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APRESENTAÇÃO
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Cf. http://www.lib.berkeley.edu/MRC/foucault/parrhesia.html
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
O texto também é um guia sobre a questão da parrhesia através dos textos
clássicos
lássicos e helenísticos, pois Foucault recorre, para fundamentar suas interpretações, aos
textos primários dos trágicos e filósofos da Antiguidade.
Esperamos então que essa tradução seja útil para a comunidade filosófica e para
os leitores em geral, vistoo que, como o próprio Foucault nos diz na 6ª. Conferência, o
mapeamento do desenvolvimento da noção grega de parrhesia se identifica com o
próprio estudo sobre as origens do pensamento crítico ocidental.
Agradecemos a Gary Handman, diretor do Media Resources
Resources Center da Moffitt
Library da Universidade Berkeley,
Berkeley por nos fornecer as gravações
ões originais das
conferências e nos conceder a permissão para traduzir e publicar tais conferências em
língua portuguesa.
Os editores da Prometeus
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN:
ISSN: 2176-5960
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1ª. CONFERÊNCIA: O SIGNIFICADO DA PALAVRA PARRHESIA
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1. Parrhesia e Franqueza
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que o parrhesiastes diz algo que é perigoso para si mesmo e, assim, envolve um risco, e
assim por diante.
2. Parrhesia e Verdade
3. Parrhesia e Perigo
4. Parrhesia e Criticismo
Se, durante um julgamento, alguém diz algo que pode ser usado contra si mesmo,
pode não estar usando a parrhesia apesar do fato de que é sincero, de que crê que o que
diz é verdade, e que está pondo em risco a si próprio assim falando. Pois, na parrhesia, o
perigo vem sempre do fato de que a verdade dita é capaz de ferir ou enfurecer o
interlocutor. Assim, a parrhesia é sempre um “jogo” entre aquele que fala a verdade e o
interlocutor. A parrhesia envolvida, por exemplo, pode ser um conselho para que o
interlocutor se comporte de certa maneira ou que ele está errado no que pensa, ou no
modo que ele age, e assim por diante. Ou a parrhesia pode ser uma confissão para
alguém que exerce poder sobre ele e é capaz de censurá-lo ou puni-lo pelo que fez.
Como veem, a função da parrhesia não é demonstrar a verdade a outrem, mas
tem função crítica: crítica do interlocutor ou do próprio falante. “Isso é o que você faz e o
que você pensa; mas isso é o que você não deveria fazer e não deveria pensar”. “Esse é o
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modo que se comporta, mas aquele é o modo pelo qual você deveria se comportar”. “Isso
é o que fiz e eu estava errado fazendo tal coisa”. Parrhesia é uma forma de criticismo,
seja em relação a outro ou em relação a si mesmo, mas sempre numa situação onde o
falante ou confessor está numa posição de inferioridade com relação ao interlocutor. O
parrhesiastes é sempre menos poderoso que aquele com quem ele ou ela fala. A
parrhesia vem “de baixo”, por assim dizer, e é direcionada para “cima”. Eis a razão pela
qual um grego antigo não diria que um professor ou pai que critica uma criança usa a
parrhesia. Mas, quando um filósofo critica um tirano, quando um cidadão critica a
maioria, quando um aluno critica seu professor ou sua professora, então tais pessoas que
falam podem estar usando a parrhesia.
Isso não implica, entretanto, que qualquer um pode usar a parrhesia. Pois,
embora haja um texto em Eurípides onde um servo usa a parrhesia, na maior parte do
tempo o uso da parrhesia exige que o parrhesiastes conheça sua própria genealogia, seu
próprio status; i.e. usualmente se deve primeiro ser um cidadão do sexo masculino para
falar a verdade como um parrhesiastes. Inclusive, alguém que esteja privado da
parrhesia está na mesma situação de um escravo na medida em que ele ou ela não pode
tomar parte na vida política da cidade, nem participar do “jogo parrhesiástico”. Na
“parrhesia democrática” – na qual se fala à assembleia, a ekklesia – deve-se ser um
cidadão; de fato, deve-se ser um dos melhores entre os cidadãos, possuindo aquelas
qualidades pessoais, morais e sociais específicas que garantem o privilégio de falar.
Entretanto, o parrhesiastes põe em risco seu privilégio de falar livremente
quando descortina uma verdade que ameaça a maioria. Pois esta era uma situação
judicial bem conhecida, em que líderes atenienses eram exilados apenas porque
propunham algo que era oposto à maioria, ou mesmo porque a assembleia pensava que a
forte influência de certos líderes limitava a própria liberdade. A assembleia era, dessa
maneira, “protegida” contra a verdade. Esse, então, é o pano de fundo institucional da
“parrhesia democrática" – que deve ser distinguida da “parrhesia monárquica”, em que
um conselheiro dá ao soberano um conselho honesto e útil.
5. Parrhesia e Dever
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1. Parrhesia e Retórica
2. Parrhesia e Política
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3. Parrhesia e Filosofia
Finalmente, a evolução da parrhesia pode ser traçada através de sua relação com
o campo da filosofia – considerada como uma arte de vida (techne tou biou).
Nos escritos de Platão, Sócrates aparece no papel de parrhesiastes. Embora a
palavra parrhesia apareça diversas vezes em Platão, ele nunca usa a palavra
parrhesiastes – uma palavra que aparece tardiamente como parte do vocabulário grego.
E embora o papel de Sócrates seja tipicamente parrhesiástico, pois ele constantemente
confronta os atenienses nas ruas e, como observado na Apologia, mostra-lhes a verdade,
ordenando- os a preocupar-se com a sabedoria, a verdade e a perfeição de suas almas. No
Primeiro Alcibíades, Sócrates também assume um papel parrhesiástico, pois, enquanto
os todos os amigos e amantes de Alcibíades o adulam em sua tentativa de obter seus
favores, Sócrates arrisca-se a provocar a ira de Alcibíades quando lhe conduz a esta
ideia: que antes que Alcibíades seja capaz de realizar o que ele está tão empenhado em
atingir, a saber, tornar-se o primeiro entre os atenienses a governar Atenas e se tornar
mais poderoso que o rei da Pérsia, que antes que seja capaz de cuidar dos atenienses, ele
deve primeiro cuidar de si mesmo. A parrhesia filosófica é assim associada ao tema do
cuidado de si (epimeleia heautou).
No tempo dos epicuristas, a afinidade da parrhesia com o cuidado de si se
desenvolveu ao ponto da própria parrhesia ser considerada como uma techne de
guiamento espiritual para a “educação da alma”. Philodemo (110-140 a.C.), por
exemplo, que, junto com Lucrécio (99-55 BC), foi um dos mais importantes escritores
epicuristas durante o século 1 d.C., escreveu um livro sobre a parrhesia que concerne às
técnicas práticas úteis para ensinar e ajudar aos outros na comunidade epicurista.
Examinaremos algumas dessas técnicas parrhesiásticas tal como eles as desenvolveram,
por exemplo, nas filosofias estoicas de Epicteto, Sêneca e outros.
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2ª. CONFERÊNCIA: PARRHESIA NAS TRAGÉDIAS DE
EURÍPIDES
JOCASTA: Isso acima de tudo eu anseio saber: como é a vida no exílio? Ela é
muito miserável?
POLINICES: Muitíssimo, pior na realidade do que no relato.
JOCASTA: Pior de que modo? O que principalmente aflige o coração no
exílio?
POLINICES: O pior é isso: o direito de falar livremente não existe.
JOCASTA: Isso é uma vida de escravo, ser proibido de falar o que se tem no
espírito.
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Utilizamos aqui a tradução de J. B. de Melo e Souza de As Fenícias (Clássicos
Jackson , volume xxii. São Paulo: Jackson, 1964. Quando não indicado, as traduções
dos textos clássicos serão feitas a partir da transcrição em inglês.
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POLINICES: Tem-se que suportar a idiotice dos que governam.
JOCASTA: Participar tolamente em loucuras! Isso faz um doente.
POLINICES: Os que se deparam com isso pagam negando a natureza e sendo
escravos.
Como se pode ver por essas poucas linhas, a parrhesia está ligada, em primeiro
lugar, ao status social de Polinices. Pois se alguém não é um cidadão regular na cidade,
se é um exilado, então não se pode usar a parrhesia. Isso é bastante óbvio. Mas algo
mais está implícito, a saber, se alguém não tem o direito de falar livremente, é incapaz de
exercer qualquer tipo de poder e, assim, está na mesma situação que um escravo. E mais:
se tais cidadãos não podem usar a parrhesia, não podem se opor ao poder do governante.
E sem o direito ao criticismo, o poder exercido por um soberano não tem limitação. Tal
poder sem limitação é caracterizado por Jocasta como “juntando-se aos tolos em sua
tolice”. Pois o poder sem limitação está diretamente relacionado à loucura. O homem que
exerce o poder é sábio apenas na medida em que há alguém que pode usar a parrhesia
para criticá-lo e, por isso, põe alguma limitação ao seu poder, ao seu comando.
A segunda passagem de Eurípedes que quero citar vem de Hipólito. Como vocês
sabem, a peça é sobre o amor de Fedra por Hipólito. E a passagem que concerne à
parrhesia ocorre logo depois da confissão de Fedra: quando Fedra, no começo da peça,
confessa seu amor por Hipólito à sua ama (sem, entretanto, realmente dizer sue nome).
Mas a palavra parrhesia não concerne a essa confissão, mas se refere a algo bastante
diferente. Pois, logo depois de sua confissão de amor por Hipólito, Fedra fala daquelas
mulheres nobres e de alta estirpe das casas reais que em primeiro lugar trouxeram
vergonha sobre sua própria família, sobre seu marido e seus filhos, cometendo adultério
com outros homens. E Fedra diz que ela não quer fazer o mesmo, já que ela quer que
seus filhos vivam em Atenas, orgulhosos de sua mãe, e exercendo a parrhesia. E ela
afirma que, se um homem está consciente de uma mácula em sua família, ele se torna um
escravo:
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Utilizamos aqui a tradução de J. B. de Melo e Souza de Hipólito (Clássicos
Jackson , volume xxii. São Paulo: Jackson, 1964.
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FEDRA: Eu nunca serei conhecida por trazer a desonra para meu marido e
filhos. Eu quero que meus dois filhos voltem e vivam na gloriosa Atenas,
expressando lá seus pensamentos como homens livres, honrados pelo nome de
sua mãe. Uma coisa pode fazer do homem de espírito mais arrojado um
escravo: conhecer o secreto ato vergonhoso de seus pais.
Nesse texto vemos mais uma vez uma conexão entre a falta da parrhesia e a
escravidão. Pois se alguém não pode falar livremente porque está em desonra por causa
de sua família, então está escravizado. Também a cidadania por si própria não parece ser
suficiente para obter e garantir o exercício da livre expressão. A honra, uma boa
reputação para si próprio e para a família são também necessárias antes que alguém
possa se dirigir livremente às pessoas da cidade. Assim, a parrhesia requer qualificações
morais e sociais que advêm de um nascimento nobre e de uma reputação respeitada.
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Utilizamos aqui a tradução de J. B. me Melo e Souza de As Bacantes
(Clássicos Jackson , volume xxii. São Paulo: Jackson, 1964.
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posso falar livremente do que está acontecendo lá, ou se censurarás minhas
palavras. Eu temo tua pressa, meu senhor, tua raiva e tua potente realeza.
PENTEU: De mim, nada temas. Diz tudo o que tens para dizer, a raiva não deve
brotar quente contra o inocente. Por mais terrível que seja tua história desses
ritos báquicos, as mais pesadas punições eu infligirei sobre esses homens que
incitam nossas mulheres para seus maus modos.
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4. Electra (415 a.C.)5
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Utilizamos aqui a tradução de J. B. de Melo e Souza de Electra (Clássicos
Jackson , volume xxii. São Paulo: Jackson, 1964.
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E depois do coro falar, Electra replica: ”Não te esqueças de tuas últimas palavras,
mãe. Tu concedeste-me a parrhesia em relação a ti”:
E Clitemnestra responde: “Eu disse sim filha, e eu quis dizer isso” (I.1057).
Porém, Electra ainda está cautelosa e cuidadosa, pois pensa se sua mãe a ouvirá
apenas para depois feri-la:
ELECTRA: Dizes que irá primeiro ouvir e depois voltar às próprias palavras?
CLITEMNESTRA: Não, não; estás livre para dizer o que seu coração quer
dizer.
ELECTRA: Eu direi isso então. Isso é o que eu iniciarei [...]
E Electra procede a falar abertamente, culpando sua mãe pelo que ela havia feito.
Há outro aspecto assimétrico entre esses dois discursos que concerne à diferença
de status das que falam. Pois Clitemnestra é a rainha e não usa nem requer parrhesia
para advogar sua própria defesa por matar Agamêmnon. Mas Electra – que está na
situação de um escravo, que cumpre o papel de um escravo na cena, que não pode mais
viver na casa de seu pai sob a proteção de seu pai e que se dirige à sua mãe como um
servo se dirigiria à sua rainha – Electra precisa do direito à parrhesia.
E assim outro contrato parrhesiástico é feito entre Clitemnestra e Electra:
Clitemnestra promete que não irá punir Electra por sua franqueza, assim como Penteu
prometeu ao seu mensageiro nas Bancantes. Mas, em Electra, o contrato parrhesiástico é
subvertido. Não é subvertido por Clitemnestra (que, como rainha, ainda tem o poder de
punir Electra): é subvertido pela própria Electra. Electra pede à sua mãe que prometa que
não será punida por falar francamente, e Clitemnestra faz tal promessa – sem saber que
ela, a própria Clitemnestra, será punida por sua confissão. Pois, alguns poucos minutos
depois, ela é subsequentemente morta por seus filhos, Orestes e Electra. Assim, o
contrato parrhesiástico é subvertido: aquele a quem foi concedido o privilégio da
parrhesia não é prejudicado, mas aquele que concedeu o direito da parrhesia o é – e pela
própria pessoa que, em posição inferior, estava pedindo por parrhesia. O contrato
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parrhesiástico se torna uma armadilha subversiva para Clitemnestra.
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Cf. EURÍPEDES. Íon. . Disponível em:
<http://pensamentosnomadas.files.wordpress.com/2012/03/12-c3adon.pdf>, acesso em
07/mar/2013.
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genealogias mitológicas pretendiam, em parte, justificar a política imperialista de Atenas
em relação a outras cidades gregas numa época em que os líderes atenienses ainda
pensavam que um império ateniense era possível.
Não focarei os aspectos políticos e mitológicos da peça, mas o tema da mudança
de lugar da revelação da verdade de Delfos para Atenas. Como vocês sabem, o oráculo
de Delfos era suposto como sendo o lugar na Grécia onde aos seres humanos era dita a
verdade pelos deuses através dos proferimentos da Pítia. Mas nessa peça vemos uma
mudança muito explícita da verdade oracular de Delfos para Atenas: Atenas se torna o
Lugar onde a verdade agora aparece. E, como uma parte da mudança, a verdade não mais
é revelada pelos deuses aos seres humanos (como em Delfos), mas é revelada aos seres
humanos por seres humanos através da parrhesia ateniense.
Íon de Eurípides é uma peça que elogia o caráter autóctone ateniense, e afirma a
afinidade sanguínea com a maioria dos estados gregos, mas é inicialmente uma história
do movimento da elocução da verdade de Delfos para Atenas, de Febo Apolo para o
cidadão ateniense. E essa é a razão porque a peça é a história da parrhesia: a peça grega
parrhesiástica decisiva.
Agora eu gostaria de dar o seguinte visão global esquemática da peça:
Veremos que Apolo guarda silêncio através do drama; que Xuto é enganado pelo
deus, mas é também um enganador. E veremos também como tanto Creúsa quanto Íon
falam a verdade contra o silêncio de Apolo, pois apenas eles estão conectados à terra
ateniense que lhes confere a parrhesia.
a. Prólogo de Hermes
b. O silêncio de Apolo
Mas, é claro, Creúsa e Xuto não têm a mesma pergunta a fazer ao deus Apolo. A
pergunta de Xuto é muito clara e simples: “Eu nunca tive filhos. Devo ter algum com
Creúsa?” Creúsa, contudo, tem outra pergunta a fazer. Ela tem que saber se terá filhos
com Xuto, mas também quer perguntar: “Contigo, Apolo, eu tive um filho. E eu preciso
saber agora se ele continua vivo ou não. O que, Apolo, ocorreu com nosso filho?”
No templo de Apolo, o oráculo em Delfos, era o lugar onde a verdade era dita
pelos deuses a qualquer mortal que viesse consultá-lo. Xuto e Creúsa chegam juntos às
portas do templo e, claro, a primeira pessoa que eles encontram é Íon – servo de Apolo
e filho de Creúsa. Mas, naturalmente, Creúsa não reconhece seu filho, nem Íon
reconhece sua mãe. Eles são estranhos um para o outro, assim como eram inicialmente
Édipo e Jocasta no Édipo Rei, de Sófocles.
Lembrem-se que Édipo também foi salvo da morte a despeito da vontade de sua
mãe. E ele também foi incapaz de reconhecer seus verdadeiros pai e mãe. A estrutura da
trama de Íon é de algum modo similar à da estória de Édipo. Mas a dinâmica da verdade
nas duas peças é exatamente contrária.
Pois no Édipo rei, Febo Apolo fala a verdade desde o início, profetizando o que
irá acontecer. E os seres humanos são aqueles que continuamente escondem ou evitam
ver a verdade, tentando escapar do destino profetizado pelo deus. Mas, no fim, apesar
dos sinais que Apolo lhes deu, Édipo e Jocasta descobrem a verdade a despeito de si
mesmos. Na presente peça, os seres humanos estão tentando descobrir a verdade: Íon
quer saber quem ele é e de onde veio; Creúsa quer saber qual o destino de seu filho.
Entretanto, é Apolo quem voluntariamente esconde a verdade. O problema edípico da
verdade é resolvido mostrando como os mortais, apesar de sua própria cegueira, verão a
luz da verdade que é falada pelo deus, e que eles não desejam ver. O problema iônico da
verdade é resolvido mostrando como os seres humanos, apesar do silêncio de Apolo,
descobrirão a verdade que tão avidamente desejam saber.
O tema do silêncio do deus prevalece em todo o Íon. Ele aparece no início da
tragédia quando Creúsa encontra Íon. Creúsa continua envergonhada do que a aconteceu,
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então ela fala a Íon como se tivesse ido consultar o oráculo para uma “amiga”. Ela,
então, lhe conta uma parte da sua própria história, atribuindo-a à sua alegada amiga, e lhe
pergunta se ele acha que Apolo irá dar à “amiga” uma resposta para suas perguntas.
Como um bom servo do deus, Íon a diz que Apolo não dará uma resposta, pois se ele
fizesse o que a “amiga” de Creúsa requer, então ele ficará também envergonhado:
ÍON: É para Apolo revelar o que ele pretende manter como um mistério?
CREÚSA: Claro! Seu oráculo não é aberto para qualquer grego perguntar?
ÍON: Não! Sua honra está envolvida. Seus sentimentos devem ser respeitados.
CREÚSA: E os sentimentos de suas vítimas? E o que isso implica para elas?
ÍON: Não há ninguém que perguntaria isso para ti? Suponha que ficasse
provado que, no próprio templo de Apolo, ele tivesse se comportado tão mal.
Ele estaria justificado para fazer seu intérprete sofrer por isso. Minha senhora,
deixa isso de lado. Não devemos acusar Apolo em sua própria corte. Isso é o
que nossa loucura valeria se tentássemos forçar um deus relutante a falar, a dar
sinais em sacrifícios ou nos voos dos pássaros. Esses propósitos que
perseguimos contra o desejo dos deuses podem nos trazer poucos benefícios
quando nós os obtemos.
Então, no início do ato, Íon fala por qual razão Apolo não dirá a verdade. E, de
fato, ele nunca responderia às perguntas de Creúsa. Esse é um deus que se esconde.
O que é ainda mais significativo e surpreendente é o que ocorre no fim da peça,
quando tudo é dito por vários personagens da peça e a verdade é conhecida por todos.
Pois todos, então, esperam pelo aparecimento de Apolo – cuja presença não foi visível
durante a peça inteira (apesar do fato de ele ser o personagem principal nos eventos
dramáticos que se apresem). Era tradicional na tragédia grega antiga que o deus que
constituía a figura divina principal aparecesse por último. Entretanto, no final da peça,
Apolo – o deus brilhante – não aparece. Ao invés dele, Atenas vem para transmitir sua
mensagem. E ela aparece acima do teto do templo délfico, pois as portas do templo não
estão abertas. Explicando por que veio, ela diz:
ATENA: …eu sou vossa amiga tanto aqui como em Atenas, a cidade cujo
nome eu porto – eu sou Atena! Vim às pressas por parte de Apolo. Ele pensou
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bem em não aparecer pessoalmente para vós para que não fossem proferidas
abertamente censuras pelo que ocorreu no passado, então ele me enviou com
essa mensagem para vós. Íon, essa é sua mãe e Apolo é seu pai. Xuto não te
gerou, mas Apolo deu-te a ele para tornar-te herdeiro reconhecido de uma casa
ilustre. Quando o propósito de Apolo foi divulgado, ele planejou um meio para
salvar cada um de vós da morte pelas mãos do outro. Sua intenção foi manter a
verdade secreta por um momento e então, em Atenas, revelar Creúsa como tua
mãe e tu como seu filho com Apolo [...]
Então, mesmo nesse momento final, quando tudo é trazido à luz, Apolo não ousa
aparecer para falar a verdade. Ele se esconde, enquanto Atena, ao contrário, fala.
Devemos nos lembrar de que Apolo é um deus profético encarregado de falar a verdade
aos mortais. Entretanto, ele é incapaz de cumprir seu papel porque está envergonhado
por sua culpa. Aqui, em Íon, o silêncio e a culpa estão ligados ao deus Apolo. Em Édipo
Rei, o silêncio e a culpa estão ligados aos mortais. O lema principal de Íon concerne à
luta humana pela verdade contra o silencio de deus: os seres humanos devem se conduzir
por si próprios para descobrir a verdade e dizê-la. Apolo não fala a verdade, ele não
revela o que sabe perfeitamente bem ser o caso, ele ilude os mortais através silêncio, ou
lhes diz puras mentiras puras, ele não é suficiente corajoso para falar por si só e usa seu
poder, sua liberdade e sua superioridade para encobrir o que fizera. Apolo é o anti-
parrhesiastes.
Em confronto com o silêncio do deus, Íon e Creúsa são as duas maiores figuras
parrhesiásticas. Porém não desempenham o papel de parrhesiastes do mesmo modo.
Pois, como um homem nascido em terra ateniense, Íon tem o direito de usar a
parrhesia. Creúsa, por outro lado, desempenha o papel parrhesiástico como uma mulher
que confessa seus pensamentos. Eu gostaria agora de examinar esses dois papéis
parrhesiásticos para notar a natureza de suas diferenças.
Primeiro, Íon. O papel parrhesiástico de Íon é evidente na longa cena que toma
lugar entre Íon e Xuto no princípio da peça. Quando Xuto e Creúsa chegam para
consultar o oráculo, Xuto entra no santuário primeiro, uma vez que ele é o marido e o
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homem. Ele faz a Apolo sua pergunta e o deus diz-lhe que a primeira pessoa que ele
encontrar quando sair do templo será seu filho. E, é claro, a primeira pessoa que
encontra é Íon, já que, como servo de Apolo, está sempre à porta do templo. Aqui temos
que prestar atenção na expressão grega, que não é traduzida literalmente tanto nas
edições francesas como nas inglesas. As palavras gregas são: παῖδ' ἐµὸν πεφυκέναι. O
uso da palavra πεφυκέναι indica que de Íon é dito ser filho de Xuto por natureza.
A edição francesa traduz como “Vem, vamos falar sobre algo diferente”. Uma
tradução mais acurada seria: “Vamos tentar outro tipo de discurso”. Então, em resposta
à questão de Íon de como ele poderia ser seu filho, Xuto diz que não sabe, mas isso foi
dito por Apolo. E Íon diz-lhe, com efeito, para tentarem então outro tipo de discurso
mais apto a dizer a verdade:
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ÍON: Por ser rei, é superestimado. A realeza esconde uma vida de tormentos por
trás de uma fachada de prazeres. Viver continuamente com medo, buscando
assassinos por sobre os ombros – isso é o paraíso? É mesmo boa fortuna. Dá-me
a felicidade do homem comum, não a vida de um rei que ama preencher sua
corte com criminosos e odeia homens honestos por temer a morte. Podes dizer-
me que o prazer de ser rico supera todas as coisas, porém viver envolto em
escândalos, agarrado ao seu dinheiro com ambas as mãos, assolado pela
preocupação – isso não tem apelo para mim.
Por que é impossível para Íon viver sem achar sua mãe? Ele continua:
ÍON: [...] Se eu posso fazê-lo, rogo para que minha mãe seja ateniense, para que
por meio dela possa ter o direito de fala. Pois quando um estrangeiro vai para
uma cidade de puro sangue, embora em nome seja um cidadão, sua língua
permanece escrava: ele não tem o direito de fala.
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Então vejam, a necessidade de saber quem é sua mãe é para determinar se ela é
descendente da terra ateniense, pois somente assim ele seria dotado da parrhesia. E ele
explica que alguém que chega a Atenas como estrangeiro – mesmo que literal e
legalmente seja considerado um cidadão – não pode desfrutar da parrhesia. O que então
significa o aparentemente digressivo retrato crítico da vida democrática e monárquica,
que culmina com a referência final que fazem à parrhesia, exatamente quando Íon
aceita a oferta de Xuto de retornar com ele para Atenas – dados especialmente os termos
muito obscuros da proposta de Xuto?
Os retratos críticos digressivos que Íon fornece da democracia e da monarquia
(ou tirania) são fáceis de reconhecer como exemplos típicos de discurso parrhesiástico,
pois se pode encontrar o mesmo tipo de crítica vindo posteriormente da boca de
Sócrates nas obras tanto de Platão como de Xenofonte. Críticas similares são
posteriormente feitas por Isócrates. Então as descrições críticas da democracia e da
monarquia como apresentadas por Íon são partes do caráter constitucional do indivíduo
parrhesiástico na vida política ateniense do final do século 5 e início do 4. Íon é
exatamente como um parrhesiastes, isto é, o tipo de indivíduo que é tão valioso para
democracia ou para a monarquia, uma vez que é corajoso suficiente para explanar, quer
para o demos ou para o rei, quais são realmente suas deficiências. Íon é um indivíduo
parrhesiástico e mostra-se como tal tanto nessas pequenas críticas políticas digressivas,
bem como, posteriormente, quando afirma que necessita saber se sua mãe é ateniense,
uma vez que necessita da parrhesia. Pois, apesar do fato de que está na natureza de seu
caráter ser parrhesiastes, ele não pode legal ou institucionalmente usar essa parrhesia
natural com que é dotado se sua mãe não for ateniense. A parrhesia é assim não um
direito dado igualmente a todos os cidadãos atenienses, mas somente aos que são
especialmente prestigiados pela sua família e seu nascimento. E Íon aparece como um
homem que é, por sua natureza, um indivíduo parrhesiástico, ainda que seja, ao mesmo
tempo, privado do direito da fala livre.
E por que essa figura parrhesiástica é privada de seu direito parrhesiástico?
Porque o deus Apolo – o deus profético cujo dever é falar a verdade aos mortais – não é
corajoso suficiente para revelar suas próprias faltas e agir como parrhesiastes. Para Íon
conformar sua natureza e jogar o papel parrhesiástico em Atenas, algo mais, que ele
carece, é necessário, mas que lhe será dado por outra figura parrhesiástica, qual seja, sua
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mãe, Creúsa. E Creúsa será capaz de falar-lhe a verdade, assim libertando seu filho
parrhesiástico para usar sua parrhesia natural.
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Primeiro, a invectiva. Creúsa aparece, nesse momento, em frente aos degraus do
templo, acompanhada por um ancião que é um servo de confiança da família (e que
permanece em silêncio durante a fala de Creúsa). A invectiva de Creúsa contra Apolo é
a forma de parrhesia em que alguém publicamente acusa outro de um crime, uma falta,
ou de uma injustiça que foi cometida. E essa acusação é um exemplo de parrhesia na
medida em que quem é acusado é mais poderoso do que quem acusa. Portanto, há o
perigo de que, por causa da acusação feita, possa haver retaliação contra sua ou seu
acusador. A parrhesia de Creúsa primeiramente toma a forma de uma reprovação
pública ou crítica contra um ser diante do qual ela é inferior em poder e a quem ela se
encontra em relação de dependência. É nessa situação vulnerável que Creúsa decide
fazer sua acusação:
5. Orestes (408)
Como podem ver, a narrativa começa com uma referência aos procedimentos
atenienses para os julgamentos criminais: quando todos os cidadãos estão presentes, um
arauto se levanta e grita: “Quem deseja falar?”, pois esse é o direito ateniense de igual
discurso (isegoria). Então, dois oradores falam, ambos tomados da mitologia grega, do
mundo homérico. O primeiro a falar é Taltíbio, que foi um dos companheiros de
Agamêmnon durante a Guerra de Tróia – especificamente seu arauto. Taltíbio é seguido
por Diomedes, um dos mais famosos heróis gregos, conhecido por sua coragem sem
par, bravura, habilidade guerreira, força física e eloquência.
O mensageiro caracteriza Taltíbio como alguém que não é completamente livre,
mas dependente dos que são mais poderosos do que ele. O texto grego afirma que ele
está “sob o poder dos que lhe são mais poderosos” (“subserviente aos que estão no
poder”). Há duas outras peças nas quais Eurípedes critica esse tipo de ser humano: o
arauto. Nas Troianas, o mesmo Taltíbio aparece, após a cidade de Tróia ter sido
capturada pelos gregos, para falar a Cassandra que ela será a concubina de Agamêmnon.
Cassandra responde ao arauto predizendo que ela trará ruína aos seus inimigos. E, como
vocês sabem, as profecias de Cassandra são sempre verdadeiras. Taltíbio, contudo, não
acredita nas predições dela, uma vez que, como arauto, não sabe o que é a verdade (é
incapaz de reconhecer a verdade das declarações de Cassandra), mas somente repete o
que seu senhor – Agamêmnon – mandou-lhe dizer. Ele pensa que Cassandra é
simplesmente louca, pois ele responde: “Sua mente não está no lugar correto” (“Não
está em seu juízo perfeito”). E a isso Cassandra replica:
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
E, de fato, a mãe de Cassandra, Hécuba, morre em Tróia.
Nas Suplicantes, de Eurípedes, há também uma discussão entre um arauto
desconhecido (vindo de Tebas) e Teseu (que não é exatamente um rei, mas o Primeiro
Cidadão de Atenienses). Quando o arauto entra, pergunta: “Quem é o rei de Atenas?” E
Teseu respondeu-lhe que ele não seria capaz de achar o rei ateniense, uma vez que não
há tyrannos na cidade:
TESEU: [...] A liberdade está nesta fórmula: “Quem tem bons conselhos que
poderia oferecer à cidade?” Aquele que deseja falar obtém fama. Aquele que
não, fica em silêncio. Onde maior igualdade poderia ser encontrada?
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
morte de Orestes (Egisto, como vemos em Electra, também foi morto por Orestes), no
final Taltíbio condena Orestes.
Na sequência desse personagem mitológico negativo é apresentado um positivo:
Diomedes. Diomedes era famoso como guerreiro grego, tanto por suas façanhas
corajosas como por sua nobre eloquência: por sua habilidade de falar e sua sabedoria.
Diferentemente de Taltíbio, Diomedes é independente. Ele diz o que pensa e propõe
uma solução moderada que não tem motivação política: não é uma retaliação vingativa.
No âmbito religioso, “para satisfazer a piedade”, insta que Orestes e Electra sejam
exilados para purificar a cidade dos assassinatos de Clitemnestra e Egisto, de acordo
com a punição religiosa tradicional para os assassinos. Porém, apesar do veredicto
moderado e razoável de Diomedes, sua opinião divide a assembleia: uns concordam,
outros não.
Há dois outros que se apresentam para falar. Seus nomes não são dados, não
pertencem ao mundo mitológico de Homero, não são heróis. Porém, com a precisa
descrição fornecida pelo relato do mensageiro, nós podemos ver que são dois “tipos
sociais”. O primeiro (que é simétrico a Taltíbio, o mau orador) é o tipo de orador
prejudicial à democracia. E eu penso que devemos determinar cuidadosamente suas
características específicas.
Seu primeiro traço é que ele tem uma “língua que corre solta”, tradução do
vocábulo grego athuroglossos. Athuroglossos literalmente refere-se a alguém que tem
uma língua, mas não uma porta. Isso significa alguém que não pode fechar sua boca.
A metáfora da língua, dos dentes e lábios como uma porta que está fechada
quando alguém está em silêncio é frequente na literatura grega antiga. Ocorre no século
6 a.C., em Teognis, que escreve que há muitas pessoas tagarelas:
Muitas línguas têm portas que se abrem muito facilmente e cuidam de muitas
coisas que não são da sua conta. O melhor é manter as más notícias dentro e
somente deixar sair as boas novas.
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
Essa noção de athuroglossos ou athurostomia (alguém que tem uma língua sem
uma porta) refere-se a alguém que é um tagarela sem fim, que não consegue ficar quieto
e é inclinado a dizer qualquer coisa que vem à mente. Plutarco compara esses tagarelas
com o Mar Negro – que não tem portas ou portões para impedir que os fluxos de suas
águas entrem no Mediterrâneo:
[...] Aqueles que acreditam que armazéns sem portas e bolsas sem fecho são
sem uso para seus proprietários e ainda assim continuam com suas bocas sem
travas ou portas, mantendo um fluxo perpétuo como a embocadura do Mar
Negro, parecem considerar a fala como a menos valiosa de todas as coisas.
Eles não encontram, dessa forma, a convicção, que é objeto de toda fala.
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
Acrescente-se que o último orador é um homem de moral íntegra: “um homem
de princípios inquestionáveis”.
Um último ponto a respeito do autourgos: enquanto o primeiro orador queria
que Electra e Orestes fossem mortos por apedrejamento, o proprietário de terra não
somente clama pela inocência de Orestes, mas acredita que ele deveria “ser honrado
com uma coroa” pelo que ele fez. Para compreender o significado da afirmação do
autourgos, é necessário compreender que o que estava em questão no julgamento de
Orestes para a audiência ateniense – que vivia em meio à Guerra do Peloponeso – era a
questão da guerra e da paz: a decisão referente quanto a Orestes será agressiva e
instituirá a continuação das hostilidades, como na guerra, ou a decisão instituirá a paz?
A proposta de absolvição feita pelo autourgos simboliza o desejo pela paz. Mas ele
também afirma que Orestes deveria ser coroado por matar Clitemnestra, “uma vez que
nenhum homem deixaria sua casa, se armaria e marcharia para guerra se as esposas,
deixadas em confiança, fossem seduzidas pelos que ficassem em casa e homens bravos
fossem corneados”. Devemos nos lembrar de que Agamêmnon foi assassinado por
Egisto em seu retorno para casa após a Guerra de Tróia; pois, enquanto lutava contra o
inimigo longe de casa, Clitemnestra vivia em adultério com Egisto.
Agora podemos visualizar o preciso contexto político e histórico dessa cena. O
ano da produção da peça é 408 a.C., um momento em que a competição entre Atenas e
Esparta na Guerra do Peloponeso ainda era muito aguda. As duas cidades haviam lutado
por 23 longos anos com pequenos períodos intermitentes de trégua. Em 408, Atenas,
após as amargas e ruinosas derrotas de 413, havia recuperado uma parte de seu poderio
naval. Porém, em terra, a situação não era boa, e Atenas estava vulnerável à invasão
espartana. No entanto, Esparta fazia várias ofertas de paz a Atenas, tanto que a questão
de continuar a guerra ou fazer a paz era veementemente discutida.
Em Atenas, o partido democrático era a favor da guerra por razões econômicas
que são muito claras. O partido era, de forma genérica, apoiado por mercadores, lojistas,
homens de negócios e pelos que estavam interessados na expansão imperialista de
Atenas. O partido conservador aristocrático era a favor da paz, uma vez que era apoiado
por proprietários de terras e outros que queriam uma coexistência pacífica com Esparta,
como também uma constituição que fosse mais próxima, em alguns aspectos, à
constituição espartana.
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O líder do partido democrático era Cleofonte – que não era nativo de Atenas,
mas um estrangeiro registrado como cidadão. Um orador habilidoso e influente,
retratado de modo infame por seus próprios contemporâneos (por exemplo, dizia-se que
ele não era corajoso suficiente para tornar-se um soldado, que aparentemente tinha um
papel sexual passivo nas suas relações sexuais com outros homens, e assim por diante).
Então, vemos que todas as características do terceiro orador, o parrhesiastes negativo,
podem ser atribuídas à Cleofonte.
O líder do partido conservador era Terâmenes – que queria retornar à
constituição ateniense do século 4, que instituía uma oligarquia moderada. Seguindo
essa proposta, os principais direitos civis e políticos seriam reservados aos proprietários
de terras. Os traços do autourgos, o parrhesiastes positivo, portanto, correspondem a
Terâmenes.
Portanto, uma das questões claramente presentes no julgamento de Orestes é a
que estava, então, sendo debatida pelos partidos democrático e conservador, sobre se
Atenas deveria continuar a guerra com Esparta ou optar pela paz.
No Íon de Eurípedes, escrito dez anos antes do que Orestes, em torno de 418
a.C., a parrhesia foi apresentada como tendo somente um sentido ou valor positivo. E,
como vimos, era tanto a liberdade para expressar o próprio pensamento quanto um
privilégio conferido aos primeiros cidadãos de Atenas – um privilégio que Íon desejava
desfrutar. O parrhesiastes falava a verdade precisamente porque era um bom cidadão,
oriundo de boa família, e respeitava a cidade, a lei e a verdade. O problema para Íon era
que, para assumir o papel parrhesiástico que lhe cabia naturalmente, a verdade sobre o
seu nascimento teria que ser divulgada. Mas porque Apolo não queria divulgar essa
verdade, Creúsa teve que divulgar seu nascimento usando a parrhesia contra o deus em
uma acusação pública. E assim a parrhesia de Íon foi estabelecida, sendo fincada em
solo ateniense em um jogo entre mortais e deuses. Desse modo, não havia
“problematização” do parrhesiastes como tal nessa primeira concepção.
Entretanto, em Orestes há uma divisão na própria parrhesia entre seus sentidos
positivo e negativo, e o problema da parrhesia ocorre somente no campo dos papéis
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PROMETEUS - Ano 6 - Número 13 – Edição Especial - E-ISSN: 2176-5960
parrhesiásticos humanos. Essa crise da função da parrhesia tem dois aspectos
principais.
O primeiro concerne à questão: “Quem tem o direito de usar a parrhesia?” Basta
simplesmente aceitar a parrhesia como um direito civil de modo que todo e qualquer
cidadão pudesse falar na assembleia se e quando ele ou ela desejasse? Ou a parrhesia
deveria ser exclusivamente garantida a alguns cidadãos, de acordo com seu status social
ou virtudes pessoais? Há uma discrepância entre um sistema igualitário que capacita
todos a usarem a parrhesia e a necessidade de escolher, entre os cidadãos, aqueles que
são capazes (por causa de suas qualidades sociais ou pessoais) de usar a parrhesia de
modo tal que verdadeiramente beneficie a cidade. E essa discrepância faz da emergência
da parrhesia uma questão problemática. Pois, diferentemente da isonomia (a igualdade
de todos os cidadãos perante a lei) e da isegoria (o direito legal dado a todos de
expressar sua própria opinião), a parrhesia não era claramente definida em termos
institucionais. Não havia lei, por exemplo, protegendo o parrhesiastes de uma potencial
retaliação ou punição pelo que ele ou ela teria dito. E, assim, ainda havia um problema
na relação entre nomos e aletheia: como é possível dar forma legal a alguém que fala a
verdade? Há leis formais de validade racional, mas nenhuma lei social, política ou
institucional determinando quem é capaz de falar a verdade.
O segundo aspecto da crise concernente à função da parrhesia tem a ver com a
relação da parrhesia com a mathesis, o conhecimento e a educação – o que significa que
a parrhesia, por ela mesma, não é mais considerada adequada para revelar a verdade. A
relação do parrhesiastes com a verdade não pode mais ser estabelecida simplesmente
pela pura franqueza, pela pura coragem, pois a relação agora requer educação ou, de
forma mais genérica, algum tipo de formação pessoal. Porém, o tipo preciso de
formação pessoal ou educação necessária também é um problema (e é contemporâneo à
questão da sofística). Em Orestes, parece mais provável que a mathesis requerida não
seja aquela da concepção socrática ou platônica, mas um tipo de experiência que um
autourgos adquiriria no decorrer de sua própria vida.
Ora, penso que podemos começar a ver que essa crise em relação à parrhesia é
um problema da verdade, pois o problema é o de reconhecer quem é capaz de falar a
verdade dentro dos limites de um sistema institucional no qual todos estão igualmente
capacitados a manifestar sua própria opinião. A democracia, por ela mesma, não é capaz
de determinar quem tem as qualidades específicas que capacitem a falar a verdade (e
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assim, teria o direito de falar a verdade). E a parrhesia, como atividade verbal, como
pura franqueza ao falar, também não é suficiente para revelar a verdade, uma vez que a
parrhesia negativa, a franqueza ignorante, também pode daí resultar.
A crise da parrhesia, que emerge na encruzilhada de uma interrogação sobre a
democracia e uma sobre a verdade, dá origem a uma problematização de algumas
relações, até agora não problematizadas, entre liberdade, poder democracia, educação e
verdade na Atenas do final do século 5 a.C. Do problema precedente acerca da obtenção
do acesso à parrhesia, apesar do silêncio do deus, nos movemos para uma
problematização da parrhesia, i.e. a própria parrhesia torna-se problemática, dividida
em si mesma.
Eu não desejo sugerir que a parrhesia, como uma noção explícita, emirja nesse
momento de crise – como se os gregos não tivessem previamente qualquer ideia
coerente da liberdade de falar, ou do valor da fala livre. O que eu digo é que há uma
nova problematização da relação entre atividade verbal, educação, liberdade, poder e as
instituições políticas existentes que marca uma crise no modo que a liberdade de falar é
compreendida em Atenas. E essa problematização exige uma nova forma de abordagem
e de questionamentos a respeito dessas relações.
Eu enfatizo esse ponto por pelo menos este seguinte motivo metodológico: eu
gostaria de distinguir entre a “história das ideias” e a “história do pensamento”. Na
maior parte das vezes, um historiador das ideias tenta determinar quando um conceito
específico aparece, e esse momento é frequentemente identificado com o aparecimento
de uma nova palavra. Porém, o que eu estou tentando fazer como um historiador do
pensamento é algo diferente. Estou tentando analisar a maneira como as instituições,
práticas, hábitos e comportamento tornaram-se um problema para as pessoas que se
comportavam de um modo específico, que tinham certos tipos de hábitos, que se
engajavam em certos tipos de práticas e que faziam funcionar tipos específicos de
instituições. A história das ideias envolve a análise do nascimento de uma noção, do seu
desenvolvimento e das suas relações com outras ideias que fazem parte de seu contexto.
A história do pensamento é análise do modo como um campo não problemático da
experiência, ou um conjunto de práticas, que antes eram aceitas sem questionamentos,
que eram familiares e não discutidas, tornam-se um problema e levantam discussões e
debates, incitam novas reações e induzem uma crise no comportamento, no hábito, nas
práticas ou instituições que, até então, eram silenciosos. A história do pensamento,
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compreendida desse modo, é a história do modo como as pessoas começam a se
preocupar com algo, do modo como se tornam ansiosas com isso ou aquilo – por
exemplo, com a loucura, com o crime, com sexo, com elas próprias ou com a verdade.
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3ª. CONFERÊNCIA: PARRHESIA E A CRISE DAS INSTITUIÇÕES
DEMOCRÁTICAS
Agora eu gostaria de passar para outro texto, que apresenta uma posição muito
mais moderada. É um texto escrito por Isócrates na metade do século 4. E Isócrates se
refere várias vezes à noção de parrhesia e ao problema da liberdade de falar na
democracia. No início de seu grande discurso, Sobre a Paz, escrito em 355 a.C.,
Isócrates contrasta a atitude do povo ateniense ao buscar conselhos para seus negócios
privados, quando consulta indivíduos razoáveis e bem educados, com a maneira que
busca conselhos quando lida com negócios públicos e atividades políticas:
[...] Quando quer que se tome conselhos acerca dos negócios privados, busca-
se como conselheiros homens que sejam superiores em inteligência, porém
quando se delibera sobre os negócios do estado, se desconfia e antipatiza com
os que têm esse caráter, e se cultiva, de fato, os oradores mais depravados que
se apresentam sobre o palanque; prefere-se, como melhores amigos do povo, os
bêbados aos que os que são sóbrios, os idiotas aos que são sábios, os que
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distribuem o dinheiro público aos que realizam serviços públicos às suas
próprias expensas. Então nós bem deveríamos é ficar surpresos que alguém
possa esperar que um estado que emprega tais conselheiros possa avançar para
o melhor.
Mas os atenienses não somente ouvem os oradores mais depravados: eles nem
ao menos desejam ouvir os oradores verdadeiramente bons, pois lhes negam a
possibilidade de serem ouvidos:
Observo [...] que vós não ouvis com igual favor os oradores que se dirigem a
vós, mas que, enquanto prestam atenção a alguns, a outros nem mesmo
suportais ouvir suas vozes. E não é surpreendente que façais isso; pois no
passado adquirirdes o hábito de tocar para fora do palanque todos os oradores,
exceto aqueles que apoiassem os vossos desejos.
E penso que isso é importante. Vê-se que a diferença entre o bom e o mau orador
não repousa primariamente no fato de que um dá bom conselho enquanto o outro, um
mau. A diferença repousa nisto: o orador depravado, aceito pelo povo, somente diz o
que o povo deseja ouvir. Por isso Isócrates chama tais oradores de “bajuladores”. O
orador honesto, ao contrário, tem a habilidade e é corajoso suficiente para opor-se ao
demos. Ele tem um papel crítico e pedagógico que requer que ele tente transformar o
desejo dos cidadãos para que eles sirvam os melhores interesses da cidade. Essa
oposição entre o desejo do povo e os melhores desejos da cidade é fundamental para a
crítica de Isócrates às instituições democráticas de Atenas. E ele conclui que, por não
ser nem mesmo possível ser ouvido em Atenas se não se papaguear o desejo do povo,
há democracia – que é uma coisa boa –, mas os únicos falantes parrhesiásticos ou
francos restantes são “oradores imprudentes” e “poetas cômicos”:
Eu sei que é perigoso opor-se à sua visão e que, embora esse seja um governo
livre, não existe “liberdade de fala” (parrhesia), exceto aquela que é desfrutada
nessa Assembleia pelos mais imprudentes oradores, que não cuidam do seu
bem-estar, e, no teatro, pelos poetas cômicos.
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Portanto, a real parrhesia, parrhesia em seu sentido positivo, no sentido crítico,
não existe onde a democracia existe.
No Aeropagítico (355), Isócrates fornece um conjunto de distinções que, de
modo similar, expressa essa ideia geral da incompatibilidade da verdadeira democracia
e a parrhesia crítica. Ele compara a velha constituição de Sólon e a de Clístenes com a
presente vida política ateniense e elogia os velhos políticos por eles terem dado à Atenas
a democracia, a liberdade, a felicidade e a igualdade perante a lei. Todas essas
características positivas da velha democracia, entretanto, ele afirma terem se pervertido
na presente democracia ateniense. Democracia se tornou a ausência de autocontrole. A
liberdade se tornou a ilegalidade. A felicidade se tornou fazer qualquer coisa que se
desejar. E a igualdade perante a lei se tornou parrhesia. Nesse texto, a parrhesia tem
somente sentido negativo e pejorativo. Então, como podem ver, em Isócrates há uma
constante avaliação positiva da democracia em geral, porém associada à asserção de que
é impossível usufruir conjuntamente da democracia e da parrhesia (compreendida em
seu sentido positivo). Ademais, ainda há a mesma desconfiança dos sentimentos,
opiniões e desejos que encontramos de forma mais radical na sátira do Velho Oligarca.
Um terceiro texto que gostaria de examinar vem da República de Platão, em que
Sócrates explica como a democracia surge e se desenvolve. Pois ele diz a Adimanto
que:
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O que é interessante, nesse texto, é que Platão não censura a parrhesia por
propiciar a qualquer um a possibilidade de influenciar a cidade, inclusive aos piores
cidadãos. Para Platão, o perigo primário da parrhesia não é o de motivar decisões ruins
no governo, ou propiciar os meios para algum líder ignorante ou corrupto ganhar o
poder e se tornar tirano. O perigo primário da liberdade e da fala livre em uma
democracia é o que resulta quando qualquer um tem seu próprio modo de vida, seu
próprio estilo de vida. Pois não pode haver um logos comum, nenhuma possibilidade de
unidade, para a cidade. Seguindo o princípio de Platão de que há uma analogia entre o
modo do ser humano se comportar e o modo da cidade ser governada, entre a
organização hierárquica das faculdades de um ser humano e o modelo constitucional de
uma polis, pode-se ver muito bem que, se qualquer um na cidade se comportar apenas
como desejar, com cada pessoa seguindo sua própria opinião, sua própria vontade ou
desejo, então há na cidade tantas constituições, como várias pequenas cidades
autônomas, quantos são cidadãos fazendo quaisquer coisas que desejem. Pode-se ver
que Platão também considera a parrhesia não somente como a liberdade de falar
qualquer coisa que se deseje, mas também a relaciona com a liberdade de fazer qualquer
coisa que se deseje. É uma espécie de anarquia envolvendo a liberdade de se escolher o
próprio estilo de vida, sem limitações.
Bem, há muitas outras coisas para se dizer sobre a problematização da parrhesia
na cultura grega, mas penso que podemos observar dois aspectos principais dessa
problematização durante o século 4.
Primeiro, como fica claro no texto de Platão, por exemplo, o problema da
liberdade de fala se torna cada vez mais relacionado à escolha de existência, à escolha
do próprio modo de vida. A liberdade no uso do logos se torna cada vez mais liberdade
na escolha do bios. E, como resultado, a parrhesia é vista mais e mais como uma atitude
pessoal, uma qualidade pessoal, como uma virtude que é útil para a vida política da
cidade, no caso da parrhesia positiva ou crítica, ou perigosa para a cidade, no caso da
parrhesia negativa, pejorativa. Em Demóstenes, por exemplo, pode-se achar um
punhado de referências à parrhesia, mas a parrhesia é usualmente citada como uma
qualidade pessoal e não como um direito institucional. Demóstenes não busca e nem
tematiza as garantias institucionais da parrhesia, mas insiste no fato de que ele,
enquanto cidadão, usará a parrhesia porque ele deve audaciosamente falar a verdade
sobre os maus políticos da cidade. Ele afirma que, assim fazendo, corre grande risco,
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pois é perigoso para ele falar livremente, dado que, na assembleia, os atenienses são
relutantes para aceitar qualquer crítica.
Em segundo lugar, podemos observar outra transformação na problematização
da parrhesia: a parrhesia é cada vez mais vinculada a outro tipo de instituição política,
a saber, a monarquia. A liberdade de fala deve agora ser usada diante do rei. Porém,
como é óbvio em tal situação, a parrhesia é muito mais dependente das qualidades
pessoais tanto rei (que deve aceitar ou rejeitar o uso da parrhesia) quanto dos
conselheiros do rei. A parrhesia não é mais um direito ou privilégio institucional –
como na cidade democrática –, mas muito mais uma atitude pessoal, uma escolha de
bios. Essa transformação é evidente, por exemplo, em Aristóteles. A palavra parrhesia
raramente é usada por Aristóteles, mas ocorre em quatro ou cinco lugares. Não há,
portanto, uma análise política do conceito de parrhesia relacionado a qualquer
instituição política, pois, quando a palavra ocorre, ela está sempre relacionada à
monarquia ou a características éticas e morais pessoais. Na Constituição de Atenas,
Aristóteles dá um exemplo de parrhesia crítica positiva durante a tirania de Pisístrato.
Como vocês sabem, Aristóteles considerava que Pisístrato era um tirano humano e
benevolente, cujo reinado fora muito frutífero para Atenas. E Aristóteles fornece o
seguinte relato de como Pisístrato encontrou um pequeno proprietário, após ele ter
imposto uma taxa de dez por cento sobre toda produção:
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4ª. CONFERÊNCIA: A PRÁTICA DA PARRHESIA
1. Parrhesia Socrática
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principal que gostaria de citar, uma vez que emprega a parrhesia no sentido cotidiano e
não é um exemplo da parrhesia socrática.
De um ponto de vista estritamente teórico, o diálogo é um fracasso, porque
ninguém no diálogo é capaz de dar uma definição de “coragem” racional, verdadeira e
satisfatória – que é o tópico da obra. Mas, a despeito do fato de que mesmo o próprio
Sócrates não é capaz de dar tal definição, no fim do diálogo, Nícias, Laques, Lisímaco e
Melésias, todos concordam que Sócrates seria o melhor professor para seus filhos. E,
então, Lisímaco e Melésias lhe pedem para assumir esse papel. Sócrates aceita, dizendo
que todos deveriam tentar cuidar de si próprios e de seus filhos (201b4). E aqui se
encontra uma noção que, como alguns sabem, eu gosto muito: o conceito de epimeleia
heautou, o “cuidado de si”. Temos então penso eu, um movimento visível através desse
diálogo: da figura parrhesiástica de Sócrates para o problema do cuidado de si.
Contudo, antes de lermos as passagens específicas do texto que gostaria de citar,
devemos lembrar a situação no começo do diálogo. Mas, uma vez que o Laques é muito
complexo e imbricado, o farei somente breve e esquematicamente.
Dois homens idosos, Lisímaco e Melésias, estão preocupados com o tipo de
educação que deveriam dar a seus filhos. Ambos pertencem a eminentes famílias
atenienses: Lisímaco é o filho de Aristides, “o Justo”, e Melésias é o filho de Tucídides,
“o Ancião”. Mas, embora seus próprios pais fossem ilustres em suas próprias épocas,
Lisímaco e Melésias não realizaram nada de muito especial ou glorioso em suas
próprias vidas: nenhuma campanha militar importante, nenhum papel político
significativo. Usam a parrhesia para admitir isso publicamente. E eles também se
perguntam: “Como é que, de tão bons genos, de tão boas procedências, de tão nobres
famílias, ambos eram incapazes de se notabilizarem?” Claramente, como suas próprias
experiências demonstram, ter um bom berço e pertencer a uma nobre casa ateniense não
é o suficiente para dotar alguém com a aptidão e a habilidade para assumir um papel ou
uma posição proeminente na cidade. Eles imaginam que algo mais é necessário, a saber,
a educação.
Mas que tipo de educação? Quando consideramos que a data dramática do
Laques é em torno do fim do século 5, uma época em que muitos indivíduos – vários
deles se apresentando como sofistas – afirmaram que poderiam prover os jovens com
uma boa educação, podemos reconhecer aqui um problema que é comum a vários
diálogos platônicos. As técnicas educacionais que estavam sendo propostas nessa época
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normalmente lidavam com vários aspectos da educação, por exemplo, a retórica (saber
como se dirigir a um júri ou uma assembleia política), várias técnicas sofísticas e
amiúde a educação e treinamento militares. Na Atenas da época, havia também um
grande problema sendo debatido acerca da melhor forma de educar e treinar os soldados
de infantaria – que eram enormemente inferiores aos hoplitas espartanos. E todas as
preocupações políticas, sociais e institucionais com a educação, que, no contexto geral
desse diálogo, se relacionam com o problema da parrhesia. No campo político, vimos
que havia uma necessidade de que o parrhesiastes pudesse falar a verdade sobre as
instituições e decisões políticas, e o problema era saber como reconhecer tal falante da
verdade. Em sua forma básica, o mesmo problema reaparece agora no campo da
educação. Pois se a própria pessoa não é bem-educada, como pode então decidir o que
constitui uma boa educação? E se o povo deve ser educado, deve receber a verdade de
um professor competente. Mas como podemos distinguir os bons professores, falantes
da verdade, dos maus ou desnecessários?
É para serem ajudados a tomar tal decisão que Lisímaco e Melésias pedem que
Nícias e Laques testemunhem uma performance dada por Estesilao – um homem que
afirma ser um professor de hoplomachia, ou a arte de lutar com armadura pesada. Esse
professor é um atleta, técnico, ator e artista. O que significa que embora seja muito
habilidoso no manuseio de armas, ele usa sua habilidade para, de fato, lutar contra o
inimigo, mas somente para fazer dinheiro, dando performances públicas e ensinando os
jovens. O homem é um tipo de sofista das artes marciais. Contudo, após virem suas
habilidades serem demonstradas em sua performance pública, nem Lisímaco e nem
Melésias são capazes de decidir se esse tipo de habilidade na luta constituiria parte de
uma boa educação. Então eles se voltam para figuras notórias de seu tempo, Nícias e
Laques, e pedem seus conselhos (178a-181d).
Nícias é um general experiente que obteve várias vitórias no campo de batalha e
era um importante líder político. Laques também é um general respeitado, embora não
desempenhe um papel importante na política ateniense. Ambos dão suas opiniões sobre
a demonstração de Estesilao e estão em completo desacordo quanto ao valor de sua
habilidade militar. Nícias pensa que sua técnica militar é boa e que sua habilidade pode
ser capaz de prover aos jovens uma boa educação militar (181e-182d). Laques discorda
e argumenta que os espartanos – que são os melhores soldados da Grécia – nunca
recorreram a tais professores. Além disso, ele pensa que Estesilao não é um soldado,
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uma vez que nunca obteve nenhuma vitória real em batalha (182d-184c). Por meio
dessa discordância vemos que não somente cidadãos comuns, sem quaisquer qualidades
especiais, são incapazes de decidir qual é o melhor tipo de educação, e quem é capaz de
ensinar habilidades que valham a pena aprender, mas mesmo aqueles que têm uma
longa experiência militar e política, como Nícias e Laques, não podem chegar a uma
decisão unânime.
No fim, contudo, Nícias e Laques concordam que, apesar de sua fama, seus
importantes papéis nas questões atenienses, sua idade, sua experiência, e assim por
diante, eles deveriam consultar Sócrates – que estava lá o tempo todo – para saber o que
ele pensa. E, após Sócrates lhes lembrar de que a educação ocupa-se com o cuidado da
alma (185d), Nícias explica porque ele permitirá que sua alma seja “testada” por
Sócrates, ou seja, porque ele participará do jogo parrhesiástico socrático. E essa
explicação de Nícias é, penso eu, um retrato de Sócrates como um parrhesiastes:
NÍCIAS: Parece-me que ignoras que, quem quer que entre em muito estreito
contato com Sócrates em uma discussão, e dele se aproxime cara a cara, lhe é
forçoso, ainda que tenha começado a dialogar acerca de qualquer outra coisa,
não parar, arrastado por ele no diálogo, até conseguir que dê uma explicação de
si mesmo, do modo como atualmente passa seus dias, e ainda do que haja feito
em seu passado. E uma vez que tenha sido levado a isso, Sócrates não o
deixará até que tenha posto tudo bem e suficientemente em teste. Ora, estou
acostumado com ele e sei que há de suportar tais coisas, como também que
sofrerei o mesmo tratamento. Mas me alegro, Lisímaco, por estar a conversar
com este homem, e não creio que haja perigo em ele recordar-nos os erros do
passado e do presente: de fato, creio que forçosamente está mais bem
predisposto para toda a vida aquele que não foge de tal experiência, que a
enfrenta voluntariamente e, segundo o preceito de Sólon, deseja aprender
enquanto vive e não crê que a velhice por si só trará bom senso. Para mim não
resulta em nada insólito ou desagradável expor-me às provas e ser testado por
Sócrates. Há tempos sabia que, estando Sócrates presente, nosso argumento
não poderia ser sobre os jovens, mas seria sobre nós mesmos. Como lhes digo,
da minha parte não há inconveniente em dialogar com Sócrates do modo como
ele preferir.
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O discurso de Nícias descreve o jogo parrhesiástico de Sócrates sob o ponto de
vista de alguém que é “testado”. Mas, diferentemente do parrhesiastes que se dirige ao
demos na assembleia, por exemplo, aqui temos um jogo parrhesiástico que requer uma
relação pessoal, cara a cara. Assim, o começo da citação afirma que: “quem quer que
entre em muito estreito contato com Sócrates em uma discussão e dele se aproxime cara
a cara” (187e). O interlocutor de Sócrates deve entrar em contato com ele, estabelecer
alguma proximidade, para participar do jogo parrhesiástico. Esse é o primeiro ponto.
Em Segundo lugar, nessa relação com Sócrates, o ouvinte é conduzido pelo
discurso de Sócrates. A passividade do ouvinte socrático, contudo, não é o mesmo tipo
de passividade do ouvinte da assembleia. A passividade do ouvinte do jogo
parrhesiástico político consiste em ser persuadido pelo que ele ouve. Aqui, o ouvinte é
levado pelo logos socrático a “dar um relato” – didonai logon – de si mesmo, “do modo
como atualmente passa seus dias e ainda do que haja feito em seu passado” (187e-
188a). Porque somos inclinados a ler tais textos pelos olhos da cultura cristã, acabamos
interpretando essa descrição do jogo socrático como uma prática na qual aquele que é
conduzido pelo discurso de Sócrates deve dar um relato autobiográfico de sua vida, ou
uma confissão de suas faltas. Contudo, tal interpretação olvida o real significado do
texto. Pois, quando comparamos essa passagem com descrições similares do método
socrático de exame – como na Apologia, no Alcibíades Maior, ou no Górgias, onde
também encontramos a ideia de que ser levado pelo logos de Sócrates é “dar um relato”
de si mesmo – vemos muito claramente que o que está envolvido não é uma confissão
autobiográfica. Nos retratos de Sócrates por Platão ou Xenofonte, nunca o vemos
pedindo um exame de consciência ou uma confissão dos pecados. Aqui, dar um relato
da sua própria vida, seu bios, tampouco é dar uma narrativa dos eventos históricos que
acontecerem em suas vidas, mas, de fato, demonstrar se é capaz de mostrar que há uma
relação entre o discurso racional, o logos, que é capaz de usar, e o modo que vive.
Sócrates está investigando o modo que o logos dá forma ao estilo de vida de uma
pessoa, pois ele está interessado em descobrir se há uma relação harmônica entre os
dois. Mais à frente, no mesmo diálogo, (190d-194b), por exemplo, quando Sócrates
pede a Laques que dê o motivo de sua coragem, ele não quer uma narrativa das façanhas
de Laques na Guerra do Peloponeso, mas que Laques tente expor o logos que dá
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inteligibilidade racional à sua coragem. O papel de Sócrates então é pedir o relato
racional da vida de uma pessoa.
Esse papel é caracterizado no texto como o de um basanos, ou “pedra de toque”,
que testa o grau de acordo entre a vida de uma pessoa e seu princípio de inteligibilidade
do logos: “Sócrates não o deixará até que tenha posto tudo bem e suficientemente em
teste” (188a). A palavra grega basanos refere-se à “pedra de toque”, isto é, uma pedra
preta usada para testar a legitimidade do ouro através do exame do risco deixado na
pedra quando “tocada” pelo ouro. Similarmente, o papel “basânico” de Sócrates o
permite determinar a verdadeira natureza da relação entre o logos e o bios daqueles que
entram em contato com ele.
Então, na segunda parte da citação, Nícias explica que, como resultado do exame
de Sócrates, ele se torna capaz de cuidar do modo como vive o resto de sua vida,
querendo agora viver da melhor maneira possível. E essa capacidade toma a forma de
um zelo pelos próprios aprendizado e educação, não importa a idade.
O discurso de Laques, que se segue imediatamente ao de Nícias, descreve o jogo
parrhesiástico de Sócrates sob a perspectiva de alguém que investigou Sócrates no papel
de pedra de toque. Pois o problema que surge é o de como saber como podemos estar
certos que o próprio Sócrates é um bom basanos através do teste da relação entre logos
e bios na vida do seu ouvinte.
LAQUES: Eu tenho uma posição, Nícias, quanto a discussões, ou, caso prefira,
duas, ao invés de uma. Pois deve pensar-me como um amante e ainda como um
inimigo de discussões. Porque quando escuto um homem discutindo a virtude
ou qualquer tipo de sabedoria, e ele que é verdadeiramente um homem e
orgulhoso do seu argumento, fico sobejamente deliciado. Considero o que fala
e seu discurso juntos e observo como ele ordena e harmoniza um ao outro. Tal
homem é exatamente o que tomo por “musical”. Ele sintonizou-se com a mais
perfeita harmonia, não aquela da lira ou de outro instrumento musical, mas fez
um verdadeiro acordo, em sua própria vida, entre suas palavras e suas ações,
não no estilo jônico, nem no frígio, nem no lídio, mas simplesmente no dórico,
que é a única harmonia helênica. Tal homem me faz regozijar-me com seu
discurso, e qualquer um então poderia julgar-me como um amante da
discussão. Ansiosamente aceito o que ele diz. Mas um homem que mostra o
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caráter oposto me faz sofrer, e quanto melhor ele parece falar, mais sofro.
Como resultado, nesse caso sou julgado como um inimigo da discussão. Ora,
das palavras de Sócrates ainda não experimentei, mas anteriormente, imagino,
julguei suas ações. E aí o encontrei vivendo acima de quaisquer boas palavras,
ainda que livremente ditas. Assim, se ele tem esse dom, seu desejo é o meu, e
eu ficaria muito satisfeito de ser examinado por tal homem e não me irritaria
com o aprendizado.
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observar, na cultura greco-romana, o surgimento e desenvolvimento desse novo tipo de
parrhesia, que, penso eu, pode ser caracterizado do modo como se segue.
Primeiro, essa parrhesia é filosófica e foi, por séculos, posta em prática pelos
filósofos. De fato, uma grande parte da atividade filosófica que ocorreu na cultura
greco-romana requeria que se participasse de certos jogos parrhesiásticos. Muito
esquematicamente, penso que esse papel filosófico envolvia três tipos de atividade
parrhesiástica, todas elas relacionadas umas com as outras. Na medida em que o filósofo
tinha que descobrir e ensinar certas verdades sobre o mundo, a natureza e etc., ele ou ela
assumia um papel epistêmico. Tomando uma posição acerca da cidade, das leis, das
instituições políticas, e assim por diante, requeria, em adição, um papel político. Uma
atividade parrhesiástica também fomentava que se elaborassem questões sobre a
natureza das relações entre a verdade e o próprio estilo de vida, ou a verdade e as éticas
e estéticas do ser. A parrhesia, como aparece no campo da atividade filosófica na
cultura greco-romana, não é primordialmente um conceito ou um tema, mas uma prática
que tenta moldar as relações específicas que os indivíduos têm com eles próprios. E eu
penso que nossa própria subjetividade moral está enraizada, ao menos em parte, nessas
práticas. Mais precisamente, penso que o critério decisivo que identifica o parrhesiastes
não deve ser procurado em seu nascimento, sua cidadania, nem em sua competência
intelectual, mas na harmonia que existe entre seu logos e seu bios.
Em segundo lugar, a meta dessa nova parrhesia não é persuadir a assembleia,
mas convencer que se deve cuidar de si e dos outros. E isso significa que se deve mudar
sua vida. Esse tema da mudança de vida, da conversão, se torna muito importante do
século 4 a.C. até o começo do cristianismo. É essencial para práticas filosóficas
parrhesiásticas. É claro, a conversão não é completamente diferente da mudança de
mentalidade que um orador, usando a parrhesia, desejou implementar quando pediu aos
seus conterrâneos que rejeitassem o que previamente haviam aceitado, ou que
aceitassem o que haviam previamente recusado. Mas, na prática filosófica, a noção de
mudança de mentalidade assume um significado mais geral e expandido, uma vez que
não é mais somente uma questão de alterar uma crença ou uma opinião, mas de mudar o
estilo de vida, a relação com os outros e a relação consigo mesmo.
Em terceiro lugar, essas novas práticas parrhesiásticas implicam um conjunto
complexo de conexões entre o ser e verdade. Pois não somente essas práticas são
supostas como dotando o indivíduo com autoconhecimento, mas supõe-se que esse
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autoconhecimento, por sua vez, garanta acesso à verdade através de mais conhecimento.
O círculo implicado em saber a verdade sobre si mesmo para saber a verdade é
característico da prática parrhesiástica desde o século 4 e tem sido um dos enigmas
problemáticos do pensamento ocidental, por exemplo, para Descartes e Kant.
E um último ponto que gostaria de sublinhar sobre essa parrhesia filosófica é
que ela recorreu a numerosas técnicas bastante diferentes das técnicas do discurso
persuasivo previamente utilizadas e não é mais especialmente ligada à ágora, ou à corte
do rei, mas pode agora ser utilizada em numerosos e diversos lugares.
2. A Prática da Parrhesia
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3. Parrhesia e Vida Comunitária: Epicteto
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indispensáveis que residem na raiz do estadismo, considerado como a arte de governar
pessoas.
Se menciono essa afinidade antiga entre medicina, navegação e política, é para
indicar que, com a adição das técnicas parrhesiásticas de ‘guiamento espiritual’, um
corpus de technai clínicas interrelacionadas foi constituído durante o período
helenístico. É claro, a techne da pilotagem ou da navegação tem, sobretudo, um
significado metafórico. Mas uma análise das várias relações que a cultura greco-romana
acreditou existirem entre as três atividades clínicas da medicina, da política e da prática
da parrhesia seria importante.
Vários séculos mais tarde, Gregório de Nazianzeno chamaria o guiamento
espiritual de ‘técnica das técnicas’ – ars artium, techne technon. Essa expressão é
significativa, tendo em vista que o estadismo, ou a técnica política, fora anteriormente
considerada com a techne technon ou a Arte Real. Mas, do século 4 d.C. até o século 17,
na Europa, a expressão techne technon usualmente se refere ao guiamento espiritual
como a mais significativa técnica clínica. Essa caracterização da parrhesia como uma
techne relacionada com a medicina, a pilotagem e a política é indicativa da
transformação da parrhesia em uma prática filosófica. Da arte médica de governar
pacientes e da arte real de governar a cidade e seus súditos, nos movemos para a arte
filosófica de governar-se a si mesmo e agir como um tipo de ‘guia espiritual’ para as
outras pessoas.
Um outro aspecto do texto de Filodemo concerne às referências que contém à
estrutura das comunidades epicuristas, mas os comentadores de Filodemo discordam
quanto à forma exata, à complexidade e à organização hierárquica de tais comunidades.
De Witt pensa que a hierarquia que existia era muito bem estabelecida e complexa,
enquanto que Gigante pensa que era muito mais simples. Parece que havia ao menos
duas categorias de professores e dois tipos de ensinamentos nas escolas ou grupos
epicuristas. Havia ‘aulas’ em que um professor se dirigia a um grupo de estudantes. E
havia também a instrução na forma de entrevistas pessoais, nas quais um professor dava
conselhos a membros individuais da comunidade. Enquanto os professores de status
inferior somente davam aulas, os de status superior tanto davam aulas como também
davam entrevistas pessoais. Assim, uma distinção era feita entre o ensino geral e a
instrução ou guiamento pessoal. A distinção não era uma diferença em conteúdo, como
entre temas teóricos ou práticos – especialmente tendo em vista que os estudos em
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física, cosmologia e leis naturais tinham um significado ético para os epicuristas. Nem é
uma diferença em instrução, contrastando teoria ética e sua aplicação prática. De fato, a
diferença marca uma distinção na relação pedagógica entre professor e discípulo ou
estudante. Na situação socrática, havia um procedimento que capacitava o interlocutor a
descobrir sua verdade sobre si mesmo, a relação entre seu bios com seu logos, e esse
mesmo procedimento, ao mesmo tempo, também o capacitava a obter acesso às
verdades adicionais (sobre o mundo, as ideias, a natureza da alma, e assim por diante).
Nas escolas epicuristas, contudo, há a relação pedagógica de guiamento pela qual o
mestre ajuda o discípulo a descobrir a verdade sobre si mesmo, mas também há agora,
em adição, uma forma de ensino ‘autoritário’ numa relação coletiva na qual alguém fala
a verdade a um grupo de pessoas. Esses dois tipos de ensino se tornaram uma
característica permanente da cultura ocidental. E sabemos que, nas escolas epicuristas, o
papel de ‘guia espiritual’ era mais valorizado do que o de palestrante.
Não quero concluir a discussão sobre o texto de Filodemo sem mencionar uma
prática em que se engajaram – que chamaremos de ‘confissão mútua’ em um grupo.
Alguns dos fragmentos indicam que havia confissões em grupo ou encontros em que
cada um dos membros da comunidade expunha seus pensamentos, faltas, maus
comportamentos, e assim por diante. Sabemos muito pouco sobre tais encontros, mas,
se referindo a tal prática, Filodemo usa uma expressão interessante. Ele fala dessa
prática como ‘a salvação pelo outro’ – to di allelon sozesthai. A palavra sozesthai –
salvar a si próprio – na tradição epicurista significa ganhar acesso a uma vida boa, bela
e feliz. Não se refere a qualquer tipo de vida após a morte ou julgamento divino. Na
salvação de si próprio, outros membros da comunidade epicurista (O jardim) tinham um
papel decisivo a desempenhar, como agentes necessários que capacitavam a descoberta
da verdade sobre si mesmo e na ajuda da obtenção do acesso a uma vida feliz. Por isso a
ênfase muito importante quanto à amizade nos grupos epicuristas.
a. A pregação crítica
b. Comportamento escandaloso
c. Diálogo provocativo
Então está claro que Diógenes aparece aqui como o mestre da verdade, e, desse
ponto de vista, Alexandre tanto é inferior quanto tem conhecimento da sua
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inferioridade. Mas embora Alexandre tivesse alguns vícios de caráter e faltas, não é um
mau rei e escolhe Diógenes para participar do jogo parrhesiástico:
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ignorância. No caso de Diógenes, contudo, o orgulho é o alvo principal, e o jogo da
ignorância/conhecimento é um efeito colateral.
Desses ataques ao orgulho do interlocutor, vê-se que o interlocutor é levado ao
limite do primeiro contrato parrhesiástico, a saber, concordar em participar do jogo, em
escolher engajar-se na discussão. Alexandre quer se engajar numa discussão com
Diógenes, aceitar sua insolência e insultos, mas há um limite. E sempre que Alexandre
se sente insultado por Diógenes, fica nervoso e perto de desistir e mesmo de agredir
Diógenes. Então vejam que o jogo parrhesiástico cínico decorre no limite do contrato
parrhesiástico. Ele faz fronteira com a transgressão porque o parrhesiastes pode ter feito
muitas observações insultuosas. Aqui está um exemplo desse jogo no limite do acordo
parrhesiástico de engajamento na discussão:
[...] [Diógenes] foi ao rei e disse que ele nem mesmo possuía o distintivo da
realeza [...] “E que distintivo é esse?” perguntou Alexandre. “É o distintivo das
abelhas”, replicou ele, “que o rei traja. Nunca ouviste que há um rei entre as
abelhas, tão naturalmente feito que não ocupa cargo por virtude ou pelo que
pessoas, como tu, que traçam suas descendências a partir de Héracles chamam
de herança? “O que é esse distintivo?”, perguntou Alexandre. “Nunca ouviste
os fazendeiros dizerem”, perguntou o outro, “que é a única abelha que não tem
ferrão, uma vez que não precisa de arma contra ninguém? Pois nenhuma outra
abelha desafiará seu direito de ser rei ou lutará contra ela enquanto ela tiver
esse distintivo. Creio, contudo, que não somente andas completamente armado,
mas que mesmo dormes assim. Não sabes”, continuou ele, “que é para um
homem um sinal de medo se ele anda armado? E que nenhum homem que tem
medo deveria ter mesmo a chance de se tornar rei mais do que um escravo.”
Os raciocínios de Diógenes são: se alguém porta armas, tem medo. Ninguém que
tem medo pode ser um rei. Então, uma vez que Alexandre porta armas, não pode ser um
rei real. E, é claro, Alexandre não está muito feliz com sua lógica. E Díon continua: “A
essas palavras Alexandre chegou perto de arremessar sua lança.” Esse gesto, é claro,
seria a ruptura, a transgressão do jogo parrhesiástico. Quando o diálogo chega ao seu
ponto crucial, há duas possibilidades disponíveis para Diógenes trazer Alexandre de
volta ao jogo. Um meio é o seguinte. Diógenes diz, com efeito, “Tudo bem. Eu sei que
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te sentes ultrajado e que também és livre. Tens tanto a habilidade quanto a sanção legal
para me matar. Mas serás corajoso o suficiente para ouvir de mim a verdade ou serás
um covarde tal que me matará?’ E, por exemplo, após Diógenes ter insultado
Alexandre, num ponto do diálogo ele lhe diz:
“[...] Em vista do que eu digo sentes raiva e te empinas [...] e me achas o maior
canalha e me calunias para o mundo e, se for o teu prazer, traspassa-me com
tua lança, pois sou o único homem com quem vais saber a verdade, e não vais
aprendê-la com mais ninguém. Pois todos são menos honestos do que eu sou e
mais servis”.
“[...] Não foi Olímpia quem disse que Felipe não é teu pai, como de fato
ocorre, mas um dragão ou Ammon ou algum deus, ou semideus ou animal
selvagem? E nesse caso certamente serias um bastardo.”
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E então Alexandre riu e ficou satisfeito como nunca antes, pensando que
Diógenes, longe de estar sendo rude, era, dos homens, o que mais tinha tato e o único
que realmente sabia como retribuir um elogio.
Enquanto o diálogo socrático traça um caminho intrincado e sinuoso de um
entendimento ignorante para o conhecimento da ignorância, o diálogo cínico é muito
mais como uma luta, uma batalha, ou uma guerra, com picos de grande agressividade e
momentos de pacífica calma – trocas pacíficas que, é claro, são armadilhas adicionais
para o interlocutor. No Quarto Discurso, Díon Crisóstomo explica a razão por trás dessa
estratégia de misturar agressividade e doçura. Diógenes pergunta a Alexandre:
“Não ouviste o mito líbio?” E o rei respondeu que não. Então Diógenes lhe
disse, com entusiasmo e encanto, porque queria deixá-lo de bom humor, assim
como as babás, após terem dado á criança uma surra, lhes contam uma estória
para confortá-las e agradá-las.
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Eu penso que precisamos sublinhar vários pontos desse ensaio. Primeiro, porque
precisamos, em nossas vidas pessoais, ter algum amigo que desempenhe o papel de um
parrhesiastes, de um falante da verdade? A razão que Plutarco dá é encontrada no tipo
predominante de relacionamento que amiúde temos com nós mesmos, a saber, uma
relação de philautia ou “amor de si”. Essa relação de amor de si é, para nós, fundamento
de uma ilusão persistente sobre o que realmente somos:
É por causa desse amor de si que todos são seus próprios e maiores
bajuladores, e então não encontram dificuldades em admitir ao que está de fora
que testemunhe a favor disso e confirme seus próprios conceitos e desejos. Pois
o homem do qual se diz, com opróbio, que é um amante de bajuladores é
também, em alto grau, um amante de si. E, por causa do seu sentimento gentil
para consigo mesmo, ele deseja e concebe a si mesmo como dotado de todas as
boas maneiras ou qualidades. Mas, embora o desejo disso não seja antinatural,
o conceito que uma pessoa possui de si é nesse caso perigoso e deve ser
cuidadosamente evitado. Ora, se a verdade é uma coisa divina, e, como coloca
Platão, é a origem “de todo bem para os deuses e de todo o bem para os
homens” (Leis, 730c), então o bajulador é, em todos os aspectos, um inimigo
dos deuses e, em particular, do deus pítio. Pois o bajulador sempre toma uma
posição contrária à máxima “Conhece-te a ti mesmo”, criando em todos os
homens o engano sobre si mesmos e a ignorância tanto de si mesmos quanto do
bem e do mal que lhes concernem, pois o bem se torna defeituoso e incompleto
e o mal totalmente impossível de corrigir.
É claro que há muitas outras coisas muito interessantes sobre esse ensaio. Mas
eu gostaria de sublinhar dois temas principais. Primeiro, o tema do autoengano e sua
ligação com a philautia – que não é algo completamente novo. Mas, no texto de
Plutarco, pode-se ver que essa noção de autoengano como consequência do amor de si é
claramente diferente de estar em um estado de ignorância quanto à própria falta de
autoconhecimento – um estado que Sócrates tentou superar. A concepção de Plutarco
enfatiza o fato de que não somente somos incapazes de saber que não sabemos nada,
mas que também somos incapazes de saber exatamente o que somos. E eu penso que
esse tema do autoengano se torna cada vez mais importante na cultura helenística. No
período de Plutarco isso é algo realmente significativo.
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Um segundo tema que gostaria de enfatizar é a constância da mente. Isso
também não é algo novo, pois, para o último estoicismo, a noção de constância assume
uma grande importância. E há uma relação óbvia entre esses dois temas – o tema do
autoengano e o tema da constância ou persistência da mente. Pois destruir o autoengano,
adquirir e manter a continuidade da mente são duas atividades ético/morais ligadas uma
à outra. O autoengano que impede alguém de conhecer quem é e todas as mudanças em
sua mente, sentimentos e opiniões que forçam que se mova de um pensamento para
outro, de um sentimento para outro, de uma opinião para outra, demonstra essa ligação.
Pois se alguém é capaz de discernir exatamente o que é, então finca-se num mesmo
ponto e não será movido por nada. Se alguém é movido por algum tipo de estímulo,
sentimento, paixão, etc., então não é capaz de ficar próximo de si mesmo, é dependente
de algo além, é dirigido por diferentes preocupações e, consequentemente, não é capaz
de manter a posse completa de si mesmo.
Esse dois elementos – estar enganado sobre si mesmo e ser movido no mundo e
nos pensamentos - ambos se desenvolveram e ganharam significado na tradição cristã.
No cristianismo antigo, Satã é amiúde representado como o agente tanto do autoengano
(oposto à renúncia ao ser) e da mobilidade da alma – a instabilidade ou a inconstância
de alma, oposta à firmitas na contemplação de Deus. Fixar a mente em Deus era um
caminho tanto para renunciar ao ser quanto para eliminar qualquer tipo de autoengano.
E era também um modo de adquirir uma constância ética e ontológica. Então penso que
podemos ver no texto de Plutarco – na análise da relação entre parrhesia e bajulação –
alguns elementos que se tornaram significativos para a tradição cristã.
Eu gostaria de me referir agora, muito brevemente, a um texto de Galeno (130-
200 d.C.) – o médico famoso do fim do segundo século – no qual se pode ver o mesmo
problema: como é possível reconhecer um verdadeiro parrhesiastes? Galeno levanta
essa questão em seu ensaio “O Diagnóstico e a Cura das Paixões da Alma”, no qual
explica que, para que um homem se libertar de suas paixões, ele precisa de um
parrhesiastes, pois, assim como em Plutarco um século antes, a philautia, o amor de si,
é a raiz do autoengano:
[...] Vemos as faltas dos outros, mas continuamos cegos quanto àquelas que
nos concernem. Todos os homens admitem a verdade disso e, ademais, Platão
fornece a razão para tal (Leis, 731e). Ele diz que o amante é cego quanto ao
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objeto de seu amor. Se, portanto, cada um de nós ama a si próprio acima de
tudo, deve-se ser cego em seu próprio caso [...] Há paixões da alma que todos
conhecem: raiva, ira, medo, tristeza, inveja e luxúria violenta. Na minha
opinião, a veemência excessiva no amor ou no ódio por algo também é uma
paixão. Eu penso que o dito ‘a moderação é o melhor’ é correto, uma vez que
nenhuma ação imoderada é boa. Como então poderia um homem cortar fora
essas paixões se ele não primeiramente soube que as possuía? Mas, como
dissemos, é impossível conhecê-las, uma vez que nos amamos em excesso.
Mesmo se esse dito não permitir que julgue a si próprio, permite que se possa
julgar os outros que nem se ama e nem se odeia. Quando quer que ouças
alguém na cidade sendo elogiado por não bajular ninguém, associa-te a esse
homem e julga, a partir da tua própria experiência, se ele é o tipo de homem
que dizem que é [...] Quando um homem não cumprimenta o poderoso ou o
rico pelo nome, quando não os visita, quando não janta com eles, quando vive
uma vida disciplinada, espere desse homem que diga a verdade. Tente também
chegar a um conhecimento mais profundo do tipo de homem que ele é (e isso
advém por meio de longa associação). Se encontrares tal homem, convoca-o e
conversa privadamente com ele um dia. Pede-lhe que revele estritamente quais
das paixões mencionadas acima ele pode ver em ti. Diz-lhe que serás muito
grato por seu serviço e que olharás para ele como teu salvador mais do que se o
tivesse salvo de um mal corporal. Fá-lo prometer que revelará as paixões
quando quer que te veja afetado por qualquer uma das que mencionei.
É interessante notar que, nesse texto, o parrhesiastes – que todos precisam para
se livrarem de seu próprio autoengano – não precisa ser um amigo, alguém conhecido,
alguém com quem se esteja acostumado. E isso, penso eu, constitui uma diferença
muito importante entre Galeno e Plutarco. Em Plutarco, Sêneca e na tradição que deriva
de Sócrates, o parrhesiastes sempre precisa ser um amigo. E a relação com esse amigo
estava sempre na raiz do jogo parrhesiástico. Pelo que sei, pela primeira vez com
Galeno o parrhesiastes não mais precisa ser um amigo. De fato, é muito melhor, nos diz
Galeno, que o parrhesiastes seja alguém desconhecido, para que ele seja completamente
neutro. Um bom falante da verdade que lhe dá conselhos honestos sobre a alguém não
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o odeia, mas também não o ama. Um bom parrhesiastes é alguém com quem não se
teve previamente uma relação particular.
Mas, é claro, não se pode escolher a esmo. Deve-se checar alguns critérios para
saber se ele realmente é capaz de revelar as faltas. E por isso deve-se ouvi-lo. Ele tem
uma boa reputação? É velho o suficiente? É rico o suficiente? É muito importante que
aquele que desempenhe o papel de parrhesiastes seja pelo menos tão rico quanto o
outro é, ou mais. Pois se ele é pobre e o outro é rico, então as chances de que ele seja
um bajulador são maiores – uma vez que agora lhe interessa sê-lo.
Os cínicos, é claro, diriam que alguém que é rico não pode realmente ser sábio,
então não é frutífero escolhê-lo como um parrhesiastes. A ideia de Galeno de selecionar
alguém que é igualmente rico para agir como falante da verdade pareceria ridícula para
um cínico.
Mas também é interessante notar que, nesse ensaio, o falante da verdade não
precisa ser um médico. Pois, a despeito do fato de que Galeno era ele próprio um
médico e era amiúde obrigado a ‘curar’ as excessivas paixões dos outros, e amiúde era
bem-sucedido, ele não requer do parrhesiastes que seja um médico ou que possua a
habilidade de curar suas paixões. Tudo que é requerido é que seja capaz de dizer a
verdade sobre o outro.
Mas isso ainda não é o suficiente para saber que o falante da verdade é velho o
suficiente, rico o suficiente, e tem boa reputação. Ele deve também ser testado. E
Galeno dá um programa de teste do potencial parrhesiastes. Por exemplo, deve-se
perguntar-lhe coisas sobre ele próprio e ver como ele responde para determinar se será
severo o suficiente para o papel. Deve-se suspeitar quando o pretenso parrhesiastes o
elogia, quando não é severo o suficiente, e assim por diante.
Galeno não elabora o papel preciso do parrhesiastes em “O Diagnóstico e Cura
das Paixões da Alma”, ele somente dá uns poucos exemplos do tipo de advertência que
ele próprio deu quando desempenhou o papel para os outros. Mas, para resumir o que
foi dito acima, nesse texto a relação entre parrhesia e amizade não mais parece proceder
e há um tipo de julgamento ou exame requerido ao parrhesiastes pelo seu ‘patrão’ ou
‘cliente’.
Eu peço desculpas por ter sido tão breve quanto a esses textos de Plutarco e
Galeno, mas eles não são muito difíceis de ler, só difíceis de encontrar.
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5ª. CONFERÊNCIA: TÉCNICAS DE PARRHESIA
Todos os nossos sentidos devem ser treinados para a resistência. Eles são
naturalmente pacientes se apenas a mente desistir de enfraquecê-los. Ela
deveria ser convocada para dar um relato sobre si mesma todos os dias. Séxtio
tinha esse hábito, e quando o dia acabava, e ele se retirava para seu descanso
noturno, punha essas questões à sua alma: “Que mau hábito curaste hoje? A
que falta resististe? A respeito de que és melhor?” A ira cessará e se tornará
controlável se descobrir que deve comparecer diante de um julgamento diário.
Algo pode ser mais excelente que essa prática de se esquadrinhar
minuciosamente todo o dia? E que sono agradável segue desse autoexame –
quão tranquilo ele é, quão profundo e imperturbado, quando a alma louvou ou
admoestou a si mesma, e quando esse examinador e crítico secreto do eu deu o
laudo de seu próprio caráter! Eu me beneficio desse privilégio e todo dia
advogo minha causa diante do tribunal do eu. Quando a luz se retira da visão, e
minha esposa, muito consciente do meu hábito, silencia, sondo todo meu dia e
retraço todas as minhas ações e palavras.
Não escondo nada de mim mesmo, não omito nada. Pois por que desviar-me de
qualquer um de meus erros se posso conversar intimamente comigo mesmo?
“Vê o que nunca deverás fazer novamente; perdoar-te-ei desta vez. Naquele
debate falaste de modo muito ofensivo; depois disso, não te encontres com
pessoas ignorantes; aquelas que nunca aprenderam não querem aprender.
Reprovaste aquele homem mais francamente do que devias e,
consequentemente, não o corrigiste tanto quanto o ofendeste. No futuro,
considera não apenas a verdade do que dizes, mas também se o homem para
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quem estás falando pode resistir à verdade. Um homem bom aceita gratamente
uma reprovação; quanto pior é o homem, mais amargamente ele se recente
dela”.
Sabemos por diversas fontes que esse tipo de exercício era uma exigência diária,
ou pelo menos um hábito, na tradição pitagórica. Antes de irem dormir, os pitagóricos
realizavam esse tipo de inspeção, coletando as faltas que cometeram durante o dia. Tais
faltas consistiam naqueles tipos de comportamentos que transgrediam as regras bem
restritas das Escolas Pitagóricas. E o propósito dessa inspeção, pelo menos na tradição
pitagórica, era purificar a alma.
Acreditava-se que tal purificação era necessária, já que os pitagóricos
consideravam o sono como sendo um estado de ser por meio do qual a alma entra em
contato com a divindade através do sonho. E, é claro, a pessoa tinha que manter a
própria alma tão pura quanto possível para simultaneamente ter bons sonhos e entrar em
contato com as divindades benevolentes. Nesse texto de Sêneca podemos ver
claramente que essa tradição pitagórica sobrevive no exercício que ele descreve (como
ocorre posteriormente nas práticas similares utilizadas pelos cristãos). A ideia de
empregar o sono e o sonho como meios possíveis de apreender o divino pode também
ser encontrada na República de Platão (Livro IX, 571e-572b). Sêneca nos diz que, por
meio desse exercício, somos capazes de obter um sono agradável:
“E que sono agradável segue desse autoexame — quão tranquilo ele é, quão
profundo e imperturbado”.
E sabemos, a partir do próprio Sêneca, que, sob seu professor, Sótio, seu
primeiro treinamento foi parcialmente pitagórico. Sêneca não relaciona essa prática,
contudo, com o costume pitagórico, mas a Quinto Séxtio – que foi um dos defensores
do estoicismo em Roma no fim do século 1 a.C. E parece que esse exercício, apesar de
sua origem puramente pitagórica, foi utilizado e exaltado por várias escolas filosóficas:
os epicuristas, os estoicos, os cínicos e outros. Existem referências em Epicteto, por
exemplo, a esse tipo de exercício. E seria inútil negar que o autoexame de Sêneca é
similar aos tipos de práticas ascéticas usadas há séculos na tradição cristã. Mas se
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olharmos para o texto mais de perto, acho que podemos ver algumas diferenças
interessantes.
Primeiro, há a questão da atitude de Sêneca diante de si mesmo. Que tipo de
operação Sêneca está verdadeiramente realizando nesse exercício? Qual é a matriz
prática que ele usa e aplica em relação a si mesmo? À primeira vista, parece ser uma
pratica jurídica que é próxima à confessional cristã: existem pensamentos, esses
pensamentos são confessados, existe um acusado (precisamente, Sêneca), há um
acusador ou promotor (que também é Sêneca), há um juiz (também Sêneca), e parece
que há um veredicto. Toda a cena parece ser jurídica, e Sêneca aplica expressões
tipicamente jurídicas (“comparecer perante um juiz”, “advogar minha causa diante do
tribunal do eu”, etc.). Um escrutínio mais minucioso mostra, contudo, que se trata de
algo diferente da corte ou do procedimento judicial. Por exemplo, Sêneca diz que ele é
um examinador de si mesmo (speculator sui). A palavra speculator significa que ele é
um “examinador” ou “inspetor” – tipicamente alguém que inspeciona a carga em um
navio, ou o trabalho sendo feito por empreiteiros construindo uma casa, etc. Sêneca diz
também totum diem meum scrutor – “examino, inspeciono, todo o meu dia”. Aqui, o
verbo scrutor pertence não ao vocabulário jurídico, mas ao vocabulário da
administração. Sêneca afirma mais adiante: factaque ac dicta mea remetior – “e retraço,
confiro todas as minhas ações e palavras”. O verbo remetiri é, novamente, um termo
técnico utilizado na escrituração e que tem o sentido de checar se há qualquer tipo de
erro de cálculo ou nas contas. Então Sêneca não é exatamente um juiz emitindo uma
sentença sobre si mesmo. Ele é muito mais um administrador que, uma vez terminado o
trabalho, ou quando os trabalhos anuais terminaram, elabora as contas, faz um balanço
das coisas e vê se tudo foi feito corretamente. É mais uma cena administrativa do que
jurídica.
E se nos voltarmos para as faltas que Sêneca retraça, e de que dá exemplos no
seu exame, podemos ver que não são os tipos de faltas que chamaríamos de “pecados”.
Ele não confessa, por exemplo, que bebe muito, ou que cometeu alguma fraude
financeira, ou que tem maus sentimentos por outra pessoa – faltas com as quais Sêneca
estava muito familiarizado enquanto participante do círculo de Nero. Ele reprova a si
mesmo por coisas muito diferentes. Criticou alguém, mas ao invés de sua crítica ajudar
o homem, ela o magoou. Ou ele critica a si mesmo por ser desagradável com pessoas
que eram, de toda forma, incapazes de entendê-lo. Comportando-se de tal maneira, ele
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comete “erros” (errores), mas esses erros são apenas ações ineficientes exigindo ajustes
entre meios e fins. Ele se critica por não manter o objetivo de suas ações em mente, por
não ver que é inútil culpar alguém se a crítica dada não melhora as coisas, e assim por
diante. A questão da falta diz respeito a um erro prático no seu comportamento, já que
ele foi incapaz de estabelecer uma relação racional efetiva entre os princípios de
conduta que ele conhece e o comportamento em que ele está realmente comprometido.
As faltas de Sêneca não são transgressões de um código ou lei. Elas expressam, ao invés
disso, ocasiões nas quais sua tentativa de coordenar regras de comportamento (regras
que ele já aceita, reconhece e conhece) com seu próprio comportamento atual numa
situação específica foi provada ineficiente ou mal-sucedida.
Sêneca também não reage a seus próprios erros como se fossem pecados. Ele
não se pune, não há nada como a penitência. O retraçar de seus erros tem como seu
objeto a reativação de regras práticas de comportamento que, agora reforçadas, devem
ser úteis para ocasiões futuras. Ele, dessa maneira, diz a si mesmo: “Vê o que nunca
deves fazer novamente”; “Não te encontres com pessoas ignorantes”; “No futuro,
considera não apenas a verdade do que dizes, mas também se o homem para quem estás
falando pode resistir à verdade”, e assim por diante. Sêneca não analisa sua
responsabilidade ou sentimento de culpa. Para ele não é uma questão de purificar-se
dessas faltas. Ao invés disso, ele se empenha em um tipo de escrutínio administrativo
que o permite reativar várias regras e máximas de modo a torná-las mais vívidas,
permanentes e efetivas para comportamento futuro.
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certo sentimento de calma aprazível que tem sua fonte, seu princípio, nesse autocontrole
ou posse do eu de si mesmo.
No inicio do De tranquilitate animi, Aneu Sereno consulta Sêneca. Sereno é um
jovem amigo de Sêneca que fazia parte da mesma família e que começou sua carreira
política sob Nero como seu vigilante noturno. Tanto para Sêneca quanto para Sereno
não havia incompatibilidade entre a filosofia e a carreira política desde que a vida
filosófica não fosse meramente uma alternativa para a vida política. Ao invés disso, a
filosofia deve acompanhar a vida política de modo a prover um quadro moral para a
atividade pública. Sereno, que era inicialmente epicurista, se volta mais tarde para o
estoicismo. Mas, mesmo depois de se tornar estoico, sentiu-se desconfortável, pois tinha
a impressão de que não era capaz de aprimorar a si mesmo, que havia chegado a um
beco sem saída e era incapaz de fazer qualquer progresso. Devo salientar que, para a
Antiga Stoá, para Zenão de Cítio, por exemplo, quando uma pessoa conhecia as
doutrinas da filosofia estoica, ela realmente não precisaria mais progredir, pois havia
sido bem-sucedido em se tornar um estoico. O interessante aqui é a ideia do progresso
ocorrendo como um novo desenvolvimento na evolução do estoicismo. Sereno conhece
a doutrina estoica e suas regras práticas, mas continua sem tranquillitas. E é nesse
estado de inquietação que ele se volta para Sêneca e pede ajuda. Nós, com certeza, não
podemos ter certeza de que essa representação do estado de Sereno reflete sua situação
histórica real. Podemos apenas estar razoavelmente certos de que Sêneca escreveu esse
texto. Mas supõe-se que o texto seja uma carta escrita a Sereno, incorporando a sua
solicitação por aconselhamento moral. E isso exibe um modelo ou padrão para um tipo
de autoexame.
Sereno examina o que ele é ou o que está realizando no momento em que solicita
uma consulta:
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pronto, como em tempos guerra, nem estar desprevenido, como em momentos
de paz.
No entanto, o estado no qual me encontro acima de tudo – pois por que não
devo admitir a verdade a ti como a um médico? – é tal que honestamente nem
me livrei das coisas que odeio e temo, nem, por outro lado, estou sujeito a elas;
enquanto a condição na qual estou colocado não é a pior, eu ainda estou me
queixando e insatisfeito – não estou doente nem são.
Não há necessidade de se dizer que todas as virtudes são frágeis no inicio, que
a firmeza e a força são adicionadas pelo tempo. Eu estou bem consciente
também de que as virtudes que lutam por mostrarem-se externamente, quero
dizer, por posição e por fama da eloquência e tudo que vem do veredicto de
outros, crescem enquanto o tempo passa — tanto as que provêm a verdadeira
força quanto as que nos enganam com uma espécie de tintura com vistas à
satisfação, devem esperar longos anos até que uma quantidade gradual de
tempo desenvolva a cor – mas temo bastante que o hábito, que traz estabilidade
à maioria das coisas, possa fazer com que essa minha falta se torne mais
arraigada. Das coisas ruins, também como com as boas, a longa relação induz
ao amor.
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A natureza dessa fraqueza mental que oscila entre duas coisas e não se inclina
fortemente nem ao correto nem ao errado, eu não posso te mostrar tão bem
todas de uma vez, mas somente uma parte; dir-te-ei o que sucede comigo –
descobrirás um nome para o meu padecimento.
Sereno nos diz que a verdade sobre si mesmo que ele irá agora expor é descritiva
de um padecimento do qual ele sofre. E, a partir dessas observações gerais e de outras
indicações que ele dá mais tarde, podemos ver que esse padecimento é comparado ao
enjoo causado por estar a bordo de um navio que não mais avança, mas que se
arremessa no mar. Sereno está com medo de permanecer no mar nessa condição, tendo
plena visão de terra firme que lhe permanece inacessível. A organização dos temas que
Sereno descreve com suas implícitas e, como veremos, explícitas referências de estar no
mar envolve a associação tradicional com a moral – filosofia política da medicina e
pilotagem de um navio ou a navegação – que nós já vimos. Aqui, temos também os
mesmos três elementos: um problema moral-filosófico, a referência à medicina e a
referência à navegação. Sereno está no caminho em direção à aquisição da verdade
como um barco no mar diante de terra firme. Mas porque lhe faltam autodomínio e
autocontrole, ele tem a sensação de que não pode avançar. Talvez porque seja muito
fraco, talvez porque seu percurso não seja bom. Ele não sabe exatamente a razão de suas
vacilações, mas caracteriza seu mal-estar como um tipo de movimento vacilante
perpétuo que não tem outro movimento senão o “balanço”. O barco não pode avançar
porque está balançando. Assim, o problema de Sereno é: como ele pode substituir esse
movimento oscilante de balançar – que é devido à instabilidade, à irresolução de sua
mente – por um movimento estável que o levará à costa e à terra firme? É um problema
de dinâmica, mas muito diferente da dinâmica freudiana de um conflito inconsciente
entre duas forças psíquicas. Aqui, nós temos um movimento oscilante de balanço que
impede o movimento da mente de avançar em direção à verdade, em direção à
estabilidade, em direção ao solo. E agora temos que ver como essa rede metafórica
dinâmica organiza a descrição de Sereno sobre si mesmo na longa citação seguinte:
(1) Eu devo confessar que estou possuído pelo maior amor à frugalidade. Eu
não gosto de um sofá feito para exibição, nem de vestuário que se sobressaia ao
peito, ou que seja pressionado por pesos e milhares de calandras para que fique
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macio, mas que seja daquele que é simples e barato, que nem é preservado,
nem vestido com cuidado solícito. A comida que eu gosto não é preparada nem
vigiada por escravos. Ela não precisa de vários dias de antecedência para ser
pedida, nem de muitas mãos. Ao invés disso, ela é fácil de conseguir e em
abundância. Não há nada de sofisticado ou de custoso a seu respeito. Não
haverá escassez dela em lugar algum, nem será onerosa para o bolso nem para
o corpo e não voltará pelo mesmo lugar por onde entrou. O servo que eu gosto
é como um jovem escravo nascido em casa, sem treinamento ou habilidade. A
prata é o meu país – prato pesado da raça do meu pai, sem estampa alguma,
como o nome de quem a fez. A mesa não é notável pela variedade de suas
ranhuras ou conhecida pela cidade pelos vários donos elegantes pelas mãos de
quem passou, mas pronta para uso, e não vai levar os olhos de quaisquer
convidados a se demorarem sobre ela com prazer, nem queimá-los com inveja.
Portanto, depois de todas essas coisas terem obtido minha aprovação, minha
mente (animus) está aturdida pela magnificência de algumas escolas de
formação para pajens, por observar escravos adornados com ouro e mais
cuidadosamente vestidos do que os líderes de um cortejo, e um regimento
completo de atendentes cintilantes. Pela visão de uma casa onde se pisa sobre
pedras preciosas e riquezas são espalhadas em todos os cantos, onde o próprio
telhado cintila e toda a cidade corteja e escolta uma herança em direção à ruína.
E o que dizer das águas, transparentes até o fundo, que fluem ao redor dos
hóspedes, mesmo quando eles se banqueteiam. E o que dizer dos festins que
são ricamente realizados? Vindo de um longo abandono à frugalidade, a
luxúria verteu ao meu redor a riqueza de seu esplendor e ressoa por todos os
lados. Minha visão vacila um pouco, pois posso levantar meu coração acima
dela mais facilmente do que meus olhos. E assim eu volto, não pior, mas mais
triste. E não ando entre minhas posses insignificantes com a cabeça ereta como
antes. E aí entra um ferrão secreto e a dúvida de se outra vida não é melhor.
Nenhuma dessas coisas me modifica, ainda assim nenhuma delas falha em me
perturbar.
(2) Resolvo obedecer aos comandos dos meus professores e mergulho no seio
da vida pública. Resolvo tentar ganhar um cargo público e o consulado,
conquistado, é claro, não pelo carmesim ou pelas fasces do lictor, mas pelo
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desejo de ser mais prestável e útil a meus amigos e familiares e todos os meus
conterrâneos e, assim, a toda humanidade. Pronto e determinado, eu sigo
Zenão, Cleanto e Crisipo, a partir dos quais, não obstante, ninguém falhou em
incitar outros a fazê-lo. E então, quando quer que algo irrite minha mente, que
não está acostumada a ser abalada, quando quer que algo aconteça, que seja ou
indigno de mim, e muitas coisas tais ocorrem na vida de todos os seres
humanos ou não ocorram muito facilmente, ou quando coisas que não devem
ser tidas como de grande valor exigem muito de meu tempo, eu me volto para
meu lazer e, assim como fazem rebanhos cansados, eu acelero meu passo para
casa. Resolvo confinar minha vida dentro de suas próprias paredes: “Não
deixes ninguém”, eu digo, “que não valha tal perda tirar de mim um dia sequer;
deixa minha mente estar fixa em si mesma, deixa-a cultivar-se, não a deixes
ocupar-se com nada externo, nada que demande um árbitro; deixa-a amar a
tranquilidade que está longe da preocupação pública e privada”. Mas quando
minha mente (animus) despertou pela leitura da grande coragem, e os grandes
exemplos incentivaram-me, eu tenho que me precipitar para o fórum, para
emprestar minha voz a um homem, para oferecer tal assistência a outro, de
modo que, mesmo que isso não ajude, será um esforço ajudar ou reprimir o
orgulho de alguém no fórum que infelizmente foi inflado por seus sucessos.
(3) E nos meus estudos literários eu penso que é certamente melhor fixar meus
olhos no próprio tema, mantendo-o predominante quando eu falo, do que, por
outro lado, confiar ao tema que apoie as palavras, de modo que a linguagem
não estudada deva segui-lo para onde quer que conduza. Eu digo: “Que
necessidade há de compor algo que durará por séculos? Não vais desistir de
lutar para manter a posteridade em silêncio sobre ti? Nasceste para a morte.
Um funeral silencioso é menos perturbador! E assim, para passar o tempo,
escrever algo num estilo simples, para seu próprio uso, não para publicação.
Aqueles que estudam para o dia têm menos necessidade de labor”. Portanto, de
novo, quando minha mente é elevada pela grandeza de seus pensamentos, ela
se torna ambiciosa por palavras e com aspirações mais altas, deseja uma
expressão mais elevada, e temas linguísticos que correspondam à dignidade do
assunto. Esquecido, então, de meus preceitos e de meu julgamento mais
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reprimido, eu sou lançado para as mais elevadas alturas por uma sentença que
não é mais minha.
Para não entrar em mais detalhes, eu sou em todas as coisas acompanhado por
essa fraqueza da boa intenção. De fato, eu temo que esteja gradualmente
perdendo terreno, ou, o que me causa ainda mais preocupação, é que estou
pendurado como alguém que está a ponto de cair, e que, talvez, eu esteja em
uma condição mais séria do que percebo, pois tomamos uma visão favorável
sobre nossas questões privadas e parcialmente dificultamos nosso julgamento.
Imagino que muitos homens chegariam à sabedoria se não fantasiassem que já
a tivessem alcançado, se não tivessem dissimulado certas peculiaridades em
seu caráter e passado por outras com os olhos fechados. Pois não há razão para
se supor que a adulação de outras pessoas seja mais prejudicial para nós que a
nossa própria. Quem ousa dizer a si mesmo a verdade? Quem, embora esteja
cercado por uma horda de sicofantas aplaudindo, não é para tudo o maior
adulador de si mesmo? Eu te imploro, no entanto, se tiveres qualquer remédio
com o qual possas parar essa minha oscilação, julga-me digno de estar em
débito contigo pela tranquilidade. Sei que essas minhas perturbações mentais
não são perigosas e não dão promessas de tempestades. Expressando-me acerca
do que me queixo por metáforas, eu estou angustiado não pela tempestade, mas
pela agitação do mar. Então tira de mim esse problema, o que quer que ele seja,
e te apressa para o resgate de alguém que está lutando, vendo diante de si terra
firme.
Um terceiro texto, que também mostra algumas das referências nos jogos da
verdade envolvidos nesses exercícios de autoexame, vem das Diatribes de Epicteto –
obra na qual acredito que se possa encontrar um terceiro tipo de exercício bem diferente
dos anteriores. Existem numerosos tipos de técnicas e práticas de autoexame em
Epicteto. Algumas delas assemelham-se tanto aos exames noturnos de Séxtio quanto ao
autoescrutínio geral de Sereno. Mas há uma forma de exame que, acredito, é muito
característica de Epicteto e que toma a forma da constante exposição das representações
ao juízo.
Essa técnica também é relacionada à demanda de estabilidade, pois, dada a
constante corrente de representações que fluem na mente, o problema de Epicteto
consiste em saber como distinguir aquelas representações que pode controlar daquelas
que não pode, que incitam emoções, sentimentos, comportamentos, etc., involuntários e
que devem, portanto, ser excluídas de sua mente. A solução de Epicteto é que devemos
adotar uma atitude de vigilância permanente no que diz respeito a todas as nossas
representações. E ele explica essa atitude empregando duas metáforas: a metáfora do
vigilante noturno, ou do porteiro que não admite ninguém dentro de sua casa ou palácio
sem checar sua identidade primeiro; e a metáfora do cambista que, quando uma moeda
está muito difícil de se ler, verifica a autenticidade do dinheiro, examina-o, pesa-o,
verifica o metal e a efígie, e assim por diante.
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O terceiro tópico se relaciona com casos de assentimento. Ele diz respeito às
coisas que são plausíveis e atrativas. Pois assim como Sócrates costumava nos
dizer para não vivermos uma vida que não estivesse sujeita ao exame, assim
também não devemos aceitar uma representação que não esteja sujeita ao
exame, mas deveemos dizer, “Espera, permite-me ver quem és e de onde vens”
(assim como diz o vigilante noturno, “Deixa-me ver as tuas insígnias”). “Tens
a insígnia dada pela natureza, aquela que toda representação deve ter?”7
Essas duas metáforas são encontradas também nos textos dos primórdios do
cristianismo. João Cassiano (360-435 d.C.), por exemplo, pediu aos seus monges para
examinarem minuciosamente e testarem suas próprias representações, como um porteiro
ou um cambista. No caso do autoexame cristão, o monitoramento das representações
tem a intenção específica de determinar se, sobre uma inocência aparente, o próprio
demônio não está se escondendo. Pois, de modo a não ser pego numa armadilha pelo
que apenas parece ser inocente, de modo a evitar a alteração das moedas pelo demônio,
o cristão deve determinar de onde vêm seus pensamentos e suas impressões sensoriais, e
que relação existe de fato entre uma representação aparente e o valor real. Para
Epicteto, contudo, o problema não é determinar a fonte da impressão (Deus ou Satanás),
bem como julgar se ela esconde ou não alguma coisa. Seu problema, ao invés disso, é
determinar se a representação representa algo que depende ou não dele, isto é, se é
acessível ou não à sua vontade. O propósito disso não é afastar as ilusões do demônio,
mas garantir o autodomínio.
Para manter uma desconfiança quanto às nossas representações, Epicteto propõe
dois tipos de exercício. Um tipo é emprestado diretamente dos sofistas. E nesse clássico
jogo das escolas sofísticas, um dos estudantes perguntava uma questão e outro estudante
tinha que responder sem cair na armadilha sofística. Um exemplo elementar desse jogo
sofístico é: Pergunta: ‘Pode uma carruagem passar pela boca?’ Resposta: ‘Sim. Tu
mesmo disseste a palavra “carruagem”, e ela passou por tua boca.’ Epicteto criticava
tais exercícios como inúteis, e propôs outro para a finalidade do treinamento moral.
Nesse jogo existem também dois participantes. Um dos participantes afirma um fato,
um evento, e o outro tem que responder, tão rápido quanto puder, se esse fato ou evento
é bom ou ruim, isto é, se está dentro ou fora de nosso controle. Podemos ver esse
7
Diatribes de Epicteto 1.27.3.
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exercício, por exemplo, no seguinte texto:
Há outro exercício que Epicteto descreve que tem o mesmo objeto, mas a forma
é mais próxima daquele empregado na tradição cristã. Ele consiste em caminhar pelas
ruas da cidade e se perguntar se qualquer representação que surge diante da mente
depende ou não da própria vontade. Se ela não está dentro da província do propósito
moral e da vontade, então deve ser rejeitada:
8
Diatribes de Epicteto 3.8.1-5
9
Diatribes de Epicteto 3.3.14-17.
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Como podem ver, Epicteto quer que constituamos um mundo de representações
no qual nada pode ser introduzido que não esteja sujeito à soberania de nossa vontade.
Assim, novamente, o autocontrole é o principio organizador dessa forma de autoexame.
Eu gostaria de ter analisado mais dois textos de Marco Aurélio, mas, dada a
hora, não tenho mais tempo. Assim, gostaria de me voltar para minhas conclusões.
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6ª. CONFERÊNCIA: OBSERVAÇÕES FINAIS
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considerado como um narrador da verdade? Sobre que temas é importante dizer a
verdade? (Sobre o mundo? Sobre a natureza? Sobre a cidade? Sobre o comportamento?
Sobre o homem?) Quais são as consequências de dizer a verdade? Quais são seus efeitos
positivos esperados para a cidade, para os governantes da cidade, para o indivíduo, etc.?
E finalmente: Qual é a relação entre a atividade de dizer a verdade e o exercício do
poder, ou deveriam essas atividades ser completamente independentes e mantidas
separadas? São elas separáveis ou uma exige a outra? Essas quatro questões sobre o
dizer a verdade como uma atividade – quem é capaz de dizer a verdade, sobre o quê,
com que consequências e com qual relação com o poder – parecem ter surgido como
problemas filosóficos no final do século 5 em torno de Sócrates, especialmente através
de seus confrontos com os sofistas sobre política, retórica e ética.
E eu diria que a problematização da verdade é o que caracteriza tanto o fim da
filosofia pré-socrática quanto o início do tipo de filosofia que ainda hoje é a nossa. Essa
problematização da verdade tem dois lados, dois grandes aspectos. Um lado está
preocupado em assegurar que o processo de raciocínio está correto para determinar se
uma declaração é verdadeira (ou preocupar-se com a nossa capacidade de ter acesso à
verdade). E o outro lado está preocupado com a questão: Qual é a importância para o
indivíduo e para a sociedade de dizer a verdade, de conhecer a verdade, de ter pessoas
que dizem a verdade, bem como saber como reconhecê-las? No lado que se preocupa
em determinar como garantir que uma afirmação é verdadeira temos as raízes da grande
tradição da filosofia ocidental, que eu gostaria de chamar de “analítica da verdade”. E
no outro lado, preocupado com a questão da importância de dizer a verdade, de saber
quem é capaz de dizer a verdade, e saber por que devemos dizer a verdade, temos as
raízes do que poderíamos chamar a tradição “crítica” no Ocidente. E aqui vocês vão
reconhecer um dos meus objetivos nesse seminário, qual seja, a construção de uma
genealogia da atitude crítica na filosofia ocidental. Isso constituiu o objetivo geral desse
seminário.
Do ponto de vista metodológico, gostaria de destacar o seguinte tema. Como
vocês devem ter notado, eu utilizei a palavra “problematização” frequentemente nesse
seminário sem fornecer-lhes uma explicação do seu significado. Eu disse muito
brevemente que o que eu pretendia analisar na maior parte do meu trabalho não era o
comportamento nem das pessoas do passado (o que é algo que pertence ao campo da
história social), nem ideias em seus valores representativos. O que eu tentei fazer desde
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o início foi analisar o processo de “problematização” - o que significa: Como e por que
certas coisas (comportamento, fenômenos, processos) tornaram-se um problema? Por
que, por exemplo, determinadas formas de comportamento foram caracterizadas e
classificadas como “loucura”, enquanto outras formas similares foram completamente
negligenciadas em um dado momento histórico? A mesma coisa para o crime e a
delinqüência. A mesma pergunta de problematização para a sexualidade.
Algumas pessoas interpretaram esse tipo de análise como uma forma de
“idealismo histórico”, mas eu acho que essa análise é completamente diferente. Pois
quando digo que estou estudando a “problematização” da loucura, do crime ou da
sexualidade, isso não é uma forma de negar a realidade de tais fenômenos. Pelo
contrário, tentei mostrar que era precisamente algo realmente existente no mundo que
foi alvo de regulação social em um dado momento. A questão que se coloca é essa:
Como e por que algumas coisas muito diferentes no mundo foram postas juntas,
caracterizadas, analisadas e tratadas como, por exemplo, a “doença mental”? Quais são
os elementos que são relevantes para uma determinada “problematização”?
E mesmo que eu não venha a dizer que o que é caracterizado como
“esquizofrenia” corresponda a algo real no mundo, isso não tem nada a ver com
idealismo. Pois eu acho que há uma relação entre a coisa que é problematizada e o
processo de problematização. A problematização é uma “resposta” a uma situação
concreta que é real.
Há também uma interpretação errônea segundo a qual nossa análise de uma dada
problematização está fora de qualquer contexto histórico, como se fosse um processo
espontâneo surgido de um lugar qualquer. Na verdade, porém, tentei mostrar, por
exemplo, que a nova problematização da doença mental ou da doença física no final do
século 18 estava muito diretamente ligada a uma modificação em várias práticas, ou ao
desenvolvimento de uma nova reação social às doenças, ou ao desafio apresentado por
determinados processos, e assim por diante. Mas temos que entender muito claramente,
acho, que uma determinada problematização não é um efeito ou uma consequência de
um contexto histórico ou situação, mas é uma resposta dada por determinados
indivíduos (embora se possa encontrar essa mesma resposta dada em uma série de
textos e a certa altura a resposta possa tornar-se tão geral que também se torna
anônima).
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Por exemplo, no que diz respeito ao modo que a parrhesia foi problematizada
em um dado momento, podemos ver que há respostas socrático-platônicas específicas às
perguntas: Como podemos reconhecer alguém como um parrhesiastes? Qual é a
importância de se ter um parrhesiastes na cidade? Qual é a formação de um bom
parrhesiastes? Respostas que eram dadas por Sócrates ou por Platão. Essas respostas
não são coletivas, originadas a partir de algum inconsciente coletivo. E o fato que a
resposta não seja nem uma representação nem um efeito de uma situação não significa
que não responda a nada, que seja puro sonho ou uma “anticriação”. Uma
problematização é sempre uma espécie de criação, mas uma criação no sentido de que,
dada uma determinada situação, não se pode inferir que esse tipo de problematização se
seguirá. Dada uma certa problematização, só se pode entender por qual razão esse tipo
de resposta surge como uma resposta a algum aspecto concreto e específico do mundo.
Aí está a relação entre pensamento e realidade no processo de problematização. E essa é
a razão pela qual acho que é possível dar uma resposta, a resposta original, específica e
singular do pensamento a uma determinada situação. E esse é o tipo de relação
específica entre a verdade e a realidade que tentei analisar nas várias problematizações
da parrhesia.
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