacdo entre claros e escuros, de modo que raro parecem hoje fantasmagorias em negativo. Representam cenas da Vida de Maria na abside e doze cenas do Apocalipse > Atos dos Apéstolos nos transeptos esquerdo ¢ direito. Malgrado é possivel ainda admirar no transepto esquerdo (de quem 2 para o altar) nao apenas a primeira verdadeira encenacio da ificagao de Cristo, em um espa¢o amplo e pioneiro na pintura, s talvez a mais dramatica, sonora e mesmo rumorosa de quantas ham sido pintadas na historia da arte. Cimabue colhe o exato nento da morte do Cristo, momento que desencadeia a desor- fem césmica dos anjos ¢ o grito lancinante da Madalena, que lanca tente os bragos para a cruz como para abragar o cadaver. Em atraponto harménico com este agudo, ouvimos as vozes graves Longino e de outro soldado proclamarem, com os bragos exorta- 235

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