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Carlos R. Medeiros
Prof. e Médico do
Serviço de Transplante
de Medula Óssea do
Hospital de Clínicas da
Universidade Federal do
Paraná. STMO-HC-UFPr.
Marco Antonio
Bitencourt
Médico do Serviço de
Transplante de Medula
Óssea do Hospital de
Clínicas da
Universidade Federal do
Jupiterimages
Paraná. STMO-HC-UFPr.
Glaci L. Moura
Especialista em
Hematologia e
Oncologia. Médica
responsável pelo
Ambulatório da
Hematologia e
Oncologia.
120
O Câncer e Sua Representação Simbólica
Worden (1998) propõe algumas técnicas, como a Com a evolução da tecnologia e da ciência,
intervenção no processo de luto. Entre elas, descobriram-se novas intervenções: cirurgia,
menciona a reestruturação cognitiva como forma quimioterapia, radioterapia, transplantes; então,
de estimular a manifestação de pensamentos e o olhar tornou-se focal, isto é, restringiu-se à parte
sentimentos provenientes da perda real ou específica do corpo adoecido e não mais ao
imaginária. Fica subentendida, nessa proposta, a funcionamento do ser humano como um todo.
interferência dos pensamentos sobre os Assim, em linhas gerais, o câncer passou a ser visto
sentimentos, inclusive os pensamentos encobertos como um problema corporal localizado.
e os que estão diretamente relacionados ao próprio
sujeito na forma como ele se sustenta em sua Após 1950, a forma de análise interpretativa em
subjetividade. relação ao câncer sofreu outra mudança.
Novamente, a história de vida emocional e cognitiva
Segundo Leshan (1992, p. 28), no período que passou a ser considerada e incluída nos fatores
antecede a instalação do câncer, ou seja, antes que poderiam exercer interferência no
dos primeiros sinais da proliferação caótica celular, aparecimento, na manutenção e na evolução do
existe um padrão de perda da esperança em 70% câncer.
a 80% das pessoas que adoecem, enquanto apenas
10% apresenta esse comportamento no grupo em Apesar dos avanços científicos e da revolução
que inexistia o câncer. Para ilustrar o achado, ele tecnológica, o conceito do câncer mantém
cita o poeta W. H. Auden, que define o câncer explicações arcaicas e, por vezes, irrealistas. Os
como “um fogo criativo derrotado”. recursos terapêuticos ampliaram-se
significativamente, mas o problema e as questões
A prática diária também registra a existência de são os mesmos, ou seja: como sanar a
atitudes individuais de autocura. Nesse contexto, vulnerabilidade detonada pela imagética?
o problema está no fato de não se saber, com
consistência científica, como acionar e manter o Na medida em que o fantasma da morte
processo de resgate da saúde. Porém, sabe-se que, acompanha o paciente em seus movimentos,
nas situações em que o processo de autocura se espera-se que esta investigação traga algum
estabelece, ocorre um aumento de respostas conhecimento que nos auxilie a elaborar
qualitativas. terapêuticas mais satisfatórias e precisas.
Também foi possível observar que, após o décimo entrevistado, as respostas posteriores não apresentaram
variações qualitativas significativas. Vale destacar que a pesquisa foi feita em dez entrevistas para cada
grupo, conforme a amostra a seguir:
médico cuidar da morte, embora sua formação
Tabela – Universo entrevistado acadêmica o tenha preparado para a cura, e
não para a morte. Além disso, ninguém possui
Grupo Número Gênero Hospital Fora do informações sobre o dia e a hora da própria
F M Hospital morte. Ainda assim, pacientes portadores de mau
prognóstico podem surpreender, vivendo além
Médico 10 4 6 X das expectativas, e pacientes com probabilidades
Enfermagem 10 8 2 X estatísticas favoráveis podem apresentar
Psicólogo 10 7 3 X complicações inesperadas e falecer. Nessa
Paciente 10 6 4 X contradição, o clínico mantém a tradição de
Familiar 10 6 4 X vislumbrar o desejo da cura mesmo que, ao ser
Externo ao associado à morte, o câncer passe a ser maldição
hospital 10 6 4 X não desejada para o convívio.
Total 60 37 23
Exige-se do médico que seja tecnicamente
competente e humanamente acolhedor.
Contudo, é preciso considerar que a grade
As respostas foram categorizadas conforme a curricular das escolas de Medicina do Brasil não
temática da percepção apresentada pelas pessoas oferece conhecimentos suficientes para uma
entrevistadas. A classificação compõe os seguintes eficaz compreensão das implicações
tópicos: a) morte; b) aprendizagem e mudança de biopsíquicas do doente.
valores; c) perdas secundárias ao tratamento; d)
razões emocionais; e) crença/estigma; f) explicação Nessa perspectiva, Nunes Silva (2000) aponta a
teórica. A seguir, elas serão apresentadas para que necessidade premente de incluir no curriculum
sejam transmitidos os respectivos fenômenos médico conteúdos de Psicologia, Antropologia
interferentes na imagética do câncer. e Sociologia, de modo que se estabeleça uma
relação mais salutar entre o pensar, o agir e o
Grupo de Médicos sentir.
(Para Você: o Que Significa “Câncer”?) Dessa forma, poder-se-ia propiciar uma
incorporação clínica para além da doença, ou
A temática das respostas está concentrada no item seja, o doente estaria incluído no contexto de
da explicação teórica, mas, quando há ausência uma possibilidade a mais de expressão e
da referência científica nos relatos, descobre-se acolhimento, não se mantendo recluso na
uma miscelânea de justificativas, que vão desde solidão que o abate.
crenças descabidas até a impotência diante da No entanto, como inserir o doente, contemplá-
morte. Apenas 1/10 dos médicos apresentou a lo com atendimento de modo mais amplo, se a
necessidade de mudar os planos e projetos de vida imagem primordial é de que se trata apenas de
devido à consciência da finitude e ao desejo de uma questão de tempo para o enfermo estar
uma saúde global. Eis algumas das respostas incluído na lista dos óbitos?
obtidas:
Nunes Silva (2000, p. 240) afirma que: “deve-se
“É uma moléstia, é uma doença horrorosa. É cheia procurar desmitificar crenças aterradoras que,
de tabus e só de pensar que você tem câncer, já muitas vezes, não correspondem à realidade, mas
acontece uma associação com a morte”; “É uma que intranqüilizam o paciente e sua família”.
auto-destruição, é uma alteração do seu
psicológico que altera o sistema imunológico e Grupo de pacientes
este dá chance para isto acontecer”; “É um tiro no (Para você: o que significa “câncer”?)
escuro”.
Pelas respostas encontradas nesse grupo, parece
O que fica escondido na própria fala que diz ser não haver um interesse maior em relação às
melhor não adentrar na temática do câncer? explicações teóricas, o que é verificado na
prática, mesmo quando os pacientes têm um nível
Segundo Nunes Silva (2000, p. 148), “o grande intelectual, educacional e cultural elevado.
temor dos médicos é de que os pacientes se
deprimam, desistam do tratamento e, por De fato, primeiramente, o paciente faz
conseguinte, renunciem prematuramente à luta pela investigações acirradas em todas as vias. Porém, 123
própria vida”. Na desistência da vida, resta ao quando a evolução da doença modifica o
Maribel Pelaez Dóro, Ricardo Pasquini,
Carlos R. Medeiros, Marco Antonio Bitencourt & Glaci L. Moura
maior ou menor, mas acontece. Porém, apenas 1/ No caso de situações de grandes impossibilidades,
10 dos familiares faz comentários sobre a doença, acompanha o paciente para que possa transformar
o estigma, a associação com a Aids e os efeitos e suplantar perdas por ele vivenciadas.
negativos nos relacionamentos, na vida social.
Se é assim, então, como explicar o fato de o grupo
De acordo com Dunlop e Hockley (1990), apud de psicólogos não ter apresentado nenhuma
CARVALHO (1998), existem três classificações para resposta na categoria de aprendizagem e mudança
demarcar as necessidades familiares, quais sejam: de valores? Entende-se que esse item inclua
a) fadiga; b) necessidades psicológicas e c) esperança e mudança na escala de valores
necessidades sociais. pessoais. Se não é possível a mudança, tal fato
significa que a percepção mantém o foco, isto é,
Por sua vez, Worden (1998) considera que, os padrões repetem-se sem indícios de
quando se vê a deterioração progressiva do transformação.
paciente e se está impotente diante desse processo
ininterrupto, ocorre uma identificação com o O grupo de psicólogos entrevistado possui
morrer, havendo uma tomada de consciência de formação acadêmica e experiência hospitalar.
que este também possa ser o seu fim. Tal Supõe-se, então, que haja conhecimento teórico
consciência desperta sentimentos e emoções e vivência suficiente para o profissional almejar e
angustiantes, que podem se manifestar pela contribuir para a mudança perceptiva do paciente,
necessidade de distanciamento do que se enxerga, a fim de que as perdas sejam amenizadas. No
mas que não se quer ver. Assim, qualquer um pode entanto, pelos comentários expressos, constata-se
recuar emocionalmente, havendo o sepultamento que a imagem internalizada não se deixa penetrar
do doente antes da morte. A inadequação dessa pelo fazer e o pensar, pois está mesclada pelo sentir
reação é que pode ocorrer até mesmo no próprio que pode estar alicerçado na representação
doente, isto é, ele se enterra na atitude de abandono simbólica negativa de cada um.
da vida e fica à espera de que a morte venha sedá-
lo da dor da morte social. As respostas superficiais mencionadas acima talvez “É uma desistência
representem uma defesa psíquica da própria da vida”; “É um
imagem internalizada. Contudo, também
Grupo de Psicólogos (Para Você: o apresentaram respostas demonstrativas do poder
passaporte para a
morte”; “É coisa do
que Significa “Câncer”?) de influência do pensamento simbólico e das
dito cujo”.
crenças perpetuadas pela fragmentação de saberes.
No grupo de psicólogos, houve predomínio de Para exemplificar, eis alguns comentários: “É a morte
comentários com foco na explicação teórica. O sobrepujando a pulsão de vida”; “É uma desistência
achado é interessante, uma vez que a proposta da vida”; “É um passaporte para a morte”; “É coisa
deste estudo é explorar a representação simbólica do dito cujo”.
do câncer. A pensar-se na formação acadêmica e
A aflição é estabelecida conforme o foco
na experiência de trabalho do grupo, poder-se-ia
perceptivo, e não somente em decorrência das
supor que as respostas trouxessem mais perdas reais.
interpretações do campo simbólico.
Korzybskyl, apud Balieiro (1999, p. 56), afirma que
O que se teria processado no momento da
entrevista, uma vez que houve uma aparente (...) a percepção tem um caráter de representação,
inibição reflexiva, pois as respostas foram sucintas ou seja, de codificação, que é a transformação do
e, por vezes, tão genéricas que nada da objeto percebido em objetos ou elementos de
especificidade do câncer foi dito? Para exemplificar, outra ordem, outro código, neste caso, de caráter
copiam-se alguns comentários: “É uma doença a abstrato, mental. Estes objetos mentais não são,
ser tratada”; “É uma doença grave”; “É uma doença evidentemente, a coisa percebida, pois o subjetivo
causada por um desenvolvimento anômalo”. é o processo de captação do valor, uma vez que a
percepção não cria o objeto mas o capta; o mesmo
O psicólogo, independentemente da teoria sucede com a valoração.
psicológica em que fundamenta sua prática, tem
Existe um conjunto de fatores que induz o
como meta propiciar o desenvolvimento do
indivíduo a dar uma importância maior ou menor
autoconhecimento para que o paciente possa para o que vive. Essas regras de codificação são
construir uma boa relação consigo e com o outro. constituídas pelo potencial genético, personalidade
Também visa a que o paciente apreenda os e sua inserção sociocultural e histórica.
enfrentamentos necessários para que a
administração de acontecimentos positivos e Conforme o pensamento de Werneck (1996, pp.19 125
negativos seja satisfatória. e 25),
Maribel Pelaez Dóro, Ricardo Pasquini,
Carlos R. Medeiros, Marco Antonio Bitencourt & Glaci L. Moura
(...) conhece-se o valor com a vivência da Até mesmo reações mais agressivas surgem a partir
sensibilidade e não só com a idéia, num processo da menção da palavra câncer. Talvez seja um
de racionalização (...). O esforço da razão é feito demonstrativo do impacto ocorrido devido à
no sentido de conhecer a coisa mobilização da emoção, como neste comentário:
independentemente de seu valor. Em que medida “É uma grande filha da puta! É uma doença terrível!
isso é possível, é difícil precisar; esse é o objetivo, o A natureza é interessante, ela cria mecanismos para
intuito, mas, ao que parece, nunca é plenamente adequar os excessos, por isto o câncer é parecido
conseguido, já que o que atrai para o conhecimento com a Aids”.
do objeto é, antes de mais nada, o seu valor.
O grupo também fez associações que expressam o
Grupo de Enfermeiros (Para Você: quão grande, dominador e agressivo é o câncer.
o que Significa “Câncer”?) Exemplificando: “É um monstro que quando se
mexe se espalha”.
Apesar de haver um conhecimento teórico, o nível
de respostas do grupo de enfermeiros indica uma As informações obtidas com a primeira pergunta
impregnação mórbida que contamina a mostram que, independentemente da informação
percepção da situação como um todo. cultural, acadêmica e da contextualização de cada
Aparentemente, o olhar está fragmentado e com um e da história de vida, isto é, como cuidador ou
um desvio focal, de modo que capta apenas as cuidado, todos apresentaram respostas associadas
perdas, interpretadas com bases nas crenças. a imagens da morte, da dor do morrer e crenças
com analogias potencialmente mórbidas e com
Além disso, ocorrem associações que manifestam alto índice de agressividade, ou seja, imagens que
conteúdos rudimentares, pois as associações são sugerem haver algo ameaçador. Seja qual for a
materializadas em bichos devoradores e explicação, é dado a esse algo um poder de
incontroláveis. destrutividade fatal para a vida, quer seja no âmbito
do corpo, quer seja no da palavra.
A seguir, serão mencionadas algumas frases que
demarcam o teor simbólico: “É um bicho de sete Retomando, as palavras mencionadas acima –
cabeças, não tem cura, apesar de... pode ter
cuidador ou cuidado – constituem vocábulos
tratamento, mas volta...”; “Tenho que câncer é como
representativos de uma posição funcional. A
um dragão, porque ele te come com tanta voracidade
primeira mensagem é: preciso ter CUIDADO! A
que você não sabe o que fazer”; “Câncer é um bicho
segunda mensagem subentendida é que, se você
que te come, mas, tem vários tipos de bichos”;
“Câncer é um assassino oculto, cruel e sem piedade”. estiver sem condições de ser cuidador, então será
cuidado. Nessa condição, permanecerá atado aos
cuidados que o seu tratamento requer. Mas, e se
Grupo de Sujeitos Externos for o cuidador? Também merece atenção e
(Para você: o Que Significa cuidado, uma vez que a dor pode estar enxertada
“Câncer”?) naquele que cuida, isto é, no cuidaDOR.
Cuidar dos Pacientes com Câncer No grupo de sujeitos externos, ou seja, isento do
convívio com doentes, ao comentarem sobre o
Interfere de que Forma, na Sua que imaginam que deva acontecer com familiares
Vida? ou com os profissionais da área de saúde,
expressam idéias de sobrecarga de vida, o que gera
No caso da pergunta: “Cuidar dos pacientes com um abandono de projetos, sonhos e até mesmo
câncer interfere de que forma, na vida de quem da própria vida, como pode ser observado em
cuida?, os grupos apresentaram comentários, alguns comentários: “Gostaria de não ter contato
conforme a expressão temática, classificados em: com estas pessoas.”; “Quem cuida fica escravo destes
a) desvitalização emocional – depressão, amargura, pacientes e acaba deixando de viver a própria vida
tristeza, vive em função da vida do outro, estresse e para viver a vida dos enfermos.”; “Deve ser difícil
sobrecarga –; b) sentimento de impotência – ameaça olhar para uma pessoa que está se acabando, que
de perda iminente, identificação –; c) finitude – está indo.”; “Não interfere porque não pega.”.
consciência da própria terminalidade –; d)
humanização – crescimento espiritual, apego a Em relação ao grupo de médicos, este último
Deus, mudança de valores, lição de vida, manifestou identificação com o processo de muitas
aprendizagem –; e) ciência – pesquisa, lutas e desistências necessárias nesse ir-e-vir dos
responsabilidade profissional, teoria –; f) frieza pacientes. Alguns reagem com o esfriamento, outros
afetiva – duro, calculista –; g) vocação; h) nenhuma se envolvem com os paciENTES; assim, também
interferência; i) não sabe. apresentam sentimentos de impotência e medo
de serem os próximos por ficarem tão perto da
Nos grupos de pacientes, de familiares e de sujeitos consciência da finitude e da dor desse convívio.
externos, houve uma concentração no item
“Gostaria de não ter desvitalização emocional. A sobrecarga consome a Também foram fornecidas respostas de valorização
contato com estas vida do cuidador, enquanto o paciente some no à vida e mudanças de valores, devido à necessidade
pessoas.”; “Quem seu definhar contínuo. Pode-se supor que o de trazer humanização a um contexto que requer
cuida fica escravo paciente e o familiar não possuam muitas opções cuidados que vão além do conhecimento
destes pacientes e quanto ao fato de a doença estar no próprio lar; científico.
acaba deixando de então, é compreensível que as respostas falem dessa
viver a própria vida dificuldade, que avassala a estrutura emocional O médico possui, desde os primórdios, o peso de
para viver a vida dos de todos aqueles diretamente envolvidos com a uma imagem de saber, poder e da capacidade de
enfermos.”; “Deve ser enfermidade. Eis alguns comentários mencionados tomar decisões fundamentais para o
difícil olhar para uma pelos pacientes: direcionamento do tratamento do paciente. Desse
pessoa que está se
modo, há uma responsabilidade enorme com a
acabando, que está “Tornou-se uma pessoa nervosa, ficou esquecida, atualização e as pesquisas que contribuam para o
indo.”; “Não interfere não lembra mais das coisas e chora a toda hora. O conhecimento científico. Apesar de ser uma área
porque não pega.”. médico falou que o tratamento é só para prolongar extensamente explorada, verifica-se que os
a vida. Então por que vou fazer tratamento se não comentários dos médicos mostram uma
vou usar a vida?!”; “Qualquer tipo de doença é interferência significativa dos aspectos que fazem
preocupante para a pessoa, mas o câncer está na um chamamento para a humanização, a
gravidade alta, é um sofrimento muito grande.”; valorização e a busca de uma filosofia de vida que
“Eles tem que deixar a vida deles toda para trás, a dignifique o seu fazer.
gente toma tudo deles”.
O sofrimento do paciente, por vezes, desperta o
Também existem respostas contraditórias, com
médico para a consciência do próprio sofrimento
negações parciais em relação aos sentimentos e à
que aí está ou que está por vir. Alguns comentários:
emoção que essa vivência causa; por exemplo: a
“Passa a enxergar seus problemas de forma mais
paciente responde que não existe interferência
amena. Mas, também tem que tomar cuidado
alguma, mas, no significado do câncer, havia dito
porque a tendência é criar uma barreira para não
que: “câncer é um trauma grande porque é uma
doença incurável”. Em relação aos comentários de sofrer tanto e pode se tornar frio. A morte deixa de
familiares: “O doente, o é por uma semana, depois ser tão grave. Para mim, a morte não é um fim, o
passa a ser um estorvo”. Vê o paciente como se espírito continua”.
fosse um parasita que suga a seiva de uma árvore
enraizada no compromisso de cuidar até o fim e No grupo de enfermeiros, verifica-se acentuada
que, por vezes, o término se arrasta como erva interferência nos comportamentos devido à
daninha. Outros comentários podem ser labilidade emocional, sentimentos de impotência,
conferidos: “É difícil, porque dia a dia vai indo.”; identificação com o doente e transposição do que
“Parece que parei de viver, mudou tudo. Vejo ele presencia para a possibilidade de acontecer
128 sofrendo, sofro junto. Quando ele está bem, tô bem, consigo ou com os seus. Contudo, também houve
se está mal, tô mal”. comentário com teor defensivo, como, por
O Câncer e Sua Representação Simbólica
exemplo; “Não me apego muito, fico abalada só no Atualmente, temos uma tecnologia avançada, com
momento. Morre, enterra! Sou totalmente fria em a ciência desenvolvendo hipóteses que dão
relação a tudo. Consigo fazer um corte drástico. Fico viabilidade a novos experimentos. Então,
me perguntando se isto é normal?!”. Pode-se afirmar deparamo-nos com o prolongamento da vida, mas,
que tal interpretação demonstra um desejo de em razão de dificuldades que, muitas vezes,
proteção em relação ao que vê, mas que não extrapolam a estrutura subjetiva de cada um, em
quer – ou não pode – enxergar. decorrência de crises que perpassam o aspecto
socioeconômico, e mesmo cultural, da população,
De todos os grupos, apenas neste houve a menção constata-se haver a tendência de encurtamento
de que sofrimentos e perdas fazem parte de um das condições de cidadania para uma vida digna
trabalho de vocação e de realização profissional, e qualitativa.
já que tais enfermeiros consideram seu trabalho
uma oportunidade de ajudar o próximo e fazer o Questões Acerca da Qualidade de
bem dentro do que seja possível. Algumas respostas Vida
para ilustração: “É positivo poder dar assistência
integral ao paciente”; “É uma satisfação trabalhar
Para verificar como o conceito de qualidade de
com eles, é uma maneira de ajudar o próximo, é um
vida tem sido considerado, os grupos avaliados
prazer lidar com eles”.
responderam às seguintes perguntas: “Para você: o
que é qualidade de vida?” e “Numa escala de zero
Tal disponibilidade talvez possa ser entendida pela a dez, quanto de qualidade de vida você tem hoje?”
base histórica da formação dessa profissão, Pergunta para o cuidador: “Se você tivesse algum
especificamente constituída num contexto sem tipo de câncer que necessitasse de pelo menos dois
qualificação; sim, pois os primórdios da profissão desses tratamentos: quimioterapia, radioterapia,
de enfermagem apontam as meretrizes como as transplante de medula óssea e/ou cirurgia, como
primeiras mulheres a desempenharem essa função. ficaria a sua qualidade de vida?”
Elas eram convocadas para cuidar de pacientes
marginalizados, de nível socioeconômico Foi feita a seguinte pergunta ao paciente: “Quanto
baixíssimo e com doenças como a lepra. Assim, as você tinha de qualidade de vida antes dos primeiros
primeiras pessoas a assumir esse papel, sinais do câncer?”
fundamental para a vida dos pacientes, tiveram a
possibilidade de ocupar outra posição perante a Observou-se, nas respostas encontradas, que a
sociedade e perante si mesmas. grande maioria concorda com a ocorrência de
uma redução significativa na qualidade de vida,
Desse modo, é possível inferir que esse fazer esteja quer seja na avaliação da realidade vivenciada pelo
de algum modo associado à imagem internalizada, paciente ou familiar, quer seja nos casos em que a
isto é, a uma atitude de reparação de uma ação análise corresponde ao imaginário do profissional
indesejável. Assim, o desejo ganha força na de saúde e daquele que não tem uma relação
realização de doação e cuidado, apesar da dor. direta com a realidade oncológica.
Conforme tal raciocínio, é compreensível a
satisfação derivada da assistência. Ao elaborarem o conceito de qualidade de vida,
incluem elementos com características positivas,
Segundo Nunes Silva (2000), antes de 1900, havia multidimensionais e que dependem do jeito de
uma escuta da história pessoal do paciente porque interpretar, isto é, um mesmo fenômeno pode ser
não se sabia o que fazer em relação ao bom ou ruim conforme a peculiaridade de quem
aparecimento do câncer; então, fazia-se o olhe. Os elementos mencionados foram: saúde,
atendimento sem saber como deveria ser feito, ou prazer, condições econômicas favoráveis, trabalho,
seja, ouvir o doente falar de si por meio de sua família, amigos, espiritualidade e condições
doença representava um horizonte de emocionais de bem-estar.
possibilidade de compreensão acerca da
enfermidade, e, por efeito, de encontro da Em todos os grupos, o item da saúde e da
respectiva cura. possibilidade de fazer o que gosta e com prazer
foram os mais mencionados. Eis um expressivo
No início do século XX, houve uma corrida comentário de um paciente: “Sabe que esta é uma
desenfreada em busca de novas drogas e pergunta muito complicada? Perguntei outro dia
tratamentos que se mostrassem mais eficientes e para um pastor: O que é ser feliz? Envolve muitas 129
promissores. coisas, como a qualidade de vida”.
Maribel Pelaez Dóro, Ricardo Pasquini,
Carlos R. Medeiros, Marco Antonio Bitencourt & Glaci L. Moura
Que Cor você Associa ao Câncer? quimioterapia.”; “Porque é forte e causa impacto,
como o câncer.”; AMARELO: “Lembra cor de
Em relação à perguntas: “Que cor você associa ao doente, febre e palidez.”; “Quando tiraram um
câncer? Por quê?”, as respostas mencionadas foram: pedaço do meu abdômen, falaram que parecia
um músculo amarelado.”; “Porque é uma cor bem
nojenta, um amarelo esverdeado com alguns
pontos brancos e cinza de fungos. Porque é isto
que me veio de imediato.”; VERDE: “Porque os
pacientes, com o tempo, vão ficando verdes.”;
“Verde de esperança tem que ter um pouco.”.
Por sua vez, Torres (1983) argumenta que a patologia Um estudo dessa natureza pode contribuir para que
social contemporânea decorre significativamente da se busquem formas de aprimorar o tratamento do
negação da morte na expectativa de vida diária. paciente com câncer. No entanto, para ajudar o
outro, é preciso, primeiramente, redimensionar a
Conforme Kübler-Ross (1996), no entanto, é própria formação imagética; afinal, nós também
fundamental compartilhar os sentimentos para não somos semeadores das imagens que se reproduzem
adoecer e morrer. O medo maior está na relação ao longo dos séculos, apesar de toda a evolução
com o morrer, pois engloba sentir dor e passar pelo científica.
processo de separação. Quando é possível falar
sobre a desesperança, o desamparo, o isolamento, É preciso preparar-se para a morte, pois essa
observa-se que o nível de angústia e ansiedade se
conscientização apura e melhora a qualidade de
reduz, podendo-se olhar sob uma nova perspectiva
vida. Além disso, o confronto com a finitude afeta o
para a própria morte.
homem individual e também socialmente.
É de grande valia, como atitude salutar, que nós,
Conclusão profissionais da área de saúde, estejamos cientes de
que também temos necessidades provenientes da
Pensar, sentir, fazer: caminhos de saúde ou nossa construção simbólica.
enfermidade
Necessitamos da perspicácia e da sensibilidade para
Se ignoramos nossas necessidades básicas, tornamo- apreender o conhecimento humano da finitude e,
nos partícipes da estruturação do adoecimento por para tal, é preciso olhar de frente para o que nos
meio da atividade mental, física e emocional. A cega e, por isso, nos seca.
sobrecarga de tensões, emoções e desagrados sobre 131
o indivíduo pode despertar-lhe a atenção somente Afinal, o que sabemos do amanhã?!
Maribel Pelaez Dóro, Ricardo Pasquini,
Carlos R. Medeiros, Marco Antonio Bitencourt & Glaci L. Moura
4 Cuidar dos pacientes com câncer interfere de que forma, na vida de quem cuida?
6 Numa escala de zero a dez, quanto de qualidade de vida você tem hoje?
7 Pergunta para o cuidador: Se você tivesse algum tipo de câncer que necessitasse de pelo menos dois
desses tratamentos: quimioterapia, radioterapia, transplante de medula óssea e/ou cirurgia, como ficaria a
sua qualidade de vida?
Pergunta para o paciente: Quanto você tinha de qualidade de vida antes dos primeiros sinais do
câncer?
132
O Câncer e Sua Representação Simbólica
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