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Mateus Oka
fariasoka@outlook.com
Carolina Laurenti
laurenticarol@gmail.com
Universidade Estadual de Maringá
RESUMO
INTRODUÇÃO
1
É interessante pensar, nessa lógica, no lugar disciplinar das ciências da saúde e, talvez, a
psicologia. Ao pensar nas identidades dissidentes e tentar adequá-las a um modelo de
heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2003), o médico John Money precisou acionar
conhecimentos tradicionalmente divididos das ciências humanas e das biociências, separadas
também por uma noção de objetividade científica (LAURENTI, 2014). Esses conhecimentos muitas
vezes entendidos de maneira dicotômica constituem uma pluralidade disciplinar das ciências da
saúde e, talvez, um desafio na tentativa de articulá-los.
Como pontuado por Haraway (2004), a cisão entre “sexo” e “gênero” tem
também uma importância política que fora fomentada por feministas da década de
1970: a desnaturalização – no sentido de retirar a “natureza”, entendida de maneira
análoga a “sexo” – dos papeis sociais impostos às mulheres na cultura ocidental. O
objetivo era se desfazer do determinismo biológico que pairava ao identificar as
dimensões culturais imbricadas no que significa ser “mulher” com a determinação
biológica do “sexo feminino”. Era necessário dizer que nascer com um corpo
feminino não era intrínseco a uma condição de submissão, subjugação e
inferioridade em relação aos homens. A preocupação feminista, nesse sentido, é
revelar que as identidades masculinas e femininas, bem como as posições sociais
que ocupam são contingentes historicamente e culturalmente. O caráter mutável e
flexível de uma cultura permitiria transformar essas desigualdades de “gênero”.
O feminismo da década de 70 do século XX, assim, influenciou as produções
científicas, transformando, pouco a pouco, um campo anteriormente conhecido
como estudos da mulher em estudos de gênero, como uma tentativa de criticar o
essencialismo que a posição de “sexo feminino” determinava. Ao passo que essas
mudanças foram realizadas, a utilização da palavra “sexo” sofreu um decréscimo em
detrimento do termo “gênero”, ao ponto de uma “perspectiva de gênero” ser
promovida por instituições ligadas às políticas em saúde (AQUINO, 2006). Assim, de
um lado, a área das ciências da saúde está no contexto de inauguração da
separação analítica entre “sexo” e “gênero”, e, de outro lado, esse campo de
estudos também é influenciado atualmente por movimentos sociais que modificam e
regulam determinados usos dessas palavras. Entretanto, Aquino (2006) sinaliza um
esvaziamento do conceito de “gênero” nas publicações das ciências da saúde, que
se traduz na sua mera substituição ao termo “sexo”. Em outras palavras, a autora
aponta que o fomento da “perspectiva de gênero” muitas vezes ocorre apenas na
forma de uma mudança na linguagem corrente, e não em um entendimento de
“gênero” como um conceito ou uma ferramenta analítica.
Dessa forma, os usos dos termos “sexo” e “gênero” pelas publicações nas
ciências da saúde não são isentos de problemas. Ao passo que tanto o conceito de
“gênero” como o de “sexo” não possuem consenso para suas definições2, os seus
diferentes usos possuem implicações para a própria pesquisa – no sentido
epistemológico e metodológico – e para o âmbito ético e político no contexto social
em que essas produções científicas estão inseridas. Assim, o objetivo desta
pesquisa foi mapear os usos correntes dos termos “sexo” e “gênero” nos artigos do
campo das ciências da saúde.
2
O conceito de “gênero” é plural desde os diversos interesses políticos e teóricos em que está
inserido, bem como as questões de tradução que impedem a universalização de seu sentido nos
diferentes idiomas e seus contextos culturais (HARAWAY, 2004). Além disso, a definição de “sexo” é
também disputada não apenas no âmbito filosófico (BUTLER, 2003), mas nas próprias biociências.
Margulis e Sagan (2002) definem “sexo” como troca de material genético; Roughgarden (2005)
aponta a utilidade teórica e prática em conceituar “sexo” apenas em relação ao tamanho dos gametas
que os seres vivos sexuados apresentam; um estudo sobre a determinação gonadal e o cromossomo
Y descreve a existência de “mulheres XY” e “homens XX”, mas não evidenciam os critérios para que
esse sujeito seja caracterizado como “mulher” ou “homem” (DAMIANI et al., 2000). Enquanto isso, a
ideia de um “sexo” homogêneo e coerente em todo o corpo – alinhando gônadas, genitálias,
cromossomos, hormônios etc. – já fora questionada, abrindo espaço para entender a anatomia
humana de maneira menos enrijecida ou monista (MACHADO, 2005).
taxonômica (N = 15); seus usos ocorriam somente em uma revisão de literatura (N =
8); e sua versão completa não estava disponível (N = 4). Assim, no total 18 artigos
foram selecionados para este estudo. Cada uso feito das palavras “sexo” e “gênero”
foi sistematizado em forma de tabela, sendo discutido cada um deles no contexto da
pesquisa. Posteriormente, a fim de possibilitar as discussões, as utilizações
encontradas foram agrupadas em categorias temáticas, sendo elas: (a) uma
sinonímia entre os conceitos, (b) a noção de “gênero” como relação entre os “sexos”,
marcada por desigualdades, e (c) a tese de questões de “gênero” como um conjunto
de mitos, senso comum, tabus, concepções, da cultura sobre a sexualidade.
3
O banco de dados pode ser acessado em: <http://www.bombeiroscascavel.com.br>.
permanecesse intacto ao serem trocadas. Isso ocorre em oito artigos encontrados
para análise (ANTUNES et al., 2002; EMERICH et al., 2012; GOLIAS; CAETANO,
2013; GRECO et al., 2007; GUERRA et al., 2004; LIMA et al., 2013; MEDEIROS et
al., 2014; PELLOSO et al., 2008).
Como já pontuado por Aquino (2006), a versão conceitual de “gênero” parece
guardar em seu uso um status de criticidade, como uma forma mais “politicamente
correta” (p. 128) em comparação com “sexo”. Conforme um dos artigos da amostra
da pesquisa, as políticas públicas em saúde “devem levar em conta que existem
dois gêneros, masculino e feminino, e ser adaptados distintamente para ambos.”
(ANTUNES et al., 2002, p. 89). Em todos os casos, a relação entre os conceitos é
mimética, permanecendo inalterado o seu sentido tanto quando utilizado “sexo
feminino” ou “gênero feminino”.
Assim, a questão levantada é se, de fato, faz diferença utilizar “sexo” ou
“gênero” nesses contextos. Tomando como exemplo o uso feito por Golias e
Caetano (2013), é possível questionar: de que maneira é registrado o “sexo” das
vítimas dos acidentes? Se, eventualmente, uma pessoa trans4 é o sujeito envolvido
no caso, qual seria o “sexo” a entrar para a estatística do banco de dados? Nesse
sentido, faria diferença se, ao invés de “sexo”, fosse registrado o “gênero”?
Independentemente das possíveis respostas que surgiriam a essas
perguntas, o que se percebe é que há uma pressuposição de uma cisgeneridade
dos sujeitos de pesquisa. Em outras palavras, não há, de antemão, a consideração
da presença de pessoas desalinhadas com uma norma de sexo-gênero-desejo
conforme uma heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2003). A possibilidade de
sublimar o conceito de “sexo” para “gênero” revela, desde o início, o prognóstico de
que o sujeito estudado esteja normativamente alinhado, de, por exemplo, um “sexo
feminino” para um “gênero feminino”.
Em outra análise, há (b) a noção de “gênero” como relação entre os “sexos”,
marcada por desigualdades. Esse uso diz respeito às “históricas e desiguais
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Conforme Maranhão Filho (2012), “A expressão trans* é um termo ‘guarda-chuva’, utilizado por
algumas das pessoas que se declaram em situações de trânsito identitário de gênero. [...] Por terem
um gênero atribuído na gestação e/ou nascimento que não as contemplam (feminino/masculino) e
pelo fato de se identificarem com o gênero distinto deste, vivenciam experiências entre gêneros.” (p.
91).
relações de gênero, que teimam em perdurar e vulnerabilizar as mulheres”
(SAMPAIO et al., 2014, p. 1303). Assim como conceitos de “classe” ou “raça”
tendem a ser marcadores de diferença de poder, “gênero” traria luz às
desigualdades entre o “sexo feminino” e o “sexo masculino”. Dessa forma, usos
como “conflitos de gênero”, “desigualdade de gênero”, “violência de gênero” são
recorrentes nesses estudos e poderiam ser substituídas por “desigualdade entre os
sexos”, visando demarcar um maior poder de um grupo em relação ao outro.
Nesse contexto, é útil pensar no estudo de Araújo e colaboradoras (2011) em
que foram avaliados também artigos das ciências da saúde, mas em relação ao uso
parcial ou completo do potencial analítico da palavra “gênero”. O sentido parcial,
para as autoras, refere-se àquele que trata as diferenças entre os “sexos” de
maneira apenas descritiva – sendo esse o campo de “gênero” –, enquanto o sentido
completo atentaria para as relações de poder desiguais entre “homens” e
“mulheres”. Seguindo esse raciocínio, os quatro artigos situados nessa categoria
temática (ARAÚJO et al., 2012; CHACHAM et al., 2012; SAMPAIO et al., 2014;
SCHRAIBER et al., 2008) utilizam “gênero” em seu sentido completo.
Em um dos estudos, postula-se que “De acordo com a perspectiva teórica das
relações de gênero, explica-se a violência, sobretudo a sexual, enquanto
comportamento principalmente masculino.” (SCHRAIBER et al., 2008, p. 134).
Entretanto, a mesma pesquisa, quando passou a tratar sobre os casais
homossexuais, parece ter encontrado dificuldades: a “perspectiva de gênero”
adotada sugere uma posição dual, oposta e binária entre os “sexos” que prescreve
uma condição oprimida dos sujeitos femininos. Nesse contexto, o estudo sugeriu a
hipótese de que “nos casais homossexuais masculinos e femininos parece haver
uma crise das relações e identidades tradicionais que também gera violência.” (p.
134). Nesse ponto, é interessante levantar a discussão realizada por Butler (2003,
2011) acerca da política identitária do feminismo.
IMPLICAÇÕES
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Além disso, a palavra “gênero” atualmente passa a receber significados políticos particulares,
sobretudo nos movimentos que levantam a expressão “Gênero não!”. Em 2014, a palavra “gênero” foi
retirada do Plano Nacional de Educação, acompanhada dos movimentos a favor da retirada de
discussões acerca da diversidade sexual e de “gênero” nos currículos escolares (CARVALHO et al.,
2015). Posteriormente, em disputas políticas sobre os Planos Municipais de Educação, foram
encontradas/os manifestantes segurando cartazes com os dizeres “Menino já nasce menino/Menina
já nasce menina/Educação com ideologia de gênero é opressão!” (TOLOMEOTTI; CARVALHO, 2016,
p. 80). Nesse sentido, questiona-se quais os efeitos desses movimentos também no debate sobre as
palavras “sexo” e “gênero” no campo das ciências da saúde.
É importante ressaltar que esse estudo não pretende prescrever quais são os
usos corretos ou não de “sexo” ou de “gênero”, mas que há importância em pensar
nas implicações epistemológicas, metodológicas, éticas e políticas de suas
utilizações correntes. A pluralidade de possibilidades, pelo contrário, pode contribuir
para um aumento no debate e na reflexão sobre os efeitos desses conceitos, de
maneira que usos mais éticos a depender de cada contexto de pesquisa sejam
realizados. Assim, considera-se que “a validade de um conhecimento não é aferida
pela sua suposta aproximação com uma realidade imutável, mas pela possibilidade
de esse conhecimento abarcar de modo crescente relações até então nunca vistas,
ou, antes, pensadas.” (LOPES; LAURENTI; ABIB, 2012, p. 132).
Dessa maneira, é apresentada neste estudo uma tentativa de fazer circular
esses debates no campo das ciências da saúde, de forma que, como efeito, seja
suscitada uma reflexão acerca das implicações das pesquisas científicas na
reprodução de práticas normativas quanto a “sexo” e “gênero”.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Maria Cristina; PERES, Camila Alves; PAIVA, Vera; STALL, Ron;
HEARST, Norman. Diferenças na prevenção da Aids entre homens e mulheres
jovens de escolas públicas em São Paulo, SP. Saúde Pública, v. 36, n. 4, p. 88-95,
2002.
EMERICH, Deisy Ribas; ROCHA, Marina Monzani da; SILVARES, Edwiges Ferreira
de Mattos. Diferenças quanto ao gênero entre escolares brasileiros avaliados pelo
inventário de comportamentos para crianças e adolescentes (CBCL/6-18). Psico, v.
43, n. 3, p. 380-387, 2012.
GUERRA, Valeschka M., GOUVEIRA, Valdiney V., PESSOA, Viviany S., RIVERA,
Giovani A., SOUZA Filho, Marcílio L. de. Inventário de ambivalência em relação aos
homens: adaptação brasileira e relação com gênero. Psicologia: Teoria e Prática,
v. 6, n. 2, p. 47-61, 2004.
MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorian. O que é sexo? Tradução: Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
MEDEIROS, Robinson Dias de; AZEVEDO, George Dantas de; MARANHÃO, Técia
Maria de Oliveira; GONÇALVES, Ana Katherine; BARROS, Yasha Emerenciano;
ARAÚJO, Ana Cristina Pinheiro Fernandes de; LIMA, Stênia Lins Leão. Impactos da
inserção da temática saúde sexual e reprodutiva na graduação de medicina.
Ginecologia e Obstetrícia, v. 36, n. 3, p. 107-112, 2014.
SCHRAIBER, Lilia Blima; D’OLIVEIRA, Ana Flávia P. L., FRANÇA Junior, Ivan.
Violência sexual por parceiro íntimo entre homens e mulheres no Brasil urbano,
2005. Saúde Pública, v. 42, p. 127-137, 2008.
ABSTRACT
The origin and diffusion of the analytical separation of "sex" and "gender" refer to a
vast bibliography, mainly in the biomedical scope, characterizing a plurality as to their
meanings and the uses made of these concepts. The field of health sciences, on one
hand, reveals its approximation to feminist discussions through public policies and,
on the other hand, is historically a forerunner of normative uses of "sex" and
"gender." Given this outlook, we sought to investigate the uses of the terms "sex" and
"gender" in articles of the area, selected in the Latin American and Caribbean Health
Sciences Literature (LILACS) database. 18 articles were obtained, whose contents
were systematized in charts and, later, articulated in a qualitative analysis, that
highlighted some normative uses of the concepts. Among possible uses of these
words, it was possible to identify: (a) a synonymy between the concepts; (b) the
notion of "gender" as a relation between the "sexes", marked by inequalities; and (c)
the thesis of "gender" issues as a set of culture myths about sexuality. The
discussion did not intend to prescribe correct uses of the concepts. Thinking about
the ethical and political implications, it was intended to contribute to the production
and circulation of debates in this field.