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: SEIS

CONFERÊNCIAS DADAS EM BERKELEY,


ENTRE OUTUBRO E NOVEMBRO DE 1983,
SOBRE A

Introdução, tradução, revisão e organização:

Aldo Dinucci, Alfredo Julien, Rodrigo Brito e Valter Duarte.

PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960


DISCURSO E VERDADE: SEIS CONFERÊNCIAS DADAS POR
MICHEL FOUCAULT, EM BERKELEY, ENTRE OUTUBRO E
NOVEMBRO DE 1983, SOBRE A PARRHESIA

Introdução, tradução, revisão e organização:


Aldo Dinucci, Alfredo Julien, Rodrigo Brito e Valter Duarte.

APRESENTAÇÃO

O presente trabalho é a tradução, produzida pela equipe de tradutores da


Prometeus, de O Discurso e a Verdade: a problematização da parrhesia, seis
conferências de Michel Foucault proferidas em inglês na Universidade da
Califórnia, em Berkeley, entre outubro e novembro de 1983. A transcrição que nos
serviu de base para a tradução foi editada em inglês em 1985 por Joseph Pearson e
compilada a partir das gravações das conferências, disponíveis para download no sítio
do Media Resources Center da Moffitt Library (UC Berkeley)1. Essa transcrição foi
reeditada em 1999 por www.repb.net.
Tais conferências do último Foucault são de extrema importância tanto para os
estudiosos de filosofia clássica e helenística quanto para os estudiosos de Foucault e da
história das ideias. Nelas, o filósofo francês aprofunda sua discussão em torno da noção
helenística de cuidado de si, perfazendo a genealogia da noção grega de parrhesia
(franqueza ao falar), traçando seus desdobramentos a partir das tragédias gregas e da
filosofia socrática e platônica até as filosofias helenísticas e mostrando como, a partir de
seu uso político, chegou-se ao seu uso filosófico e terapêutico.

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Cf. http://www.lib.berkeley.edu/MRC/foucault/parrhesia.html
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
O texto também é um guia sobre a questão da parrhesia através dos textos
clássicos
lássicos e helenísticos, pois Foucault recorre, para fundamentar suas interpretações, aos
textos primários dos trágicos e filósofos da Antiguidade.
Esperamos então que essa tradução seja útil para a comunidade filosófica e para
os leitores em geral, vistoo que, como o próprio Foucault nos diz na 6ª. Conferência, o
mapeamento do desenvolvimento da noção grega de parrhesia se identifica com o
próprio estudo sobre as origens do pensamento crítico ocidental.
Agradecemos a Gary Handman, diretor do Media Resources
Resources Center da Moffitt
Library da Universidade Berkeley,
Berkeley por nos fornecer as gravações
ões originais das
conferências e nos conceder a permissão para traduzir e publicar tais conferências em
língua portuguesa.

Os editores da Prometeus

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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN:
ISSN: 2176-5960
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1ª. CONFERÊNCIA: O SIGNIFICADO DA PALAVRA PARRHESIA

A palavra parrhesia aparece pela primeira vez na literatura grega em Eurípedes


(ca. 484-407 a.C.) e ocorre através do antigo mundo grego das letras desde o fim do
século 5 a.C., mas pode ser encontrada ainda em textos patrísticos escritos no fim do
quarto e durante o século 5 d.C. dúzias de vezes – por exemplo, em João Crisóstomo
(345-407).
Há três formas da palavra: a forma nominal parrhesia; a forma verbal
parrhesiazomai; e há também a palavra parrhesiastes – que não é muito frequente e não
pode ser encontrada nos textos clássicos. Ao contrário, encontra-se apenas no período
greco-romano – em Plutarco e Luciano, por exemplo. Num diálogo de Luciano, “Os
Mortos vem à vida, ou O Pescador”, um dos personagens tem também o nome
Parrhesiades.
Parrhesia é comumente traduzido para o inglês como free speech, em francês
por franc-parler e em alemão por Freimüthigkeit. Parrhesiazomai é usar a parrhesia, e
o parrhesiastes é quem usa a parrhesia, i.e. é aquele que fala a verdade.
Na primeira parte do seminário de hoje eu gostaria de oferecer uma visão global
acerca do significado da palavra parrhesia e da evolução de seu significado através da
cultura grega e romana.

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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
1. Parrhesia e Franqueza

Para começar, qual é o significado geral da palavra parrhesia?


Etimologicamente, parrhesiazesthai significa dizer tudo – de pan (tudo) e rhema (o que
é dito). Aquele que usa a parrhesia, o parrhesiastes, é alguém que diz tudo o que tem em
mente: ele não esconde nada, mas abre seu coração e sua mente completamente para
outras pessoas através de seu discurso. Na parrhesia, presume-se que o falante dê um
relato completo e exato do que tem em mente, de modo que a audiência seja capaz de
compreender exatamente o que aquele que fala pensa. A palavra parrhesia então se
refere a um tipo de relação entre o falante e o que ele diz. Pois na parrhesia o falante
torna manifestamente claro e óbvio que o que ele diz é a sua própria opinião. E ele faz
isso evitando qualquer tipo de forma retórica que pudesse velar o que ele pensa. Ao
invés disso, o parrhesiastes usa as palavras e formas de expressão mais diretas que ele
puder encontrar. Enquanto a retórica mune o orador com dispositivos técnicos para
ajudá-lo a prevalecer sobre as mentes de sua audiência (independentemente da própria
opinião do retórico concernente ao que ele diz), na parrhesia, o parrhesiastes age sobre
a mente das outras pessoas mostrando a elas, tão diretamente quanto possível, o que ele
realmente acredita.
Se distinguirmos entre o assunto falado (o tema da enunciação) e o tema
gramatical do que é anunciado, podemos dizer que há também o tema do enunciandum
– que se refere à crença sustentada ou opinião do falante. Na parrhesia o falante
enfatiza o fato de que ele tanto é o tema da enunciação quanto do enunciandum – que
ele próprio é o tema da opinião à qual se refere. A “atividade de fala” específica da
enunciação parrhesiástica toma, assim, a forma: “Eu sou aquele que pensa isto ou
aquilo”.
Eu uso a frase “atividade de fala” (speech activity) ao invés do “ato de fala”
(speech act) de John Searle (ou do “proferimento performativo” – performative
utterance – de Austin) de modo a distinguir o proferimento parrhesiástico e seus
compromissos dos tipos usuais de compromissos obtidos entre alguém e o que ele ou
ela diz. Pois, como deveremos ver, o compromisso envolvido na parrhesia está ligado a
certa situação social, a uma diferença de status entre o falante e sua audiência, o fato de

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que o parrhesiastes diz algo que é perigoso para si mesmo e, assim, envolve um risco, e
assim por diante.

2. Parrhesia e Verdade

Há dois tipos de parrhesia que devemos distinguir. Primeiro, há o sentido


pejorativo da palavra não muito distante de “tagarelice” e que consiste em dizer
qualquer coisa ou tudo que se tem à mente sem distinção. Esse sentido pejorativo ocorre
em Platão, por exemplo, como uma caracterização da má constituição democrática onde
tudo mundo tem o direito de se dirigir aos seus concidadãos para lhes dizer qualquer
coisa – mesmo as mais estúpidas ou perigosas coisas para a cidade. Esse sentido
pejorativo é também achado mais frequentemente na literatura cristã, na qual tal
parrhesia “má” se opõe ao silêncio como uma disciplina ou uma condição exigida para
a contemplação de Deus. Como atividade verbal que reflete cada movimento do coração
e da mente, a parrhesia neste sentido negativo é obviamente um obstáculo para a
contemplação de Deus.
Na maior parte do tempo, entretanto, a parrhesia não tem esse sentido pejorativo
nos textos clássicos, mas antes o oposto. Parrhesiazesthai significa “dizer a verdade”.
Mas o parrhesiastes diz o que ele pensa ser a verdade, ou ele diz o que é realmente
verdadeiro? Para mim, o parrhesiastes diz o que é verdadeiro porque ele sabe o que é o
verdadeiro; e ele sabe que isso é verdadeiro porque é realmente verdadeiro. O
parrhesiastes não é apenas sincero e diz qual é a sua opinião, mas sua opinião é também
a verdade. Ele diz o que sabe ser verdadeiro. A segunda característica da parrhesia então
é que há sempre uma exata coincidência entre a crença e a verdade.
Seria interessante comparar a parrhesia grega coma moderna (cartesiana)
concepção de evidência. Pois, desde Descartes, a coincidência entre crença e verdade é
obtida através de uma experiência de evidência (mental). Para os gregos, entretanto, a
coincidência entre crença e verdade não ocorre numa experiência (mental), mas numa
atividade verbal, a saber, a parrhesia. Parece que a parrhesia, em seu sentido grego, não
pode mais ocorrer em nossa estrutura epistemológica moderna.
Devo acentuar que nunca encontrei qualquer texto na cultura grega no qual o
parrhesiastes parece ter qualquer dúvida sobre sua própria posse da verdade. E,
inclusive, esta é a diferença entre o problema cartesiano e a atitude parrhesiástica. Pois,
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antes de Descartes obter a indubitável evidência clara e distinta, ele não está certo de que
aquilo no que crê é, de fato, verdadeiro. Na concepção grega de parrhesia, entretanto,
não parece haver problema quanto à aquisição da verdade, já que tal posse da verdade é
garantida pela posse de certas qualidades morais: quando alguém tem certas qualidades
morais, então esta é a prova de que ele tem acesso à verdade – e vice-versa. O jogo
parrhesiástico pressupõe que o parrhesiastes seja alguém que tem as qualidades morais
que são exigidas, primeiro, para saber a verdade, e segundo, para transmitir tal verdade a
outros.
Se há um tipo de “prova” da sinceridade do parrhesiastes, ela é a sua coragem. O
fato de que um falante diz algo perigoso – diferente do que crê a maioria – é uma forte
indicação de que ele é um parrhesiastes. Se propusermos a questão de como podemos
saber se alguém é alguém que diz a verdade, propomos duas questões. Primeiro, como é
que podemos saber se algum indivíduo particular é alguém que diz a verdade; e, em
segundo lugar, como é que o suposto parrhesiastes pode estar certo de que aquilo no que
ele crê é, de fato, verdade. A primeira questão – reconhecer alguém como um
parrhesiastes – era muito importante na sociedade greco-romana e, como iremos ver, foi
explicitamente levantada e discutida por Plutarco, Galeno e outros. A segunda questão
cética, entretanto, é uma particularmente moderna que, creio eu, é estranha aos gregos.

3. Parrhesia e Perigo

Diz-se que alguém usa a parrhesia e merece ser considerado como um


parrhesiastes apenas se há para ele, ou ela, um risco ou um perigo em dizer a verdade.
Por exemplo, a partir da perspectiva grega antiga, um professor de gramática pode dizer
a verdade para as crianças que ele ensina, e inclusive pode não ter dúvidas de o que ele
ensina é verdadeiro. Mas, apesar dessa coincidência entre crença e verdade, ele não é
um parrhesiastes. Entretanto, quando um filósofo se dirige ao soberano, a um tirano, e
lhe diz que sua tirania é perturbadora e desagradável porque a tirania é incompatível
com a justiça, então o filósofo diz a verdade, crê que está dizendo a verdade e, mais que
isso, também se arrisca (já que o tirano pode se enfurecer, pode puni-lo, pode exilá-lo,
pode matá-lo). E essa era exatamente a situação de Platão com Dioniso em Siracusa –
sobre a qual há muito interessantes referências na Sétima Carta, de Platão, e também na
Vida de Díon, de Plutarco. Espero que estudemos esses textos mais tarde.
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Portanto, como veem, o parrhesiastes é alguém que assume um risco. É claro,
esse risco não é sempre um risco de vida. Quando, por exemplo, alguém vê um amigo
fazendo algo errado e se arrisca a incorrer em sua ira dizendo que ele está errado, esse
alguém está agindo como um parrhesiastes. Em tal caso, ele não arrisca a sua vida, mas
pode ferir <seu amigo> com suas observações, e sua amizade pode consequentemente
sofrer por isso. Se, num debate político, um orador se arrisca a perder sua popularidade
porque suas opiniões são contrárias à opinião da maioria, ou suas opiniões podem
conduzir a um escândalo político, ele usa a parrhesia. A parrhesia então está ligada à
coragem em face do perigo: exige-se coragem para falar a verdade apesar de algum
perigo. E, em sua forma extrema, dizer a verdade ocorre num “jogo” de vida ou morte.
É porque o parrhesiastes deve assumir um risco falando a verdade que o rei ou o
tirano em geral não pode usar a parrhesia: pois este não arrisca nada.
Quando se aceita o jogo parrhesiástico no qual a própria vida está exposta, se
está começando uma relação específica consigo mesmo: arrisca-se a morrer ao dizer a
verdade ao invés de repousar na segurança de uma vida na qual a verdade permanece
não dita. É claro, a ameaça de morte vem do Outro, e por isso se exige uma relação
consigo mesmo: ele prefere a si mesmo enquanto alguém que diz a verdade ao invés de
viver sendo alguém que é falso para consigo mesmo.

4. Parrhesia e Criticismo

Se, durante um julgamento, alguém diz algo que pode ser usado contra si mesmo,
pode não estar usando a parrhesia apesar do fato de que é sincero, de que crê que o que
diz é verdade, e que está pondo em risco a si próprio assim falando. Pois, na parrhesia, o
perigo vem sempre do fato de que a verdade dita é capaz de ferir ou enfurecer o
interlocutor. Assim, a parrhesia é sempre um “jogo” entre aquele que fala a verdade e o
interlocutor. A parrhesia envolvida, por exemplo, pode ser um conselho para que o
interlocutor se comporte de certa maneira ou que ele está errado no que pensa, ou no
modo que ele age, e assim por diante. Ou a parrhesia pode ser uma confissão para
alguém que exerce poder sobre ele e é capaz de censurá-lo ou puni-lo pelo que fez.
Como veem, a função da parrhesia não é demonstrar a verdade a outrem, mas
tem função crítica: crítica do interlocutor ou do próprio falante. “Isso é o que você faz e o
que você pensa; mas isso é o que você não deveria fazer e não deveria pensar”. “Esse é o
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modo que se comporta, mas aquele é o modo pelo qual você deveria se comportar”. “Isso
é o que fiz e eu estava errado fazendo tal coisa”. Parrhesia é uma forma de criticismo,
seja em relação a outro ou em relação a si mesmo, mas sempre numa situação onde o
falante ou confessor está numa posição de inferioridade com relação ao interlocutor. O
parrhesiastes é sempre menos poderoso que aquele com quem ele ou ela fala. A
parrhesia vem “de baixo”, por assim dizer, e é direcionada para “cima”. Eis a razão pela
qual um grego antigo não diria que um professor ou pai que critica uma criança usa a
parrhesia. Mas, quando um filósofo critica um tirano, quando um cidadão critica a
maioria, quando um aluno critica seu professor ou sua professora, então tais pessoas que
falam podem estar usando a parrhesia.
Isso não implica, entretanto, que qualquer um pode usar a parrhesia. Pois,
embora haja um texto em Eurípides onde um servo usa a parrhesia, na maior parte do
tempo o uso da parrhesia exige que o parrhesiastes conheça sua própria genealogia, seu
próprio status; i.e. usualmente se deve primeiro ser um cidadão do sexo masculino para
falar a verdade como um parrhesiastes. Inclusive, alguém que esteja privado da
parrhesia está na mesma situação de um escravo na medida em que ele ou ela não pode
tomar parte na vida política da cidade, nem participar do “jogo parrhesiástico”. Na
“parrhesia democrática” – na qual se fala à assembleia, a ekklesia – deve-se ser um
cidadão; de fato, deve-se ser um dos melhores entre os cidadãos, possuindo aquelas
qualidades pessoais, morais e sociais específicas que garantem o privilégio de falar.
Entretanto, o parrhesiastes põe em risco seu privilégio de falar livremente
quando descortina uma verdade que ameaça a maioria. Pois esta era uma situação
judicial bem conhecida, em que líderes atenienses eram exilados apenas porque
propunham algo que era oposto à maioria, ou mesmo porque a assembleia pensava que a
forte influência de certos líderes limitava a própria liberdade. A assembleia era, dessa
maneira, “protegida” contra a verdade. Esse, então, é o pano de fundo institucional da
“parrhesia democrática" – que deve ser distinguida da “parrhesia monárquica”, em que
um conselheiro dá ao soberano um conselho honesto e útil.

5. Parrhesia e Dever

A última característica da parrhesia é esta: na parrhesia, dizer a verdade é


considerado um dever. O orador que fala a verdade para aqueles que não podem aceitar
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essa verdade, por exemplo, e que pode ser exilado, ou punido de alguma forma, é livre
para manter o silêncio. Ninguém o força a falar; mas ele sente que é seu dever fazer tal.
Quando, por outro lado, alguém é compelido a dizer a verdade (como, por exemplo, sob
a coerção de tortura), então seu discurso não é um proferimento parrhesiástico. Um
criminoso que é forçado por seus juízes a confessar seu crime não usa a parrhesia. Mas
se voluntariamente confessa seu crime a alguém sem o sentido de obrigação moral, então
ele realiza um ato parrhesiástico para criticar um amigo que não reconhece seu erro, ou
na medida em que é um dever para com a cidade ajudar um rei a melhorar a si mesmo
como um soberano. A parrhesia é assim relacionada à liberdade e ao dever.
Para resumir o que foi dito anteriormente, a parrhesia é um tipo de atividade
verbal em que o falante tem uma relação específica com a verdade através da franqueza,
uma certa relação com a sua própria vida através do perigo, um certo tipo de relação para
consigo mesmo através do criticismo (autocrítica ou crítica às outras pessoas) e uma
relação específica para com a lei moral através da liberdade e do dever. Mais
precisamente, a parrhesia é uma atividade verbal na qual um falante expressa sua relação
pessoal com a verdade e arrisca sua vida porque reconhece o ato de dizer a verdade como
um dever para melhorar ou ajudar outras pessoas (assim como a si mesmo). Na
parrhesia, o falante usa sua liberdade e escolhe a franqueza ao invés da persuasão, a
verdade ao invés da falsidade ou do silêncio, o risco de morte ao invés da vida e da
segurança, o criticismo ao invés da bajulação, e o dever moral ao invés do interesse
próprio e da apatia moral.
Esse, então, muito geralmente, é o sentido positivo da palavra parrhesia na
maioria dos textos gregos em que ela ocorre, do século 5 a.C. até o século 5 d.C.

A EVOLUÇÃO DA PALAVRA PARRHESIA

O que eu gostaria de fazer neste seminário não é estudar e analisar todas as


dimensões e características da parrhesia, mas antes mostrar e enfatizar alguns aspectos
da evolução do jogo parrhesiástico na cultura antiga, desde o século 5 a.C. até o começo
da cristandade. E penso que podemos analisar esta evolução a partir de três pontos de
vista.

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1. Parrhesia e Retórica

O primeiro concerne à relação da parrhesia com a retórica – uma relação que é


problemática mesmo em Eurípides. Na tradição socrático-platônica, a parrhesia e a
retórica estão em forte oposição; e esta oposição aparece muito claramente no Górgias,
por exemplo, onde a palavra parrhesia ocorre. O discurso longo e contínuo é um artifício
retórico ou sofístico, enquanto o diálogo por meio de questões e respostas é típico da
parrhesia; i.e. o diálogo é uma técnica maior para se jogar o jogo parrhesiástico.
A oposição entre parrhesia e retórica também atravessa o Fedro – no qual, como
vocês sabem, o problema principal não é sobre a natureza da oposição entre fala e
escrita, mas concerne à diferença entre o logos que fala a verdade e o logos que não é
capaz de tal dizer da verdade. Essa oposição entre parrhesia e retórica, que é tão nítida
no século 4 a.C. através dos escritos de Platão, irá durar por séculos na tradição
filosófica. Em Sêneca, por exemplo, encontra-se a ideia de que as conversas pessoais são
o melhor veículo para o falar franco e o dizer da verdade, na medida em que se pode
dispensar, em tais conversas, a necessidade de artifícios retóricos e ornamentação. E
mesmo durante o século 2 d.C. a oposição cultural entre retórica e filosofia é ainda muito
clara e importante.
Entretanto, se pode encontrar também alguns sinais da incorporação da parrhesia
ao campo da retórica na obra de retóricos do começo do Império. Por exemplo, em sua
Institutio Oratoria (Livro IX, Capítulo II), Quintiliano explica que algumas figuras
retóricas são especificamente adaptadas para intensificar as emoções da audiência; e tais
figuras técnicas ele chama pelo termo exclamatio. Relacionada a essas exclamações há
um tipo de exclamação natural que, nota Quintiliano, não é “simulada ou projetada pela
arte”. Esse tipo natural de exclamação ele chama de “fala livre” (libera oratione) que,
nos diz ele, era chamada “licença” (licentia) por Cornificius e parrhesia pelos gregos. A
parrhesia é assim um tipo de “figura” entre as figures retóricas, mas com esta
característica: que é sem qualquer figura, já que é completamente natural. A parrhesia é
o grau zero daquelas figuras retóricas que intensificam as emoções da audiência.

2. Parrhesia e Política

O segundo aspecto importante da evolução da parrhesia está relacionado ao


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campo político. Como aparece em peças de Eurípides e também em textos do século 4
a.C., a parrhesia é uma característica essencial da democracia ateniense. É claro, ainda
temos de investigar o papel da parrhesia na constituição ateniense. Mas podemos dizer
em termos bem gerais que a parrhesia era a diretriz para a democracia, assim como uma
atitude ética e pessoal característica do bom cidadão. A democracia ateniense era
definida muito explicitamente como uma constituição (politeia) na qual as pessoas
desfrutavam demokratia, isegoria (o igual direito de fala), isonomia (a igual participação
de todos os cidadãos no exercício do poder) e parrhesia. A parrhesia, que é um requisito
para a fala pública, toma lugar entre os cidadãos como indivíduos e também entre
cidadãos constituídos como uma assembleia. Além disso, a ágora é o lugar onde a
parrhesia aparece.
Durante o período helenístico esse sentido político muda com o surgimento das
monarquias helênicas. A parrhesia agora se torna centrada na relação entre o soberano e
seus conselheiros ou homens da corte. Na constituição monárquica do estado, é dever do
conselheiro usar a parrhesia para ajudar o rei em suas decisões, e preveni-lo quanto ao
abuso de poder. A parrhesia é necessária e útil tanto para o rei e o povo sob seu mando.
O próprio soberano não é um parrhesiastes, mas a pedra de toque do bom governante é
sua habilidade para tomar parte do jogo parrhesiástico. Assim, um bom rei aceita tudo o
que um genuíno parrhesiastes lhe diz, mesmo se se tornar desagradável ouvir críticas
sobre suas decisões. Um soberano se mostra um tirano se ele desconsidera seus
conselheiros honestos ou os pune pelo que disseram. O retrato de um soberano, para a
maioria dos historiadores gregos, leva em consideração o modo que ele se comporta em
relação aos seus conselheiros – como se tal comportamento fosse o indício de sua
habilidade de ouvir o parrhesiastes.
Há também uma terceira categoria de jogadores do jogo parrhesiástico da
monarquia, a saber, a maioria silenciosa: as pessoas em geral que não estão presentes às
trocas de ideias entre o rei e seus conselheiros, mas para quem, e a favor de quem, os
conselheiros se referem quando oferecendo conselho ao rei.
O lugar onde a parrhesia aparece no contexto do governo monárquico é a corte
do rei, e não mais a ágora.

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3. Parrhesia e Filosofia

Finalmente, a evolução da parrhesia pode ser traçada através de sua relação com
o campo da filosofia – considerada como uma arte de vida (techne tou biou).
Nos escritos de Platão, Sócrates aparece no papel de parrhesiastes. Embora a
palavra parrhesia apareça diversas vezes em Platão, ele nunca usa a palavra
parrhesiastes – uma palavra que aparece tardiamente como parte do vocabulário grego.
E embora o papel de Sócrates seja tipicamente parrhesiástico, pois ele constantemente
confronta os atenienses nas ruas e, como observado na Apologia, mostra-lhes a verdade,
ordenando- os a preocupar-se com a sabedoria, a verdade e a perfeição de suas almas. No
Primeiro Alcibíades, Sócrates também assume um papel parrhesiástico, pois, enquanto
os todos os amigos e amantes de Alcibíades o adulam em sua tentativa de obter seus
favores, Sócrates arrisca-se a provocar a ira de Alcibíades quando lhe conduz a esta
ideia: que antes que Alcibíades seja capaz de realizar o que ele está tão empenhado em
atingir, a saber, tornar-se o primeiro entre os atenienses a governar Atenas e se tornar
mais poderoso que o rei da Pérsia, que antes que seja capaz de cuidar dos atenienses, ele
deve primeiro cuidar de si mesmo. A parrhesia filosófica é assim associada ao tema do
cuidado de si (epimeleia heautou).
No tempo dos epicuristas, a afinidade da parrhesia com o cuidado de si se
desenvolveu ao ponto da própria parrhesia ser considerada como uma techne de
guiamento espiritual para a “educação da alma”. Philodemo (110-140 a.C.), por
exemplo, que, junto com Lucrécio (99-55 BC), foi um dos mais importantes escritores
epicuristas durante o século 1 d.C., escreveu um livro sobre a parrhesia que concerne às
técnicas práticas úteis para ensinar e ajudar aos outros na comunidade epicurista.
Examinaremos algumas dessas técnicas parrhesiásticas tal como eles as desenvolveram,
por exemplo, nas filosofias estoicas de Epicteto, Sêneca e outros.

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2ª. CONFERÊNCIA: PARRHESIA NAS TRAGÉDIAS DE
EURÍPIDES

Hoje eu gostaria de começar analisando as primeiras ocorrências da palavra


parrhesia na literatura grega, como a palavra aparece nas seguintes seis tragédias de
Eurípides:
(1) Fenícias; (2) Hipólito; (3) As Bacantes; (4) Electra; (5) Íon; (6) Orestes.
Nas primeiras quatro peças, a parrhesia não constitui um tópico importante ou
tema; mas a própria palavra geralmente ocorre num contexto preciso que nos ajuda no
entendimento de seu significado. Nas últimas duas peças – Íon e Orestes – a parrhesia
assume um papel muito importante. De fato, eu penso que Íon é inteiramente consagrado
ao problema da parrhesia, uma vez que investiga a questão: Quem tem o direito, o dever
e a coragem de falar a verdade? Esse problema parrhesiástico em Íon é levantado na
estrutura das relações entre os deuses e os seres humanos. Em Orestes – que foi escrito
dez anos mais tarde e, por essa razão, é uma das últimas peças de Eurípides – o papel da
parrhesia não é nem de longe tão significativo. E ainda assim a peça contém uma cena
parrhesiástica que garante a atenção na medida em que é diretamente relacionada a
questões políticas que os atenienses estavam então levantando. Aqui, nessa cena
parrhesiástica, há uma transição concernente à questão da parrhesia tal como ela ocorre
no contexto das instituições humanas. Especificamente, a parrhesia é vista como uma
questão tanto política quanto filosófica.
Hoje então tentarei primeiro dizer algo sobre as ocorrências da palavra parrhesia
nas primeiras quatro peças mencionadas de modo a lançar alguma luz a mais sobre o
significado da palavra. E depois tentarei realizar uma análise global de Íon como uma
peça parrhesiástica decisiva na qual vemos seres humanos tomando sob sua
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responsabilidade o papel daqueles que dizem a verdade – um papel que os deuses não
são mais capazes de assumir.

1. As Fenícias (ca. 411-409 BC)2

Considerem, em primeiro lugar, As Fenícias. O tema principal desta peça


concerne à luta entre os dois filhos de Édipo: Etéocles e Polinices. Relembrem que,
depois da queda de Édipo, de modo a evitar a maldição do pai de que eles deveriam
dividir sua herança “pelo aço afiado”, Etéocles e Polinices fizeram um pacto para
governar Tebas alternadamente, de ano a ano, com Etéocles (que era o mais velho)
reinando primeiro. Mas após seu ano de reinado inicial, Etéocles se recusou a ceder a
coroa e conceder o poder a seu irmão, Polinices. Etéocles assim representa a tirania, e
Polinices – que vive no exílio – representa o regime democrático. Buscando sua parte da
coroa do pai, Polinices retorna com um exército de argivos de modo a derrubar Etéocles
e lançar cerco à cidade de Tebas. É na esperança de evitar esse confronto que Jocasta – a
mãe de Polinices e Etéocles, e mulher e mãe de Édipo — persuade seus dois filhos a se
encontrarem para uma trégua. Quando Polinices chega para o encontro, Jocasta lhe
pergunta sobre seu sofrimento durante o tempo em que ele esteve exilado de Tebas. “É
realmente duro ser exilado?” pergunta Jocasta. E Polinices responde: "Pior do que tudo".
E quando Jocasta pergunta por que o exílio é tão duro, Polinices responde que é porque
não se pode desfrutar a parrhesia:

JOCASTA: Isso acima de tudo eu anseio saber: como é a vida no exílio? Ela é
muito miserável?
POLINICES: Muitíssimo, pior na realidade do que no relato.
JOCASTA: Pior de que modo? O que principalmente aflige o coração no
exílio?
POLINICES: O pior é isso: o direito de falar livremente não existe.
JOCASTA: Isso é uma vida de escravo, ser proibido de falar o que se tem no
espírito.

2
Utilizamos aqui a tradução de J. B. de Melo e Souza de As Fenícias (Clássicos
Jackson , volume xxii. São Paulo: Jackson, 1964. Quando não indicado, as traduções
dos textos clássicos serão feitas a partir da transcrição em inglês.
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
POLINICES: Tem-se que suportar a idiotice dos que governam.
JOCASTA: Participar tolamente em loucuras! Isso faz um doente.
POLINICES: Os que se deparam com isso pagam negando a natureza e sendo
escravos.

Como se pode ver por essas poucas linhas, a parrhesia está ligada, em primeiro
lugar, ao status social de Polinices. Pois se alguém não é um cidadão regular na cidade,
se é um exilado, então não se pode usar a parrhesia. Isso é bastante óbvio. Mas algo
mais está implícito, a saber, se alguém não tem o direito de falar livremente, é incapaz de
exercer qualquer tipo de poder e, assim, está na mesma situação que um escravo. E mais:
se tais cidadãos não podem usar a parrhesia, não podem se opor ao poder do governante.
E sem o direito ao criticismo, o poder exercido por um soberano não tem limitação. Tal
poder sem limitação é caracterizado por Jocasta como “juntando-se aos tolos em sua
tolice”. Pois o poder sem limitação está diretamente relacionado à loucura. O homem que
exerce o poder é sábio apenas na medida em que há alguém que pode usar a parrhesia
para criticá-lo e, por isso, põe alguma limitação ao seu poder, ao seu comando.

2. Hipólito (428 a.C.)3

A segunda passagem de Eurípedes que quero citar vem de Hipólito. Como vocês
sabem, a peça é sobre o amor de Fedra por Hipólito. E a passagem que concerne à
parrhesia ocorre logo depois da confissão de Fedra: quando Fedra, no começo da peça,
confessa seu amor por Hipólito à sua ama (sem, entretanto, realmente dizer sue nome).
Mas a palavra parrhesia não concerne a essa confissão, mas se refere a algo bastante
diferente. Pois, logo depois de sua confissão de amor por Hipólito, Fedra fala daquelas
mulheres nobres e de alta estirpe das casas reais que em primeiro lugar trouxeram
vergonha sobre sua própria família, sobre seu marido e seus filhos, cometendo adultério
com outros homens. E Fedra diz que ela não quer fazer o mesmo, já que ela quer que
seus filhos vivam em Atenas, orgulhosos de sua mãe, e exercendo a parrhesia. E ela
afirma que, se um homem está consciente de uma mácula em sua família, ele se torna um
escravo:

3
Utilizamos aqui a tradução de J. B. de Melo e Souza de Hipólito (Clássicos
Jackson , volume xxii. São Paulo: Jackson, 1964.
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
FEDRA: Eu nunca serei conhecida por trazer a desonra para meu marido e
filhos. Eu quero que meus dois filhos voltem e vivam na gloriosa Atenas,
expressando lá seus pensamentos como homens livres, honrados pelo nome de
sua mãe. Uma coisa pode fazer do homem de espírito mais arrojado um
escravo: conhecer o secreto ato vergonhoso de seus pais.

Nesse texto vemos mais uma vez uma conexão entre a falta da parrhesia e a
escravidão. Pois se alguém não pode falar livremente porque está em desonra por causa
de sua família, então está escravizado. Também a cidadania por si própria não parece ser
suficiente para obter e garantir o exercício da livre expressão. A honra, uma boa
reputação para si próprio e para a família são também necessárias antes que alguém
possa se dirigir livremente às pessoas da cidade. Assim, a parrhesia requer qualificações
morais e sociais que advêm de um nascimento nobre e de uma reputação respeitada.

3. As Bacantes (c.407-406 a.C.)4

Nas Bacantes há uma passagem muito curta, um momento de transição no qual a


palavra aparece. Um dos servos de Penteu – um pastor e mensageiro do rei — veio
informar sobre a confusão e a desordem que as Ménades estão gerando na comunidade e
os fantásticos feitos que elas estão realizando. Mas, como vocês sabem, é uma antiga
tradição que mensageiros sejam recompensados pelas boas notícias que transmitem,
enquanto os que trazem más notícias estão expostos a punição. E assim o servo do rei
está muito relutante para entregar sua má notícia a Penteu. Mas ele pergunta ao rei se ele
pode usar a parrhesia e lhe dizer tudo o que sabe, pois teme a ira do rei. E Penteu
promete que ele não irá se meter em problemas na medida em que disser a verdade.

PASTOR: Eu vi as sagradas bacantes que, semelhantes ao voo de lanças, saíram


correndo, desnudas, frenéticas para fora dos portões da cidade. Eu vim com a
intenção de contar-te, meu senhor, e para a cidade, seus estranhos e terríveis
feitos – coisas além da imaginação. Porém, primeiro, queria me informar se

4
Utilizamos aqui a tradução de J. B. me Melo e Souza de As Bacantes
(Clássicos Jackson , volume xxii. São Paulo: Jackson, 1964.
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
posso falar livremente do que está acontecendo lá, ou se censurarás minhas
palavras. Eu temo tua pressa, meu senhor, tua raiva e tua potente realeza.
PENTEU: De mim, nada temas. Diz tudo o que tens para dizer, a raiva não deve
brotar quente contra o inocente. Por mais terrível que seja tua história desses
ritos báquicos, as mais pesadas punições eu infligirei sobre esses homens que
incitam nossas mulheres para seus maus modos.

Essas linhas são interessantes porque mostram um caso onde o parrhesiastes,


aquele que “fala a verdade”, não é um homem completamente livre, mas um servo do rei
– alguém que não pode usar a parrhesia se o rei não for sábio o bastante para entrar no
jogo parrhesiástico e lhe conceder permissão para falar abertamente. Pois se ao rei faltar
autocontrole, se ele for levado por suas paixões e se enfurecer com o mensageiro, então
ele não ouve a verdade e será também um mau governante para a cidade. Mas Penteu,
como um rei sábio, oferece ao seu servo o que podemos chamar de “contrato
parrhesiástico".
O “contrato parrhesiástico" – que se tornou relativamente importante na vida
política dos governantes do mundo greco-romano – consiste no seguinte. O soberano,
aquele que tem o poder, mas carece da verdade, dirige-se àquele que tem a verdade, mas
carece do poder, e lhe diz: se você me disser a verdade, não me importa o que essa
verdade venha a ser, você não será punido; e aqueles que são responsáveis por quaisquer
injustiças serão punidos, mas não aqueles que falam a verdade sobre tais injustiças. A
ideia do “contrato parrhesiástico" tornou-se associada com a parrhesia como um
privilégio especial concedido ao melhores e mais honestos cidadãos da cidade. É claro, o
contrato parrhesiástico entre Penteu e seu mensageiro é apenas uma obrigação moral, já
que não dispõe de qualquer fundamento institucional. Como servo de um rei, o
mensageiro é ainda bastante vulnerável, e ainda se arrisca ao falar. Mas, embora ele seja
corajoso, ele também não é descuidado e é cauteloso sobre as consequências do que ele
pode dizer. O “contrato” tem como intenção limitar o risco que ele tem em falar.

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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
4. Electra (415 a.C.)5

Em Electra a palavra parrhesia ocorre no confronto entre Electra e sua mãe,


Clitemnestra. Não preciso lembrá-los dessa famosa história, mas apenas indicar o que
antecede o momento na peça em que a palavra aparece. Orestes acabara de matar o tirano
Egisto – amante de Clitemnestra e cúmplice do assassinato (com Clitemnestra) de
Agamêmnon (marido de Clitemnestra e pai de Orestes e Electra). Mas, imediatamente
antes de Clitemnestra aparecer em cena, Orestes esconde-se e o corpo de Egisto. Assim,
quando Clitemnestra faz sua entrada, ela não tem ciência do que acabara de transcorrer,
i.e. ela não sabe que Egisto acabara de ser morto. E sua entrada é muito bonita e solene,
pois ela está conduzindo uma carruagem real rodeada pelas mais belas das donzelas
cativas de Tróia – todas as quais são agora suas escravas. E Electra, que lá está quando
sua mãe chega, também se comporta como uma escrava, de modo a esconder o fato de
que o momento de vingança pela morte de seu pai é iminente. Ela também está lá para
insultar Clitemnestra e para lembrá-la de seu crime. Essa cena dramática abre caminho
para uma confrontação entre as duas. Uma discussão começa, e temos dois discursos
paralelos, ambos igualmente longos (quarenta linhas), o primeiro de Clitemnestra e o
segundo de Electra.
O discurso de Clitemnestra começa com as palavras “eu falarei” (I.1013). E ela
procede dizendo a verdade, confessando que matou Agamêmnon como uma punição pela
morte por sacrifício de sua filha, Ifigênia. Seguindo esse discurso, Electra replica,
começando com a formulação simétrica “então eu falarei” [I. 1060]. A despeito dessa
simetria, entretanto, há uma clara diferença entre as duas. Pois, no fim de sua fala,
Clitemnestra se dirige diretamente a Electra e a diz, “use tua parrhesia para provar que
eu estava errada ao matar o teu pai”:

CLITEMNESTRA: [...] Eu o matei. Tomei o único caminho aberto para mim,


pedindo ajuda aos seus inimigos. Bem, o que eu poderia fazer? Nenhum dos
amigos de teu pai me ajudaria a matá-lo. Então se estás ansiosa para me refutar,
faz isso agora; fala livremente, prova que a morte de seu pai não foi justificada.

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Utilizamos aqui a tradução de J. B. de Melo e Souza de Electra (Clássicos
Jackson , volume xxii. São Paulo: Jackson, 1964.
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
E depois do coro falar, Electra replica: ”Não te esqueças de tuas últimas palavras,
mãe. Tu concedeste-me a parrhesia em relação a ti”:

ELECTRA: Mãe, relembra o que dissestes agora a pouco. Prometestes que eu


poderia colocar minha opinião livremente, sem medo.

E Clitemnestra responde: “Eu disse sim filha, e eu quis dizer isso” (I.1057).
Porém, Electra ainda está cautelosa e cuidadosa, pois pensa se sua mãe a ouvirá
apenas para depois feri-la:

ELECTRA: Dizes que irá primeiro ouvir e depois voltar às próprias palavras?
CLITEMNESTRA: Não, não; estás livre para dizer o que seu coração quer
dizer.
ELECTRA: Eu direi isso então. Isso é o que eu iniciarei [...]

E Electra procede a falar abertamente, culpando sua mãe pelo que ela havia feito.
Há outro aspecto assimétrico entre esses dois discursos que concerne à diferença
de status das que falam. Pois Clitemnestra é a rainha e não usa nem requer parrhesia
para advogar sua própria defesa por matar Agamêmnon. Mas Electra – que está na
situação de um escravo, que cumpre o papel de um escravo na cena, que não pode mais
viver na casa de seu pai sob a proteção de seu pai e que se dirige à sua mãe como um
servo se dirigiria à sua rainha – Electra precisa do direito à parrhesia.
E assim outro contrato parrhesiástico é feito entre Clitemnestra e Electra:
Clitemnestra promete que não irá punir Electra por sua franqueza, assim como Penteu
prometeu ao seu mensageiro nas Bancantes. Mas, em Electra, o contrato parrhesiástico é
subvertido. Não é subvertido por Clitemnestra (que, como rainha, ainda tem o poder de
punir Electra): é subvertido pela própria Electra. Electra pede à sua mãe que prometa que
não será punida por falar francamente, e Clitemnestra faz tal promessa – sem saber que
ela, a própria Clitemnestra, será punida por sua confissão. Pois, alguns poucos minutos
depois, ela é subsequentemente morta por seus filhos, Orestes e Electra. Assim, o
contrato parrhesiástico é subvertido: aquele a quem foi concedido o privilégio da
parrhesia não é prejudicado, mas aquele que concedeu o direito da parrhesia o é – e pela
própria pessoa que, em posição inferior, estava pedindo por parrhesia. O contrato
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
parrhesiástico se torna uma armadilha subversiva para Clitemnestra.

5. Íon (ca. 418-417)6

Voltemo-nos agora para Íon, uma peça parrhesiástica.


A estrutura mitológica da peça envolve a legendária fundação de Atenas. De
acordo com o mito ático, Erecteu foi o primeiro rei de Atenas – nascido um filho da
Terra e retornando à Terra na morte. Erecteu assim personifica aquilo pelo que os
atenienses eram tão orgulhosos, a saber, sua autoctonia: que eles literalmente emergiram
do solo ateniense. Em 418 a.C., na época em que essa peça foi escrita, tal referência
mitológica tinha sentido político. Pois Eurípides queria lembrar sua audiência de que os
atenienses eram nativos do solo ateniense. Mas, através do caráter de Xuto (marido da
filha de Erecteu, Creúsa, e um estrangeiro em Atenas, já que provinha de Fítia),
Eurípides também queria indicar à sua audiência que os atenienses estavam relacionados,
por meio desse casamento, aos povos do Peloponeso e especialmente a Acaia – nomeada
a partir de um dos filhos de Xuto e Creúsa: Aqueu. Pois a explicação de Eurípides para
natureza pan-helênica da genealogia ateniense faz de Íon filho de Apolo e Creúsa (filha
do antigo rei de Atenas, Erecteu). Creúsa casa-se mais tarde com Xuto (que era um
aliado dos atenienses em sua guerra contra os Eubeus). Dois filhos nasceram desse
casamento: Dorus e Aqueu. Íon era considerado o fundador do povo jônico; Dorus, o
fundador dos dóricos; e Aqueu, o fundador dos aqueus. Assim, todos os ancestrais da
raça grega eram representados como descendendo da casa real de Atenas.
A referência de Eurípides à relação de Creúsa com Apolo, assim como sua
colocação do cenário da peça no Templo de Apolo em Delfos, pretendia exibir a íntima
relação entre os atenienses e Febo Apolo: o deus pan-helênico do santuário de Delfos.
Pois, no momento histórico da produção da peça na Grécia antiga, os atenienses estavam
tentando forjar uma coalisão pan-helênica contra Esparta. Existiu rivalidade entre Atenas
e Delfos, uma vez que os sacerdotes délficos estavam inicialmente do lado dos
espartanos. Mas, para colocar Atenas na favorável posição de líder do mundo helênico,
Eurípides quis enfatizar as relações de mútuo parentesco entre as duas cidades. Essas

6
Cf. EURÍPEDES. Íon. . Disponível em:
<http://pensamentosnomadas.files.wordpress.com/2012/03/12-c3adon.pdf>, acesso em
07/mar/2013.
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
genealogias mitológicas pretendiam, em parte, justificar a política imperialista de Atenas
em relação a outras cidades gregas numa época em que os líderes atenienses ainda
pensavam que um império ateniense era possível.
Não focarei os aspectos políticos e mitológicos da peça, mas o tema da mudança
de lugar da revelação da verdade de Delfos para Atenas. Como vocês sabem, o oráculo
de Delfos era suposto como sendo o lugar na Grécia onde aos seres humanos era dita a
verdade pelos deuses através dos proferimentos da Pítia. Mas nessa peça vemos uma
mudança muito explícita da verdade oracular de Delfos para Atenas: Atenas se torna o
Lugar onde a verdade agora aparece. E, como uma parte da mudança, a verdade não mais
é revelada pelos deuses aos seres humanos (como em Delfos), mas é revelada aos seres
humanos por seres humanos através da parrhesia ateniense.
Íon de Eurípides é uma peça que elogia o caráter autóctone ateniense, e afirma a
afinidade sanguínea com a maioria dos estados gregos, mas é inicialmente uma história
do movimento da elocução da verdade de Delfos para Atenas, de Febo Apolo para o
cidadão ateniense. E essa é a razão porque a peça é a história da parrhesia: a peça grega
parrhesiástica decisiva.
Agora eu gostaria de dar o seguinte visão global esquemática da peça:

SILÊNCIO VERDADE ENGANO


Delfos Atenas Países estrangeiros
Apolo Erecteu Xuto
Íon e Creúsa

Veremos que Apolo guarda silêncio através do drama; que Xuto é enganado pelo
deus, mas é também um enganador. E veremos também como tanto Creúsa quanto Íon
falam a verdade contra o silêncio de Apolo, pois apenas eles estão conectados à terra
ateniense que lhes confere a parrhesia.

a. Prólogo de Hermes

Eu primeiro gostaria de recontar brevemente os eventos dados no prólogo de


Hermes, que tiveram lugar antes do começo da peça.
Depois da morte dos outros filhos de Erecteu (Cécrope, Orítia e Prócris), Creúsa
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
é a única descendente sobrevivente da dinastia ateniense. Um dia, quando mocinha,
enquanto colhia flores amarelas pelas Grandes Pedras, Apolo a estupra ou seduz. É um
estupro ou uma sedução? Para os gregos, a diferença não é tão crucial como para nós.
Claramente, quando alguém estupra uma mulher, uma moça, ou um garoto, ele usa
violência física; enquanto que quando alguém seduz usa palavras, usa habilidade de
falar, status superior, e assim por diante. Para os gregos, usar as habilidades psicológicas,
sociais ou intelectuais para seduzir outra pessoa não é tão diferente de usar a violência
física. De fato, da perspectiva da lei, a sedução era considerada mais criminosa do que o
estupro. Pois, quando alguém é estuprado, o é contra a sua vontade, mas quando é
seduzido, então isso constitui a prova de que, num momento específico, o indivíduo
seduzido escolhe ser infiel à sua ou ao seu consorte, ou aos seus pais, ou à sua família. A
sedução era considerada mais que um ataque ao poder do consorte, ao poder da família,
já que aquele que foi seduzido escolhe agir contra os desejos de seu consorte, seus pais
ou sua família.
De qualquer modo, Creúsa é estuprada ou seduzida por Apolo, e fica grávida. E
quando está para dar a luz, ela retorna ao lugar onde foi levada por Apolo, qual seja, uma
caverna abaixo da Acrópole de Atenas – abaixo do Monte de Palas, sob o centro da
cidade ateniense. E aqui ela se esconde até que, sozinha, dá a luz a um filho. Mas porque
ela não quer que Erecteu, seu pai, descubra sobre a criança (pois estava envergonhada do
que aconteceu), ela o abandona, deixando a criança para as feras selvagens. Apolo então
manda o irmão, Hermes, trazer a criança, seu berço e suas roupas, para o templo de
Delfos. E o garoto é criado como um servo do deus no santuário. E é considerado como
uma criança abandonada. Pois ninguém em Delfos (exceto o próprio Apolo) sabia quem
ele era ou de onde vinha (o próprio Íon não sabe). Íon aparece, assim, no esquema que eu
delineei, entre Delfos e Atena, Apolo e Creúsa. Pois ele é o filho de Apolo e Creúsa, e
nasceu em Atenas, mas vive sua vida em Delfos.
Em Atenas, Creúsa não sabe o que houve com sua criança. E ela imagina se ele
está vivo ou morto. Posteriormente ela se casa com Xuto, um estrangeiro cuja presença
alienígena complica imensamente a continuidade da autoctonia – que é o motivo de ser
tão importante para Creúsa ter um filho de Xuto. Contudo, após seu casamento, Xuto e
Creúsa não eram capazes de ter filhos. No fim da peça, os nascimentos de Dorus e
Aqueu são-lhes prometidos por Apolo, mas, no início da peça, eles permanecem sem
filhos, embora precisassem desesperadamente de filhos para dotar os atenienses de uma
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
continuidade dinástica. Então, ambos foram a Delfos perguntar a Apolo se eles jamais
teriam filhos. E então a peça começa.

b. O silêncio de Apolo

Mas, é claro, Creúsa e Xuto não têm a mesma pergunta a fazer ao deus Apolo. A
pergunta de Xuto é muito clara e simples: “Eu nunca tive filhos. Devo ter algum com
Creúsa?” Creúsa, contudo, tem outra pergunta a fazer. Ela tem que saber se terá filhos
com Xuto, mas também quer perguntar: “Contigo, Apolo, eu tive um filho. E eu preciso
saber agora se ele continua vivo ou não. O que, Apolo, ocorreu com nosso filho?”
No templo de Apolo, o oráculo em Delfos, era o lugar onde a verdade era dita
pelos deuses a qualquer mortal que viesse consultá-lo. Xuto e Creúsa chegam juntos às
portas do templo e, claro, a primeira pessoa que eles encontram é Íon – servo de Apolo
e filho de Creúsa. Mas, naturalmente, Creúsa não reconhece seu filho, nem Íon
reconhece sua mãe. Eles são estranhos um para o outro, assim como eram inicialmente
Édipo e Jocasta no Édipo Rei, de Sófocles.
Lembrem-se que Édipo também foi salvo da morte a despeito da vontade de sua
mãe. E ele também foi incapaz de reconhecer seus verdadeiros pai e mãe. A estrutura da
trama de Íon é de algum modo similar à da estória de Édipo. Mas a dinâmica da verdade
nas duas peças é exatamente contrária.
Pois no Édipo rei, Febo Apolo fala a verdade desde o início, profetizando o que
irá acontecer. E os seres humanos são aqueles que continuamente escondem ou evitam
ver a verdade, tentando escapar do destino profetizado pelo deus. Mas, no fim, apesar
dos sinais que Apolo lhes deu, Édipo e Jocasta descobrem a verdade a despeito de si
mesmos. Na presente peça, os seres humanos estão tentando descobrir a verdade: Íon
quer saber quem ele é e de onde veio; Creúsa quer saber qual o destino de seu filho.
Entretanto, é Apolo quem voluntariamente esconde a verdade. O problema edípico da
verdade é resolvido mostrando como os mortais, apesar de sua própria cegueira, verão a
luz da verdade que é falada pelo deus, e que eles não desejam ver. O problema iônico da
verdade é resolvido mostrando como os seres humanos, apesar do silêncio de Apolo,
descobrirão a verdade que tão avidamente desejam saber.
O tema do silêncio do deus prevalece em todo o Íon. Ele aparece no início da
tragédia quando Creúsa encontra Íon. Creúsa continua envergonhada do que a aconteceu,
23
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então ela fala a Íon como se tivesse ido consultar o oráculo para uma “amiga”. Ela,
então, lhe conta uma parte da sua própria história, atribuindo-a à sua alegada amiga, e lhe
pergunta se ele acha que Apolo irá dar à “amiga” uma resposta para suas perguntas.
Como um bom servo do deus, Íon a diz que Apolo não dará uma resposta, pois se ele
fizesse o que a “amiga” de Creúsa requer, então ele ficará também envergonhado:

ÍON: É para Apolo revelar o que ele pretende manter como um mistério?
CREÚSA: Claro! Seu oráculo não é aberto para qualquer grego perguntar?
ÍON: Não! Sua honra está envolvida. Seus sentimentos devem ser respeitados.
CREÚSA: E os sentimentos de suas vítimas? E o que isso implica para elas?
ÍON: Não há ninguém que perguntaria isso para ti? Suponha que ficasse
provado que, no próprio templo de Apolo, ele tivesse se comportado tão mal.
Ele estaria justificado para fazer seu intérprete sofrer por isso. Minha senhora,
deixa isso de lado. Não devemos acusar Apolo em sua própria corte. Isso é o
que nossa loucura valeria se tentássemos forçar um deus relutante a falar, a dar
sinais em sacrifícios ou nos voos dos pássaros. Esses propósitos que
perseguimos contra o desejo dos deuses podem nos trazer poucos benefícios
quando nós os obtemos.

Então, no início do ato, Íon fala por qual razão Apolo não dirá a verdade. E, de
fato, ele nunca responderia às perguntas de Creúsa. Esse é um deus que se esconde.
O que é ainda mais significativo e surpreendente é o que ocorre no fim da peça,
quando tudo é dito por vários personagens da peça e a verdade é conhecida por todos.
Pois todos, então, esperam pelo aparecimento de Apolo – cuja presença não foi visível
durante a peça inteira (apesar do fato de ele ser o personagem principal nos eventos
dramáticos que se apresem). Era tradicional na tragédia grega antiga que o deus que
constituía a figura divina principal aparecesse por último. Entretanto, no final da peça,
Apolo – o deus brilhante – não aparece. Ao invés dele, Atenas vem para transmitir sua
mensagem. E ela aparece acima do teto do templo délfico, pois as portas do templo não
estão abertas. Explicando por que veio, ela diz:

ATENA: …eu sou vossa amiga tanto aqui como em Atenas, a cidade cujo
nome eu porto – eu sou Atena! Vim às pressas por parte de Apolo. Ele pensou
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bem em não aparecer pessoalmente para vós para que não fossem proferidas
abertamente censuras pelo que ocorreu no passado, então ele me enviou com
essa mensagem para vós. Íon, essa é sua mãe e Apolo é seu pai. Xuto não te
gerou, mas Apolo deu-te a ele para tornar-te herdeiro reconhecido de uma casa
ilustre. Quando o propósito de Apolo foi divulgado, ele planejou um meio para
salvar cada um de vós da morte pelas mãos do outro. Sua intenção foi manter a
verdade secreta por um momento e então, em Atenas, revelar Creúsa como tua
mãe e tu como seu filho com Apolo [...]

Então, mesmo nesse momento final, quando tudo é trazido à luz, Apolo não ousa
aparecer para falar a verdade. Ele se esconde, enquanto Atena, ao contrário, fala.
Devemos nos lembrar de que Apolo é um deus profético encarregado de falar a verdade
aos mortais. Entretanto, ele é incapaz de cumprir seu papel porque está envergonhado
por sua culpa. Aqui, em Íon, o silêncio e a culpa estão ligados ao deus Apolo. Em Édipo
Rei, o silêncio e a culpa estão ligados aos mortais. O lema principal de Íon concerne à
luta humana pela verdade contra o silencio de deus: os seres humanos devem se conduzir
por si próprios para descobrir a verdade e dizê-la. Apolo não fala a verdade, ele não
revela o que sabe perfeitamente bem ser o caso, ele ilude os mortais através silêncio, ou
lhes diz puras mentiras puras, ele não é suficiente corajoso para falar por si só e usa seu
poder, sua liberdade e sua superioridade para encobrir o que fizera. Apolo é o anti-
parrhesiastes.
Em confronto com o silêncio do deus, Íon e Creúsa são as duas maiores figuras
parrhesiásticas. Porém não desempenham o papel de parrhesiastes do mesmo modo.
Pois, como um homem nascido em terra ateniense, Íon tem o direito de usar a
parrhesia. Creúsa, por outro lado, desempenha o papel parrhesiástico como uma mulher
que confessa seus pensamentos. Eu gostaria agora de examinar esses dois papéis
parrhesiásticos para notar a natureza de suas diferenças.

c. O papel parrhesiástico de Íon

Primeiro, Íon. O papel parrhesiástico de Íon é evidente na longa cena que toma
lugar entre Íon e Xuto no princípio da peça. Quando Xuto e Creúsa chegam para
consultar o oráculo, Xuto entra no santuário primeiro, uma vez que ele é o marido e o
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homem. Ele faz a Apolo sua pergunta e o deus diz-lhe que a primeira pessoa que ele
encontrar quando sair do templo será seu filho. E, é claro, a primeira pessoa que
encontra é Íon, já que, como servo de Apolo, está sempre à porta do templo. Aqui temos
que prestar atenção na expressão grega, que não é traduzida literalmente tanto nas
edições francesas como nas inglesas. As palavras gregas são: παῖδ' ἐµὸν πεφυκέναι. O
uso da palavra πεφυκέναι indica que de Íon é dito ser filho de Xuto por natureza.

ÍON: Qual foi o oráculo de Apolo?


XUTO: Ele disse que quem encontrasse quando saísse do templo.
ÍON: Quem encontrasses – sim: o que sobre ele?
XUTO: É meu filho! (παῖδ' ἐµὸν πεφυκέναι)
ÍON: Teu filho por nascimento ou meramente por presente?
XUTO: Um presente, sim. Porém, meu por nascimento também.

Vejam que Apolo não forneceu um pronunciamento oracular obscuro e ambíguo


como estava acostumado a fazer com questionadores indiscretos. A resposta do deus é
pura mentira, pois Íon não é filho de Xuto “por natureza” ou “por nascimento”. Apolo
não é alguém que fala a verdade ambiguamente nesse caso. É um mentiroso. E Xuto,
enganado por Apolo, candidamente acredita que Íon – a primeira pessoa que encontra –
realmente é, por natureza, seu próprio filho.
O que se segue é a primeira principal cena parrhesiástica da peça, que pode ser
dividida em três partes.
A primeira parte concerne ao mal entendido entre Íon e Xuto. Xuto deixa o
templo, vê Íon e – à luz da resposta de Apolo – acredita que ele é seu filho. Cheio de
carinho, vai até ele e quer beijá-lo. Íon – que não sabe quem é Xuto e por qual razão
quer beijá-lo – interpreta mal o comportamento de Xuto e pensa que Xuto quer sexo
com ele (como qualquer jovem grego pensaria se um homem tentasse beijá-lo). A maior
parte dos comentadores, se eles estão mesmos dispostos a reconhecer a interpretação
sexual que Íon atribui ao comportamento de Xuto, dizem que essa é uma “cena cômica”
– que algumas vezes ocorre nas tragédias de Eurípedes. Em todo caso, Íon diz para
Xuto: “Se continuares me assediando, vou atirar uma flecha em seu peito.” Isso é
similar em Édipo Rei, em que Édipo não sabe que Laio, rei de Tebas, é o seu pai. E ele
também interpreta mal a natureza de seu encontro com ele. Segue-se um confronto, e
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Laio é morto por Édipo. Porém, em Íon há esta inversão: Xuto, rei de Atenas, não sabe
que Íon não é seu filho, e Íon não sabe que Xuto pensa que é seu pai. Então, como
consequência da mentira de Apolo, estamos em um mundo de engano.
A segunda parte dessa cena concerne à desconfiança de Íon em relação a Xuto.
Xuto fala a Íon: “Acalma-te, se eu quero beijar-te é porque sou teu pai.” Porém, ao
invés de se alegrar com a descoberta de quem é seu pai, a primeira pergunta de Íon a
Xuto é: “Quem então é minha mãe?” Por alguma razão desconhecida a principal
preocupação de Íon é saber a identidade de sua mãe. Então ele indaga a Xuto: “Como
posso ser seu filho?” E Xuto responde: “Não sei como, eu remeto-te ao deus Apolo,
pelo que ele disse”. Íon, então, profere uma frase muito interessante que foi
completamente mal traduzida na versão francesa. O grego é [I. 544]:

φέρε λόγων ἁψώµεθ' ἄλλων.

A edição francesa traduz como “Vem, vamos falar sobre algo diferente”. Uma
tradução mais acurada seria: “Vamos tentar outro tipo de discurso”. Então, em resposta
à questão de Íon de como ele poderia ser seu filho, Xuto diz que não sabe, mas isso foi
dito por Apolo. E Íon diz-lhe, com efeito, para tentarem então outro tipo de discurso
mais apto a dizer a verdade:

ÍON: Como eu poderia ser teu filho?


XUTO: Apolo, não eu, tem a resposta.
ÍON: Vamos tentar de outro modo.
XUTO: Sim, que nos auxilie mais.

Abandonado a fórmula oracular do deus, Xuto e Íon tomam parte em uma


investigação envolvendo a troca de perguntas e respostas. Como inquiridor, Íon
questiona Xuto – seu alegado pai – para tentar descobrir com ele quando e como seria
possível para ele ter uma criança tal que Íon pudesse ser seu filho. E Xuto responde-lhe:
“bem, eu acho que fiz sexo com uma garota de Delfos.” Quando? “Antes de me casar
com Creúsa”. Onde? “Talvez em Delfos.” Como? “Um dia, quando estava bêbado,
celebrando a festa da tocha dionisíaca.” E, é claro, como uma explicação para o
nascimento de Íon, esse conjunto de pensamentos é pura bobagem. Porém, eles levam
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esse método inquisitivo a sério, e tentam, o melhor que podem, descobrir a verdade por
seus próprios meios – levados como eles são pela mentira de Apolo. Seguindo essa
inquirição, Íon, de fato relutante e sem entusiasmo, aceita a hipótese de Xuto: ele
considera-se como sendo filho de Xuto.
A terceira parte da cena parrhesiástica entre Xuto e Íon concerne ao destino
político de Íon e o seu potencial infortúnio político se ele chegar a Atenas como filho e
herdeiro de Xuto. Após persuadir Íon de que ele é seu filho, Xuto promete trazer Íon de
volta para Atenas, onde, como filho de um rei, seria rico e poderoso. Porém Íon não fica
muito entusiasmado com essa perspectiva, pois sabe que chegaria a Atenas como filho
de Xuto (um estrangeiro em terra Ateniense) e com uma mãe desconhecida. E, de
acordo com a legislação ateniense, ninguém pode ser um cidadão regular em Atenas se
não for nascido de pais nascidos em Atenas. Então, Íon fala a Xuto que ele seria
considerado estrangeiro e bastardo, isto é, ninguém. Essa ansiedade dá lugar a um longo
desenvolvimento que, à primeira vista, parece ser uma digressão, mas que apresenta um
retrato crítico de Eurípedes da vida política ateniense: tanto em uma democracia quanto
concernindo à vida política de um monarca.
Íon explica que, em uma democracia, há três categorias de cidadãos: 1) aqueles
cidadãos atenienses que não têm poder nem riqueza e que odeiam todos que sejam
superiores a eles; 2) os bons atenienses, que são capazes de exercer o poder, pois são
sábios, que mantêm o silêncio e não se ocupam com os negócios políticos da cidade; 3)
os homens respeitáveis, que são poderosos e usam seus discursos e razão para participar
da vida política pública. Prevendo a reação desses três grupos ao seu aparecimento em
Atenas como estrangeiro e bastardo, Íon diz que o primeiro grupo o odiaria; o segundo,
os sábios, ririam de um jovem que desejasse ser visto como um dos Primeiros Cidadãos
de Atenas; e o último grupo, os políticos, teria inveja do novo competidor e tentariam se
livrar dele. Então, ir para uma Atenas democrática não é uma perspectiva animadora
para Íon.
Seguindo esse retrato da vida democrática, Íon fala dos aspectos negativos de
uma vida familiar – com uma madrasta que, ela própria sem filhos naturais – não o
aceitaria presente como herdeiro do trono ateniense. Mas, então, Íon retorna para o
cenário político, dando seu retrato da vida de um monarca:

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ÍON: Por ser rei, é superestimado. A realeza esconde uma vida de tormentos por
trás de uma fachada de prazeres. Viver continuamente com medo, buscando
assassinos por sobre os ombros – isso é o paraíso? É mesmo boa fortuna. Dá-me
a felicidade do homem comum, não a vida de um rei que ama preencher sua
corte com criminosos e odeia homens honestos por temer a morte. Podes dizer-
me que o prazer de ser rico supera todas as coisas, porém viver envolto em
escândalos, agarrado ao seu dinheiro com ambas as mãos, assolado pela
preocupação – isso não tem apelo para mim.

Essas duas descrições da vida democrática ateniense e da vida de um monarca


parecem completamente fora de lugar nessa cena, pois o problema de Íon é descobrir
quem sua mãe é, de modo a chegar a Atenas sem vergonha ou ansiedade. Devemos
encontrar uma razão para a inclusão desses dois retratos. A peça continua, e Xuto fala
para Íon não se preocupar com sua vida em Atenas, e propõe que, por enquanto, Íon
finja ser um hóspede e não revele o “fato” de que é filho de Xuto. Depois, quando o
momento oportuno chegar, Xuto propõe fazer de Íon seu herdeiro. Por hora, nada será
dito a Creúsa. Íon gostaria de ir para Atenas como sucessor real da segunda família
dinástica de Erecteu, mas o que Xuto propõe – que ele finja ser um visitante da cidade –
não atinge os reais interesses de Íon. Então a cena parece louca, não faz sentido. Não
obstante, Íon aceita a proposta de Xuto, porém, afirma que, sem saber quem é sua mãe,
a vida será impossível.

ÍON: Sim, eu vou. Porém um fragmento de boa sorte ainda se me esquiva: a


menos que eu ache minha mãe, minha vida será desprezível.

Por que é impossível para Íon viver sem achar sua mãe? Ele continua:

ÍON: [...] Se eu posso fazê-lo, rogo para que minha mãe seja ateniense, para que
por meio dela possa ter o direito de fala. Pois quando um estrangeiro vai para
uma cidade de puro sangue, embora em nome seja um cidadão, sua língua
permanece escrava: ele não tem o direito de fala.

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Então vejam, a necessidade de saber quem é sua mãe é para determinar se ela é
descendente da terra ateniense, pois somente assim ele seria dotado da parrhesia. E ele
explica que alguém que chega a Atenas como estrangeiro – mesmo que literal e
legalmente seja considerado um cidadão – não pode desfrutar da parrhesia. O que então
significa o aparentemente digressivo retrato crítico da vida democrática e monárquica,
que culmina com a referência final que fazem à parrhesia, exatamente quando Íon
aceita a oferta de Xuto de retornar com ele para Atenas – dados especialmente os termos
muito obscuros da proposta de Xuto?
Os retratos críticos digressivos que Íon fornece da democracia e da monarquia
(ou tirania) são fáceis de reconhecer como exemplos típicos de discurso parrhesiástico,
pois se pode encontrar o mesmo tipo de crítica vindo posteriormente da boca de
Sócrates nas obras tanto de Platão como de Xenofonte. Críticas similares são
posteriormente feitas por Isócrates. Então as descrições críticas da democracia e da
monarquia como apresentadas por Íon são partes do caráter constitucional do indivíduo
parrhesiástico na vida política ateniense do final do século 5 e início do 4. Íon é
exatamente como um parrhesiastes, isto é, o tipo de indivíduo que é tão valioso para
democracia ou para a monarquia, uma vez que é corajoso suficiente para explanar, quer
para o demos ou para o rei, quais são realmente suas deficiências. Íon é um indivíduo
parrhesiástico e mostra-se como tal tanto nessas pequenas críticas políticas digressivas,
bem como, posteriormente, quando afirma que necessita saber se sua mãe é ateniense,
uma vez que necessita da parrhesia. Pois, apesar do fato de que está na natureza de seu
caráter ser parrhesiastes, ele não pode legal ou institucionalmente usar essa parrhesia
natural com que é dotado se sua mãe não for ateniense. A parrhesia é assim não um
direito dado igualmente a todos os cidadãos atenienses, mas somente aos que são
especialmente prestigiados pela sua família e seu nascimento. E Íon aparece como um
homem que é, por sua natureza, um indivíduo parrhesiástico, ainda que seja, ao mesmo
tempo, privado do direito da fala livre.
E por que essa figura parrhesiástica é privada de seu direito parrhesiástico?
Porque o deus Apolo – o deus profético cujo dever é falar a verdade aos mortais – não é
corajoso suficiente para revelar suas próprias faltas e agir como parrhesiastes. Para Íon
conformar sua natureza e jogar o papel parrhesiástico em Atenas, algo mais, que ele
carece, é necessário, mas que lhe será dado por outra figura parrhesiástica, qual seja, sua

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mãe, Creúsa. E Creúsa será capaz de falar-lhe a verdade, assim libertando seu filho
parrhesiástico para usar sua parrhesia natural.

d. O papel parrhesiástico de Creúsa

O papel parrhesiástico de Creúsa na peça é muito diferente do de Íon. Por ser


mulher, ela não usará a parrhesia para falar a verdade sobre a vida política ateniense ao
rei, porém para acusar Apolo publicamente por sua má conduta.
Pois, quando Creúsa é informada pelo coro que somente a Xuto foi dado um
filho por Apolo, percebe que não somente não encontraria o filho pelo qual procurava,
mas também que, quando retornasse a Atenas, ela teria em sua própria casa um filho
adotivo que era um estrangeiro para a cidade e que, não obstante, sucederia Xuto como
rei. E, por esses dois motivos, ela se enfurece, não somente contra o seu marido, mas
especialmente contra Apolo. Pois, depois de ser estuprada por Apolo e privada por ele
de seu filho, saber que, agora, além de não ter suas perguntas respondidas, enquanto
Xuto recebe um filho do deus, é demais para ela suportar. E sua amargura, seu
desespero e sua raiva irromperam em uma acusação feita contra Apolo: ela decide falar
a verdade. Assim, a verdade vem à luz como uma reação emocional à injustiça do deus
e suas mentiras.
No Édipo Rei de Sófocles, os mortais não aceitam as declarações proféticas de
Apolo, uma vez que suas verdades parecem inconcebíveis. E ainda assim eles são
levados à verdade das palavras do deus, apesar de seus esforços para escapar ao destino
que foi predito por ele. No Íon de Eurípedes, contudo, os mortais são levados à verdade
diante das mentiras ou do silêncio dos deuses, apesar do fato de serem enganados por
Apolo. Como consequência das mentiras de Apolo, Creúsa acredita que Íon seja filho
natural de Xuto. Mas, em sua reação emocional ao que acredita ser verdade, ela termina
divulgando a verdade.
A principal cena parrhesiástica de Creúsa consiste de duas partes que diferem
em sua estrutura poética e no tipo de parrhesia manifestada. A primeira parte toma a
forma de uma longa e bela fala – uma invectiva contra Apolo – enquanto a segunda
parte é uma forma de esticomitia, isto é, envolve um diálogo de falas alternadas entre
Creúsa e seu servo.

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Primeiro, a invectiva. Creúsa aparece, nesse momento, em frente aos degraus do
templo, acompanhada por um ancião que é um servo de confiança da família (e que
permanece em silêncio durante a fala de Creúsa). A invectiva de Creúsa contra Apolo é
a forma de parrhesia em que alguém publicamente acusa outro de um crime, uma falta,
ou de uma injustiça que foi cometida. E essa acusação é um exemplo de parrhesia na
medida em que quem é acusado é mais poderoso do que quem acusa. Portanto, há o
perigo de que, por causa da acusação feita, possa haver retaliação contra sua ou seu
acusador. A parrhesia de Creúsa primeiramente toma a forma de uma reprovação
pública ou crítica contra um ser diante do qual ela é inferior em poder e a quem ela se
encontra em relação de dependência. É nessa situação vulnerável que Creúsa decide
fazer sua acusação:

CREÚSA: Ó, meu coração, como poderei silenciar-me? Como poderei falar


desse amor secreto e despir-me de toda vergonha? Ainda haverá alguma
barreira a prevenir-me? Agora a quem terei como rival em virtude? Meu
marido não se tornou meu traidor? Sou privada de minha casa, privada de
filhos, as esperanças que não pude alcançar se foram, as esperanças de arranjar
bem as coisas ocultando os fatos, ocultando o nascimento que trouxe tristeza.
Não! Não! Mas eu juro pela abóboda estrelada de Zeus, pela deusa que brilha
em nossas cúspides e pela praia sagrada do lago de Tritonis. Eu não mais
ocultarei: quando eu puser de lado o fardo, meu coração ficará mais leve.
Lágrimas escorrem de meus olhos e meu espírito está doente, maldosamente
manipulado por homens e deuses. Vou expô-los, ingratos traidores de
mulheres.
Ó tu, que deste a lira de sete cordas que, do rústico chifre sem vida, ecoa o
amável hino das Musas, a ti, em plena luz do dia, eu acusarei. Tu vieste com
teus cabelos louros, quando, entusiasmada com sua luz dourada, colhia flores
para minha túnica. Agarrando-me pelos pulsos, quando eu gritava pela ajuda de
minha mãe, tu me levaste para o leito em uma caverna, um deus e meu amante,
sem nenhuma vergonha, submetendo-se aos prazeres de Chipre. Por desgraça,
eu concebi de ti um filho que, por medo de minha mãe, abandonei no leito em
que tu me tomaste. Ah! Deixado para comida dos pássaros, ele está perdido
agora – o meu filho e o teu! Perdido! Porém tu tocas a lira, cantando seus peãs.
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Ouve-me, filho de Latona, que ditas tuas profecias no trono dourado e do
templo no centro da terra, eu direi minhas palavras em teus ouvidos: tu és um
amante malvado. Embora nada devesses ao meu marido, deste um filho à sua
casa. Porém, o meu filho e o teu, coração de pedra, está perdido, levado pelos
pássaros. E os trajes, com que sua mãe o cobriu, abandonados. Delos odeia a ti
e o ramo de louro que cresce do loureiro com suas folhas delicadas, onde
Latona o pariu, uma criança divina, fruto de Zeus.

Considerando essa invectiva, eu gostaria de enfatizar os três pontos seguintes:


(1) como pode ser visto, a acusação de Creúsa é uma maldição pública contra Apolo na
qual, por exemplo, as referências a Apolo como filho de Latona objetivam transmitir o
pensamento de que Apolo era um bastardo: o filho de Latona e de Zeus. (2) Há também
uma oposição metafórica clara traçada entre Febo Apolo como o deus da luz, com seu
brilho dourado, que é, ao mesmo tempo, filho de Latona – uma divindade da noite – e
atrai uma jovem para dentro de uma caverna escura para estuprá-la. (3) Há também um
contraste traçado entre a música de Apolo, com sua lira de sete cordas, e os gritos e
berros de Creúsa (que grita por ajuda, como vítima de Apolo, e que também deve, por
meio de sua maldição, falar a verdade que o deus não proferirá). Por Creúsa proferir sua
acusação diante das portas do templo de Delfos, que estão fechadas, a voz divina fica
em silêncio enquanto ela proclama a sua verdade.
A segunda parte da cena parrhesiástica de Creúsa segue-se imediatamente a essa
invectiva, quando seu velho servo e guardião, que ouviu tudo o que ela disse,
empreende uma inquirição que é exatamente simétrica ao diálogo esticomítico que
ocorreu entre Íon e Xuto. Da mesma maneira, o servo de Creúsa solicita que ela lhe
conte sua história, enquanto ele lhe faz perguntas tais como “Quando esses fatos
aconteceram?”, “Onde?” e “Como?”, e assim por diante.
A respeito dessa troca, duas coisas são meritórias de nota. A primeira é que essa
inquirição é reversa à comunicação da verdade pelo oráculo. O oráculo de Apolo é
usualmente ambíguo e obscuro, nunca responde a um conjunto preciso de questões
diretamente e não pode ser seguido de uma inquirição, ao passo que o método de
perguntas e respostas traz as coisas obscuras à luz. A segunda é que agora o discurso
parrhesiástico de Creúsa não é mais uma acusação dirigida contra Apolo, isto é, não é
mais uma acusação de uma mulher contra seu raptor, mas toma a forma de uma
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autoacusação, na qual ela revela suas próprias faltas, fraquezas e erros (expor a criança),
e assim por diante. E Creúsa confessa eventos que decorrem de maneira similar à
confissão de amor de Fedra por Hipólito. Pois, como Fedra, ela também manifesta a
mesma relutância de dizer tudo e manobra para fazer com que seu servo diga aqueles
aspectos de sua história que ela não quer confessar diretamente – empregando uma fala
confessional indireta, familiar a todos em Hipólito, de Eurípedes, ou em Fedra, de
Racine.
Seja como for, penso que o falar a verdade de Creúsa é o que poderíamos
chamar de um exemplo de parrhesia pessoal (como oposta à parrhesia política). A
parrhesia de Íon toma a forma de uma crítica política veraz, enquanto a parrhesia de
Creúsa toma a forma de uma acusação veraz contra outro mais poderoso que ela e de
confissão de uma verdade sobre si própria.
É a combinação da figura parrhesiástica de Íon e Creúsa que possibilita a
completa revelação da verdade no fim da peça, pois, na sequência da cena parrhesiástica
de Creúsa, ninguém, exceto o deus, sabe que o filho que Creúsa teve com Apolo é Íon,
como também Íon não sabe que Creúsa é sua mãe e que ele não é filho de Xuto. Porém,
a combinação desses dois discursos parrhesiásticos requer um número de outros
episódios que infelizmente não temos tempo de analisar. Por exemplo: há o episódio
muito interessante em que Creúsa – ainda acreditando que Íon é filho natural de Xuto –
tenta matar Íon. E, quando Íon descobre esse plano, ele tenta matar Creúsa – uma
inversão peculiar da situação edípica.
Observando o esquema que nós delineamos, entretanto, podemos agora observar
que a série de verdades descendentes de Atenas (Erecteu-Creúsa-Íon) é completada no
final da peça. Xuto também é enganado por Apolo no final, pois retorna a Atenas ainda
acreditando que Íon é seu filho natural. E Apolo nunca aparece em qualquer momento
da peça: ele permanece continuamente em silêncio.

5. Orestes (408)

Uma última ocorrência do vocábulo parrhesia encontra-se em Orestes de


Eurípedes. – uma peça escrita ou ao menos encenada em 408, poucos anos antes da
morte de Eurípedes, e em um momento de crise política em Atenas, quando havia
numerosos debates sobre o regime democrático. Esse texto é interessante porque é a
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única passagem em Eurípedes em que o vocábulo parrhesia é usado em um sentido
pejorativo. A palavra aparece no verso 905 e é traduzida por “franqueza ignorante”. O
verso em que o vocábulo aparece na peça faz parte da narrativa de um mensageiro que
vai ao palácio real de Argos para contar a Electra o que aconteceu na corte pelágica
quando do julgamento de Orestes. Pois, como vocês sabem, em Electra, Orestes e
Electra mataram sua mãe, Clitemnestra, e, portanto, são julgados por matricídio. A
narrativa que desejo cotar é a seguinte:

MENSAGEIRO: [...] Quando o rol completo dos cidadãos estava presente, um


arauto levantou e disse: “Quem deseja se dirigir à corte para dizer se Orestes
deve morrer ou não por cometer matricídio?” Nisso, Taltíbio, que foi colega de
seu pai na vitória sobre Tróia, se levantou. Sempre subserviente aos que estão
no poder, empreendeu uma fala ambígua com um louvor servil a Agamêmnon
e frias palavras para seu irmão, misturando elogios e censuras conjuntamente.
E, a cada sentença, lançava olhares insinuantes aos amigos de Egisto. Os
arautos são assim – sua raça aprendeu a ligar-se ao lado vencedor, seus amigos
são qualquer um que tenha poder ou função governamental. O príncipe
Diomedes, em pé, falou na sequência. Ele instou-os a não sentenciarem nem a
ti ou teu irmão à morte, mas a satisfazer a piedade, banindo-os. Alguns
gritaram aprovando, outros reprovando.
Em seguida, se levantou um indivíduo com uma língua que corre solta, um
gigante em impudência, um cidadão inscrito, porém não era argivo; uma mera
marionete. Expunha suas confidências com franqueza ruidosa e ignorante, e
ainda era persuasivo o bastante para deixar seus ouvintes em enrascadas. Ele
disse que tu e Orestes deveriam ser mortos a pedradas. Todavia, quando ele
argumentou pela vossa morte, as palavras que usava não eram dele próprio,
mas todas a mando de Tindareu.
Outro se levantou e falou contra ele. Era de pouca beleza, porém corajoso, do
tipo que não se encontra frequentemente nas ruas ou no mercado. Um
trabalhador manual – único bastião da terra, sagaz quando escolheu defender
um argumento. Um homem íntegro, de princípios imaculados.
Ele disse que Orestes, filho de Agamêmnon, deveria ser honrado com louros
pela ousadia de vingar se pai tomando a vida da mulher depravada e ímpia que
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corrompeu os costumes, pois nenhum homem deixaria sua casa para em armas
ir para a guerra se a esposa, deixada em confiança, pudesse ser seduzida pelos
que ficaram em casa e um homem valoroso ser corneado. Suas palavras
pareceram sensíveis aos juízes honestos, e não houve mais nenhuma fala.

Como podem ver, a narrativa começa com uma referência aos procedimentos
atenienses para os julgamentos criminais: quando todos os cidadãos estão presentes, um
arauto se levanta e grita: “Quem deseja falar?”, pois esse é o direito ateniense de igual
discurso (isegoria). Então, dois oradores falam, ambos tomados da mitologia grega, do
mundo homérico. O primeiro a falar é Taltíbio, que foi um dos companheiros de
Agamêmnon durante a Guerra de Tróia – especificamente seu arauto. Taltíbio é seguido
por Diomedes, um dos mais famosos heróis gregos, conhecido por sua coragem sem
par, bravura, habilidade guerreira, força física e eloquência.
O mensageiro caracteriza Taltíbio como alguém que não é completamente livre,
mas dependente dos que são mais poderosos do que ele. O texto grego afirma que ele
está “sob o poder dos que lhe são mais poderosos” (“subserviente aos que estão no
poder”). Há duas outras peças nas quais Eurípedes critica esse tipo de ser humano: o
arauto. Nas Troianas, o mesmo Taltíbio aparece, após a cidade de Tróia ter sido
capturada pelos gregos, para falar a Cassandra que ela será a concubina de Agamêmnon.
Cassandra responde ao arauto predizendo que ela trará ruína aos seus inimigos. E, como
vocês sabem, as profecias de Cassandra são sempre verdadeiras. Taltíbio, contudo, não
acredita nas predições dela, uma vez que, como arauto, não sabe o que é a verdade (é
incapaz de reconhecer a verdade das declarações de Cassandra), mas somente repete o
que seu senhor – Agamêmnon – mandou-lhe dizer. Ele pensa que Cassandra é
simplesmente louca, pois ele responde: “Sua mente não está no lugar correto” (“Não
está em seu juízo perfeito”). E a isso Cassandra replica:

CASSANDRA: “Servo”! Ouves isso, servo? Ele é um arauto. O que são


arautos então, senão criaturas universalmente detestáveis – serviçais lacaios de
governantes e reis? Dizes que minha mãe está destinada à casa de Odisseu,
porque então um dos oráculos de Apolo, o que fala através de mim, disse que
ela deve morrer aqui?

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E, de fato, a mãe de Cassandra, Hécuba, morre em Tróia.
Nas Suplicantes, de Eurípedes, há também uma discussão entre um arauto
desconhecido (vindo de Tebas) e Teseu (que não é exatamente um rei, mas o Primeiro
Cidadão de Atenienses). Quando o arauto entra, pergunta: “Quem é o rei de Atenas?” E
Teseu respondeu-lhe que ele não seria capaz de achar o rei ateniense, uma vez que não
há tyrannos na cidade:

TESEU: Este estado não é submetido ao desejo de um homem, mas é uma


cidade livre. O rei aqui é o povo, que exerce o governo em mandatos anuais.
Nós não damos poder especial à riqueza. A voz do homem pobre impõe
autoridade igual.

Isso inicia uma discussão a respeito de qual forma de governo é a melhor:


monarquia ou democracia? O arauto louva o regime monárquico e critica a democracia
como sujeita aos caprichos da multidão. A resposta de Teseu é um louvor à democracia
ateniense, na qual, porque as leis são escritas, o pobre e o rico têm direitos iguais e
todos são livres para falar na ekklesia:

TESEU: [...] A liberdade está nesta fórmula: “Quem tem bons conselhos que
poderia oferecer à cidade?” Aquele que deseja falar obtém fama. Aquele que
não, fica em silêncio. Onde maior igualdade poderia ser encontrada?

Aos olhos de Teseu, a liberdade para falar é sinônimo da igualdade democrática,


que ele cita em oposição ao arauto – o representante do poder do tirano.
Uma vez que a liberdade reside na liberdade para falar a verdade, Taltíbio não
pode falar direta e francamente no julgamento de Orestes, uma vez que não é livre, pois
depende dos que são mais poderosos que ele. Consequentemente, ele “fala
ambiguamente”, empregando um discurso que significa duas coisas opostas ao mesmo
tempo. Então, o vemos louvando Agamêmnon (de quem foi seu arauto), mas também
condenando Orestes, o filho de Agamêmnon (uma vez que não aprova as suas ações).
Temendo o poder das duas facções e, portanto, desejando agradar a todos, ele fala de
forma ambígua. Mas, uma vez que os amigos de Egisto estão no poder e clamam pela

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morte de Orestes (Egisto, como vemos em Electra, também foi morto por Orestes), no
final Taltíbio condena Orestes.
Na sequência desse personagem mitológico negativo é apresentado um positivo:
Diomedes. Diomedes era famoso como guerreiro grego, tanto por suas façanhas
corajosas como por sua nobre eloquência: por sua habilidade de falar e sua sabedoria.
Diferentemente de Taltíbio, Diomedes é independente. Ele diz o que pensa e propõe
uma solução moderada que não tem motivação política: não é uma retaliação vingativa.
No âmbito religioso, “para satisfazer a piedade”, insta que Orestes e Electra sejam
exilados para purificar a cidade dos assassinatos de Clitemnestra e Egisto, de acordo
com a punição religiosa tradicional para os assassinos. Porém, apesar do veredicto
moderado e razoável de Diomedes, sua opinião divide a assembleia: uns concordam,
outros não.
Há dois outros que se apresentam para falar. Seus nomes não são dados, não
pertencem ao mundo mitológico de Homero, não são heróis. Porém, com a precisa
descrição fornecida pelo relato do mensageiro, nós podemos ver que são dois “tipos
sociais”. O primeiro (que é simétrico a Taltíbio, o mau orador) é o tipo de orador
prejudicial à democracia. E eu penso que devemos determinar cuidadosamente suas
características específicas.
Seu primeiro traço é que ele tem uma “língua que corre solta”, tradução do
vocábulo grego athuroglossos. Athuroglossos literalmente refere-se a alguém que tem
uma língua, mas não uma porta. Isso significa alguém que não pode fechar sua boca.
A metáfora da língua, dos dentes e lábios como uma porta que está fechada
quando alguém está em silêncio é frequente na literatura grega antiga. Ocorre no século
6 a.C., em Teognis, que escreve que há muitas pessoas tagarelas:

Muitas línguas têm portas que se abrem muito facilmente e cuidam de muitas
coisas que não são da sua conta. O melhor é manter as más notícias dentro e
somente deixar sair as boas novas.

No século 2 a.C., em seu ensaio “Sobre a Tagarelice”, Plutarco também escreve


que os dentes são as cercas ou as porta de modo que “se a língua não obedece ou não se
contém, podemos controlar sua incontinência mordendo-a até sangrar”.

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Essa noção de athuroglossos ou athurostomia (alguém que tem uma língua sem
uma porta) refere-se a alguém que é um tagarela sem fim, que não consegue ficar quieto
e é inclinado a dizer qualquer coisa que vem à mente. Plutarco compara esses tagarelas
com o Mar Negro – que não tem portas ou portões para impedir que os fluxos de suas
águas entrem no Mediterrâneo:

[...] Aqueles que acreditam que armazéns sem portas e bolsas sem fecho são
sem uso para seus proprietários e ainda assim continuam com suas bocas sem
travas ou portas, mantendo um fluxo perpétuo como a embocadura do Mar
Negro, parecem considerar a fala como a menos valiosa de todas as coisas.
Eles não encontram, dessa forma, a convicção, que é objeto de toda fala.

Como podemos ver, o athuroglossos é caracterizado pelos dois traços seguintes:


1) quando se tem “a língua solta”, não é possível distinguir entre as ocasiões em que se
deve falar e aquelas em que se deve ficar em silêncio; ou entre o que deve ser dito e o
que deve ficar não dito; ou entre as circunstâncias e situações em que a fala é
requisitada e aquelas em que se deve manter em silêncio. Assim, Teognis coloca que o
tagarela é incapaz de diferenciar quando deve dar voz a boas ou a más notícias, o de
determinar o que é da sua conta e o que não é – uma vez que ele indiscretamente
intervém nos assuntos de terceiros. 2) Como Plutarco nota, quando se é athuroglossos
não se tem olhos para o valor do logos, para o discurso racional como meio de obter
acesso à verdade. Athuroglossos é assim quase sinônimo de parrhesia, tomada em seu
sentido pejorativo e exatamente oposto do sentido positivo de parrhesia (uma vez que é
sinal de sabedoria ser capaz de usar a parrhesia sem cair na tagarelice do
athuroglossos). Um dos problemas então que a personagem parrhesiástica deve resolver
é como distinguir o que deve ser dito do que deveria ser silenciado. Mas nem todos são
capazes da fazer tal distinção, como ilustra o exemplo seguinte.
Em seu tratado “Da Educação das Crianças”, Plutarco cita uma anedota de
Teócrito, um sofista, como exemplo de athuroglossos e de desgraças sofridas devido à
fala destemperada. O rei dos macedônios, Antígono, enviou um mensageiro a Teócrito,
solicitando-lhe que fosse à sua corte para ocupar-se em discussões. Aconteceu que o
mensageiro que ele enviou era seu cozinheiro chefe, Eutropiano. O rei Antígono havia
perdido um olho em batalha, de modo que tinha apenas um olho. Ora, Teócrito não
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
ficou satisfeito em ouvir de Eutropiano, o cozinheiro do rei, que ele tinha de ir e visitar
Antígono. Então disse ao cozinheiro: “Eu sei que queres me servir cru para o teu
Ciclope” – assim expondo ao ridículo a desfiguração do rei e a profissão de Eutropiano.
A isso o cozinheiro respondeu: “Então não manterás tua cabeça, mas pagarás a pena
pela fala imprudente (athurostomia) e pela tua loucura”. Quando Eutropiano relatou a
observação de Teócrito ao rei, ele condenou Teócrito à morte.
Como veremos no caso de Diógenes, um filósofo verdadeiramente bom e
corajoso pode usar da parrhesia com um rei. Entretanto, no caso de Teócrito, sua
franqueza não é parrhesia, mas athurostomia, uma vez que a pilhéria sobre a
desfiguração do rei ou a profissão do cozinheiro não tem significado filosófico
meritório. Athuroglossos ou athurostomia então é o primeiro traço do terceiro orador na
narrativa do julgamento de Orestes.
Seu segundo traço é que ele é ἰσχύων θράσει, “um gigante em impudência”. A
palavra ἰσχύων denota alguém forte, usualmente no sentido de força física que capacita
a vencer os outros em uma competição. Então esse orador é forte, mas sua força θράσει
– que significa forte não devido à sua razão, ou à habilidade retórica, ou à habilidade
para pronunciar a verdade, mas somente porque ele é arrogante. Ele é forte somente pela
sua ousada arrogância.
A terceira característica: “um cidadão inscrito, embora não argivo”. Ele não é
nativo de Argos, mas é proveniente de outro lugar e foi integrado no corpo da cidade. A
expressão ἠναγκασµένος refere-se a alguém que foi imposto aos membros da cidade
como cidadão pela força ou por meios desonrosos (o que foi traduzido por “mera
marionete”).
Seu quarto traço é dado pela frase “apresenta suas opiniões com bravatas”. Ele
confia no θόρυβος, que se refere ao som produzido por uma voz potente, por um grito,
um clamor ou tumulto. Quando, por exemplo, em batalha, os soldados gritam,
desejando despertar a própria coragem ou amedrontar o inimigo, os gregos usam a
palavra thorubos. O tumulto ruidoso de uma assembleia, quando o povo grita, é
chamado thorubos. Então o terceiro orador não é confiante pela sua habilidade de
formular e articular discursos, mas somente pela habilidade de gerar uma reação
emocional em sua audiência pela força e pelo peso de sua voz. Essa relação direta entre
a voz e o efeito emocional que ela produz na ekklesia é oposta, assim, ao sentido
racional da fala articulada.
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A característica final do terceiro orador (negativo) é que ele também expressa
sua opinião em κἀµαθεῖ παρρησία – “franqueza (parrhesia) ignorante”. A frase κἀµαθεῖ
παρρησία repete a expressão athuroglossos, mas com suas implicações políticas. Pois,
apesar desse orador ter sido inscrito no corpo de cidadãos, no entanto, ele não possui a
parrhesia como um direito formal garantido pela constituição ateniense. O que designa
sua parrhesia como parrhesia em seu sentido pejorativo ou negativo, contudo, é sua
falta de mathesis – conhecimento ou estudo. Para que a parrhesia tenha efeitos
políticos, ela deve estar agora ligada a uma boa educação, a uma formação intelectual e
moral, à paideia ou mathesis. Somente desse modo a parrhesia seria mais do que
thorubos ou simples ruído vocal. Pois, quando o orador usa a parrhesia sem mathesis,
quando ele usa κἀµαθεῖ παρρησία, a cidade é levada a situações terríveis.
Podemos lembrar uma observação similar de Platão, na Sétima Carta (336b),
concernente à falta de mathesis. Pois nela Platão explica que Díon não seria capaz de
obter sucesso em sua empreitada na Sicília (transformar Dionísio tanto no regente de
uma grande cidade como em um filósofo devotado à razão e à justiça) por duas razões.
A primeira é que algum daimon ou mau espírito pode ter inveja e procurar vingança.
Segundo, Platão explica que a ignorância corre solta na Sicília. E sobre a ignorância
Platão diz que “é o solo no qual todas as formas de males para todos os homens tomam
raiz, florescem e depois produzem o fruto mais amargo que alguém já semeou”.
Então as características do terceiro orador – certo tipo social que emprega a
parrhesia em seu sentido pejorativo – são essas: ele é violento, passional, estrangeiro,
sem mathesis e, portanto, perigoso.
Vamos agora ao quarto e último orador do julgamento de Orestes. Ele é análogo
a Diomedes: o que Diomedes era no mundo homérico, esse último orador é no mundo
político de Argos. Uma exemplificação de um parrhesiastes positivo como um “tipo
social”, ele tem os seguintes traços.
O primeiro é que ele é “dotado de pouca beleza, porém é um homem corajoso”.
Diferentemente de uma mulher, ele não se preocupa com a aparência, mas é um
“homem viril”, isto é, um homem corajoso. Para os gregos, a coragem é uma qualidade
viril que as mulheres não possuiriam.
O segundo, ele é “o tipo que não se encontra frequentemente nas ruas ou no
mercado”. Assim, esse representante do uso positivo da parrhesia não é o tipo de
político profissional que despende a maior a maior parte do seu tempo na ágora – o
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lugar no qual o povo, a assembleia, se reúne para discussões políticas e debates. Nem é
uma daquelas pessoas pobres que, sem qualquer outro meio de vida, iam à ágora com o
desejo de receber uma soma em dinheiro dada aos que tomavam parte na ekklesia. Ele
frequenta a assembleia somente para participar de decisões importantes em momentos
críticos. Ele não vive afastado da política por razões políticas.
Terceiro, ele é um autourgos – um “trabalhador braçal”. O vocábulo autourgos
refere-se a alguém que trabalha em sua própria terra. A palavra denota uma categoria
social específica – nem um grande proprietário de terras, nem um tarefeiro, mas o
proprietário de terras que vive e trabalha com suas próprias mãos em sua propriedade,
ocasionalmente com a ajuda de uns poucos servos ou escravos. Tais proprietários de
terra – que despendem a maior parte do seu tempo trabalhando o campo e
supervisionando o trabalho de seus servos – são muito louvados por Xenofonte em seu
Oeconomicus. O que é mais interessante, em Orestes é que Eurípedes enfatiza a
competência política de tais proprietários, mencionando três aspectos de seu caráter.
O primeiro é que eles estão sempre prontos para marchar para a guerra e lutar
pela cidade, o que fazem melhor do que quaisquer outros. Claro, Eurípedes não fornece
nenhuma explicação racional de por qual razão seria dessa forma, mas se recorrermos
ao Oeconomicus de Xenofonte, no qual o autourgos é retratado, encontraremos uma
série de razões. A maior delas é que o proprietário de terras é naturalmente muito
interessado na defesa e proteção das terras do país – diferentemente dos comerciantes e
do povo que vive na cidade que não são proprietários de sua própria terra e,
consequentemente, não liga tanto se o inimigo pilha o campo. Porém, esses que
trabalham como fazendeiros simplesmente não podem tolerar o pensamento de que o
inimigo poderia devastar o campo, queimar a lavoura, matar os rebanhos e as ovelhas, e
assim por diante, e, portanto, são bons lutadores.
Em segundo lugar, o autourgos “é capaz de sustentar argumentos”, ou seja, é
capaz de utilizar a linguagem para propor bons conselhos para a cidade. Como
Xenofonte explica, tais proprietários de terra estão habituados a dar ordens para seus
servos e a tomar decisões sobre o que deve ser feito em várias circunstâncias. Assim,
não são somente bons soldados, mas também são bons líderes. Portanto, quando eles
falam para a ekklesia, não usam thorubos, mas o que dizem é importante, razoável e
constitui bom conselho.

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Acrescente-se que o último orador é um homem de moral íntegra: “um homem
de princípios inquestionáveis”.
Um último ponto a respeito do autourgos: enquanto o primeiro orador queria
que Electra e Orestes fossem mortos por apedrejamento, o proprietário de terra não
somente clama pela inocência de Orestes, mas acredita que ele deveria “ser honrado
com uma coroa” pelo que ele fez. Para compreender o significado da afirmação do
autourgos, é necessário compreender que o que estava em questão no julgamento de
Orestes para a audiência ateniense – que vivia em meio à Guerra do Peloponeso – era a
questão da guerra e da paz: a decisão referente quanto a Orestes será agressiva e
instituirá a continuação das hostilidades, como na guerra, ou a decisão instituirá a paz?
A proposta de absolvição feita pelo autourgos simboliza o desejo pela paz. Mas ele
também afirma que Orestes deveria ser coroado por matar Clitemnestra, “uma vez que
nenhum homem deixaria sua casa, se armaria e marcharia para guerra se as esposas,
deixadas em confiança, fossem seduzidas pelos que ficassem em casa e homens bravos
fossem corneados”. Devemos nos lembrar de que Agamêmnon foi assassinado por
Egisto em seu retorno para casa após a Guerra de Tróia; pois, enquanto lutava contra o
inimigo longe de casa, Clitemnestra vivia em adultério com Egisto.
Agora podemos visualizar o preciso contexto político e histórico dessa cena. O
ano da produção da peça é 408 a.C., um momento em que a competição entre Atenas e
Esparta na Guerra do Peloponeso ainda era muito aguda. As duas cidades haviam lutado
por 23 longos anos com pequenos períodos intermitentes de trégua. Em 408, Atenas,
após as amargas e ruinosas derrotas de 413, havia recuperado uma parte de seu poderio
naval. Porém, em terra, a situação não era boa, e Atenas estava vulnerável à invasão
espartana. No entanto, Esparta fazia várias ofertas de paz a Atenas, tanto que a questão
de continuar a guerra ou fazer a paz era veementemente discutida.
Em Atenas, o partido democrático era a favor da guerra por razões econômicas
que são muito claras. O partido era, de forma genérica, apoiado por mercadores, lojistas,
homens de negócios e pelos que estavam interessados na expansão imperialista de
Atenas. O partido conservador aristocrático era a favor da paz, uma vez que era apoiado
por proprietários de terras e outros que queriam uma coexistência pacífica com Esparta,
como também uma constituição que fosse mais próxima, em alguns aspectos, à
constituição espartana.

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O líder do partido democrático era Cleofonte – que não era nativo de Atenas,
mas um estrangeiro registrado como cidadão. Um orador habilidoso e influente,
retratado de modo infame por seus próprios contemporâneos (por exemplo, dizia-se que
ele não era corajoso suficiente para tornar-se um soldado, que aparentemente tinha um
papel sexual passivo nas suas relações sexuais com outros homens, e assim por diante).
Então, vemos que todas as características do terceiro orador, o parrhesiastes negativo,
podem ser atribuídas à Cleofonte.
O líder do partido conservador era Terâmenes – que queria retornar à
constituição ateniense do século 4, que instituía uma oligarquia moderada. Seguindo
essa proposta, os principais direitos civis e políticos seriam reservados aos proprietários
de terras. Os traços do autourgos, o parrhesiastes positivo, portanto, correspondem a
Terâmenes.
Portanto, uma das questões claramente presentes no julgamento de Orestes é a
que estava, então, sendo debatida pelos partidos democrático e conservador, sobre se
Atenas deveria continuar a guerra com Esparta ou optar pela paz.

7. A Problematização da Parrhesia em Eurípedes

No Íon de Eurípedes, escrito dez anos antes do que Orestes, em torno de 418
a.C., a parrhesia foi apresentada como tendo somente um sentido ou valor positivo. E,
como vimos, era tanto a liberdade para expressar o próprio pensamento quanto um
privilégio conferido aos primeiros cidadãos de Atenas – um privilégio que Íon desejava
desfrutar. O parrhesiastes falava a verdade precisamente porque era um bom cidadão,
oriundo de boa família, e respeitava a cidade, a lei e a verdade. O problema para Íon era
que, para assumir o papel parrhesiástico que lhe cabia naturalmente, a verdade sobre o
seu nascimento teria que ser divulgada. Mas porque Apolo não queria divulgar essa
verdade, Creúsa teve que divulgar seu nascimento usando a parrhesia contra o deus em
uma acusação pública. E assim a parrhesia de Íon foi estabelecida, sendo fincada em
solo ateniense em um jogo entre mortais e deuses. Desse modo, não havia
“problematização” do parrhesiastes como tal nessa primeira concepção.
Entretanto, em Orestes há uma divisão na própria parrhesia entre seus sentidos
positivo e negativo, e o problema da parrhesia ocorre somente no campo dos papéis

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parrhesiásticos humanos. Essa crise da função da parrhesia tem dois aspectos
principais.
O primeiro concerne à questão: “Quem tem o direito de usar a parrhesia?” Basta
simplesmente aceitar a parrhesia como um direito civil de modo que todo e qualquer
cidadão pudesse falar na assembleia se e quando ele ou ela desejasse? Ou a parrhesia
deveria ser exclusivamente garantida a alguns cidadãos, de acordo com seu status social
ou virtudes pessoais? Há uma discrepância entre um sistema igualitário que capacita
todos a usarem a parrhesia e a necessidade de escolher, entre os cidadãos, aqueles que
são capazes (por causa de suas qualidades sociais ou pessoais) de usar a parrhesia de
modo tal que verdadeiramente beneficie a cidade. E essa discrepância faz da emergência
da parrhesia uma questão problemática. Pois, diferentemente da isonomia (a igualdade
de todos os cidadãos perante a lei) e da isegoria (o direito legal dado a todos de
expressar sua própria opinião), a parrhesia não era claramente definida em termos
institucionais. Não havia lei, por exemplo, protegendo o parrhesiastes de uma potencial
retaliação ou punição pelo que ele ou ela teria dito. E, assim, ainda havia um problema
na relação entre nomos e aletheia: como é possível dar forma legal a alguém que fala a
verdade? Há leis formais de validade racional, mas nenhuma lei social, política ou
institucional determinando quem é capaz de falar a verdade.
O segundo aspecto da crise concernente à função da parrhesia tem a ver com a
relação da parrhesia com a mathesis, o conhecimento e a educação – o que significa que
a parrhesia, por ela mesma, não é mais considerada adequada para revelar a verdade. A
relação do parrhesiastes com a verdade não pode mais ser estabelecida simplesmente
pela pura franqueza, pela pura coragem, pois a relação agora requer educação ou, de
forma mais genérica, algum tipo de formação pessoal. Porém, o tipo preciso de
formação pessoal ou educação necessária também é um problema (e é contemporâneo à
questão da sofística). Em Orestes, parece mais provável que a mathesis requerida não
seja aquela da concepção socrática ou platônica, mas um tipo de experiência que um
autourgos adquiriria no decorrer de sua própria vida.
Ora, penso que podemos começar a ver que essa crise em relação à parrhesia é
um problema da verdade, pois o problema é o de reconhecer quem é capaz de falar a
verdade dentro dos limites de um sistema institucional no qual todos estão igualmente
capacitados a manifestar sua própria opinião. A democracia, por ela mesma, não é capaz
de determinar quem tem as qualidades específicas que capacitem a falar a verdade (e
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assim, teria o direito de falar a verdade). E a parrhesia, como atividade verbal, como
pura franqueza ao falar, também não é suficiente para revelar a verdade, uma vez que a
parrhesia negativa, a franqueza ignorante, também pode daí resultar.
A crise da parrhesia, que emerge na encruzilhada de uma interrogação sobre a
democracia e uma sobre a verdade, dá origem a uma problematização de algumas
relações, até agora não problematizadas, entre liberdade, poder democracia, educação e
verdade na Atenas do final do século 5 a.C. Do problema precedente acerca da obtenção
do acesso à parrhesia, apesar do silêncio do deus, nos movemos para uma
problematização da parrhesia, i.e. a própria parrhesia torna-se problemática, dividida
em si mesma.
Eu não desejo sugerir que a parrhesia, como uma noção explícita, emirja nesse
momento de crise – como se os gregos não tivessem previamente qualquer ideia
coerente da liberdade de falar, ou do valor da fala livre. O que eu digo é que há uma
nova problematização da relação entre atividade verbal, educação, liberdade, poder e as
instituições políticas existentes que marca uma crise no modo que a liberdade de falar é
compreendida em Atenas. E essa problematização exige uma nova forma de abordagem
e de questionamentos a respeito dessas relações.
Eu enfatizo esse ponto por pelo menos este seguinte motivo metodológico: eu
gostaria de distinguir entre a “história das ideias” e a “história do pensamento”. Na
maior parte das vezes, um historiador das ideias tenta determinar quando um conceito
específico aparece, e esse momento é frequentemente identificado com o aparecimento
de uma nova palavra. Porém, o que eu estou tentando fazer como um historiador do
pensamento é algo diferente. Estou tentando analisar a maneira como as instituições,
práticas, hábitos e comportamento tornaram-se um problema para as pessoas que se
comportavam de um modo específico, que tinham certos tipos de hábitos, que se
engajavam em certos tipos de práticas e que faziam funcionar tipos específicos de
instituições. A história das ideias envolve a análise do nascimento de uma noção, do seu
desenvolvimento e das suas relações com outras ideias que fazem parte de seu contexto.
A história do pensamento é análise do modo como um campo não problemático da
experiência, ou um conjunto de práticas, que antes eram aceitas sem questionamentos,
que eram familiares e não discutidas, tornam-se um problema e levantam discussões e
debates, incitam novas reações e induzem uma crise no comportamento, no hábito, nas
práticas ou instituições que, até então, eram silenciosos. A história do pensamento,
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compreendida desse modo, é a história do modo como as pessoas começam a se
preocupar com algo, do modo como se tornam ansiosas com isso ou aquilo – por
exemplo, com a loucura, com o crime, com sexo, com elas próprias ou com a verdade.

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3ª. CONFERÊNCIA: PARRHESIA E A CRISE DAS INSTITUIÇÕES
DEMOCRÁTICAS

Hoje eu gostaria de completar o que iniciei anteriormente a respeito da parrhesia


e a crise das instituições democráticas no século 4 a.C. E, a seguir, gostaria de deslocar-
me para outra forma de parrhesia: a parrhesia no campo das relações pessoais (para
consigo e para os outros), ou parrhesia e o cuidado de si.
A crítica explícita aos falantes que utilizam a parrhesia em seu sentido negativo
se tornou um lugar comum no pensamento político grego desde a Guerra do Peloponeso
e trouxe à tona um debate sobre as relações entre a parrhesia e as instituições
democráticas. O problema, grosso modo, era o seguinte: a democracia era fundada por
uma politeia, uma constituição, na qual o demos, o povo, exerce o poder e onde todos
são iguais perante a lei. Tal constituição, no entanto, é condenada por dar igual lugar a
todas as formas de parrhesia, mesmo a pior. Devido ao fato de a parrhesia ser dada
mesmo aos piores cidadãos, a esmagadora influência dos falantes maus, imorais ou
ignorantes pode levar os cidadãos à tirania ou, de outro modo, pôr a cidade em perigo.
Portanto, a parrhesia pode ser perigosa para a própria democracia. Esse problema
parece coerente e familiar. Porém, para os gregos, sua descoberta, a descoberta da
necessária antinomia entre parrhesia – liberdade de falar – e a democracia, inaugurou
um debate muito apaixonado concernente à precisa natureza das perigosas relações que
parecem existir entre democracia, logos, liberdade e verdade.
Nós devemos ter em conta o fato de que conhecemos um lado da discussão
melhor do que o outro, pela simples razão de que a maior parte dos textos que foram
preservados desse período vem de escritores que eram mais ou menos diretamente
filiados ao partido aristocrático ou, no mínimo, desconfiados da democracia ou das
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instituições democráticas radicais. Eu gostaria de citar alguns desses textos como
exemplos dos problemas que estamos examinando.
O primeiro que gostaria de citar é um ultraconservador, ultra-aristocrático
satirista da constituição democrática de Atenas, provavelmente escrito durante a
segunda metade do século 5. Por um bom tempo essa sátira foi atribuída à Xenofonte.
Porém, atualmente, os especialistas concordam que tal atribuição não é correta, e os
classicistas anglo-americanos têm um belo apelido para esse pseudo-Xenofonte, o autor
não nomeado dessa sátira. Eles o chamam de “Velho Oligarca”. Esse texto deve vir de
um dos círculos aristocráticos ou clubes políticos que eram tão ativos em Atenas no fim
do século 5. Tais círculos foram muito influentes na revolução antidemocrática de 411
a.C., durante a Guerra do Peloponeso.
A sátira toma a forma de um paradoxal louvor ou elogio – um gênero muito
familiar aos gregos. Seu autor é apresentado como um ateniense democrata que se
debruça sobre algumas das mais óbvias imperfeições, deficiências, censuras, falhas e
etc. das instituições democráticas atenienses e da sua vida política. E ele elogia essas
imperfeições como se elas fossem qualidades com consequências muito positivas. O
texto não tem qualquer valor literário real, uma vez que o autor é mais agressivo do que
espirituoso. Mas a principal tese que compõe o corpo da maior parte das críticas às
instituições democráticas atenienses pode ser encontrada nesse texto, que é, penso eu,
significativo por seu tipo de atitude aristocrática radical.
A tese aristocrática é a seguinte. O demos, o povo, é a maioria. E uma vez que é
a maioria, o demos é também composto pelos mais vulgares e, de fato, mesmo os piores
cidadãos. Portanto, o demos não pode ser composto pelos melhores dos cidadãos.
Assim, o que é melhor para o demos não pode ser o que é melhor para a polis, para a
cidade. Com esse argumento geral como pano de fundo, o “Velho Oligarca”
ironicamente elogia as instituições democráticas atenienses. E há algumas longas
passagens caricaturando a liberdade de falar:

Pode-se dizer que o correto seria não permitir a todos falarem em pé de


igualdade, nem ter um assento no conselho, mas somente os mais inteligentes e
os melhores. Porém, neste ponto, também, eles determinam o mais
perfeitamente correto permitindo também ao povo vulgar falar. Pois se
somente a aristocracia pudesse falar e tomar parte no debate, isso seria bom
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para ela e seus pares, porém não para o proletariado. Mas, agora que qualquer
pessoa vulgar que queira falar pode vir à frente e falar, ela simplesmente
expressa o que é bom para ele e seus iguais.
Pode-se perguntar: como tal pessoa poderia ser capaz de compreender o que é
bom para ele ou para o povo? Bem, a massa compreende que a ignorância, a
vulgaridade e a simpatia desse homem são mais úteis para ela do que todos os
valores, sabedoria e antipatia dos homens distintos. Com tal ordem social, é
verdade, um estado não será capaz de se desenvolver para a própria perfeição,
mas a democracia é mais bem mantida dessa maneira. Pois o povo não quer
viver como escravo em um estado com uma constituição ideal, mas ser livre e
estar no poder. Se a constituição é ruim ou não, ele não se preocupa muito com
isso. Pois o que se pensa não é uma constituição ideal, é simplesmente a
condição para o povo estar no poder e ser livre. Se alguém procura uma
constituição ideal, verá que, em primeiro lugar, as leis são feitas pelos mais
hábeis. Além disso, a aristocracia consultará sobre os negócios do estado e
impedirá que pessoas rebeldes tenham assento no conselho, falem ou façam
parte da assembleia do povo. Mas o povo, bem, como consequência dessas
boas reformas, mergulhará fundo na escravidão.

Agora eu gostaria de passar para outro texto, que apresenta uma posição muito
mais moderada. É um texto escrito por Isócrates na metade do século 4. E Isócrates se
refere várias vezes à noção de parrhesia e ao problema da liberdade de falar na
democracia. No início de seu grande discurso, Sobre a Paz, escrito em 355 a.C.,
Isócrates contrasta a atitude do povo ateniense ao buscar conselhos para seus negócios
privados, quando consulta indivíduos razoáveis e bem educados, com a maneira que
busca conselhos quando lida com negócios públicos e atividades políticas:

[...] Quando quer que se tome conselhos acerca dos negócios privados, busca-
se como conselheiros homens que sejam superiores em inteligência, porém
quando se delibera sobre os negócios do estado, se desconfia e antipatiza com
os que têm esse caráter, e se cultiva, de fato, os oradores mais depravados que
se apresentam sobre o palanque; prefere-se, como melhores amigos do povo, os
bêbados aos que os que são sóbrios, os idiotas aos que são sábios, os que
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distribuem o dinheiro público aos que realizam serviços públicos às suas
próprias expensas. Então nós bem deveríamos é ficar surpresos que alguém
possa esperar que um estado que emprega tais conselheiros possa avançar para
o melhor.

Mas os atenienses não somente ouvem os oradores mais depravados: eles nem
ao menos desejam ouvir os oradores verdadeiramente bons, pois lhes negam a
possibilidade de serem ouvidos:

Observo [...] que vós não ouvis com igual favor os oradores que se dirigem a
vós, mas que, enquanto prestam atenção a alguns, a outros nem mesmo
suportais ouvir suas vozes. E não é surpreendente que façais isso; pois no
passado adquirirdes o hábito de tocar para fora do palanque todos os oradores,
exceto aqueles que apoiassem os vossos desejos.

E penso que isso é importante. Vê-se que a diferença entre o bom e o mau orador
não repousa primariamente no fato de que um dá bom conselho enquanto o outro, um
mau. A diferença repousa nisto: o orador depravado, aceito pelo povo, somente diz o
que o povo deseja ouvir. Por isso Isócrates chama tais oradores de “bajuladores”. O
orador honesto, ao contrário, tem a habilidade e é corajoso suficiente para opor-se ao
demos. Ele tem um papel crítico e pedagógico que requer que ele tente transformar o
desejo dos cidadãos para que eles sirvam os melhores interesses da cidade. Essa
oposição entre o desejo do povo e os melhores desejos da cidade é fundamental para a
crítica de Isócrates às instituições democráticas de Atenas. E ele conclui que, por não
ser nem mesmo possível ser ouvido em Atenas se não se papaguear o desejo do povo,
há democracia – que é uma coisa boa –, mas os únicos falantes parrhesiásticos ou
francos restantes são “oradores imprudentes” e “poetas cômicos”:

Eu sei que é perigoso opor-se à sua visão e que, embora esse seja um governo
livre, não existe “liberdade de fala” (parrhesia), exceto aquela que é desfrutada
nessa Assembleia pelos mais imprudentes oradores, que não cuidam do seu
bem-estar, e, no teatro, pelos poetas cômicos.

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Portanto, a real parrhesia, parrhesia em seu sentido positivo, no sentido crítico,
não existe onde a democracia existe.
No Aeropagítico (355), Isócrates fornece um conjunto de distinções que, de
modo similar, expressa essa ideia geral da incompatibilidade da verdadeira democracia
e a parrhesia crítica. Ele compara a velha constituição de Sólon e a de Clístenes com a
presente vida política ateniense e elogia os velhos políticos por eles terem dado à Atenas
a democracia, a liberdade, a felicidade e a igualdade perante a lei. Todas essas
características positivas da velha democracia, entretanto, ele afirma terem se pervertido
na presente democracia ateniense. Democracia se tornou a ausência de autocontrole. A
liberdade se tornou a ilegalidade. A felicidade se tornou fazer qualquer coisa que se
desejar. E a igualdade perante a lei se tornou parrhesia. Nesse texto, a parrhesia tem
somente sentido negativo e pejorativo. Então, como podem ver, em Isócrates há uma
constante avaliação positiva da democracia em geral, porém associada à asserção de que
é impossível usufruir conjuntamente da democracia e da parrhesia (compreendida em
seu sentido positivo). Ademais, ainda há a mesma desconfiança dos sentimentos,
opiniões e desejos que encontramos de forma mais radical na sátira do Velho Oligarca.
Um terceiro texto que gostaria de examinar vem da República de Platão, em que
Sócrates explica como a democracia surge e se desenvolve. Pois ele diz a Adimanto
que:

Quando o pobre vence, o resultado é a democracia. Eles matam alguns do


partido de oposição, banem outros e garantem aos outros partes iguais nos
direitos civis e no governo, com as autoridades usualmente apontadas por
sorteio.

Sócrates, então, pergunta: “Qual é a característica desse novo regime?” E diz do


povo em uma democracia:

Em primeiro lugar, eles são livres. A liberdade e a liberdade de falar


(parrhesia) são abundantes em todos os lugares. A qualquer um é permitido
fazer o que deseja [...] Assim sendo, cada um arranjará seu próprio modo de
vida para adaptar-se ao seu prazer.

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O que é interessante, nesse texto, é que Platão não censura a parrhesia por
propiciar a qualquer um a possibilidade de influenciar a cidade, inclusive aos piores
cidadãos. Para Platão, o perigo primário da parrhesia não é o de motivar decisões ruins
no governo, ou propiciar os meios para algum líder ignorante ou corrupto ganhar o
poder e se tornar tirano. O perigo primário da liberdade e da fala livre em uma
democracia é o que resulta quando qualquer um tem seu próprio modo de vida, seu
próprio estilo de vida. Pois não pode haver um logos comum, nenhuma possibilidade de
unidade, para a cidade. Seguindo o princípio de Platão de que há uma analogia entre o
modo do ser humano se comportar e o modo da cidade ser governada, entre a
organização hierárquica das faculdades de um ser humano e o modelo constitucional de
uma polis, pode-se ver muito bem que, se qualquer um na cidade se comportar apenas
como desejar, com cada pessoa seguindo sua própria opinião, sua própria vontade ou
desejo, então há na cidade tantas constituições, como várias pequenas cidades
autônomas, quantos são cidadãos fazendo quaisquer coisas que desejem. Pode-se ver
que Platão também considera a parrhesia não somente como a liberdade de falar
qualquer coisa que se deseje, mas também a relaciona com a liberdade de fazer qualquer
coisa que se deseje. É uma espécie de anarquia envolvendo a liberdade de se escolher o
próprio estilo de vida, sem limitações.
Bem, há muitas outras coisas para se dizer sobre a problematização da parrhesia
na cultura grega, mas penso que podemos observar dois aspectos principais dessa
problematização durante o século 4.
Primeiro, como fica claro no texto de Platão, por exemplo, o problema da
liberdade de fala se torna cada vez mais relacionado à escolha de existência, à escolha
do próprio modo de vida. A liberdade no uso do logos se torna cada vez mais liberdade
na escolha do bios. E, como resultado, a parrhesia é vista mais e mais como uma atitude
pessoal, uma qualidade pessoal, como uma virtude que é útil para a vida política da
cidade, no caso da parrhesia positiva ou crítica, ou perigosa para a cidade, no caso da
parrhesia negativa, pejorativa. Em Demóstenes, por exemplo, pode-se achar um
punhado de referências à parrhesia, mas a parrhesia é usualmente citada como uma
qualidade pessoal e não como um direito institucional. Demóstenes não busca e nem
tematiza as garantias institucionais da parrhesia, mas insiste no fato de que ele,
enquanto cidadão, usará a parrhesia porque ele deve audaciosamente falar a verdade
sobre os maus políticos da cidade. Ele afirma que, assim fazendo, corre grande risco,
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pois é perigoso para ele falar livremente, dado que, na assembleia, os atenienses são
relutantes para aceitar qualquer crítica.
Em segundo lugar, podemos observar outra transformação na problematização
da parrhesia: a parrhesia é cada vez mais vinculada a outro tipo de instituição política,
a saber, a monarquia. A liberdade de fala deve agora ser usada diante do rei. Porém,
como é óbvio em tal situação, a parrhesia é muito mais dependente das qualidades
pessoais tanto rei (que deve aceitar ou rejeitar o uso da parrhesia) quanto dos
conselheiros do rei. A parrhesia não é mais um direito ou privilégio institucional –
como na cidade democrática –, mas muito mais uma atitude pessoal, uma escolha de
bios. Essa transformação é evidente, por exemplo, em Aristóteles. A palavra parrhesia
raramente é usada por Aristóteles, mas ocorre em quatro ou cinco lugares. Não há,
portanto, uma análise política do conceito de parrhesia relacionado a qualquer
instituição política, pois, quando a palavra ocorre, ela está sempre relacionada à
monarquia ou a características éticas e morais pessoais. Na Constituição de Atenas,
Aristóteles dá um exemplo de parrhesia crítica positiva durante a tirania de Pisístrato.
Como vocês sabem, Aristóteles considerava que Pisístrato era um tirano humano e
benevolente, cujo reinado fora muito frutífero para Atenas. E Aristóteles fornece o
seguinte relato de como Pisístrato encontrou um pequeno proprietário, após ele ter
imposto uma taxa de dez por cento sobre toda produção:

[Pisístrato] frequentemente fez expedições em pessoa ao campo para


inspecioná-lo e resolver disputas entre os indivíduos, para que eles não
tivessem de ir à cidade, negligenciando suas quintas. Foi em uma dessas
incursões que, segundo o relato, Pisístrato teve sua aventura com o homem de
Himeto, que estava cultivando o local posteriormente conhecido como “Quinta
livre de taxa”. Ele viu um homem arando e trabalhando em um terreno muito
pedregoso. Surpreso, mandou seu ajudante perguntar o que ele colhia neste
pedaço de chão. “Dores e penas”, respondeu o homem, “e isto é o que
Pisístrato terá de seus dez por cento”. O homem falou sem saber quem era seu
inquiridor; mas Pisístrato ficou tão agradecido com a franqueza de sua fala e
com seu labor que ele garantiu-lhe a isenção de todas as taxas.

Então a parrhesia ocorre aqui em uma situação monárquica.


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A palavra também é usada por Aristóteles na Ética Nicomaqueia (livro IV,
1121b28), não para caracterizar uma prática ou instituição política, mas como um traço
do homem magnânimo, o megalopsychos. Algumas das outras características do homem
magnânimo são mais ou menos relacionadas ao caráter e atitude parrhesiástica. Por
exemplo, o megalopsychos é corajoso, porém não é alguém que gosta do perigo a ponto
ir atrás dele. Sua coragem é racional (1124b7-9). Ele prefere a aletheia à doxa, a
verdade à opinião. Ele não gosta de bajuladores. E, uma vez que despreza outro homem,
“ele fala sincera e francamente” (1124 b28). Ele usa a parrhesia para falar a verdade,
porque é capaz de reconhecer a falta dos outros. É consciente de sua diferença para com
outros homens, de sua própria superioridade. Vemos então que, para Aristóteles, a
parrhesia é tanto uma qualidade moral e ética quanto se refere à liberdade de fala ao se
dirigir a um monarca. Cada vez mais, essa característica pessoal e moral da parrhesia se
tornou mais pronunciada.

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4ª. CONFERÊNCIA: A PRÁTICA DA PARRHESIA

1. Parrhesia Socrática

Eu gostaria agora de analisar uma nova forma de parrhesia que estava


emergindo e se desenvolvendo mesmo antes de Sócrates, Platão e Aristóteles. Há, é
claro, importantes similaridades e relações análogas entre a parrhesia política que
estávamos examinando e essa nova forma de parrhesia. Mas, a despeito dessas
similaridades, várias características específicas diretamente relacionadas à figura de
Sócrates caracterizam e diferenciam essa nova Parrhesia Socrática.
Ao selecionar um testemunho sobre Sócrates como uma figura parrhesiástica,
escolhi o Laques de Platão (ou “Sobre a Coragem”), e isso por várias razões. Primeiro,
embora esse diálogo, o Laques, seja de fato curto, a palavra parrhesia aparece três vezes
(178a5, 179c1, 189a1) – o que é muito, considerando quão infrequentemente Platão usa
a palavra.
É também interessante notar que os diferentes participantes são caracterizados
por sua parrhesia no começo do diálogo. Lisímaco e Melésias, dois dos participantes,
dizem que falarão livremente o que pensam, usando a parrhesia para confessar que não
fizeram ou realizaram nada muito importante, glorioso, ou especial em suas próprias
vidas. E eles fazem essa confissão para dois cidadãos mais velhos, Laques e Nícias
(ambos generais bastante famosos), na esperança de que eles também falarão livre e
francamente – pois são suficientemente velhos, influentes e gloriosos para serem
francos e não esconder o que realmente pensam. Mas essa passagem (178a5) não é a

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principal que gostaria de citar, uma vez que emprega a parrhesia no sentido cotidiano e
não é um exemplo da parrhesia socrática.
De um ponto de vista estritamente teórico, o diálogo é um fracasso, porque
ninguém no diálogo é capaz de dar uma definição de “coragem” racional, verdadeira e
satisfatória – que é o tópico da obra. Mas, a despeito do fato de que mesmo o próprio
Sócrates não é capaz de dar tal definição, no fim do diálogo, Nícias, Laques, Lisímaco e
Melésias, todos concordam que Sócrates seria o melhor professor para seus filhos. E,
então, Lisímaco e Melésias lhe pedem para assumir esse papel. Sócrates aceita, dizendo
que todos deveriam tentar cuidar de si próprios e de seus filhos (201b4). E aqui se
encontra uma noção que, como alguns sabem, eu gosto muito: o conceito de epimeleia
heautou, o “cuidado de si”. Temos então penso eu, um movimento visível através desse
diálogo: da figura parrhesiástica de Sócrates para o problema do cuidado de si.
Contudo, antes de lermos as passagens específicas do texto que gostaria de citar,
devemos lembrar a situação no começo do diálogo. Mas, uma vez que o Laques é muito
complexo e imbricado, o farei somente breve e esquematicamente.
Dois homens idosos, Lisímaco e Melésias, estão preocupados com o tipo de
educação que deveriam dar a seus filhos. Ambos pertencem a eminentes famílias
atenienses: Lisímaco é o filho de Aristides, “o Justo”, e Melésias é o filho de Tucídides,
“o Ancião”. Mas, embora seus próprios pais fossem ilustres em suas próprias épocas,
Lisímaco e Melésias não realizaram nada de muito especial ou glorioso em suas
próprias vidas: nenhuma campanha militar importante, nenhum papel político
significativo. Usam a parrhesia para admitir isso publicamente. E eles também se
perguntam: “Como é que, de tão bons genos, de tão boas procedências, de tão nobres
famílias, ambos eram incapazes de se notabilizarem?” Claramente, como suas próprias
experiências demonstram, ter um bom berço e pertencer a uma nobre casa ateniense não
é o suficiente para dotar alguém com a aptidão e a habilidade para assumir um papel ou
uma posição proeminente na cidade. Eles imaginam que algo mais é necessário, a saber,
a educação.
Mas que tipo de educação? Quando consideramos que a data dramática do
Laques é em torno do fim do século 5, uma época em que muitos indivíduos – vários
deles se apresentando como sofistas – afirmaram que poderiam prover os jovens com
uma boa educação, podemos reconhecer aqui um problema que é comum a vários
diálogos platônicos. As técnicas educacionais que estavam sendo propostas nessa época
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normalmente lidavam com vários aspectos da educação, por exemplo, a retórica (saber
como se dirigir a um júri ou uma assembleia política), várias técnicas sofísticas e
amiúde a educação e treinamento militares. Na Atenas da época, havia também um
grande problema sendo debatido acerca da melhor forma de educar e treinar os soldados
de infantaria – que eram enormemente inferiores aos hoplitas espartanos. E todas as
preocupações políticas, sociais e institucionais com a educação, que, no contexto geral
desse diálogo, se relacionam com o problema da parrhesia. No campo político, vimos
que havia uma necessidade de que o parrhesiastes pudesse falar a verdade sobre as
instituições e decisões políticas, e o problema era saber como reconhecer tal falante da
verdade. Em sua forma básica, o mesmo problema reaparece agora no campo da
educação. Pois se a própria pessoa não é bem-educada, como pode então decidir o que
constitui uma boa educação? E se o povo deve ser educado, deve receber a verdade de
um professor competente. Mas como podemos distinguir os bons professores, falantes
da verdade, dos maus ou desnecessários?
É para serem ajudados a tomar tal decisão que Lisímaco e Melésias pedem que
Nícias e Laques testemunhem uma performance dada por Estesilao – um homem que
afirma ser um professor de hoplomachia, ou a arte de lutar com armadura pesada. Esse
professor é um atleta, técnico, ator e artista. O que significa que embora seja muito
habilidoso no manuseio de armas, ele usa sua habilidade para, de fato, lutar contra o
inimigo, mas somente para fazer dinheiro, dando performances públicas e ensinando os
jovens. O homem é um tipo de sofista das artes marciais. Contudo, após virem suas
habilidades serem demonstradas em sua performance pública, nem Lisímaco e nem
Melésias são capazes de decidir se esse tipo de habilidade na luta constituiria parte de
uma boa educação. Então eles se voltam para figuras notórias de seu tempo, Nícias e
Laques, e pedem seus conselhos (178a-181d).
Nícias é um general experiente que obteve várias vitórias no campo de batalha e
era um importante líder político. Laques também é um general respeitado, embora não
desempenhe um papel importante na política ateniense. Ambos dão suas opiniões sobre
a demonstração de Estesilao e estão em completo desacordo quanto ao valor de sua
habilidade militar. Nícias pensa que sua técnica militar é boa e que sua habilidade pode
ser capaz de prover aos jovens uma boa educação militar (181e-182d). Laques discorda
e argumenta que os espartanos – que são os melhores soldados da Grécia – nunca
recorreram a tais professores. Além disso, ele pensa que Estesilao não é um soldado,
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
uma vez que nunca obteve nenhuma vitória real em batalha (182d-184c). Por meio
dessa discordância vemos que não somente cidadãos comuns, sem quaisquer qualidades
especiais, são incapazes de decidir qual é o melhor tipo de educação, e quem é capaz de
ensinar habilidades que valham a pena aprender, mas mesmo aqueles que têm uma
longa experiência militar e política, como Nícias e Laques, não podem chegar a uma
decisão unânime.
No fim, contudo, Nícias e Laques concordam que, apesar de sua fama, seus
importantes papéis nas questões atenienses, sua idade, sua experiência, e assim por
diante, eles deveriam consultar Sócrates – que estava lá o tempo todo – para saber o que
ele pensa. E, após Sócrates lhes lembrar de que a educação ocupa-se com o cuidado da
alma (185d), Nícias explica porque ele permitirá que sua alma seja “testada” por
Sócrates, ou seja, porque ele participará do jogo parrhesiástico socrático. E essa
explicação de Nícias é, penso eu, um retrato de Sócrates como um parrhesiastes:

NÍCIAS: Parece-me que ignoras que, quem quer que entre em muito estreito
contato com Sócrates em uma discussão, e dele se aproxime cara a cara, lhe é
forçoso, ainda que tenha começado a dialogar acerca de qualquer outra coisa,
não parar, arrastado por ele no diálogo, até conseguir que dê uma explicação de
si mesmo, do modo como atualmente passa seus dias, e ainda do que haja feito
em seu passado. E uma vez que tenha sido levado a isso, Sócrates não o
deixará até que tenha posto tudo bem e suficientemente em teste. Ora, estou
acostumado com ele e sei que há de suportar tais coisas, como também que
sofrerei o mesmo tratamento. Mas me alegro, Lisímaco, por estar a conversar
com este homem, e não creio que haja perigo em ele recordar-nos os erros do
passado e do presente: de fato, creio que forçosamente está mais bem
predisposto para toda a vida aquele que não foge de tal experiência, que a
enfrenta voluntariamente e, segundo o preceito de Sólon, deseja aprender
enquanto vive e não crê que a velhice por si só trará bom senso. Para mim não
resulta em nada insólito ou desagradável expor-me às provas e ser testado por
Sócrates. Há tempos sabia que, estando Sócrates presente, nosso argumento
não poderia ser sobre os jovens, mas seria sobre nós mesmos. Como lhes digo,
da minha parte não há inconveniente em dialogar com Sócrates do modo como
ele preferir.
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O discurso de Nícias descreve o jogo parrhesiástico de Sócrates sob o ponto de
vista de alguém que é “testado”. Mas, diferentemente do parrhesiastes que se dirige ao
demos na assembleia, por exemplo, aqui temos um jogo parrhesiástico que requer uma
relação pessoal, cara a cara. Assim, o começo da citação afirma que: “quem quer que
entre em muito estreito contato com Sócrates em uma discussão e dele se aproxime cara
a cara” (187e). O interlocutor de Sócrates deve entrar em contato com ele, estabelecer
alguma proximidade, para participar do jogo parrhesiástico. Esse é o primeiro ponto.
Em Segundo lugar, nessa relação com Sócrates, o ouvinte é conduzido pelo
discurso de Sócrates. A passividade do ouvinte socrático, contudo, não é o mesmo tipo
de passividade do ouvinte da assembleia. A passividade do ouvinte do jogo
parrhesiástico político consiste em ser persuadido pelo que ele ouve. Aqui, o ouvinte é
levado pelo logos socrático a “dar um relato” – didonai logon – de si mesmo, “do modo
como atualmente passa seus dias e ainda do que haja feito em seu passado” (187e-
188a). Porque somos inclinados a ler tais textos pelos olhos da cultura cristã, acabamos
interpretando essa descrição do jogo socrático como uma prática na qual aquele que é
conduzido pelo discurso de Sócrates deve dar um relato autobiográfico de sua vida, ou
uma confissão de suas faltas. Contudo, tal interpretação olvida o real significado do
texto. Pois, quando comparamos essa passagem com descrições similares do método
socrático de exame – como na Apologia, no Alcibíades Maior, ou no Górgias, onde
também encontramos a ideia de que ser levado pelo logos de Sócrates é “dar um relato”
de si mesmo – vemos muito claramente que o que está envolvido não é uma confissão
autobiográfica. Nos retratos de Sócrates por Platão ou Xenofonte, nunca o vemos
pedindo um exame de consciência ou uma confissão dos pecados. Aqui, dar um relato
da sua própria vida, seu bios, tampouco é dar uma narrativa dos eventos históricos que
acontecerem em suas vidas, mas, de fato, demonstrar se é capaz de mostrar que há uma
relação entre o discurso racional, o logos, que é capaz de usar, e o modo que vive.
Sócrates está investigando o modo que o logos dá forma ao estilo de vida de uma
pessoa, pois ele está interessado em descobrir se há uma relação harmônica entre os
dois. Mais à frente, no mesmo diálogo, (190d-194b), por exemplo, quando Sócrates
pede a Laques que dê o motivo de sua coragem, ele não quer uma narrativa das façanhas
de Laques na Guerra do Peloponeso, mas que Laques tente expor o logos que dá

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inteligibilidade racional à sua coragem. O papel de Sócrates então é pedir o relato
racional da vida de uma pessoa.
Esse papel é caracterizado no texto como o de um basanos, ou “pedra de toque”,
que testa o grau de acordo entre a vida de uma pessoa e seu princípio de inteligibilidade
do logos: “Sócrates não o deixará até que tenha posto tudo bem e suficientemente em
teste” (188a). A palavra grega basanos refere-se à “pedra de toque”, isto é, uma pedra
preta usada para testar a legitimidade do ouro através do exame do risco deixado na
pedra quando “tocada” pelo ouro. Similarmente, o papel “basânico” de Sócrates o
permite determinar a verdadeira natureza da relação entre o logos e o bios daqueles que
entram em contato com ele.
Então, na segunda parte da citação, Nícias explica que, como resultado do exame
de Sócrates, ele se torna capaz de cuidar do modo como vive o resto de sua vida,
querendo agora viver da melhor maneira possível. E essa capacidade toma a forma de
um zelo pelos próprios aprendizado e educação, não importa a idade.
O discurso de Laques, que se segue imediatamente ao de Nícias, descreve o jogo
parrhesiástico de Sócrates sob a perspectiva de alguém que investigou Sócrates no papel
de pedra de toque. Pois o problema que surge é o de como saber como podemos estar
certos que o próprio Sócrates é um bom basanos através do teste da relação entre logos
e bios na vida do seu ouvinte.

LAQUES: Eu tenho uma posição, Nícias, quanto a discussões, ou, caso prefira,
duas, ao invés de uma. Pois deve pensar-me como um amante e ainda como um
inimigo de discussões. Porque quando escuto um homem discutindo a virtude
ou qualquer tipo de sabedoria, e ele que é verdadeiramente um homem e
orgulhoso do seu argumento, fico sobejamente deliciado. Considero o que fala
e seu discurso juntos e observo como ele ordena e harmoniza um ao outro. Tal
homem é exatamente o que tomo por “musical”. Ele sintonizou-se com a mais
perfeita harmonia, não aquela da lira ou de outro instrumento musical, mas fez
um verdadeiro acordo, em sua própria vida, entre suas palavras e suas ações,
não no estilo jônico, nem no frígio, nem no lídio, mas simplesmente no dórico,
que é a única harmonia helênica. Tal homem me faz regozijar-me com seu
discurso, e qualquer um então poderia julgar-me como um amante da
discussão. Ansiosamente aceito o que ele diz. Mas um homem que mostra o
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caráter oposto me faz sofrer, e quanto melhor ele parece falar, mais sofro.
Como resultado, nesse caso sou julgado como um inimigo da discussão. Ora,
das palavras de Sócrates ainda não experimentei, mas anteriormente, imagino,
julguei suas ações. E aí o encontrei vivendo acima de quaisquer boas palavras,
ainda que livremente ditas. Assim, se ele tem esse dom, seu desejo é o meu, e
eu ficaria muito satisfeito de ser examinado por tal homem e não me irritaria
com o aprendizado.

Como podem ver, esse discurso em parte responde à questão de como


determinar os critérios visíveis, as qualidades pessoais, que autorizam Sócrates a
assumir o papel de basamos das vidas das pessoas. A partir da informação dada no
início do Laques, sabemos que, pela data dramática do diálogo, Sócrates não era muito
conhecido, que ele não é considerado um cidadão eminente, que ele é mais jovem que
Nícias e Laques, e que não tem nenhuma competência especial no campo do
treinamento militar – com essa exceção: ele exibiu uma grande coragem na batalha de
Délio, quando Laques era o general comandante. Porque então dois generais famosos e
velhos se submeteriam ao exame socrático? Laques, que não se interessava por
discussões filosóficas ou políticas e prefere ações à palavras dos diálogos (em contraste
com Nícias), dá a resposta. Pois ele diz que há uma relação harmônica entre o que
Sócrates diz e o que faz, entre suas palavras (logoi) e suas ações (erga). Assim, o
próprio Sócrates não somente é capaz de dar um relato de sua vida, mas tal relato é
visível em seu comportamento, uma vez que não há a menor discrepância entre o que
ele diz e o que faz. Ele é um mousikosaner. Na cultura grega, em muitos dos outros
diálogos de Platão, a frase mousikosaner denota uma pessoa que é devota das Musas –
uma pessoa culta, das artes liberais. Aqui a frase se refere a alguém que exibe um tipo
de harmonia ontológica onde o logos e o bios de tal pessoa estão em um acorde
harmônico. E essa relação harmônica é também a harmonia dórica.
Como sabem, há quatro tipos de harmonias gregas: a lídia, que Platão rejeita
como muito solene; a frígia, que Platão associa com as paixões; a jônica, que é muito
suave e efeminada; e a dórica, que é corajosa.
A harmonia entre palavra e ação na vida de Sócrates é dórica e foi manifesta na
coragem que demonstrou em Délio. Esse acorde harmônico é o que distingue Sócrates
de um sofista: o sofista pode oferecer discursos muito bons e belos sobre a coragem,
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mas ele próprio não é corajoso. Esse acorde é também o motivo pelo qual Laques pode
dizer: “Encontrei-o vivendo acima de quaisquer boas palavras, ainda que livremente
ditas”. Sócrates é capaz de usar o discurso racional, eticamente valoroso, bom e belo,
mas, diferentemente do sofista, ele pode usar a parrhesia e falar livremente, porque o
que ele fala concorda exatamente com o que ele pensa, e o que ele pensa concorda
exatamente com o que ele faz. E, então, Sócrates – que é verdadeiramente livre e
corajoso – pode, portanto, funcionar como uma figura parrhesiástica. Assim como era o
caso no campo político, a figura parrhesiástica de Sócrates também revela a verdade e o
falar, é corajosa em sua vida e em seu discurso e confronta a opinião do seu ouvinte de
um modo crítico.
Mas a parrhesia socrática difere da parrhesia política de vários modos. Ela
aparece no relacionamento pessoal entre dois seres humanos e não na relação do
parrhesiastes com o demos, ou com o rei. E, em adição às relações que observamos
entre logos, verdade e coragem, com Sócrates um novo elemento emerge agora, qual
seja, o bios. O bios é o foco da parrhesia socrática. Da parte de Sócrates, ou da parte do
filósofo, a relação bios-logos é uma harmonia dórica que fundamenta o papel
parrhesiástico de Sócrates e que, ao mesmo tempo, constitui o critério visível para sua
função como basamos ou pedra de toque. Da parte do interlocutor, a relação bios-logos
é exposta quando o interlocutor dá um relato da sua vida, é uma harmonia testada
através do contato com Sócrates. Já que ele possui, em sua relação com a verdade, todas
as qualidades que precisa para expor ao interlocutor, Sócrates pode testar a relação da
existência do interlocutor com a verdade. Então o objetivo dessa atividade socrática
parrhesiástica é levar o interlocutor à escolha daquele tipo de vida (bios) que estará em
um acordo harmônico-dórico com o logos, a virtude, a coragem e a verdade.
No Íon, de Eurípides, vimos a problematização da parrhesia na forma de um
jogo entre logos, verdade e genos (nascimento), nas relações entre os deuses e os
mortais. E o papel parrhesiástico do Íon foi fundamentado numa genealogia mítica,
descendendo de Atena. No domínio das instituições políticas, a problematização da
parrhesia envolveu um jogo entre logos, verdade e nomos (lei). E o parrhesiastes
precisou expor aquelas verdades que assegurariam a salvação do bem-estar da cidade. A
parrhesia aqui era a qualidade pessoal de um conselheiro do rei. E agora, com Sócrates,
a problematização da parrhesia toma a forma de um jogo entre logos, verdade e bios
(vida), no domínio da relação de um ensino pessoal entre dois seres humanos. E a
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verdade que o discurso parrhesiástico expõe é a verdade da vida da pessoa, isto é, o tipo
de relação que se tem com a verdade: como ele se constitui a si próprio enquanto
alguém que tem que saber a verdade através da mathesis, e como essa relação com a
verdade é ontológica e eticamente manifesta em sua própria vida. A parrhesia, por sua
vez, se torna uma característica ontológica do basanos, cuja relação harmônica com a
verdade pode funcionar como pedra de toque. O objetivo do exame que Sócrates conduz
em seu papel de pedra de toque é testar a relação específica da existência de outrem com
a verdade.
No Íon de Eurípides, a parrhesia era oposta ao silêncio de Apolo; na esfera
política, a parrhesia era oposta à vontade do demos, ou àqueles que bajulam os desejos
da maioria ou do monarca. Nesse terceiro jogo socrático-filosófico, a parrhesia é oposta
à ignorância de si e aos falsos ensinamentos dos sofistas.
O papel de Sócrates como basamos aparece muito claramente no Laques. Mas
em outros textos de Platão – na Apologia, por exemplo – esse papel é apresentado como
uma missão atribuída a Sócrates por uma deidade oracular em Delfos, a saber, Apolo –
o mesmo deus que manteve silêncio no Íon. E assim como o oráculo de Apolo estava
aberto para quem desejasse consultá-lo, da mesma forma Sócrates se ofereceu a todos
como questionador. O oráculo délfico era tão enigmático e obscuro que não se poderia
entendê-lo sem saber que tipo de questão se estava fazendo e qual tipo de significado o
pronunciamento oracular poderia assumir na vida de alguém. Da mesma forma, o
discurso de Sócrates requer que se supere a ignorância de si sobre sua própria situação.
Mas, é claro, há grandes diferenças. Por exemplo, o oráculo prevê o que poderia lhe
acontecer, ao passo que a parrhesia de Sócrates significa expor o que se [e – não em
relação a eventos futuros, mas na relação presente com a verdade.
Não quero implicar que haja qualquer progresso cronológico estrito entre as
várias formas de parrhesia que observamos. Eurípides morreu em 407 a.C., e Sócrates
foi levado à morte em 399 a.C. Na cultura antiga, a continuação das ideias e dos temas é
também mais acentuada. E somos também muito limitados quanto ao número de
documentos disponíveis desse período. Então não há cronologia precisa. As formas de
parrhesia que vemos em Eurípides não geraram uma tradição muito longa. E conforme
cresciam e se desenvolviam as monarquias helenísticas, a parrhesia política cada vez
mais assumiu a forma de uma relação pessoal entre o monarca e seus conselheiros,
aproximando-se da forma socrática. Uma crescente ênfase foi dada à arte real de
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estadista e à educação moral do rei. E o tipo socrático de parrhesia teve uma longa
tradição entre os cínicos e outras escolas socráticas. Portanto, as divisões são mais
contemporâneas do que parecem, mas o destino histórico das três não é o mesmo.
Em Platão, e no que podemos saber de Sócrates através de Platão, um problema
maior consiste na tentativa de terminar como trazer a parrhesia política, que envolve o
logos, a verdade, e o nomos, de modo que coincida com a parrhesia ética, que envolve,
o logos, a verdade e o bios. Como a verdade e a virtude moral filosófica podem se
relacionar com a cidade através do nomos? Vê-se essa questão na Apologia, no Críton,
na República e nas Leis. Há um texto muito interessante em Leis, por exemplo, no qual
Platão diz que, mesmo na cidade governada por boas leis há a necessidade de alguém
que use a parrhesia para dizer aos cidadãos qual conduta moral devem observar. Platão
distingue entre os Guardiões das Leis e o parrhesiastes, que não monitora a aplicação
das leis, mas, como Sócrates, fala a verdade sobre o bem da cidade e dá conselhos a
partir de um ponto de vista ético. E, que eu saiba, é o único texto em que Platão diz que
aquele que usa a parrhesia é um tipo de figura política no campo das leis.
Na tradição cínica – que também deriva de Sócrates – a relação problemática
entre nomos e bios se torna uma oposição direta. Pois nessa tradição o filósofo cínico é
considerado como o único capaz de assumir o papel de parrhesiastes. E, como veremos
no caso de Diógenes, devemos adotar uma atitude permanentemente negativa e crítica
acerca de qualquer tipo de instituição política e para com qualquer tipo de nomos.
Da última vez que nos encontramos, analisamos alguns textos do Laques de
Platão, nos quais vimos a emergência, com Sócrates, de uma nova parrhesia
“filosófica”, muito diferente das formas prévias que havíamos examinado. No Laques,
tínhamos um jogo com cinco participantes principais. Dois deles, Lisímaco e Melésias,
eram cidadãos atenienses bem nascidos, procedentes de nobres casas e que eram
incapazes de assumir um papel parrhesiástico – pois não sabiam como educar seus
próprios filhos – e Laques e Nícias, que eram também incapazes de desempenhar o
papel de parrhesiastes. Laques e Nícias, por sua vez, foram então obrigados a apelar a
Sócrates, que aparece como a verdadeira figura parrhesiástica. Então podemos ver
nesses movimentos de transição um sucessivo deslocamento do papel parrhesiástico, do
ateniense bem nascido e líder político – que anteriormente possuía o papel – para o
filósofo, Sócrates. Tomando o Laques como nosso ponto de partida, podemos agora

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observar, na cultura greco-romana, o surgimento e desenvolvimento desse novo tipo de
parrhesia, que, penso eu, pode ser caracterizado do modo como se segue.
Primeiro, essa parrhesia é filosófica e foi, por séculos, posta em prática pelos
filósofos. De fato, uma grande parte da atividade filosófica que ocorreu na cultura
greco-romana requeria que se participasse de certos jogos parrhesiásticos. Muito
esquematicamente, penso que esse papel filosófico envolvia três tipos de atividade
parrhesiástica, todas elas relacionadas umas com as outras. Na medida em que o filósofo
tinha que descobrir e ensinar certas verdades sobre o mundo, a natureza e etc., ele ou ela
assumia um papel epistêmico. Tomando uma posição acerca da cidade, das leis, das
instituições políticas, e assim por diante, requeria, em adição, um papel político. Uma
atividade parrhesiástica também fomentava que se elaborassem questões sobre a
natureza das relações entre a verdade e o próprio estilo de vida, ou a verdade e as éticas
e estéticas do ser. A parrhesia, como aparece no campo da atividade filosófica na
cultura greco-romana, não é primordialmente um conceito ou um tema, mas uma prática
que tenta moldar as relações específicas que os indivíduos têm com eles próprios. E eu
penso que nossa própria subjetividade moral está enraizada, ao menos em parte, nessas
práticas. Mais precisamente, penso que o critério decisivo que identifica o parrhesiastes
não deve ser procurado em seu nascimento, sua cidadania, nem em sua competência
intelectual, mas na harmonia que existe entre seu logos e seu bios.
Em segundo lugar, a meta dessa nova parrhesia não é persuadir a assembleia,
mas convencer que se deve cuidar de si e dos outros. E isso significa que se deve mudar
sua vida. Esse tema da mudança de vida, da conversão, se torna muito importante do
século 4 a.C. até o começo do cristianismo. É essencial para práticas filosóficas
parrhesiásticas. É claro, a conversão não é completamente diferente da mudança de
mentalidade que um orador, usando a parrhesia, desejou implementar quando pediu aos
seus conterrâneos que rejeitassem o que previamente haviam aceitado, ou que
aceitassem o que haviam previamente recusado. Mas, na prática filosófica, a noção de
mudança de mentalidade assume um significado mais geral e expandido, uma vez que
não é mais somente uma questão de alterar uma crença ou uma opinião, mas de mudar o
estilo de vida, a relação com os outros e a relação consigo mesmo.
Em terceiro lugar, essas novas práticas parrhesiásticas implicam um conjunto
complexo de conexões entre o ser e verdade. Pois não somente essas práticas são
supostas como dotando o indivíduo com autoconhecimento, mas supõe-se que esse
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autoconhecimento, por sua vez, garanta acesso à verdade através de mais conhecimento.
O círculo implicado em saber a verdade sobre si mesmo para saber a verdade é
característico da prática parrhesiástica desde o século 4 e tem sido um dos enigmas
problemáticos do pensamento ocidental, por exemplo, para Descartes e Kant.
E um último ponto que gostaria de sublinhar sobre essa parrhesia filosófica é
que ela recorreu a numerosas técnicas bastante diferentes das técnicas do discurso
persuasivo previamente utilizadas e não é mais especialmente ligada à ágora, ou à corte
do rei, mas pode agora ser utilizada em numerosos e diversos lugares.

2. A Prática da Parrhesia

Nessa sessão e na próxima semana – no último seminário – eu gostaria de


analisar a parrhesia filosófica do ponto de vista de suas práticas. Com “prática” de
parrhesia quero dizer duas coisas: primeiro, o uso de parrhesia em tipos específicos de
relações humanas (nas quais me concentrarei nessa tarde); e, em segundo lugar, os
processos e técnicas empregados em tais relações (que será o tópico de nossa última
seção).
Por causa do tempo, e para auxiliar na clareza da apresentação, eu gostaria de
distinguir três tipos de relações humanas que são implicadas no uso desse novo tipo
filosófico de parrhesia. Mas, é claro, esse é somente um esquema geral, porque há
várias formas intermediárias.
Primeiro, a parrhesia ocorre como uma atividade na estrutura de pequenos
grupos humanos ou no contexto da vida comunitária. Em segundo lugar, a parrhesia
pode ser vista em relações humanas que ocorrem na estrutura da vida pública. E,
finalmente, a parrhesia ocorre no contexto das relações pessoais do indivíduo. Mais
especificamente, podemos dizer que a parrhesia, como uma característica da vida
comunitária, foi tida em alta conta pelos epicuristas; a parrhesia como atividade ou
demonstração pública foi um aspecto significativo do cinismo, bem como daquele tipo
de filosofia que era uma mistura de cinismo e estoicismo; e a parrhesia como um
aspecto das relações pessoais é encontrada mais frequentemente tanto no estoicismo
quanto no estoicismo mais difundido ou comum, característico de escritores como
Plutarco.

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3. Parrhesia e Vida Comunitária: Epicteto

Embora os epicuristas, com a importância que davam à amizade, enfatizassem a


vida comunitária mais do que todos os filósofos de sua época, pode-se também
encontrar alguns grupos estoicos, bem como filósofos estoicos ou estoico-cínicos, que
agiram como conselheiros morais e políticos em vários círculos e clubes aristocráticos.
Por exemplo, Musônio Rufo era conselheiro espiritual do sobrinho de Nero, Rubélio
Plauto, e de seu círculo; e o filósofo estoico-cínico Demétrio foi conselheiro de um
grupo liberal antia-aristocrático ao redor de Trásea Peto. Trásea Peto, um senador
romano, cometeu suicídio após ser condenado à morte pelo senado durante o reinado de
Nero. E Demétrio foi o gerente, eu diria, do suicídio. Assim, além da vida comunitária
epicurista, há outras formas intermediárias.
Há também o caso muito interessante de Epicteto. Epicteto foi um estoico para
quem a prática do discurso aberto e franco era também muito importante. Ele dirigiu
uma escola sobre a qual conhecemos um pouco através dos quatro volumes
sobreviventes das Diatribes de Epicteto, conforme registradas por Arriano. Sabemos,
por exemplo, que a escola de Epicteto ficava em Nicópolis, numa estrutura permanente
que capacitava aos estudantes compartilhar uma verdadeira vida comunitária. Palestras
públicas e aulas eram dadas, nas quais o público era convidado e onde os indivíduos
podiam fazer perguntas – embora às vezes tais indivíduos fossem escarnecidos e
ridicularizados pelos mestres. Sabemos também que Epicteto conduzia tanto conversas
públicas quanto entrevistas. Sua escola era um tipo de école normale para aqueles que
queriam se tornar filósofos ou conselheiros morais.
Então, quando lhes digo que a parrhesia filosófica ocorre como uma atividade
em três tipos de relacionamento, deve estar claro que as formas que escolhi são somente
exemplos-guia. As práticas de fato eram, é claro, muito mais complicadas e inter-
relacionadas.
Primeiro então os exemplos dos grupos epicuristas quanto à prática da parrhesia
na vida comunitária. Infelizmente sabemos poucas coisas sobre as comunidades
epicuristas e ainda menos sobre as práticas parrhesiásticas nessas comunidades – o que
explica a brevidade da minha exposição. Mas temos um texto intitulado Sobre o Falar
Franco, escrito por Filodemo (que estava registrando as palestras de Zenão de Sídon). O
texto não está completo, mas as partes existentes do manuscrito vêm das ruínas da
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biblioteca epicurista descoberta em Herculano perto do fim do século 19. O que foi
preservado é muito fragmentário e de fato obscuro, e devo confessar que sem alguns dos
comentários do acadêmico italiano, Marcello Gigante, eu não entenderia muito do texto
grego fragmentário.
Gostaria de sublinhar os seguintes pontos desse tratado. Primeiro, Filodemo
considera a parrhesia não como uma qualidade, uma virtude, ou uma atitude pessoal,
mas mais como uma techne, comparável tanto à arte da medicina quanto à arte da
pilotagem de um barco. Como sabem, a comparação entre medicina e navegação é
muito tradicional na cultura grega. Mas, mesmo sem essa referência à parrhesia, a
comparação da medicina com a navegação é interessante pelas duas razões seguintes.
(1) A razão pela qual a techne da navegação é similar à techne da medicina é
que, em ambos os casos, o conhecimento teórico necessário também demanda um
treinamento prático para se tornar útil. Ademais, para se colocar essas técnicas em
prática, se deve levar em conta não somente as regras gerais e princípios das artes, mas
também dados particulares que são sempre específicos, de acordo com a situação. Deve-
se considerar as circunstâncias particulares e também o que os gregos chamavam de
kairos ou momento crítico. O conceito de kairos – momento decisivo ou crucial ou
oportunidade – sempre teve um papel significativo no pensamento grego por razões
epistemológicas, morais e técnicas. O que é interessante aqui é que, uma vez que
Filodemo está agora associando a parrhesia com a navegação e a medicina, ela também
está sendo considerada um techne que lida com casos individuais, situações específicas
e a escolha do kairos ou momento decisivo. Utilizando nosso vocabulário moderno,
podemos dizer que a navegação, a medicina e a prática da parrhesia são todas “técnicas
clínicas”.
(2) Outra razão pela qual os gregos amiúde associavam a medicina e a
navegação é que, nos casos de ambas as técnicas, uma pessoa (o piloto ou o médico)
deve tomar decisões, dar ordens e instruções, exercer poder e autoridade, enquanto que
as outras – a tripulação, o paciente, o staff – devem obedecer, caso desejem que o
objetivo seja atingido. Então a navegação e a medicina são também relacionadas à
política. Pois, na política, a escolha da oportunidade, o melhor momento, também é
crucial, e se supõe que alguém seja mais competente do que outrem – e, portanto, tem o
direito de dar aos outros as ordens que devem obedecer. Na política, há técnicas

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indispensáveis que residem na raiz do estadismo, considerado como a arte de governar
pessoas.
Se menciono essa afinidade antiga entre medicina, navegação e política, é para
indicar que, com a adição das técnicas parrhesiásticas de ‘guiamento espiritual’, um
corpus de technai clínicas interrelacionadas foi constituído durante o período
helenístico. É claro, a techne da pilotagem ou da navegação tem, sobretudo, um
significado metafórico. Mas uma análise das várias relações que a cultura greco-romana
acreditou existirem entre as três atividades clínicas da medicina, da política e da prática
da parrhesia seria importante.
Vários séculos mais tarde, Gregório de Nazianzeno chamaria o guiamento
espiritual de ‘técnica das técnicas’ – ars artium, techne technon. Essa expressão é
significativa, tendo em vista que o estadismo, ou a técnica política, fora anteriormente
considerada com a techne technon ou a Arte Real. Mas, do século 4 d.C. até o século 17,
na Europa, a expressão techne technon usualmente se refere ao guiamento espiritual
como a mais significativa técnica clínica. Essa caracterização da parrhesia como uma
techne relacionada com a medicina, a pilotagem e a política é indicativa da
transformação da parrhesia em uma prática filosófica. Da arte médica de governar
pacientes e da arte real de governar a cidade e seus súditos, nos movemos para a arte
filosófica de governar-se a si mesmo e agir como um tipo de ‘guia espiritual’ para as
outras pessoas.
Um outro aspecto do texto de Filodemo concerne às referências que contém à
estrutura das comunidades epicuristas, mas os comentadores de Filodemo discordam
quanto à forma exata, à complexidade e à organização hierárquica de tais comunidades.
De Witt pensa que a hierarquia que existia era muito bem estabelecida e complexa,
enquanto que Gigante pensa que era muito mais simples. Parece que havia ao menos
duas categorias de professores e dois tipos de ensinamentos nas escolas ou grupos
epicuristas. Havia ‘aulas’ em que um professor se dirigia a um grupo de estudantes. E
havia também a instrução na forma de entrevistas pessoais, nas quais um professor dava
conselhos a membros individuais da comunidade. Enquanto os professores de status
inferior somente davam aulas, os de status superior tanto davam aulas como também
davam entrevistas pessoais. Assim, uma distinção era feita entre o ensino geral e a
instrução ou guiamento pessoal. A distinção não era uma diferença em conteúdo, como
entre temas teóricos ou práticos – especialmente tendo em vista que os estudos em
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física, cosmologia e leis naturais tinham um significado ético para os epicuristas. Nem é
uma diferença em instrução, contrastando teoria ética e sua aplicação prática. De fato, a
diferença marca uma distinção na relação pedagógica entre professor e discípulo ou
estudante. Na situação socrática, havia um procedimento que capacitava o interlocutor a
descobrir sua verdade sobre si mesmo, a relação entre seu bios com seu logos, e esse
mesmo procedimento, ao mesmo tempo, também o capacitava a obter acesso às
verdades adicionais (sobre o mundo, as ideias, a natureza da alma, e assim por diante).
Nas escolas epicuristas, contudo, há a relação pedagógica de guiamento pela qual o
mestre ajuda o discípulo a descobrir a verdade sobre si mesmo, mas também há agora,
em adição, uma forma de ensino ‘autoritário’ numa relação coletiva na qual alguém fala
a verdade a um grupo de pessoas. Esses dois tipos de ensino se tornaram uma
característica permanente da cultura ocidental. E sabemos que, nas escolas epicuristas, o
papel de ‘guia espiritual’ era mais valorizado do que o de palestrante.
Não quero concluir a discussão sobre o texto de Filodemo sem mencionar uma
prática em que se engajaram – que chamaremos de ‘confissão mútua’ em um grupo.
Alguns dos fragmentos indicam que havia confissões em grupo ou encontros em que
cada um dos membros da comunidade expunha seus pensamentos, faltas, maus
comportamentos, e assim por diante. Sabemos muito pouco sobre tais encontros, mas,
se referindo a tal prática, Filodemo usa uma expressão interessante. Ele fala dessa
prática como ‘a salvação pelo outro’ – to di allelon sozesthai. A palavra sozesthai –
salvar a si próprio – na tradição epicurista significa ganhar acesso a uma vida boa, bela
e feliz. Não se refere a qualquer tipo de vida após a morte ou julgamento divino. Na
salvação de si próprio, outros membros da comunidade epicurista (O jardim) tinham um
papel decisivo a desempenhar, como agentes necessários que capacitavam a descoberta
da verdade sobre si mesmo e na ajuda da obtenção do acesso a uma vida feliz. Por isso a
ênfase muito importante quanto à amizade nos grupos epicuristas.

4. Parrhesia e Vida Pública: os Cínicos

Agora eu gostaria de passar para a prática da parrhesia na vida pública através


do exemplo dos filósofos cínicos. No caso das comunidades epicuristas, sabemos muito
pouco sobre seu estilo de vida, mas temos alguma ideia sobre sua doutrina conforme
expressa em vários textos. Com os cínicos, a situação é exatamente o contrário, pois
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sabemos muito pouco sobre a doutrina cínica – mesmo se houve algo como uma
doutrina explícita. Mas possuímos numerosos testemunhos quanto ao modo cínico de
vida. E não há nada de surpreendente quanto a esse estado de coisas, pois, embora os
filósofos cínicos tenham, assim como outros filósofos, escrito livros, eles estavam muito
mais interessados em escolher e praticar um determinado modo de vida.
Um problema histórico acerca da origem do cinismo é que a maioria dos cínicos
do século 1 a.C. em diante se referem tanto a Diógenes quanto a Antístenes como
fundadores da filosofia cínica e, através desses dois fundadores do cinismo, eles se
relacionam aos ensinamentos de Sócrates. De acordo com Farrand Sayre, contudo, a
seita cínica apareceu somente no século 2 a.C., ou dois séculos após a morte de
Sócrates. Devemos ser um pouco céticos quanto à explicação tradicional dada acerca da
origem da seita cínica – uma explicação que foi dada para dar conta de vários outros
fenômenos: que o cinismo é uma forma negativa de individualismo agressivo que surge
diante do colapso das estruturas políticas do mundo antigo. Uma consideração mais
interessante é feita por Sayre, que explica a aparição do cinismo na cena filosófica grega
como uma consequência da expansão das conquistas do império macedônico. Mais
especificamente, ele nota que, com as conquistas de Alexandre, vários filósofos
indianos – especialmente os ensinamentos monásticos e ascéticos de seitas indianas
como os gimnosofistas – se tornaram mais familiares aos gregos.
Não obstante o que podemos determinar quanto às origens do cinismo, é fato
que os cínicos eram muito numerosos e influentes do fim do século 1 a.C. ao século 4
d.C. Assim, em 165 d.C., Luciano – que não gostava dos cínicos – escreve: “a cidade
está enxameada desses vermes, particularmente aqueles que professam as máximas de
Diógenes, Antístenes e Crates.” Parece, de fato, que meio-cínicos eram tão numerosos
que o imperador Juliano, em sua tentativa de reviver a cultura clássica grega, escreveu
uma sátira contra eles, escarnecendo sua ignorância, sua grosseria e os retratando como
um perigo para o império e para a cultura greco-romana. Uma das razões pelas quais
Juliano tratou os cínicos tão severamente se deve à sua semelhança geral com os
primeiros cristãos. E algumas das semelhanças devem ter sido mais do que mera
semelhança superficial. Por exemplo, Peregrino (um cínico bastante conhecido no fim
do século 2 d.C.) era considerado como um tipo de santo pelos seus seguidores cínicos,
especialmente por aqueles que consideravam sua morte como uma emulação heroica da
morte de Héracles. Para demonstrar a sua indiferença cínica para com a morte,
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Peregrino cometeu suicídio, cremando-se a si mesmo imediatamente depois dos jogos
olímpicos de 167 d.C. Luciano, que testemunhou o evento, dá um relato satírico
irrisório. Juliano também estava desapontado que os cínicos não fossem capazes de
representar a cultura greco-romana, pois ele esperava que o cinismo fosse uma espécie
de movimento filosófico popular que competisse com o cristianismo.
O alto valor que os cínicos atribuíam ao modo de vida de alguém não significa
que não tinham interesse pela filosofia teórica, mas reflete seu ponto de vista de que a
maneira pela qual se vive era a pedra de toque da sua relação com a verdade – como
vimos também ser o caso da tradição socrática. A conclusão que extraíram dessa ideia
socrática, contudo, era que, para proclamar as verdades que aceitavam, de modo que se
tornasse acessível a todos, eles pensavam que seus ensinamentos tinham que consistir
em um modo de vida muito público, visível, espetacular, provocativo e, por vezes,
escandaloso. Os cínicos, assim, ensinavam através de exemplos e explicações
associados a eles. Eles queriam que suas próprias vidas fossem um brasão de verdades
essenciais que lhes serviriam como linhas de conduta ou como exemplos para os outros
seguirem. Mas não há nada nessa ênfase cínica na filosofia como arte da vida que seja
alheio à filosofia grega. Então, mesmo se aceitarmos a hipótese de Sayre sobre a
influência da filosofia indiana sobre a doutrina e a prática cínicas, devemos reconhecer
que a atitude cínica é, em sua forma básica, somente uma versão extremamente radical
da concepção grega da relação entre o modo de vida de alguém e o conhecimento da
verdade. A ideia cínica de que uma pessoa não é nada além de sua relação com a
verdade, e que essa relação com a verdade toma forma na sua própria vida – isso é
completamente grego.
Nas tradições platônica, aristotélica ou estoica, os filósofos se remetiam
principalmente a uma doutrina, a um texto, ou, pelo menos, a alguns princípios teóricos
para a sua filosofia. Na tradição epicurista, os seguidores de Epicuro se referiam tanto a
uma doutrina quanto também ao exemplo pessoal disposto por Epicuro – que todo
Epicurista tentava imitar. Epicuro deu origem à doutrina e era também uma
personificação dela. Mas agora, na tradição cínica, as principais referências à filosofia
não são textos ou doutrinas, mas exemplos vivos. Os exemplos pessoais eram também
importantes em outras escolas filosóficas, mas, no movimento cínico, – onde não havia
textos estabelecidos, nenhuma doutrina lançada reconhecível – a referência era sempre
feita a determinadas personalidades reais ou míticas que eram tomadas como as fontes
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do cinismo como um modo de vida. Tais personalidades eram o ponto de partida para a
reflexão e comentário cínicos. Os personagens míticos incluíam Héracles (Hércules),
Odisseu (Ulisses), e Diógenes. Diógenes era uma figura verdadeira, histórica, mas sua
vida se tornou tão lendária que tornou-se uma espécie de mito, no qual anedotas,
escândalos e etc. foram adicionados à sua vida histórica. Sobre sua vida real, não
sabemos muito, mas está claro que ele se tornou uma espécie de herói filosófico. Platão,
Aristóteles, Zenão de Cítio e etc. eram autores e autoridades filosóficas, mas não eram
considerados heróis. Epicuro foi tanto um autor filosófico quanto tratado por seus
seguidores como um tipo de herói. Mas Diógenes era principalmente uma figura
heroica. A ideia de que uma vida filosófica deve ser exemplar e heroica é importante
para se entender a relação do cinismo com o cristianismo, bem como para entender a
parrhesia cínica como uma atividade pública. Isso nos leva à parrhesia cínica. Os
principais tipos de práticas parrhesiásticas utilizadas pelos cínicos eram: (1) a pregação
crítica; (2) o comportamento escandaloso; e (3) o que chamarei de “diálogo
provocativo”.

a. A pregação crítica

Primeiro, a pregação crítica dos cínicos. A pregação é uma forma de discurso


contínuo. E, como sabem, muitos dos filósofos antigos – especialmente os estoicos –
ocasionalmente davam discursos em que apresentavam suas doutrinas. Usualmente,
contudo, eles palestravam diante de uma audiência de fato pequena. Os cínicos, por
outro lado, rejeitavam esse tipo de exclusão elitista e preferiam dirigir-se à grande
massa. Por exemplo, gostavam de falar em um teatro, ou um lugar onde as pessoas onde
as pessoas se reuniam para uma festa, um evento religioso, uma competição atlética, etc.
Eles às vezes se levantavam no meio da audiência do teatro e davam um discurso. Essa
pregação pública não era inovação própria deles, pois temos testemunhos de práticas
similares tão recuadas quanto no século 5 a.C. Alguns dos sofistas que vemos nos
diálogos de Platão, por exemplo, também se envolviam, em alguma medida, em
pregações. Contudo, a pregação cínica tinha suas características próprias específicas e é
historicamente significativa, uma vez que possibilitou que temas filosóficos sobre o
modo de vida de alguém se tornassem populares, isto é, chamou a atenção de pessoas
que estavam fora da filosofia. Dessa perspectiva, a pregação cínica sobre a liberdade, a
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renúncia à luxúria, críticas cínicas às instituições políticas e aos códigos morais
existentes, e assim por diante, também abriram caminho para alguns temas cristãos. Mas
os prosélitos cristãos não somente falavam sobre temas que eram amiúde similares aos
dos cínicos: eles também tomaram a prática da pregação.
Pregar é ainda uma das principais formas de se falar a verdade na nossa
sociedade e envolve a ideia de que a verdade deve ser contada e ensinada não somente
aos melhores membros da sociedade, ou a um grupo exclusivo, mas a todos.
Há, contudo, muito pouca doutrina positiva na pregação cínica: nenhuma
afirmação direta sobre o bem ou o mal. Ao invés disso, os cínicos se referem à liberdade
(eleutheria) e à autossuficiência (autarkeia) como os critérios básicos pelos quais se
acessa um tipo de comportamento ou modo de vida. Para os cínicos, a principal
condição para a felicidade humana é a autarkeia, a autossuficiência ou independência,
pela qual o que se precisa ter ou que se decide fazer é independente de tudo, a não ser de
si mesmo. Como uma consequência – uma vez que os cínicos tinham atitudes as mais
radicais – preferiam um estilo de vida completamente natural. Supunha-se que uma vida
natural eliminasse todas as dependências introduzidas pela cultura, pela sociedade, a
civilização, a opinião, e assim por diante. Consequentemente, a maioria de suas
pregações parece ter sido dirigidas contra as instituições sociais, as arbitrariedades das
regras ou das leis e qualquer tipo de estilo de vida que era dependente de tais
instituições ou leis. Em suma, sua pregação era contra todas as instituições sociais, na
medida em que tais instituições prejudicavam a liberdade e a independência.

b. Comportamento escandaloso

A parrhesia cínica também recorria ao comportamento escandaloso, ou atitudes


que questionavam hábitos coletivos, opiniões, padrões de decência, regras
institucionais, e assim por diante. Vários procedimentos eram utilizados. Um deles era a
inversão dos papéis, como se pode ver no Quarto Discurso de Díon Crisóstomo, no qual
o famoso encontro entre Diógenes e Alexandre é descrito. Esse encontro, que era
constantemente referido pelos cínicos, não ocorre na privacidade da corte de Alexandre,
mas na rua, ao ar livre. O rei se coloca diante de Diógenes enquanto este estava sentado
em seu barril. Diógenes ordena que Alexandre dê um passo fora da luz, de modo que
possa se aquecer ao sol. Ordenar Alexandre a sair de modo que a luz do sol possa atingir
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Diógenes é uma afirmação da relação natural e direta que o filósofo tinha com o sol, em
contraste com a genealogia mítica através da qual o rei, como descendente de um deus,
supostamente personificava o sol.
Os cínicos também empregavam a técnica de deslocar ou transportar uma regra
de um domínio no qual era aceita para um domínio no qual não era para demonstrar
quão arbitrária a regra era. Uma vez, durante as competições atléticas e corridas de
cavalos do festival ístmico, Diógenes – que estava chateando todo mundo com suas
colocações francas – pegou uma coroa de pinho e a colocou em sua cabeça, como se
tivesse sido vitorioso na competição atlética. E os magistrados ficaram muito felizes
com seu gesto porque pensaram que seria uma boa ocasião para puni-lo, para excluí-lo,
para se livrarem dele. Mas ele explicou que colocou a coroa em sua cabeça porque havia
ganho uma vitória muito mais difícil contra a pobreza, o exílio, o desejo e seus próprios
vícios do que aquela que os atletas que eram vitoriosos em luta, corrida e arremesso de
disco. E depois, durante os jogos, ele viu dois cavalos brigando e se chutando
mutuamente, até que um deles fugiu. Então Diógenes foi e colocou uma coroa na cabeça
do cavalo que se manteve em seu lugar. Essas duas exposições simétricas tinham o
efeito de levantar a questão: “O que se está realmente fazendo quando se premia alguém
nos jogos ístmicos?” Pois se a coroa é dada como prêmio a alguém como uma vitória
moral, então Diógenes merece uma coroa. Mas se é somente uma questão de força física
superior, então não há razão pela qual ao cavalo não pudesse ser dada uma coroa.
A parrhesia cínica, em seus aspectos escandalosos, também utilizava a prática
de juntar duas regras de comportamento que pareciam contraditórias e remotas uma da
outra. Por exemplo, quanto o problema das necessidades corporais. Alguém come. Não
há escândalo em comer, então se pode comer em publico (embora, para os gregos, isso
não seja tão óbvio e Diógenes por vezes foi reprovado por comer na ágora). Uma vez
que Diógenes come na ágora, ele pensava que não havia razão pela qual não deveria
também se masturbar na ágora, pois em ambos os casos ele está satisfazendo uma
necessidade corporal (somando que “ele desejava que fosse fácil banir a fome
esfregando a barriga”). Bem, não tentarei dissimular a sem-vergonhice (anaideia) dos
cínicos como uma prática escandalosa ou técnica.
Como sabem, a palavra “cínico” vem da palavra grega que significa “como um
cão” (kynikoi), e Diógenes era chamado de “o cão”. De fato, a primeira e única
referência contemporânea a Diógenes é encontrada na Retórica de Aristóteles, na qual
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Aristóteles nem mesmo menciona o nome “Diógenes”, mas somente o chama: “o cão”.
Os nobres filósofos da Grécia, que usualmente pertenciam ao grupo da elite, quase
sempre desconsideravam os cínicos.

c. Diálogo provocativo

Os cínicos também usavam outra técnica parrhesiástica, qual seja, o “diálogo


provocativo”. Para lhes dar um exemplo mais preciso desse tipo de diálogo – que deriva
da parrhesia socrática – escolhi uma passagem do Quarto Discurso Sobre a Realeza, de
Díon Crisóstomo de Prusa (ca. 40-110 d.C.).
Todos sabem quem é Díon Crisóstomo? Bem, é um cara muito interessante da
última metade do século 1 e do começo do século 2 de nossa era. Nasceu em Prusa, na
Ásia Menor, de uma rica família romana que desempenhou um papel proeminente na
vida da cidade. A família de Díon era típica de provinciais notáveis, afluente que
produziu muitos dos escritores, oficiais, generais e mesmo imperadores do império
romano. Ele chegou em Roma possivelmente como um professor de retórica, mas há
algumas controvérsias acerca disso. Um acadêmico americano, C.P. Jones, escreveu um
livro muito interessante sobre Díon Crisóstomo que descreve a vida social de um
intelectual no império romano na época de Díon. Em Roma, Díon Crisóstomo se tornou
íntimo de Musônio Rufo, o filósofo estoico e, possivelmente através dele, se envolveu
nos círculos liberais, geralmente opostos ao poder tirânico pessoal. Foi
subsequentemente exilado por Domiciano – que não gostava de seus pontos de vista – e
assim começou uma vida errante em que adotou os costumes e atitudes dos cínicos por
vários anos. Quando finalmente recebeu autorização para que retornasse a Roma, após o
assassinato de Domiciano, ele começou uma nova carreira. Sua fortuna anterior
retornou, e ele se tornou um professor rico e famoso. Por um tempo, contudo, teve um
estilo de vida, uma atitude, os hábitos e os pontos de vista filosóficos de um filósofo
cínico. Mas devemos ter em mente o fato de que Díon Crisóstomo não era um cínico
“puro” e, talvez, com seu pano de fundo intelectual, sua representação do jogo
parrhesiástico cínico estivesse em um contato mais próximo com a tradição socrática do
que muitas das práticas cínicas de seu tempo.
No Quarto Discurso de Díon Crisóstomo eu penso que se pode encontrar todas
as três formas de parrhesia cínica. O fim do Discurso é um tipo de pregação, e através
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dele há referências ao comportamento escandaloso de Diógenes e exemplos ilustrando o
diálogo provocativo entre Diógenes e Alexandre. O tópico do Discurso é o famoso
encontro entre Diógenes e Alexandre, o grande, que de fato ocorreu em Corinto. O
Discurso começa com os pensamentos de Díon acerca desse encontro (1-14), então um
diálogo fictício segue retratando a natureza da conversa entre Diógenes e Alexandre
(15-81) e o Discurso termina com uma longa discussão contínua – ficticiamente narrada
por Diógenes – acerca de três tipos de falta e estilos de vida autoilusórios (82-139).
No começo do Discurso, Díon critica aqueles que apresentam o encontro de
Diógenes e Alexandre como um encontro entre iguais: um homem famoso por sua
liderança e vitórias militares, o outro famoso por seu estilo de vida livre e
autossuficiente e sua virtude moral austera e naturalística. Díon não quer que as pessoas
apreciem Alexandre somente porque, como rei poderoso, não desprezou um cara pobre
como Diógenes. Ele insiste que Alexandre de fato se sentiu inferior a Diógenes e ficou
também com um pouco de inveja de sua reputação, pois, diferentemente de Alexandre,
que queria conquistar o mundo, Diógenes não precisava de nada para fazer o que
quisesse:

O próprio (Alexandre) precisava de sua falange macedônica, sua cavalaria


tessália, trácios, peônios e tantos outros se fosse para onde quisesse e tivesse o
que desejasse, mas Diógenes ia em perfeita segurança pela noite, assim como
durante o dia, para qualquer lugar que quisesse ir. Novamente, ele próprio
requeria enormes somas de ouro e prata para conduzir qualquer um dos seus
projetos e, o que é mais, se esperasse manter os macedônicos e outros gregos
submissos, deveria de tempos em tempos favorecer seus governantes e a
população geral através de palavras e presentes; ao passo que Diógenes não
persuadiu nenhum homem através de bajulação, mas a todos disse a verdade e,
mesmo que não possuísse uma única dracma, suas tarefas sucediam conforme
ele queria, não falhou em nada que fora posto diante dele, foi o único homem
que viveu a vida que considerava a melhor e mais feliz e não aceitaria o trono
de Alexandre ou a riqueza dos medos e persas em troca de sua própria pobreza.

Então está claro que Diógenes aparece aqui como o mestre da verdade, e, desse
ponto de vista, Alexandre tanto é inferior quanto tem conhecimento da sua
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
inferioridade. Mas embora Alexandre tivesse alguns vícios de caráter e faltas, não é um
mau rei e escolhe Diógenes para participar do jogo parrhesiástico:

Então o rei veio até Diógenes e, quando se sentou lá, o cumprimentou,


enquanto o outro, com um brilho terrível como o de um leão, o ordenou que
desse um passo um pouco para o lado, pois a Diógenes sucedia que se aquecia
ao sol. Ora, Alexandre estava encantado com a coragem e a compostura do
homem, por não ter sido intimidado em sua presença. Pois isso é natural aos
corajosos que amam a coragem, enquanto os covardes os veem com receio e os
odeiam como inimigos, mas acolhem os inferiores e gostam deles. E então,
para a primeira classe, a verdade e a franqueza (parrhesia) são as coisas mais
agradáveis no mundo, para os outros a bajulação e o engano. O último
empresta um ouvido bem-disposto àqueles que, por meio do discurso, buscam
o prazer; o primeiro, àqueles que estimam a verdade.

O jogo parrhesiástico cínico que começa não é, em alguns sentidos, diferente do


diálogo socrático, uma vez que há uma troca de perguntas e respostas. Mas há pelo
menos duas diferenças. Primeiro, no jogo parrhesiástico cínico é Alexandre quem
pergunta, e Diógenes, o filósofo, que responde – o que é o inverso do diálogo socrático.
Em segundo lugar, enquanto Sócrates joga com a ignorância de seu interlocutor,
Diógenes quer ferir o orgulho de Alexandre. Por exemplo, no começo do colóquio,
Diógenes chama Alexandre de bastardo (181) e lhe diz que alguém que afirma ser um
rei não é muito diferente de uma criança que, após ter vencido um jogo, põe uma coroa
em sua cabeça e declara que é rei (47-49). É claro, nada disso é agradável de ser ouvido
por Alexandre. Mas esse é o jogo de Diógenes: atingir o orgulho do seu interlocutor, o
forçando a reconhecer que ele não é o que ele afirma ser, o que é algo muito diferente
da tentativa socrática de demonstrar que se é ignorante do que se afirma saber. Nos
diálogos socráticos, se vê algumas vezes que o orgulho de alguém foi ferido quando
esse alguém foi levado a reconhecer que não sabe o que afirma saber. Por exemplo,
quando Cálicles é levado a uma conscientização de sua ignorância, ele renuncia a toda
discussão porque seu orgulho foi ferido. Mas esse é somente um efeito colateral, o
principal alvo da ironia socrática era esse: demonstrar que se é ignorante da sua própria

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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
ignorância. No caso de Diógenes, contudo, o orgulho é o alvo principal, e o jogo da
ignorância/conhecimento é um efeito colateral.
Desses ataques ao orgulho do interlocutor, vê-se que o interlocutor é levado ao
limite do primeiro contrato parrhesiástico, a saber, concordar em participar do jogo, em
escolher engajar-se na discussão. Alexandre quer se engajar numa discussão com
Diógenes, aceitar sua insolência e insultos, mas há um limite. E sempre que Alexandre
se sente insultado por Diógenes, fica nervoso e perto de desistir e mesmo de agredir
Diógenes. Então vejam que o jogo parrhesiástico cínico decorre no limite do contrato
parrhesiástico. Ele faz fronteira com a transgressão porque o parrhesiastes pode ter feito
muitas observações insultuosas. Aqui está um exemplo desse jogo no limite do acordo
parrhesiástico de engajamento na discussão:

[...] [Diógenes] foi ao rei e disse que ele nem mesmo possuía o distintivo da
realeza [...] “E que distintivo é esse?” perguntou Alexandre. “É o distintivo das
abelhas”, replicou ele, “que o rei traja. Nunca ouviste que há um rei entre as
abelhas, tão naturalmente feito que não ocupa cargo por virtude ou pelo que
pessoas, como tu, que traçam suas descendências a partir de Héracles chamam
de herança? “O que é esse distintivo?”, perguntou Alexandre. “Nunca ouviste
os fazendeiros dizerem”, perguntou o outro, “que é a única abelha que não tem
ferrão, uma vez que não precisa de arma contra ninguém? Pois nenhuma outra
abelha desafiará seu direito de ser rei ou lutará contra ela enquanto ela tiver
esse distintivo. Creio, contudo, que não somente andas completamente armado,
mas que mesmo dormes assim. Não sabes”, continuou ele, “que é para um
homem um sinal de medo se ele anda armado? E que nenhum homem que tem
medo deveria ter mesmo a chance de se tornar rei mais do que um escravo.”

Os raciocínios de Diógenes são: se alguém porta armas, tem medo. Ninguém que
tem medo pode ser um rei. Então, uma vez que Alexandre porta armas, não pode ser um
rei real. E, é claro, Alexandre não está muito feliz com sua lógica. E Díon continua: “A
essas palavras Alexandre chegou perto de arremessar sua lança.” Esse gesto, é claro,
seria a ruptura, a transgressão do jogo parrhesiástico. Quando o diálogo chega ao seu
ponto crucial, há duas possibilidades disponíveis para Diógenes trazer Alexandre de
volta ao jogo. Um meio é o seguinte. Diógenes diz, com efeito, “Tudo bem. Eu sei que
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te sentes ultrajado e que também és livre. Tens tanto a habilidade quanto a sanção legal
para me matar. Mas serás corajoso o suficiente para ouvir de mim a verdade ou serás
um covarde tal que me matará?’ E, por exemplo, após Diógenes ter insultado
Alexandre, num ponto do diálogo ele lhe diz:

“[...] Em vista do que eu digo sentes raiva e te empinas [...] e me achas o maior
canalha e me calunias para o mundo e, se for o teu prazer, traspassa-me com
tua lança, pois sou o único homem com quem vais saber a verdade, e não vais
aprendê-la com mais ninguém. Pois todos são menos honestos do que eu sou e
mais servis”.

Diógenes assim voluntariamente irrita Alexandre e então diz: “Bem, podes me


matar, mas se o fizeres, ninguém mais te dirá a verdade”. E aí há uma mudança, um
novo contrato parrhesiástico é assinado, com um novo limite imposto por Diógenes: ou
me matas ou sabes a verdade. Esse tipo corajoso de ‘chantagem’ do interlocutor em
nome da verdade causa uma impressão positiva sobre Alexandre: “Então Alexandre
maravilhou-se diante da coragem e do destemor do homem” (76). Então Alexandre
decide permanecer no jogo, e um novo acordo é alcançado.
Outro meio que Diógenes emprega para trazer Alexandre de volta ao jogo é mais
sutil do que o desafio anterior: Diógenes também trapaceia. Sua trapaça é diferente da
ironia socrática, pois, como devem saber, na ironia socrática, Sócrates finge ser tão
ignorante quanto seu interlocutor, de modo que seu interlocutor não fique envergonhado
ao expor sua ignorância e assim não responda às questões de Sócrates. Esse era pelo
menos o princípio da ironia socrática. A trapaça de Diógenes é diferente, pois, no
momento em que seu interlocutor está perto de terminar a mudança, Diógenes diz algo
que seu interlocutor acredita ser complementar. Por exemplo, após Diógenes chamar
Alexandre de bastardo – o que não foi bem recebido por Alexandre – Diógenes lhe diz:

“[...] Não foi Olímpia quem disse que Felipe não é teu pai, como de fato
ocorre, mas um dragão ou Ammon ou algum deus, ou semideus ou animal
selvagem? E nesse caso certamente serias um bastardo.”

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E então Alexandre riu e ficou satisfeito como nunca antes, pensando que
Diógenes, longe de estar sendo rude, era, dos homens, o que mais tinha tato e o único
que realmente sabia como retribuir um elogio.
Enquanto o diálogo socrático traça um caminho intrincado e sinuoso de um
entendimento ignorante para o conhecimento da ignorância, o diálogo cínico é muito
mais como uma luta, uma batalha, ou uma guerra, com picos de grande agressividade e
momentos de pacífica calma – trocas pacíficas que, é claro, são armadilhas adicionais
para o interlocutor. No Quarto Discurso, Díon Crisóstomo explica a razão por trás dessa
estratégia de misturar agressividade e doçura. Diógenes pergunta a Alexandre:

“Não ouviste o mito líbio?” E o rei respondeu que não. Então Diógenes lhe
disse, com entusiasmo e encanto, porque queria deixá-lo de bom humor, assim
como as babás, após terem dado á criança uma surra, lhes contam uma estória
para confortá-las e agradá-las.

E, um pouco mais à frente, Díon acrescenta:

Quando Diógenes percebeu que Alexandre estava muito excitado e com a


mente tensa com a expectativa, ele brincou com ele e puxou-o na esperança de
que de algum modo ele se movesse de seu orgulho e sede por glória e fosse
capaz de ficar um pouco sóbrio. Pois ele notou que, em um momento, ele fica
deslumbrado e, em outro, aflito diante da mesma coisa, de modo que sua alma
estava perturbada como o clima nos solstícios quando tanto a chuva quanto a
luz do sol vêm da mesma nuvem.

O encanto de Diógenes, contudo, é somente um meio de avançar o jogo e de


preparar o caminho para adicionais trocas agressivas. Assim, após Diógenes agradar
Alexandre com suas observações sobre sua genealogia ‘bastarda’ e considerar a
possibilidade de que Alexandre deve ser o filho de Zeus, ele vai mais além: ele diz a
Alexandre que, quando Zeus tem um filho, dá a seu filho marcas de seu nascimento
divino. É claro, Alexandre pensa que possui tais marcas. Alexandre então pergunta a
Diógenes como se pode ser um bom rei. E a resposta de Diógenes é um puro retrato
moral da realeza:
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Ninguém pode ser um mau rei mais do que pode ser um bom ou mau homem,
pois o rei é o melhor entre os homens, uma vez que é o mais bravo, reto e
humano, e não pode ser superado por qualquer armadilha ou apetite. Ou pensas
que um homem é um condutor de carruagem se não pode dirigir, ou que é um
piloto se é ignorante da direção, ou um médico se não sabe como curar? Isso é
impossível, embora todos os gregos e bárbaros aclamem-no como tal e o
carreguem com diademas, cetros e tiaras, assim como coleiras são postas em
crianças perdidas para que sejam reconhecidas. Portanto, assim como não se
pode pilotar exceto da maneira que fazem os pilotos, da mesma forma,
ninguém pode ser rei exceto de uma maneira real.

Vemos aqui a analogia do estadismo com a navegação e a medicina que notamos


anteriormente. Como “filho de Zeus”, Alexandre pensa que tem as marcas ou sinais que
demonstram que ele é um rei com um nascimento divino. Mas Diógenes demonstra a
Alexandre que o verdadeiro caráter real não está ligado ao status especial, nascimento,
poder, e assim por diante. De fato, o único modo de ser um verdadeiro rei é se
comportar como um. E quando Alexandre pergunta como deve aprender essa arte de
reinar, Diógenes lhe diz que não pode ser ensinada, pois se é nobre por natureza (26-
31).
Aqui o jogo atinge um ponto que Alexandre não se torna consciente da sua falta
de conhecimento, como em um diálogo socrático. Ele descobre, ao invés disso, que ele
não é de modo algum como pensava que fosse – a saber, um rei por nascimento real,
com marcas de seu status divino, ou rei por causa do seu poder superior, e assim por
diante. Ele é levado a um ponto em que Diógenes lhe diz que o único modo de ser um
verdadeiro rei é adotar o mesmo tipo de ethos que o filósofo cínico. E nesse ponto da
troca não há nada mais para Alexandre dizer.
No caso do diálogo socrático, também por vezes ocorre que, quando a pessoa
que Sócrates estava questionando não sabe mais o que dizer, Sócrates resume o discurso
apresentando uma tese positiva, e então o diálogo termina. No texto de Díon
Crisóstomo, Diógenes começa um discurso contínuo, contudo, sua discussão não
apresenta a verdade de uma tese positiva, mas se contenta em dar uma descrição precisa
de três modos falhos de vida ligados ao caráter real. O primeiro é devotado à riqueza, o
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segundo ao prazer físico, e o terceiro à glória e ao poder político. E esses três estilos de
vida são personificados por três daimones ou espíritos.
O conceito de daimon era popular na cultura grega e também se tornou um
conceito filosófico – em Plutarco, por exemplo. A luta contra maus daimones no
ascetismo cristão tem precursores na tradição cínica. Aliás, o conceito de “demônio” foi
elaborado em um excelente artigo do 'Dictionnaire de Spiritualite' (F.Vandenbrouke,
1957, vol. 3).
Diógenes dá uma indicação dos três daimones que Alexandre deve lutar contra
por toda sua vida e que constituem o alvo de uma permanente “batalha spiritual” –
combat spirituel. É claro, essa frase não ocorre no texto de Díon, pois aqui não é um
conteúdo específico e importante, mas a ideia de uma prática parrhesiástica que capacita
a lutar uma guerra espiritual dentro de si mesmo.
E eu penso que podemos também ver, no encontro agressivo entre Alexandre e
Diógenes, uma batalha ocorrendo entre dois tipos de poder: o poder político e o poder
da verdade. Nessa batalha, o parrhesiastes aceita e confronta um perigo permanente:
Diógenes expõe-se ao poder de Alexandre do começo ao fim do Discurso. E o principal
efeito dessa batalha parrhesiástica com o poder não é trazer o interlocutor a uma nova
verdade, ou a um novo nível de autoconhecimento, é levar o interlocutor a internalizar
essa batalha parrhesiástica – a lutar dentro de si mesmo contra suas próprias faltas e ser
consigo mesmo do mesmo modo como Diógenes fora com ele.

5. Parrhesia e Relações Pessoais: Plutarco e Galeno

Eu gostaria de analisar o jogo parrhesiástico na estrutura das relações pessoais,


selecionando alguns exemplos de Plutarco e Galeno que ilustram, penso eu, alguns dos
problemas técnicos que podem surgir.
Em Plutarco, há um texto que é explicitamente devotado ao problema da
parrhesia. Dirigindo-se a determinados aspectos do problema parrhesiástico, Plutarco
tenta responder a questão: “Como é possível reconhecer um verdadeiro parrhesiastes ou
falante da verdade?” E similarmente: “Como é possível distinguir um parrhesiastes de
um bajulador?” O título desse texto, que vem dos Moralia de Plutarco, é “Como
Distinguir um Bajulador de um Amigo”.

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Eu penso que precisamos sublinhar vários pontos desse ensaio. Primeiro, porque
precisamos, em nossas vidas pessoais, ter algum amigo que desempenhe o papel de um
parrhesiastes, de um falante da verdade? A razão que Plutarco dá é encontrada no tipo
predominante de relacionamento que amiúde temos com nós mesmos, a saber, uma
relação de philautia ou “amor de si”. Essa relação de amor de si é, para nós, fundamento
de uma ilusão persistente sobre o que realmente somos:

É por causa desse amor de si que todos são seus próprios e maiores
bajuladores, e então não encontram dificuldades em admitir ao que está de fora
que testemunhe a favor disso e confirme seus próprios conceitos e desejos. Pois
o homem do qual se diz, com opróbio, que é um amante de bajuladores é
também, em alto grau, um amante de si. E, por causa do seu sentimento gentil
para consigo mesmo, ele deseja e concebe a si mesmo como dotado de todas as
boas maneiras ou qualidades. Mas, embora o desejo disso não seja antinatural,
o conceito que uma pessoa possui de si é nesse caso perigoso e deve ser
cuidadosamente evitado. Ora, se a verdade é uma coisa divina, e, como coloca
Platão, é a origem “de todo bem para os deuses e de todo o bem para os
homens” (Leis, 730c), então o bajulador é, em todos os aspectos, um inimigo
dos deuses e, em particular, do deus pítio. Pois o bajulador sempre toma uma
posição contrária à máxima “Conhece-te a ti mesmo”, criando em todos os
homens o engano sobre si mesmos e a ignorância tanto de si mesmos quanto do
bem e do mal que lhes concernem, pois o bem se torna defeituoso e incompleto
e o mal totalmente impossível de corrigir.

Somos nossos próprios bajuladores e, para desconectarmos essa relação


espontânea que temos conosco, para nos livrarmos de nossa própria philautia, é que
precisamos de um parrhesiastes. Mas é difícil reconhecer e aceitar um parrhesiastes.
Pois não somente é difícil distinguir um verdadeiro parrhesiastes de um bajulador, mas,
por causa de nossa philautia não nos interessamos também em reconhecer um
parrhesiastes. Então nesse texto destaca-se o problema da determinação do critério
indubitável que nos faz capazes de distinguir o genuíno parrhesiastes, que precisamos
para nos livrar de nossas própria philautia, do bajulador que “faz o papel de um amigo
com a gravidade de uma tragédia” (50e). E isso implica que estamos de posse de um
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tipo de “semiologia” do parrhesiastes real. Para responder a questão: “Como podemos
reconhecer um parrhesiastes?”, Plutarco propõe dois critérios principais. Primeiro, há
um acordo entre o que o verdadeiro falante da verdade diz e o modo como ele se
comporta – e aqui se reconhece a harmonia socrática do Laques, no qual Laques explica
que poderia confiar em Sócrates como um falante da verdade sobre a coragem, uma vez
que viu que Sócrates realmente foi corajoso em Délio e, assim, que ele exibiu um
acordo harmônico entre o que dizia e o que fazia. Há também um segundo critério que
é: a permanência, a continuidade, a estabilidade e a solidez do verdadeiro parrhesiastes,
ao verdadeiro amigo, quanto às suas escolhas, às suas opiniões e aos seus pensamentos:

[...] É necessário que observes a uniformidade e permanência de seus gostos, se


ele sempre se apraz com as mesmas coisas e elogia sempre as mesmas coisas, e
se ele dirige e ordena sua própria vida de acordo com um padrão, como um
homem livre e amante da amizade agradável e da intimidade, pois tal é a
conduta de um amigo. Mas o bajulador, uma vez que não tem um lugar
permanente para seu caráter habitar e uma vez que leva uma vida não de
acordo com sua escolha, mas de acordo com a outrem, moldando e adaptando-
se para caber aos outros, não é simples, não é um, mas variável e muitos em
um e, como a água que é derramada de um receptáculo a outro, ele está
constantemente em movimento de um lugar para outro e muda sua forma para
caber no recipiente.

É claro que há muitas outras coisas muito interessantes sobre esse ensaio. Mas
eu gostaria de sublinhar dois temas principais. Primeiro, o tema do autoengano e sua
ligação com a philautia – que não é algo completamente novo. Mas, no texto de
Plutarco, pode-se ver que essa noção de autoengano como consequência do amor de si é
claramente diferente de estar em um estado de ignorância quanto à própria falta de
autoconhecimento – um estado que Sócrates tentou superar. A concepção de Plutarco
enfatiza o fato de que não somente somos incapazes de saber que não sabemos nada,
mas que também somos incapazes de saber exatamente o que somos. E eu penso que
esse tema do autoengano se torna cada vez mais importante na cultura helenística. No
período de Plutarco isso é algo realmente significativo.

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Um segundo tema que gostaria de enfatizar é a constância da mente. Isso
também não é algo novo, pois, para o último estoicismo, a noção de constância assume
uma grande importância. E há uma relação óbvia entre esses dois temas – o tema do
autoengano e o tema da constância ou persistência da mente. Pois destruir o autoengano,
adquirir e manter a continuidade da mente são duas atividades ético/morais ligadas uma
à outra. O autoengano que impede alguém de conhecer quem é e todas as mudanças em
sua mente, sentimentos e opiniões que forçam que se mova de um pensamento para
outro, de um sentimento para outro, de uma opinião para outra, demonstra essa ligação.
Pois se alguém é capaz de discernir exatamente o que é, então finca-se num mesmo
ponto e não será movido por nada. Se alguém é movido por algum tipo de estímulo,
sentimento, paixão, etc., então não é capaz de ficar próximo de si mesmo, é dependente
de algo além, é dirigido por diferentes preocupações e, consequentemente, não é capaz
de manter a posse completa de si mesmo.
Esse dois elementos – estar enganado sobre si mesmo e ser movido no mundo e
nos pensamentos - ambos se desenvolveram e ganharam significado na tradição cristã.
No cristianismo antigo, Satã é amiúde representado como o agente tanto do autoengano
(oposto à renúncia ao ser) e da mobilidade da alma – a instabilidade ou a inconstância
de alma, oposta à firmitas na contemplação de Deus. Fixar a mente em Deus era um
caminho tanto para renunciar ao ser quanto para eliminar qualquer tipo de autoengano.
E era também um modo de adquirir uma constância ética e ontológica. Então penso que
podemos ver no texto de Plutarco – na análise da relação entre parrhesia e bajulação –
alguns elementos que se tornaram significativos para a tradição cristã.
Eu gostaria de me referir agora, muito brevemente, a um texto de Galeno (130-
200 d.C.) – o médico famoso do fim do segundo século – no qual se pode ver o mesmo
problema: como é possível reconhecer um verdadeiro parrhesiastes? Galeno levanta
essa questão em seu ensaio “O Diagnóstico e a Cura das Paixões da Alma”, no qual
explica que, para que um homem se libertar de suas paixões, ele precisa de um
parrhesiastes, pois, assim como em Plutarco um século antes, a philautia, o amor de si,
é a raiz do autoengano:

[...] Vemos as faltas dos outros, mas continuamos cegos quanto àquelas que
nos concernem. Todos os homens admitem a verdade disso e, ademais, Platão
fornece a razão para tal (Leis, 731e). Ele diz que o amante é cego quanto ao
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objeto de seu amor. Se, portanto, cada um de nós ama a si próprio acima de
tudo, deve-se ser cego em seu próprio caso [...] Há paixões da alma que todos
conhecem: raiva, ira, medo, tristeza, inveja e luxúria violenta. Na minha
opinião, a veemência excessiva no amor ou no ódio por algo também é uma
paixão. Eu penso que o dito ‘a moderação é o melhor’ é correto, uma vez que
nenhuma ação imoderada é boa. Como então poderia um homem cortar fora
essas paixões se ele não primeiramente soube que as possuía? Mas, como
dissemos, é impossível conhecê-las, uma vez que nos amamos em excesso.
Mesmo se esse dito não permitir que julgue a si próprio, permite que se possa
julgar os outros que nem se ama e nem se odeia. Quando quer que ouças
alguém na cidade sendo elogiado por não bajular ninguém, associa-te a esse
homem e julga, a partir da tua própria experiência, se ele é o tipo de homem
que dizem que é [...] Quando um homem não cumprimenta o poderoso ou o
rico pelo nome, quando não os visita, quando não janta com eles, quando vive
uma vida disciplinada, espere desse homem que diga a verdade. Tente também
chegar a um conhecimento mais profundo do tipo de homem que ele é (e isso
advém por meio de longa associação). Se encontrares tal homem, convoca-o e
conversa privadamente com ele um dia. Pede-lhe que revele estritamente quais
das paixões mencionadas acima ele pode ver em ti. Diz-lhe que serás muito
grato por seu serviço e que olharás para ele como teu salvador mais do que se o
tivesse salvo de um mal corporal. Fá-lo prometer que revelará as paixões
quando quer que te veja afetado por qualquer uma das que mencionei.

É interessante notar que, nesse texto, o parrhesiastes – que todos precisam para
se livrarem de seu próprio autoengano – não precisa ser um amigo, alguém conhecido,
alguém com quem se esteja acostumado. E isso, penso eu, constitui uma diferença
muito importante entre Galeno e Plutarco. Em Plutarco, Sêneca e na tradição que deriva
de Sócrates, o parrhesiastes sempre precisa ser um amigo. E a relação com esse amigo
estava sempre na raiz do jogo parrhesiástico. Pelo que sei, pela primeira vez com
Galeno o parrhesiastes não mais precisa ser um amigo. De fato, é muito melhor, nos diz
Galeno, que o parrhesiastes seja alguém desconhecido, para que ele seja completamente
neutro. Um bom falante da verdade que lhe dá conselhos honestos sobre a alguém não

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o odeia, mas também não o ama. Um bom parrhesiastes é alguém com quem não se
teve previamente uma relação particular.
Mas, é claro, não se pode escolher a esmo. Deve-se checar alguns critérios para
saber se ele realmente é capaz de revelar as faltas. E por isso deve-se ouvi-lo. Ele tem
uma boa reputação? É velho o suficiente? É rico o suficiente? É muito importante que
aquele que desempenhe o papel de parrhesiastes seja pelo menos tão rico quanto o
outro é, ou mais. Pois se ele é pobre e o outro é rico, então as chances de que ele seja
um bajulador são maiores – uma vez que agora lhe interessa sê-lo.
Os cínicos, é claro, diriam que alguém que é rico não pode realmente ser sábio,
então não é frutífero escolhê-lo como um parrhesiastes. A ideia de Galeno de selecionar
alguém que é igualmente rico para agir como falante da verdade pareceria ridícula para
um cínico.
Mas também é interessante notar que, nesse ensaio, o falante da verdade não
precisa ser um médico. Pois, a despeito do fato de que Galeno era ele próprio um
médico e era amiúde obrigado a ‘curar’ as excessivas paixões dos outros, e amiúde era
bem-sucedido, ele não requer do parrhesiastes que seja um médico ou que possua a
habilidade de curar suas paixões. Tudo que é requerido é que seja capaz de dizer a
verdade sobre o outro.
Mas isso ainda não é o suficiente para saber que o falante da verdade é velho o
suficiente, rico o suficiente, e tem boa reputação. Ele deve também ser testado. E
Galeno dá um programa de teste do potencial parrhesiastes. Por exemplo, deve-se
perguntar-lhe coisas sobre ele próprio e ver como ele responde para determinar se será
severo o suficiente para o papel. Deve-se suspeitar quando o pretenso parrhesiastes o
elogia, quando não é severo o suficiente, e assim por diante.
Galeno não elabora o papel preciso do parrhesiastes em “O Diagnóstico e Cura
das Paixões da Alma”, ele somente dá uns poucos exemplos do tipo de advertência que
ele próprio deu quando desempenhou o papel para os outros. Mas, para resumir o que
foi dito acima, nesse texto a relação entre parrhesia e amizade não mais parece proceder
e há um tipo de julgamento ou exame requerido ao parrhesiastes pelo seu ‘patrão’ ou
‘cliente’.
Eu peço desculpas por ter sido tão breve quanto a esses textos de Plutarco e
Galeno, mas eles não são muito difíceis de ler, só difíceis de encontrar.

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5ª. CONFERÊNCIA: TÉCNICAS DE PARRHESIA

Agora eu gostaria de me voltar para as várias técnicas dos jogos parrhesiásticos


que podem ser encontradas na literatura filosófica e moral dos primeiros dois séculos de
nossa era. Claro que eu não planejo enumerar ou discutir todas as práticas importantes
que podem ser encontradas nos escritos do período. Para começar, eu gostaria de fazer
três observações preliminares.
Em primeiro lugar, penso que essas técnicas manifestam uma mudança
importante e muito interessante daquele jogo da verdade que – na concepção Grega
Clássica de parrhesia – era constituído pelo fato de que alguém era corajoso o
suficiente para falar a verdade a outra pessoa. Pois há uma substituição daquele tipo de
jogo parrhesiástico por outro jogo da verdade que consiste agora em ser corajoso o
suficiente para revelar a verdade sobre si mesmo.
Em segundo lugar, esse novo tipo de jogo parrhesiástico – onde o problema é
confrontar a verdade sobre si mesmo – exige o que os gregos chamaram de askesis.
Embora nossa palavra “ascetismo” derive da palavra grega askesis (uma vez que o
significado da palavra muda quando se torna associada com as várias práticas cristãs),
para os gregos a palavra não significa “ascético”, mas tem um sentido muito amplo,
denotando qualquer tipo de treinamento prático ou exercício. Por exemplo, era lugar
comum dizer que qualquer tipo de arte ou técnica tinha que ser aprendida por mathesis e
askesis – pelo conhecimento teórico e o treinamento prático. E, por exemplo, quando
Musônio Rufo diz que a arte de viver, techne tou biou, é como as outras artes, isto é,
uma arte que não pode ser aprendida apenas por meio dos ensinamentos teóricos, eles
está repetindo uma doutrina tradicional. Essa techne tou biou, essa arte de viver, exige
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prática e treinamento: askesis. Mas a concepção grega de askesis difere das práticas
ascéticas cristãs de pelo menos dois modos: (1) o ascetismo cristão tem como seu
principal objetivo ou meta a renúncia do eu, enquanto a askesis moral das filosofias
greco-romanas tinha como fim o estabelecimento de um relacionamento específico da
pessoa consigo mesma – um relacionamento de posse de si e autocontrole; (2) o
ascetismo cristão toma como seu tema principal o afastamento do mundo, enquanto as
práticas ascéticas das filosofias greco-romanas estavam geralmente preocupadas em
dotar o indivíduo de preparo e equipamento moral que lhe permitirão confrontar o
mundo de um modo racional e ético.
Em terceiro lugar, essas práticas ascéticas implicavam diferentes tipos de
exercícios específicos, mas eles nunca foram especificamente catalogados, analisados
ou descritos. Alguns deles foram discutidos e criticados, mas a maioria deles era bem
conhecido. Já que a maioria das pessoas os reconhecia, eles eram habitualmente
utilizados sem qualquer teoria precisa sobre o exercício. E, de fato, frequentemente,
quando alguém lia esses autores gregos e latinos que discutiam tais exercícios no
contexto dos tópicos teoréticos específicos (tais como o tempo, a morte, o mundo, a
vida, a necessidade, etc.), esse alguém tinha uma concepção errônea sobre eles. Pois
esses tópicos geralmente funcionam apenas como um esquema ou matriz para o
exercício espiritual. De fato, a maioria desses textos escritos na antiguidade tardia sobre
ética não estão nem um pouco preocupados em dispor uma teoria sobre os fundamentos
da ética, mas são livros práticos contendo fórmulas e exercícios que se tinha que ler,
reler, meditar sobre, aprender, de modo a construir uma matriz duradoura para seu
próprio comportamento.
Volto-me agora para os tipos de exercícios onde se tinha que examinar a verdade
sobre si mesmo e dizer essa verdade a outra pessoa.
Na maioria do tempo em que nos referimos a tais exercícios, falamos de práticas
envolvendo o “exame de consciência”. Mas eu penso na expressão “exame de
consciência” como um termo vago que engana e simplifica, enquanto pretende
caracterizar todos esses diferentes exercícios. Pois temos que definir muito
precisamente os diferentes tipos de jogos da verdade que foram postos em
funcionamento e aplicados nessas práticas da tradição greco-romana.
Eu gostaria de analisar cinco desses jogos da verdade, comumente descritos
como “exames de consciência”, de modo a mostrar-lhes (1) como alguns exercícios
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diferem uns dos outros; (2) que aspectos da mente, dos sentimentos, de comportamento,
etc., foram considerados nesses diferentes exercícios; e (3) que esses exercícios, apesar
de suas diferenças, implicavam uma relação entre o eu que é diferente do que nós
encontramos na tradição cristã.

1. Sêneca e o Exame Noturno

O primeiro texto que eu gostaria de analisar vem do De ira (Sobre a ira), de


Sêneca:

Todos os nossos sentidos devem ser treinados para a resistência. Eles são
naturalmente pacientes se apenas a mente desistir de enfraquecê-los. Ela
deveria ser convocada para dar um relato sobre si mesma todos os dias. Séxtio
tinha esse hábito, e quando o dia acabava, e ele se retirava para seu descanso
noturno, punha essas questões à sua alma: “Que mau hábito curaste hoje? A
que falta resististe? A respeito de que és melhor?” A ira cessará e se tornará
controlável se descobrir que deve comparecer diante de um julgamento diário.
Algo pode ser mais excelente que essa prática de se esquadrinhar
minuciosamente todo o dia? E que sono agradável segue desse autoexame –
quão tranquilo ele é, quão profundo e imperturbado, quando a alma louvou ou
admoestou a si mesma, e quando esse examinador e crítico secreto do eu deu o
laudo de seu próprio caráter! Eu me beneficio desse privilégio e todo dia
advogo minha causa diante do tribunal do eu. Quando a luz se retira da visão, e
minha esposa, muito consciente do meu hábito, silencia, sondo todo meu dia e
retraço todas as minhas ações e palavras.
Não escondo nada de mim mesmo, não omito nada. Pois por que desviar-me de
qualquer um de meus erros se posso conversar intimamente comigo mesmo?
“Vê o que nunca deverás fazer novamente; perdoar-te-ei desta vez. Naquele
debate falaste de modo muito ofensivo; depois disso, não te encontres com
pessoas ignorantes; aquelas que nunca aprenderam não querem aprender.
Reprovaste aquele homem mais francamente do que devias e,
consequentemente, não o corrigiste tanto quanto o ofendeste. No futuro,
considera não apenas a verdade do que dizes, mas também se o homem para
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quem estás falando pode resistir à verdade. Um homem bom aceita gratamente
uma reprovação; quanto pior é o homem, mais amargamente ele se recente
dela”.

Sabemos por diversas fontes que esse tipo de exercício era uma exigência diária,
ou pelo menos um hábito, na tradição pitagórica. Antes de irem dormir, os pitagóricos
realizavam esse tipo de inspeção, coletando as faltas que cometeram durante o dia. Tais
faltas consistiam naqueles tipos de comportamentos que transgrediam as regras bem
restritas das Escolas Pitagóricas. E o propósito dessa inspeção, pelo menos na tradição
pitagórica, era purificar a alma.
Acreditava-se que tal purificação era necessária, já que os pitagóricos
consideravam o sono como sendo um estado de ser por meio do qual a alma entra em
contato com a divindade através do sonho. E, é claro, a pessoa tinha que manter a
própria alma tão pura quanto possível para simultaneamente ter bons sonhos e entrar em
contato com as divindades benevolentes. Nesse texto de Sêneca podemos ver
claramente que essa tradição pitagórica sobrevive no exercício que ele descreve (como
ocorre posteriormente nas práticas similares utilizadas pelos cristãos). A ideia de
empregar o sono e o sonho como meios possíveis de apreender o divino pode também
ser encontrada na República de Platão (Livro IX, 571e-572b). Sêneca nos diz que, por
meio desse exercício, somos capazes de obter um sono agradável:

“E que sono agradável segue desse autoexame — quão tranquilo ele é, quão
profundo e imperturbado”.

E sabemos, a partir do próprio Sêneca, que, sob seu professor, Sótio, seu
primeiro treinamento foi parcialmente pitagórico. Sêneca não relaciona essa prática,
contudo, com o costume pitagórico, mas a Quinto Séxtio – que foi um dos defensores
do estoicismo em Roma no fim do século 1 a.C. E parece que esse exercício, apesar de
sua origem puramente pitagórica, foi utilizado e exaltado por várias escolas filosóficas:
os epicuristas, os estoicos, os cínicos e outros. Existem referências em Epicteto, por
exemplo, a esse tipo de exercício. E seria inútil negar que o autoexame de Sêneca é
similar aos tipos de práticas ascéticas usadas há séculos na tradição cristã. Mas se

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olharmos para o texto mais de perto, acho que podemos ver algumas diferenças
interessantes.
Primeiro, há a questão da atitude de Sêneca diante de si mesmo. Que tipo de
operação Sêneca está verdadeiramente realizando nesse exercício? Qual é a matriz
prática que ele usa e aplica em relação a si mesmo? À primeira vista, parece ser uma
pratica jurídica que é próxima à confessional cristã: existem pensamentos, esses
pensamentos são confessados, existe um acusado (precisamente, Sêneca), há um
acusador ou promotor (que também é Sêneca), há um juiz (também Sêneca), e parece
que há um veredicto. Toda a cena parece ser jurídica, e Sêneca aplica expressões
tipicamente jurídicas (“comparecer perante um juiz”, “advogar minha causa diante do
tribunal do eu”, etc.). Um escrutínio mais minucioso mostra, contudo, que se trata de
algo diferente da corte ou do procedimento judicial. Por exemplo, Sêneca diz que ele é
um examinador de si mesmo (speculator sui). A palavra speculator significa que ele é
um “examinador” ou “inspetor” – tipicamente alguém que inspeciona a carga em um
navio, ou o trabalho sendo feito por empreiteiros construindo uma casa, etc. Sêneca diz
também totum diem meum scrutor – “examino, inspeciono, todo o meu dia”. Aqui, o
verbo scrutor pertence não ao vocabulário jurídico, mas ao vocabulário da
administração. Sêneca afirma mais adiante: factaque ac dicta mea remetior – “e retraço,
confiro todas as minhas ações e palavras”. O verbo remetiri é, novamente, um termo
técnico utilizado na escrituração e que tem o sentido de checar se há qualquer tipo de
erro de cálculo ou nas contas. Então Sêneca não é exatamente um juiz emitindo uma
sentença sobre si mesmo. Ele é muito mais um administrador que, uma vez terminado o
trabalho, ou quando os trabalhos anuais terminaram, elabora as contas, faz um balanço
das coisas e vê se tudo foi feito corretamente. É mais uma cena administrativa do que
jurídica.
E se nos voltarmos para as faltas que Sêneca retraça, e de que dá exemplos no
seu exame, podemos ver que não são os tipos de faltas que chamaríamos de “pecados”.
Ele não confessa, por exemplo, que bebe muito, ou que cometeu alguma fraude
financeira, ou que tem maus sentimentos por outra pessoa – faltas com as quais Sêneca
estava muito familiarizado enquanto participante do círculo de Nero. Ele reprova a si
mesmo por coisas muito diferentes. Criticou alguém, mas ao invés de sua crítica ajudar
o homem, ela o magoou. Ou ele critica a si mesmo por ser desagradável com pessoas
que eram, de toda forma, incapazes de entendê-lo. Comportando-se de tal maneira, ele
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comete “erros” (errores), mas esses erros são apenas ações ineficientes exigindo ajustes
entre meios e fins. Ele se critica por não manter o objetivo de suas ações em mente, por
não ver que é inútil culpar alguém se a crítica dada não melhora as coisas, e assim por
diante. A questão da falta diz respeito a um erro prático no seu comportamento, já que
ele foi incapaz de estabelecer uma relação racional efetiva entre os princípios de
conduta que ele conhece e o comportamento em que ele está realmente comprometido.
As faltas de Sêneca não são transgressões de um código ou lei. Elas expressam, ao invés
disso, ocasiões nas quais sua tentativa de coordenar regras de comportamento (regras
que ele já aceita, reconhece e conhece) com seu próprio comportamento atual numa
situação específica foi provada ineficiente ou mal-sucedida.
Sêneca também não reage a seus próprios erros como se fossem pecados. Ele
não se pune, não há nada como a penitência. O retraçar de seus erros tem como seu
objeto a reativação de regras práticas de comportamento que, agora reforçadas, devem
ser úteis para ocasiões futuras. Ele, dessa maneira, diz a si mesmo: “Vê o que nunca
deves fazer novamente”; “Não te encontres com pessoas ignorantes”; “No futuro,
considera não apenas a verdade do que dizes, mas também se o homem para quem estás
falando pode resistir à verdade”, e assim por diante. Sêneca não analisa sua
responsabilidade ou sentimento de culpa. Para ele não é uma questão de purificar-se
dessas faltas. Ao invés disso, ele se empenha em um tipo de escrutínio administrativo
que o permite reativar várias regras e máximas de modo a torná-las mais vívidas,
permanentes e efetivas para comportamento futuro.

2. Sereno e o autoescrutínio Geral

O segundo texto que eu gostaria de discutir vem do De tranquillitate animi


(Sobre a tranquilidade da alma), de Sêneca. O De tranquillitate animi é um de uma
série de escritos sobre um tema que nós já tratamos, a saber, a constância ou
estabilidade da mente. Expondo brevemente, a palavra latina tranquillitas denota
estabilidade da alma ou da mente. É um estado no qual a mente é independente de
qualquer evento externo e está livre também de qualquer excitação interna ou agitação
que poderia induzir um movimento involuntário da mente. Assim, ela denota
estabilidade, autocontrole e independência. Mas tranquillitas também se refere a um

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certo sentimento de calma aprazível que tem sua fonte, seu princípio, nesse autocontrole
ou posse do eu de si mesmo.
No inicio do De tranquilitate animi, Aneu Sereno consulta Sêneca. Sereno é um
jovem amigo de Sêneca que fazia parte da mesma família e que começou sua carreira
política sob Nero como seu vigilante noturno. Tanto para Sêneca quanto para Sereno
não havia incompatibilidade entre a filosofia e a carreira política desde que a vida
filosófica não fosse meramente uma alternativa para a vida política. Ao invés disso, a
filosofia deve acompanhar a vida política de modo a prover um quadro moral para a
atividade pública. Sereno, que era inicialmente epicurista, se volta mais tarde para o
estoicismo. Mas, mesmo depois de se tornar estoico, sentiu-se desconfortável, pois tinha
a impressão de que não era capaz de aprimorar a si mesmo, que havia chegado a um
beco sem saída e era incapaz de fazer qualquer progresso. Devo salientar que, para a
Antiga Stoá, para Zenão de Cítio, por exemplo, quando uma pessoa conhecia as
doutrinas da filosofia estoica, ela realmente não precisaria mais progredir, pois havia
sido bem-sucedido em se tornar um estoico. O interessante aqui é a ideia do progresso
ocorrendo como um novo desenvolvimento na evolução do estoicismo. Sereno conhece
a doutrina estoica e suas regras práticas, mas continua sem tranquillitas. E é nesse
estado de inquietação que ele se volta para Sêneca e pede ajuda. Nós, com certeza, não
podemos ter certeza de que essa representação do estado de Sereno reflete sua situação
histórica real. Podemos apenas estar razoavelmente certos de que Sêneca escreveu esse
texto. Mas supõe-se que o texto seja uma carta escrita a Sereno, incorporando a sua
solicitação por aconselhamento moral. E isso exibe um modelo ou padrão para um tipo
de autoexame.
Sereno examina o que ele é ou o que está realizando no momento em que solicita
uma consulta:

SERENO: Quando fiz o exame de mim mesmo, tornou-se evidente, Sêneca,


que alguns dos meus vícios estão descobertos e expostos tão abertamente que
posso pôr minhas mãos neles, alguns estão mais escondidos e espreitam pelos
cantos, alguns não estão sempre presentes, mas ocorrem em intervalos; e devo
dizer que esses últimos são de longe os mais incômodos, sendo como inimigos
itinerantes que surgem quando há oportunidade e não permitem nem estar

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pronto, como em tempos guerra, nem estar desprevenido, como em momentos
de paz.
No entanto, o estado no qual me encontro acima de tudo – pois por que não
devo admitir a verdade a ti como a um médico? – é tal que honestamente nem
me livrei das coisas que odeio e temo, nem, por outro lado, estou sujeito a elas;
enquanto a condição na qual estou colocado não é a pior, eu ainda estou me
queixando e insatisfeito – não estou doente nem são.

Como podem ver, a solicitação de Sereno toma a forma de uma consulta


‘médica’ acerca de seu próprio estado espiritual. Pois ele diz: “Por que não devo admitir
a verdade a ti como a um médico?”; “Não estou nem doente nem são”, e assim por
diante. Essas expressões são claramente relacionadas às bem conhecidas identificações
metafóricas do desconforto moral com a enfermidade física. E o que também é
importante sublinhar aqui é que, para que Sereno seja curado de sua enfermidade, ele
necessita primeiro “admitir a verdade” (verum fatear) para Sêneca. Mas quais são as
verdades que Sereno deve “confessar”? Devemos notar que ele não revela quaisquer
faltas secretas, nenhum desejo vergonhoso, nada desse tipo. É algo inteiramente
diferente da confissão cristã. E essa “confissão” pode ser dividida em duas partes.
Primeiro, existe a exposição muito geral de Sereno sobre ele mesmo; e, segundo, existe
uma exposição de sua atitude em diferentes campos de atividade na sua vida.
A exposição geral sobre sua condição é a seguinte:

Não há necessidade de se dizer que todas as virtudes são frágeis no inicio, que
a firmeza e a força são adicionadas pelo tempo. Eu estou bem consciente
também de que as virtudes que lutam por mostrarem-se externamente, quero
dizer, por posição e por fama da eloquência e tudo que vem do veredicto de
outros, crescem enquanto o tempo passa — tanto as que provêm a verdadeira
força quanto as que nos enganam com uma espécie de tintura com vistas à
satisfação, devem esperar longos anos até que uma quantidade gradual de
tempo desenvolva a cor – mas temo bastante que o hábito, que traz estabilidade
à maioria das coisas, possa fazer com que essa minha falta se torne mais
arraigada. Das coisas ruins, também como com as boas, a longa relação induz
ao amor.
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A natureza dessa fraqueza mental que oscila entre duas coisas e não se inclina
fortemente nem ao correto nem ao errado, eu não posso te mostrar tão bem
todas de uma vez, mas somente uma parte; dir-te-ei o que sucede comigo –
descobrirás um nome para o meu padecimento.

Sereno nos diz que a verdade sobre si mesmo que ele irá agora expor é descritiva
de um padecimento do qual ele sofre. E, a partir dessas observações gerais e de outras
indicações que ele dá mais tarde, podemos ver que esse padecimento é comparado ao
enjoo causado por estar a bordo de um navio que não mais avança, mas que se
arremessa no mar. Sereno está com medo de permanecer no mar nessa condição, tendo
plena visão de terra firme que lhe permanece inacessível. A organização dos temas que
Sereno descreve com suas implícitas e, como veremos, explícitas referências de estar no
mar envolve a associação tradicional com a moral – filosofia política da medicina e
pilotagem de um navio ou a navegação – que nós já vimos. Aqui, temos também os
mesmos três elementos: um problema moral-filosófico, a referência à medicina e a
referência à navegação. Sereno está no caminho em direção à aquisição da verdade
como um barco no mar diante de terra firme. Mas porque lhe faltam autodomínio e
autocontrole, ele tem a sensação de que não pode avançar. Talvez porque seja muito
fraco, talvez porque seu percurso não seja bom. Ele não sabe exatamente a razão de suas
vacilações, mas caracteriza seu mal-estar como um tipo de movimento vacilante
perpétuo que não tem outro movimento senão o “balanço”. O barco não pode avançar
porque está balançando. Assim, o problema de Sereno é: como ele pode substituir esse
movimento oscilante de balançar – que é devido à instabilidade, à irresolução de sua
mente – por um movimento estável que o levará à costa e à terra firme? É um problema
de dinâmica, mas muito diferente da dinâmica freudiana de um conflito inconsciente
entre duas forças psíquicas. Aqui, nós temos um movimento oscilante de balanço que
impede o movimento da mente de avançar em direção à verdade, em direção à
estabilidade, em direção ao solo. E agora temos que ver como essa rede metafórica
dinâmica organiza a descrição de Sereno sobre si mesmo na longa citação seguinte:

(1) Eu devo confessar que estou possuído pelo maior amor à frugalidade. Eu
não gosto de um sofá feito para exibição, nem de vestuário que se sobressaia ao
peito, ou que seja pressionado por pesos e milhares de calandras para que fique
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macio, mas que seja daquele que é simples e barato, que nem é preservado,
nem vestido com cuidado solícito. A comida que eu gosto não é preparada nem
vigiada por escravos. Ela não precisa de vários dias de antecedência para ser
pedida, nem de muitas mãos. Ao invés disso, ela é fácil de conseguir e em
abundância. Não há nada de sofisticado ou de custoso a seu respeito. Não
haverá escassez dela em lugar algum, nem será onerosa para o bolso nem para
o corpo e não voltará pelo mesmo lugar por onde entrou. O servo que eu gosto
é como um jovem escravo nascido em casa, sem treinamento ou habilidade. A
prata é o meu país – prato pesado da raça do meu pai, sem estampa alguma,
como o nome de quem a fez. A mesa não é notável pela variedade de suas
ranhuras ou conhecida pela cidade pelos vários donos elegantes pelas mãos de
quem passou, mas pronta para uso, e não vai levar os olhos de quaisquer
convidados a se demorarem sobre ela com prazer, nem queimá-los com inveja.
Portanto, depois de todas essas coisas terem obtido minha aprovação, minha
mente (animus) está aturdida pela magnificência de algumas escolas de
formação para pajens, por observar escravos adornados com ouro e mais
cuidadosamente vestidos do que os líderes de um cortejo, e um regimento
completo de atendentes cintilantes. Pela visão de uma casa onde se pisa sobre
pedras preciosas e riquezas são espalhadas em todos os cantos, onde o próprio
telhado cintila e toda a cidade corteja e escolta uma herança em direção à ruína.
E o que dizer das águas, transparentes até o fundo, que fluem ao redor dos
hóspedes, mesmo quando eles se banqueteiam. E o que dizer dos festins que
são ricamente realizados? Vindo de um longo abandono à frugalidade, a
luxúria verteu ao meu redor a riqueza de seu esplendor e ressoa por todos os
lados. Minha visão vacila um pouco, pois posso levantar meu coração acima
dela mais facilmente do que meus olhos. E assim eu volto, não pior, mas mais
triste. E não ando entre minhas posses insignificantes com a cabeça ereta como
antes. E aí entra um ferrão secreto e a dúvida de se outra vida não é melhor.
Nenhuma dessas coisas me modifica, ainda assim nenhuma delas falha em me
perturbar.
(2) Resolvo obedecer aos comandos dos meus professores e mergulho no seio
da vida pública. Resolvo tentar ganhar um cargo público e o consulado,
conquistado, é claro, não pelo carmesim ou pelas fasces do lictor, mas pelo
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desejo de ser mais prestável e útil a meus amigos e familiares e todos os meus
conterrâneos e, assim, a toda humanidade. Pronto e determinado, eu sigo
Zenão, Cleanto e Crisipo, a partir dos quais, não obstante, ninguém falhou em
incitar outros a fazê-lo. E então, quando quer que algo irrite minha mente, que
não está acostumada a ser abalada, quando quer que algo aconteça, que seja ou
indigno de mim, e muitas coisas tais ocorrem na vida de todos os seres
humanos ou não ocorram muito facilmente, ou quando coisas que não devem
ser tidas como de grande valor exigem muito de meu tempo, eu me volto para
meu lazer e, assim como fazem rebanhos cansados, eu acelero meu passo para
casa. Resolvo confinar minha vida dentro de suas próprias paredes: “Não
deixes ninguém”, eu digo, “que não valha tal perda tirar de mim um dia sequer;
deixa minha mente estar fixa em si mesma, deixa-a cultivar-se, não a deixes
ocupar-se com nada externo, nada que demande um árbitro; deixa-a amar a
tranquilidade que está longe da preocupação pública e privada”. Mas quando
minha mente (animus) despertou pela leitura da grande coragem, e os grandes
exemplos incentivaram-me, eu tenho que me precipitar para o fórum, para
emprestar minha voz a um homem, para oferecer tal assistência a outro, de
modo que, mesmo que isso não ajude, será um esforço ajudar ou reprimir o
orgulho de alguém no fórum que infelizmente foi inflado por seus sucessos.
(3) E nos meus estudos literários eu penso que é certamente melhor fixar meus
olhos no próprio tema, mantendo-o predominante quando eu falo, do que, por
outro lado, confiar ao tema que apoie as palavras, de modo que a linguagem
não estudada deva segui-lo para onde quer que conduza. Eu digo: “Que
necessidade há de compor algo que durará por séculos? Não vais desistir de
lutar para manter a posteridade em silêncio sobre ti? Nasceste para a morte.
Um funeral silencioso é menos perturbador! E assim, para passar o tempo,
escrever algo num estilo simples, para seu próprio uso, não para publicação.
Aqueles que estudam para o dia têm menos necessidade de labor”. Portanto, de
novo, quando minha mente é elevada pela grandeza de seus pensamentos, ela
se torna ambiciosa por palavras e com aspirações mais altas, deseja uma
expressão mais elevada, e temas linguísticos que correspondam à dignidade do
assunto. Esquecido, então, de meus preceitos e de meu julgamento mais

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reprimido, eu sou lançado para as mais elevadas alturas por uma sentença que
não é mais minha.
Para não entrar em mais detalhes, eu sou em todas as coisas acompanhado por
essa fraqueza da boa intenção. De fato, eu temo que esteja gradualmente
perdendo terreno, ou, o que me causa ainda mais preocupação, é que estou
pendurado como alguém que está a ponto de cair, e que, talvez, eu esteja em
uma condição mais séria do que percebo, pois tomamos uma visão favorável
sobre nossas questões privadas e parcialmente dificultamos nosso julgamento.
Imagino que muitos homens chegariam à sabedoria se não fantasiassem que já
a tivessem alcançado, se não tivessem dissimulado certas peculiaridades em
seu caráter e passado por outras com os olhos fechados. Pois não há razão para
se supor que a adulação de outras pessoas seja mais prejudicial para nós que a
nossa própria. Quem ousa dizer a si mesmo a verdade? Quem, embora esteja
cercado por uma horda de sicofantas aplaudindo, não é para tudo o maior
adulador de si mesmo? Eu te imploro, no entanto, se tiveres qualquer remédio
com o qual possas parar essa minha oscilação, julga-me digno de estar em
débito contigo pela tranquilidade. Sei que essas minhas perturbações mentais
não são perigosas e não dão promessas de tempestades. Expressando-me acerca
do que me queixo por metáforas, eu estou angustiado não pela tempestade, mas
pela agitação do mar. Então tira de mim esse problema, o que quer que ele seja,
e te apressa para o resgate de alguém que está lutando, vendo diante de si terra
firme.

À primeira vista, a longa descrição de Sereno parece ser um acúmulo de detalhes


relativamente não importantes sobre seus gostos e desgostos, descrições de ninharias,
tais como os pratos pesados de seu pai, como ele gosta da comida, e assim por diante. E
parece estar também numa grande desordem, uma bagunça de detalhes. Mas, por traz
dessa aparente desordem, pode-se facilmente discernir a verdadeira organização do
texto. Existem três partes básicas do discurso. A primeira parte, o início da citação, é
devotada à relação de Sereno com os bens, posses, sua vida doméstica e privada. A
segunda parte – que se inicia com “Resolvo obedecer aos comandos dos meus
professores [...]” – esse parágrafo lida com a relação de Sereno com a vida pública e seu
caráter político. E a terceira parte – que se inicia com “e nos meus estudos literários
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[...]” – Sereno fala de sua atividade literária, o tipo de linguagem que ele prefere
empregar, e assim por diante. Mas ele também pode reconhecer aqui a relação entre a
morte e a imortalidade, ou a questão de uma vida duradoura na memória das pessoas
após a morte. Assim, os três temas tratados nesses parágrafos são (1) vida doméstica, ou
privada; (2) vida pública; (3) imortalidade e pós-morte.
Na primeira parte, Sereno explica o que ele quer fazer e o que ele gosta de fazer.
Ele, assim, mostra também o que não considera importante e para o que é indiferente. E
todas essas descrições mostram a imagem e o caráter e positivos de Sereno. Ele não tem
grandes necessidades materiais em sua vida doméstica, pois não é apegado a luxuria. No
segundo parágrafo, ele diz que não é escravo da ambição, ele não quer uma grande
carreira política, mas estar a serviço dos outros. E, no terceiro parágrafo, ele afirma que
não é seduzido pela retórica altamente sofisticada, mas prefere, ao invés disso, aderir ao
discurso útil. Vocês podem perceber que, dessa maneira, Sereno elabora um balanço de
suas escolhas, de sua liberdade, e o resultado não é mal. De fato, é bem positivo. Sereno
é afeiçoado pelo que é natural, pelo que é necessário, pelo que é útil (ou para si mesmo
ou para os amigos), e é geralmente indiferente com o resto. Considerando esses três
campos (vida privada, vida pública e pós-morte), bem, todos contados, Sereno é um
cara legal. E seu relato também nos mostra o tópico preciso do exame, que é: Quais são
as coisas que são importantes para mim, e quais são as coisas para as quais sou
indiferente? E ele considera coisas importantes que são realmente importantes.
Mas cada um dos três parágrafos está também dividido em duas partes. Depois
de Sereno explicar a importância ou a indiferença que ele atribui às coisas, existe um
momento de transição em que ele começa a fazer uma objeção a si mesmo, quando sua
mente começa a vacilar. Esses momentos de transição são marcados pelo seu uso da
palavra animus. Considerando os três tópicos já observados, Sereno explica que, apesar
do fato de que ele faz boas escolhas, de que ele desconsidera coisas sem importância,
ele, no entanto, sente que sua mente, seu animus, move-se involuntariamente. E como
um resultado, embora ele não esteja exatamente inclinado a se comportar de uma
maneira diferente, ele continua deslumbrado ou provocado pelas coisas que previamente
pensava serem sem importância. Esses sentimentos involuntários são indicações, ele
crê, de que seu animus não está completamente tranquilo ou estável, e isso motiva sua
solicitação por consulta. Sereno conhece os princípios teóricos e as regras práticas do
estoicismo, é comumente capaz de pô-los em prática, e ainda assim continua sentindo
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que essas regras não são uma matriz permanente para seu comportamento, seus
sentimentos, e seus pensamentos. A instabilidade de Sereno não deriva de seus
“pecados”, ou do fato de que ele existe como um ser temporal – como em Agostinho,
por exemplo. Deriva do fato de que ele não foi bem-sucedido ainda em harmonizar suas
ações e pensamentos com a estrutura ética que escolheu para si mesmo. É como se
Sereno fosse um bom piloto, soubesse como velejar, não houvesse tempestade no
horizonte e, ainda assim, ele continuasse emperrado no mar e não alcançasse terra firme,
porque não possui a tranquillitas, a firmitas que vêm de um completo autocontrole. E a
resposta de Sêneca ao seu autoexame e solicitação moral é uma exploração da natureza
dessa estabilidade da mente.

3. Epicteto e o Controle das Representações

Um terceiro texto, que também mostra algumas das referências nos jogos da
verdade envolvidos nesses exercícios de autoexame, vem das Diatribes de Epicteto –
obra na qual acredito que se possa encontrar um terceiro tipo de exercício bem diferente
dos anteriores. Existem numerosos tipos de técnicas e práticas de autoexame em
Epicteto. Algumas delas assemelham-se tanto aos exames noturnos de Séxtio quanto ao
autoescrutínio geral de Sereno. Mas há uma forma de exame que, acredito, é muito
característica de Epicteto e que toma a forma da constante exposição das representações
ao juízo.
Essa técnica também é relacionada à demanda de estabilidade, pois, dada a
constante corrente de representações que fluem na mente, o problema de Epicteto
consiste em saber como distinguir aquelas representações que pode controlar daquelas
que não pode, que incitam emoções, sentimentos, comportamentos, etc., involuntários e
que devem, portanto, ser excluídas de sua mente. A solução de Epicteto é que devemos
adotar uma atitude de vigilância permanente no que diz respeito a todas as nossas
representações. E ele explica essa atitude empregando duas metáforas: a metáfora do
vigilante noturno, ou do porteiro que não admite ninguém dentro de sua casa ou palácio
sem checar sua identidade primeiro; e a metáfora do cambista que, quando uma moeda
está muito difícil de se ler, verifica a autenticidade do dinheiro, examina-o, pesa-o,
verifica o metal e a efígie, e assim por diante.

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O terceiro tópico se relaciona com casos de assentimento. Ele diz respeito às
coisas que são plausíveis e atrativas. Pois assim como Sócrates costumava nos
dizer para não vivermos uma vida que não estivesse sujeita ao exame, assim
também não devemos aceitar uma representação que não esteja sujeita ao
exame, mas deveemos dizer, “Espera, permite-me ver quem és e de onde vens”
(assim como diz o vigilante noturno, “Deixa-me ver as tuas insígnias”). “Tens
a insígnia dada pela natureza, aquela que toda representação deve ter?”7

Essas duas metáforas são encontradas também nos textos dos primórdios do
cristianismo. João Cassiano (360-435 d.C.), por exemplo, pediu aos seus monges para
examinarem minuciosamente e testarem suas próprias representações, como um porteiro
ou um cambista. No caso do autoexame cristão, o monitoramento das representações
tem a intenção específica de determinar se, sobre uma inocência aparente, o próprio
demônio não está se escondendo. Pois, de modo a não ser pego numa armadilha pelo
que apenas parece ser inocente, de modo a evitar a alteração das moedas pelo demônio,
o cristão deve determinar de onde vêm seus pensamentos e suas impressões sensoriais, e
que relação existe de fato entre uma representação aparente e o valor real. Para
Epicteto, contudo, o problema não é determinar a fonte da impressão (Deus ou Satanás),
bem como julgar se ela esconde ou não alguma coisa. Seu problema, ao invés disso, é
determinar se a representação representa algo que depende ou não dele, isto é, se é
acessível ou não à sua vontade. O propósito disso não é afastar as ilusões do demônio,
mas garantir o autodomínio.
Para manter uma desconfiança quanto às nossas representações, Epicteto propõe
dois tipos de exercício. Um tipo é emprestado diretamente dos sofistas. E nesse clássico
jogo das escolas sofísticas, um dos estudantes perguntava uma questão e outro estudante
tinha que responder sem cair na armadilha sofística. Um exemplo elementar desse jogo
sofístico é: Pergunta: ‘Pode uma carruagem passar pela boca?’ Resposta: ‘Sim. Tu
mesmo disseste a palavra “carruagem”, e ela passou por tua boca.’ Epicteto criticava
tais exercícios como inúteis, e propôs outro para a finalidade do treinamento moral.
Nesse jogo existem também dois participantes. Um dos participantes afirma um fato,
um evento, e o outro tem que responder, tão rápido quanto puder, se esse fato ou evento
é bom ou ruim, isto é, se está dentro ou fora de nosso controle. Podemos ver esse

7
Diatribes de Epicteto 1.27.3.
107
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exercício, por exemplo, no seguinte texto:

Assim como nos exercitamos em relação aos questionamentos sofísticos, do


mesmo modo também é preciso exercitar diariamente as representações. Pois
estas questões para nós também são propostas. O filho de tal ou qual morreu.
Responde “Fora do âmbito da escolha, não é um mal”. O pai de tal ou qual,
tendo sido roubado, foi abandonado. O que te parece? “Fora do âmbito da
escolha, não é um mal”. César o condenou. “Fora do âmbito da escolha, não é
um mal”. É abalado por essas coisas. “Dentro do âmbito da escolha, é um mal”.
Suporta <essas coisas> com nobreza. “Dentro do âmbito da escolha, é um
bem”. E assim habituando-nos, progredimos. Pois jamais assentimos a outra
coisa senão à representação que é compreensiva8.

Há outro exercício que Epicteto descreve que tem o mesmo objeto, mas a forma
é mais próxima daquele empregado na tradição cristã. Ele consiste em caminhar pelas
ruas da cidade e se perguntar se qualquer representação que surge diante da mente
depende ou não da própria vontade. Se ela não está dentro da província do propósito
moral e da vontade, então deve ser rejeitada:

Saindo de casa na alvorada, quando vires algo, quando escutares algo,


imediatamente examina, indaga, como em relação às questões (sofísticas). O
que vês? Um <homem> belo ou uma <mulher> bela? Aplica a regra. Dentro ou
fora do âmbito da escolha? Fora do âmbito da escolha: Remove. O que vês?
Alguém chorando pela morte do filho? Aplica a regra. A morte está fora do
âmbito da escolha. Remove. Encontras um cônsul? Aplica a regra. O que é o
consulado? Algo dentro ou fora do âmbito da escolha? Fora do âmbito da
escolha. Remove também isso, não é aceitável. Joga fora, nada é em relação a
ti. E se fizermos isso e treinarmos para isso o dia todo, da alvorada até a noite,
algo aconteceria, pelos deuses!9

8
Diatribes de Epicteto 3.8.1-5
9
Diatribes de Epicteto 3.3.14-17.
108
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Como podem ver, Epicteto quer que constituamos um mundo de representações
no qual nada pode ser introduzido que não esteja sujeito à soberania de nossa vontade.
Assim, novamente, o autocontrole é o principio organizador dessa forma de autoexame.
Eu gostaria de ter analisado mais dois textos de Marco Aurélio, mas, dada a
hora, não tenho mais tempo. Assim, gostaria de me voltar para minhas conclusões.

4. Conclusão das técnicas de Parrhesia

Na leitura desses textos sobre autoexame, e salientando as diferenças entre eles,


eu quis lhes mostrar, primeiro, que há uma notável mudança nas práticas parrhesiásticas
entre o “mestre” e o “discípulo”. Anteriormente, quando a parrhesia aparecia num
contexto de orientação espiritual, o mestre era aquele que revelava a verdade sobre o
discípulo. Nesses exercícios, o mestre também usa a franqueza o mestre ainda usa a
franqueza ao falar com o discípulo para ajudá-lo a tornar-se ciente das faltas que não
pode ver. (Sêneca usa a parrhesia para com Sereno, Epicteto usa a parrhesia para com
seus discípulos), mas agora o uso da parrhesia é posto cada vez mais sobre o discípulo
como seu próprio dever para consigo mesmo. Nesse ponto, a verdade sobre o discípulo
não é exposta exclusivamente através do discurso parrhesiástico do mestre, ou apenas
no diálogo entre o mestre e o discípulo ou o interlocutor. A verdade sobre o discípulo
emerge da relação pessoal que ele estabelece consigo mesmo. E essa verdade pode
agora ser exposta ou para si mesmo (como no primeiro exemplo de Sêneca) ou para
outra pessoa (como no segundo exemplo de Sêneca). E esse discípulo deve também
testar a si mesmo e verificar se é capaz de alcançar a autodomínio (como nos exemplos
de Epicteto).
Em segundo lugar, não é suficiente analisar essa relação pessoal de
autoconhecimento como derivando meramente do princípio geral de gnothi seauton –
“conhece-te a ti mesmo”. Claro, num certo sentido geral ela pode ser derivada desse
princípio, mas não podemos parar nesse ponto. Pois os vários relacionamentos que
alguém tem consigo mesmo estão embutidos em técnicas muito precisas que tomam
forma de exercícios espirituais – alguns deles lidando com atos, outros com estados de
equilíbrio da alma, outros com o fluir das representações, e assim por diante.
Terceiro ponto. Em todos esses diferentes exercícios, o que está em jogo não é a
revelação de um segredo que tem que ser escavado das profundezas da alma. O que está
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em jogo é a relação do eu com a verdade ou com alguns princípios racionais.
Relembremos que a questão que motivou o autoexame noturno de Sêneca foi: “Eu pus
em jogo aqueles princípios de comportamento que conheço muito bem, mas, como
acontece às vezes, nem sempre me ajusto a eles ou os aplico?” Outra questão foi: “Eu
sou capaz de aderir aos princípios aos quais sou familiarizado, com os quais eu
concordo e que eu pratico na maioria das vezes?” Pois essa foi a questão de Sereno. Ou
a questão que Epicteto levantou nos exercícios que eu estava discutindo: “Eu sou capaz
de reagir a qualquer tipo de representação que se mostre a mim em conformidade com
minhas regras racionais adotadas?” O que temos que sublinhar aqui é isso: se a verdade
do eu nesses exercícios não é outra coisa senão a relação do eu com a verdade, então
essa verdade não é puramente teorética. A verdade do eu envolve, por um lado, um
conjunto de princípios racionais que estão baseados em sentenças gerais sobre o mundo,
a vida humana, a necessidade, a felicidade, a liberdade, e assim por diante, e, por outro
lado, regras práticas para o comportamento. E a questão levantada nesses diferentes
exercícios está orientada para o seguinte problema: será que estamos bastante
familiarizados com esses princípios racionais? Eles estão suficientemente bem
estabelecidos em nossas mentes para se tornarem regras práticas para nosso
comportamento diário? E o problema da memória está no cerne dessas técnicas, mas na
forma de uma tentativa de relembrarmo-nos do que fizemos, pensamos ou sentimos para
que possamos reativar nossos princípios racionais, fazendo-os assim tanto permanentes
quanto efetivos em nossas vidas.
Esses exercícios são parte do que nós podemos chamar de uma “estética do eu”.
Pois uma pessoa não tem que assumir uma posição ou um papel para consigo mesmo
como aquele de um juiz pronunciando um veredicto. Uma pessoa pode se conduzir a si
mesmo no papel de um técnico, ou de um artesão, ou de um artista, que – de vez em
quando – pára de trabalhar, examina o que está fazendo, relembra-se das regras de sua
arte e compara essas regras com o que ele alcançou até ali. Essa metáfora do artista que
pára de trabalhar, recua, ganha uma perspectiva distante e examina o que realmente está
fazendo com os princípios dessa arte pode ser encontrada no ensaio de Plutarco, Sobre o
Controle da Ira.

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6ª. CONFERÊNCIA: OBSERVAÇÕES FINAIS

E agora algumas palavras sobre esse seminário. O ponto de partida. Minha


intenção não era lidar com o problema da verdade, mas com o problema de dizer a
verdade ou do que diz a verdade como uma atividade. Com isso quero dizer que, para
mim, não era uma questão de analisar os critérios internos ou externos que possam
permitir a gregos e romanos, ou a qualquer outro povo, reconhecer se uma declaração
ou proposição é verdadeira ou não. A questão para mim foi, outrossim, a tentativa de
considerar dizer a verdade como uma atividade específica ou como um papel.
Mas, mesmo no âmbito dessa questão geral do papel do narrador da verdade em
uma sociedade, havia várias maneiras possíveis de realizar a análise. Por exemplo: eu
poderia ter comparado o papel e o status dos contadores de verdade na sociedade grega,
nas sociedades cristãs, nas sociedades não cristãs – o papel do profeta como um
narrador da verdade, o papel do oráculo como um contador de verdade, o papel do
poeta, do perito, do pregador, e assim por diante.
Mas, na verdade, a minha intenção não era realizar uma descrição sociológica
dos diferentes papéis possíveis para contadores de verdade em diferentes sociedades. O
que eu queria era analisar como o papel do narrador da verdade foi diversas vezes
problematizado na filosofia grega. E o que eu queria mostrar era que, se a filosofia
grega levantou a questão da verdade do ponto de vista dos critérios para afirmações
verdadeiras e raciocínios cogentes, essa mesma filosofia grega também levantou o
problema da verdade, do ponto de vista de dizer a verdade como uma atividade. Ela
levantou questões como: Quem é capaz de dizer a verdade? Quais são as condições
éticas, morais e espirituais que dão direito a alguém se apresentar como e ser

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considerado como um narrador da verdade? Sobre que temas é importante dizer a
verdade? (Sobre o mundo? Sobre a natureza? Sobre a cidade? Sobre o comportamento?
Sobre o homem?) Quais são as consequências de dizer a verdade? Quais são seus efeitos
positivos esperados para a cidade, para os governantes da cidade, para o indivíduo, etc.?
E finalmente: Qual é a relação entre a atividade de dizer a verdade e o exercício do
poder, ou deveriam essas atividades ser completamente independentes e mantidas
separadas? São elas separáveis ou uma exige a outra? Essas quatro questões sobre o
dizer a verdade como uma atividade – quem é capaz de dizer a verdade, sobre o quê,
com que consequências e com qual relação com o poder – parecem ter surgido como
problemas filosóficos no final do século 5 em torno de Sócrates, especialmente através
de seus confrontos com os sofistas sobre política, retórica e ética.
E eu diria que a problematização da verdade é o que caracteriza tanto o fim da
filosofia pré-socrática quanto o início do tipo de filosofia que ainda hoje é a nossa. Essa
problematização da verdade tem dois lados, dois grandes aspectos. Um lado está
preocupado em assegurar que o processo de raciocínio está correto para determinar se
uma declaração é verdadeira (ou preocupar-se com a nossa capacidade de ter acesso à
verdade). E o outro lado está preocupado com a questão: Qual é a importância para o
indivíduo e para a sociedade de dizer a verdade, de conhecer a verdade, de ter pessoas
que dizem a verdade, bem como saber como reconhecê-las? No lado que se preocupa
em determinar como garantir que uma afirmação é verdadeira temos as raízes da grande
tradição da filosofia ocidental, que eu gostaria de chamar de “analítica da verdade”. E
no outro lado, preocupado com a questão da importância de dizer a verdade, de saber
quem é capaz de dizer a verdade, e saber por que devemos dizer a verdade, temos as
raízes do que poderíamos chamar a tradição “crítica” no Ocidente. E aqui vocês vão
reconhecer um dos meus objetivos nesse seminário, qual seja, a construção de uma
genealogia da atitude crítica na filosofia ocidental. Isso constituiu o objetivo geral desse
seminário.
Do ponto de vista metodológico, gostaria de destacar o seguinte tema. Como
vocês devem ter notado, eu utilizei a palavra “problematização” frequentemente nesse
seminário sem fornecer-lhes uma explicação do seu significado. Eu disse muito
brevemente que o que eu pretendia analisar na maior parte do meu trabalho não era o
comportamento nem das pessoas do passado (o que é algo que pertence ao campo da
história social), nem ideias em seus valores representativos. O que eu tentei fazer desde
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o início foi analisar o processo de “problematização” - o que significa: Como e por que
certas coisas (comportamento, fenômenos, processos) tornaram-se um problema? Por
que, por exemplo, determinadas formas de comportamento foram caracterizadas e
classificadas como “loucura”, enquanto outras formas similares foram completamente
negligenciadas em um dado momento histórico? A mesma coisa para o crime e a
delinqüência. A mesma pergunta de problematização para a sexualidade.
Algumas pessoas interpretaram esse tipo de análise como uma forma de
“idealismo histórico”, mas eu acho que essa análise é completamente diferente. Pois
quando digo que estou estudando a “problematização” da loucura, do crime ou da
sexualidade, isso não é uma forma de negar a realidade de tais fenômenos. Pelo
contrário, tentei mostrar que era precisamente algo realmente existente no mundo que
foi alvo de regulação social em um dado momento. A questão que se coloca é essa:
Como e por que algumas coisas muito diferentes no mundo foram postas juntas,
caracterizadas, analisadas e tratadas como, por exemplo, a “doença mental”? Quais são
os elementos que são relevantes para uma determinada “problematização”?
E mesmo que eu não venha a dizer que o que é caracterizado como
“esquizofrenia” corresponda a algo real no mundo, isso não tem nada a ver com
idealismo. Pois eu acho que há uma relação entre a coisa que é problematizada e o
processo de problematização. A problematização é uma “resposta” a uma situação
concreta que é real.
Há também uma interpretação errônea segundo a qual nossa análise de uma dada
problematização está fora de qualquer contexto histórico, como se fosse um processo
espontâneo surgido de um lugar qualquer. Na verdade, porém, tentei mostrar, por
exemplo, que a nova problematização da doença mental ou da doença física no final do
século 18 estava muito diretamente ligada a uma modificação em várias práticas, ou ao
desenvolvimento de uma nova reação social às doenças, ou ao desafio apresentado por
determinados processos, e assim por diante. Mas temos que entender muito claramente,
acho, que uma determinada problematização não é um efeito ou uma consequência de
um contexto histórico ou situação, mas é uma resposta dada por determinados
indivíduos (embora se possa encontrar essa mesma resposta dada em uma série de
textos e a certa altura a resposta possa tornar-se tão geral que também se torna
anônima).

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Por exemplo, no que diz respeito ao modo que a parrhesia foi problematizada
em um dado momento, podemos ver que há respostas socrático-platônicas específicas às
perguntas: Como podemos reconhecer alguém como um parrhesiastes? Qual é a
importância de se ter um parrhesiastes na cidade? Qual é a formação de um bom
parrhesiastes? Respostas que eram dadas por Sócrates ou por Platão. Essas respostas
não são coletivas, originadas a partir de algum inconsciente coletivo. E o fato que a
resposta não seja nem uma representação nem um efeito de uma situação não significa
que não responda a nada, que seja puro sonho ou uma “anticriação”. Uma
problematização é sempre uma espécie de criação, mas uma criação no sentido de que,
dada uma determinada situação, não se pode inferir que esse tipo de problematização se
seguirá. Dada uma certa problematização, só se pode entender por qual razão esse tipo
de resposta surge como uma resposta a algum aspecto concreto e específico do mundo.
Aí está a relação entre pensamento e realidade no processo de problematização. E essa é
a razão pela qual acho que é possível dar uma resposta, a resposta original, específica e
singular do pensamento a uma determinada situação. E esse é o tipo de relação
específica entre a verdade e a realidade que tentei analisar nas várias problematizações
da parrhesia.

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