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Viagens do Rosário entre a

Velha Cristandade e o
Além-Mar

Juliana Beatriz Almeida de Souza

Resumo
O texto pretende estabelecer relações entre a difusão do culto a
Nossa Senhora do Rosário na América portuguesa — principalmente
entre os negros — e a anterior catolização da África banto, ela mesma
concomitante à promoção do uso do rosário na velha cristandade, a par-
tir de finais do século XV.
Palavras-chave: expansão portuguesa, Igreja Católica, devoção ao ro sá-
rio, negros.

Abstract
Peregrination of the Rosary between Old Christianity and Overseas
The text intends to establish a relationship between the spread of
the Our Lady of Rosario cult in Portuguese America – principally among
Negroes – and the prior Catholicism of Banto Africa. It is concurrent
with the advance of the use of the rosary in old Christianity since the end
of the 15th century.
Keywords: Portuguese expansion; Catholic Church; devotion to the ro-
sary; Our Lady of Rosario; Negroes.

Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, nº 2, 2001, pp. 1-17

Revista Estudos Afro-Asiáticos


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Juliana Beatriz Almeida de Souza

Résumé
Voyages du Rosaire entre la Vieille Chrétienté et l’Outre-mer
Dans ce texte, on vise à établir des relations entre la divulgation du
culte à la Vierge du Rosaire en Amérique portugaise – surtout chez les
Noirs – et la préalable catholicisation de l’Afrique bantoue, celle-ci étant
contemporaine aux incitations à l’usage du rosaire dans la vieille
chrétienté, à partir de la fin du XVe siècle.
Mots-clé: expansion portugaise; Église catholique; dévotion au rosaire;
la Vierge au Rosaire; Noirs.

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Devoção à Virgem Maria e ao seu Rosário na Europa Moderna

C om o movimento reformista se espalhando pela Europa, a


contestar as figuras santificadas pela Igreja Católica, salvo o
Cristo, o culto a Maria ganhou novo reforço e novo papel, escolhi-
do como arma contra-reformista. Assim, o seu culto foi se trans-
formando em símbolo da identidade religiosa, de fidelidade à Igre-
ja Católica na luta contra os protestantes.
Diferenças à parte, a Igreja Católica da época moderna es ta-
va marcada pelo espírito do Concílio de Trento, pela defesa do ca-
tolicismo frente ao avanço protestante. Era uma Igreja inquieta
com a distância que a separava dos fiéis. E foi pelo espírito da mis-
são que o projeto da Reforma católica penetrou nas colônias ibé ri-
cas. A evangelização pôde, então, contar com uma imagem que era
símbolo da discordância entre católicos e protestantes: a Virgem
Maria.
A expansão ocidental coadunava-se com as idéias de uni ver-
salidade, integração e unidade, tão caras ao cristianismo da época
moderna. A cristandade tinha uma dimensão social que devia ser
cumprida. Para Baeta Neves (1978), essa dimensão social refere-se
à expansão do universo cristão no mundo profano, tirando deste a
sua disformidade e traduzindo-o ao idioma missionário. Assim,
territórios eram atravessados para anunciar o Evangelho, onde ele
não era conhecido, impondo ao mundo uma homogeneidade
ideológica.
O culto à Virgem tornava-se, com a expansão ul tramarina,
bandeira da conquista espiritual portuguesa, funcionando como
poderoso elo entre a cruz e a espada. “A popularidade e fervor do
culto da Virgem não perdeu nada com a emigração através dos Sete
Ma res e, se pos sí vel, teve ten dên cia a au men tar” (Bo xer,
1977:130).
Senhora dos mares, rainha da paz e da guerra, durante as cru-
zadas ajudara os cristãos na luta contra os infiéis e continuaria
atuando nas guerras santas entre católicos e protestantes. Mas, se
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no contexto da Reforma católica sua imagem e força estavam ain da


ligadas à sua presença e intervenção nas batalhas, o espírito con-
tra-reformista encontraria eco em uma devoção que, como pre ten-
do sugerir, punha em relevo questões importantes para a Igreja
Católica. Refiro-me à devoção ao rosário, método de oração e me-
ditação ensinado, segundo a tradição, pela Virgem Maria e para
seu louvor.
Desde meados do século XII vinham surgindo movimentos
que criticavam a estrutura hierárquica da Igreja, que reclamavam
sua pobreza absoluta ou que rechaçavam abertamente seus fun da-
mentos, como era o caso dos cátaros, também conhecidos como al-
bigenses, por ser Albi, no Sul da França, a cidade onde mais pro li-
feraram. Domingos de Gusmão, em inícios do século XIII, foi
para a região e ali desenvolveu intensa atividade no sentido de
combater tais heresias e reconverter a região. Apesar dos seus es for-
ços, as dificuldades eram grandes e, certo dia, segundo a tradição,
enquanto rezava, apareceu ao religioso a Virgem Maria e ensi-
nou-lhe um método de oração, dizendo que homens e mulheres
invocariam sua ajuda com as contas que lhe entregava. Desde Pio
V, os papas vêm descrevendo as origens do rosário, em suas exor ta-
ções, ligadas a essa aparição, e muito se tem representado a ima gem
de Domingos de Gusmão, aos pés da Virgem, recebendo o colar de
contas.
O fato é que a data e o local exatos da introdução do rosário
na cristandade ocidental não são conhecidos, mas, segundo War-
ner (1991), o colar de contas é originário da Índia brahmânica e do
hinduísmo, seu uso se estendeu ao budismo e mais tarde ao islã.
O colar se assemelha às contas de âmbar que, por toda Grécia, Ásia e
Norte da África, os homens nas mesas de café movem através de seus de-
dos para acalmar seus nervos, como um cigarro, mas enquanto nestes
países adquiriu um caráter laico, se converteu no Ocidente em um hábi-
to exclusivamente religioso. (Warner, 1991:394)

Assim, ainda que não seja exato, atribui-se geralmente aos cru za-
dos a extensão do uso do colar de contas, tomado dos mulçu ma-
nos.
Importa, no entanto, aqui, marcar que essa devoção ganhou
força no contexto da Reforma católica. Por volta de 1470, o do mi-
nicano Alano de Rupe publicou uma obra que despertou a crença
nos poderes do rosário como meio de obter graças e a proteção da
Virgem Maria, sobretudo em Colônia e Augsburgo. Seu livro ins-
pirou outras obras e missionários, em especial os dominicanos. Em
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1475, Jacob Sprenger, dominicano, caçador de bruxas e um dos


autores do célebre Malleus Malleficarum, fundou a primeira con-
fraria devotada ao rosário, em Colônia, na Alemanha. Vinte anos
depois, Alexandre VI, primeiro papa a mencionar o rosário, apro-
vou a prática, que rapidamente se expandiu.
O rosário foi invocado nas políticas da Reforma católica. O
Papa Pio V permitiu a festa de Nossa Senhora da Vitória, em todas
as igrejas que tivessem um altar do rosário, para comemorar a der-
rota dos turcos na batalha de Lepanto, em outubro de 1571, mi-
nando o poder destes no Mediterrâneo. Segundo o papa, a vitória
teria se dado graças à intercessão da Virgem, em resposta aos ro sá-
rios a ela oferecidos. A festa deveria ser celebrada todos os anos no
primeiro sábado de outubro, dia da semana em que se deu a ba ta-
lha de Lepanto. Pio V mandou inserir, ainda, na ladainha laureta-
na, a invocação “Auxílio dos cristãos, rogai por nós”.
Em 1573, Gregório XIII mudou o nome da festa para Nossa
Senhora do Rosário, reforçando o rosário como arma da vitória, e
transferiu a festa para o primeiro domingo de outubro. Na prime i-
ra década do século XVIII, o Papa Clemente XI estendeu a festa ao
conjunto da Igreja, período em que as frentes católicas venceram
os turcos em Petrovaradin, alijando-os de Corfu, se guindo-se ou-
tros pequenos triunfos, até a batalha decisiva em Belgrado, que
forçou os turcos à paz de Passarowitz, em 1718. “A vitória de Le-
panto sobrevive na lenda católica como a última cruzada heróica
levada a cabo pelo homem para a instauração do Reino de Deus na
terra” (ibidem:398).
Desde o Papa Pio V, como já foi dito, foi descrita a origem da
devoção quando da aparição da Virgem a São Domingos, con fe-
rindo ao rosário um caráter sagrado que confirmava o amor es pe-
cial da Virgem por ele e o tornava emblema do direito divino na
batalha contra os inimigos. “Desde a ba talha de Lepanto, a Virgem
e sua oração particular, o rosário, têm sido continuamente as socia-
dos es pe ci al men te à luta ca tó li ca con tra seus ini mi gos”
(idem:405).
A devoção ao rosário cresceu, então, quando a Igreja se sen-
tia fraca e a apontava para uma disposição combativa. O método
de oração proposto pelo rosário valorizava, ao lado da repetição
das ave-marias, a meditação, restabelecendo a contemplação inte-
rior. A Virgem e o rosário foram, portanto, armas em um tempo
em que, cada vez mais, os católicos pareciam acreditar na exteriori-
dade da fé e na compra de indulgências para alcançar a salvação.
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Segundo Julita Scarano (1978:39), divulgada a devoção na


Península Ibérica, a Senhora do Rosário, em Portugal, foi adotada
como padroeira de vários grupos, como o dos marinheiros no Por-
to, e em quase todas as cidades criaram-se igrejas a ela dedicadas.
Em Lisboa, o convento dominicano tornou-se famoso por causa
de uma imagem da Virgem à qual se atribuíam milagres. Logo sur-
giram irmandades e, entre as dedicadas à Virgem, a de Nossa Se-
nhora do Rosário foi das mais importantes, rivalizando em nú me-
ro com as irmandades do Santíssimo Sacramento e das Almas, ain-
da mais populares. As irmandades
[...] de Nossa Senhora do Rosário dos pretos surgiu em Portugal a partir
de uma transformação gradativa, nascendo realmente das irmandades de
brancos que já tinham a mesma invocação. No esforço da Igreja católica
de integrar o africano recém-chegado ao Reino, atraiu-o para as irman-
dades e, nesse sentido, os dominicanos podem ter tido mais sucesso em
fazê-los ingressar nas associações de seus conventos. Assim, os negros
participaram, inicialmente, das irmandades de brancos e, aos poucos,
com o aumento numérico daqueles, talvez com apoio dos dominicanos,
passaram a se reunir em núcleos separados, formando suas próprias con-
frarias. É possível que questões de auxílio mútuo e proteção de seus inte-
resses os tenham levado a se desligar dos brancos e a pedir graças e mercês
reais para nova associação. (ibidem:40-43)

No Brasil, a devoção ao rosário foi introduzida pelos mis si o-


nários e a devoção a Nossa Senhora do Rosário acabou tendo gran-
de penetração entre os escravos, sendo várias as irmandades de ne-
gros consagradas a Nossa Senhora do Rosário na América por tu-
guesa.
Em Portugal, os brancos, temendo ser prejudicados nas esmolas — que
em grande parte eram o sustentáculo das irmandades — queriam uma
união, uma vez que, dentro de uma associação predominantemente de
brancos, os pretos teriam posição subalterna. Na Colônia, pelo contrá-
rio, preferiram manter a separação, preservando assim suas vantagens,
dado o perigo representado pelo elevado número de homens de cor.
(idem:44)

Cabe, então, ainda investigar os motivos e os instrumentos pelos


quais a de voção ao rosário penetrou entre os negros escravos. Se-
gundo Arthur Ramos, os escravos de procedência banto, prin ci-
palmente os da Angola e os do Congo, foram mais receptivos por-
que já haviam tido contato com a devoção à Senhora do Rosário —
e a tinham como padroeira — no Continente africano, dado que o
rosário fora levado para lá pelos colonizadores portugueses e pri-
meiros missionários empenhados em convertê-los.
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Conquista e Missionação Portuguesa na África Ocidental


Até 1460, ainda com o Infante D. Henrique, a exploração da
costa africana alcançou o golfo da Guiné. Com D. Afonso V, a con-
quista prosseguiu com Alcácer-Quibir, em 1468, onde a mesquita
local foi sagrada como igreja de Santa Maria da Misericórdia, e
Arzila e Tânger, em 1471. Sob o reinado de D. João II, Azamor foi
conquistada em 1486. O domínio de Safim, em 1508, e Mazagão,
em 1513, com D. Manuel, manteve o projeto português de con-
quista do Marrocos e duas frentes de penetração no Continente:
uma pelo Norte da África e região meridional e outra ao Sul do Se-
negal e das terras da Guiné.
Para J. F. Marques, pode-se identificar, do ponto de vista
missionário, três zonas geográficas de atuação. A primeira delas se-
ria a região da diocese de Ceuta e Tânger. “Terra de cultura vin ca-
damente moura e de fé mulçumana” (Marques, 1992:125). Eram
cidades-fortaleza isoladas, nas quais o catolicismo levado pelos
missionários es teve sempre sitiado diante do poder mouro. A ati vi-
dade dos religiosos, segundo J. F. Marques, ante a vigilância mili-
tar, não conseguiu expandir a evangelização das populações de
Marrocos e Fez. “O que acontecia, de fato, era a impossibilidade
material de uma catequese missionária” (ibidem:126).
A segunda zona ocuparia o extremo Sul da Mauritânia, in-
corporando o reino de Benim — aí a influência árabe tinha pene-
trado com algum sucesso. Antes da expansão portuguesa, uma ex-
pansão interior mercantil mulçumana repercutiu, segundo A. Vas-
co Rodrigues (1992:553), no plano cultural e no mundo das cren-
ças. E era o mulçumano — mercador, guerreiro ou pregador do
islã —, inimigo tradicional dos portugueses, que lhe fazia concor-
rência na região.
As influências das civilizações da África mediterrânea chegaram a atin-
gir, para sul, a civilização Nok, a nigeriana e a de Benim. Por vezes tais in-
fluências remontam ao Egito faraônico e só encontram explicação nas
rotas mercantis que demandavam o ouro e o marfim. (ibidem:543)

Desse modo, os portugueses já encontraram presente a idéia


do monoteísmo em muitas áreas costeiras da África ocidental, mas
passada pelos mouros, exercendo, pois, os princípios do Corão,
anterior ao catolicismo português, uma poderosa influência nes sas
populações.
Os primeiros missionários nessas áreas foram os na vegado-
res e mercadores ainda ligados à idéia das Cruzadas. Não raro esses
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navegadores utilizaram-se do recurso de levar nativos para Por tu-


gal para prestarem informações e serem catequizados. De volta às
suas terras, esses homens podiam servir como intérpretes, auxili-
ando os portugueses na sua empresa. Mas, para J. F. Marques,
também, só muito escassamente foi bem-sucedida a evangelização
na Guiné, Senegal e Benim, por causa da influência mulçumana.
Só a partir das duas últimas décadas do século XV a cristiani-
zação da África negra conheceu medidas e resultados consistentes.
Com D. João II e D. Manuel I, o esforço apostólico da Coroa por-
tuguesa passou dos atos isolados à adoção de uma política assen ta-
da, em traços gerais, na conversão dos reis gentios e na formação de
um clero nativo (Riley, 1998:162).
Assim, ao lado das feitorias e dos interesses mercantis, se gui-
ram a construção de igrejas e capelas e a educação na fé católica de
crianças e jovens, transformando-os, posteriormente, em missi o-
nários em suas terras de origem. No Senegal, chegou-se a construir
o convento de S. Vicente do Cabo, destinado à formação de clero
negro.
A terceira zona identificada por J. F. Marques abrangia o reino
do Congo e a ponta meridional costeira da África. A chegada ao Rei-
no do Congo, depois de meio século de investidas para o reconheci-
mento da costa ocidental da África e do golfo da Guiné, revelou aos
portugueses uma área na qual não havia a influência islâmica.
Em fins do século XV, D. João II mandou a primeira ex pedi-
ção, 1 sob o comando de Diogo Cão, que saiu do Tejo em direção à
feitoria da Costa da Mina. Após curta estada, Diogo Cão rumou
para o Sul e alcançou a foz do Rio Congo. Desembarcou na mar-
gem esquerda e erigiu em Mpinda, porto de desembarque que se-
ria de passagem obrigatória nos séculos XV e XVI, o padrão de S.
Jorge. Ali, entrou em contato com Nsoyo, chefe da localidade e
soube que no interior ficava a Corte do mani Congo, Nzin-
ga-a-Nkuwu, chefia máxima do reino. O reino do Congo, naquela
época, abrangia grande parte da África centro-oriental e se dividia
em províncias, como a de Nsoyo, administradas por linhagens no-
bres. Mbanza Kongo era a capital, centro de poder de onde o mani
Congo administrava a confederação juntamente com um grupo de
nobres que formavam o conselho real (Vainfas & Souza, 1998:97).
Diogo Cão enviou emissários portugueses rio acima, le van-
do, segundo a crônica de João de Barros, um presente ao rei da ter-
ra. Como não regressaram dentro do prazo, Diogo Cão voltou ao
Reino português levando alguns nativos como reféns. De volta ao
Congo, esses homens foram integrados em uma embaixada de D.
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João II ao mani Congo. Segundo a famosa crônica de Garcia de


Resende, do século XV, o rei português ofertava sua amizade e
convidava o rei congolês à fé cristã, recomendando-lhe que dei xas-
se os “ídolos e feitiçarias” que adoravam em seu Reino. Diogo Cão
desceu em terra os congoleses que levara para Portugal e recolheu
os portugueses que tinham ficado da sua primeira viagem. As in-
formações obtidas pelos dois lados facilitaram a ulterior recepção
do mani Congo, tendo cumprido aí papel importante os re condu-
zidos reféns congoleses.
Assim, para Julieta Araújo e Ernesto dos Santos (1993:642),
dois aspectos marcam o início da exploração da região. Por um
lado, a penetração fluvial com a exploração do estuário do Zaire.
Diogo Cão subiu o curso do rio até as cataratas do Yelala, atin gin-
do o extremo navegável do rio. Por outro, a penetração terrestre
em direção a Mbanza Kongo, que mais tarde seria rebatizada de
São Salvador.
Na volta a Portugal, foi a vez do Mani Congo mandar sua
embaixada a D. João II. Junto dos presentes, pedia “que lhe man-
dassem logo frades e clérigos e todas as coisas necessárias para ele e
os de seus reinos recebessem a água do batismo”, solicitando igual-
mente o envio de pedreiros, carpinteiros e lavradores que ensinas-
sem em seus reinos a tratar da terra, mulheres para ensinarem a
amassar pão, “porque levaria muito contentamento por amor dele
que as coisas do seu reino se parecessem com Portugal” (ibi-
dem:643). Em 1490, partiu para o Congo uma expedição sob o co-
mando de Gonçalo de Sousa, 2 na qual retornou a comitiva con go-
lesa, assim como foram enviados os primeiros missionários.3 A ex-
pedição chegou ao porto de Mpinda e foi recebida pelo chefe da
província de Nsoyo, tio do mani Congo. Ele e seu filho foram os
primeiros a serem batizados, recebendo o nome de Manuel, o mes-
mo do irmão da rainha de Portugal. Com isso, abria-se o caminho
para a conversão. Dali partiu a expedição para a capital real. O
mani Congo quis ser batizado imediatamente, no que foi atendido
e, seguindo o padrão analógico dos primeiros tempos da relação
entre os dois reinos, recebeu o nome do rei de Portugal.
D. João I, no entanto, logo abandonaria o cristianismo,
pressionado por certa facção da nobreza apegada às tradições ba-
kongo e receosa de perder suas posições com a “nova ordem cristã”
que se avizinhava. Foi com seu filho, Afonso, que reinou entre
1506 e 1543, que as bases da catolização foram se dimentadas. Ain-
da durante o reinado de seu pai, D. Afonso entrou em conflito com
seu irmão, governador de Panga, que rejeitara a fé católica e tinha
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muitos seguidores. A luta ganhou intensidade com a sucessão no


poder. Restabelecida a paz, D. Afonso mandou erigir a igreja de
Santa Cruz, templo no qual foram batizados muitos súditos. D.
Afonso ordenara ainda aos governadores que entregassem todos os
objetos que pudessem lembrar as antigas crenças. “O monarca
mandou queimar tais objetos, distribuindo em seguida imagens de
santos, cruzes, rosários, etc. Mandou, além disso, erigir três igre-
jas: a de São Salvador, a da Virgem Maria e a de São Jaime”
(idem:651).
Diante das dificuldades e do precário contingente de missi o-
nários, Afonso I pediu ajuda à Coroa portuguesa. O rei D. Manuel
mandou, então, formar um grupo de moços no convento de Santo
Elói de Lisboa, o primeiro se minário europeu para o clero in díge-
na. Entre esses rapazes estava o filho de D. Afonso I, Henrique,
que mais tarde seria consagrado bispo titular de Útica.
Em seu reinado, a conversão dos senhores do Congo e seus
súditos significou não só mudanças na vida espiritual, mas tam-
bém em aspectos materiais, incluindo desde a alimentação, vestuá-
rio e construções, até a reforma administrativa do Reino, que se re-
organizou à semelhança do de Portugal.
Segundo A. Custódio Gonçalves (1992:533), com a tenta ti-
va de transformar o Congo em um reino cristão, “ponta de lança da
conquista espiritual da África”, acreditou-se que a introdução de
novos modelos culturais através da ação missionária o tornaria
uma réplica do reino português. A missionação, a par das deficiên-
cias, facilitou a abrangência da educação e a entrada dos modelos
de organização política, administrativa e judicial, com a institui-
ção da nobreza, cortesãos e dignatários, insígnias e distintivos de
todos os graus hierárquicos, criando no Congo a Corte de São Sal-
vador, cujo rei se dizia irmão do monarca português.
Anterior ao achamento do Brasil e ao domínio da Índia, a descoberta de
um espaço geo-humano, tão vasto e receptivo como o oferecido pelo
Congo, proporcionaria a possibilidade de materializar um eficaz pro jec-
to de aculturação jamais acenado ainda a Portugal. (Marques, 1992:131)

A colonização do território de Angola teve sua base inicial


nos contatos com o reino do Congo. A ex-província Ngola, após
sua independência do reino do Congo, mandou uma embaixada a
Portugal pedindo missionários para instruírem o reino de Angola
na fé cristã. Segundo Araújo & Santos (1993:653), entretanto,
mais que o interesse na conversão, o soberano de Angola, reco nhe-
cendo a importância que as relações com Portugal conferiam ao rei
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congolês e buscando afirmar sua independência, tentava, com a


embaixada, reatar o tráfico de escravos na região e com isso ganhar
poder econômico e político em relação ao rei do Congo. Em 1559,
foi enviada uma missão chefiada por Paulo Dias de Novais para,
entre outros fins, converter o rei angolano e suas gentes.
Embora ao longo de todo o século XVI os portugueses con ti-
nuassem a enviar escravos a partir do porto de Mpinda e do Lo an-
go, via S. Tomé, depois da fundação de Luanda, em 1575-76,
Angola tornou-se o principal fornecedor de escravos.
No Congo, como em Angola, a missionação esteve presente
junto aos primeiros esforços colonizadores, mas encontrou muitas
dificuldades com o passar dos anos. E não se pode deixar de enfa ti-
zar que o maior problema da missionação, sem dúvida, foi a es cra-
vatura, da qual os religiosos não puderam passar ao largo.

O Rosário de Vieira

Embora, originariamente, tenham sido os dominicanos os


principais promotores da devoção ao rosário, com a multiplicação
das irmandades além-mar eles perderam, se não a primazia, a ex-
clusividade. Julita Scarano diz que desde o século XIV eram nu me-
rosos os conventos da ordem dominicana em Portugal, e tanto eles
como as associações por eles criadas contribuíram em muito para
estimular a devoção ao rosário no reino e no ultramar. Assim, des-
de 1556 havia confraria dessa invocação em Chaul e em outras re-
giões da África e Ásia onde se estabeleceram os dominicanos. Mas
outras ordens também criaram irmandades do rosário, como os
agostinianos e franciscanos. Na América portuguesa, a irmandade
do rosário “[...] foi trazida, sobretudo, pelos jesuítas e é mesmo
possível que tenha vindo com confrades saídos de Portugal, empe-
nhados em introduzir essa piedade nos lugares que procuravam”
(Scarano, 1978:47).
Foi, portanto, pela obra dos missionários que o culto se ex-
pandiu nas terras americanas e, através do culto à Senhora do Ro-
sário, os negros rearticularam suas crenças, reinterpretando os ri-
tuais de devotamento ao rosário da Senhora. Os negros, segundo
Megale (1998:431), usavam o rosário pendurado no pescoço e, ao
final do dia, reuniam-se em torno de um “tirador de reza” e ou-
via-se nas senzalas o sussurrar das ave-marias e pai-nossos.
Várias foram as irmandades de negros consagradas a Nossa
Senhora do Rosário na América portuguesa, o que, aliás, nos faz
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pensar sobre o lugar central ocupado pelas irmandades nesse coti-


diano religioso colonial. Em todos os quadrantes da América por-
tuguesa elas preencheram inúmeras necessidades de culto, man ti-
veram viva a chama do catolicismo, erigiram igrejas, empreende-
ram obras pias, garantiram enterros cristãos, assistiram os neces si-
tados, substituíram, enfim, em diversos aspectos, a débil es trutura
eclesiástica que os portugueses estabeleceram aqui.
Segundo Arthur Ramos, a obra dos missionários no Congo
preparou a aceitação de várias devoções que chegaram à América
portuguesa. Frei Agostinho de Santa Maria, no início do século
XVIII, entretanto, tinha uma outra explicação para o início do
culto entre os negros. Segundo ele, foi uma imagem resgatada em
Argel que deu início ao culto e levou os negros a es colherem-na
como padroeira. Gomes & Pereira (1992:346) relacionaram a li-
gação da festa de Nossa Senhora do Rosário com os negros a partir
de um relato do surgimento da imagem nas águas. Segundo o re la-
to, para louvar a Mãe de Deus, os brancos trouxeram banda de mú-
sica e cantaram suas loas, chamando a Virgem — mas a imagem
não se movia. Vieram, então, os negros do Congo, batendo seus
instrumentos em ritmo acelerado, e a Senhora moveu-se apenas
lentamente, permanecendo nas águas. Foi somente a batida lenta
dos tambores do Moçambique que tirou a imagem das águas. Aí,
os brancos levaram a imagem para capela, onde o padre a benzeu.
Mas a imagem desapareceu do altar e voltou às águas até que os ne-
gros a retiraram, desta vez definitivamente, para torná-la sua pa-
droeira.
Uma opção da Igreja pela Virgem, ou uma opção dos negros
por ela, fez da Senhora do Rosário uma devoção especial? Aqui im-
porta pensar as estratégias de promoção do culto na América por-
tuguesa e, desta maneira, reconhecer nos missionários jesuítas seus
principais promotores, na medida em que tiveram papel prepon-
derante na ação evangelizadora aqui difundida.
Para pensar a ação jesuítica nesse texto, no entanto, o cami-
nho será servir-se de um dos seus maiores expoentes: Antonio Viei-
ra, que foi, talvez, a maior figura intelectual luso-americana no sécu-
lo XVII. Mas a escolha do seu nome deve-se a uma série de trinta ser-
mões que escreveu sobre o rosário, publicados originalmente em
dois volumes, em 1686 e 1688, com o título Maria Rosa Mística.
Nesses sermões, Vieira escreveu sobre a importância da ora-
ção verbal e da oração mental; e como no rosário ambas se con ju-
gam, dizia que este era o meio mais eficaz de os católicos guar da-
rem os Mandamentos; também desenvolvia a idéia de como, atra-
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vés da oração do rosário, se poderia combater as heresias. Preo cu-


pava-se, pois, em divulgar a devoção ao rosário e em demonstrar os
poderes da oração através dele.
No sermão XII, um dos poucos datados, pregado em 1639, na
Sé da Bahia, Vieira dizia que, em 1475, estando a cidade de Colônia
bloqueada por todas as partes, devastada e ocupada pelo exército de
hereges, apareceu a Virgem Maria a Jacob Sprenger e mandou que
ele pregasse e exortasse a devoção ao rosário e que prometesse, em
seu nome, que, por meio dela, toda a província ficaria livre das ar-
mas inimigas. E assim a Virgem teria cumprido a promessa, pois a
vitória foi obtida com a expulsão dos hereges. Ora, assim como a
Virgem ordenara que Sprenger pregasse o rosário em Colônia, da
mesma forma mandava que Vieira o pregasse na Bahia. Do mesmo
modo, ainda, como em vários episódios de batalhas anteriores, em
outros lugares da Europa, diante da ameaça herege em Pernambuco,
cabia aos nossos soldados colocar a figura da Senhora nas bandeiras
e usar o rosário a tiracolo, pois, assim, mesmo em desvantagem nu-
mérica, poderiam alcançar a vitória.
Mas, nos sermões XVI, XX e XXVII, Vieira parece ter preo-
cupações para além das exegéticas. Neles, Vieira relacionou a de-
voção ao rosário ao cativeiro dos negros pela escravidão.
No sermão XVIII, dirigido aos negros escravos, Vieira ele-
geu como assunto a carta de alforria oferecida a eles pela Senhora
do Rosário. O jesuíta dizia que, ao ver os negros tão devotos à Se-
nhora, como filhos dela, concluiu ser “o cativeiro da primeira
transmigração [...] ordenado por sua misericórdia para a liber ta-
ção da segunda”. Mais do que isso: sua carta de alforria não só era
promessa de liberdade eterna na outra vida, mas de os escravos se
livrarem do maior cativeiro desta vida. Vieira, então, cita Homero
e Sêneca para dizer que os escravos não eram escravos em tudo: a
melhor parte do homem, que é a alma, é isenta de todo domínio
alheio e não pode ser cativa. Desse modo, os negros, por mais que
padecessem no cativeiro, deviam se lembrar que aquele não era um
cativeiro total, senão que meio cativeiro.
Ora, Vieira defendia a idéia de que havia dois tipos de cati-
veiros: o do corpo, no qual os corpos eram cativos in voluntaria-
mente e escravos dos homens, e o da alma, em que as almas, por
vontade própria, se faziam cativas e escravas do demônio. Se a alma
era melhor do que o corpo, e o demônio pior senhor que o ho mem,
se o cativeiro dos homens era temporal e o do demônio, eterno, o
maior e o pior cativeiro só podia ser o da alma. A Senhora do Rosá-
rio, então, segundo Vieira, haveria de libertar, tornar forros os ne-
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gros do maior cativeiro. Os negros deviam, assim, cativarem-se


para se libertarem e se fazerem escravos da Virgem do Rosário para
não o serem do demônio; apagarem a marca do demônio, que era a
marca dos cativos, e colocarem em seu lugar a marca do rosário,
essa, sim, a marca dos libertos.
Segundo Saunders (1982:66), Gomes Eanes de Zurara foi
um dos grandes defensores da idéia de que os africanos eram es cra-
vos por causa do pecado. Seguindo os filósofos escolásticos, acredi-
tava que ao pecar o homem podia cair no estado servil e justificava
a escravidão por ela poder transformar os negros em cristãos e por
poder fazer com que usufruíssem de um nível superior de exis tên-
cia material. Para Saunders (idem:68), no que respeita ao século
XVI, a justificação suprema para o tráfico de escravos era a que sus-
tentava ser a escravização um método eficaz para trazer os negros à
luz da fé cristã.
David Brion Davis (2001:109) diz que muitos historiadores
exageraram a antítese escravidão versus doutrina católica. A de fesa
da escravidão esteve entrelaçada com conceitos religiosos, e este
amálgama, que se desenvolvera na Antiguidade, estava prefigura-
do no judaísmo e na filosofia grega. A escravidão, desse modo, em
um certo sentido era vista como uma punição resultante do pe ca-
do, ou de um defeito natural da alma, que impedia uma conduta
virtuosa. Era também vista como um modelo de dependência e de
submissão. Mas, ainda em outro sentido, a escravidão situava-se
como ponto de partida para uma missão divina. Foi da escravidão
do corpo corrompido de Adão que Cristo redimira a humanidade.
Vieira, no XXVII sermão, seguindo a visão neoplatônica da
distinção entre corpo e alma, defendeu a idéia de que a real escravi-
dão era a da alma, e desta só se livrariam convertendo-se à fé cató li-
ca, representada pela devoção a Nossa Senhora e ao rosário, pos si-
velmente os maiores símbolos da Igreja Católica missionária e
contra-reformista. Na luta pela liberdade da alma, valia mesmo,
segundo Vieira, não obedecer ao senhor quando este os levasse a
ofender gravemente a alma e a consciência. O jesuíta aproveitava
para criticar os senhores que não deixavam serem ministrados os
sacramentos para os escravos, que os deixavam sem conhecimento
da doutrina, que não os deixavam ir à igreja e os deixavam viver em
pecado. Cabia ao escravo, portanto, não ofender a Deus e, caso
fossem por isso castigados, deveriam sofrer “animosa e cristã men-
te”, ainda que por toda vida, pois estes castigos eram martírios.
No sermão XX, Vieira tomou como questão qual das ir man-
dades, a de negros ou de brancos, é mais favorecida da Virgem Se-
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nhora. Para comprovar o amor da Mãe de Deus pelos escravos, Vi-


eira lembraria do episódio da Anunciação, no qual Maria respon-
deu ao Anjo: “Eis a escrava do Senhor!”. Vieira argumentaria, en-
tão, que a razão pela qual Maria se declarou escrava antes de con ce-
ber o Filho de Deus teria sido “porque o parto, segundo as Leis,
não segue a condição do pai, senão da mãe”. Assim, ao fazer essa
declaração antecipada, ela quis
[...] que o Filho, que havia de ser seu, como filho de Escrava, nascesse
Escravo nosso. Enquanto Filho de seu Pai, é senhor dos homens; mas en-
quanto Filho de sua Mãe, quis a mesma Mãe, que fosse também Escravo
dos mesmos homens.

No século XVII, a partir da Espanha, teve grande in cremen-


to a devoção à santa escravidão.
Da Espanha, a escravidão mariana passou à França, graças ao Cardeal de
Bérulle e ao Arquidiácono de Évreux, H. Boudon, que em 1667 escreveu
o li vro Deus Só ou a Santa Escravidão à Admirável Mãe de Deus, no qual
esclarece que essa forma de escravidão consiste num “santo comércio
com a Rainha do Céu e da Terra, pelo qual se consagra a Ela a própria li-
berdade para ingressar no número dos seus escravos, constituindo-A pa-
trona absoluta do próprio coração, cedendo-lhe o direito que se tem em
todas as boas ações, dedicando-se inteiramente ao serviço de sua grande-
za e fazendo disso alto protesto”. (Santos, 1996:134)

Em 1694, D. Pedro II de Portugal chegou a aprovar os es ta-


tutos da Confraria dos Escravos de Nossa Senhora da Conceição
— então já padroeira do Reino e de seus domínios — na igreja de
Vila Viçosa. A escravidão marial ganhou contrafações e acolhida
entre gru pos, como o dos quietistas, que foram condenados pela
Igreja, influenciada, em muito, pelo ativismo da Companhia de
Jesus. Vieira, se em outros sermões pregava a prioridade ao fazer,
não parece ter se detido na polêmica entre voluntaristas e qui e tis-
tas, e, talvez, tenha se influenciado pela escravidão marial na este i-
ra de Bérulle e Boudon e da escola espanhola.
O sermão XIV — também dos poucos datados — foi pre ga-
do na Bahia à irmandade de negros em um engenho, no ano de
1633. Nele, Vieira intentou comparar a paixão de Cristo ao so fri-
mento dos negros no cativeiro. E, dessa maneira, pode conjugar a
exegese, a propaganda e a escravidão negra, ao falar dos mistérios
contidos no rosário, compará-los ao sofrimento negro na colônia e
apontar para a Virgem como mãe também dos escravos.
A análise da série de ser mões Maria, Rosa Mística de Vieira
pode iluminar a importância da devoção ao rosário, porém, mais
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do que isso, como tal devoção se conjuminava com as preocupa-


ções de uma Igreja ao mesmo tempo inquieta e expansionista. Mas
a penetração da devoção ao rosário e à Senhora do Rosário no Bra-
sil só pode ser compreendida no espaço mais amplo da velha cris-
tandade, por um lado, e do Império português, por outro.
A África foi campo de experiências da política de expansão e
colonização portuguesas. Sua anterior conquista, a da América,
portanto, não pode ser esquecida para avaliação também do papel
fundamental que coube ao catolicismo na dominação portuguesa.
Mas é ao considerar a concomitante promoção da devoção ao ro sá-
rio na velha cristandade e no ultramar que podemos percebê-lo
como uns dos instrumentos principais de propaganda da fé, liga do
ao espírito da Reforma católica.

Notas
Segundo A. C. Gonçalves, os cronistas João de Barros, Rui de Pina e Garcia de Re sen-
de não estão de acordo quanto às datas e número de ex pedições de Dio go Cão. “A pri-
meira vi agem teria sido 1482 — 83 e a se gunda, na qual subiu o rio Con go até as ca ta-
ratas do Yelala, em 1484 — 85” (Gonçalves, 1992:525).
“Até as ilhas de Cabo Verde, a armada foi comandada por Gonçalo de Sousa. Mas,
tendo fa lecido este, assumiu o coman do Rui de Sousa [...]” (Araú jo & Santos,
1993:646)
“A que Ordem pertenceriam estes três pri meiros missionários? Surgem diferentes
possibilidades. João de Barros, na sua Década Primeira, capítulo III, quando refere a
educação, no convento dos Lóios (frades de São João Evangelista) dos jovens na tu ra is
do Con go e do seu baptismo, antes de se rem entregues aos cuidados de Gon çalo de
Sousa para os restiuir à pátria, diz que foi escolhido um dominicano. Os Lóios, por
sua vez, reivindicam para a sua obra a primazia da acção apostólica empreendida e
mencionam como su perior frei João de Santa Maria, ‘re ligioso de grandes letras e vir -
tudes’, bem como Frei João de Portalegre, Frei António de Lisboa e o ‘Ma nicongo’,
Frei Vicente dos Anjos, assim chamado por ter sido um dos mais notáveis mis si o ná ri-
os da evangelização do Congo” (Ara újo & Santos, 1993:648).

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