ISBN 9786586306118
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DEDICAÇÃO
A Camila de Oliveira
Pela capa requintada
A Cris Lira, no estrangeiro
Pela ponte arquitetada
Entre a Camila querida
E essa turma, que aguerrida
Trilhou junto essa jornada.
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Gratidão também nós temos
A Tracy Silva, que fez
Um prefácio tão potente
Que trouxe com altivez
Com as palavras, o cuidado
Um texto iluminado
Obrigada, outra vez.
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Tracy da Silva
Leitora, historiadora, feminista, profunda
admiradora das artes literárias, visuais e
musicais. De vez em quando fala sobre
livros no Instagram.
@sodacaotica.
Prefácio
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A lembrança da mão que alimenta, o abraço que acalenta,
o ardor que ama, o lençol que cobre e o cheiro que remete à
infância e ao conforto, pode procurar nos recôncavos da sua
mente: vem de uma mulher mais velha.
A arquetípica mulher velha carrega em si a força da
experiência para construir e a doçura para amenizar o que na
vida é tão duro. É a esta mulher que corremos para curar as
febres inexplicáveis, as dores de um coração partido, buscar
inspiração para nossas jornadas, ideias para novas empreitadas
ou apenas para tomar um café gostoso, uma sopa saborosa, para
acalmar os ânimos. Existe no colo de uma anciã a centelha da
criação de tudo que há de seguro e belo no mundo.
Estas mulheres sábias carregam em si a profundidade de
suas raízes, o aroma de seus temperos, a arte de suas costuras,
as dores de suas viagens – às vezes voluntárias, às vezes à
força – a firmeza de suas certezas, que refletem em paredes
de casas, nos traços dos filhos, nas ruas de suas comunidades.
Em nós.
Mulheres que, no tempo de uma vida, fizeram tanto que
a velocidade da caneta não deu conta do registro. E este é o
propósito desta, que é uma obra feita à várias mãos: registrar
o que a História não deu conta, a História de nossos bairros,
famílias, a História de nossas antepassadas.
A universalidade destas histórias apela para o que há
de comum em cada mulher, seja ela jovem, maturando ou
idosa. O arquétipo da mulher velha reside no fundo de nossas
mentes e são nossas antepassadas, de sangue ou de convívio,
que o encarnam para que aos poucos, ao longo da vida, esta
mulher sábia e forte resida em nós. Estas mulheres são casa e
nos ensinam a ser casa também.
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Por vezes estamos tão obcecadas em esquadrinhar nossa
árvore genealógica, atrás da origem de nosso sangue, que
passamos despercebidas pelo que há de verdadeiramente
precioso em baixo dos nossos tetos. Aqui, neste livro, tivemos
a sorte de reunir um grupo de mulheres capazes de identificar
e eternizar esta preciosidade, de cultivar e regar estas flores
que brotaram em tantas adversidades e lutas num Brasil tão
jovem mas já tão tomado por tantas faltas.
Cada mulher aqui eternizada resguarda o que há de sábio,
belo, doce e forte em todas as mulheres que já riscaram seus
passos na Terra. A universalidade em cada particularidade
aqui resgatada nos lembra o que é comum a toda mulher que
envelhece: nossa capacidade de estar em constante renovação,
ser jovem enquanto velha e velha enquanto jovem, ser porto e
teto, aluna e professora, tudo ao mesmo tempo.
Fazer escolhas, se adaptar ao inusitado, somar, evoluir,
crescer. Estar atenta às mudanças e a conservar o que é
constante, estar presente mas com o olho no futuro, preparar
o café da manhã já sabendo o que tem pro almoço. Ou já lutar
pelo almoço. Porque o criar, manter, regar, a paciência para
observar, fluir, a inteligência para contestar, moldar requer
tempo. E o tempo é próprio da mulher que envelhece. Ele é
seu grande companheiro.
Me pergunto se cada uma destas mulheres retratadas
nesta coletânea chegou a entender o tamanho do seu impacto,
da sua grandeza e de seus poderes. De sua capacidade de
resiliência num tempo que o país nem sabia que era país. Se
puderam apreciar o resultado de suas dedicações, criações e
afetos. Se souberam que o cheiro dos seus cafés e temperos,
cada tijolo assentado, cada filho que pariram, cada neto que
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ninaram e cada amiga que socorreram são agora pedacinhos
plenos delas mesmas.
Se não souberam, que saibam agora.
Que o mundo saiba agora.
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Sumário
Adriana Oliveira
Beatriz, nutrindo a vida com o alimento do afeto ................19
Bernadete Silva
Dona Blandina, sábia mulher...................................................25
Beth Fernandes
Zezé..............................................................................................30
Dilma Barrozo
Raízes de Maria..........................................................................44
Edna Lima
Cuidado de vó............................................................................49
Idyane França
Os olhos serenos de Joana.........................................................72
Ilka Guedes
O cheiro da minha vó................................................................76
Janaína Nery
Lições ancestrais de Vó Lídia...................................................83
Jeovânia P.
A preta Baiana............................................................................89
Luíza Cavalcante
De Nbundo ao Ágatha ...........................................................102
Magda Santiago
Herdeira de uma jornada........................................................109
Maria Graciane
Maria, todo dia celebrada.......................................................116
Maria Ribeiro
Vovó Zefinha............................................................................124
12
Marília Gabriela Santos
Maria de Fátima, florescer e educação amorosa..................129
Marisa Albino
Eu e ela.......................................................................................135
Pollyana Ferreira
Curandeiras do mato...............................................................148
Rosângela Oliveira
Maria não foi Criança..............................................................155
Sheila Martins
Lembranças de cura.................................................................167
Vera Lúcia
Grandes mulheres e grandes amigas....................................179
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Ana Cristina Henrique Silva
Graduada em Letras Vernáculas e Bacharel em
Artes Cênicas Interpretação Teatral. Professora
do Ensino básico, na Rede Estadual de Ensino
- BA. Mestranda em Educação de Jovens e
Adultos, na MPEJA/ Uneb. Em 2020 arriscou
dar asas aos seus escritos, participando da sua
primeira publicação na coletânea de poesias e
contos: O livro das Marias II, pela editora Ixtlan,
com o conto “As meninas”, organizado por
Jeovânia P.
@anac.henriques
E-mail: ana.cristinahenrique@hotmail.com
Ad Dulce
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Adriana Oliveira
Feminista e Militante da Classe Trabalhadora
Educadora - Especialista em Educação Infantil
E-mail: drisoliveira6@gmail.com
Beatriz
Mulher, negra, de corpo franzino, de fisionomia e voz
delicada, de personalidade forte, hora raivosa, hora
alegre, de vida humilde.
Intensa na vontade de viver, sempre positiva, com os
pés no chão, de sabedoria extraordinária.
Driblou a morte ao reinventar a vida, amante da terra,
das plantas, das letras e das pessoas.
Beatriz inspirou muita gente com a sua forma de viver
do centro à periferia.
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sua força de mulher. Negra, intensa, guerreira, honesta,
com uma capacidade extraordinária em se reinventar, na
busca incessante de sobreviver à fome e maus tratos. As
linhas seguintes contam um pouco dessa mulher a partir da
lembrança de suas falas. Nesses relatos ela era tomada pelo
desejo de revisitar o lugar de onde saiu e nunca mais voltou.
Queria saber se a situação daquele lugar ainda era a mesma,
ou tinha mudado, se reconheceria o lugar caso voltasse lá.
Esboçou a vontade de reencontrar algumas pessoas, saber se
viviam por lá, se eram vivas.
Minha mãe nos momentos de convivência contava sua
história de vida, de quando era criança, de como era difícil
sobreviver em contextos tão miseráveis. Logo cedo perdeu
sua mãe e foi dada pelo pai aos padrinhos. Daí começou sua
trajetória de luta pela sobrevivência. Conta que a relação
estabelecida pela esposa do padrinho era sempre pautada
pela violência física e pelos maus tratos. Por vezes acordou
apanhando porque estava dormindo com os quadris pra
cima e não tinha roupas íntimas. Seus cabelos crespos, pouco
maleáveis eram porta de entrada para os maus tratos na hora
dos “cuidados”, levava puxões e pancadas com a escova de
madeira. A fome também esteve presente e acompanhou todos
esses rituais.
Moravam em um sítio, numa pequena casa de taipa, de
chão batido. O alimento era escasso, e os adultos, geralmente
mulheres, os guardavam em um cesto de palha preso na
madeira do telhado. Era a forma de assegurar que nenhum
bicho da mata adentrasse a residência para comer. Um outro
motivo possível, não explícito, talvez fosse essa forma de
controlar o consumo e não deixar o alimento tão acessível,
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correndo o risco de ser consumido pelas crianças de uma só
vez.
Beatriz contava que muitas vezes saciou a fome nas árvores
frutíferas em sítios da vizinhança, nessas ficava horas, lhes
servindo de abrigo e fonte de nutrição. Por vezes passava o
dia subindo em árvores para se esconder e comer. Embora ao
retornar para casa fosse punida com o castigo físico.
Nesse tempo os adultos tinham o hábito de sentar na frente
das casas ao escurecer, tomar café e conversar, as crianças
sentadas no chão ouviam essas conversas. Ela ouvia falar em
Recife como um lugar bom de se viver. Ainda menina disse
que ia fugir para esse lugar. E assim fez, chegou ao Recife aos
11 anos de idade, trabalhou como escrava doméstica muitas
vezes só pelo alimento e moradia.
Como chegou a Recife não sabemos, ela nos contou que
morou em casarões no centro da cidade, nos bairros da Ilha do
Leite e São José, trabalhando como empregada doméstica até a
vida adulta. Com muito esforço foi morar numa pensão na Rua
da Guia, e conseguiu abrir um pequeno comércio que vendia
almoço e bebidas aos estivadores, moradores das pensões e
marinheiros que chegavam nas embarcações. Lá conheceu meu
pai, ela já tinha uma filha e com ele teve dois filhos. E por isso
teria que mudar de moradia. Foi aí que conheceu a periferia
de Recife e veio morar no Morro da Conceição, onde nasci.
Para quem deixou de morar em casas de patroas e numa
pensão, vir para o Morro da Conceição foi escrever uma
nova página da vida. Passou a viver em sua casa com seu
companheiro e seus seis filhos. Com tantas crianças para
alimentar, trabalhou carregando água, tendo dias de carregar
35 latas d’água na cabeça subindo e descendo escadarias.
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Começava o trabalho às 04hs e ia até às 07hs e 30ms. Abastecia
casas da vizinhança com água do chafariz de dona Amélia.
Desse tempo, lembro dos cafés das manhãs em nossa humilde
casa, quando chegava do trabalho com o apurado, mandava
os filhos mais velhos pegar o saco de pano, conhecido como
mochila de pão e comprar pão e margarina bem-te-vi. Com a
chegada do abastecimento de água da COMPESA, precisou
mudar de trabalho e foi negociar com sapatos nas feiras livres
das cidades de Serinhaém e Camela.
Com o falecimento do meu pai, minha mãe buscou novas
formas de viver. Decidiu não mais se relacionar amorosamente,
não queria estar com outro homem. Dizia temer acontecer
alguma desgraça com um de seus quatro filhos homens. Outra
decisão importante foi se envolver nas lutas comunitárias
para melhorar as condições de vida na comunidade. Foi aí
que começou a participar das assembleias do Conselho de
Moradores e nas ações pela melhoria das políticas públicas.
Com sua vida marcada pela falta de moradia, algo que a
incomodava demais, passou a participar das organizações
comunitárias para lutar pelo direito à moradia.
Em minhas memórias afetivas lembro bem da minha mãe,
bastante entusiasmada com o projeto de reforma e melhoria
das casas em parceria com a Companhia de Habitação Popular
de Pernambuco – COHAB. Beatriz tinha um prazer imenso em
levar para as pessoas aquilo que era resultado de um anseio
e luta coletiva. Ela se ocupou na Comissão de Habitação
de realizar a entrega de materiais de construção, que iriam
melhorar as condições de moradia no Morro da Conceição.
Todo o caminhão que chegava ela seguia com o motorista
para as casas dos moradores levando aquela conquista. Eu,
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ainda adolescente, acompanhei esse processo, pois eu fazia
a leitura dos endereços, nesse tempo minha mãe ainda não
sabia ler e escrever. As duas descalças, era um hábito de
nossa família, inclusive éramos chamados por alguns amigos
de "família pé no chão”. Era nossa forma de estar no mundo,
sempre com os pés descalços. Levar material de construção
para cada família nos possibilitou um conhecimento maior de
nossa comunidade, tanto da perspectiva geográfica quanto da
compreensão do que é viver em comunidade.
Quando minha mãe se ocupava com as necessidades
coletivas me possibilitava, enquanto adolescente, o contato
com a luta de classe, assim começo minha militância. Com
ela me influenciando positivamente para participar de lutas
por melhores condições de vida. Assim, conheci a Juventude
Operária Católica, movimento social organizado por jovens, no
qual éramos motivados a exercer a autonomia e protagonismo
ao conduzir nossas vidas.
Minha mãe se queixava de não saber ler e escrever, isso
a deixava angustiada, por vezes escutei de sua boca que se
soubesse ler e escrever teria sido uma advogada. Eu cresci
ouvindo que filho de pobre para ser alguma coisa na vida
precisa estudar. Essas falas me trouxeram reflexões profundas
em diferentes momentos da vida, me levando a tomar decisões
importantes, uma delas foi seguir estudando. Com os filhos
já criados ela resolveu dar um ponto final a sua angústia,
foi estudar quando já tinha mais de 60 anos. Na conclusão
do curso de Educação de Jovens e Adultos - EJA no Colégio
Padre João Barbosa, foi homenageada por sua perseverança
e compromisso.
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Diante de tantas adversidades, com muita sabedoria Beatriz
alimentou e criou seis filhos com muito amor. Lembro com
carinho dos rituais de alimentação, sentávamos numa roda em
volta dela, com um único prato nas mãos, ela nos alimentava
com bolinhos de feijão com farinha e molho. Ela modelava
com as mãos, ficava ali por alguns segundos realizando os
movimentos, ao terminar fazia um furo no centro do bolinho com
o dedo indicador colocando o molho ou algum tipo de proteína,
quando tinha. Colocava um bolinho na boca de cada filho(a), eu
ficava observando o movimento dos dedos dela, aquele ato me
enchia de satisfação. Meu sentimento era de orgulho da minha
mãe, uma heroína, sempre há vi dessa forma. Lembro como se
fosse hoje a forma que o bolo de feijão ganhava. Costumo dizer
que minha mãe nos nutria de afeto ao nos alimentar. Nos dias
em que ela tinha poucos recursos, com toda sua amorosidade
preparava o alimento nos ensinando a fazê-lo render, para que
todos(a) pudessem comer. Me vem à memória a “Malassada”,
uns bolinhos feitos com ovos e farinha que ela adicionava na
sopa ou em carnes. O pirão de ovos também esteve presente na
culinária de sobrevivência. Um dia cheguei do colégio e minha
mãe me esperava para almoçar, nesse dia ela só tinha para me
oferecer banana verde cozinhada. Bananas que cultivamos no
quintal. Com muita graça ela me preparou o espírito para comer
aquele único alimento, tão esquisito.
Essas vivências foram determinantes para minha vida
pessoal e profissional e a forma como vejo o mundo. Meu
sentimento é de gratidão a essa mulher que, com todas as
dificuldades que enfrentou, tendo tão pouco estudo e recursos,
sempre foi um símbolo de força, garra, determinação e
sabedoria e fez o seu melhor para criar e educar seus filhos.
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Bernadete Silva
Nascida no bairro da Torre, Recife-PE
Graduada em Letras, pós-graduada em
Políticas de Promoção da Igualdade Racial na
Escola. Contadora de histórias.
@ bernasilva13
25
Sabia como ninguém preparar um sarapatel, um feijão
para o dia a dia, um doce de mamão, uma canjica. Sábias mãos
as suas. Plantavam rosas que enfeitavam seus jardins muito
bem cuidados. Pessoas especiais ganhavam rosas ou outra flor.
Tive a honra de receber um cacho de uma flor vermelha que
ela tinha muito ciúme. Também levei carreira porque cheirei
a rosa Amélia, mesmo sabendo que ela se despetalava. Havia
uma plantinha chamada dedo do cão. Dizem que o leite dessa
planta cegava. Ela o utilizava para colar seus bisquis quando
quebravam. Não lhe faltava o providencial pé de pimenta,
sempre pronto para espantar os olhos grandes. Das pimentinhas,
fazia um molho bastante apreciado que, de tão picante
provocava tosse, lágrimas, coriza. Era violento, mas ia bem
com o peixe que ela muito caprichava. Linda sua plantação de
amendoim, tomate, seu pé de dendê, o abacateiro, o mamoeiro, o
pé de carambola que nos rendeu deliciosos sucos. Ainda resiste
o laranjal, o pé de pitanga e o de acerola.
Doces recordações e a delícia de colher uma a uma para
um suco de sabor saudoso e saudável.
Suas sábias mãos tinham intimidade com a terra. Seu saber
era natural. Seus livros foram as vivências e necessidades
diárias. Assim foi transmitindo seus conhecimentos aos filhos
e filhas. Seus segredos de beleza não escondia.
Devia aos famosos leites de Rosa e de Colônia o vigor e
suavidade da pele do rosto. Da vaidade não fugia. Um bom
perfume, brincos, batom discreto e unhas pintadas. Quando
os fios grisalhos apontaram nos seus cabelos, não hesitou em
pintá-los, apesar de nunca deixar de citar a idade. Em outro
momento deixou que os cabelos brancos aparecessem, sem
deixar de se envaidecer. Viveu da forma que melhor lhe coube
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cada uma de suas fases. Ouvi muitas vezes: – Não queira
nada que não seja fruto do seu suor. Para que ensinamento
melhor? Seu marido é seu emprego. – dizia com veemência.
A segurança, a autonomia que aparentava não ter e teve já
nos ensinava a buscar. A independência que tanto buscava,
refletia em suas palavras. Era livre para falar. Emitia palavras
contundentes, abrigava no peito, por outro lado, um grande e
acolhedor coração. As mãos estavam sempre abertas a servir.
Acolhia os pequeninos. Tinha como certo colocar um pinto
para piar na boca daquelas crianças cujos pais se angustiavam
porque tardavam a tagarelar. Visitas a enfermos, repartir
o pão com o irmão, ouvir os que precisavam de ouvidos,
aprendemos com ela o que muitos aprendem na religião.
Também nos guiou pelos caminhos da igreja, embora não
fosse frequentadora assídua. Viveu o Santo Evangelho sem
ser presa a qualquer denominação, pois só ia à igreja em datas
específicas. Era devota de Nossa Senhora do Carmo e de Nossa
Senhora Aparecida, que carinhosamente chamava “minha
santa preta”. Tantos afilhados e filhos adotados. Órfãos, filhos
e filhas de mães ausentes buscavam o seu aconchego e nós não
nos importávamos em dividir seu amor. Não faltava a quem
quisesse e precisasse. Ela era de todos(as).
Sábia era dona Blandina, sem ter concluído o antigo
primário, sem ter entrado em uma universidade, sem ter tido
acesso a muitos livros e jornais. Mas era sua vida uma escola
e muito ensinamento espalhou por aí. Não passou pelas
academias de dança, mas, no carnaval, era ela a “madeira que
o cupim não rói”. Levantava os braços, entrava nos blocos,
esquecia os problemas e se divertia a valer. Não precisava
brincar os três dias. Buscava apenas se inebriar de alegria,
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porque também conhecia as amarguras e não desejava
mergulhar nelas sem cessar.
Era sábia dona Blandina porque se sabia imperfeita e nem
por isso deixava de viver. Aí beirava a perfeição que nenhum
humano possui.
Guardava com carinho velhos bilhetes e cartas de amor,
assim como lembranças de inesquecíveis amigas que o tempo
separou, mas não apagou da memória. Estavam não só naquela
caixinha querida, como no escondidinho do coração, melhor
lugar para guardar e proteger boas lembranças. Era letrada, sim.
Também escrevia suas bem traçadas linhas para sua comadre
que residia em São Paulo e outra amiga que foi morar longe. O
carteiro, que trazia as tão esperadas correspondências, também
se transformou em amigo. Dona Blandina era dada a novas
amizades. Sua espontaneidade atraía as pessoas. Suas piadas
bem contadas arrancavam gargalhadas dos tantos ouvintes. No
meio da conversa uma ou outra. Nada planejado. Era muito
engraçada. Essas boas lembranças também serviram de bálsamo
quando partiu para a morada eterna.
Sua voz afinada bem entoava canções de Dalva de Oliveira,
Anísio Silva, Núbia Lafayette que também passei a admirar e
gosto de cantarolar. Não acompanhava o cavaquinho de papai.
Preferia cantar a capela durante os afazeres diários. Um dia bateu
a ciumeira e cortou as cordas do inseparável cavaquinho de
papai. Virgem Santa! Foi um Deus nos acuda. Não me recordo
de papai tê-la provocado outras vezes. Dona Blandina também
era conhecida pela braveza! Quem quisesse que brincasse. Disso
todos sabiam. Mas não tinha jeito. Era muito amada.
Foi com seu trabalho de excelente lavadeira que ajudou papai
a nos alimentar e custear nossos estudos. Foi com seu dinheiro
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suado que me presenteou com a mais bela roupa. Nem seda, nem
cambraia. De um tecido simples que muito alegrou meu coração,
pois eu precisava fazer a difícil escolha entre o livro de Ciências
e a roupa para vestir durante as festas juninas. Optei pelo livro
e ela sensivelmente me brindou com um belo conjunto de saia e
blusa, vestimenta esta que dura para sempre na minha mente.
Honrou sua profissão e era a preferida entre tantas clientes. Um
dia, já trabalhando tive a alegria de poder lhe dar um pouco de
descanso. Ela já não precisava trabalhar. Em retribuição a tudo
que fez por mim, pude ajudá-la financeiramente para que pudesse
fazer outras coisas que lhe dessem prazer, mais lazer.
Nada de mãe coruja. Eu a ouvi muito dizer que seus filhos
eram pretos, pobres e feios, mas eram unidos. Defendia-nos
com muita garra, sem alimentar nossos erros. As briguinhas
de crianças foram desaparecendo, porque ela incentivava a
união e fazia de forma que um irmão ajudasse o outro. Ainda
hoje praticamos esse ensinamento.
Não dispensava a cerveja gelada e seu quintal era um
reduto de pessoas chegadas que apreciavam o tempero da sua
comida e sua conversa descontraída.
Às vezes dizia que não queria comemorar seu aniversário
e nem por isso o povo deixava de ir. Um chegava de mansinho,
depois outro, outros e a festa estava pronta.
Era comum encerrarmos o dia das mães e seu aniversário
com o frevo de bloco “Madeira que cupim não rói” e uma roda
de ciranda improvisada. Assim aconteceu quando completou
setenta anos para no ano seguinte ser colhida para o jardim
eterno. Hoje presente no pensamento, no coração, nos seus
ensinamentos, Dona Blandina vive eternamente em tudo que
plantou, especialmente na sabedoria partilhada.
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Beth Fernandes
Paulistana que adotou Brasília, jornalista, poeta
e produtora cultural. Faz parte do movimento
internacional Mulherio das Letras e publicou
De ponta-cabeça, livro de poesias.
Email: beth5050.bf@gmail.com
@beth.fernand05 |Facebook: beth.fernandes.75
Zezé
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Carla Gisele Batista
Vive em Recife. Historiadora com mestrado em
estudos sobre mulheres, gênero e feminismo
pela UFBA.
E-mail: carlagisele-batista@gmail.com
Ascendentes árabes
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Tinha uma costureira em São Paulo, para quem enviava
cortes de tecidos ganhados de presente ou comprados, as
medidas, e esta lhe fazia vestidos de modelos parecidos.
Mudavam as estampas, cores e detalhes. Um com bolso, outro
sem. Botões aqui, uma gola rendada ali. Era o que ela gostava.
O seu pequeno luxo.
Pintava os cabelos de preto, era vaidosa. Com a idade
adquiriu joanetes. Certa vez foi nos visitar em Brasília e
chegando em nossa casa tirou os sapatos incômodos. Na hora
de voltar para Formosa foi impossível calçá-los novamente,
o que lhe causou um acesso de riso que nos alegrou por um
bom tempo. Foi lindo.
Moía o quibe numa grande mesa de madeira, direto para
uma bacia, da qual o tirávamos cru, amassávamos no prato
derramando azeite, espremendo limão, para pegar com as
mãos e o pão. O melhor quibe de toda a minha vida. Nunca
experimentei nada parecido.
Levamos amigas para passar um final de semana, ou
era um feriado prolongado, em Formosa. Depois da festa da
noite resolvemos ver o sol nascer na serraria, um hábito da
juventude local. Havia uns troncos de madeira onde a gente se
sentava e ficava por ali, com uma vista ampla do amanhecer.
Quando voltamos para casa estavam todos acordados e
preocupados. Nessas horas sempre se pensa o pior. Muita
cobrança e explicações, tudo ficou esclarecido. Minha avó
então começou a falar alto e me repreender. Eu, adolescente,
querendo afirmar a minha liberdade, respondi. Demorei anos
para compreender que aquela era uma reação natural de quem
tem afeto, após período de tensão e medo, como deve ter sido
aquela madrugada para os mais velhos. Perdi a oportunidade
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de ficar calada, dar um abraço e uns beijos nela, “tô aqui vó,
tá tudo bem!”.
Dona Elmosa morreu há bastante tempo. Todos os dias
penso em como a minha vida seria melhor se ela ainda estivesse
viva e a vejo na minha frente dizendo "meus olhos, bem, meus
olhos!".
Saada Saad Simão, mais conhecida como tia Lili, era a
irmã mais velha da minha mãe. Casou-se com Nagib Simão,
com quem dizia ter sido muito feliz. Assistiam televisão de
mãos dadas e nunca ouvi uma conversa em tom elevado entre
eles; foram sempre amorosos um com o outro. Não tiveram
filhos/as.
Ela foi uma segunda mãe, às vezes primeira, para nós.
Quando entramos na juventude ela parecia uma amiga minha
e de minhas duas irmãs. Sempre companheira, animada e
alegre, se entrosava nas nossas conversas.
A casa deles era vizinha à de minha avó. Quando
mudamos pra Brasília e íamos passear em Formosa, nós três
nos hospedávamos em sua casa. Num carnaval, juntamos
dinheirinho de mesada para comprar um lança perfume e
arrumamos na bagagem, dentro de um pacote de absorventes.
Ao chegar, nos esperava um delicioso almoço. Tia Lili gostava
da mesa cheia de gente e era exímia na cozinha árabe. Sua
lasanha também era famosa. Nos fartamos, e, ao ir pro
quarto arrumar as nossas coisas, nos deparamos com o frágil
vidrinho de lança perfume partido. Decepcionadas, tentamos
aproveitar o que fora absorvido. Fechamos a porta e ficamos
cheirando os modess. Depois da farra gastronômica, fora do
clima a que se destinava, minha irmã mais nova começou a
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passar mal, vomitar e desmaiou. Tia Lili entrou no quarto,
"o quê está acontecendo aqui???”. Foi tenso!
Eu sempre tive uma atração atávica por pés de galinha.
Sabedora, tia Lili costumava esperar as minhas visitas pedindo
aos vizinhos que, ao matarem galinhas, os guardassem.
Quando eu chegava, tinha feito uma panelada de pés ao
molho pardo, ou cabidela, e eu ficava a tarde inteira chupando
ossinhos enquanto a gente conversava na cozinha. Um êxtase.
Certa vez ela me apresentou a filha de uma vizinha que
também se chamava Carla. Era uma garotinha que ficou amiga,
mesmo eu tendo quase o dobro da sua idade. Toda vez que
eu ia pra Formosa ela ia para a casa de tia Lili e ficava por lá
comigo. Íamos comprar picolés, jogar, assistir televisão... Tia
Lili uma vez pensou alto “não sei porque Carlinha gosta tanto
de Carla, ela é tão sem graça!” (kkkk).
Professora concursada no Distrito Federal e em Goiás,
minha tia Lili gostava muito de estudar. Foi diretora de escolas
e chegou a secretária de educação do município de Formosa.
Era severa, rigorosa, mas doce. Antes disso, no início da vida de
casada com tio Nagib, nos contavam que morou em garimpo.
Adorava ler e trocamos muitos livros. Ficávamos nos
sofás da sua sala deitadas, lendo por horas sem fim, às vezes
interrompidas por alguém que passava e a porta aberta
convidava a um dedo de prosa. Coisas de cidade pequena.
Emprestei pra ela a biografia da Silvia Plath que havia me
marcado profundamente. Ela dizia com a testa franzida “não
consigo entender porque ela se matou...”.
Tia Lili queria que todas as pessoas se casassem. Dizia que
era porque tinha sido muito feliz no seu casamento. Quando eu
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e certo rapaz resolvemos morar juntos, mobilizou uma viagem
de carro a Recife para conhecer meu companheiro.
Ela e tio Nagib adoravam viajar e o faziam de automóvel,
com barraca. Uma vez fui passar um carnaval com eles e um
casal de amigos na beira de um rio, pescando. A barraca era
de dois quartos e eu ficava no deles, bem apertada já que os
dois eram grandes e gordinhos. Não foi muito confortável e
jamais quis repetir a experiência de acampamento. Das rodadas
de baralho nunca nos cansamos. Era delicioso com café e pão
de queijo.
Eles tinham um sítio perto da cachoeira do Itiquira e era
muito bom ir pra lá. Lembro de estarmos à noite deitados em
volta da fogueira olhando as estrelas no céu e conversando.
Quando tio Nagib morreu ela se desfez do sítio. Foi quando
começou a ficar triste e às vezes amarga. Seu olhar perdeu o
brilho. Talvez o jardim da casa fosse o retrato desse desconsolo.
Não queria que ninguém palpitasse e iam crescendo rosas e
outras plantinhas sem nenhuma ordem, selvagemente. Dizia
que era assim mesmo que gostava.
Ela era minha madrinha, porém acho que minha irmã
mais nova era o seu xodó. Família é assim: sempre achamos
que gostam mais do outro/a irmão/ã que da gente. Quando
essa irmã foi à Turquia trouxe para tia Lili cds de músicas
árabes que ficávamos ouvindo na sala, sonhando com nossos
ancestrais em tendas atapetadas no meio do deserto. Mas tia
Lili gostava mesmo era do Richard Clayderman. Afe!
No cerrado, cajueiros e frutas são diferentes dos do
Nordeste. Raquíticos. As frutas parecem as daqui quando estão
começando a nascer e a castanha se sobressai avolumada. Na
paisagem ocre, as frutinhas se destacam em cores vivas. É fácil
41
ver as maduras. Fomos pro mato apanhá-las, com tia Lili e tio
Nagib. De repente demos por falta de tia Lili. Começamos a
chamar por ela e procurar, sem nos afastarmos muito uns dos
outros. Nada... Pareceram intermináveis as horas de angústia
até que, ao cair da tarde, chegou um rapaz montado a cavalo
para avisar que ela estava na fazenda de seu fulano de tal. Ao
se perder, caminhou até avistar esse abrigo. Fomos buscá-la,
aliviados.
A este susto, na minha cabeça de criança se somou uma
questão: "como aquele rapaz tinha nos encontrado no meio
do mato? Como tinha chegado até onde estávamos? Será que
tia Lili, ladina - palavra que ela adorava usar -, tinha alguma
noção do lugar para explicar a ele?”.
Essa dúvida se somou a outra acerca de meu tio Tufi, irmão
de Lili. Conto a estória: meu avô, Antonio Saad, tinha ido para
a fazenda e saiu a cavalo. Como não retornou do passeio,
o caseiro acionou a família. Foi tio Tufi quem o encontrou,
embaixo de uma árvore. Ele se sentiu cansado, ou se sentiu
mal, tirou o arreio do cavalo e se aconchegou ali, onde morreu.
Para uma criança, aquelas terras pareciam infinitas. Ficava
curiosa para saber como meu tio tinha chegado até o pai. E
sobre qual sentimento espantoso lhe veio ao encontrá-lo.
Sumaia. No fim da vida, minha avó Elmosa ficou internada
em um hospital de Brasília e minha mãe, a filha mais nova, foi
sua cuidadora. Voltou um dia para casa trazendo uma moça
que era enfermeira e também precisava de cuidados.
Meus pais alugavam quartos nos fundos para aumentar
a renda doméstica. A moça ficou acamada em um deles.
Lembro das duas conversando, rindo. Minha mãe a acolheu e a
animava à saúde. Nós acabávamos por ouvir as conversas dos
42
adultos atrás das portas. “Ela não vai mais poder ter filhos”,
diziam. Usava uma bolsa de colostomia. Só muito mais tarde
fui entender que fizera um aborto e fora acometida pelas
consequências da clandestinidade. Minha mãe cuidou dela
como de uma filha amada.Talvez esse fato, inconscientemente,
tenha também motivado a minha militância em defesa do
direito ao aborto, da maternidade voluntária.
De tia Lili, e do meu pai, acredito que aprendi o gosto pela
leitura. A necessidade de ler todos os dias. Não me lembro de
ver a minha mãe com um livro nas mãos. Posso estar enganada
nas minhas recordações. Sempre muito bonita e elegante, ela
era uma mulher com preocupações fúteis, aparentes. Roupas,
sapatos, salões de beleza, o que os outros vão pensar. Mas
dela, talvez tenha aprendido alguma rebeldia para, inclusive,
sair de seus domínios e me lançar a alguns voos pelo mundo.
De todas elas aprendi formas de amar e desamar.
43
Dilma Barrozo
Carioca de Campo Grande. Trago comigo a
resiliência do meu pai e a fé da minha mãe.
Católica por formação, espiritualista por
decisão, saboreio cada momento da vida como
uma grande bênção. Ser professora foi uma
decisão desde menina, ser poeta e escritora um
acontecimento revolucionário da maturidade.
Estudar e ler muito são os caminhos que
fizeram de mim essa mulher que escolheu usar
sua voz e sua palavra para cantar a esperança, a
liberdade e a vida.
@dilmabarrozodb
Raízes de Maria
46
desse cheiro festivo de ingênua alegria! Saudade desse recorte
de um tempo de sonhos.
Foi com força, garra, trabalho extenuante, uma doçura
inigualável que essa matriarca comandou a família! Foi com ela
que aprendi que atitudes ensinam mais que teorias. Com ela
descobri o prazer de cozinhar e, sempre que estou na cozinha,
revisito minhas origens: comida árabe, merchi de repolho,
berinjela e abobrinha, quibe, tahine, tabule...
Espio pela janela do tempo, abraço, beijo e respiro cada
palavra das histórias de que vou me lembrando. O olfato é
invasivo, traz o passado e com ele os sonhos que flutuam sobre
nós. Se já não há mais vovó, se já não há o casarão, que pelo
menos tenhamos à mesa a mesma comida, aquela que conta
a nossa história e me traz a minha vovó. Com ela converso
e continuo aprendendo, falando comigo mesma e para ela,
diante da memória afetiva.
Cozinhar é meu ato de amor. Recheio e enrolo cada folha
de repolho com cuidado, não esqueço de apertar ao final e
arrumar delicadamente na panela. Ouço sua voz e respiro
o cheiro do tempo que me invade a alma. Sou de novo a
sinhazinha da vovó, atenta às lições, enquanto aprende as
misturas e temperos, o ponto exato do cozimento.
Vejo a mesa enorme repleta de gente e comida, ouço as
risadas dos velhos e novos misturadas diante do alimento,
as panelas enormes gastas pelo uso, mas sempre brilhando.
A toalha e os panos de prato bem branquinhos, depois de
fervidos e quarados na grama, mas nada me encanta mais do
que os aromas. Ah, os aromas!! Do azeite, do arak, a cachacinha
árabe, da cebola dourada sobre a lentilha, do alho e do quibe
cru ou frito no fogareiro de carvão, da hortelã, das frutas do
47
quintal em grandes bacias de louça, dos doces à base de mel
e semolina...que pena que tudo passou tão depressa!
Olho tantas mulheres à mesa! Minhas tias, mulheres de
raízes sólidas, trabalhadoras, a um só tempo fortes e sensíveis,
arrojadas e sensatas, que lutaram por seus espaços e pelas
coisas em que acreditavam. Excelentes na sua lida, altivas e
resolutas na forma de encarar o mundo. Choro, grito, bronca
e muita reza diante da vida e da morte. Terços, ladainhas e
missas sempre! Não fugir da luta, não ter preguiça, manter a
palavra e a autoestima eram nossos mantras.
Tenho o maior respeito ao tempo cultivado com tanto zelo
pelos meus ancestrais, sou fiel a sua história e devoto a eles
todo o meu amor. Creio que, quando aprendemos com eles,
é como se estivéssemos lhes dando um sopro de vida, que
valoriza e justifica as suas vidas e também as nossas. É a forma
que temos de mantê-los vivos. Salve a sabedoria da minha
avó que fez de mim a mulher que sou: ávida por aprender
e flanar em voos literários à procura de novas histórias, mas
com os pés bem plantados na cozinha, ao modo de D. Maria.
Alguém que ama as histórias, os aromas e sabores de que a
vida é construída.
É nessa memória que moram minhas raízes.
48
Edna Lima
Nasceu e vive no Recife. Pedagoga, futura
Psicopedagoga, apaixonada pela educação
infantil e boleira nas horas vagas.
@ednalima9910
E-mail: eddnalimasantod@gmail.com
Cuidado de vó
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Érica Montenegro de Mélo
Paraibana radicada no Recife.Cordelista.
Contadora de histórias, mediadora de leitura
em biblioteca. Autora de livros para a infância.
Especialista em literatura infantojuvenil.
Professora. Pesquisadora de biblioteca escolar.
@encantodoconto
E-mail: encantodoconto@hotmail.com
As avós de minh’alma
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As sete mulheres sábias chegaram antes de mim e reúnem
muito do que eu ainda não sei e tudo do que eu quero saber
e ser. Sete avós, sete forças e sete histórias. Algumas sequer
se conheceram, mas em minh’alma habita um pouco de cada
uma das sete avós, velhas sábias com quem cruzei nesta vida.
Eu poderia escrever mil histórias vividas com cada uma delas,
mas vou lhes contar como elas vieram fazer morada em meu
coração.
57
Lurdes: a costureira de meus sonhos.
No bairro vizinho, a costureira tinha quatro filhas, mas
não hesitou em adotar minha mãe, jovem colega de escola de
uma das filhas, que precisava estudar com um pouco mais de
sossego. Mamãe saiu da casa de uma tia que cuidava de uma
casa de seminaristas, onde trabalhava os afazeres domésticos
para virar bordadeira de enxovais. Que luxo poder trabalhar
entre amigas e dormir na cama quentinha com lençol de
elástico, costurado no capricho. Lurdes era a delicadeza em
pessoa e foi a avó mais carinhosa que eu tive, porque não tinha
medo de dizer o que queria, mas bebia garapa antes disso, eu
tenho certeza. Ela e o marido, alfaiate, eram requisitadíssimos,
mas sempre que a gente chegava, ela abria as portas para ficar
só com a gente, os netos do coração. Lembro que ela me ouvia
por horas! Eu lhe contava sobre meus sonhos, as coisas que eu
queria ser, mais tarde, ela me ouvia contar sobre as peripécias
dos meus alunos. Primeiro as medidas dos vestidos e depois
a tapioca com Nescafé na cozinha impecavelmente limpa.
Quando ela se encantou, algo se descosturou em mim e eu
nunca mais tive amor de vó como o dela.
62
Que na minha história estão
Que construíram memórias
Tão cheias de gratidão
Que a minha descendência
Honre sempre essa menção.
63
Fátima Soares
Nasci e vivo em Recife. Leio e escrevo desde
a infância, publiquei meu primeiro livro
em 2010. Professora, psicopedagoga, e arte-
educadora, trabalhei em escolas públicas
de 1978 a 2017. Aposentada criei o LIVRO
ABERTO Sebo Itinerante e encontrei o
Mulherio das Letras. Quero provocar leituras
e estou estreando como organizadora de livros
coletivos pela Editora IPANEC.
Email.: fatimarsoares@hotmail.com
71
Idyane França
Artista, poeta, jornalista, ativista do movimento
negro. Ganhadora do XXII Prêmio Estadual
de Direitos Humanos Emmanuel Bezerra dos
Santos, pela Câmara Municipal de Natal/RN,
juntamente com a Mídia Ninja.
@idyfranca
E-mail: idyaneassessoria@gmail.com
1
Expressão popular usada no Nordeste do Brasil para a moça quando não
casa. O mesmo que “ficar na prateleira” ou “ficar pra titia”.
73
A partir de agora descreverei Joana através da memória
afetiva de uma criança preta, de periferia, que observava o
mundo a sua volta e conseguia extrair as pequenas sutilezas.
Vó Preta trazia consigo sempre o seu cachimbo, um pano
pendurado sobre a blusa e um par de olhos serenos. Seus
cabelos curtos e ralos, sobre a pele preta que carregava
toda uma ancestralidade e sabedoria. Um nariz comprido,
imponente e uma boca bem delineada. Ainda pequena, lembro
que estava muito doente, com catapora, e foi através de seus
cuidados com banhos de ervas, chás, que me vi curada. Minha
mãe não podia dedicar-se aos cuidados, devido ao trabalho.
Mas eu não fui a única a receber os cuidados de Joana, além
de dar assistência aos bisnetos, ela criou três netos como filhos.
Entre privações, na condição de viúva há alguns anos, no bairro
Bom Pastor, na zona oeste de Natal.
Certa vez, eu me encontrava em estado de impaciência, e
ela proferiu as seguintes palavras – Diane, sossega! O plantio
das coisas se dá pelo tempo – confesso que naquele momento
não compreendi nada do que ela queria dizer. Me faltava a
maturidade, que ela já tinha conseguido em meio de tantas
lutas. Entender o tempo das coisas é perceber que a vida
também se constrói como um roçado. Precisamos preparar a
terra para plantar, aguar para germinar, esperar nascer, crescer
e, no tempo certo, colher.
E é isso que nossas velhas sábias fazem, elas preparam
o chão que pisamos, germinam em nós as sementes de seus
saberes, para que possamos colher no tempo certo. Para que
possamos também ser terra fértil. Frutificarmos em nossas
vivências e semear novas sementes. Pois a vida torna-se bela
quando conseguimos enxergar o outro, quando conseguimos
74
construir coletivamente. Quando o amor ensina mais do que
a dor. Eu aprendi através dos olhos serenos de Joana o que é
ser “nós” além do “eu”.
Eu também sou Joana, todas as vezes que me coloco
na vida como mulher, preta, nordestina, que contrapõe a
violência dos dias cultivando o afeto para os seus, para as
suas, que também carregam dores diárias. Que sobrevivem a
um sistema que desumaniza. Que historicamente os colocou
às margens sociais. Sou Joana a criar partículas de paraíso
dentro do caos. Sou Joana quando empaticamente acolho e
oferto meus cuidados.
No dia 26 de julho de 2020, data que se comemora o Dia
dos Avós, ela se encantou, aos 93 anos, deixando um legado de
humanidade, de amor e de afeto. Jamais esquecerei dos olhos
serenos que tanto me ensinaram. Da mulher que mostrou que
é possível construir o mundo através da generosidade, que é
possível ser gentil numa
terra de feras. Mas que
nunca fujamos da luta.
Assim foi, e é minha
Vó Preta. A Maria que
se chama Joana, e que
até hoje não sabemos o
porquê.
Joana
75
Ilka Guedes
Sou mulher negra, feminista, mãe, educadora
social e moradora do Morro da Conceição
desde que nasci.
E-mail: ilkags@gmail.com
O cheiro da minha vó
76
Terezinha Josefa dos Santos nasceu em 09 de maio de
1935 em Recife-PE, perdeu a mãe ainda criança e morou com
seu pai e três irmãs, Isabel, Luísa e Ana Maria no Morro da
Conceição, comunidade onde estamos até hoje. Seu pai se
casou novamente tendo mais cinco filhos. Viveu com o pai
ajudando a criar suas irmãs. Parte da família ainda vive na
mesma rua, que leva o nome de seu pai, meu bisavô, Belarmino
Henrique.
A casa era grande, mas sem luz elétrica. Se manteve dessa
forma por muitos anos por falta de condições para reformá-la.
Durante o inverno a chuva derretia o barro e abria buracos nas
paredes. Só foi construída de alvenaria na década de 90 com a
ajuda de um programa da prefeitura. Mesmo simples, a casa era
muito limpa, com paninhos branquinhos cobrindo os móveis
e as panelas brilhando. Lembro que no sábado ela ariava as
panelas e deixava secando ao sol parecendo um espelho.
Seu pai era da Marinha e era esse emprego que garantia
uma boa parte do sustento da família. Nunca tive conhecimento
de como ele conseguiu ingressar na marinha. A História
conta que na época do império não havia pessoas suficientes
para ingressar nas forças armadas voluntariamente e para
aumentar o contingente eram feitos decretos que estabeleciam
quantos homens cada província deveria ceder. De forma
autoritária e violenta muitos homens negros eram recrutados
ao serviço militar para limpar, cozinhar e fazer a manutenção
das embarcações, tarefas que os oficiais brancos de famílias
abastadas não realizam. Ao negro era vedada a possibilidade
de ser oficial, existia estabilidade no emprego, mas a realidade
não era diferente da que a população negra vivia. A pobreza
era presente porque o salário era baixo e a família numerosa.
77
Meu bisavô passava dias no mar, quando voltava pra casa
se fazia grandes rodas de Coco no terreiro para celebrar sua
chegada. Essas festas até hoje são faladas pelos mais velhos
como momentos de diversão familiar.
Minha Vó tinha conhecimentos de plantas medicinais,
era rezadeira por vocação. Nunca soube como aprendeu, mas
dizia que ia me passar o conhecimento. Infelizmente, faleceu
sem me ensinar sobre o segredo das rezadeiras e hoje é difícil
encontrar uma nas comunidades. Tinha o dom de espantar
mau olhado, peito aberto e espinhela caída de criança, homem
e mulher. Colônia, Pião Roxo e Erva Cidreira eram ervas que
costumava receitar para quem lhe procurava com alguma
queixa. Sentia prazer em cuidar das feridas e tirar os dentes
de leite das crianças.
Rezadeira, lavadeira e passadeira. Fazia isso com excelência,
lavando roupa de ganho sustentou sua família, como muitas
mulheres negras. A herança escravocrata brasileira negou ao
povo negro o direito de viver com dignidade mesmo depois
da abolição. Não deu oportunidade para nossas velhas sábias
mostrarem outras habilidades diferentes das que as mulheres
negras já desenvolviam nas casas grandes. Um lugar reservado
para nós que muitas conseguiram transgredir.
Teve sete filhos, cinco homens e duas mulheres, entre eles
um casal de gêmeos. 10 netas, 5 netos, 6 bisnetos e 7 bisnetas.
Nunca casou, criou seus filhos sem a presença do pai, contando
com a ajuda do seu pai e de suas irmãs. Criava pequenos
animais para ajudar na manutenção da família. Galinha e porco.
Mas tinha uma porca de estimação que dava banho e dormia
dentro de casa como se fosse o cachorro da família.
78
A memória afetiva da infância com Minha Vó me leva a
vários cheiros e tempos salteados, que não seguem a ordem
cronológica. Além da arruda tem o cheiro de café que ela fazia
no final da tarde, o perfume da Avon que ela gostava de usar
e cheiro de mungunzá. Esse último me leva à festa do Morro
que passávamos o ano esperando. Ela fazia um mungunzá para
receber seus sobrinhos que iam visitá-la. Mesmo frequentando
o Candomblé, era devota de N. S. da Conceição, tinha uma de
Santa Bárbara em um quadro na sala, Iansã no Candomblé,
era seu orixá.
Juntando as lembranças, ouvi algumas vezes que ela
não era carinhosa, não demonstrava afeto com seus filhos.
Afirmação que sempre me incomodou, pois não me lembro
uma única vez que tenha me batido e sempre intervia quando
meu pai brigava comigo. Mas ao escrever sua história encontrei
uma contra narrativa para essa alegação, que sempre me
soou injusta, porque afeto nunca me faltou enquanto neta.
Compreendi que sua forma de demonstrar afeto era diferente.
Pois sua vida foi muito dura e garantir o sustento de seus sete
filhos não era tarefa fácil. Como dar conta de sustentá-los
sem emprego fixo, sem um companheiro que assumisse sua
responsabilidade de pai, em uma família empobrecida e ainda
assim demonstrar afeto a partir da visão colonizada, que só
vê afeto em beijos e abraços físicos?
Tinha melhor jeito de demonstrar afeto e preocupação
com os filhos do que garantir a alimentação, mesmo precária,
numa época que sobreviver era difícil e a pobreza não saia de
sua porta? Seria demonstração de afeto dar banho nos seus
filhos, mesmo quando eles já tinham idade suficiente para fazer
isso? Para ela o banho só era bem tomado quando pegava um
79
pedaço de tecido grosso com sabão neutro e lavava os meninos
dos pés à cabeça pra garantir que todas as partes estavam bem
limpas. Ou mesmo quando preocupada com seu filho mais
velho na escola, deixava seus afazeres e ia até lá amamentá-
lo na hora do recreio com medo que ele sentisse fome. Havia
afeto na paciência de quem depois de amamentar seis filhos,
amamentou o seu caçula até os sete anos e sua neta, que aqui
vos fala, até os três anos de idade ao mesmo tempo. Era outra
forma de demonstrar afeto que se justifica em uma frase que
digo de vez em quando. Amor não enche barriga!
Contar a história da minha velha sábia é revelar a ferida
da desigualdade vivida por meus ancestrais, e compreender
o lugar que ocupamos hoje. Não apenas o lugar território,
que tanto revela sobre nós, mas o lugar social e político das
mulheres negras. Saber a verdadeira história desse país, que
não está nos livros didáticos, não é aprendida na escola, me fez
compreender que a minha velha sábia foi uma mulher de luta
e merece um lugar na história. É neste lugar que a coloco agora
com este texto. Ela não precisava ter feito algo extraordinário.
Ou fez, garantir sua sobrevivência e dos seus num contexto
adverso de desigualdade e racismo.
O apagamento da história do nosso povo, tirou o nosso
direito à memória, até hoje são várias narrativas sobre como a
nossa família chegou aqui. Sei pouco, são informações soltas,
desencontradas, não contei com documentos para confirmar as
histórias ouvidas. Falo a partir do que ouvi e vivenciei próximo
a Minha Vó. Juntei os pedaços de cada história contada. Para
escrever esse texto senti necessidade de ouvir mais, de buscar
documentos e fontes que considerava seguras. De documentos,
pude contar apenas com a certidão de nascimento e de óbito.
80
Não consegui uma foto da minha avó criança, da família
reunida, das rodas de Cocos. Contei com as falas das poucas
familiares idosas, que ainda estão vivas e de quem já ouviu.
E isso me fez perceber a importância da história oral para o
povo negro.
Após a abolição da escravatura a população negra não
tinha acesso a instrumentos que permitissem registrar suas
histórias. Não tinha máquinas fotográficas e em sua maioria
era analfabeta. Daí só podemos contar com as histórias orais,
mas muita coisa se perde. Não ter essas informações da minha
avó, da minha família paterna me doeu, me dói e mais que
isso, me causa revolta!
Sempre vivemos próximas, pois meu pai construiu uma
pequena casinha de madeira nos fundos do quintal onde ela
morava. E fisicamente nos parecemos muito. Toda a minha
infância e adolescência ela esteve presente. Infelizmente,
a velhice lhe presenteou com alguns problemas de saúde.
Glaucoma que a fez perder a visão, um problema no joelho
que a deixou sem andar, e hipertensão que deixou de herança
para mim e meu pai. Nos últimos anos de sua vida saiu da casa
que sempre morou para viver com uma das filhas em outros
lugares. Nessa época nos afastamos um pouco. A última vez
que a vi foi no hospital. Queria ter sentido aquele cheiro de
arruda, mas me lembro do cheiro de éter. Ela estava com um
hematoma que tomava todo o quadril e parte da coxa depois
de uma queda no banheiro na qual quebrou o fêmur e não foi
levada pro hospital imediatamente. Estava lúcida e chegamos
a conversar brevemente. Ela falava da dor que estava sentindo
e mesmo assim perguntou por seu meu filho, seu bisneto. A
81
lesão evoluiu para uma infecção e ela veio a falecer em maio
de 2016, poucos dias antes do seu aniversário de 81 anos.
Mesmo com todo o sistema agindo contra nós e renovando
suas práticas de extermínio ao longo dos anos, soubemos e
sabemos resistir. E reconheço que Dona Pequinha passou sua
vida resistindo, inclusive para que eu esteja aqui.
82
Janaína Nery
Professora, escritora, poeta, ativista do
movimento negro, movimento de mulheres
negras e de educadorxs antirracistas.
E-mail: jananery28@yahoo.com.br
87
D. Elydia, a frente de sua casa, durante uma
comemoração sua de aniversário
88
Jeovânia P.
Poeta, escritora, estudante e professora
A preta Baiana
93
Leila Santos
Filha amada e criada para ser
autêntica, honesta e forte. Mãe disposta
a se reconstruir para ser e fazer o
melhor por Ayla, sua filha, seu luar.
Muitas águas em um único rio!
E-mail: angelusnegros@gmail.com
Leina Gouveia
Aeromoça. Mãe dedicada de duas
(Niara e Lis). A força da mulher negra
com raízes periféricas e que tem como
maior riqueza o invisível desta vida.
E-mail: comissarialeina@hotmail.com
100
Optando por ligações partidárias que adotam a política do
“pão e circo” a movimentação da comunidade enfraqueceu.
Vários projetos e atividades deixaram de funcionar, demandas
coletivas e de temporalidade maior deram lugar a festejos de
datas. E hoje não existe uma mobilização forte na comunidade.
Apesar da conjuntura político-social desmotivadora, Penha
d’Uchôa resiste. Erguendo sempre sua voz em defesa da Mata
Uchôa e na Articulação Recife de Luta que defende e cobra a
efetivação da lei do PREZEIS. Não há como melhorar o país, sem
melhorar o Estado, sem melhorar a cidade. E pra começar tudo isso é
preciso investir nas pessoas. Pergunte quem é Penha: ela continua
lá. Mas não esqueça...
É Penha d’Uchôa!! Há o legado...
101
Luíza Cavalcante
Vivo no Sítio Ágatha em Tracunhaém
PE. Sou agricultora e militante
de movimentos sociais feminista,
anteracissita e agroecológico. Mãe e
avó. Estou estreando como escritora.
@luizacavalcante62
De Nbundo ao Ágatha
107
Esta foto representa a ancestralidade do Sítio Ágatha- SANKOFA =
Passado, Presente, Futuro. Sankofa é um provérbio do Povo Adinkra
que diz: O futuro é o passado, o passado é futuro. O presente precisa
olhar para trás e formar o futuro
108
Magda Santiago
Educadora popular e ativista cultural,
moradora da comunidade de Passarinho e
tem grande atuação na agricultura urbana.É
terapeuta holística, reikiana no sistema Usui
de cura natural, realiza massagem intuitiva
e atua como condutora e guardiã de circulos
femininos.
@magda_2017_flor
E-mail: reikiana2015@gmail.com
Sou eu ser mulher. Sou Livre, pois fui prisão. Feliz, pois
fui tristeza. Sou luz, pois fui trevas. Multidão, pois fui só. Sou
crença, pois fui nada. Sou minha, pois fui de muitos...Sou eu
ser, negra, mulher. Que venço o medo. Liberto as palavras. E
ainda tento entender tua alma!
109
Sou Magda, a décima segunda filha de Maria José da
Silva. Assim me falaram, ela é Maria em homenagem a Nossa
Senhora e José em homenagem ao pai de Jesus.
Dona Zezé, como é conhecida minha mãe. Sempre foi uma
mulher forte, alegre, vaidosa, que vivenciou muitas dores
e venceu algumas lutas. O que conheço de sua história foi
através das conversas com as pessoas mais velhas da família.
Alguns fatos aqui narrados ela asseverou, mas de fato pouco
contou. Recentemente fomos visitar nossas tias adotivas Lia
e Ivonete, que a muitos não as víamos, elas contaram-nos
que sua irmã, minha avó Lídia Quirino da Silva tinha uma
amiga, que trabalhavam juntas costurando e lavando para o
exército. Ester Borges, a amiga da minha avó, soube através
de sua irmã Leonor, da adoção de uma menina, minha mãe,
nascida em 11 de setembro de 1934, no interior de PE. Vó Lídia
conversou com seu irmão Francisco Quirino que concordou
com a vinda da menina para morar com eles no Bairro de
Água Fria.
Aos 13 anos minha mãe casou com meu pai, João Santiago
da Silva, com quem vive até os dias atuais. E sempre nos
tempos de homenagem a Nossa Senhora iam visitar tia Ester no
Morro da Conceição, em Casa Amarela. E por conta da situação
de saúde de tia Ester vieram morar na casa dela, em frente à
Escola de Samba Galeria do Ritmo. No Morro participaram na
organização da comunidade, com muitas ações culturais. No
Morro se criou quase toda nossa família. Hoje por questões
sociais e de ordem familiar muitos da família não residem mais
no Morro. Mãe teve 18 filhos, todos registrados com nomes
iniciados pelas as letras “M” e “J”.
110
Tem entre nós Maria de Fátima, Maria Cecília, Maria
Auxiliadora, Marluce, Mauricio, Manoel, que já faleceram.
Marlene, Mauricéa, Maristela, Márcia, Margarida, Magda,
Marta e ainda José Dionísio, Marcos Antônio, Marcelo, João
Santiago, Marcio.
A vida de minha mãe é um exemplo de fé. Vivendo sempre
alegre em torno da família. Lembro que na infância em nossa
casa sempre tínhamos muitas plantas, ela cozinhando as
comidas de todos os ciclos festivos, nossa casa sempre decorada
com o tema da época. Sempre tinha um bom suco pra quem
comesse todo seu alimento. E todas as noites, religiosamente
às 18 horas, ao bater do sino da igreja no Morro, nos reuníamos
junto ao rádio, na sala para rezar Rosário em Família. Certa
vez pronunciei a Salve Rainha de forma incorreta, todos
começaram a rir, fiquei de castigo, recebi uma reclamação.
111
Durante os encontros para organização deste livro fui
informada que o “Rosário em Família” foi uma estratégia
da Igreja em apoio ao governo militar para desmobilizar as
reuniões de organizações populares. Minha mãe, como tantas
outras mulheres, conseguia transformar estes momentos para
orientar os filhos nos bons costumes e acalmar a família depois
de um dia de atividades. Depois da reza os mais novos íamos
para o quarto e ela ficava na sala costurando, conversando
com meu pai e os adultos esperando para ouvir radionovela
e a meia noite o programa de contos de terror “Mistério do
Além”. Lembro também que na adolescência, na época da
fome, ela cozinhava uma deliciosa sopa feita com pele de
sobras da limpeza da carne de picanha, comprada com muito
esforço por minha avó Lídia, que sempre saía cedo e chegava
no fim da tarde com alguma comida a única do dia. Hoje
com seus 86 anos continua rezando o terço, preservando seu
encontro com MARIA mãe de Jesus, o momento de alimentar
sua fé e consagrar sua devoção para pedir a proteção divina
para tantos...
E eu, nascida em casa em julho de 1969, um dia de
domingo no bairro de Água Fria. Minha mãe me contou
que chovia bastante e tinha feito muitas comidas de milho,
era o mês de Sant’Ana a avó de Jesus. Meu pai não estava
em casa, um tio saiu pra buscar a parteira em Caixa D’água.
Sou de descendência Africana por parte de mãe, indígena e
portuguesa por parte de pai, tenho uma caminhada regada
por vivências com afetos e aromas. Cresci no bairro de Casa
Amarela, onde sou ligada a mobilizações sociais por busca
de melhoria e efetivação de políticas públicas. No Morro da
Conceição minha juventude foi marcada pela participação
112
na luta por melhores condições de vida para a comunidade.
Ainda jovem fiz parte do Conselho de Moradores, atuando
em várias comissões. Participei na comissão de habitação,
organização esta que favoreceu a conquista de 350 lotes para
moradores do bairro, dando surgimento a Vila Nossa Senhora
da Conceição no bairro de Passarinho. Fui contemplada
com um lote, realizando o sonho da casa própria, onde fixei
moradia. Participo ativamente da construção e organização
social da Vila Nossa Senhora da Conceição, onde moro.
Tenho uma filha, chamada Rita de Cássia e sou avó de um
adolescente, Zeus Santiago. Outras irmãs e irmãos também
têm forte engajamento na luta comunitária, e eu como minha
mãe, também busco envolver a minha filha e meu neto em
ações e de organizações sociais.
113
Sobre a vida, tive conquistas e decepções que marcaram
minha caminhada de militante e mulher negra. Minha casa não
tem um grande espaço, mas é um local de afirmação feminina
e preservação do meio ambiente, um espaço de organização
política e lazer. Nele cultivo as habilidades herdadas da
família, cultivo muda de plantas medicinais, ornamentais e
hortaliças, sempre busco conhecimento para fazer a vida, mais
harmoniosa. Tenho como proposta organizar e contribuir com
movimentos por melhores condições de vida, ora criando, ora
desenvolvendo atividades em várias comunidades. A cada dia
está mais claro que só através do afeto e da coletividade será
possível viver melhor. E Para a construção de uma sociedade
com dignidade é preciso entender que sem organização
comunitária e trabalho coletivo não avançaremos.
114
De minha mãe Dona Zezé herdei a força de nunca perder
a alegria. A coragem para mudar, tanto de espaço físico como
o relacionamento com os homens.
Certa vez em desabafo, na cozinha ela falou para nós, suas
filhas, em alto e bom som. _Vocês não precisam sofrer com
homem, trabalhem, estudem. Essas palavras me deram força
para cuidar da vida. Então é no plantio dos grãos, no usar das
ervas, no regar a flor que sigo minha jornada. Fortalecendo as
redes e mantendo as relações mais saudáveis para acalmar o
coração e alegrar a alma.
115
Maria Graciane
Sétima dos oito filhos de Djalma e Maria
Adelayde. Sobretudo, mãe, esposa, avó e
Professora apaixonada.
E-mail: gracianecmelo19@gmail.com
Aos sete ou oito anos Maria vem com a família para Recife.
Naquele tempo, os pais não conversavam com os filhos sobre
suas decisões, por isso Maria não sabe por que essa saída da
tranquilidade do campo, para os gargalos da cidade grande.
A vida foi ficando mais difícil! Morou, a princípio, em
um lugar chamado Azulão, depois no bairro de Cavaleiro e
pouco tempo depois no bairro do Pacheco, os dois últimos sob
a jurisdição de Jaboatão dos Guararapes. Pacheco foi o lugar
de moradia até sua saída de casa, já na vida adulta.
Nessa última casa, agora já com oito irmãos, a menina
(filha mais velha), assumia cada vez mais a tarefa de cuidadora
de todos. Maria era a responsável pelo cuidado com a
118
organização do lar e dos irmãos. Mesmo com esse cenário, ela
estudou até o 4º ano primário na Escola Alberto Torres, que
era, na época, escola agrícola. Esse pouco estudo lhe rendera o
gosto pela escrita, sobretudo dos registros de acontecimentos
diários em seu caderninho, hábito que ela cultiva até os dias
de hoje. Além disso, era ela quem lia a Bíblia para seu pai,
Católico fervoroso, que não faltava à missa dominical, porém
era analfabeto e cego de um olho. (Por influência dos seus pais,
Maria tornou-se também uma Católica fervorosa, devota de
Nossa Senhora e da reza do Terço, mais tarde entrando para o
grupo “Filhas de Maria” e Apostolado da Oração na Paróquia
de Nossa Senhora do Rosário, em Tejipió). Dentre os afazeres
domésticos, Maria lembra com um misto de sentimentos, suas
idas à cacimba de “Seus” Prazeres, de onde trazia a lata d’água
na cabeça. Água fria e doce para encher a jarra e cobrir com
um paninho branquinho, a fim de matar a sede da família.
Quando os irmãos homens foram crescendo, essa tarefa lhes
foi conferida.
Maria era muito inteligente e observadora. No seu íntimo
nutria a vontade de se libertar daquela vida de ocupações.
Entre doze e quinze anos aprendeu a costurar calça de
homem. José Bibiano, vendo o esforço da filha, mesmo com
o dinheirinho curto, lhe presenteou com uma máquina de
costura. Maria, vendo o sacrifício do pai, fez questão de pagar
as prestações da máquina com seu trabalho. Ela trabalhava
para duas alfaiatarias. Começou a ganhar seu dinheirinho que
lhe proporcionou comprar suas roupas. Comprou seu primeiro
relógio! Comprou trancelim e brincos... Ah, e também um anel
de ouro 18 na Joalharia Aliada. Isso já demonstrara o quanto
ela havia herdado um pouco da vaidade da sua mãe Adelayde,
119
mas que a vida de tantos afazeres havia abafado.
Entre 20 e 21 anos o amor bateu forte no coração de Maria.
Um homem alto, com roupas de linho branco, conquistou seu
coração. Mas seu amor, Djalma, conhecido como Jaime, não
era do agrado do seu pai José Bibiano. Jaime era divorciado...
Maria então resolveu enfrentar tudo para viver seu romance.
Saiu de casa, num ato de muita coragem. Após alguns anos
voltou a morar no mesmo bairro, em frete a casa dos seus
pais. Isso causou a reaproximação entre eles, já que a relação
estava estremecida. Até bem pouco tempo, Maria não gostava
de contar esse acontecimento da sua vida. Segundo ela, seria
um mau exemplo para suas filhas e netas. Qual nada... A cada
uma que chegava essa história, a admiração por aquela mulher
só aumentava. Maria era verdadeiramente uma mulher além
do seu tempo.
123
Maria Ribeiro
Nascida em Recife e mora em Olinda desde
muito jovem. Formada em Pedagogia
com especialização em Educação especial.
Atualmente trabalha com Educação infantil no
município do Paulista - PE.
@mariaribeiro7943
E-mail: mariahribeiro29@gmail.com
Vovó Zefinha
128
Marília Gabriela Santos
Nascida e criada na Zona Norte do Recife,
Suburbana, Periférica, Educadora Social,
Graduada em Serviço Social
E-mail: mariliasantos06@hotmail.com
134
Marisa Albino
Trabalhei na área de Educação e Saúde,
hoje estou aposentada. Sou artesã, raizeira,
benzedeira. Estou estreando como escritora.
E-mail: marisaalbino 1953@gmail.com
Eu e ela
139
140
Sempre visitei meu pai. Ele se casou de novo, teve quatro
filhos, ficou viúvo, abandonou os filhos e depois de alguns
anos, ele foi morar com uma pessoa no interior. Os filhos
não o procuraram mais, depois de muitos anos, adoeceu e
ficou em cima da cama sem andar. Era só ele e a mulher,
foi uma experiência muito triste pra mim. Fiquei com a
responsabilidade de estar por perto. Quando eu era mais nova
ia de ônibus, depois ficou mais cansativo e ia de carro uma vez
por mês, levar as coisas para ele. Hoje estou com sessenta e
sete anos, meus cabelos estão brancos, é um sinal que o tempo
passou. É bom lembrar que eu não separei meus filhos. São
quatro homens e uma mulher, tenho quatro netas e três netos,
graças a Deus.
No dia vinte e nove de abril, de dois mil e vinte, em plena
pandemia, meu pai faleceu com noventa e três anos. Vítima
da Síndrome Respiratória Aguda Grave, após dezesseis anos
do falecimento da minha mãe. Foi triste não ver mais o rosto
dele. Terminei o ciclo de filha, que eles descansem em paz.
Na estrada da vida continuo a caminhar e trago até vocês o
que eu pude registrar. Fugir da própria história ou passar por
ela como o vento que sopra as cortinas em dias frios, é muito
pouco. O coração bate forte e as lembranças vêm à tona. Olho
o passado sem apego e certa de que foi um bom aprendizado.
Deixo com vocês a história da minha mãe, completando com
a minha história.
141
Perpétua e Rose Mary
Rose Mary Cristina Pinto, minha
formação é Tecnologa em Segurança
do trabalho, Nascida e Resido na
Comunidade do Morro da Conceição em
Recife, Pernambuco.
@rosemarycristinapinto
E-mail: pinto.rose@yahoo.com.br
143
de Estrada e Rodagem) e a minha mãe continuou a trabalhar
em casa de família como lavadeira.
Eu conheci Paulo do Rosário Pinto, meu marido, ainda
no período do internato dentro da capela do colégio São
Vicente de Paula, onde ele fazia parte da Confraria de Paula,
ia todos os domingos a missa acompanhado da sua madrinha
Conceição Carneiro Campelo. O mesmo não tinha mãe nem
pai, ambos já falecidos. A mãe dele faleceu de parto, para salvar
a sua vida, e pai de morte natural. Começamos a namorar e
a irmã Marta não concordava com esse relacionamento, por
entender que Paulo não tinha família. O seu histórico de família
estava relacionado a um pedido feito pela sua genitora antes
de morrer, para que Conceição tomasse conta do filho, e só
permitisse sua saída de sua casa na condição da construção
de família. E assim foi. Conceição fez o que pôde para ver
concretizado o desejo e o pedido da amiga. Conceição era moça
solteira, dentro das normas da Igreja Católica ela e o menino
que cuidou não eram considerados uma família.
Mesmo assim ocorreu o casamento, ele e Conceição
Campelo Vieira foram conversar com a minha mãe, e a
mesma concedeu e permitiu o nosso namoro. Até mesmo a
minha irmã Dadá, que no início não era muito simpática com
o meu relacionamento, aceitou. E foi assim que se iniciaram
os preparativos. Minha mãe deu um prazo de seis meses para
o casamento. Eu na época com vinte e um anos, Paulo era
mais velho, tinha vinte e cinco anos. A minha mãe foi logo
dizendo quem casa, quer casa, e que não havia criado filha
para ficar chamegando por aí... ou seja para casar tinha que
providenciar onde morar. Foi aí que ele comprou uma casa no
144
Morro da Conceição, com a ajuda de Conceição Campelo, ela
tinha condição financeira, a minha mãe não. Ela ficou com a
responsabilidade da organização da papelada (documentos)
do casamento. Casamos na Igreja da Harmonia com o padre
Teobaldo, esse padre na época fez restrições a minha madrinha
de batismo a senhora Severina (madrinha Biu) e aos seus filhos
Ivo e Conceição que eram os meus padrinhos de casamento,
pelo fato deles serem donos de terreiro de candomblé, e a
Igreja Católica não aceitava relação com essa crença. Tivemos
que pedir a intervenção da irmã Marta que solicitou ao padre
Teobaldo a realização do casamento. Após todo esse impasse
o meu casamento foi marcado para o dia 29 de dezembro, me
casei e vim direto para a minha casa, onde moro até hoje, aqui
na rua Correntina, 32 (antiga segunda travessa do Dendê)
Morro da Conceição. O meu casamento é lembrado até hoje
por amigos e antigos vizinhos, pelo fato deles na época, nunca
ter visto de perto uma pessoa vestida de noiva, e uma festa que
ocorreu ao ar livre, na rua, onde todos participaram e comeram
bolo de noiva, com toda euforia, coisas que são faladas até hoje.
Continuo morando na mesma casa onde realizamos
reformas com muito sacrifício e contando com o apoio de
dona Conceição Campelo que nunca abandonou o filho
adotivo. Foi uma dedicação inteira à vida do afilhado Paulo
Pinto, deixando para trás sua vida pessoal, continuou solteira.
Com a chegada dos meus filhos, os quais ela fazia questão de
dizer que eram netos dela, deixava as pessoas abismadas pelo
fato de ser branca de olhos claros e os netos serem negros do
cabelo pixaim. Era assim que se dizia com as pessoas negras,
mas ela nunca ligou para isso. Eu mesma ficava preocupada
pelo padrão de vida que ela levava, muito distante do meu.
145
Dona Conceição Campelo era instruída, formada professora,
moradora em bairro nobre (rua Real da Torre). Pessoas que
moravam naquela época nesse logradouro eram consideradas
ricas. Mas ela nunca se importou com isso, e muito pelo
contrário sempre amou e considerou os netos e tinha a
preocupação com a formação escolar deles. Graças a Deus,
todos os nove estudaram, se tornaram adultos, e aprenderam
a ler, só uma fez faculdade, os demais, concluíram o segundo
grau, uns casados em suas casas, e outros não quiseram se
casar, porém tem as suas vidas feitas.
147
Pollyana Ferreira
Mulher negra, filha de Beatriz, neta
de Maria e bisneta de dona Dudu.
Psicologa Clínica, especialista
em Análise Bioenergética e
pesquisadora da psicologia preta
antirracista.
Instagram: @enraizarpsi
Email: pollyana.psique@gmail.com
Curandeiras do mato
150
Logo foi morar numa casa humilde em Jardim São Paulo,
meu avô aparecia de tempos em tempos enquanto ela com
quase 13 filhos se virava para sustentar a todos. Trabalhava
como lavadeira, costureira, quitandeira, cozinheira, de tudo
um pouco ela fazia dentro e fora de casa. Assim como sua
mãe era benzedeira e conhecia os matos de cura e rezas para
o corpo e a alma.
Certo dia resolveu seguir o marido em uma de suas
viagens, escondida, mesmo sem saber ler conseguiu chegar
ao local e descobriu que esse já era casado com uma mulher
branca e de uma boa condição financeira, voltou para casa
sem ser vista e no retorno do marido decidiu deixá-lo. Depois
disso meu avô teve um infarto e implorando pediu para que
reconsiderasse pois sua outra esposa era muito doente e não
podia ter filhos e com ela já tinha vários.
Depois de algum tempo meu avô morreu desse mesmo
mal e as duas mulheres se aproximaram, como a outra era
muito sozinha se tornaram grandes amigas e seguiram
compartilhando o cuidado das crianças que passaram a ter uma
tia tão próxima como a própria mãe. Antes disso, Dona Maria
teve um filho por ano, quase 15 entre abortos e nascimentos,
dos vivos ficaram 6 homens e 5 mulheres, os mais velhos
ajudavam a cuidar dos mais novos, e ela com o barrigão de
mais uma criança colocava o balaio de verdura na cabeça e
saia pra vender na feira.
As meninas mais velhas Alice e Beatriz minha mãe, saiam
de manhãzinha pro açude lavar a roupa da casa, ensaboavam,
esfregavam, esparramavam na grama para coará no sol,
enxaguavam e estendiam mais uma vez na grama pra secar.
Caso a aboiada passasse tinham que correr pra apanhar toda
151
roupa a tempo, minha mãe morria de medo dos chifrudos, as
duas tinham entre 10 e 11 anos na época.
Depois da roupa seca já vinham tomadas banho, chegando
em casa o almoço preparado pela mãe era devorado e corriam
pra escola que ficava a canelas e canelas de distância. Todos os
dias tinham que passar por uma ladeira de pedra a dois pés
da pista onde os caminhões e carros se espremiam, além disso
tinham que passar ainda pela linha do trem em que muitos já
haviam morrido.
Apesar da dureza da vida diziam com orgulho que
nenhum filho e nenhuma filha de dona Maria “deu pra o
que não presta”. Na época do surto da coqueluche minha
avó acordava ainda na madrugada todos os filhos, saia pelo
descampado com a filinha de crianças, e na fazenda ao lado os
obrigava a tomar banho de cacimba e tomar leite quente saído
da vaca naquele mesmo instante, e assim todos se curaram.
Muitos tiveram cansaço e fraqueza nos momentos de mais
aperto, mas com cuidado, fé e uma coragem sem tamanho ela
conseguiu manter a família.
Anos mais tarde, todos os netos, quase 20, se reuniam na
casa dela. Todas as manhãs ela acordava a gente com furadas
de agulha e gelo no pescoço, dava uma gargalhada aberta pelo
susto que nos dava e depois um copo de vitamina que ninguém
sabia o que tinha dentro, mas que todo mundo tinha que tomar.
Se passávamos muito tempo no banheiro ela entrava
caladinha adivinhando uma prisão de ventre e deixava um
raminho de arruda na cabeça do enfezado, e olha que ajudava!
Dizia sempre que mulher não podia colocar os pés descalços
no chão gelado ao acordar pois a frieza ia direto pro útero.
Aprendeu a ler sozinha aos 50 anos com uma bíblia antiga que
152
carregava consigo. Dentro do sutiã guardava ervas para todo
tipo de doença que colhia nas caminhadas que fazia até a igreja.
Antes de dormir em sua casa todos tinham que dizer um
versículo da bíblia ou cantar um corinho do hinário. Muitas
vezes dormi com ela sentindo o cheirinho das plantas e da
pomada doutorzinho que passava em suas pernas. Ela tinha o
cheiro da terra e das cascas de planta-proteção, de planta-vida
e de planta-re-existência, muitas vezes também era planta-dor,
mas sempre planta-raiz minha e de todas que vieram depois.
Pra mim era uma deusa do mato não importa o que dissessem,
era curandeira.
Beatriz, a segunda mais velha entre as mulheres filhas
de Maria, é minha mãe, estudou até a oitava série com muito
sacrifício, sempre inventando brincadeiras novas, gostava das
artes, era uma menina de criatividade gigante, mas cedo, aos
14 anos teve que trabalhar como empregada doméstica na casa
da filha da antiga patroa de sua mãe. Na biblioteca do casarão
vivia encantada, adorava romances policiais e fantasias.
Até hoje é contadora de histórias como sua avó, me trouxe
aos ouvidos e no arrepio da pele a força, a potência dessas
mulheres. As carrego todas comigo, as honro e agradeço pelos
ensinamentos que tão forte me chegaram aqui nesse tempo,
através dessas memórias compartilhadas.
Somos curandeiras de ontem e de hoje, histórias marcadas
na cor da pele, no formato do nariz e boca, nos cabelos crespos,
na beleza do nosso tambor, na chama acesa que ainda queima
em nosso ventre mulher, nas raízes profundas construída com
o sangue e a sabedoria das mulheres que vieram antes e que
revivem nessa história contada, hoje por mim, é a tarefa que
me cabe nessa espiral de histórias que se cruzam nos traços
153
da minha face e na ponta da minha língua, remexe meu útero
e transborda nesse espaço-papel as vozes dessas mulheres.
154
Rosângela Oliveira
Pedagoga, mulher negra periférica, mãe
de Adriele Luisa,idealizadora do projeto :
afromaternidade na periferia, agora a primeira
escritora da familia.
@pedagogarosangelaoliveira
E-mail: rosas24pliveira@hotmail.com
161
como uma heroína, a mulher era espancada pelo marido, sem
titubear, Maria encontrou tijolos e pedras, assim como na
infância expulsou os intrusos de seu lar, ateou pedras até que
aquele homem parasse com o espancamento, nada temeu,
sempre fez.
Agora, aos 80 anos, Maria Antônia da Conceição, acorda
cedo e varre, a agilidade no serviço não é como antes e não
precisa ser, a casa é sua, não é obrigação nada fazer, mas é
feito caprichosamente, resta-lhe tempo para ser precisa em dar
opiniões diversas, até mesmo quando não é apreciada, fala.
Queixa-se apenas de nunca ter sido criança, brincar ela
brincou, mesmo a contragosto de quem queria apenas o seu
trabalho, ainda assim ela sorria, mas criança nunca pode ser,
a pobreza, a cultura da época, a dureza da vida, tudo retirava
o direito de Maria ser criança, às vezes, eu que sou filha, que
agora a vejo velha, encontro nela muito do ser criança, que ela
ainda em tempo tenha muitos dias de criança.
162
Selvina Maria da Silva
Jornalista, 52 anos, natural do povoado
Cabaceira, município Francisco Macedo,
sertão do Piauí. Moradora de São Paulo desde
1973. Amante da terra, das pedras, dos galhos
dormentes que a chuva acorda na resistência
sertaneja. Encantada pelo casarão que guarda
histórias. Suas e de uma grande família.
Criadora e apresentadora do programa Daqui e
Daí, que aborda e aprofunda temas ausentes na
grande mídia.
@daquiedai
E-mail: selvinamariadasilva@gmail.com
163
E quando ela inventava de fazer algo diferente só pra
ela? Nada de especial… a sobra de alguma refeição, ou um
preparo diferente. Todos sabiam que ficaria maravilhoso e
todos também quereriam do mesmo.
Se algum dos filhos a visse mastigando, já vinha a
pergunta: “O que que mãe tá comendo?...” E ela, pra se ver livre
da resposta verdadeira: “Merda, menino, é merda!” rsrsrsrs...
E logo o menino respondia: “Pois a senhora tá comendo coisa
boa…” E a gargalhada era alimento para a alma, e a história,
legado para a família.
E quando ela inventava de “comer com a mão?” Sabe
aquele feijão bem temperado com manteiga de garrafa, coentro,
cebola e mexido com farinha? Pois é. Ela fazia punhadinhos
com os dedos e os levava até a boca. Parecia mais gostoso
ainda! A indígena vivia nela e ela não sabia. A floresta vivia
nela. Selvina. De silvestre, de selvagem, da selva.
Casada em 6 de maio de 1925, contava 50 anos e 12 (!) filhos
quando enviuvou em 16 de maio de 1956. Trinta e um anos
de casada e 10 dias! O marido, comerciante, dispensara um
caminhão que, ao sair, na pequena subida, voltou sem freio. O
marido na parede. Sangue e choro. Abraços e rosas vermelhas
por um ano! História contada e recontada. Sofrimento sofrido
e ressofrido. Tristeza transformada em norte.
Mas, mesa farta. Sempre! Comia a família com as crianças,
comiam os trabalhadores, comiam visitas. Todos juntos na
grande mesa feita e refeita a cada nova chegada. Ela comia
por último. Era o seu prazer servir.
“Filha, nunca deixe a pia suja! Se acontecer algo de ruim,
alguém de fora virá para cuidar da casa. E aí, o que vai pensar de
você, se a casa estiver bagunçada e um monte de louça na pia?”
164
Quando as atribulações da vida pareciam ser eternas, ela
fazia o jogo do contente: “O que não é pra sempre, a gente
aguenta!”
E quando algo caía, quebrava, ou ela se via contrariada?
Logo se recompunha: “Isso é só pra eu xingar! Mas eu não dou
o gosto!” E ensinava a tolerância.
“Filha, fale baixo! Tem gente dormindo!” O respeito pelo
descanso do outro, por trazer ao outro o prazer de dormir bem,
de comer, de estar bem, eram sua alegria.
Cabelo grisalho longo, mas escasso… sempre em coque,
preso por uma travessa, a presilha-pente de antigamente.
Vestido no tornozelo, cores escuras, floridas, mas em tons de
azul. A viuvez lhe impedia de usar cores “extravagantes”.
Eu e madrinha em 1990
Madrinha Selvina
165
Aos 12 anos, minha primeira entrevista em fita k7:
“Madrinha, quantos anos a senhora tem?” Ouço, ainda, aquela
voz rouca e cansada: “82…” “E como a senhora está de saúde?”
Uma resposta meio sem expectativa: “Tô mais mió…”
Eu não tinha uma avó. Eu tinha uma madrinha. Porque
esse era o costume, naquela época: os padrinhos do primeiro
filho do casal eram os pais da esposa e os padrinhos do
segundo filho, eram os pais do esposo.
Dela para mim ficou um sentimento de ausência… um
querer mais que a saudade matava quando as minhas digitais
tocavam as digitais daquela casa. Um ar que abriga a alma e
adezembra o coração. Madrinha… madrinha… Aconchego,
acolhida.
Dela para mim ficou Selvina: de selvagem, de silvestre, da
selva. Grata pela emoção que me banha o rosto.
166
Sheila Martins
É intérprete de Libras, pedagoga, mestranda
em educação (UERJ/FFP), poeta, escritora
periférica, mãe e boa contadora de histórias
negras. Em meio a todos esses afazeres poéticos
da vida decide iniciar a Livraria Ayó (que
significa “alegria” em yoruba).
@sheila_mrts
E-mail: sheila.jh@hotmail.com
Lembranças de cura
Amada Vó Gina,
Escrevo esta carta movida por vários motivos, ainda
assim, o primeiro que me impulsiona é uma vontade de
revisitar minhas-nossas memórias sobre terra, assim como
nossas vivências nesse quintal ainda de chão batido de barro
vermelho, local onde fui nascida e criada sob seus cuidados
e ensinamentos.
E por falar em memórias, elas são tão fortes e vívidas
que posso tentar neste instante dar uma curta pausa nessa
escrita, fechar os olhos, respirar fundo e logo sentirei em
meu corpo traços de cada uma delas, como se fosse uma
fotografia iluminada pelo sol da manhã que possui um brilho
de esperança e fé do que ainda está por vir, porém possuindo
em si a marca do dia anterior. Lembro da senhora, mulher
preta, firme quando necessário e sábia, pois sempre tinha
uma resposta pronta para nossas angústias. Tinha um lindo
sorriso largo e os olhos com as cores do arco-íris, que brilhavam
167
quando olhava para seus netos. Recordo das rugas que tinha
em sua face, as quais foram desenhadas pelo escorrer do
tempo, fluindo pelos rios de sabedoria que se moviam rumo
à eternidade. Uma das lembranças que jamais esquecerei é a
imagem de suas mãos. Eu sabia que tinha algo especial nelas,
e com o passar do tempo, entendi que era o dom poderoso
de cura, o qual era passado de geração a geração. Quando as
banhava com óleo, feito de ervas colhidas do nosso próprio
jardim, o cheiro pairava e invadia cada casa ao longo da viela
onde morávamos, logo sabíamos que aconteceria alguma
curimba.
Durante a minha meninice ouvia rotineiramente os
vizinhos afobados chamarem no portão, demandando por sua
ajuda. A verdadeira causa dessa procura desenfreada e sem
horário marcado eram suas rezas. Buscavam a senhora para
curar desde dores no corpo, olho gordo, mal olhado, vento
virado, falta de trabalho e até males d’alma. Tudo era digno
de recorrer a sua sabedoria, “estavam com uma dorzinha, já
caçavam uma “benzeção” dizia o povo.
Um dia, eu ainda adolescente (rememoro como se fosse
hoje) estava com problema no coração. Meus pais não sabiam
o porquê de tanto sofrimento. Sem pensar duas vezes fomos
até a sua casa. Não estava me sentindo bem, mas consegui
apreciar a grandiosidade do que vi a senhora fazendo. E assim
começou um ritual entoando preces tranquilamente como se
estivesse concedendo uma oferenda primorosa. Eu admirava
os detalhes, vendo o movimentar das suas mãos e afluências
das águas na bacia misturadas com uma planta que se chamava
“coração magoado”, por incrível que pareça, tinha o formato
de um coração. Nesse dia, vi, ouvi, senti vibrações com fé
168
que nunca havia sentido antes, algo ancestral. E não é que a
senhora tinha poderes mesmo, fiquei melhor rapidamente, me
abriguei em seu colo e suas rezas e afeto me curaram. Nesse
dia comecei a ver a sua ação de benzer com um outro olhar.
Pulsava em mim uma vontade de acompanhar os rituais junto
a senhora. Quando ouvia um chamado no portão, eu corria
para apreciar suas práticas.
169
d’aguas negras de memórias. (Re) existir ao seu lado, vó Gina,
me fez entender que todas as nossas histórias-heranças estão
vivas dentro de mim e alimentam ao nosso povo com uma
vitalidade inexplicável. Por isso que estou aqui nesse mesmo
quintal onde vivíamos juntas, onde viveram, onde vive e onde
vivo sendo continuidade do dom-vida-cura sendo benzedeira
assim como minha mãe, minha bisavó, minhas tias, minhas
primas, minha Ialorixá, como a senhora. Mulheres pretas que
me convidaram da maneira mais bela a enxergar o poder que
habita em meu interior.
Teço estas palavras para dizer que sou grata a todas as
matriarcas que vivem em mim nesse universo e que me ajudam
a lutar sem temer o dia de amanhã. Gratidão por tudo.
Modupé a nossas matriarcas!
170
Sofia Leal Batista
Em coletivo com mulheres, estudo e promovo
o espanhol como língua de encontro, de
reconhecimento e de identidade latino-
americana. A palavra por meio da prática oral,
escrita, tradução e leitura bilíngue permite
enxergar e reconhecer-nos como criadoras
das historias que nos habitam. Participo do
Livro Aberto – Sebo Itinerante. Tenho feito
tradução/versão ao espanhol de três livros em
português, e publicação de três textos, escritos
em português, em livros coletivos.
E-mail: sofialealb@gmail.com
Ser daqui e de lá
177
Josefa Leal Pinto, Güisa. Abuela Paterna Maria Florentina,
Mami. Abuela
Materna
178
Vera Lúcia
Vivo em Recife, sou pedagoga, Professora e já
aposentada. Estou estreando como escritora
essa é minha primeira publicação.
179
Dona Celina e Dona Valdeci (Vadé), se conheceram
quando ela veio morar na rua Joaquim Correia, as duas
casas lado a lado. Assim iniciou-se uma relação de respeito e
confiança. Celina morava em uma residência bem simplória,
paredes de barro, só um vão. Nesse mesmo vão acomoda-se,
sala, cozinha e quarto, com banheiro coletivo no quintal, casa
coberta de capim. Valdeci por ter melhor condição, morava
em uma casa de boa qualidade naquela época, sua casa era de
alvenaria, piso de cimento, com terraço, sala, cozinha, quartos
e banheiro.
Entre minha irmã mais velha Lenice e Fátima, filha de
Vadelci, havia divisão dos brinquedos. Em cada Natal, Fátima
doava parte de seus brinquedos para Lenice, como gesto de
solidariedade, pois desde cedo nossas mães nos incentivaram
a compartilhar com o próximo.
A vida foi passando, Vadé e Celina, como elas se tratavam
uma à outra, sempre trabalhando para suas sobrevivências.
Vadé costureira e cuidadora. Celina, para ajudar o esposo
que era carroceiro, devido ao pouco estudo, fazia de tudo.
Carregava frete na feira, criava porcos para vender, e carregava
água de ganho, lavava roupas. Lembrar de tudo isso não é fácil,
é até dolorido, mas as duas heroínas venceram.
Anos depois de casados meus pais melhoraram de vida.
Com a intervenção de uma ex-patroa da minha mãe, meu pai
se empregou na Rede Ferroviária (hoje Metrô Recife), mesmo
sem ter estudo era possível ser admitido para o trabalho pesado
de limpeza e manutenção dos trilhos.
Pensar nessa história de luta, é pensar em duas mulheres
que a cada dia consolidaram a amizade e tornaram-se exemplo
de vida. Seus filhos cresceram ouvindo expressões como: temos
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que ser honestos, trabalhadores e vocês tem que estudar para
ser alguém na vida. Celina não sabia ler, Vadé estudou até
o curso de Admissão ao Ginásio. Teve que parar porque no
bairro não havia ginásio em escola pública gratuita. As duas
se esforçaram para que os filhos estudassem, aconselharam,
incentivaram. Lembro de Dona Vadé me aconselhando: você
tem que escolher uma profissão, e tem que estudar para
alcançar a profissão que escolher.
Esses conselhos me ajudaram a escolher ser professora.
Fiz o ensino médio Magistério, comecei a trabalhar em uma
escola comunitária, depois em uma creche. Anos depois,
veio a oportunidade de cursar Pedagogia. Certo dia cheguei
na casa da minha mãe contando que tinha passado no
vestibular, a gente comemorou tomando um vinho seco que
estava guardado no bufê a há muitos meses. Depois falamos
da dificuldade para pagar as mensalidades. Minha mãe me
animou e se comprometeu em economizar em outras coisas
para me ajudar a pagar. Meu esposo também ajudou. Sou a
única filha de Celina que cursou uma faculdade.
No andar da vida, Valdeci precisou se separar do marido.
Nesse momento, para ajudar, Celina dividiu seus móveis e
utensílios domésticos com sua amiga, para ela poder organizar
a casa que alugou. Foi um recomeço na vida para Vadé. As
duas ficaram ainda mais unidas. Nessa época o esposo de
Celina já tinha comprado a casa própria, tinha uma renda
melhor então Celina pode ajudar.
Elas tinham muitas coisas em comuns, três delas muito
evidentes, fé inabalável, amor ao próximo e devoção a nossa
Senhora da Imaculada Conceição. E foi por amor ao próximo
que surgiu mais uma filha em nossa grande família.
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Vadé era cuidadora, em seu trabalho ouvia o choro de uma
criança, filha da empregada da casa. Certo dia ela resolveu ir
ao quartinho onde a criança chorava, chegando lá viu uma
menininha que não era bem cuidada. Depois que soube da
história da mãe, perguntou se ela queria doar a menina para
um casal amigo, para que cuidassem bem, a mãe aceitou.
Ela sabendo que seus amigos Celina e Antônio comentaram
que queriam adotar uma criança levou a menininha até eles.
A princípio ficaram indecisos, pois já tinham cinco filhos,
mesmo assim decidiram adotar por sua virtude de amor ao
próximo. Como gesto de gratidão a Vadé, Celina a convidou
junto com Manuel, seu filho, para serem madrinha e padrinho
da menina. A menina chama-se Verônica, hoje tem 47 anos e
vive em São Paulo.
As duas famílias compartilhavam muitos momentos
juntas, tristes, alegres e até momentos engraçados. Dois ficaram
marcados nas memórias, a sopa de pensamentos e o dinheiro
na lata de leite. No episódio da sopa, Dona Valdeci contava que
em uma de nossas visitas a casa de Dona Vadé resolveu fazer
uma sopa para todos jantar. Como tinha poucos ingredientes
ela colocou o nome sopa do pensamento. Disse às crianças, que
ao tomar a sopa era pensar em coisas gostosas que poderiam
estar na panela. O dinheiro na lata do leite, foi em uma tarde que
Dona Celina, como de costume, esteve na residência da amiga.
Ao chegar lá o esposo da amiga estava adormecido no sofá e
uma quantia de dinheiro, que acreditou ser o salário, expostos na
mesa. Como ele estava sozinho em casa e a porta estava aberta,
ela resolveu guardar o dinheiro em uma lata de leite vazia que
encontrou na cozinha. No outro dia Vadé chegou chorando na
casa de Celina, achando que alguém tinha aproveitado a porta
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aberta e roubado o salário do seu esposo. Foi então que Celina
contou o que havia feito com o dinheiro, que se encontrava
espalhado. Depois de saber como a amiga tinha guardado o
dinheiro, as duas deram boas risadas.
Falar dessas duas amigas eternas, sem lembrar dessas
vivências comuns é simplesmente impossível. Uma amizade
que serviu de exemplo para os filhos de ambas. Na verdade
Celina e Vadé eram mães dos filhos uma da outra. E dessa
forma as duas amigas conseguiram atravessar as dificuldades
impostas pela pobreza em um Estado concentrador, no auge
do falso milagre econômico da ditadura. Dividiam o pouco
que tinham com a alegria de quem recebe um tesouro, e
assim ensinavam a prática a seus filhos, falavam e viviam o
Evangelho cotidianamente.
E Celina, além de seus seis filhos, também conseguia
espaço em seu coração para cuidar dos seus vizinhos como se
fossem filhos. Na sua casa própria Celina e seu esposo Antônio,
eram felizes, realizados por essa conquista, e eram muito
queridos por seus vizinhos. Sempre foram muito otimistas,
mesmo vindo de uma humildade tamanha e uma vida de
discriminação, eles deram a volta por cima.
Na vizinhança ela dava a mão a todos que recorriam a seu
ouvido em momentos de aflições, para serem aconselhados. E
quando tinha alguém doente a procuravam, recorriam às suas
rezas e seus remédios caseiros.
Na casa de Dona Celina havia duas fontes de doçuras, seu
amor e o açúcar preto (demerara/mascavo), que Seu Antônio
ganhava do seu trabalho, na Rede Ferroviária, dos trens que
carregavam açúcar. Apesar das dificuldades sempre existiu
muito afeto em nossa casa.
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Com o passar dos anos as dificuldades econômicas foram
diminuindo e começaram a colher bons frutos, seus filhos se
encaminharam na vida, todos têm uma vida estável e as amigas
seguiram unidas na tranquilidade, no decorrer do tempo.
Celina depois do falecimento do esposo, continuou
educando e encaminhando seus filhos para uma vida com
honestidade e ensinamentos cristãos. Com o passar do tempo,
foi diagnosticada com Mal de Alzheimer vindo morar em
minha casa.
Valdeci, depois da sonhada aposentadoria, fez algumas
viagens, que era um dos prazeres da sua vida.
Elas eram tão ligadas que Dona Vadé queria passar o resto
da vida ao lado de sua grande amiga/irmã para poder cuidar
dela, infelizmente ela não pode realizar esse projeto devido a
sua partida precoce e inesperada.
Celina Valdeci
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Para preservar Celina omiti a partida de dona Vadé, mas
fui surpreendida com minha mãe relatando que a amiga tinha
ido lhe avisar que estava indo embora. E que ela, por sua vez,
pediu para ir junto, mas a amiga falou que ainda não era o
seu momento de partir. Celina partiu para o encontro de sua
amiga nove meses depois.
Eu sou grata a Deus por ter tido o privilégio de ter essas
duas mulheres como referência na minha vida.
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