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N. R. Muneny, The Interpretation of Plato’s Republic. Oxford University Press ('1951), repr. 1967. R. L, Nerruesip, Lectures on the Republic of Plato London, MacMillan ('1897), repr. 1964. RL. Nerriesia, The Theory of Eduction in Plato's Republic. Oxford University Press ('1935), repr. 1966. E. N. Osrenretp, ed., Esays on Plato's Republic. Aarhus University Press, 1998. K. R. Popper, The Open Society and Its Enemies, Vol. I. London, Routledge and Kegan Paul, (1945), 1966, repr. 1974, J.B. RAVEN, Plato's Thought in the Making. Cam- bridge University Press, 1968. C.D. C. Rutve, Philosopher-Kings. The Argument of Plato's Republic. Princeton University Press, 1988. D. H. Rice, A Guide to Plato's Republic. Oxford University Press, 1997. ‘A. SESONSKE, ed, Plato's Republic: Interpretation and Criticism. Wadsworth Publishing Company, Belmont, California, 1966. PAUL SHOREY, What Plato Said. ‘The University of Chicago Press ('1933), repr. 1968. Nichotas P. WxITe, A Companion to Plato's Republic. Oxford, Blackwell, 1979. x A REPUBLICA LIVRO I SOCRATES Ontem fui até a0 Pireu com Gliucon'', filho de Ariston, a fim de dirigir as minhas preces 4 deusa’, e, ao mesmo tempo, com o desejo de ver de que maneira celebravam a festa, pois era a primeira vez que a faziam. Ora a procissio dos habitantes dessa terra pareceu-me linda; contudo, nio me pareceu menos aprimorada a que os Tricios montavam. Depois de termos feito preces € contemplado a ceriménia, famos regressar 3 cidade. Entretanto, Polemarco’, filho de Céfalo, que, de longe, con, bem como Adimanto, que surge unas linhas mais abaixo, cram irmios mais velhos de Platio. Para um Ateniense, «a deusa» era usualmente Atena. Mas a referéncia 20s Tricios, que vern a seguir, ea mengio expressa da celebragdo das Bendideias em 354a, levam os comentadores a identificé-la com Béndis, deusa tricia que se confundia com Artemis. * Polemarco era flho de Cefalo, que possuta uma fibrica de escudos muito préspera, ¢ irmio do famoso orador Lisias. No governo dos Trinta Tiranos, foi preso ¢ obrigado a beber a cicuta. Lisi, que lograra escapar,regressou a Atenas ap6s a restauragio da democraca, ¢ conseguit processar Eratéstenes, um dos Trine, pel morte do irmo, proferindo entio um dos seus mais célebres discursos, © Conta Eratéstenes, que se conserva. 1 3278 observou que estivamos de abalada, mandou 0 escravo a correr, para nos pedir que esperassemos por ele, Agarrando- -me no manto por detras, o escravo disse: ~ Polemarco pede-vos que espereis ~. Eu voltei-me e perguntei-Ihe onde estava o seu senhor. — Esti jé ai — replicou —; vem mesmo atris de mim; esperai. — Esperamos com certeza — disse Gliucon. E pouco depois chegou Polemarco ¢ Adimanto, irmo de Gléucon, Nicérato’, filho de Nicias, e outros mais, com ar de quem vinha da procissio. Disse entio Polemarco: — © Séerates, pare vos estais a por a caminho para regressar a cidade. ~ Eno conjecturas mal ~ declare — Ora tu estisa ver quantos somos? — perguntou ele. — Pois nao! — Pois entio — replicou — ou haveis de ser mais fortes do que estes amigos, ou tendes de permanecer aqui. — Bem — disse eu — ainda nos resta uma possibilidade, me que a de vos persuadirmos de que deveis deixat-nos partir. — Porventura sericis capazes — replicou cle — de nos persuadir, se nos recusarmos a ouvit-vos? —De modo algum — declarou Gliucon. — Entio compenetrai-vos de que nio vos ouviremos. E Adimanto acrescentou: — Acaso no sabeis que logo a tarde vai haver uma corrida de archotes a cavalo, em honra da deusa? “ Nicérato, que também conhecemos do Banguete de Xeno- fonte, era filho'do famoso Nicias, 0 politico ¢ general ateniense gue em 4at aC. conch 0 atado de paz que tem 0 seu nome, € gue pés termo A primeira fase da Guerra do Peloponeso, Também [Nicérato teve de beber a cicuta por ordem dos Trinta Tiranos 2 ~ A cavalo? ~ perguntei ~. E coisa nova! f a cavalo que eles vio competir a passar os archotes uns aos outros? ‘Ou que queres dizer? ~ £ assim mesmo ~ disse Polemarco ~. E além disso vio celebrar uma festa nocturna, que merece ser vista. Portanto, vamos sair depois do jantar para ver a festa Estaremos ld com muitos jovens e conversaremos. Fiquem, € nfo facam outra coisa. ~ Bem parece que temos de ficar — confirmou Gliucon. — Se assim te parece — observei eu -, assim deve fazer-se. Fomos pois, a casa de Polemarco; ¢ af encontrimos Lisias e Eutidemo, irmios de Polemarco, ¢ também, além deles, Trasimaco de Calcedénia* e Carmantidas de Paianiew € Clitofonte, filho de Aristnimo. Estava lé dentro também 0 pai de Polemarco, Céfalo, Pareceu-me bastante envelhecido, pois hi tempos que nio o via. Estava sentado numa cadeira almofadada, com uma coroa na cabeca, pois dava-se 0 cas0 de ele ter acabado de fazer um sacrificio no patio’, Sen- témo-nos, entio, junto dele, porquanto havia ali algumas cadeiras dispostas em circulo. Logo que me viu, Céfalo saudou-me com estas Deste grupo de figuras, apenas Trasimaco ¢ Clitofonte entrario em dilogo. Carmantidas nto ¢ nomeado em nenhum outro texto. Trasimaco era um dos maiores Sofstas, ¢ a ele cabe a hhonra, juntamente com Gorgias, de ser considerado 0 criador da rosa artistca. E provivel que fosse, no dialogo, um convidado de isis, ue entio era estudante de retérica A Zeus Herkeios, protector da casa. Por esse motivo € que Céfalo se encontra coroado, 329 palavras: — © Sécrates, tu também nao vens ki muitas vezes a0 Pireu para nos veres. Mas devias fazé-lo, porque, se eu ainda tivesse forcas para ir facilmente até a cidade, nio seria preciso tu vites cé, mas nés é que famos visitar-t. Agora, porém, tu é que deves aparecer ci mais vezes. Fica a sabé-lo bem: na medida em que vio murchando para mim os prazeres fisicos, nessa mesma aumentam o desejo € 0 prazer da conversa. Nao deixes de estar na companhia des- tes jovens, mas vem também aqui a nossa casa, como a casa de amigos, ¢ de amigos muito intimos. — Com certeza, 6 Céfalo — disse eu ~, pois € para mim um prazer conversar com pessoas de idade bastante avangada, Efectivamente, parece-me que devemos infor- mar-nos junto deles, como de pessoas que foram & nossa frente num caminho que talvez tenhamos de percorrer, sobre as suas caracteristicas, se € Aspero e dificil, ou facil ¢ transitivel. Teria até gosto em te perguntar qual 0 teu parecer sobre este assunto — uma vez que chegaste ji a esse periodo da vida a que os poetas chamam estar eno limiar da velhices’ ~ se é uma parte custosa da existencia, ou que declaragdes tens a fazer. — Por Zeus que te direi, 6 Sécrates, qual € 0 meu ponto de vista. Na verdade, muitas vezes nos juntamos num grupo de pessoas de idades aproximadas, respei- tando o velho ditado". Ora, nessas reuniées, a maior ? Una das muias frases homéricas citadas neste dialogo, Esta consttui uma frmula que se encontra, v. g, em Iliade xx. 60, vex. 487, € Odea xv. 246,348, xxI 212, 0 ditado, citado expressamente no Fedro 2400, era a6 ‘hus cépnet («quem é de uma idade agrada a quem é da mesma idades), cujo correspondente mais proximo em portugués seria cada qual com seu igual. parte de nés lamenta-se com saudades do prazer da Juventude, ou recordando os gozos do amor, da bebida, da comida ¢ de outros da mesma espécie, ¢ agastam-se, como quem ficou privado de grandes bens, ¢ vivesse bem enti, ao passo que agora nio é viver. Alguns lamentam-se ainda pelos insultos que um ancifo sofre dos seus parentes, ¢ em cima disto entoavam uma litania de quantos males a velhice thes é causa, A mim afigura-se-me, 6 Sécrates, que eles no acusam a verdadeira culpada. Porque, se fosse cla a culpada, também eu havia de experimentar os mesmos softimentos devido 4 velhice, bem todos quantos chega- ram a esta fase da existéncia. Ora eu jé encontrei outros anciios que nio sentem dessa mancira, entte outros 0 poeta Séfocles *, com quem deparei quando alguém the perguntava: «Como passas, 6 S6focles, em questdes de amor? Ainda és capaz de te unires a uma mulher?» «Nio digas nada, meu amigo!» — replicou —. «Sinto-me felicissimo por lhe ter escapado, como quem fugiu a um amo delirante ¢ selvagem.s Pareceu-me que ele disse bem nessa altura, € hoje ndo me parece menos. Pois grande paz e libertacio de todos esses sentimentos € a que sobrevém na velhice. Quando as paixBes cessam de nos repuxar ¢ nos largam, acontece exactamente o que Sofocles disse: somos libertos de uma hoste de déspotas furiosos. Mas, quer quanto a estes sentimentos, quer quanto aos relativos aos parentes, hi uma 6 e tinica causa: nio a velhice, 6 Sécrates, mas o caracter das pessoas. Se elas forem sensatas ¢ bem dispostas, tam- bem a velhice € moderadamente penosa; caso contritio, " Trata-se do famoso tragedigrafo ateniense do séc. va. C 5 330a 6 Socrates, quer a velhice, quer a juventude, serio pesadas a quem assim nio for. Admirado com estas palavras, e querendo que cle continuasse a falar, incitei-o dizendo: © Géfalo, penso que 4 maior parte das pessoas, a0 ouvir-te essas afirmagdes, nio as aceita, mas supe que suportas bem a velhice, nio devido ao teu caricter, mas por possuires muitos haveres. Bois os ticos tém, diz-se, muitas consolagdes. ~ Dizes a verdade: nlo as aceitam. E tém alguma razio; porém, nio tanta quanta julgam, Esti bem certo aquele dito de Temistocles®, que, como um habitante de Serifo 0 ofendesse, dizendo que a sua celebridade Ihe viera, nio de si ‘mesmo, mas da sua cidade, the respondeu que nem ele se tomnaria ilustre se nascesse em Serifo, nem aquele, se em Atenas, Adapta-se bem esta mesma histéria aos que, nio sendo ricos, suportam a custo a velhice, porque nem 0 homem comedido aguentaré facilmente a velhice na pobreza, nem 0 que 0 nao é, ainda que rico, se tornari entio cordato, * Esta anedota relativa ao vencedor da Salamina é-nos conhecida através de Herédoto (vm. 128) numa versio um potico diferente: Por um seu amigo, Timodeno de Afdnas, Ihe ter dito que as honras que ele reccbera na Lacedeménia eram prestadas no a ele, mas 2 sua cidade, Temistocls retorquiu: «Esté cero: nem eu, se fose de Belbina, seria assim honrado pelos Espartanos, nem tu, 6 homem, se fosses Atenienses. Em qualquer das verses se contrape uma pequena ilha insignificante 3 cidade mais ilustre da Grécia. A do nosso texto, porém, que também se encontra em Plucarco, Temistodls 18, tornou-se mais conhecida por ter sido divalgada por Cicero no seu tratado Sobre a Velhie ut 8 (onde a inspiragdo colhida nest livo , de resto, vsivel em virios pasos). 6 — A maior parte dos teus haveres, 6 Céfalo, obtiveste-a por heranca ou por aquisi¢io? — Quanto € que eu obtive por aquisi¢io, 6 Sécrates? ‘Como homem de negécios, fiquei a meio camino entre 0 ‘meu avd € 0 meu pai. Com efeito, o meu av6, que tinha 0 mesmo nome que eu, herdou uma fortuna aproximada- ‘mente igual 3 que eu agora tenho, ¢ aumentou-a umas pou cas de vezes; a0 passo que Lisinias, o meu pai, ainda a tor now mais pequena do que é presentemente. Eu dou-me por satisfeito, se nfo a deixar menor a estes mogos, mas sim li- ‘geiramente superior a que herdei. — Se te fiz esta pergunta — disse eu — foi porque me pareceste no prezar muito as riquezas; ¢ isso fazem-no geralmente aqueles que nao as adquirem por si, Os que as granjearam pessoalmente estimam-nas o dobro das outras ‘pessoas. Tal como os poetas amam os seus préprios versos, ¢ 05 pais € os fills, assim também os homens de negécios se interessam pelas suas riquezas como obra sua, e também de- vido a sua utilidade, como os demais. Por isso, € dificil 0 convivio com eles, pois nada mais querem exaltar sendo a sua riqueza. — Dizes a verdade — confirmou ele. — Absolutamente — concordei eu —. Mas diz-me ainda ‘mais isto: qual € 0 maior beneficio de que julgas ter usu- fruido gracas & posse de uma abastada fortuna? — E tal que nio seria capaz de convencer dele muita gente, por mais que dissesse. Tu bem sabes, 6 Sécrates, que, depois que uma pessoa se aproxima daquela fase em que pensa que vai morter, Ihe sobrevém o temor ¢ Preocupagio por questdes que antes nfo the vinham & mente, Com efeito, as histérias que se contam relativa- 7 33ta mente a0 Hades", de que se tém de expiar Ii as injusticas aqui cometidas, histérias essas de que até entio trocava, abalam agora a sua alma, com receio de que sejam verda- deiras, E essa pessoa — ou devido a debilidade da velhice, ou porque avista mais claramente as coisas do além, como quem esta mais perto delas — seja qual for a verdade, enche-se de desconfiangas e temores, e comeca a fazer 0s seus cileulos ¢ a examinar se cometeu alguma injustiga para com alguém. Portanto, aquele que encontrar na sua vida ‘muitas injustigas atemoriza-se, quer despertando muitas vezes rno meio do sono, como as criangas, quer vivendo na expec- tativa da desgraga. Porém aquele que nio tem consciéncia de ter cometido qualquer injustica, esse tem sempre junto de si uma doce esperanca, bondosa ama da velhice, como diz Pindaro. Sao cheias de encanto aquelas suas palavras™, 6 Sécrates, de que quem tiver passado uma vida justa ¢ santa, a doce esperanca que the acalenta 0 coragio acompanha-o, qual ama da velhice — a esperanca que governa, mais que tudo, os espiritos vacilantes dos mortals. Palavras certas, ¢ muito para admirar. Em face disto, tenho em grande apreco a posse das riquezas, no para ° © Hades era a regito subterrinea onde ficava a mansio dos mortos. A nogio de expiaglo das faltas cometidas em vida depois de um julgamento post mote fora-se constituindo entre os Gregos 20 longo dos séculos, mas recebew a sua forma definitiva em Platio (mitos escatologicos do Gégias, Fédon, Fedro, ¢ deste mesmo didlogo, no Liveo »). "Fr arg Snell de Pindaro, todo o homem, mas para aquele que € comedido ¢ prudente. Nao ludibriar ninguém nem mentir, mesmo involuntariamente, nem ficar a dever, sejam sacrificios aos duses, seja dinheiro a um homem, ¢ depois patti para o além sem temer nada ~ para isso a posse das riquezas con- tribui em alto grau, Tem ainda muitas outras vantagens. Mas, acima de tudo, 6 Socrates, é em atenglo a este fim que eu teria riqueza na conta de coisa muito «til para o homem. sensato. — Falas maravilhosamente, 6 Céfalo — disse eu —. Mas essa mesma qualidade da justica, diremos assim sim- plesmente que ela consiste na verdade e em restituir aquilo gue se tomou de alguém, ou diremos antes que essas rmesmas coisas, umas vezes 6 justo, outras injusto fazé-las? Como este exemplo: se alguém recebesse armas de um amigo em perfeito juizo, e este, tomado de loucura, lhas reclamasse, toda a gente diria que nio se Ihe deviam centregar, ¢ que nio seria justo restituir-lhas, nem tio- -pouco consentir em dizer toda a verdade a um homem nesse estado. — Dizes bem. ~ Portanto, nyo é esta a definigio de justica: dizer a verdade a restituir aquilo que se tomou. = E-o absolutamente, 6 Sécrates ~ interveio Pole- marco ~ se, na verdade, se deve dar crédito a Siménides”. — Eu, por mim, fago-vos entrega da discussio — disse Céfalo —. Bois tenho de ir jétratar do sacrfico. ” Fr. 137 Page. Siménides, 0 maior poeta lirico grego, depois de Pindaro, é conhecido como um moraistaaustero. Platio, que a seguir Ihe chama ehomem sibio e divinoy, cit-o também no Progoras (3398-3473). b 332a — Entio no sou eu — perguntou Polemarco ~ 0 teu herdeiro'"? — Sem diivida, absolutamente ~ replicou ele a rit, a0 mesmo tempo que se dirigia para o sacrificio. — Explica entio ~ disse eu ~ tu, que €5 0 herdeiro da discussio, que € que afirmas que Simonides disse tio acer- tadamente acerca da justiga? = Que € justo restituir a cada um o que se Ihe deve Parece-me que diz bem, ao fazer esta afirmacio. — Sem diivida — declarei — que nao é facil deixar de dar crédito a Siménides, pois € homem sibio e divino. Em todo 0 caso, tu, Polemarco, sabes talvez 0 que ele quer dizer com iss0, a0 passo que et ignoro-o. Pois é evidente que nio se refere 20 exemplo de que ha pouco falivamos, de restituir a alguém aquilo que Ihe foi entregue em de- posito, quando esse alguém se encontra privado da razio. E contudo, fica-se a dever, penso eu, uma coisa que foi centregue em depésito? Ou nio? =Fica, — Mas de modo algum se deve restituir, quando al- aguém que esteja privado da razio reclamar? —E verdade — disse ele. ~ Entio nio ¢ isto, mas outra coisa, ao que parece, que Simonides quer dizer, relativamente a sex justo restituir-se 0 aque se deve. —E seguramente outra coisa, por Zeus! O parecer dele € que aos amigos se deve fazer bem, ¢ nuinca mal. Compreendo — disse eu —; no € restituir 0 que se deve, entregar a uma pessoa 0 ouro que ela nos " Jogo de palavras baseado no facto de Polemarco ser filho mais velho de Céflo. "Fr 137 Page de Siménides. 10 confiou, se essa entrega ¢ recuperagio se Ihe tornar pre- judicial, e se forem amigos aquele que recebe ¢ aquele que restitui, Nio € isto que afirmas que Siménides quis, dizer? — Exactamente. ~ E entio? E aos inimigos, deve resttuir-se aquilo que acaso lhes devemos? — Sem diivida alguma, resttuir-Ihes aquilo que se thes deve; ora 0 que um inimigo deve a outro é, em meu enten- der, o que lhe convém: 0 mal. ~ Por conseguinte, Siménides falou, a0 que parece, enigmaticamente, a maneira dos poetas, ao dizer o que era a justica. O pensamento dele era, aparentemente, que a Jjustiga consistia em restituir a cada um o que lhe convém, € a isso chamou ele restituir 0 que é devido. — Sem divida. = Oh! Céus! — disse eu —. Ento, se alguém Ihe per- guntasse: «© Siménides, a arte a que chamam da medicina, a que é que dé o que € devido e conveniente?» Que supdes que ele nos responderia? —F evidente que di aos corpos os remédios, a comida e abebida, —E aarte a que chamam da culindria, a que € que dé 0 que ¢ devido e conveniente? — Dé aos alimentos os temperos. ~ Bem. Ea arte a que chamam da justica, a que é que 44.0 que € devido? = Se temos de ser consequentes com o que se disse antes, dé ajuda aos amigos e prejuizo aos inimigos. — Portanto, ele diz que a justica consiste em fazer bem 40s amigos ¢ mal aos inimigos? — Assim me parece. rt 3334 — E agora quem & mais capaz de fazer bem a amigos doentes ¢ mal a inimigos, em questdes de doenga e de saiide? =O médico, — E aos navegantes, relativamente aos perigos do mar? — Opiloto. — Eo justo? Ei que actividade ¢ para que servigo ‘mais capaz de ajudar os amigos e prejudicar os inimigos? —No combate contra uns e 2 favor de outros, me parece. — Bem. Mas na verdade, meu caro Polemarco, para quem nio estiver doente, o médico € instil. —Everdade. Eo piloto, para quem no andar embarcado. Sim. — Logo, também ¢ initio justo para quem nio estiver em guerra? — Nio me parece i muito. —Entio a justiga é itil também em tempo de paz? -£ —E aagricultura também? Ou nio? —Também. — Para adquitie 0s seus produtos, certamente? Sim. —E, sem divida, a arte do sapateiro? Sim. — Dirias com certeza, julgo eu, que para o efeito de adquirirsapatos? ~Precisamente. — E entio? A justica, para que utilidade ou aquisigio dirias que é vantajosa em tempo de paz? — Para os contratos, Sécrates. 12 — Referes-te a parcerias ow qualquer outra espécie de contratos? — A parcerias, sem diivida. ~ Sendo assim, o parceiro bom ¢ ‘itil para colocar as pedras do xadrez é o homem justo ou jogador profissional? ~O jogador profisional. — E para colocar tijolos ¢ pedras, € um parceiro mais Stile melhor o homem justo do que o pedreiro? —De modo nenhum. — E em que parceria € que o homem justo é melhor companheiro do que © citarista, tal como este € melhor do ue aquele a quem se associar para tocar? —Nade dinheiro, em minha opiniio. — A nto ser talvez, 6 Polemarco, para o efeito de fazer uso do dinheiro, quando fosse preciso comprar ou vender tum cavalo em comum, Nesse caso, seria 0 tratador de cavalos. Ou nao? = Parece que assim 6, ~E,se for um barco, o armador de navios ou 0 piloto? = Acho que sim. — Entio quando é que, sendo preciso fazer uso de ouro ‘ou prata em comum, o justo sera mais aitil do que os outros? — Quando se trata de fazer um depésito que fique a salvo, 6 Sécrates, — Queres dizer, portanto, quando nio houve necessi- dade de utilizar 0 dinheiro, mas sim de 0 deixar estar? — Exactamente. — Logo, quando o dinheiro esté sem se utilizar € que a justica, por isso mesmo, € aitil? 1B 34a ~E possivel. — Entio, quando for preciso guardar uma podoa, é a Jjustica que € wtl, quer de parceria, quer individualmente; quando for preciso utilizi-la, €a viticuleura? ~ Assim parece. — Afirmards também que, para 0 escudo e a lira, quando se tratar de os guardar e de no os utilizar para nada, é stil a Jjustiga; quando for para se servir deles, é a arte dothoplita"* ea do miisico? aa = £ forcoso. — Em tudo o mais, ¢ para cada coisa, a justiga é indtil, quando nos servimos dela, e itil, quando nos no servimos, —Provavelmente. ~ Entio, meu amigo, a justica no poderia ser uma coisa If muito séria, se se di o caso de ser itil para as coisas que nio sio utilizadas. Mas vamos examinar seguinte: acaso o mais habil a bater-se na luta, quer no pugilato quer em qualquer outra modalidade, 0 no é também para se defender? — Inteiramente. — Logo, quem é capaz de se defender de uma doenga, é também 0 mais capaz de a transmitir despercebidamente? —Eo que me parece. — Mas, na verdade, seri um bom guardito do exército aqucle mesmo que roubar os planos do inimigo ¢ o lograr nas suas operagdes? — Exactamente, “© hoplita era 0 soldado de infantasia pesada “4 — Logo, se uma pessoa for um hibil guardiio de uma coisa, é também um habil ladeio da mesma. — Assim parece. ~ Portanto, se 0 homem justo é hibil para guardar dinheiro, é também hibil para o roubar. — Assim o dé a entender o raciociio. = Logo, 0 homem justo revela-se-nos, a0 que parece, como uma espécie de ladrio, e isso € provavel que 0 tenhas aprendido em Homero. Efectivamente, ele tem grande estima pelo av6 materno de Ulisses, Autlico, ¢ afirma que ele excedia todos os homens em roubar e em fazer juras”. Parece, pois, que a justica, segundo a tua opinio, segundo a de Homero e a de Siménides, é uma espécie de arte de furtar, mas para vantagem de amigos e dano de inimigos, nio era isso que dizias? — Por Zeus que nio! ~ replicou ~. Ja nio sei o que dizia. No entanto, ainda continua a parecer-me que a justiga € auxiliar os amigos e prejudicar os inimigos. — A quem chamas amigos: aos que parecem honestos a ‘uma pessoa, ou aos que 0 sio de facto, ainda que 0 nio paregam? EF outro tanto direi dos inimigos? — E natural — disse ele — amar a quem nos parece honesto, e odiar quem nos parece mau, — Mas os homens nfo se enganam a esse respeito; de maneira que lhes parecem honestos muitos que 0 nio sio, ¢ vice-versa? —Enganam. " Odliseia xix. 395-396. 15 335a — Logo, para esses, os bons sio inimigos, € os maus, amigos? ~ Precisamente. — Nio obstante, para essas pessoas, a justica & ajudar 60s maus e prejudicar os bons? ~ Assim parece. ~ E contudo, os bons sio justos ¢ incapazes de cometer injusticas? ~ B verdade. ~ Segundo 0 teu raciocinio, é entio justo fizer mal a quem nio cometeu qualquer injustiga? — De modo algum, Sécrates. Isso parece-me um racio~ cinio perverso. — Entio — disse eu ~ é justo prejudicar os injustos e ajudar os justos? — Esse raciocinio ja me parece mais perfeito do que © anterior, — Logo, 6 Polemarco, aconteceré que, para muitos, quantos errarem no seu juizo sobre os homens, sera justo prejudicar os amigos, pois nfo sio maus a scus olhos, ¢ aju- dar os inimigos, pois os tém por bons. E assim afirmaremos cexactamente 0 contririo do que fizemos dizer a Simsnides. ~# mesmo assim que acontecerd. Mas vamos corrigit- nos. Pois provivel que no tenhamos definido correcta- mente o que € amigo ¢ 0 que é inimigo. — Como o definimos, Polemarco? —O que parece honesto, esse & que € 0 amigo. — E agora — disse eu ~ como cortigiremos a defini- so? — Amigo € 0 que parece ¢ € na realidade honesto. © que parece, mas nio é aparenta ser amigo, sem 0 ser. E, sobre o inimigo, a definicio € a mesma, 16 ~ Logo, segundo este raciocinio, parece que amigo ¢ © homem de bem, ¢ inimigo, o malvado, ~ Sim. = Queres que acrescentemos a definicio de justca, tal como a formulimos primeiro — de que é justo fazer bem a0 amigo ¢ mal ao inimigo — que acrescentemos agora que & |justo fazer bem a um amigo bom e mal a um inimigo mau? ~ Exactamente — disse ele ~; parece-me que isso seria falar com propriedade. — Entio — prosseguiu — € proprio de um homem justo fazer mal a qualquer espécie de homem. — Precisamente. Deve fazer-se mal aos malvados ¢ ini- migos. = Quando se faz mal a cavalos, eles tornam-se melho- res ou piores? ~ Piores. ~ Em relagio a perfeigio dos cies ou a dos cavalost —A dos cavalos. — Mas, se se fizer mal a cies, eles tomam-se piores rela- tivamente & perfeigio dos cies ¢ nio A dos cavalos? —Forcosamente. — E quanto aos homens, 6 companheiro, nio teremos de dizer 0 mesmo: que, se se fz mal, se tormam piores em relagio a perfeicio humana? = Bxacto. — Mas a justica nfo 6 a perfeigio dos homens? = Tamnbéim isso € foryoso. —E, se se fizer mal aos homens, meu amigo, ¢ forgoso que eles se tornem mais injustos. — Assim parece. — Acaso os miisicos podem tornar outrem ignorante na sdsica, por meio da sua arte? 7 sC/UFG ®

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