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A REPRESENTACAO LITERARIA DA IDENTIDADE NA LITERATURA MOCAMBICANA: CRAVEIRINHA Gilberto Matusse” Resumo Onznene em condigées de “semiose colonial” relega a Literatu- ra Mogambicana escrita em lingua portuguesa para um estatuto de manifestagio cultural periférica, do qual surge uma necessidade de ruptura com a cultura metropolitana de referéncia e de afirmagao de uma identidade propria. Nao havendo em Mogambique uma tradigio literdria eserita que sirva de base para esta afirmagio, € em modelos estrangeiros que a literatura mocambicana busca as estratégias textuais, para, literariamente, construir os signos da identidade literéria nacio- nal. Nesse texto abordaremos a forma como modelos literdrios alie~ nigenos sao utilizados (assimilados, transformados, subvertidos) pelo escritor José Craveirinha como representagdes da mogambicanidade, represet o da identidade é um elemento particularmente relevante na li- teratura mogambicana escrita em lingua portuguesa como, aliés, generica- mente nas chamadas literaturas emergentes de situagbes coloniais, cujd am- biente de surgimento é 0 complexo sistema de interagdes semidticas, a que Walter Mignolo chama “semiose colonial”, em que tradigdes orais ¢ diferentes sistemas ¢ tradig6es de escrita oriundas de diferentes civilizagdes se encontram, se cruzam ou se conflituam. (Mignolo, 1991, p. 219-244) No caso mogambicano, estas interagdes so regidas por todo um cédigo, ba- seado na politica portuguesa da assimilagéo, que estabelece uma hierarquizacao nao 36 das priticas semisticas como também dos seus sujeitos. ‘Teoricamente, a assimilagio seria a forma pela qual se transformaria 0 coloni- zado num portugués “verdadeiro”, levando-o a abandonar os seus valores culturais originais assumir uma postura mais conforme com os valores europeus, para dat niversidade Eduardo Mondlane ~ Maputo — Mocambique. 185 ‘SCRIPTA, Belo Horizonte, « Iya 1p. 185-1 Gilberto Matusce gozar do direito a plena cidadania portuguesa. Os requisitos para a assimilagio, como € ébvio, apenas cram preenchidos por uma infima percentagem da populagio afric na (c& Hedges, 1985, p. 7-18), o que resulta na sua divisdo entre assimilados e nao as- similados (0s indigenas). sta divisao reflete- no sistema de ensino, que distingue, ao nivel primério, ensino rudimentar (posteriormente chamado de adaptagao), freqiientado por indige- nas, € 0 ensino primdrio, freqiientado por civilizados ¢ indigenas que tivessem con- clufdo 0 ensaio de adaptagio. Este tiltimo dé acesso aos escaldes mais clevados do en- sino, 0 que propicia a aquisigio e desenvolvimento de uma cultura letrada dentro dos modelos civilizacionais portugueses. Como resultado, a hierarquizagio no con- texto cultural mogambicano vai compreender trés nfveis bésicos: o da cultura euro- éia, 0 da cultura assimilada ¢ o da cultura indigena. pe rita em lingua portuguesa vai nascer dos cérculos, literatura mogambicana da cultura assimilada, no seguimento de um proceso de divulgagio da cultura letra- ca que, de forma mais ou menos sistematica, sc inicia nos principios do século passado. O fendmeno mais marcante deste proceso esté ligado ao aparecimento, em Lourengo Marques, do jornal O Africano. Em 1908 public: “de propaganda a favor da instrugdo”, e no ano seguinte inicia-se a publicagao nor- mal, até 1918, altura em que é substitufdo por O Brado Africano. Africano, ¢ posteriormente O Brado Africano, jorn2 prol do progresso, instrugio e defesa dos naturais do ultramar, sao 0s primeiros redi- se um ntimero tinico s que se diziam em gidos por assimilados ¢ dirigidos especialmente As populagdes locais, versando temas a clas ligados, ¢ que se publicam em portugués em ronga (Ifngua banta local). O que torna estes jornais um ponto de referéncia € exatamente o fato de eles refletirem de forma evidente o espirito € a condigao do assimilado. Enquanto recla- ma a plena cidadania portuguesa e defende a divulgagao ¢ assungao dos valores eu- ropeus, desprestigiando os de origem africana, € a estes mesmos que recorre (neste caso, a lingua) para fazer chegar a sua mensagem as camadas que pretende promo- ver, ou seja, refletem a condigao ambigua destes homens que.constituem o embridio da cultura aculturada que ird alimentar a “linguagem” da literatura mogambicana em lingua portuguesa: a de homens que renegaram a africanidade, mas que niio chegaram a ser plenamente portugueses. A segunda razio reside no fato de ser do nticleo de intelectuais ligados a estas publicagées que irdo surgir os primeiros ho- mens de letras agrupados num movimento com uma atividade j4 de certo modo sistematica. Fa este circulo que pertencem autores como Jodo Albasini, Augusto do Con- rado, algum dos mais referenciados da primeira fase da literatura produzida em Mo- cambique por afticanos assimilados. E. também em O Brado Africano que sao pu- blicados, desde 1932, os primeiros poemas de Rui de Noronha, considerado o pre- cursor da poesia mogambicana. A postura de assimilado da linha editorial de © Afticano e de O Brado Africa- 186 SERIPTA Blo ion yw 15 see 1987 A REPRH'SENTAGAO LITERARIA DA IDENTIDADE NA LITERATURA MOGAMBIGANAG CRAVEIRINHA, no nao deixa divida quanto ao fato de esta camada social ver na cultura portuguesa 6 modelo ideal de cultura, 0 que se refletiré na literatura produzida pelos homens que a eles se ligam. A titulo de exemplo, podem citar-se as reprodugées de composi- oes literdrias de autores como Guerra Junqueiro, Camilo Castelo Branco, entre ou- tos, e de autores estrangeiros em voga na metr6pole. Distanciada jé da africanidade e aspirante & portugalidade, da s6 pode ser uma cépia imperfeita desse paddo de referéncia: a sua condigio é pe- cultura assimil riférica, Sera a tomada de consciéncia desta condigio que vai provocar a necessidade dea firmacao de uma identidade propria, a assungao ¢ a exaltagio da diferenga rela tivamente & portugalidade. Assim, em primeiro lugar, a representagio literdria da mocambicanidade deve ser vista como uma negacio da portugalidade. Tendo os modelos da literatura escrita sido introduzidos pela via da portugali dade, a representacio literdria da identidade far-se-4 de acordo com as estratégias € padrd , ocidental. Dai que a pesquisa ¢ 0 entendi- mento dos tragos caracterizadores da identidade literdria mogambicana passem pela perspectiva comparatista com a literatura portuguesa, cuja finalidade sera detectar os pontos de continuidade, de transformagao ¢ de descontinuidade, mesmo quando 0 de representacao literdria de ra recurso a outros modelos parece excluir 0 concurso desta literatura. Assumindo esta perspectiva ¢ admitindo que esta pratica pode concretizar-se através de diversas formas, quero destacar, para 0 caso de José Craveirinha, a adapta- gio, transformagao e subversio de modelos da literatura e cultura portuguesa (ou eu- ropéia em geral). Este dominio, por seu turno, apresenta varias matizes. Quero aqui referir apenas algumas, nomeadamente as que se enquadram na adogao das postu- ras vanguardistas de ruptura e afirmagio. De um modo geral, 0 que se evidencia nos textos de cariter programitico ¢ também na produgio litera se projeta) € a afirmagio pela contestagio direta da tradugio, uma afirmagio ¢ auto- da modernidade (¢ sobretudo nas vanguardas em que definigéo pela inversio dos modelos anteriores, uma procura deliberada e proclama- da de libertagao, diria mesmo, uma consciéncia de pertencer a uma época ¢ socieda- de diferentes ¢ a conseqiiente vontade de criar uma arte prépria dessas época ¢ socie- dade. Ora, esta necessidade de ruptura e de afirmagio coincide exatamente com 0 esforgo de afirmagao de uma literatura emergente como € a mogambicana. Do mes- mo modo que os modernistas véem nos modelos anteriores algo que hes é alheio, os autores mogambicanos que pretendem superar o estatuto de menoridade véem nos o alheios cAnones irradiados pelo centro metropolitano modelos que Ihes , dos quais é necessario encetar um esforgo de libertago. Do mesmo modo que as vanguardas modernistas, face ao peso ca solidez dessa tradigao de que se pretendem libertar, no podem assumir uma atitude de indiferenga, optando antes pelo afrontamento direto c pela contraposigio, as suas categorias, de categorias negativas com o intuito de tor- Sica ee C«idC SGRIPTA, Belo Horizonte, « [ym 1, p, 195-195, 2 sem. 1997 Gilberto Matusse nar clara a ruptura, 0s mogambicanos irdo assumir também, em muitos casos, uma atitude marcada pela subversio dos c4nones, pela irreveréncia, ¢ pela consagragio dos valores periféricos a esses mesmos cdnones. Os manifestos, que proliferaram entre as geragdes modernistas, tornaram-se 0 lugar destas auto-afirmagdo e auto-definigio, desvalorizando ¢ ridicularizando a li- teratura tradicional ¢ preconizando os c4nones de uma nova literatura. Alguma da poesia de José Craveirinha aparece imbufda deste espirito de ma- nifesto, apresentando as marcas formais do discurso manifestatdrio ea atitude de au- to-alirmagao ¢ auto-definigao como afticano/mogambicano ¢ os respectivos distan- ciamento c desvalorizagao dos tragos da europeidade/portugalidad em Xigubo, livro inicialmente publicado em 1964 ¢ recditado em 1980 com iveis diferengas que o carater de manifesto melhor se percebe,! ¢ sobretudo em x poemas como “Africa”, “Hino & minha terra” e “Manifesto”.? Neles encontramos a marcagao de um ritmo de declamagao, em que se sugere um crescendo, uma vor. que vai evoluindo de um tom sereno ao grito emocionado, frenético, como numa pro- clamagao publica No que concerne & auto-definigio, Craveirinha langa mao a varios atributos da africanidade/mogambicanidade, nomeadamente a negritude, 0 meio geogrifico ¢ 0 valores da tradigo daquilo a que se refere como “minha terra”. Digamos que, a0 afirmar a pertenga a essa terra que se define por esses atributos, © poeta também se identifica ¢ se define pelos mesmos. O traco da negritude aparece na obra de Craveirinha codificado de diversos modos, desde a referencia direta até a expressio por meio de tropos como a metéfora (“Eu sou carvao” X, p. 13) ¢ a metonimia. E esta diltima a mais comum nos textos mais carregados de teor manifestario, como nesta estrofe de “Africa”: Em meus labios grosso fermenta a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mae Africa ¢ meus ouvidos ndo levam ao coragao seco misturada com o sal dos pensamentos ; a sintaxe anglo-latina de novas palavras (% p. 15) O sujeito pottico identifica-se aqui, em termos raciais, como negro, através da alusio aos labios grosso, ¢, posteriormente, como africano, pela referencia A sua “Mae " Acedigio de 1964, segundo Carlos Ervedosa citado por Ana Mafalda Leite (A Poética de José Craveitinha, Lis- boa, Vega, 1991, . 25), coincide na fotegra com a coletinea mimeogralada de poemas que havia ganho em 1962 o Prémio Alexandre Daskalos da Casa dos Estudantes do Império,cujo titulo exajustamente Manifest, In Craveirinha, José Xigubo, Lisboa, Ed. 70,1980, . 15-17, 21-23 « 33-35, respectivamente. Doravante, as re- ferénciasa esta obra serio dadas no texto, ent paréateses, através da abreviatura Xeaindicacio da(s) pSgina(s) correspondete(s).Procederei do mesmo modo em relagio is outras obras de Craveirinha utilizadas neste traba- tho: Karingana ua Karingana, Lisboa, Ed. 70, 1982, sendo a abreviatura, neste caso, a letra K. > CE Leite, *M. A pottica de José Craveirinha, ed. cit. p30. 188 SORIPTA, Blo Hoon yn ps W595, Dove, HOT A REPRESENTAGAO LITERARIA DA IDENTIDADE NA LITERATURA MOGAMBICANA: WEIRINHIA Africa”. E uma identificagio de um ew que rejeita a europeidade, pela recusa dos seus ouvidos em levar ao coragio os pensamentos ¢ a sintaxe anglo-latina. Ao longo deste extenso poema, vai sendo desenvolvida esta oposigio entre 0 ew ¢ eles, também identificados como brancos através de uma metonimia (“Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos liso” ~ X, p. 16), numa sucessdo de contrastes entre atributos de um ¢ outros. Outras vezes a afirmagio de identidade através da exaltacao da negritude, ser- ve-se de uma forte dose de narcisismo, como evidenciam estes versos: Ont Meus belos ¢ curtos cabelos erespos € meus olhos negros como insurrectas grandes luas de pasmo na noite mais bela das mais belas noites inesquectveis das terras do Zambeze. bel ¢ minas maravithosas maos escuras ratzes do cosmos LJ ¢ belas como carves de micaias na noite das quizumbas. E minha boca de libios tdmidos cheios da bela virilidade impia de negro (X, p. 33) Por via deste narcisismo manifest ¢ uma praxis de proclamagao do orgulho de ser negro, que contraria a alienagdo provocada pela zoomorfizagao € coisificagio a que o etnocentrismo europeu votava o afticano. Assim, a proclamagio do orgulho de ser negro, nao s6 afirma o pocta como tal, como também se insere na estratégia de ruptura com o sistema de valores que o indignifica, contribuindo para a construgio de um novo sistema préprio. Acstratégia da identificagio, porque se processa e se consuma essencialmente por meio da ruptura, exige a complementarizagao da exaltagdo dos atributos do “pré- prio” com a desvalorizagao dos atributos do “outro”, Tal como nos manifestos das nem mesmo da arte literdria, mas sim elementos basilares da cultura portuguesa (e oci- dental), que funcionam como simbolos da pontualidade e do processo de coloniza- fio. Efetivamente, os elementos em que mais se evidencia esta dessacralizagio sao a vanguardas, 0 poeta dessacraliza valores nao especificos de um autor ou época nogio de civilizagao, os simbolos ¢ rituais do cristianismo/catolicismo, a lingua e os préprios cdnones literdrios (os temas, as formas) No concernente a civilizagao, Craveirinha manifesta, no poema intitulado ex: tamente “Civilizagio”, um claro cepticismo, denunciando 0 quao é falsa a crenga num desenvolvimento resultante do avango tecnolégico — simbolo, afinal, dessa civi- lizagao curopéia que se impoe ao africano. 7 189 SCRIPT, Belo Horizonte, «10.1, p. 185-195, Gilberto Matusse Antigamente (antes de Jesus cristo) (0s homens erguiam estédios e templos ¢ morriam na arena como edes. Agora também jié constrdem Cadillacs (K, p.24) O pocta escolhe a antigiiidade para apresentar o paradigma da condigao hu- mana no contraste entre a falsidade da grandeza, dada pela monumentalidade das suas realizacées (“ergucr/construir”), grandeza nao intrinseca, porque apenas indu- zida, ea pequenez sugerida pela morte como cio. Esta condicao nao se altera no de- correr dos séculos, sendo apenas o elemento criador da ilusao de grandeza—o Cadil- lac — que se altera Se olharmos para o Cadillac como sinal de isolamento € ostentagio egoista, cle apresenta-se como negagio da aproximacao, solidariedade e simplicidade que o templo co estadio, como lugares de convergéncia de multidées, podem ser. E ainda 0 mes- mo Cadillac pode representar ociosidade quando contraposto A cultura fisica que se pratica no estédio, Assim, 0 avango tecnolégico redunda na degradagio da sanidade espiritual e fisica do homem. Em suma, a civilizagio a que o discurso da politica co- lonial da assimilagdo atribui uma conotagio po: mente como tal, o que denuncia uma postura de distanciamento em relagio a esse tiva, aparece aqui referida ironica- mesmo discurso. As rel ( freqiientes na poesia de Craveirinha, através da associagio aos scus aspectos negativos, desvalorizando-a portant, como no poema “Ciéncia”, em que est expressa a indignagio perante a incocréncia da éncia, afinal, voltada mais para a destruigao do que para a salvagio do homem. réncias irdnicas a civilizagdo Quando problema ntimero Um é milho o cientista cm vex de inventar farinha ~ provoca a fitria dos dtomos Quando a crise é de falta de inseticidas 0 cientista satura o campo com bactérias por causa das pessoas (CI, p. 78) Outras vezes, a associacdo a aspectos negativos € acompanhada por um con- traste com elementos ligados & tradigdo africana, que ficam assim valorizados: Em vez dos meus amuletos de garras de leopardo vendem-me a sua desinfetante béngao [- tam filme de herbis de carabina a vencer traigociros 190 SORIPTA elo oven lym yp 51, PF A.RFPRESENTAGAO LITERARIA DA IDENTIDADE NA LITERNTURA MOGAMBICANA: scloagens armados de penas e flechas co dsculo das suas balas e dos seus gas civiliza 0 mau casto impudor africano, od i aprendo que os homens que inventaram aconfortdvel cadeira elétrica a técnica de Buchenwald ¢ as bombas V2 acenderam fogos de artificio nas pupilas de ex-meninos vivos de Vars6via fel agora vém avar os meus campos com charruas “made in Germany” mas jd ndo ouvem a subtil voz das drvores nos owvidos surdos do espasmo das turbinas ndo léem nos meus livros de nuvens sinal das cheias ¢ das secas € nos seus olhos ofuscados pelos clarées metaltirgicos extingui-se a elogiiente epidérmica beleza de todas as cores das flores do universo (X, p. 15-17) s lacrimogéneos Os simbolos ¢ 0s rituais do catolicismo, alids intimamente conexionados com a nogao de civilizagio, aparecem muitas vezes parodiados e destitufdos da sua aura sagrada, como nesta passagem em que a héstia é esvaziada do seu contetido espiri- tual ¢ redu vida a uma dupla insignificdncia: a de ser apenas po ea de, nessa quali- dade, nao poder s¢-lo plenamente, dada a sua reduzida dimensio. Ajoetham-me aos pés dos seu deuses de cabelos lisos ena minha boca diluem o abstrato sabor da carne de héstias em milionésimas circunferéncias hipdteses catélicas de pito. (X, p. 16); No poema “Hossanas ao Héssi Jesus” (K, p. 114-117), € uma oragio que € pa- rodiada, por meio da substituigao da solenidade por um ar jovial a que se acrescenta uma transcontextualizagio a varios nfveis, como: © oda lingua, com a insergao de vocdbulos ronga em substituigio de palavras chave (0 titulo, “Ave-mamana”, “Ave-maria mamana do Redentor trafdo”); * 0 da profanagio do sagrado/transcendente, (i) através do seu cruzamento com o mundo moderno da tecnologia nociva Mew Héssi carpinteiro{hoje técnicos samaritanos crismamde radioatividade as pombas € as criangasfe 0 céu ja é dos astronautas tambémie na sintese dos neo-mandamentos/reza~ ‘mos a deuses séeulo vintelo nosso xicombelo:| ~ Senhores centurides do arfou patrées tanto fas{fazei chegar as cidades/mais supersbnico 0 mtssil/e dai-nos a vossa béncio/instantanca parandiafultra dos dtomos/Amen! EHGnchoEe CO IA, Belo Horizonte, x 1,8 fps 185-195, 2° vem. 1997 Gilberto Matusie ou (ii) através da transformagio de lugares ¢ acontecimentos biblicos e elementos do mundo degradado dos grupos sociais periféricos (“Héssi: /Nascemos jd envelhecidas/ razées nenhumas de Quissinmusse/e inguavanas madalenas arrependidas de nds/no dia Gélgota munhuanizado nas cantinas/Jerusalém bantu exterior a Igreja)”: * oda humanizagio ¢ desmistificagao das figuras sagradas (a referéncia a Cristo como carpinteiro, ou a Madalena como “inguavanas Madalenas arrependi- das”); * oda inversao irénica dos mandamentos, numa sétira das desigualdades so- ciais ¢ da hipocrisia dar de comer a quem tem mais comida/um livro ou um prato um prato on um livrofco- Ther amendoim para qué ou fazer cana de agttear/é doce entdo amar 0 capataz mais do que a nds mesmos?/ dar de beber dgua a quem tem o champanhe todo/ndo mandar ninguém plantar algoddo isso ndofe despir mats os nus que bom. Se a poesia de Craveirinha esté, de um modo geral, imbuida de um espirito moderno, quer ao nivel da forma, quer ao nivel tematico, na linha do alargamento dos dominios poéticos proprio do espirito da modernidade, nota-se, no entanto, que 6 poeta por vezes ultrapassa os limites desse espfrito, como no poema “Afinal ... a bala do Homem Mau", em que se processa uma subversao total da nogio de equilbrio da forma: Era noite! Era noite e 0 menino estendew a mao eafinal ndo era o menino estendeu a mao ¢ afinal ndo era o menino que tinha fome cafinal a bala do homem mau no Chamanculo E que tinka mais fome do menino. Afinal . Afinal Afinal era a bala Afinal era abala que tinka fome da fome do menino do Chamanculol (X, p.50) O poema é de 1956 € nao foi incluido na edigdo de 1964 de Chigubo, figuran- do apenas na de 1980, Isto leva-me a concluir que se trata de uma atitude deliberada do autor, ¢ nao o resultado de uma imperfeicio prépria de uma fase de evolugéo, que teria sido, facilmente, superada através da reescrita ou da exclusio do texto, na fase madura em que foi editado. Ao produzir esta forma deliberadamente “anti-pottica”, como o proprio dir4, 0 poeta desafia os cfinones que Ihe servem de modelo e procura escandalizar o gosto do ptblico, afirmando, ainda que implicitamente, o desejo de ser lido segundo cénones novos. Alids, é este inconformismo, esta rebeligo, que en- contramos na tiltima estrofe de “Msaho”, em que no sé se afirma a ruptura com os cAnones poéticos correntes, como também s¢ explicita a mogambicanidade do gesto, 192 SGRIPTA, Belo Horton, io, p 15-195, "sem, 97 Annee SENTAGAO LITERARIA DA IDENTIDADE NA LITERATURA MOGAMBICANA: CRAVEIRINH através da auto-identificagdo do sujeito poético e da especificagao do lugar da enun- ciagao Pois eu do primeiro ao iltimo invendido cromossoma desnutrido mogambicano da eabeca aos pés da concessio dos alvards de extragao dos minérios _favei para ti neste ano de mil novecentos ‘esessenta eum agui na Mafalala inteina a beleza do som e completo o lirismo da firia desta minha insubordinada impottica poesia. (K, p. 128) ‘A importincia da lingua como simbolo da portugalidade (saber falar portu- gués era um dos requisitos para se ascender ao estatuto de assimilado) ea sua partici pagio na constituicao dos cénones literdrios so fatores que a tornam particularmen- te vulnerdvel a subversio/parodizagao. A este nivel, Craveirinha ofere¢ to conjunto de marcas textuais, que se situam fundamentalmente na reprodugao de nos um vas- estruturas do “portugués incorreto” caracteristico das camadas pouco escolarizadas ¢ no aportuguesamento ou insergdo pura de vocdbulos da lingua ronga (Ifngua banta). Relativamente & insergio de palavras, convém notar que 0 poeta nao obedece regras comuns de uso de vocdbulos estrangeiros. As palavras aparecem normal- mente no texto, sem qualquer itélico ou de qualquer outra marca grafica. Estas palavras sao, p pertencessem a lingua em que os poemas esto escritos, idéia que € reforgada, por exemplo, pelo contraste com 0 destaque das palavras inglesas, por meio de aspas, que séo muito freqiientes na poesia de Craveirinha. Por outro lado, seria importante sublinhar também que, na maior parte dos casos, se trata de palavras que poderiam inalizagio, quer por meio de aspas, quer por meio de , usadas como se ser facilmente substituidas por palavras portuguesas, sem afetar.o sentido do texto, 0 que demonstra que o seu uso advém exelusivamente de uma opgio estética do poeta ce no de uma necessidade de nomear objetos ou fendmenos para os quais a lingua portuguesa carece de vocdbulos. A subvers nial, que atribui o estatuto de lingua de prestigio e de I{ngua culta ao portugues “cor- io da lingua é uma forma eficaz de contrariar a hierarquizagio colo- reto”. O uso, quer da lingua ronga, quer das realizagdes desviantes do portugues, eleva estas formas ao estatuto de lingua poética, com a projegio de toda a carga de prestigio que é inerente a esse estatuto, € aproxima a poesia dos estratos sociais “ind genas” ¢ suas vivencias ~ de resto, também presentes como personagens ¢ como te mas -, contribuindo para a produgio de um efeito de distanciamento em relagio portugalidade, ¢ de conseqiiente aproximagio & mogambicanidade. 193 SGRIPTA, Belo Ho Gilberto Matwsse Os clementos que aqui apresent: nos quanto ao fato de que uma literatura nascida numa encruzilhada de valores culturais ¢ civilizacionais, deve ser entendida na sua dimensio dialégica io dial6gica permite-nos também entender a forma como aqui convém recordar iterdria: a ficcionalidade. Com efeito, 0 texto li- , ndo sendo exaustivos, podem, no entanto, clucidai Accitar esta dimen: se processa a representagio da identidade nesta literatura. uma terdrio constréi um mundo ficticio ¢, paralelamente as estratégias de construgao do pecto bisico da representagio mundo, apresenta também elementos que, com maior ou menor grau de explicitude ede relevincia, traduzem a atitude perante esse mundo construido ¢ perante os me- canismos da sua construgio, ou seja, da propria arte literdria como fingimento, pode dizer-se que ela constrdi a imagem da sua propria relagio com a realidade, Do mes- mo modo que, por exemplo, a estratégia textual de notagdo de pormenores “supér- fluos” ¢ de descrigdes exaustivas na narrativa corresponde & necessidade de produgio do “efeito de real”, pelo qual se constréi a imagem da atitude realista de representa- o do mundo (CE. Barthes, 1982, p. 81-90), também € possivel descobrir nas obras de diversos autores o recurso a determinadas estratégias textuais, quer do ambito lin- giifstico-estilfstico, quer do ambito temitico e ainda do ambito ideol6gico, cuja fun- gio € construir um certo mundo ficticio de um modo capaz de também manifestar uma atitude de afirmagio de uma identidade literdria mogambicana. E tal como os referentes imediatos do texto literdrio so construgées ficticias, que s6 indiretamente estabelecem uma ligagio com 0 mundo empirico, também estas estratégias textuais nao contém em sia qualidade da mogambicanidade, Elas sio apenas signos que por associagio aos contextos do surgimento e da recepgio das obras acabam por funcio- nar metaforiea ¢, sobretudo, metonimicamente como representagdes dessa mogam- bicanidade. Sea presenca de modelos estrangeiros numa literatura corresponde A presenga de lagos de parentesco com as literaturas de onde esses modelos so provenientes, em (0 tratados pode corresponder a uma atitude que tende a romper com esses lagos. FE, de fato, esta atitude que esta presente noldidlogo certos contextos, a forma como s que se estabelece entre a poesia de Craveirinha ¢ os modelos da vanguarda européia. Assim, posso definir a representagio literdria da mogambicanidade como uma construgio da imagem de mogambicanidade, ou seja, uma pratica deliberada através da qual os autores mogambicanos, inscridos num sistema primariamente grado numa tradicdo literdria portuguesa em contexto de semiose colonial, movidos por um dese- jo de afirmar uma identidade propria, produzem estratégias textuais que represen tam uma atitude de ruptura com essa referéncia. Esta imagem consuma-se funda- mentalmente na forma como se processa a recepco, adaptacio, transformagao, pro- o de modelos ¢ influéncias literdrias. longamento e contestaga 194 SORT Belo Horizonte, Iya, p. 185-195, A REPRESENTAGKO L.TERARIA DA IDENTIDADE NA LITERATURA MOGAMBICANA: CRAVEIUNELA Glossario Héssi — Rei, senhor. Inguavana — Prost Mamana ~ Mae. Senhora. Titulo carinhoso para mulher de meia idade, Msaho ~ Verso de composigio musical executada pelos timbileiros chopes. Quissimusse — Natal. Prendas da quadra natalicia. O mesmo que “Boas Festas” Xicombelo — Pedir. Ato de implorar. ABSTRACT ince it emerges in a situation of “colonial semiosis”, Mozambican Hiterature written in Portuguese is relegated to a status of peripher cal cultural manifestation. This motivates the need of breaking ties with the European cultures which acts as a reference point in order to gain its own identity. Given that there is no literary tradition that could i pire Mozambicans for the assumption of their own literary identity, they in foreign models find the strategies for the construction of signs of na- tional id exogenous literary models are used (assimilated, transformed and sub- verted) by the poet José Craveirinha as representatives of Mozambican identity. ity. Our presentation elaborates on ways by means of which Referéncias bibliogrificas 01. BARTHES, Roland, Leffet de réel. In: BARTHES, Roland. Littérature et realité. Pa ris: Seuil, 1982. 02. CRAVEIRINHA, José. Xigubo. Lisboa: Ed. 70, 1980, 03. HEDGES, David \cdo missbes € a ideologia politica da assimilagao, 1930-60. Cadernos de Histéria, n. 1, Maputo, Jun. 1985. 04. LEITE, Ana Mafalda. A poética de José Craveirinha. Lisboa: Vega, 1991. 05. MIGNOLO, Walter. Canon and corpus: studies in colonial situations. Dedalus, n. 1, De 7 195 1n alternative view of comparative literary 1991. TA, Belo Horizonte, « I,m. 1p

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