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Av. Guararapes, 120, 4º andar - Santo Antônio - Recife - PE


Fone: 81 99506 1034 | 99590 7790

Direção Editorial: Carlos Lopes

Diretora Executiva: Juliana Karla Pajeú

Conselho Editorial: Profª. Adriana Oliveira


Profª. Alba Nídia Ortiz Monges
Profª. Fátima Soares
Profª. Karla Luzia Alvares dos Prazeres
Profª. Maria Creuza de Araújo Borges
Profª. Sofia Leal

Revisão: Das Autoras

Projeto Gráfico: Carlos Lopes

Ilustração da Capa: Camila Oliveira

SOARES. Fátima, org.

Velhas Sábias - Tributo às que vieram antes de nós.


Fátima Soares (organizadora). Editora IPANEC. Recife,
2021. Mídia digital.

ISBN 9786586306118

1. Biografia 2. Contos 3. Poesia 4. Ancestralidade 5. Velhas I.


Título II. Autoras

Printed in Brazil - Impresso no Brasil


Todos os direitos reservados. Nos termos da Lei que resguarda os direitos autorais é proibida
a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer forma ou meio, eletrônico ou mecânico,
inclusive através de fotocópias e gravação, sem permissão por escrito das autoras.

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DEDICAÇÃO

Dedicamos esta obra


Às mulheres, suas memórias
Cujas vidas e saberes
Não aparecem nas histórias
Sem ter oportunidade
De, no livro, na verdade
Narrarem suas trajetórias.

São tias, madrinhas, mães


Amigas e conselheiras
Irmãs, colegas, vizinhas
Na vida nossas parceiras
Oferecem suas presenças
Apresentam suas crenças
Superações verdadeiras.

Resistindo aos percalços


Ensinam a liberdade
Assumindo muitas vezes
A responsabilidade
Procurando harmonia
Viver sua cidadania
São guerreiras de verdade.
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AGRADECIMENTOS

Aqui nós agradecemos


Toda a contribuição
De quem, com sabedoria
Trouxe com dedicação
Das velhas, muitas histórias
Dessas mulheres, as glórias
Para essa composição.

Ao Mulherio das Letras


Também nós agradecemos
Aos diversos coletivos
Em nós sempre estivemos
Que acolheram as ideias
De narrar as odisseias
Que nos textos escrevemos.

A Camila de Oliveira
Pela capa requintada
A Cris Lira, no estrangeiro
Pela ponte arquitetada
Entre a Camila querida
E essa turma, que aguerrida
Trilhou junto essa jornada.
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Gratidão também nós temos
A Tracy Silva, que fez
Um prefácio tão potente
Que trouxe com altivez
Com as palavras, o cuidado
Um texto iluminado
Obrigada, outra vez.

Érica Montenegro de Mélo

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Tracy da Silva
Leitora, historiadora, feminista, profunda
admiradora das artes literárias, visuais e
musicais. De vez em quando fala sobre
livros no Instagram.
@sodacaotica.

Prefácio

Quanto de ancestralidade cabe em nossa existência?


Existe um enorme vão na História, aquela com H
maiúsculo, onde, por maior quer seja, não daria conta de caber
toda a participação da humanidade. A academia ignora, por
vezes, deliberadamente, milhares de colaborações que dariam
novas cores à nossa existência.
Estas cores estão perto de nós. São as cores de nossas mães,
avós, bisavós, tias.
Nossas mais velhas.
Estas mulheres, que trabalharam com enxadas, com a terra,
com giz, linhas e agulhas, cadernos e livros, alimentos e as
próprias mãos, carregavam e carregam em si todo o significado
da nossa própria existência.
Das fazendas e subúrbios, das carroças e navios, das
senzalas e florestas, vêm estas mulheres. Forjadas no trânsito do
final do século XIX ao XX (e chegando às duas primeiras décadas
do século XXI), quando a expectativa de vida era baixa, quando
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se morria de fome, tuberculose ou de parto, quando a medicina
para curar era extraída do quintal de casa e da fé.
Estas mulheres trazem em sua longevidade não só a
sabedoria do tempo, mas também a habilidade de sobrevivência
às mazelas sociais das quais somos herdeiras. Onde hoje
comunidade, antes terreno. Onde hoje cidades inteiras, antes
engenhos, fazendas e senzalas. Tudo isso nascido do trabalho,
da luta e da teimosia destas mulheres em manter suas famílias.
Porque muito se fala do pedreiro que construiu o prédio, do
político que instituiu município, mas nada se fala da mulher
que o nutriu e cuidou.
Estas mulheres surgem em um Brasil cuja República recém-
nascida não dava conta de tanta gente, tanta desigualdade e
injustiça. Do sertão abandonado tomado pela seca ao litoral
amontoado dos, agora, ex-escravizados, passando pelas
planícies do Sul, surgia um Brasil enorme em território,
mas minúsculo em justiça social, produto da recém-abolida
escravidão que deixou à míngua os negros, que recebeu mas
não garantiu dignidade à muitos imigrantes, que espremeu
os povos indígenas em suas desoladas terras.
Uma sociedade em ebulição com o surgimento das
periferias, das pensões, das vilas. Nestas, tantas vozes
nasceram, se multiplicaram, criaram proles inteiras sob um sol
impiedoso, falta d’água, de remédios: uma realidade difícil.
A violência doméstica, o casamento forçado na infância, a
cachaça, a depressão, a falta de trabalho, de escola, de comida.
A fome.
É desse caldo difícil de tomar que estas mulheres surgem
como monumentos.

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A lembrança da mão que alimenta, o abraço que acalenta,
o ardor que ama, o lençol que cobre e o cheiro que remete à
infância e ao conforto, pode procurar nos recôncavos da sua
mente: vem de uma mulher mais velha.
A arquetípica mulher velha carrega em si a força da
experiência para construir e a doçura para amenizar o que na
vida é tão duro. É a esta mulher que corremos para curar as
febres inexplicáveis, as dores de um coração partido, buscar
inspiração para nossas jornadas, ideias para novas empreitadas
ou apenas para tomar um café gostoso, uma sopa saborosa, para
acalmar os ânimos. Existe no colo de uma anciã a centelha da
criação de tudo que há de seguro e belo no mundo.
Estas mulheres sábias carregam em si a profundidade de
suas raízes, o aroma de seus temperos, a arte de suas costuras,
as dores de suas viagens – às vezes voluntárias, às vezes à
força – a firmeza de suas certezas, que refletem em paredes
de casas, nos traços dos filhos, nas ruas de suas comunidades.
Em nós.
Mulheres que, no tempo de uma vida, fizeram tanto que
a velocidade da caneta não deu conta do registro. E este é o
propósito desta, que é uma obra feita à várias mãos: registrar
o que a História não deu conta, a História de nossos bairros,
famílias, a História de nossas antepassadas.
A universalidade destas histórias apela para o que há
de comum em cada mulher, seja ela jovem, maturando ou
idosa. O arquétipo da mulher velha reside no fundo de nossas
mentes e são nossas antepassadas, de sangue ou de convívio,
que o encarnam para que aos poucos, ao longo da vida, esta
mulher sábia e forte resida em nós. Estas mulheres são casa e
nos ensinam a ser casa também.
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Por vezes estamos tão obcecadas em esquadrinhar nossa
árvore genealógica, atrás da origem de nosso sangue, que
passamos despercebidas pelo que há de verdadeiramente
precioso em baixo dos nossos tetos. Aqui, neste livro, tivemos
a sorte de reunir um grupo de mulheres capazes de identificar
e eternizar esta preciosidade, de cultivar e regar estas flores
que brotaram em tantas adversidades e lutas num Brasil tão
jovem mas já tão tomado por tantas faltas.
Cada mulher aqui eternizada resguarda o que há de sábio,
belo, doce e forte em todas as mulheres que já riscaram seus
passos na Terra. A universalidade em cada particularidade
aqui resgatada nos lembra o que é comum a toda mulher que
envelhece: nossa capacidade de estar em constante renovação,
ser jovem enquanto velha e velha enquanto jovem, ser porto e
teto, aluna e professora, tudo ao mesmo tempo.
Fazer escolhas, se adaptar ao inusitado, somar, evoluir,
crescer. Estar atenta às mudanças e a conservar o que é
constante, estar presente mas com o olho no futuro, preparar
o café da manhã já sabendo o que tem pro almoço. Ou já lutar
pelo almoço. Porque o criar, manter, regar, a paciência para
observar, fluir, a inteligência para contestar, moldar requer
tempo. E o tempo é próprio da mulher que envelhece. Ele é
seu grande companheiro.
Me pergunto se cada uma destas mulheres retratadas
nesta coletânea chegou a entender o tamanho do seu impacto,
da sua grandeza e de seus poderes. De sua capacidade de
resiliência num tempo que o país nem sabia que era país. Se
puderam apreciar o resultado de suas dedicações, criações e
afetos. Se souberam que o cheiro dos seus cafés e temperos,
cada tijolo assentado, cada filho que pariram, cada neto que
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ninaram e cada amiga que socorreram são agora pedacinhos
plenos delas mesmas.
Se não souberam, que saibam agora.
Que o mundo saiba agora.

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Sumário

Ana Cristina Henrique Silva


Ad Dulce......................................................................................14

Adriana Oliveira
Beatriz, nutrindo a vida com o alimento do afeto ................19

Bernadete Silva
Dona Blandina, sábia mulher...................................................25

Beth Fernandes
Zezé..............................................................................................30

Carla Gisele Batista


Ascendentes árabes....................................................................37

Dilma Barrozo
Raízes de Maria..........................................................................44

Edna Lima
Cuidado de vó............................................................................49

Érica Montenegro de Mélo


As avós de minh’alma...............................................................56
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Fátima Soares
Não Baixar o Nariz....................................................................64

Idyane França
Os olhos serenos de Joana.........................................................72

Ilka Guedes
O cheiro da minha vó................................................................76

Janaína Nery
Lições ancestrais de Vó Lídia...................................................83

Jeovânia P.
A preta Baiana............................................................................89

Leila Santos e Leina Gouveia


Sou Penha d’Uchôa! ..................................................................94

Luíza Cavalcante
De Nbundo ao Ágatha ...........................................................102

Magda Santiago
Herdeira de uma jornada........................................................109

Maria Graciane
Maria, todo dia celebrada.......................................................116

Maria Ribeiro
Vovó Zefinha............................................................................124

12
Marília Gabriela Santos
Maria de Fátima, florescer e educação amorosa..................129

Marisa Albino
Eu e ela.......................................................................................135

Perpétua e Rose Mary


Guerreira na construção da geração descendente...............142

Pollyana Ferreira
Curandeiras do mato...............................................................148

Rosângela Oliveira
Maria não foi Criança..............................................................155

Selvina Maria da Silva


Selvina: de silvestre, de selvagem, da selva.........................163

Sheila Martins
Lembranças de cura.................................................................167

Sofia Leal Batista


Ser daqui e de lá ......................................................................171

Vera Lúcia
Grandes mulheres e grandes amigas....................................179

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Ana Cristina Henrique Silva
Graduada em Letras Vernáculas e Bacharel em
Artes Cênicas Interpretação Teatral. Professora
do Ensino básico, na Rede Estadual de Ensino
- BA. Mestranda em Educação de Jovens e
Adultos, na MPEJA/ Uneb. Em 2020 arriscou
dar asas aos seus escritos, participando da sua
primeira publicação na coletânea de poesias e
contos: O livro das Marias II, pela editora Ixtlan,
com o conto “As meninas”, organizado por
Jeovânia P.
@anac.henriques
E-mail: ana.cristinahenrique@hotmail.com

Ad Dulce

À minha mãe que com sua doçura, prudência e afeto


muito me ensina.

Quem olha a foto amarelada do tempo quase não a reconhece.


Não fossem os olhos seria outra. O rosto agora traz impressões. As
mãos têm rugas e a agilidade dos movimentos dão espaço para a calma
lenta e suave. Mas os olhos... Ah, os olhos! Os mesmos olhos vivos e
atentos, prontos para ver além. Vê o que ninguém mais vê. A beleza
escondida na infinitude do ser.
Enquanto preparo o café lembro histórias contadas sobre ela.
Permito que as histórias se misturem às lembranças do nosso dia
a dia. Elas exalam, juntamente com o cheiro forte que sai do bule,
ocupando toda a casa.
***
Ela nasceu no tempo de antes. Num ano em que os
ouvidos se voltavam para as notícias sobre a 2° Guerra
Mundial. Precisamente no ano de 1942. Talvez por isso chegou
14
empunhando a bandeira da paz: “Onde estiver seja paz”. A
frase que lhe acompanha, há exatos 78 anos, é companhia certa
onde quer que ela se encontre.
O nome dado pela mãe profetizou bondade - Dulce.
Quando pequena escutava os garotos da escola fazerem graça:
– Lá vem a Doce, gente!
Ela ria, saboreando cada palavra dita pelos pirralhos de
calças curtas.
Criança precoce foi se firmando em meio a família de 8
irmãos, a maioria já adultos. Menores na casa somente ela – a
caçula – e a irmã, três anos a mais que sua idade.
A infância foi marcada pela separação do pai, que
trabalhando no serviço militar e tendo sido escalado para
atuar em outra cidade, lá resolveu ficar, deixando sua mãe e
filhos à própria sorte.
E a sorte não foi companhia certa da mãe da menina. A
morte chegou prematura para esta mulher, não se sabe se de
tristeza ou de trabalho intenso. Talvez de ambos. Sofrimento
em demasia imprime na alma ferida difícil de cicatrizar.
Tendo sido avisado do falecimento da mãe, seu pai
retornou para buscar as filhas menores, ela e sua irmã, levando-
as para morar com ele na cidade de Ilhéus.
A partida para outra cidade perdeu o encanto tão logo as
duas chegaram no novo lar. Apresentadas à família do pai, as
meninas perceberam o tratamento que seria destinado a elas.
Imploraram que lhes levassem de volta. Em vão. Seus apelos
não foram ouvidos. E assim, um novo mundo descortinou-se
às duas irmãs. Um mundo de trabalho intenso nos afazeres
domésticos, desafeto e muita saudade. O retorno para a
capital, local de origem das irmãs, se deu passado alguns anos,
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somente sendo possível graças a ousadia de ambas. As duas
vieram fugidas, sendo ajudadas por vizinhas compadecidas
do sofrimento imposto a elas.
A chegada das meninas foi motivo de alegria e espanto.
Seus irmãos indignaram-se com o tratamento do pai, cabendo
ao irmão mais velho expor, através de uma longa carta, o
aborrecimento de toda família frente às revelações contadas
pelas crianças. E foi também por meio de uma carta sem muitas
palavras, que elas receberam o pedido de desculpa paterna.
Uma carta formal sem escrito do coração.
O convívio com os irmãos não durou muito tempo. Com
poucos recursos financeiros, as irmãs tiveram que morar, cada
uma, com suas madrinhas.
Resignada Dulce foi, na certeza de que um dia voltaria
ao convívio dos seus. De dia trabalhava nos afazeres da casa,
ajudando a madrinha na criação dos filhos e à noite estudava.
Fiel aos seus sonhos, desejou para si uma vida melhor. Os
estudos foram concluídos com louvor, conseguindo logo em
seguida seu primeiro emprego de carteira assinada, numa
rede de farmácias bastante conhecida da região. Neste mesmo
período conheceu o homem com quem iria construir sua
família anos mais tarde, Antônio.
Antônio se apresentou aos olhos da jovem Dulce numa
terça-feira do mês junino, em frente à igreja de Santo Antônio.
Ele não revelou seu nome de imediato, mas lá no íntimo a
jovem intuiu que o homem elegante de chapéu era presente do
seu santo de devoção. Devoção esta que se apresentou quando
Dulce era ainda uma menina.
***
Neste ponto cabe uma pausa para o café.
16
***
Numa manhã clara de céu azul, na volta do mercado, ao
abrir a porta da casa da madrinha, a menina Dulce encontrou
jogado no chão uma gravura de Santo Antônio. A garota pegou
a imagem atenta ao olhar protetor do jovem que carregava
o menino Jesus. A madrinha percebendo seu encantamento
lhe deu a gravura. Gravura que lhe acompanha até hoje,
devidamente emoldurada e exposta no seu pequenino altar.
***
Xícara depositada na mesa, voltemos.
***
Com o consentimento da madrinha e sob a bênção do
irmão mais velho, a jovem casou-se com o seu Antônio. A
casa construída junto aos irmãos trouxe ela ao retorno da sua
gente, sua origem, suas referências.
Agora sim, ela tinha seu próprio lar. Ao lado do marido,
Dulce foi tecendo sua felicidade. As filhas vieram, uma após a
outra. Duas meninas bordadas com mãos de afeto e capricho
nos cuidados.
E seus cuidados transcendiam os muros da casa. Dulce
servia doses de carinho aos sobrinhos, vizinhos e a qualquer
um que seus olhos enxergassem necessidade. Fosse a vizinha
que, solitária e doente precisasse de ajuda, fosse o pedinte que
batendo na sua porta necessitasse de um prato de comida, lá
estava ela, pronta para ofertar um casaco, uma palavra, uma
mão amiga.
As crianças da vizinhança esperavam o presente certo na
noite de Natal – Presente da tia Dulce! –, embrulhado com
laços de carinho. Na Páscoa, os chocolates eram esperados
pela garotada.
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Na família, Dulce sempre foi a irmã chamada para
conter os ânimos, a irmã que levava tranquilidade, conforto,
ponderação. A irmã que todos sempre puderam contar.
Contar são histórias que se perdem na passagem do tempo.
O tempo apressado levou o seu Antônio, o marido com quem
conviveu por exatos vinte e seis anos. Mas o mesmo tempo
que leva, também se encarrega de trazer. E ele lhe trouxe vida
embrulhada em mantas. Dois netos: uma menina e um menino.
A vida se ajeita!
Hoje, Dulce, já aposentada, continua empunhando sua
bandeira: “Onde estiver seja a paz”. Continua reverenciando
seu santo. Continua derramando seu olhar caridoso para
além dos muros da sua casa. Ela ainda oferta atenção, ainda
presenteia crianças da vizinhança, ainda leva para outros suas
palavras como o doce do seu nome.
As palavras agora viajam para além, através de seus
escritos. Após anos engavetando seus poemas, permitiu que
eles corressem soltos.
Asas ao vento, Dulce toma fôlego e recita o que a vida
lhe mostra. Seus olhos trazem as marcas do tempo ido, mas a
doçura da menina que definiu seu nome continua a mesma.
Ela saboreia a vida acreditando que o Amor ainda é a melhor
e a maior de todas as bandeiras.
***
Sempre há tempo para um bom café...

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Adriana Oliveira
Feminista e Militante da Classe Trabalhadora
Educadora - Especialista em Educação Infantil
E-mail: drisoliveira6@gmail.com

Beatriz, nutrindo a vida com o alimento do


afeto

Beatriz
Mulher, negra, de corpo franzino, de fisionomia e voz
delicada, de personalidade forte, hora raivosa, hora
alegre, de vida humilde.
Intensa na vontade de viver, sempre positiva, com os
pés no chão, de sabedoria extraordinária.
Driblou a morte ao reinventar a vida, amante da terra,
das plantas, das letras e das pessoas.
Beatriz inspirou muita gente com a sua forma de viver
do centro à periferia.

Beatriz Gomes da Silva nascida em 1938 no município de


Catende, em Jurema, na Mata Sul de Pernambuco. Traz em
sua trajetória as marcas da realidade da época, para meninas
que viviam em situação de extrema pobreza. O dia e mês de
aniversário, 30 de maio, foram escolhidos por ela para retirar
a certidão de nascimento e seus documentos de identificação.
Datas que ajudei a escolher. Beatriz, não cansou de mostrar

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sua força de mulher. Negra, intensa, guerreira, honesta,
com uma capacidade extraordinária em se reinventar, na
busca incessante de sobreviver à fome e maus tratos. As
linhas seguintes contam um pouco dessa mulher a partir da
lembrança de suas falas. Nesses relatos ela era tomada pelo
desejo de revisitar o lugar de onde saiu e nunca mais voltou.
Queria saber se a situação daquele lugar ainda era a mesma,
ou tinha mudado, se reconheceria o lugar caso voltasse lá.
Esboçou a vontade de reencontrar algumas pessoas, saber se
viviam por lá, se eram vivas.
Minha mãe nos momentos de convivência contava sua
história de vida, de quando era criança, de como era difícil
sobreviver em contextos tão miseráveis. Logo cedo perdeu
sua mãe e foi dada pelo pai aos padrinhos. Daí começou sua
trajetória de luta pela sobrevivência. Conta que a relação
estabelecida pela esposa do padrinho era sempre pautada
pela violência física e pelos maus tratos. Por vezes acordou
apanhando porque estava dormindo com os quadris pra
cima e não tinha roupas íntimas. Seus cabelos crespos, pouco
maleáveis eram porta de entrada para os maus tratos na hora
dos “cuidados”, levava puxões e pancadas com a escova de
madeira. A fome também esteve presente e acompanhou todos
esses rituais.
Moravam em um sítio, numa pequena casa de taipa, de
chão batido. O alimento era escasso, e os adultos, geralmente
mulheres, os guardavam em um cesto de palha preso na
madeira do telhado. Era a forma de assegurar que nenhum
bicho da mata adentrasse a residência para comer. Um outro
motivo possível, não explícito, talvez fosse essa forma de
controlar o consumo e não deixar o alimento tão acessível,
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correndo o risco de ser consumido pelas crianças de uma só
vez.
Beatriz contava que muitas vezes saciou a fome nas árvores
frutíferas em sítios da vizinhança, nessas ficava horas, lhes
servindo de abrigo e fonte de nutrição. Por vezes passava o
dia subindo em árvores para se esconder e comer. Embora ao
retornar para casa fosse punida com o castigo físico.
Nesse tempo os adultos tinham o hábito de sentar na frente
das casas ao escurecer, tomar café e conversar, as crianças
sentadas no chão ouviam essas conversas. Ela ouvia falar em
Recife como um lugar bom de se viver. Ainda menina disse
que ia fugir para esse lugar. E assim fez, chegou ao Recife aos
11 anos de idade, trabalhou como escrava doméstica muitas
vezes só pelo alimento e moradia.
Como chegou a Recife não sabemos, ela nos contou que
morou em casarões no centro da cidade, nos bairros da Ilha do
Leite e São José, trabalhando como empregada doméstica até a
vida adulta. Com muito esforço foi morar numa pensão na Rua
da Guia, e conseguiu abrir um pequeno comércio que vendia
almoço e bebidas aos estivadores, moradores das pensões e
marinheiros que chegavam nas embarcações. Lá conheceu meu
pai, ela já tinha uma filha e com ele teve dois filhos. E por isso
teria que mudar de moradia. Foi aí que conheceu a periferia
de Recife e veio morar no Morro da Conceição, onde nasci.
Para quem deixou de morar em casas de patroas e numa
pensão, vir para o Morro da Conceição foi escrever uma
nova página da vida. Passou a viver em sua casa com seu
companheiro e seus seis filhos. Com tantas crianças para
alimentar, trabalhou carregando água, tendo dias de carregar
35 latas d’água na cabeça subindo e descendo escadarias.
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Começava o trabalho às 04hs e ia até às 07hs e 30ms. Abastecia
casas da vizinhança com água do chafariz de dona Amélia.
Desse tempo, lembro dos cafés das manhãs em nossa humilde
casa, quando chegava do trabalho com o apurado, mandava
os filhos mais velhos pegar o saco de pano, conhecido como
mochila de pão e comprar pão e margarina bem-te-vi. Com a
chegada do abastecimento de água da COMPESA, precisou
mudar de trabalho e foi negociar com sapatos nas feiras livres
das cidades de Serinhaém e Camela.
Com o falecimento do meu pai, minha mãe buscou novas
formas de viver. Decidiu não mais se relacionar amorosamente,
não queria estar com outro homem. Dizia temer acontecer
alguma desgraça com um de seus quatro filhos homens. Outra
decisão importante foi se envolver nas lutas comunitárias
para melhorar as condições de vida na comunidade. Foi aí
que começou a participar das assembleias do Conselho de
Moradores e nas ações pela melhoria das políticas públicas.
Com sua vida marcada pela falta de moradia, algo que a
incomodava demais, passou a participar das organizações
comunitárias para lutar pelo direito à moradia.
Em minhas memórias afetivas lembro bem da minha mãe,
bastante entusiasmada com o projeto de reforma e melhoria
das casas em parceria com a Companhia de Habitação Popular
de Pernambuco – COHAB. Beatriz tinha um prazer imenso em
levar para as pessoas aquilo que era resultado de um anseio
e luta coletiva. Ela se ocupou na Comissão de Habitação
de realizar a entrega de materiais de construção, que iriam
melhorar as condições de moradia no Morro da Conceição.
Todo o caminhão que chegava ela seguia com o motorista
para as casas dos moradores levando aquela conquista. Eu,
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ainda adolescente, acompanhei esse processo, pois eu fazia
a leitura dos endereços, nesse tempo minha mãe ainda não
sabia ler e escrever. As duas descalças, era um hábito de
nossa família, inclusive éramos chamados por alguns amigos
de "família pé no chão”. Era nossa forma de estar no mundo,
sempre com os pés descalços. Levar material de construção
para cada família nos possibilitou um conhecimento maior de
nossa comunidade, tanto da perspectiva geográfica quanto da
compreensão do que é viver em comunidade.
Quando minha mãe se ocupava com as necessidades
coletivas me possibilitava, enquanto adolescente, o contato
com a luta de classe, assim começo minha militância. Com
ela me influenciando positivamente para participar de lutas
por melhores condições de vida. Assim, conheci a Juventude
Operária Católica, movimento social organizado por jovens, no
qual éramos motivados a exercer a autonomia e protagonismo
ao conduzir nossas vidas.
Minha mãe se queixava de não saber ler e escrever, isso
a deixava angustiada, por vezes escutei de sua boca que se
soubesse ler e escrever teria sido uma advogada. Eu cresci
ouvindo que filho de pobre para ser alguma coisa na vida
precisa estudar. Essas falas me trouxeram reflexões profundas
em diferentes momentos da vida, me levando a tomar decisões
importantes, uma delas foi seguir estudando. Com os filhos
já criados ela resolveu dar um ponto final a sua angústia,
foi estudar quando já tinha mais de 60 anos. Na conclusão
do curso de Educação de Jovens e Adultos - EJA no Colégio
Padre João Barbosa, foi homenageada por sua perseverança
e compromisso.

23
Diante de tantas adversidades, com muita sabedoria Beatriz
alimentou e criou seis filhos com muito amor. Lembro com
carinho dos rituais de alimentação, sentávamos numa roda em
volta dela, com um único prato nas mãos, ela nos alimentava
com bolinhos de feijão com farinha e molho. Ela modelava
com as mãos, ficava ali por alguns segundos realizando os
movimentos, ao terminar fazia um furo no centro do bolinho com
o dedo indicador colocando o molho ou algum tipo de proteína,
quando tinha. Colocava um bolinho na boca de cada filho(a), eu
ficava observando o movimento dos dedos dela, aquele ato me
enchia de satisfação. Meu sentimento era de orgulho da minha
mãe, uma heroína, sempre há vi dessa forma. Lembro como se
fosse hoje a forma que o bolo de feijão ganhava. Costumo dizer
que minha mãe nos nutria de afeto ao nos alimentar. Nos dias
em que ela tinha poucos recursos, com toda sua amorosidade
preparava o alimento nos ensinando a fazê-lo render, para que
todos(a) pudessem comer. Me vem à memória a “Malassada”,
uns bolinhos feitos com ovos e farinha que ela adicionava na
sopa ou em carnes. O pirão de ovos também esteve presente na
culinária de sobrevivência. Um dia cheguei do colégio e minha
mãe me esperava para almoçar, nesse dia ela só tinha para me
oferecer banana verde cozinhada. Bananas que cultivamos no
quintal. Com muita graça ela me preparou o espírito para comer
aquele único alimento, tão esquisito.
Essas vivências foram determinantes para minha vida
pessoal e profissional e a forma como vejo o mundo. Meu
sentimento é de gratidão a essa mulher que, com todas as
dificuldades que enfrentou, tendo tão pouco estudo e recursos,
sempre foi um símbolo de força, garra, determinação e
sabedoria e fez o seu melhor para criar e educar seus filhos.
24
Bernadete Silva
Nascida no bairro da Torre, Recife-PE
Graduada em Letras, pós-graduada em
Políticas de Promoção da Igualdade Racial na
Escola. Contadora de histórias.
@ bernasilva13

Dona Blandina, sábia mulher

Ela teve poucas oportunidades de estudo, da mesma forma


que tantas outras mulheres. Mas isso não lhe tira o mérito
de sábia mulher. Sua leitura de mundo foi de uma sapiência
ímpar. Sua história escrita com as letras da determinação.
Não teve o amor de mãe e por isso, no pensar dela, não tinha
amor para dar aos filhos. Assim me confessou um dia. Ora,
para se redimir daquilo que ela chamava falta de amor tudo
que nos fazia era com esmero: a comida de sabor peculiar,
nossas roupas sempre impecáveis e a rigidez no tratar para
que não seguíssemos por caminhos errados. Tanto cuidado
não simbolizava amor?
Escrevendo e lendo ou não, o pau comia. Sim. Apanhávamos
por tudo e por nada. Melhor dizendo: por tudo mesmo. Éramos
sete crianças cheias de energia e trelas. Quem dá conta de tanta
desobediência sem perder as estribeiras? Desconheço a dona
de tal proeza. E isso não cabia à nossa mãe.

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Sabia como ninguém preparar um sarapatel, um feijão
para o dia a dia, um doce de mamão, uma canjica. Sábias mãos
as suas. Plantavam rosas que enfeitavam seus jardins muito
bem cuidados. Pessoas especiais ganhavam rosas ou outra flor.
Tive a honra de receber um cacho de uma flor vermelha que
ela tinha muito ciúme. Também levei carreira porque cheirei
a rosa Amélia, mesmo sabendo que ela se despetalava. Havia
uma plantinha chamada dedo do cão. Dizem que o leite dessa
planta cegava. Ela o utilizava para colar seus bisquis quando
quebravam. Não lhe faltava o providencial pé de pimenta,
sempre pronto para espantar os olhos grandes. Das pimentinhas,
fazia um molho bastante apreciado que, de tão picante
provocava tosse, lágrimas, coriza. Era violento, mas ia bem
com o peixe que ela muito caprichava. Linda sua plantação de
amendoim, tomate, seu pé de dendê, o abacateiro, o mamoeiro, o
pé de carambola que nos rendeu deliciosos sucos. Ainda resiste
o laranjal, o pé de pitanga e o de acerola.
Doces recordações e a delícia de colher uma a uma para
um suco de sabor saudoso e saudável.
Suas sábias mãos tinham intimidade com a terra. Seu saber
era natural. Seus livros foram as vivências e necessidades
diárias. Assim foi transmitindo seus conhecimentos aos filhos
e filhas. Seus segredos de beleza não escondia.
Devia aos famosos leites de Rosa e de Colônia o vigor e
suavidade da pele do rosto. Da vaidade não fugia. Um bom
perfume, brincos, batom discreto e unhas pintadas. Quando
os fios grisalhos apontaram nos seus cabelos, não hesitou em
pintá-los, apesar de nunca deixar de citar a idade. Em outro
momento deixou que os cabelos brancos aparecessem, sem
deixar de se envaidecer. Viveu da forma que melhor lhe coube
26
cada uma de suas fases. Ouvi muitas vezes: – Não queira
nada que não seja fruto do seu suor. Para que ensinamento
melhor? Seu marido é seu emprego. – dizia com veemência.
A segurança, a autonomia que aparentava não ter e teve já
nos ensinava a buscar. A independência que tanto buscava,
refletia em suas palavras. Era livre para falar. Emitia palavras
contundentes, abrigava no peito, por outro lado, um grande e
acolhedor coração. As mãos estavam sempre abertas a servir.
Acolhia os pequeninos. Tinha como certo colocar um pinto
para piar na boca daquelas crianças cujos pais se angustiavam
porque tardavam a tagarelar. Visitas a enfermos, repartir
o pão com o irmão, ouvir os que precisavam de ouvidos,
aprendemos com ela o que muitos aprendem na religião.
Também nos guiou pelos caminhos da igreja, embora não
fosse frequentadora assídua. Viveu o Santo Evangelho sem
ser presa a qualquer denominação, pois só ia à igreja em datas
específicas. Era devota de Nossa Senhora do Carmo e de Nossa
Senhora Aparecida, que carinhosamente chamava “minha
santa preta”. Tantos afilhados e filhos adotados. Órfãos, filhos
e filhas de mães ausentes buscavam o seu aconchego e nós não
nos importávamos em dividir seu amor. Não faltava a quem
quisesse e precisasse. Ela era de todos(as).
Sábia era dona Blandina, sem ter concluído o antigo
primário, sem ter entrado em uma universidade, sem ter tido
acesso a muitos livros e jornais. Mas era sua vida uma escola
e muito ensinamento espalhou por aí. Não passou pelas
academias de dança, mas, no carnaval, era ela a “madeira que
o cupim não rói”. Levantava os braços, entrava nos blocos,
esquecia os problemas e se divertia a valer. Não precisava
brincar os três dias. Buscava apenas se inebriar de alegria,
27
porque também conhecia as amarguras e não desejava
mergulhar nelas sem cessar.
Era sábia dona Blandina porque se sabia imperfeita e nem
por isso deixava de viver. Aí beirava a perfeição que nenhum
humano possui.
Guardava com carinho velhos bilhetes e cartas de amor,
assim como lembranças de inesquecíveis amigas que o tempo
separou, mas não apagou da memória. Estavam não só naquela
caixinha querida, como no escondidinho do coração, melhor
lugar para guardar e proteger boas lembranças. Era letrada, sim.
Também escrevia suas bem traçadas linhas para sua comadre
que residia em São Paulo e outra amiga que foi morar longe. O
carteiro, que trazia as tão esperadas correspondências, também
se transformou em amigo. Dona Blandina era dada a novas
amizades. Sua espontaneidade atraía as pessoas. Suas piadas
bem contadas arrancavam gargalhadas dos tantos ouvintes. No
meio da conversa uma ou outra. Nada planejado. Era muito
engraçada. Essas boas lembranças também serviram de bálsamo
quando partiu para a morada eterna.
Sua voz afinada bem entoava canções de Dalva de Oliveira,
Anísio Silva, Núbia Lafayette que também passei a admirar e
gosto de cantarolar. Não acompanhava o cavaquinho de papai.
Preferia cantar a capela durante os afazeres diários. Um dia bateu
a ciumeira e cortou as cordas do inseparável cavaquinho de
papai. Virgem Santa! Foi um Deus nos acuda. Não me recordo
de papai tê-la provocado outras vezes. Dona Blandina também
era conhecida pela braveza! Quem quisesse que brincasse. Disso
todos sabiam. Mas não tinha jeito. Era muito amada.
Foi com seu trabalho de excelente lavadeira que ajudou papai
a nos alimentar e custear nossos estudos. Foi com seu dinheiro
28
suado que me presenteou com a mais bela roupa. Nem seda, nem
cambraia. De um tecido simples que muito alegrou meu coração,
pois eu precisava fazer a difícil escolha entre o livro de Ciências
e a roupa para vestir durante as festas juninas. Optei pelo livro
e ela sensivelmente me brindou com um belo conjunto de saia e
blusa, vestimenta esta que dura para sempre na minha mente.
Honrou sua profissão e era a preferida entre tantas clientes. Um
dia, já trabalhando tive a alegria de poder lhe dar um pouco de
descanso. Ela já não precisava trabalhar. Em retribuição a tudo
que fez por mim, pude ajudá-la financeiramente para que pudesse
fazer outras coisas que lhe dessem prazer, mais lazer.
Nada de mãe coruja. Eu a ouvi muito dizer que seus filhos
eram pretos, pobres e feios, mas eram unidos. Defendia-nos
com muita garra, sem alimentar nossos erros. As briguinhas
de crianças foram desaparecendo, porque ela incentivava a
união e fazia de forma que um irmão ajudasse o outro. Ainda
hoje praticamos esse ensinamento.
Não dispensava a cerveja gelada e seu quintal era um
reduto de pessoas chegadas que apreciavam o tempero da sua
comida e sua conversa descontraída.
Às vezes dizia que não queria comemorar seu aniversário
e nem por isso o povo deixava de ir. Um chegava de mansinho,
depois outro, outros e a festa estava pronta.
Era comum encerrarmos o dia das mães e seu aniversário
com o frevo de bloco “Madeira que cupim não rói” e uma roda
de ciranda improvisada. Assim aconteceu quando completou
setenta anos para no ano seguinte ser colhida para o jardim
eterno. Hoje presente no pensamento, no coração, nos seus
ensinamentos, Dona Blandina vive eternamente em tudo que
plantou, especialmente na sabedoria partilhada.
29
Beth Fernandes
Paulistana que adotou Brasília, jornalista, poeta
e produtora cultural. Faz parte do movimento
internacional Mulherio das Letras e publicou
De ponta-cabeça, livro de poesias.
Email: beth5050.bf@gmail.com
@beth.fernand05 |Facebook: beth.fernandes.75

Zezé

Das lembranças da infância, a mais remota vinha do


internato num colégio francês, era 1915. Ali, menina não podia
ficar nua, sequer para tomar banho; então observou que no
reservado do canto havia umas tábuas encostadas à parede.
Escolheu aquele e, apesar de franzina, embora alta para os seus
8 anos, cobriu a banheira com as tábuas, retirou o camisolão de
banho e mergulhou nua na água despudoradamente morna.
A contravenção era pequena para quem odiava a escola,
que compartilhava com a irmã seis anos mais velha. Não dizia
– Ma mère, como era obrigatório falar às freiras. Fazia-se de
burrinha, a Zezé, enquanto observava que as guloseimas que
os pais traziam da fazenda nunca vinham para a mesa do
refeitório. Tanto fez que os convenceu a procurar outra escola.
A mãe fazia questão de as meninas estudarem além das
prendas, que incluíam música, costura e bordado. Vivendo
ora na fazenda de café no norte do Paraná, ora em São Paulo,
por curtas temporadas entremeadas por viagens ao Rio para
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um chá na Colombo e passagens pelo Cassino da Urca, o jeito
era o internato.
Na fazenda, a mãe imperava. Moça criada entre laços e
fitas no Rio de Janeiro, viu-se obrigada a entrar na lida quando
o marido coronel, engenheiro do exército, partia para missões
técnicas ou batalhas nas muitas revoluções que sacudiam o
Brasil no início do Século XX. Administrava a casa grande, o
trabalho dos colonos e se precavia dos ataques de bandoleiros.
Zezé contava que num desses, já noite fechada, a mãe pôs
uma espingarda carregada perto de cada janela do casarão,
outra não mão de Manoel Pretinho, o filho de criação então
com uns 12 anos. Levou as meninas para o quarto, entregou
uma garrucha na mão de cada uma e sentenciou: – Se alguém
entrar aqui é porque me mataram. Vocês se abracem e atirem
uma na outra. Não deixem que peguem vocês vivas: eles fazem
horrores com as mulheres.
Do quarto escutavam os tiros que saiam das janelas e
Manoel dizendo: – Mãe, deixa eu ir chamar os colonos. Sou
preto, eles não vão me ver no escuro. Ela não deixou e seguiu
atirando até o dia nascendo espantar os bandidos e atrair os
colonos, cujas casas eram distantes e por certo haviam ouvido
alguma coisa.
A família estabeleceu-se, para alegria da menina, em
São Paulo. Vieram os estudos de piano e violino; optou pelo
primeiro e foi para o famoso Conservatório. Já mocinha, como
se dizia na época, achou que era hora de trabalhar. Foi a um
jornal, cujo dono era amigo do pai e saiu de lá colunista social.
Quando contou a novidade em casa, o pai a pegou pelo braço,
foi até o amigo a quem agradeceu a oferta: “a menina é muito
nova para trabalhar”.
31
Demitida antes de começar, refugiou-se no piano, nos
livros e nos bailes da Casa de Portugal, devidamente escoltada,
Zezé e a irmã, por um primo mais velho. Ali conheceu o
português de olhos azuis que seria o amor da vida inteira.
Apaixonada, adiou o noivado até a formatura, pois temia que
o moço, imigrante pobre, trabalhador e orgulhoso, impedisse
a continuar os estudos.
Aos 23 anos se casou. Um pouco tarde para o padrão da
época, quando se casavam ainda meninas para toda a vida.
Regra quebrada pela irmã, que se desquitou do marido com um
casal de filhos, mas se viu obrigada, pelo bem dos costumes,
a voltar para a casa dos pais e se dedicar à família até o fim
dos seus dias.
Vida nova. O que fazer com o bife que ele trouxe
cuidadosamente embrulhado em papel pardo? A cozinha
da pensão onde foi morar era cheia de mistérios aos poucos
desvendados pela mulher letrada até se mudar para uma
casinha de aluguel, com o filho que quase lhe custou a vida
no parto. Sozinha a maior parte do tempo, pois o marido
deixara o cartório para ser caixeiro-viajante em busca de subir
na vida. A fazenda agora era apenas refúgio nas revoluções
que se sucediam.
Costurava para fora, de cortinas a vestidos de noiva, para
comprar um pouco de manteiga, peras... Os petrechos de
costura eram cuidadosamente escondidos sob a longa toalha
da mesinha de canto quando o marido retornava das viagens
de trem pelo Estado. Poderia sentir-se humilhado. A música
ficou guardada no armário de partituras feito sob ncomenda.
Os tempos eram outros. De viagem em viagem (e
encomendas de costura secretas) conseguiram economizar: ele
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se tornou sócio do comércio e conseguiram comprar uma casa.
Logo depois, ele a surpreendeu com um piano e, finalmente,
permitiu que Zezé trabalhasse dando aulas, enquanto o marido
estivesse no trabalho, e ganhar dinheiro “para seus alfinetes”,
como dizia.
Teria sido aí que a menina de ideias avançadas para a
época ressurgiu? Filho casado produzindo rebentos atrás um
do outro, cuidava da casa decorada com esmero, preparava
futuros pianistas para o conservatório e trouxe uma neta para
casa para cuidar, ou quem sabe para lhe fazer companhia.
Eram também semanais os trabalhos de caridade com as novas
amigas na igreja do bairro, na maternidade popular. Nas horas
vagas lia ou tocava piano.
A vinda da criança teria acordado sonhos adormecidos?
Zezé se entusiasmou quando a pequena exigia que lhe
ensinasse as letras que o avô lhe mostrava no jornal do dia
e comprou uma cartilha, caderno, livros, muitos livros para
meninas que havia lido em tenra idade e mais outros. Assistia
extasiada e se fazia acompanhar ao cinema, às operetas que
tanto lhe eram caras.
Ao tempo que a menina crescia, Zezé desfilava histórias da
fazenda, da valentia da mãe pequenina e ciumenta a infernizar
a vida do pai. Dizia que se tivesse que investigar o marido o
mandaria embora e ensinava que a confiança era o bem mais
valioso, depois da verdade e do estudo, que representava a
liberdade.
Com a casa cheia de netas, no auge da menopausa, virou
uma generala no comando de crianças e adolescentes. Ensinava
lavar, passar, cozinhar e exigia dedicação ao estudo sempre
com o argumento da independência. Incentivava as primeiras
33
idas ao teatro, aos concertos, à biblioteca, quando seus volumes
já haviam sido devorados. Discutia política, desigualdade
social, planos para o futuro na mesa do jantar delicadamente
dosado para que todos tivessem pelo menos um pedaço da
carne, um docinho de sobremesa. A noite, nos quartos, ajeitava
as cobertas, deixava um beijo na testa de cada um e ia para o
seu lado na cama onde o marido dormia.
Alegrava-se a cada formatura, que merecia um bolo
Pulmann enfeitado com glacê de claras após o jantar e acenava
o próximo passo, sempre com pressa. Adivinhava que a casa
esvaziaria de novo, vigiava de longe os namoros, de perto as
movimentações estudantis. Alertava, tinha medo. Rezava.
Começou a viajar com as amigas do bairro, da Igreja. Com
o marido fez uma excursão pela Europa e se divertia contando
como se fez entender na madrugada londrina e conseguir
carona num carro de polícia para o hotel, sem saber palavra do
idioma local. Foi a Portugal, trocar conversas com as cunhadas,
amizades cultivadas em 30 anos de cartas transoceânicas.
A casa de novo vazia fez Zezé buscar outras rotinas. Entre
as viagens pelo Brasil, e o declínio no interesse pelo piano,
inventou moda. Comprou um teclado portátil, contratou um
motorista e foi a uma favela do bairro ensinar música para
crianças. Deixou a associação porque viu transações espúrias
entre as damas de caridade, as tristemente famosas “senhoras
de Santana” e seus rosários. Crochetava enxovais para bebês
de uma maternidade pública. E lia, e tocava piano e esperava
visitas para conversar.
Só parou com as viagens porque o seu velho, agora em
casa, começava a dar sinais estranhos. Ele mesmo o percebeu
e passou para ela todo o controle financeiro da família. Pela
34
primeira vez via os talões de cheques das contas conjuntas,
sabia das poupanças, dos poucos investimentos para garantir
a velhice. Já na casa dos 80 anos, decidiu conversar com
gerentes de banco e, quando um certo presidente confiscou as
poupanças, foi à luta e conseguiu recuperar tudo. Diversificou,
comprou dólares e assumiu, finalmente, o controle.
Foi aí que a eleitora assídua desde o primeiro voto
feminino, em 1932, decidiu que não mais compareceria às
urnas: – Estou caduca, elegi esse bosta! Contava indignada.
Gostava de conversar. O velho já estava ausente de
consciência, o filho era de pouca prosa. Restavam as visitas de
uma ou outra neta. Era quando falava do seu espanto sobre
tudo que havia visto no decorrer da vida.
Mas, gostava mesmo era de falar sobre quanto a vida das
netas era diferente. Dizia que depois da pílula, as mulheres
puderam ter liberdade, sem o medo de engravidar – e lembrava
que só teve um filho por risco de morrer. Não dizia, mas
deixava ver nos olhos verdes o desejo de conhecer o prazer.
Certa vez, envergonhada por não saber o que fazer com um
creme vaginal receitado pela ginecologista, confessou que não
conhecia o próprio corpo. Nunca havia se tocado.
Quando uma das netas contou que havia acabado o
casamento, disse que não se surpreendia, pois não havia visto
amor entre eles. É muito amor para levar adiante a convivência,
que obriga a tantas renúncias. Não, não tinha arrependimento,
sempre foi feliz com seu velho, mas as mulheres de agora
conhecem muito mais coisas...
Admirava as netas chegando e partindo em viagens de
trabalho, vestindo o que gostavam. Algumas se casaram;
depois se divorciaram e cuidaram das próprias vidas. E Zezé
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sentia prazer em ouvir as histórias, saber dos namorados, das
aventuras. Do seu jeito, ainda era a generala que todos ouviam,
mesmo quando uma queda a colocou em cima da cama.
Relutava em aceitar ajuda, desobediente, queria comandar
a casa, quando seu espaço tinha se resumido ao quarto e o
banho de sol no quintal. Seu velho havia partido, mas ela o via
em sonhos que contava comovida. Durante seis longos anos
voltou a depender de outros para as mínimas coisas e isso a
maltratava até uma manhã, às vésperas do 96º aniversário,
em que não acordou.
As netas cuidaram de tudo, da roupa que ela tinha
guardada para a ocasião, do caixão “sem aquelas flores
amarelas, nem mortalha, pelo amor de Deus”, como ela sempre
pedia. Independentes, elas a levaram compungidas, mas
aliviadas, para o lado do seu amor. No dedo, o anelzinho de
ouro, presente do pai que ela nunca deixou de usar.

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Carla Gisele Batista
Vive em Recife. Historiadora com mestrado em
estudos sobre mulheres, gênero e feminismo
pela UFBA.
E-mail: carlagisele-batista@gmail.com

Ascendentes árabes

Minha avó, Elmosa Nemer Saad, imigrante síria, foi casada


com o imigrante libanês Antonio Saad. Ele morreu quando eu
era muito pequena, por isso não tenho lembranças suas.
Elmosa, que nunca aprendeu a falar o português, com o
tempo foi esquecendo o seu idioma materno. Se comunicava
numa linguagem particular, entre um e outro, que só os
mais próximos compreendiam. Os da cidade, se divertiam
preconceituosamente. Costumava apertar o nosso queixo com
seus dedos de unhas roídas, pintadas de vermelho, e dizer como
demonstração de afeto "eayni, bem, eayni!". Meus olhos, bem,
meus olhos! Sempre tinha algum dinheirinho para nos dar.
A não ser para missas, festas familiares ou da colônia
árabe, como casamentos, quase não saía de casa. Foi uma viúva
circunspecta. Quando estava conosco no quintal adorava deitar
no chão, vestida, para tomar um pouco de sol e receber o calor
da terra.

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Tinha uma costureira em São Paulo, para quem enviava
cortes de tecidos ganhados de presente ou comprados, as
medidas, e esta lhe fazia vestidos de modelos parecidos.
Mudavam as estampas, cores e detalhes. Um com bolso, outro
sem. Botões aqui, uma gola rendada ali. Era o que ela gostava.
O seu pequeno luxo.
Pintava os cabelos de preto, era vaidosa. Com a idade
adquiriu joanetes. Certa vez foi nos visitar em Brasília e
chegando em nossa casa tirou os sapatos incômodos. Na hora
de voltar para Formosa foi impossível calçá-los novamente,
o que lhe causou um acesso de riso que nos alegrou por um
bom tempo. Foi lindo.
Moía o quibe numa grande mesa de madeira, direto para
uma bacia, da qual o tirávamos cru, amassávamos no prato
derramando azeite, espremendo limão, para pegar com as
mãos e o pão. O melhor quibe de toda a minha vida. Nunca
experimentei nada parecido.
Levamos amigas para passar um final de semana, ou
era um feriado prolongado, em Formosa. Depois da festa da
noite resolvemos ver o sol nascer na serraria, um hábito da
juventude local. Havia uns troncos de madeira onde a gente se
sentava e ficava por ali, com uma vista ampla do amanhecer.
Quando voltamos para casa estavam todos acordados e
preocupados. Nessas horas sempre se pensa o pior. Muita
cobrança e explicações, tudo ficou esclarecido. Minha avó
então começou a falar alto e me repreender. Eu, adolescente,
querendo afirmar a minha liberdade, respondi. Demorei anos
para compreender que aquela era uma reação natural de quem
tem afeto, após período de tensão e medo, como deve ter sido
aquela madrugada para os mais velhos. Perdi a oportunidade
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de ficar calada, dar um abraço e uns beijos nela, “tô aqui vó,
tá tudo bem!”.
Dona Elmosa morreu há bastante tempo. Todos os dias
penso em como a minha vida seria melhor se ela ainda estivesse
viva e a vejo na minha frente dizendo "meus olhos, bem, meus
olhos!".
Saada Saad Simão, mais conhecida como tia Lili, era a
irmã mais velha da minha mãe. Casou-se com Nagib Simão,
com quem dizia ter sido muito feliz. Assistiam televisão de
mãos dadas e nunca ouvi uma conversa em tom elevado entre
eles; foram sempre amorosos um com o outro. Não tiveram
filhos/as.
Ela foi uma segunda mãe, às vezes primeira, para nós.
Quando entramos na juventude ela parecia uma amiga minha
e de minhas duas irmãs. Sempre companheira, animada e
alegre, se entrosava nas nossas conversas.
A casa deles era vizinha à de minha avó. Quando
mudamos pra Brasília e íamos passear em Formosa, nós três
nos hospedávamos em sua casa. Num carnaval, juntamos
dinheirinho de mesada para comprar um lança perfume e
arrumamos na bagagem, dentro de um pacote de absorventes.
Ao chegar, nos esperava um delicioso almoço. Tia Lili gostava
da mesa cheia de gente e era exímia na cozinha árabe. Sua
lasanha também era famosa. Nos fartamos, e, ao ir pro
quarto arrumar as nossas coisas, nos deparamos com o frágil
vidrinho de lança perfume partido. Decepcionadas, tentamos
aproveitar o que fora absorvido. Fechamos a porta e ficamos
cheirando os modess. Depois da farra gastronômica, fora do
clima a que se destinava, minha irmã mais nova começou a

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passar mal, vomitar e desmaiou. Tia Lili entrou no quarto,
"o quê está acontecendo aqui???”. Foi tenso!
Eu sempre tive uma atração atávica por pés de galinha.
Sabedora, tia Lili costumava esperar as minhas visitas pedindo
aos vizinhos que, ao matarem galinhas, os guardassem.
Quando eu chegava, tinha feito uma panelada de pés ao
molho pardo, ou cabidela, e eu ficava a tarde inteira chupando
ossinhos enquanto a gente conversava na cozinha. Um êxtase.
Certa vez ela me apresentou a filha de uma vizinha que
também se chamava Carla. Era uma garotinha que ficou amiga,
mesmo eu tendo quase o dobro da sua idade. Toda vez que
eu ia pra Formosa ela ia para a casa de tia Lili e ficava por lá
comigo. Íamos comprar picolés, jogar, assistir televisão... Tia
Lili uma vez pensou alto “não sei porque Carlinha gosta tanto
de Carla, ela é tão sem graça!” (kkkk).
Professora concursada no Distrito Federal e em Goiás,
minha tia Lili gostava muito de estudar. Foi diretora de escolas
e chegou a secretária de educação do município de Formosa.
Era severa, rigorosa, mas doce. Antes disso, no início da vida de
casada com tio Nagib, nos contavam que morou em garimpo.
Adorava ler e trocamos muitos livros. Ficávamos nos
sofás da sua sala deitadas, lendo por horas sem fim, às vezes
interrompidas por alguém que passava e a porta aberta
convidava a um dedo de prosa. Coisas de cidade pequena.
Emprestei pra ela a biografia da Silvia Plath que havia me
marcado profundamente. Ela dizia com a testa franzida “não
consigo entender porque ela se matou...”.
Tia Lili queria que todas as pessoas se casassem. Dizia que
era porque tinha sido muito feliz no seu casamento. Quando eu

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e certo rapaz resolvemos morar juntos, mobilizou uma viagem
de carro a Recife para conhecer meu companheiro.
Ela e tio Nagib adoravam viajar e o faziam de automóvel,
com barraca. Uma vez fui passar um carnaval com eles e um
casal de amigos na beira de um rio, pescando. A barraca era
de dois quartos e eu ficava no deles, bem apertada já que os
dois eram grandes e gordinhos. Não foi muito confortável e
jamais quis repetir a experiência de acampamento. Das rodadas
de baralho nunca nos cansamos. Era delicioso com café e pão
de queijo.
Eles tinham um sítio perto da cachoeira do Itiquira e era
muito bom ir pra lá. Lembro de estarmos à noite deitados em
volta da fogueira olhando as estrelas no céu e conversando.
Quando tio Nagib morreu ela se desfez do sítio. Foi quando
começou a ficar triste e às vezes amarga. Seu olhar perdeu o
brilho. Talvez o jardim da casa fosse o retrato desse desconsolo.
Não queria que ninguém palpitasse e iam crescendo rosas e
outras plantinhas sem nenhuma ordem, selvagemente. Dizia
que era assim mesmo que gostava.
Ela era minha madrinha, porém acho que minha irmã
mais nova era o seu xodó. Família é assim: sempre achamos
que gostam mais do outro/a irmão/ã que da gente. Quando
essa irmã foi à Turquia trouxe para tia Lili cds de músicas
árabes que ficávamos ouvindo na sala, sonhando com nossos
ancestrais em tendas atapetadas no meio do deserto. Mas tia
Lili gostava mesmo era do Richard Clayderman. Afe!
No cerrado, cajueiros e frutas são diferentes dos do
Nordeste. Raquíticos. As frutas parecem as daqui quando estão
começando a nascer e a castanha se sobressai avolumada. Na
paisagem ocre, as frutinhas se destacam em cores vivas. É fácil
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ver as maduras. Fomos pro mato apanhá-las, com tia Lili e tio
Nagib. De repente demos por falta de tia Lili. Começamos a
chamar por ela e procurar, sem nos afastarmos muito uns dos
outros. Nada... Pareceram intermináveis as horas de angústia
até que, ao cair da tarde, chegou um rapaz montado a cavalo
para avisar que ela estava na fazenda de seu fulano de tal. Ao
se perder, caminhou até avistar esse abrigo. Fomos buscá-la,
aliviados.
A este susto, na minha cabeça de criança se somou uma
questão: "como aquele rapaz tinha nos encontrado no meio
do mato? Como tinha chegado até onde estávamos? Será que
tia Lili, ladina - palavra que ela adorava usar -, tinha alguma
noção do lugar para explicar a ele?”.
Essa dúvida se somou a outra acerca de meu tio Tufi, irmão
de Lili. Conto a estória: meu avô, Antonio Saad, tinha ido para
a fazenda e saiu a cavalo. Como não retornou do passeio,
o caseiro acionou a família. Foi tio Tufi quem o encontrou,
embaixo de uma árvore. Ele se sentiu cansado, ou se sentiu
mal, tirou o arreio do cavalo e se aconchegou ali, onde morreu.
Para uma criança, aquelas terras pareciam infinitas. Ficava
curiosa para saber como meu tio tinha chegado até o pai. E
sobre qual sentimento espantoso lhe veio ao encontrá-lo.
Sumaia. No fim da vida, minha avó Elmosa ficou internada
em um hospital de Brasília e minha mãe, a filha mais nova, foi
sua cuidadora. Voltou um dia para casa trazendo uma moça
que era enfermeira e também precisava de cuidados.
Meus pais alugavam quartos nos fundos para aumentar
a renda doméstica. A moça ficou acamada em um deles.
Lembro das duas conversando, rindo. Minha mãe a acolheu e a
animava à saúde. Nós acabávamos por ouvir as conversas dos
42
adultos atrás das portas. “Ela não vai mais poder ter filhos”,
diziam. Usava uma bolsa de colostomia. Só muito mais tarde
fui entender que fizera um aborto e fora acometida pelas
consequências da clandestinidade. Minha mãe cuidou dela
como de uma filha amada.Talvez esse fato, inconscientemente,
tenha também motivado a minha militância em defesa do
direito ao aborto, da maternidade voluntária.
De tia Lili, e do meu pai, acredito que aprendi o gosto pela
leitura. A necessidade de ler todos os dias. Não me lembro de
ver a minha mãe com um livro nas mãos. Posso estar enganada
nas minhas recordações. Sempre muito bonita e elegante, ela
era uma mulher com preocupações fúteis, aparentes. Roupas,
sapatos, salões de beleza, o que os outros vão pensar. Mas
dela, talvez tenha aprendido alguma rebeldia para, inclusive,
sair de seus domínios e me lançar a alguns voos pelo mundo.
De todas elas aprendi formas de amar e desamar.

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Dilma Barrozo
Carioca de Campo Grande. Trago comigo a
resiliência do meu pai e a fé da minha mãe.
Católica por formação, espiritualista por
decisão, saboreio cada momento da vida como
uma grande bênção. Ser professora foi uma
decisão desde menina, ser poeta e escritora um
acontecimento revolucionário da maturidade.
Estudar e ler muito são os caminhos que
fizeram de mim essa mulher que escolheu usar
sua voz e sua palavra para cantar a esperança, a
liberdade e a vida.
@dilmabarrozodb

Raízes de Maria

Maria, é a ela que reverencio


entre todas as raízes
a maior, a que me finca à vida
me ensinou a acreditar e a ser verdade
a me curvar se preciso
mas a me erguer sempre
diante de mim mesma
e de todas as outras

O cheiro do café faz minha mente voar e virar menina...


sou tão pequena que, pra alcançar o armário, fico na ponta
dos pés. Ansiosa, tiro o galinho de crochê que cobre o bico
do bule, viro uma boa quantidade na caneca e vou engolindo
depressa, antes que chegue alguém pra ralhar comigo e dizer
que criança não pode tomar café.
Estou na casa de vovó, minha vovó Maria, dona dessa
cozinha tão limpa e arrumada, é para ela a música árabe que
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toca no rádio. Ela responde por esse casarão de tantos cômodos
e por todas as maravilhas do quintal: uma pequena chácara
repleta de árvores frutíferas, hortas, jardins, valas de girinos,
criação de galinhas, chiqueiro, fartura, alegria, pássaros,
micos, cachorros, gatos, primas e primos, tias, tios, muito
amor e algazarra. Ela está sempre à frente de tudo! Faz, ensina,
repete, explica a todos com método e paciência! E isso deixa a
nós, crianças, empoderadas, por estarmos sempre ajudando,
qualquer que seja a tarefa. Comanda tudo e nada escapa ao
seu olhar atento! Ali ela semeia e suas sementes crescem, sejam
plantas, bichos ou crianças, as criaturas irrompem em total
vitalidade! “Casa da vovó” era nossa palavra mágica, a senha
para a alegria e encantamento, nosso pó de pirlimpimpim! Um
mundo de amor, de portas sem trancas, mesa sempre posta e
farta, portões abertos.
Vovó era infalível nas contas de cabeça e na lida com o
dinheiro, que enrolava em guardanapos de pano ou lenços e
guardava sob o colchão, assim que vovô chegava, ao fim do
dia, e lhe entregava a féria do armazém. E ela não usava papel
nem lápis, não sabia ler as letras, não teve educação formal, ela
própria se educou ao longo do viver, como todos que foram
criados pra trabalhar desde muito cedo... Se isso a limitava não
sei! Ela era a maior em tudo, além de ser a melhor contadora de
histórias da família!! Todas misturando pitadas de sua própria
vivência com uma incomparável criatividade, principalmente
quando reunia os netos pra falar de sua chegada ao Brasil,
após meses dentro de um navio. Suas histórias eram ricas
em detalhes e cheias de exclamações em que misturava o
árabe com o português. Tinha chegado do Líbano menina,
aos 13 anos e era a mais nova dos 6 irmãos que vinham, sob
45
a responsabilidade do mais velho, tentar uma nova vida por
aqui. Ainda em alto mar fora prometida em casamento a vovô,
a quem a família também acabara de conhecer. Sei que aos 14
anos estava casada, com total responsabilidade das atividades
domésticas e, aos 15 já era mãe, deixando cada vez mais longe
a menina do navio. Não sei se ela realizou seus sonhos, se
tinha ambições, não sei se foi feliz, não tive idade nem ideia
para observar isso. Sei que era nosso porto! Sei que fazia de
nós uma família! Onze filhas, um filho, 18 netos, uma incrível
habilidade de ler almas, um maravilhoso talento culinário
e a total disponibilidade de ser por nós e para nós, de nos
carregar e acolher com mãos firmes e estendidas junto às
frutas e verduras que colhia e depositava no infalível avental
de cada dia!
Éramos oito os primos na mesma faixa de idade e vivíamos
uma liberdade plena de criança de subúrbio nos grandes
quintais tão comuns naquela época, repletos de inesperados
tesouros e descobertas. Ali tudo nos era permitido, desde
que ela autorizasse e ficássemos juntos, na velha base do
um por todos e todos por um. Muitas brigas, brincadeiras,
corridas e quedas, joelhos ralados e cotovelos esfolados, mas
nenhum adulto ousava desafiar as ordens de vovó! Se ela tinha
consentido, consentido estava! Íamos atrás dela, debaixo de
suas asas ou sozinhos, em bando, mas sempre respaldados
pelo seu aval, mesmo quando pisávamos nas flores do jardim.
Penso nas manhãs da infância, com as frutas explodindo
nos pés, o cheiro doce no ar. A gente no quintal encharcado,
molhando a roupa e subindo nas goiabeiras, escolhendo as
goiabas amadurecidas na chuva da madrugada! Saudades

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desse cheiro festivo de ingênua alegria! Saudade desse recorte
de um tempo de sonhos.
Foi com força, garra, trabalho extenuante, uma doçura
inigualável que essa matriarca comandou a família! Foi com ela
que aprendi que atitudes ensinam mais que teorias. Com ela
descobri o prazer de cozinhar e, sempre que estou na cozinha,
revisito minhas origens: comida árabe, merchi de repolho,
berinjela e abobrinha, quibe, tahine, tabule...
Espio pela janela do tempo, abraço, beijo e respiro cada
palavra das histórias de que vou me lembrando. O olfato é
invasivo, traz o passado e com ele os sonhos que flutuam sobre
nós. Se já não há mais vovó, se já não há o casarão, que pelo
menos tenhamos à mesa a mesma comida, aquela que conta
a nossa história e me traz a minha vovó. Com ela converso
e continuo aprendendo, falando comigo mesma e para ela,
diante da memória afetiva.
Cozinhar é meu ato de amor. Recheio e enrolo cada folha
de repolho com cuidado, não esqueço de apertar ao final e
arrumar delicadamente na panela. Ouço sua voz e respiro
o cheiro do tempo que me invade a alma. Sou de novo a
sinhazinha da vovó, atenta às lições, enquanto aprende as
misturas e temperos, o ponto exato do cozimento.
Vejo a mesa enorme repleta de gente e comida, ouço as
risadas dos velhos e novos misturadas diante do alimento,
as panelas enormes gastas pelo uso, mas sempre brilhando.
A toalha e os panos de prato bem branquinhos, depois de
fervidos e quarados na grama, mas nada me encanta mais do
que os aromas. Ah, os aromas!! Do azeite, do arak, a cachacinha
árabe, da cebola dourada sobre a lentilha, do alho e do quibe
cru ou frito no fogareiro de carvão, da hortelã, das frutas do
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quintal em grandes bacias de louça, dos doces à base de mel
e semolina...que pena que tudo passou tão depressa!
Olho tantas mulheres à mesa! Minhas tias, mulheres de
raízes sólidas, trabalhadoras, a um só tempo fortes e sensíveis,
arrojadas e sensatas, que lutaram por seus espaços e pelas
coisas em que acreditavam. Excelentes na sua lida, altivas e
resolutas na forma de encarar o mundo. Choro, grito, bronca
e muita reza diante da vida e da morte. Terços, ladainhas e
missas sempre! Não fugir da luta, não ter preguiça, manter a
palavra e a autoestima eram nossos mantras.
Tenho o maior respeito ao tempo cultivado com tanto zelo
pelos meus ancestrais, sou fiel a sua história e devoto a eles
todo o meu amor. Creio que, quando aprendemos com eles,
é como se estivéssemos lhes dando um sopro de vida, que
valoriza e justifica as suas vidas e também as nossas. É a forma
que temos de mantê-los vivos. Salve a sabedoria da minha
avó que fez de mim a mulher que sou: ávida por aprender
e flanar em voos literários à procura de novas histórias, mas
com os pés bem plantados na cozinha, ao modo de D. Maria.
Alguém que ama as histórias, os aromas e sabores de que a
vida é construída.
É nessa memória que moram minhas raízes.

48
Edna Lima
Nasceu e vive no Recife. Pedagoga, futura
Psicopedagoga, apaixonada pela educação
infantil e boleira nas horas vagas.
@ednalima9910
E-mail: eddnalimasantod@gmail.com

Cuidado de vó

Dona Celina é representação de sabedoria, cuidado e amor,


ela é memória viva em meus pensamentos, muitas coisas me
fazem lembrá-la. Perdi minha vó materna aos 3 anos, não
lembro dela, só por fotos de família e não conheci minha vó
paterna, a vó da minha memória é Celina.
Quando fui morar na casa ao lado a de Dona Celina, tinha
2 anos, em 1980. Minha mãe e minha tia depois da morte da
minha vó foram acolhidas por dona Celina e seu Antônio.
Cuidavam da gente como se fossem parte da família deles.
Minha tia era empregada doméstica, só vinha pra casa de 15
em 15 dias. Então minha mãe contava com dona Celina para
tudo, e depois desse convívio, começamos a ir para missa,
minha mãe começou a participar das atividades da igreja, tudo
por influência dela.
Nossa rua até hoje tem muita coisa que foi influenciada
por dona Celina, a solidariedade, costume de ajudar uns aos
outros, a preocupação quando tem alguém doente, sempre tem
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um vizinho que se solidariza, que vai levar uma comidinha,
ou dá um jeito na casa.
Minha mãe faz muito isso e nesses momentos eu vejo
muito da minha velhinha na minha mãe. Ela se foi mais com
certeza deixou sua essência, seu legado.
Lembro que minha mãe quando precisava sair era na casa
dela que eu ficava, com ela e suas filhas, nossas casas eram
separadas apenas pelo muro, lá era a extensão da minha casa.
Eu era uma criança levada, quando as filhas dela reclamavam
das minhas travessuras, ela sempre ia ao meu socorro, me
proteger.
Nas minhas lembranças de infância vem a hora do almoço.
Ela fazia peixe de coco e colocava feijão com farinha em um
prato, e mais dois pratos, em um peixe com molho de pimenta
para ela, no outro o peixe sem pimenta para mim e meu irmão.
Sentávamos em banquinhos, Dona Celina fazia bolinhos de
feijão molhava no caldo do peixe e dava pra gente, depois
desfiava o peixe para tirar as espinhas para não nos machucar.
Quando eu e meu irmão Edson ficávamos doentes, lembro que
ela sempre nos dava um banho com chá da folha da Colônia
para baixar a febre, e quando eu estava com olhado minha mãe
sempre pedia para ela me rezar. Eu achava superengraçado
ela rezando e passando o galho de Pião em minha face, fazia
cócegas, mas era uma sensação muito boa.
Ela era a mãe da rua Aratuba, no bairro Casa Amarela, no
Recife. É uma rua que começa larga e ao final vira um beco, a
casa de dona Celina e a minha era na parte do beco. Na época,
nos portões não tinham cadeados, tínhamos livre acesso às
casas, e a casa da minha veia era muito acolhedora. Ela e o
esposo Sr. Antônio, que eu chamava de Totonho, e seus filhos
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também eram muito acolhedores. Eu ficava orgulhosa quando
saiamos para a igreja e quando perguntavam quem eu era e
ela respondia é minha neta, meu coração se enchia de amor.
Sempre disposta a ajudar a todos, se tivesse um vizinho
doente ela logo corria pra fazer um mingau de cachorro (caldo
preparado com alho, pimenta do reino, farinha de mandioca,
água e sal), para o doente recuperar as forças.
Quando eu estava com 6 anos, no ano de 1984, eu e minha
família tivemos que nos mudar, a casa que morávamos era
de aluguel e o dono pediu. Fomos morar na rua Vasco da
Gama, no mesmo bairro, foi tão estranho não ter ela perto,
era horrível não poder vê-la todos os dias. Sempre que dava,
minha mãe nos levava, a mim e meu irmão, para passar o dia lá.
Minha mãe conta que, Seu Antônio fez uma promessa a nossa
Senhora da Conceição para nossa família voltar a morar na rua
Aratuba, e, graças a Deus e a nossa Senhora deu certo, depois
de 9 meses voltamos para nossa amada rua. Agora tinha três
casas nos separando, mas nossas famílias estavam juntinhas
novamente. Nesse mesmo ano, na Festa de Nossa Senhora da
Conceição, Seu Antônio fez uma casinha de isopor e foi com
minha mãe pagar a promessa pela nossa volta, e dessa vez
com a casa própria.
Eu cresci e ela sempre esteve presente na minha vida, na
infância, na adolescência e na vida adulta. Depois os papéis
mudaram, chegou a hora de retribuir, minha veia Celina virou
um bebê e a gente tinha que cuidar dela. Ela morava com uma
filha, Vera, que cuidava dela, quando Vera ia trabalhar, pedia
para mim ou minha mãe ficar de olho nela. Eu sempre dava
uma passadinha lá para vê-la. Algumas vezes ela dormia no
sofá e a panela queimava no fogão. Então eu apagava o fogo,
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trocava a comida de panela, cobria minha veia com lençol e ia
embora. Ela nem via quem tinha feito esses cuidados.
E a união fez a força. Nossa comunidade de famílias
continua até hoje nutrindo o sentimento de cuidado que
nossos pais aprenderam com dona Celina, passaram para
nós e estamos passando para nossos filhos. No cenário atual
da pandemia do COVID 19, todos nós estamos seguindo os
cuidados necessários, para nos proteger e proteger os vizinhos.
A padaria da nossa rua segue todos os protocolos, a lanchonete
e o espetinho também funcionam com todos os cuidados e
quando foi preciso fechar foi feito. Os moradores respeitam
o uso da máscara e evitamos aglomeração, tivemos apenas
4 casos, todos leves, ninguém precisou ser hospitalizado.
Os vizinhos foram muito solidários com os doentes, sempre
tinha um alguém para deixar uma comidinha pra eles, mesmo
com medo da contaminação colocávamos os alimentos na
sacola, chamávamos, entregávamos na porta e saíamos
correndo (risos). É assim nossa pequena rua, recheada de
companheirismo, solidariedade e amor ao próximo.
Em 2003 Vera se casou e foi morar em Setúbal, em Boa
Viagem. Todos os dias ela passava pela casa de Dona Celina,
para organizar as coisas para ela, e minha família dava
assistência sempre que ela precisava, mais depois de um ano
do casamento de Vera, chegou o dia inevitável, que mexeu não
só comigo e minha família, mais com todos de nossa rua. Foi
quando Vera nos disse que a levaria para morar com ela, pois
devido ao Alzheimer estava perigoso ela ficar muito tempo
sozinha. Olhar para casa dela e não a ver, era um vazio horrível.
Sempre que possível nos finais de semana eu fazia uma
visita à minha veinha na casa da sua filha. Nessa época eu já
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trabalhava e não tinha mais tanto tempo disponível para ir
vê-la com mais frequência. Porém era sempre maravilhoso
estar com ela. A notícia da sua partida em março de 2008, foi
devastadora em meu coração, foi o pior momento da minha
vida. Mas aos poucos a dor foi diminuindo e deu lugar a
saudade e boas lembranças. Ela sempre está em minhas
orações, e eu sempre peço para ela cuidar de mim lá de cima,
e sei que ela sempre será luz em nossas vidas.
Em 2018 eu engravidei, o sonho da minha vida sempre
foi ser mãe de menino, já tinha até nome, seria Eduardo. Mas
quando fiquei grávida tudo mudou, a sensação de ser uma
menina começou aflorar em meu coração. Nesse período
lembrei muito da minha veia Celina, do nada vinha uma
lembrança dela, dos momentos juntas. Na véspera de um
exame de ultrassom tive um sonho lindo com ela, acordei no
dia seguinte com a certeza que seria uma menina, ela tinha
ido me revelar no sonho, desde esse dia sabia que ela estava
cuidando de mim, da minha gestação, que era perfeita, nada
de enjoos, vômitos, nada. No exame a médica não tinha certeza
do sexo, então pediu para eu repetir depois de duas semanas,
na data marcada fui repetir o exame, só para confirmar o que
eu já sabia em meu coração, seria uma menina, minha Celina.
Lembro que falei para Vera que ia homenagear a mãe dela
dando o nome de Celina a minha filha, ela ficou surpresa. Acho
que ela nem imaginava o quanto a sua mãe significava em
minha vida, e que mesmo lá do céu ela continua fortalecendo
laços aqui na terra.
Minha gestação foi maravilhosa até minha Celina achar
que o forninho estava apertado demais, ela nasceu prematura
de 34 semanas, e foi direto para UTI Neonatal. Foi quando
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minha agonia começou, minha bebê que tinha idealizado
estava ali naquela UTI, tão frágil e eu me sentindo impotente,
sem saber o que fazer, perdida. Tive alta médica e ela não, foi
o pior momento ir para casa e deixá-la no hospital. Eu passava
o dia no hospital e dormia em casa, foram dias de agonia. Em
uma tarde após o almoço cochilei na poltrona que ficava na
sala de espera da UTI e tive mais um sonho com minha veia,
novamente ela veio me dizer que estava cuidando de mim e
da minha Celina. Depois de 16 dias finalmente minha menina
estava em casa, eu iria descansar e curtir minha filha. Mas
depois de uma semana fomos novamente nos hospedar mais
uns dias em um hospital, e a noite eu rezava para Deus fazer
a obra na vida da minha filha também pedia a minha veinha
que cuidasse da gente.
Hoje minha Celina está com 1 ano e 10 meses, cheia
de saúde, pois eu tenho a referência da minha veia no
cuidado com minha filha. Na alimentação, dou preferência a
alimentação saudável, ela me acostumou a comer macaxeira,
inhame, batata doce, todos os legumes e verduras, sucos e
frutas, sigo os ensinamentos da vó da minha memória. Na
primeira gripe da minha Celina, dei o banho do chá da folha da
colônia para baixar a febre, como minha veinha fazia comigo. E
quando minha filha crescer vou compartilhar com ela todos os
ensinamentos que a bisa nos deixou, e falar que o motivo dela
ter herdado o nome Celina foi eu ter recebido da outra Celina
o melhor amor e cuidado de vó que alguém poderia receber.
Celina apesar de todos os problemas da prematuridade,
UTI, internamentos, hoje esbanja saúde, tem muita energia e
é a luz da minha vida. E eu que nem gosto de rosa, vivo um
mundo cor de rosa perfeito, com a proteção do Senhor Jesus,
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Nossa Senhora da Conceição e o cuidado da minha veia Celina.
Sou pedagoga, professora da Educação Infantil, e na
escolha da minha profissão Dona Celina também me inspirou,
sua sabedoria era imensa, mesmo não sabendo ler, e só sabendo
assinar o nome, tinha sempre muito a nos ensinar. Ela tinha
uma mente aberta sem preconceitos, e uma fé contagiante.
Sempre nos dizia para confiar em Deus que no final tudo
daria certo. E foi pelo desejo de alfabetizar, de poder ser uma
multiplicadora de sonhos, de ser ponte para que as crianças
possam ser protagonistas do seu aprendizado, que me tornei
uma Pedagoga.
E em meu coração levarei o orgulho dela ter me adotado
como neta e pelo cuidado de vó. Vou amar eternamente minha
veinha Celina.

Dona Celina “Minha” Celina

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Érica Montenegro de Mélo
Paraibana radicada no Recife.Cordelista.
Contadora de histórias, mediadora de leitura
em biblioteca. Autora de livros para a infância.
Especialista em literatura infantojuvenil.
Professora. Pesquisadora de biblioteca escolar.
@encantodoconto
E-mail: encantodoconto@hotmail.com

As avós de minh’alma

Sentada, pés na areia Como as velhas de minh’alma


Estava olhando o mar. Eram as Plêiades que brilhavam
A noite alta, já ia E assim como em minha vida
Deitei para relaxar, Um mapa elas formavam
Então olhando pro céu Fui lembrando de episódios
Eu vi algo singular. Do quanto elas me habitavam.

Sete estrelas juntinhas Agora vou lhes contar


Formando uma constelação Um pouco de suas histórias
Fiquei olhando pra elas De como é que cada uma
E me tomei de emoção Habita as minhas memórias
Quando vi as sete sábias E para elas eu faço
Que moram em meu coração Aqui uma dedicatória.

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As sete mulheres sábias chegaram antes de mim e reúnem
muito do que eu ainda não sei e tudo do que eu quero saber
e ser. Sete avós, sete forças e sete histórias. Algumas sequer
se conheceram, mas em minh’alma habita um pouco de cada
uma das sete avós, velhas sábias com quem cruzei nesta vida.
Eu poderia escrever mil histórias vividas com cada uma delas,
mas vou lhes contar como elas vieram fazer morada em meu
coração.

Irene: a matriarca benzedeira, de vestido de flor.


Quando eu era criança, a casa da minha avó materna era
lugar de encontro com o humano e com o divino. Ela tinha
um oratório recheado de santos, terços e vasinhos de flores
que nunca murchavam. Da janela de seu quarto, na beira da
cama, o pé-de-pipoca fazia chuva de pétalas brancas no chão
do jardim, enquanto ela rezava o terço. Irene era benzedeira.
Se fecho os olhos e silencio, sinto os ramos batendo no meu
corpo e ouço sua voz mandando os olhados para as ondas do
mar sagrado. Não tinha remédio melhor para as querências da
vida, que um molho de mato bem passado cabeça abaixo. O
anel da pedra vermelha amarrava o mindinho e se confundia
com as flores pequenininhas do vestido de botões grandes,
como um caroço de fava. Se o problema era no corpo, uma
reza no lugar certinho, mas se a moleza era geral, os ramos
passeavam da cabeça aos pés e no final a gente ainda jogava
o amarradinho murcho no jardim, o mais longe que pudesse.
Quando essa velha sábia partiu, algo murchou em mim.

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Lurdes: a costureira de meus sonhos.
No bairro vizinho, a costureira tinha quatro filhas, mas
não hesitou em adotar minha mãe, jovem colega de escola de
uma das filhas, que precisava estudar com um pouco mais de
sossego. Mamãe saiu da casa de uma tia que cuidava de uma
casa de seminaristas, onde trabalhava os afazeres domésticos
para virar bordadeira de enxovais. Que luxo poder trabalhar
entre amigas e dormir na cama quentinha com lençol de
elástico, costurado no capricho. Lurdes era a delicadeza em
pessoa e foi a avó mais carinhosa que eu tive, porque não tinha
medo de dizer o que queria, mas bebia garapa antes disso, eu
tenho certeza. Ela e o marido, alfaiate, eram requisitadíssimos,
mas sempre que a gente chegava, ela abria as portas para ficar
só com a gente, os netos do coração. Lembro que ela me ouvia
por horas! Eu lhe contava sobre meus sonhos, as coisas que eu
queria ser, mais tarde, ela me ouvia contar sobre as peripécias
dos meus alunos. Primeiro as medidas dos vestidos e depois
a tapioca com Nescafé na cozinha impecavelmente limpa.
Quando ela se encantou, algo se descosturou em mim e eu
nunca mais tive amor de vó como o dela.

Marina: dona de toda arte.


É assim que a história dela se cruza com a minha: a avó
que fazia os presentes que me dava! Quando eu nasci, ela
trabalhava com meu pai e acompanhou a chegada do trio
de pequenos Montenegro. Artesã de mão cheia, fazia louças
pintadas à mão, bonecas de tecido e um montão de outras
coisas legais, que chegavam sempre no aniversário e no natal.
O que mora dela em mim? A criatividade! Aquela mulher
sempre estava disposta a aprender e, já no fim da vida, Vó
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Marina, a exímia cozinheira, resolveu escrever suas receitas e
seus versos, transformando-os em livros. Passei uns vinte anos
sem vê-la e até hoje não sei porque isso se deu, mas quando
minha filha nasceu, lembrei onde era a casa dela e fui lá. Levei
a menina para que, com suas mãos habilidosas a abençoasse e
ela assim o fez. Recentemente soubemos que ela partiu e nem
pudemos nos despedir. Eu senti que um pedacinho das cores
do quadro da minha vida desapareceu.

Raimunda: a preta da minha infância.


Quando criança eu costumava vê-la com o terço nas mãos.
Rezava com a neta que sempre lhe guiava às festividades da
igreja. Eu e a neta éramos amigas e eu amava a tranquilidade
daquela menina de cabelos e pele negra. Vó Raimunda habita a
saudade das coisas que não tivemos tempo para viver, porque
o câncer de mama a levou de nós. Com o bracinho inchado,
efeito colateral da doença, ela sentava-se sempre no banco da
frente para participar das missas, com seus cachinhos grisalhos,
óculos no rosto e um sorriso leve que parecia me dizer: vai ficar
tudo bem. Lembro de quando a notícia de seu encantamento
chegou, de como eu fiquei triste e de como prometi a mim
mesma que ela estaria em minhas memórias. Ela se foi, mas
posso ouvir a sua benção e sentir a doçura de sua mão sobre
a minha cabeça.

Maria: o café, a sopa, o acolhimento.


A mulher guerreira, mãe de oito filhos e de dezenas de
netos e bisnetos sempre fez as comidas mais gostosas. Minha
mãe conta que, grávida de quase nove meses, quando chegou
para morar no bairro recém criado, longe do centro da cidade,
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ela já morava na casa vizinha e lhe disse: “minha filha, não sofra
com esse barrigão... quando não quiser comer a sua comida,
venha comer aqui”. Se ela soubesse, que de dentro da barriga
eu tomei aquele convite como vitalício, teria dado um prazo de
validade para ele. Era no quintal de sua casa que eu brincava
de cozinhado e de boneca, era na cama dela que eu tomava
injeções de benzetacil, pra aliviar a febre reumática. A amizade
atravessou os anos e fez com que as vizinhas decidissem abrir
um portão que separa as duas casas. O fato é que, 40 anos
depois, eu ainda tomo café da manhã com ela, sempre que
posso e sonho tomando aquela sopa que faz o cheiro cruzar
o estado da Paraíba e chegar no Recife. Ela ainda reina sobre
mim e se me der uma ordem, eu vou de pronto, cumpri-la!
Ela é a vó Maria que a minha filha respeita e reconhece como
ancestral. Daqui eu a admiro, reconheço e agradeço a honra
de ter na minha história a presença dessa grande mulher, num
corpo pequenino, que aos 88 anos, ainda carrega uma lucidez
incrível, e muito amor pra dar!
Dois dias depois do lançamento deste livro físico,
Dona Maria nos deixou. Partiu para outra jornada,
Descansando do sofrimento de dois meses numa cama de
hospital. Quando ela partiu ficaram comigo o cheiros da sua
casa, a maciez de suas palavras e o perfume que ela me deu
no natal e que eu não tenho mais coragem de usar, para que
ele, assim como meu amor por ela, não termine nunca!

Miriam: a chave para um novo tempo.


A gente não tem ideia das surpresas do destino e a chegada
de Miriam na minha vida é a prova de que Deus também
embala presentes em forma de pessoas. Eu buscava um
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lugar para pousar, quando ela apareceu na minha vida e foi
a intercessora da compra da nossa primeira casa própria. Eu
estava no final do segundo trimestre da gestação quando ela
nos recebeu em sua casa, abriu as portas da casa da irmã que
mora no mesmo prédio e tem a planta igual à nossa e disse:
entreguem a Deus! Vai dar tudo certo. E deu mesmo! Quando
minha menina nasceu, ela lhe pegou no colo e cantou para ela,
ninou, fez vestido de pagar promessa e aceitou ser chamada de
avó. Essa mulher incrível, do alto de seus 80 anos, é a avó que
desce pra tomar café, que cria memórias do presépio natalino,
é a administradora das nossas compras coletivas, a dona da
cervejinha mais gelada nas noites festivas das “Sextas sem Lei”
e abre sua casa pra gente rir e conversar. Ela gosta de poesia,
porque é a demonstração plena de que a palavra é viva, é afeto,
e luz. É a avó mais próxima da minha filha e é um pouco do
que a minha mãe seria se morasse mais pertinho de mim.

Zefinha: porto seguro, força e fé.


Sempre achei que Deus tinha me beneficiado com a mãe
que me deu. Para que eu viesse ao mundo, grandes batalhas
foram travadas em seu corpo e ela não cedeu ao que dizia a
medicina. De arrimo de família à normalista, a primeira da
família a se formar. Mãe de três, esposa prestativa e devotada,
professora dedicada. Foi a minha primeira contadora de
histórias e também uma mediadora de leitura incrível! Lembro
claramente da sua voz lendo os contos de fadas e de suas
mãos criando bichos à luz do lampião a gás, nas noites em
que a energia elétrica faltava. Amava quando ela deixava eu
brincar com suas sandálias de salto alto e com seus desenhos
de pintura em tecido. Com ela aprendi que a vida não tem
61
moleza... Tem que enfrentar o que vier com inteligência e força.
Tem uma história que eu gosto de rememorar: quando eu era
criança tinha uma barraca de doces no caminho de volta da
escola e como a gente nunca tinha dinheiro pras guloseimas,
ela dizia: “feche os olhos que quando passar eu lhe aviso”.
E assim eu fazia e foi desse jeito que aprendi que eu posso
ter as coisas no tempo certo. Minha mãe é a típica avó: faz as
comidas gostosas, conta histórias, brinca e ensina as netas a
fazer caça-palavras. Ela é minha fortaleza, a certeza de que eu
nunca estarei só. Ela me confunde com a própria mãe, quando
pensa que eu vou resolver as coisas, mas na verdade, quem
resolve é a mulher que se espelhou nela pra ser quem é. E eu,
do meu canto, rezo todos os dias agradecendo à espiritualidade
pela escolha assertiva: a minha mãe é, certamente, a velha mais
sábia que habita em mim.

Findo aqui minhas palavras


Meus versos vêm pra fechar
A história das velhas sábias
Que vieram me habitar
Sua força, seu poder
Tento em mim, cultivar.

Agradeço às que passaram


E as que ainda estão comigo
Todas elas me ensinaram
São um seguro abrigo.
É certa a sua presença
Fibras, fortes como o trigo.
Velhas sábias que me habitam

62
Que na minha história estão
Que construíram memórias
Tão cheias de gratidão
Que a minha descendência
Honre sempre essa menção.

63
Fátima Soares
Nasci e vivo em Recife. Leio e escrevo desde
a infância, publiquei meu primeiro livro
em 2010. Professora, psicopedagoga, e arte-
educadora, trabalhei em escolas públicas
de 1978 a 2017. Aposentada criei o LIVRO
ABERTO Sebo Itinerante e encontrei o
Mulherio das Letras. Quero provocar leituras
e estou estreando como organizadora de livros
coletivos pela Editora IPANEC.
Email.: fatimarsoares@hotmail.com

Não Baixar o Nariz

Mamãe Elvira, avó materna do meu pai, minha bisa. O


que sei sobre ela é mais do que ouvi contar do que lembranças
do convívio. Faleceu em 1960, contava noventa e seis anos, eu
seis anos incompletos. Recordo uma velhinha magra, coluna
encurvada, se deslocava no interior da casa da minha avó
arrastando seus sapatinhos de tecido flexível azul, ela pisava
em cima da parte de trás, usava os sapatos como chinelos.
Também lembro dela em uma cadeira na sala, a porta da
frente da casa aberta, ali sentada observando o movimento.
Não passava carro, rua sem calçamento, terreiro sem muro.
O movimento era alguém que passava e lhe dava bom dia ou
boa tarde, eram as crianças brincando. Nas mãos o croché ou
a costura, cerzindo os buracos das nossas meias, e quando
precisava de linha chamava uma de suas netas, pois não
enxergava mais o furo da agulha. Ela tinha uma ferramenta
especial, um ovo esculpido em madeira, lixado, polido do
tamanho de um ovo de galinha. Colocava aquele ovo dentro
64
das meias como apoio para costurar. O objeto me encantava,
queria pegar, mas era sempre alertada que não era de um
brinquedo. Poucas vezes pude tê-lo nas mãos por alguns
segundos. Lembro que ela usava dedal. Croché e costura foram
sua profissão, assim ganhou a vida, sustentou sua família, sem
nunca baixar o nariz como afirmavam suas filhas, netos e natas.
Falo dos anos cinquenta do século XX, da encosta do Morro
da Conceição, próxima ao Córrego do Euclides, Recife, onde
Mamãe Elvira viveu seus últimos anos.
Lembro dela bem fraquinha, na cama, outra mulher
colocando alimento em sua boca. Suas filhas, netas ou esposas
dos netos. Morreu cercada dos cuidados das mais novas. A
noite inteira de velório, parentes, amizades, vizinhança. Os
bancos da escola, emprestados, na frente da casa. Eu dormia
no colo da minha mãe ou alguma tia, ao me colocarem na
cama acordava, voltava para frente da casa para outro colo,
dormia, outra vez me levavam para cama, outra vez acordava.
A inquietação da longa noite ainda vive em mim, volta, vez
por outra, em situações de sofrimento.
Hoje no espelho vejo meu cabelo crespo e outros traços.
Vejo a insubmissão a padrões de comportamento herdados
dos senhores de engenho, padrões que querem nos impor, me
reconheço. Sou descendente de Elvira, não pretendo baixar o
nariz.
Ainda viva e depois de seu falecimento suas filhas, netos
e netas repetiram a história de seu passado, a história que
ela contou. Fugiu do engenho para casar-se com o homem
negro que escolheu. Diziam que o esposo nasceu pouco
tempo depois da a Lei do Ventre Livre (28/9/1871). Ela filha
do senhor de engenho, ele, “cria da casa”. Jovens fugiram
65
juntos. Diziam que foi deserdada, sem herança ficou pobre.
Entre os negros e pobres o casal construiu a família. Elvira e
Sabino tiveram muitos filhos, pretos de olhos azuis, brancos
de cabelos crespos, diversidade de tons de pele. Viúva, ela
seguiu trabalhando como costureira para uma família rica e
cuidando da vida. Nunca contou exatamente de onde veio, de
qual engenho, quem eram seus antepassados brancos, havia
uma vaga informação de que teria vindo de Alagoas. Fechou
esse capítulo de sua história quando fugiu. Não teve terra
ou outros bens materiais para nós deixar. O seu legado foi o
seu modo de pensar e viver. Ganhar a vida com o seu suor,
não viver da exploração, da escravização de outras pessoas.
Entender que as mulheres são senhoras de seus destinos, não
objeto da propriedade dos homens.
Ouvir, lembrar, relembrar essas histórias atiça minha
imaginação.
Na infância imaginava as duas crianças correndo no
jardim, trepando nas árvores para comer frutas, brincando
nos riachos, entrando na casa grande pela porta dos fundos,
recebendo afagos e doces das mucamas. Talvez entre as
mulheres escravizadas na cozinha a mãe do menino, minha
tataravó. Adolescente, imaginava o casal cochichando sobre
o plano de fuga. Via os dois na noite escura se embrenhando
no mato, a nado atravessando o Rio Capibaribe. Chegando
ao amanhecer num quilombo, entre juras de amor receber
acolhida e proteção do povo negro.
Adulta, preferi pesquisar o tempo e os lugares de onde,
possivelmente, vieram e onde viveram. Um jovem filho de
pessoas escravizadas no ambiente doméstico, trabalhando
desde pequeno no jardim. Quando adulto papai Sabino era
66
jardineiro. Uma menina, provavelmente, mal acolhida por
seus pais que preferiam filhos homens. Sendo educada para
o casamento conveniente aos negócios da família. O casal
sabia ler e escrever. Como aprenderam? Ela filha do senhor
e sendo educada para o casamento, possivelmente teve uma
professora. E ele? Teria aprendido com ela sem que os adultos
percebessem? Ele, com certeza, se comunicava com pessoas
de fora do engenho em tempo efervescência do Movimento
Abolicionista. Essa mobilidade, por certo, favoreceu o
recebimento de ajuda, orientação para plano de fuga, isto na
década de 1890. Viveram alguns anos no bairro de Sant’Ana,
e depois foram para Beberibe. Viveram próximo ao sítio
onde se reconhece o primeiro Quilombo Urbano do Brasil,
a Comunidade de Xambá. Nos documentos de uma de suas
filhas mais velhas, Maria Izabel, 1898 está anotado como ano
de nascimento, e sua filha mais nova, Maria do Carmo nasceu
em 1909. Da identidade civil de Elvira Rocha e Sabino Rocha
tudo é duvidoso, para se proteger precisaram ocultar parte
da história. Mesmo o sobrenome “Rocha” pode ter sido uma
escolha dos dois.
As narrativas de seus descendentes são permeadas pelos
sentimentos de quem ouviu e julgou. Algumas pessoas
falavam com orgulho de descender daquela mulher corajosa,
trabalhadora, digna. Outras pessoas falavam em tom de
lamento. Lamento pela mulher cuja audácia foi punida com a
pobreza. Essas duas visões às vezes geravam polêmicas. Teria
ela agido certo? Teria sido inteligente a sua escolha? Era uma
espécie de saudade do que não foi, de uma riqueza material
que nós não conhecemos. Aí entrava na discussão alguém
mais irônico. – Bando de bestas! Se ela não tivesse fugido com
67
o negro os filhos dela não existiriam. Seriam outros, os filhos e
netos de outro homem! A conversa se encerrava, gente rindo
e gente aborrecida.
A lenda familiar dizia que Mamãe Elvira entre filhos e filhas
teve 25, só Marias eram sete. Em minhas pesquisas, ajudada por
primas e tias com mais idade, encontrei informações sobre onze
nomes, seis mulheres e cinco homens. Foram as filhas e filhos
que ela criou, com certeza perdeu outras crianças. Os índices
de mortalidade infantil no final do século XIX e início do
século XX eram muito altos, principalmente entre os pobres e
negros. Quando penso nas estatísticas de mortalidade infantil,
na penúria que minha família viveu, vejo minha bisavó como
uma mulher muito forte, que sobreviveu a muitas dores.
Perdeu herança, perdeu crianças, perdeu o marido. Mas
ganhou autonomia e dignidade, respeito e admiração de sua
família e amizades. Essa era a origem do seu nariz empinado.
Atualmente é importante lembrar que o propósito de
embranquecer a população brasileira, no início do século XX,
era Política de Estado. A ideologia eugenista contaminava o
pensar do povo de modo geral. Assim, alguns descendentes
de Elvira e Sabino acreditavam que era possível e positivo
embranquecer a família. Acreditavam que era a cor da pele a
causa da nossa pobreza, e não a exploração e injustiça contra
o povo negro, injustiça não resolvida pela Lei Áurea. Parte
das suas filhas e filhos, netas e netos se esforçou para realizar
casamentos com pessoas brancas. Outras pessoas fizeram
escolhas por outros critérios e se casaram com pessoas de pele
mais escura. E seguimos nos miscigenando e lutando para
construir uma identidade em meio à negação de nossa história
e nossos valores básicos.
68
Até o início dos anos 80 do século passado estávamos
muito longe de entender que, ser negro no Brasil não se
define apenas pela cor da pele e situação de pobreza. A vida
comunitária, a religiosidade e outros aspectos da cultura vão
determinando quem somos e nosso lugar no mundo. Elvira
e sua descendência eram oficialmente católicas. Batizavam
os filhos e iam as missas festivas, em especial as da Festa de
Nossa Senhora da Conceição. Vale lembrar que, o Batistério
emitido pela Igreja Católica era um documento importante
para quem não tinha acesso ao Registro Civil logo ao nascer. O
Catolicismo era a religião oficial, portanto a religião declarada
pela maioria da população. O fechamento dos terreiros e
a repressão policial durante a ditadura de Getúlio Vargas
(Estado Novo 1937/1945) levou as casas de culto de matriz
africana a funcionar de portas fechadas, clandestinamente. Sei
que de forma velada familiares de Mamãe Elvira participavam
de Terreiro e recorriam a Mães ou Pais de Santo quando tinha
necessidade de orientação espiritual. Não sei se Mamãe Elvira
enquanto tinha autonomia participava de alguma dessas casas,
esse era um tema que pouco se falava. O certo é que não tinha
o perfil da católica típica, com rosário na mão, oratório na sala
e missa todo domingo.
Creio que vem dessa herança o desconforto com os rituais
da Igreja Católica que sentia na infância. Sou grata à sabedoria
da minha mãe, que sendo católica praticante, não me forçou a
seguir sua religião. Na juventude em contato com a Teologia
da Libertação descobri outras razões para participar da Igreja.
Os projetos sociais e a Opção Preferencial Pelos Pobres me
motivaram a participar de grupos e movimentos ligados
às pastorais. Era o único espaço onde podia pensar sobre
69
a realidade que vivia no período da ditadura (1964/1985).
Depois a redemocratização do país fez surgir outras frentes.
Sindicatos, associações comunitárias, movimento feminista,
movimento negro, partidos de esquerda legalizados e outras
iniciativas populares. Nesses movimentos fui aprendendo e
me encontrando.
A partir dos anos oitenta o Movimento Negro Unificado
(MNU) teve uma influência grande nas lutas do Morro da
Conceição. O MNU atraia a juventude com suas festas e
debates. Estimulou o resgate cultural, valorizando nossa
música e nossa dança. O Coco de Roda e o Maracatu Rural,
que durante a ditadura quase desapareceram da comunidade,
ganharam vitalidade e visibilidade neste período. A pauta do
movimento incluía temas significativos para a organização da
comunidade e construção das identidades pessoais e coletivas.
Aprendi a necessidade e importância da convivência respeitosa
com as casas de cultos de matriz africana. Aprendi que “parda”,
“morena”, “mulata”, “crioula”, “escurinha”, “sarará”; termos
referentes a cor da pele e textura do cabelo, não favorecem
a nossa união, ao contrário, nos dividem e enfraquecem.
A afirmação sou negra, esse sentido de pertencimento ao
povo negro brasileiro que vivenciei no MNU, fortaleceu o
sentimento de orgulho e respeito à memória do meu bisavô
e minha bisavó.
Como mulher enfrento cotidianamente o machismo,
velhas normas e costumes que consideram as mulheres seres
inferiores. Porém nas periferias deste país, onde se incluem
minha família ancestral e contemporânea, as mulheres
sustentam as casas. Trabalham, geram renda, educam, cuidam.
Como vão se conformar sendo tratadas como seres menores,
70
inferiores? Então a luta e vida se fazem juntas. Quando lembro
de Mamãe Elvira procuro sua dignidade e sabedoria em mim.
Sou bisneta da mulher que desafiou o senhor de engenho,
decidiu ser trabalhadora, esposa, mãe, avó, bisavó de gente
negra insubmissa. Minha herança está além do cabelaço e
outros traços, é a sensibilidade para reconhecer e combater
manifestações de racismo, mesmo disfarçadas, mesmo
quando não são a mim dirigidas. É parte da minha herança
o compromisso de dar a mão a outras mulheres. É sentir que
juntas erguemos os nossos narizes, somos fortes, somos sábias!

Elvira Rocha, para sua descendência “Mamãe Elvira”.

71
Idyane França
Artista, poeta, jornalista, ativista do movimento
negro. Ganhadora do XXII Prêmio Estadual
de Direitos Humanos Emmanuel Bezerra dos
Santos, pela Câmara Municipal de Natal/RN,
juntamente com a Mídia Ninja.
@idyfranca
E-mail: idyaneassessoria@gmail.com

Os olhos serenos de Joana

Maria de Souza, eis o nome de batismo de Joana. A menina


de seu Cícero Irinco de Souza e de dona Francisca Ana da
Costa. Nascida no dia 29 de maio de 1927. A única filha mulher
entre os cinco filhos do casal. De São José de Campestre,
interior do estado do Rio Grande do Norte. Uma cidadezinha
que se desmembrou de Nova Cruz em 23 de dezembro de
1948, pela Lei número 146, criado por um projeto de lei de
autoria do Major Theodorico Bezerra. Ou seja, quando Joana
nasceu, ainda era Nova Cruz. A população atual da cidade
é de 12.879 habitantes e sua área territorial é de 341.115 km².
As principais atividades são da agricultura, da pecuária e da
avicultura, contando ainda com a forte produção leiteira e o
artesanato que se encontra em forte expansão. Tendo São José
como padroeiro protetor.
E foi nessa cidadezinha que Joana passou a maior parte de
sua juventude, trabalhando de sol a sol no roçado, batalhando
o sustento da família. Enquanto a maioria das mocinhas de
72
sua idade se casavam, ela continuava a batalhar junto aos
pais e aos irmãos. Desde sempre trouxe consigo o espírito
empático, altruísta e coletivo. Que se revelava a cada gesto, a
cada palavra. Uma moça gentil e prestativa. Dentro de uma
realidade insípida, difícil, Joana se contrapunha com sua
afabilidade e generosidade.
Os anos foram passando, e Joana continuava no caritó1,
já tinha mais de 30 anos, uma “moça velha”, que ainda não
havia se casado. Imagine você a quantidade de comentários
que ela deve ter ouvido a respeito. Mas o destino colocou o
meu bisavô, João Anselmo da Silva, um viúvo, pai de oito
filhos, em sua vida. Com quem ela veio a se casar. Mudou-se
para Santa Cruz, outra cidade do interior do Rio Grande do
Norte. Tiveram quatro filhos, porém apenas um sobreviveu,
José Anselmo Sobrinho. Foi dessa união que Joana tornou-se
“Vó Preta”, minha bisavó e de mais de dezenas de bisnetos.
Acrescentando o “Silva” ao seu nome, Maria de Souza Silva.
Parece que o destino gostava da ideia de Joana ser uma
mulher que por si só bastava. Pois tornou-se viúva cedo, e
continuou criando seu filho José, em Santa Cruz, apesar de
todas as dificuldades, até ele se tornar um homem adulto e
vir morar em Natal, a capital do estado, na casa de sua irmã
Maria, minha avó. Que posteriormente se casaria e traria
Joana para morar consigo. E que felicidade ele ter feito esse
convite, pois isso me permitiu conhecer e conviver uma parte
da minha vida, diariamente, com minha Vó Preta, a quem
todos chamam de Joana.

1
Expressão popular usada no Nordeste do Brasil para a moça quando não
casa. O mesmo que “ficar na prateleira” ou “ficar pra titia”.

73
A partir de agora descreverei Joana através da memória
afetiva de uma criança preta, de periferia, que observava o
mundo a sua volta e conseguia extrair as pequenas sutilezas.
Vó Preta trazia consigo sempre o seu cachimbo, um pano
pendurado sobre a blusa e um par de olhos serenos. Seus
cabelos curtos e ralos, sobre a pele preta que carregava
toda uma ancestralidade e sabedoria. Um nariz comprido,
imponente e uma boca bem delineada. Ainda pequena, lembro
que estava muito doente, com catapora, e foi através de seus
cuidados com banhos de ervas, chás, que me vi curada. Minha
mãe não podia dedicar-se aos cuidados, devido ao trabalho.
Mas eu não fui a única a receber os cuidados de Joana, além
de dar assistência aos bisnetos, ela criou três netos como filhos.
Entre privações, na condição de viúva há alguns anos, no bairro
Bom Pastor, na zona oeste de Natal.
Certa vez, eu me encontrava em estado de impaciência, e
ela proferiu as seguintes palavras – Diane, sossega! O plantio
das coisas se dá pelo tempo – confesso que naquele momento
não compreendi nada do que ela queria dizer. Me faltava a
maturidade, que ela já tinha conseguido em meio de tantas
lutas. Entender o tempo das coisas é perceber que a vida
também se constrói como um roçado. Precisamos preparar a
terra para plantar, aguar para germinar, esperar nascer, crescer
e, no tempo certo, colher.
E é isso que nossas velhas sábias fazem, elas preparam
o chão que pisamos, germinam em nós as sementes de seus
saberes, para que possamos colher no tempo certo. Para que
possamos também ser terra fértil. Frutificarmos em nossas
vivências e semear novas sementes. Pois a vida torna-se bela
quando conseguimos enxergar o outro, quando conseguimos
74
construir coletivamente. Quando o amor ensina mais do que
a dor. Eu aprendi através dos olhos serenos de Joana o que é
ser “nós” além do “eu”.
Eu também sou Joana, todas as vezes que me coloco
na vida como mulher, preta, nordestina, que contrapõe a
violência dos dias cultivando o afeto para os seus, para as
suas, que também carregam dores diárias. Que sobrevivem a
um sistema que desumaniza. Que historicamente os colocou
às margens sociais. Sou Joana a criar partículas de paraíso
dentro do caos. Sou Joana quando empaticamente acolho e
oferto meus cuidados.
No dia 26 de julho de 2020, data que se comemora o Dia
dos Avós, ela se encantou, aos 93 anos, deixando um legado de
humanidade, de amor e de afeto. Jamais esquecerei dos olhos
serenos que tanto me ensinaram. Da mulher que mostrou que
é possível construir o mundo através da generosidade, que é
possível ser gentil numa
terra de feras. Mas que
nunca fujamos da luta.
Assim foi, e é minha
Vó Preta. A Maria que
se chama Joana, e que
até hoje não sabemos o
porquê.

Joana

75
Ilka Guedes
Sou mulher negra, feminista, mãe, educadora
social e moradora do Morro da Conceição
desde que nasci.
E-mail: ilkags@gmail.com

O cheiro da minha vó

Cheiro de Arruda. É esse cheiro que lembra a minha velha


sábia. Quando ando entre as barracas do Mercado de São José e
sinto o cheiro de arruda, imediatamente lembro da minha avó
paterna. Terezinha Josefa dos Santos era seu nome, conhecida
como Dona Pequinha pela vizinhança. Carinhosamente eu a
chamava de Minha Vó. O cheiro que sentia na sua casinha
simples de taipa, que sempre tinha um galhinho de arruda em
um vasinho com água na sala. Aquele cheiro me incomodava.
Só mais tarde soube que a plantinha servia para espantar o
mau olhado, crença herdada da sua relação com o candomblé.
Minha vó foi a pessoa mais velha da minha família que conheci
e muito pouco sei sobre ela, muito menos dos que vieram
antes dela.
Nunca vi uma foto sua quando criança. Contar a história
da Minha Vó foi um desafio, mexeu com minhas emoções,
houve momento que ficou difícil de continuar.

76
Terezinha Josefa dos Santos nasceu em 09 de maio de
1935 em Recife-PE, perdeu a mãe ainda criança e morou com
seu pai e três irmãs, Isabel, Luísa e Ana Maria no Morro da
Conceição, comunidade onde estamos até hoje. Seu pai se
casou novamente tendo mais cinco filhos. Viveu com o pai
ajudando a criar suas irmãs. Parte da família ainda vive na
mesma rua, que leva o nome de seu pai, meu bisavô, Belarmino
Henrique.
A casa era grande, mas sem luz elétrica. Se manteve dessa
forma por muitos anos por falta de condições para reformá-la.
Durante o inverno a chuva derretia o barro e abria buracos nas
paredes. Só foi construída de alvenaria na década de 90 com a
ajuda de um programa da prefeitura. Mesmo simples, a casa era
muito limpa, com paninhos branquinhos cobrindo os móveis
e as panelas brilhando. Lembro que no sábado ela ariava as
panelas e deixava secando ao sol parecendo um espelho.
Seu pai era da Marinha e era esse emprego que garantia
uma boa parte do sustento da família. Nunca tive conhecimento
de como ele conseguiu ingressar na marinha. A História
conta que na época do império não havia pessoas suficientes
para ingressar nas forças armadas voluntariamente e para
aumentar o contingente eram feitos decretos que estabeleciam
quantos homens cada província deveria ceder. De forma
autoritária e violenta muitos homens negros eram recrutados
ao serviço militar para limpar, cozinhar e fazer a manutenção
das embarcações, tarefas que os oficiais brancos de famílias
abastadas não realizam. Ao negro era vedada a possibilidade
de ser oficial, existia estabilidade no emprego, mas a realidade
não era diferente da que a população negra vivia. A pobreza
era presente porque o salário era baixo e a família numerosa.
77
Meu bisavô passava dias no mar, quando voltava pra casa
se fazia grandes rodas de Coco no terreiro para celebrar sua
chegada. Essas festas até hoje são faladas pelos mais velhos
como momentos de diversão familiar.
Minha Vó tinha conhecimentos de plantas medicinais,
era rezadeira por vocação. Nunca soube como aprendeu, mas
dizia que ia me passar o conhecimento. Infelizmente, faleceu
sem me ensinar sobre o segredo das rezadeiras e hoje é difícil
encontrar uma nas comunidades. Tinha o dom de espantar
mau olhado, peito aberto e espinhela caída de criança, homem
e mulher. Colônia, Pião Roxo e Erva Cidreira eram ervas que
costumava receitar para quem lhe procurava com alguma
queixa. Sentia prazer em cuidar das feridas e tirar os dentes
de leite das crianças.
Rezadeira, lavadeira e passadeira. Fazia isso com excelência,
lavando roupa de ganho sustentou sua família, como muitas
mulheres negras. A herança escravocrata brasileira negou ao
povo negro o direito de viver com dignidade mesmo depois
da abolição. Não deu oportunidade para nossas velhas sábias
mostrarem outras habilidades diferentes das que as mulheres
negras já desenvolviam nas casas grandes. Um lugar reservado
para nós que muitas conseguiram transgredir.
Teve sete filhos, cinco homens e duas mulheres, entre eles
um casal de gêmeos. 10 netas, 5 netos, 6 bisnetos e 7 bisnetas.
Nunca casou, criou seus filhos sem a presença do pai, contando
com a ajuda do seu pai e de suas irmãs. Criava pequenos
animais para ajudar na manutenção da família. Galinha e porco.
Mas tinha uma porca de estimação que dava banho e dormia
dentro de casa como se fosse o cachorro da família.

78
A memória afetiva da infância com Minha Vó me leva a
vários cheiros e tempos salteados, que não seguem a ordem
cronológica. Além da arruda tem o cheiro de café que ela fazia
no final da tarde, o perfume da Avon que ela gostava de usar
e cheiro de mungunzá. Esse último me leva à festa do Morro
que passávamos o ano esperando. Ela fazia um mungunzá para
receber seus sobrinhos que iam visitá-la. Mesmo frequentando
o Candomblé, era devota de N. S. da Conceição, tinha uma de
Santa Bárbara em um quadro na sala, Iansã no Candomblé,
era seu orixá.
Juntando as lembranças, ouvi algumas vezes que ela
não era carinhosa, não demonstrava afeto com seus filhos.
Afirmação que sempre me incomodou, pois não me lembro
uma única vez que tenha me batido e sempre intervia quando
meu pai brigava comigo. Mas ao escrever sua história encontrei
uma contra narrativa para essa alegação, que sempre me
soou injusta, porque afeto nunca me faltou enquanto neta.
Compreendi que sua forma de demonstrar afeto era diferente.
Pois sua vida foi muito dura e garantir o sustento de seus sete
filhos não era tarefa fácil. Como dar conta de sustentá-los
sem emprego fixo, sem um companheiro que assumisse sua
responsabilidade de pai, em uma família empobrecida e ainda
assim demonstrar afeto a partir da visão colonizada, que só
vê afeto em beijos e abraços físicos?
Tinha melhor jeito de demonstrar afeto e preocupação
com os filhos do que garantir a alimentação, mesmo precária,
numa época que sobreviver era difícil e a pobreza não saia de
sua porta? Seria demonstração de afeto dar banho nos seus
filhos, mesmo quando eles já tinham idade suficiente para fazer
isso? Para ela o banho só era bem tomado quando pegava um
79
pedaço de tecido grosso com sabão neutro e lavava os meninos
dos pés à cabeça pra garantir que todas as partes estavam bem
limpas. Ou mesmo quando preocupada com seu filho mais
velho na escola, deixava seus afazeres e ia até lá amamentá-
lo na hora do recreio com medo que ele sentisse fome. Havia
afeto na paciência de quem depois de amamentar seis filhos,
amamentou o seu caçula até os sete anos e sua neta, que aqui
vos fala, até os três anos de idade ao mesmo tempo. Era outra
forma de demonstrar afeto que se justifica em uma frase que
digo de vez em quando. Amor não enche barriga!
Contar a história da minha velha sábia é revelar a ferida
da desigualdade vivida por meus ancestrais, e compreender
o lugar que ocupamos hoje. Não apenas o lugar território,
que tanto revela sobre nós, mas o lugar social e político das
mulheres negras. Saber a verdadeira história desse país, que
não está nos livros didáticos, não é aprendida na escola, me fez
compreender que a minha velha sábia foi uma mulher de luta
e merece um lugar na história. É neste lugar que a coloco agora
com este texto. Ela não precisava ter feito algo extraordinário.
Ou fez, garantir sua sobrevivência e dos seus num contexto
adverso de desigualdade e racismo.
O apagamento da história do nosso povo, tirou o nosso
direito à memória, até hoje são várias narrativas sobre como a
nossa família chegou aqui. Sei pouco, são informações soltas,
desencontradas, não contei com documentos para confirmar as
histórias ouvidas. Falo a partir do que ouvi e vivenciei próximo
a Minha Vó. Juntei os pedaços de cada história contada. Para
escrever esse texto senti necessidade de ouvir mais, de buscar
documentos e fontes que considerava seguras. De documentos,
pude contar apenas com a certidão de nascimento e de óbito.
80
Não consegui uma foto da minha avó criança, da família
reunida, das rodas de Cocos. Contei com as falas das poucas
familiares idosas, que ainda estão vivas e de quem já ouviu.
E isso me fez perceber a importância da história oral para o
povo negro.
Após a abolição da escravatura a população negra não
tinha acesso a instrumentos que permitissem registrar suas
histórias. Não tinha máquinas fotográficas e em sua maioria
era analfabeta. Daí só podemos contar com as histórias orais,
mas muita coisa se perde. Não ter essas informações da minha
avó, da minha família paterna me doeu, me dói e mais que
isso, me causa revolta!
Sempre vivemos próximas, pois meu pai construiu uma
pequena casinha de madeira nos fundos do quintal onde ela
morava. E fisicamente nos parecemos muito. Toda a minha
infância e adolescência ela esteve presente. Infelizmente,
a velhice lhe presenteou com alguns problemas de saúde.
Glaucoma que a fez perder a visão, um problema no joelho
que a deixou sem andar, e hipertensão que deixou de herança
para mim e meu pai. Nos últimos anos de sua vida saiu da casa
que sempre morou para viver com uma das filhas em outros
lugares. Nessa época nos afastamos um pouco. A última vez
que a vi foi no hospital. Queria ter sentido aquele cheiro de
arruda, mas me lembro do cheiro de éter. Ela estava com um
hematoma que tomava todo o quadril e parte da coxa depois
de uma queda no banheiro na qual quebrou o fêmur e não foi
levada pro hospital imediatamente. Estava lúcida e chegamos
a conversar brevemente. Ela falava da dor que estava sentindo
e mesmo assim perguntou por seu meu filho, seu bisneto. A

81
lesão evoluiu para uma infecção e ela veio a falecer em maio
de 2016, poucos dias antes do seu aniversário de 81 anos.
Mesmo com todo o sistema agindo contra nós e renovando
suas práticas de extermínio ao longo dos anos, soubemos e
sabemos resistir. E reconheço que Dona Pequinha passou sua
vida resistindo, inclusive para que eu esteja aqui.

82
Janaína Nery
Professora, escritora, poeta, ativista do
movimento negro, movimento de mulheres
negras e de educadorxs antirracistas.
E-mail: jananery28@yahoo.com.br

Lições ancestrais de Vó Lídia

Em homenagem à memória de minha querida avó Elydia de


Oliveira. Minha ancestre, meu referencial de luta, de vida.

Beatriz seguia caminhando devagar até à antiga casa. A


barriga já pesava bem no sétimo mês de gestação. Decidiu
chegar um pouco mais cedo para aguardar o corretor e o
casal que se interessara pelo imóvel, assim teria ainda um
tempinho para se despedir melhor do chão que a viu crescer.
A decisão era difícil, mas não havia mais como continuar com
a propriedade. O terreno e a casa precisavam de cuidados,
pediam reparos e a situação financeira não andava muito boa.
“É melhor mesmo vender” – pensou.
Abriu o portão. O mato se fazia alto, as folhas das
árvores cobriam o solo que suavizavam sua rigidez. Toda
uma atmosfera de interior penetrava em seus olhos e em seus
ouvidos. Nada de vozerios, vaivém de pessoas, de carros... só
latido de cães e o canto tão comum dos bem-te-vis no lugar.
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Deixou-se invadir por aquela calmaria antes de entrar na casa.
“Quanto tempo afastada daquele mundo. Desde a morte de
Vó Lídia, nunca mais...”
A saudade ia lhe tomando inteira. Entrou na casa, abriu
as janelas. Enquanto revisitava os cômodos vazios, brotavam,
na memória, as lembranças de sua infância junto de Vó
Lídia; os aprendizados, a simplicidade da vida que tinham
naquele lugar. Época em que restaram apenas as duas, ali,
em companhia.
No antigo quarto onde dormia com a avó, pareceu sentir
novamente a presença de sua mais velha e ouvir sua voz a
contar histórias como antes. Voltavam frescas as conversas
daquele tempo:
– Ah, vó... Conta mais uma!
– Não, Bia, chega por hoje. Amanhã, cedo, você tem aula,
precisa dormir. Vamos combinar sempre uma por vez, tá?
Senão as histórias se acabam e como continuarei a contar para
você?
– Você sempre tem, vó! Conhece um monte! Então conta
de novo a do seu vô que foi escravo e fugiu levando um monte
de gente.
– Tá bom. Amanhã, a vó conta. Mas agora, vamos dormir.
Fecha os olhos, agradece a Deus pelo dia e sonhos!
Era quase sempre assim quando chovia. Não tinha muito
o que fazer a não ser procurar cama cedo e esperar o sono
chegar. A televisão antiga parava de funcionar e se faltava luz,
ouvia-se apenas o cantar dos grilos e o coaxar dos sapos nos
intervalos da chuva na noite breu. Então, para entretê-la até que
adormecesse, Vó Lídia contava-lhe histórias. Histórias do seu
tempo, de outros tempos, histórias reais, inventadas... Histórias
84
que se misturavam trazendo encantamento e ensinamentos
também.
Vó Lídia era Dona Elydia, uma mineira aguerrida do
interior que, com o passar da idade, acumulou vasta sabedoria
de quem atravessou o tempo resistindo e aprendendo com a
vida. Chegara ao mundo, a escravidão não tinha, há muito,
acabado. Seus pais escaparam, mas não seus avós. Elydia
cresceu ouvindo as histórias de seu povo. Histórias de dor,
luta, desafios. Cresceu ouvindo e aprendendo o que era lutar.
Sentia orgulho do avô com suas experiências de
capoeiragem e luta por liberdade: “Bia, aprendi com meu avô
que nunca devemos deixar ninguém nos humilhar. Devemos
sempre reagir quando isso acontecer.” A menina, que ouvia
atenta, ia, também, crescendo e aprendendo com as lições
de seus antepassados. Para ela, Vó Lídia ainda reforçava a
importância do estudo para que tivesse uma vida melhor do
que a de sua gente. Conhecera pouco as letras e os números,
deu duro como doméstica nas casas de madame e nas cozinhas
de restaurantes e hospitais. Sabia bem a falta que o estudo
fazia e dizia sempre: “Enquanto eu estiver viva, esse será meu
compromisso com você, Bia. É o caminho melhor que poderá
seguir na sua vida.” E Beatriz seguiu. Seguiu esse conselho
quase como uma promessa à memória de sua avó. Estudou,
se formou, se empregou e foi se tornando referência para os
que vinham chegando depois na família.
Retornou ao quintal. Dos fundos da casa, avistou a cozinha
de lenha. Os olhos se umedeceram com a imagem que veio da
avó, ali, lhe ensinando os segredos do fogo, dos temperos, dos
sabores da comida que ia se aprontando lentamente; com as
lembranças do bolo com café nos fins de tarde, dos doces feitos
85
no tacho ou nas panelas e até da diversão que era para ela catar,
pelo quintal, os gravetos que a avó pedia para manter o fogo
aceso. Lembrou que, pequena, brincava com as amiguinhas de
cozinhar as comidas que Vó Lídia fazia e, também, de como
foi aprendendo suas receitas apenas observando seu jeito de
preparar: “Bia, fica do meu lado e vai observando como a vó
faz o bolo, olha. Precisa sempre mexer a massa do mesmo lado
para não ter risco de solar.”
A cozinha de Vó Lídia estava agora decorada pelo tempo
que passou, coberta de palhas, folhas e a poeira que se
misturava aos restos de cinzas espalhados pelo vento. Uma
canequinha enferrujada de alumínio encontrava-se esquecida
numa prateleira, registro dos tantos golinhos de café que eram
tomados em meio aos afazeres do dia ou numa prosa trocada
com algum visitante que chegava. Beatriz se emocionava em
silêncio. Os toques de mensagens, no celular, é que a fizeram
atentar para a hora. Já eram quase quatro da tarde, horário
que marcou com o corretor. Com o pé, juntou, num canto, uns
pedaços de madeira apodrecidos que estavam caídos ao lado
da cozinha e que ajudavam a cercar o antigo canteirinho de
ervas de Vó Lídia. Lembrou desse lado mirongueira de sua
vó, da fé que tinha nas folhas, nas rezas, nos santos protetores.
Quantas crianças e adultos fortalecidos com as suas crenças,
com os saberes que herdara dos seus. Vó Lídia banhava, Vó
Lídia rezava, Vó Lídia curava os males do corpo e da alma.
Envolvida naquelas memórias, Beatriz ia se dando conta
do quão valoroso era o legado que sua avó deixara. Sua
trajetória de luta, trabalho, seus conselhos, seu afeto e cuidado
com as pessoas. Aquele lugar era todo sua presença, todo
ele impregnado de sabedoria e ancestralidade. Tinha, ali,
86
uma história que ainda desejava ser continuada e que a fazia
muito pensar se era tempo de cortar laços, de fechar ciclo. No
ventre, sentia a vida cada vez mais desabrochar. Aguardava a
chegada de uma menina. Pensou no tempo, que faz com que
a caminhada continue sempre com passos novos, mas que
eterniza aqueles que deram a partida. Como ela, sua filha teria
pilares que a sustentariam na jornada.
Aprofundava aquele pensamento quando entrou, na casa,
novamente. Olhou tudo mais uma vez, trancou as janelas, a
porta, checou, pela última vez, a hora no celular. Viu, ainda, a
mensagem do corretor informando que já estava seguindo para
o local. Mas Beatriz sentia que não queria mais encontrá-lo, seu
coração repelia o desapego. Despreocupada com formalidades,
decidiu ir embora. Comunicaria, no caminho, que o anúncio
de venda seria retirado: “Não era tempo de interromper uma
história. Não era tempo de cortar laços”. Deixara-se levar ou
preencher-se por outros valores. Valores que enriqueciam a
vida, que aqueciam o coração e a alma.

D. Elydia deixando-de fotografar pelos netos.

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D. Elydia, a frente de sua casa, durante uma
comemoração sua de aniversário

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Jeovânia P.
Poeta, escritora, estudante e professora

A preta Baiana

A história que vou contar pra vocês vai de encontro à raiz


do povo brasileiro. Pois, sempre houve dentro de mim uma
certa revolta, por todo esse apagamento das minhas raízes.
Essa do povo brasileiro, que vai na mata e adentra a cultura
indígena.
A raiz de cada um de nós está entrelaçada com os povos
originários da nossa terra. Infelizmente, a maior parte deles foi
dizimada, assim como seus costumes, sua língua, sua forma de
pensar a religião, foram apagadas, quase que completamente.
É por isso, que pouco se fala, e poucos se identificam com os
povos indígenas. É difícil mesmo descobrirmos de qual desses
povos viemos. Eu mesma não sei, por muito tempo pensei
ser descendente da tribo dos Canelas, lá do Maranhão. Mas,
foi papai quem nasceu lá, minha avó, sua mãe, nasceu em
Alagoas. O meu bisavô, pai da minha vó Baiana era escravo,
minha bisavó, mãe de vó Baiana, era filha de mãe indígena. E
de qual povo veio minha tataravó eu não sei.
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Eu só sei que minha tataravó foi dominada a laço, no meio
da mata. Tomada pelo homem que a queria e levada pra cidade,
pra ser mulher daquele homem, que lhe tirou do seio do seu
lar, para torná-la cativa dele. Eu não sei o nome dela, nem da
minha bisavó, nem do pai da minha vó Baiana. Do que tenho
certeza é que os pais de vó morreram muito cedo. Deixando a
menina, Maria de Lourdes, órfã de pais e órfã de paz.
Sua avó, a minha tataravó, era muito doente, dessas
doenças que temos cá na família, coração capenga, sangue
doce, diabética. E vó Lourdes se viu numa situação difícil, não
tinha mais os pais, e a avó? Tava muito mais pra lá do que pra
cá. A menina, então, meteu-se no meio do mundo, com apenas
doze anos, lá vai Lourdes, que mais tarde seria conhecida por
Baiana, mundo à fora, lá vai Lourdes.
Ela teve uma bênção que a acompanhou por toda estrada,
pense numa mulher trabalhadeira. Botava a cara na estrada
sem um tostão no bolso, mas onde parava arrumava uma lona,
fazia uma barraca e ia vender peixe, tapioca, uma pinga pra
aliviar a alma do povo. E, assim, ela sobrevivia.
Um dia, conheceu Luciano, que depois descobrimos
que era Sebastião. O que leva Sebastião a ser conhecido por
Luciano, ninguém faz conta, ninguém sabe a história, e como
dizia aquele personagem cômico: “só sei que foi assim”. Pois
pronto, Lourdes se enrabichou por Luciano, casou-se com o
homem. Teve três filhos, dois meninos e uma menina.
Nem assim construindo família a vida foi boa pra ela.
Coitada! O marido era um bruto, ciumento e agressor, dessas
agressões que se a gente conta, quem ouve diz que é mentira,
que é “causo” inventado. Pois, bem. Né não. Das histórias que
sei, por que vó morreu eu era menina, tinha dez anos, mas
90
sempre ouvi contar pela boca de todos da família a mesma
história. Vó era mãe de papai, e tanto o povo do lado de pai,
quanto o do lado de mãe dizem numa boca só que, Luciano
era um cabra ruim, era não, é, que esse ainda tá vivo, lá pras
bandas do Maranhão.
Olha só a peleja, um dia o “bichinho”, do marido da preta
Baiana, resolveu dar uma surra na nêga, só que de facão. Quem
danado já viu alguém dar surra de facão? Com facão se mata.
A preta, num sei como, cravou os dentes numa das orelhas
do cabra, tentando se defender, de modo que, nunca mais
aquela orelha ele teve, ela arrancou nos dentes. Ela também
levou muita facada do marido, dizem que seu corpo tinha as
marcas de trinta e seis facadas.
Um dia, ela pegou a peixeira pra se defender, caiu pra
cima do “homi” o máximo que o corpo pode aguentar. Só que
o danado sobreviveu! Ela aproveitou, pegou os três pirralhos
e saiu fugindo Nordeste afora. Um dos lugares para onde ela
fugiu, foi pra Bahia, deve ser por isso que ganhou o apelido
de Baiana. Chegou em Natal fugida, lá meu avô a encontrou,
deu tanta facada nela, que nem sei como a danada sobreviveu.
Disseram que lá, ele abriu o bucho dela, de forma que as tripas
ficaram pra fora. Minha outra avó, mãe da minha mãe, é que
ajudou ela a se recuperar, ir pro hospital, se esconder. Tudo
isso que era preciso, pra permanecer viva.
Arre égua, de vida sofrida! Meu tio disse, que quando
eles chegaram em Natal, como não tinham canto pra onde ir,
se acomodaram num navio velho, que tava atracado ali, perto
do Passo da Pátria, que nos tempos mais difíceis comeram
palma no sertão, e cá, em Natal, no Passo, pata de caranguejo
do mangue.
91
O bom é que, por mais que a estrada tenha sido difícil,
ela teve gente amiga que pode ajudar no meio do caminho,
que nem aquela dona de cabaré muito conhecida na cidade
de Natal, Maria Boa. Maria Boa foi sua amiga, acolheu ela e
os meninos, ajudou no que podia, e só por amizade mesmo,
vó nunca teve que vender o corpo pra dar comida pros filhos.
Pra isso, ela vendia suas coisinhas em uma barraca, onde quer
que fosse.
A outra coisa boa, que ela carregava consigo era a certeza
de se sentir livre. Livre pra ir pra onde quisesse ir, livre daquele
homem ingrato, livre pra viver, mesmo que fosse uma vida
simples, pobre, mas por dentro, ela era rica. E uma das suas
maiores riquezas foi a luta pra ver os filhos estudarem, pra que
eles tivessem uma vida melhor. Eles não gostavam de estudar.
Contudo, meu pai virou sebista, gostava de ler, antes de
morrer me deu uns quatro livros de Jorge Amado, que tanto
gosto.
Meu tio, se tornou pintor de carro e, ela, pode viver seus
últimos dias na casa que ele comprou lá no Gramoré. No
quintal tinha um pé de urucum. Eu me lembro dela, dizendo
que era daquela semente que se fazia colorau.
Sua filha, Maria José, foi quem mais ficou em piores
condições, teve muitos filhos, de diferentes pais, morreu numa
situação muito penosa, coisa de cortar o coração.
Tanto tia, quanto pai, quanto vó todos morreram muito
cedo, todos na casa dos cinquenta anos.
Vó, quando morreu não se pode abrir o caixão, a carne
dela começou a apodrecer antes mesmo de morrer, que doença
hedionda! Os três eram diabéticos. Vó precisava fazer uma
cirurgia e não podia por causa da diabetes. Foi internada e
92
foi piorando até as carnes começarem a apodrecer. É de cortar
até a alma!
Apesar da sua história de sofrimento, quando se fala dela,
ressalta-se sua bondade, às vezes que ela cuidou de um ou de
outro, da sua capacidade de dividir o prato, com quem quer
que fosse que sentisse fome.
Havia na preta, Baiana, uma essência de luz, de forma que
ela não pode ver em vida seu sonho se realizar. Entretanto,
a luz se expandiu até após a sua morte. E hoje, se ela fosse
viva, teria tanto orgulho de ter uma neta formada, Mestra,
vixi Maria, seria uma alegria sem conta! E vê a outra com um
curso Técnico em Culinária, chefe de cozinha. Outro neto na
universidade cursando Matemática. O sonho dela se realizou
mesmo que ela não tenha podido ver.
Hoje conto sua história, pra que ela não fique esquecida,
pra que enterrado seja apenas o corpo, porém com memória
viva e consciente da nossa origem indígena e escrava.

93
Leila Santos
Filha amada e criada para ser
autêntica, honesta e forte. Mãe disposta
a se reconstruir para ser e fazer o
melhor por Ayla, sua filha, seu luar.
Muitas águas em um único rio!
E-mail: angelusnegros@gmail.com

Leina Gouveia
Aeromoça. Mãe dedicada de duas
(Niara e Lis). A força da mulher negra
com raízes periféricas e que tem como
maior riqueza o invisível desta vida.
E-mail: comissarialeina@hotmail.com

Sou Penha d’Uchôa!

“Eu sou do lar! Nunca me formei em faculdade, mas


uso a Administração e Economia para cuidar do dinheiro
que é pouco, uso da Pedagogia para educar minhas filhas,
e fazendo Economia Doméstica é que consigo sobreviver.
Então não me diminua por eu ser “do lar”. Assim nós, suas
filhas, começamos essa história. Maria da Penha Gouveia dos
Santos; árvore de raízes fortes e profundas que fincou num
chão valoroso; um caminho de frutos e sombra para quem
a procura. Nossa mãe nasceu em Recife, em 11 de agosto de
1958. Caçula de 06 irmãos, filhos de Agripino Gouveia Filho
e Sebastiana Gouveia da Silva. Casada com Leonildo José dos
Santos e avó de 05 netos: Ayla (06), filha de Leila, Niara (05)
e Lis (01), filhas de Leina, Letícia (11) e Davi (09) filhos de
Leonardo Cavalcanti Santos, seu enteado.
Viveu num local calmo: a vila de operários da fábrica
da Poty, na praia da Conceição, Paulista-PE, não passou
por privações dos itens necessários a sobrevivência física.
94
Entretanto as boas lembranças desse lugar são entrecortadas
pelas memórias de um ambiente familiar violento: além de
bater nos filhos, seu pai também agredia Dona Sebastiana,
sua mãe. Foram muitos os baques dos quais Penha precisou
se reerguer. A violência doméstica, a perda de sua mãe aos 14
anos e sua família desfazendo-se pela saída dos irmãos. Decide,
então, buscar uma vida menos agressiva, e aos 16 anos seguiu
seu caminho e também saiu de casa.

Dona Penha bebê: Arquivo pessoal

Entre quedas e recomeços, casou-se em 12 de março de


1981 em Jaboatão dos Guararapes com Leonildo. Um jovem
negro, boêmio e trabalhador. Que por necessidade e ausência
de formação, ingressa na Polícia Militar. E mesmo sem
concordar com todos os “códigos de conduta” da corporação
ficou nela até aposentar-se. Dona Penha viu em Leonildo
um homem bom, honesto, batalhador. Apaixonou-se e
decidiram seguir juntos pela vida. Apesar da inicial recusa
de seu companheiro em adquirir um terreno de “ocupação”
o fizeram, pois Dona Penha queria algo “seu” para começar
95
a nova vida. Em 16 de julho de 1981 mudaram-se para a
comunidade Jardim Uchôa, bairro de Areias, Zona Sudoeste
de Recife.
Uma parte de Jardim Uchôa apresentava infraestrutura
mínima de sobrevivência, mas nossos pais não tinham
condições de fixar-se nessa parte do bairro e por muito tempo
viveram em um “quatro paredes” (construções que não
possuem cômodos ou divisões) numa área onde não havia
saneamento, água, luz, calçamento ou nome em ruas, não
havia coleta de lixo, não chegavam cartas. Nada que pudesse
referenciar dignidade ou qualidade de vida. Era um local
esquecido pelos administradores da cidade. A partir daí Dona
Penha tornou-se Penha d’Uchôa! Iniciou sua luta por melhorias
no bairro em que vivia.
Nossa mãe entendia que aquela história de necessidade
não era só dela. Ter água, ter luz, conseguir receber cartas.
Aquela gente que estava chegando também queria viver
melhor. Ela acreditava que sozinha não conseguiria muita
coisa. Era uma luta muito grande e as necessidades maiores
ainda. Foi preciso juntar gente. Se unir e lutar. Assim fundou
em 1986 a Associação de Moradores do Jardim Uchôa, sendo
a primeira presidenta e ficando no cargo por muitos anos.
Travou muitas batalhas e mesmo tendo concluído sua
formação acadêmica já adulta e com filhas nunca se intimidou
pelos “estudados” que passaram em seu caminho. Acreditava
que melhorar sua vida, era melhorar sua comunidade e em
consequência melhorar sua cidade. Ela desejava que não fosse
necessário cobrar o que é direito, mas as lutas travadas em
Jardim Uchôa demonstravam exatamente o contrário. Não
havia compromisso político de gestores da cidade com as
96
comunidades pobres e a resolução dos problemas chegava num
tempo demasiado lento. Isso era desanimador para alguns,
mas Jardim Uchôa avançou muito!
Foi possível ter creche, posto de saúde, pavimentação,
esgotamento sanitário, revestimento de canal, água, luz,
correio, gabinete dentário, colocação de nomes nas ruas e as
duas maiores conquistas: a construção da Escola de Jardim
Uchôa e a transformação da área em ZEIS (Zona Especial de
Interesse Social). Em 28/02/1991 com a publicação da Lei nº
15463 no Diário Oficial de Recife, Jardim Uchôa foi oficializada
como uma ZEIS. A Lei do Plano de Regularização das Zonas
Especiais de Interesse Social-PREZEIS oferecia aos moradores
melhoria da qualidade de vida, pois previa a regularização
jurídica e integração na estrutura urbana da cidade.
A construção da escola deixou mais uma marca em Penha:
ela foi agredida pelo então prefeito da cidade. Em 1999 havia
o compromisso da prefeitura para a construção de uma
escola. Após estudos e reuniões, um terreno foi escolhido.
A comunidade afirmava que ali, por questões técnicas, não
seria um local adequado para a dita construção. Porém, os
representantes da prefeitura afirmavam que "até embaixo
d'água" se construía aquela escola. Após os estudos do terreno
foi "visto" pela prefeitura que não era possível a construção
no local. A escola foi erguida em outra comunidade. Jardim
Uchôa perdeu e questionou a prefeitura acerca disso.
Penha estava na URB- Autarquia de Urbanização do
Recife, em reunião do Fórum do PREZEIS (O Fórum do Plano
de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social
é um espaço institucional de articulação e deliberação dos
diversos segmentos que integram o PREZEIS, cujos objetivos
97
e atribuições estão previstos no art. 35 da Lei N° 16.113/95) e
por acaso encontrou-se com o prefeito. Na ocasião, o prefeito
agiu de maneira violenta e a agrediu fisicamente. O caso teve
repercussão midiática e foi repudiado, com passeata no centro
da cidade, por movimentos sociais no Recife. A escola da
comunidade foi construída em gestão posterior.

Foto do casamento: arquivo pessoal

Além das batalhas pelo coletivo, Penha tinha sua luta


doméstica: cuidados com a casa, nossa educação, administração
do pouco recurso financeiro e fazer Leonildo entender sua luta.
Para ele era difícil entender como Penha realizava aquele
trabalho. Sem ganhos financeiros, sem perspectivas políticas
partidárias e ainda “sendo mal falada pelo povo”. Sempre
tinha uma gracinha, um olhar torto para “aquela mulher” que
vivia na comunidade, andando e falando com outros homens.
Penha sempre foi firme e como menciona num vídeo
documentário Mulheres no Front- O Impacto das Lideranças
Femininas nas Comunidades, realizado para FNUAP/
UNICEF/UNIFEM, exibido na Conferência Habitat II, em
98
Istambul, 1996; Direção de Eduardo Coutinho (https://www.
youtube.com/watch?v=cposUWFPHhk): eu jamais ia trocar ele
por ninguém, eu posso ir para qualquer lugar, pode passar o homem
mais bonito, mas pra mim só tem o meu preto.
Ratificando, que como ela, sua luta era digna e séria no
final da década de 80, envolveu-se com a luta por melhores
condições de trabalho para os praças (cabos e soldados) da
Polícia Militar. Ela testemunhou a dificuldade de ser Policial
Militar. Viu a responsabilidade de seu esposo para garantir
segurança, proteger pessoas e patrimônios, quando ele próprio
não estava salvaguardado pelo Estado. Como sua família,
outras famílias de cabos e soldados viviam em favelas, em
más condições de habitabilidade e sofriam descasos nos
quartéis. A hierarquia e disciplina da instituição não permitiam
que os policiais reclamassem, por exemplo: a ausência de
banheiro em determinado quartel, a diferença de qualidade na
alimentação servida aos praças e aos oficiais. Então as esposas
foram à luta por seus maridos e famílias. Penha junto com
outras mulheres criou a Associação das Esposas dos Policiais
Militares de Pernambuco e enfrentaram o poder constituído.
Houve muita repressão. Policiais foram presos e numa
ocasião Penha também foi. Ao entregar panfletos, próximo a
um quartel, foi arrastada para uma viatura e junto com uma
companheira de luta foi levada ao Comando Geral da PMPE.
Foram interrogadas, fotografadas, xingadas e coagidas na
tentativa de fazê-las assinar um depoimento. Mesmo assim
continuou na luta. Fundou a Associação dos Familiares da
Polícia Militar de Pernambuco. Com a abertura política, os
policiais começaram a se mobilizar e criaram a Associação de
Cabos e Soldados. Ela entendeu que sua fala naquele espaço
99
já não era fundamental. Os policiais já tinham o direito de se
pronunciar, de lutar. Continuou sua luta por Jardim Uchôa.
A preservação da Mata do Engenho Uchôa é luta contínua,
Reserva Mundial de Biosfera reconhecida pela ONU, é
importante para o equilíbrio ecológico da região e da cidade.
Desde os anos 70 ambientalistas e moradores da vizinhança
lutam por sua preservação. Considerando um privilégio viver
tão perto dessa riqueza, Penha d’Uchôa luta pela destinação
de uso público e cultural desse espaço.
Com os anos novos moradores foram chegando a Jardim
Uchôa e especularam acerca de “tanta disponibilidade” de
Penha. Qual a motivação dela? Quanto ganha? Quem apoia?
Qual o cargo que deseja na política? Outras instituições
surgiram: Clube de mães, Conselho de Moradores, IDESC.
Algo que Penha acreditava ser positivo. Quanto mais gente
lutando por Jardim Uchôa, mais conquistas viriam. Entretanto
houve uma desarticulação na comunidade e ao invés de
fortalecer, tais organizações e suas lideranças, fragmentaram
a organização de Jardim Uchôa.

Recorte de matéria do Jornal Folha de Pernambuco,


publicado em 25/11/1989

100
Optando por ligações partidárias que adotam a política do
“pão e circo” a movimentação da comunidade enfraqueceu.
Vários projetos e atividades deixaram de funcionar, demandas
coletivas e de temporalidade maior deram lugar a festejos de
datas. E hoje não existe uma mobilização forte na comunidade.
Apesar da conjuntura político-social desmotivadora, Penha
d’Uchôa resiste. Erguendo sempre sua voz em defesa da Mata
Uchôa e na Articulação Recife de Luta que defende e cobra a
efetivação da lei do PREZEIS. Não há como melhorar o país, sem
melhorar o Estado, sem melhorar a cidade. E pra começar tudo isso é
preciso investir nas pessoas. Pergunte quem é Penha: ela continua
lá. Mas não esqueça...
É Penha d’Uchôa!! Há o legado...

Participação em atividade sobre o movimento Ocupe Estelita.


Junho - 2019. Foto Leila Santos

101
Luíza Cavalcante
Vivo no Sítio Ágatha em Tracunhaém
PE. Sou agricultora e militante
de movimentos sociais feminista,
anteracissita e agroecológico. Mãe e
avó. Estou estreando como escritora.
@luizacavalcante62

De Nbundo ao Ágatha

Sou Bisneta de Sá Fuló. Quando eu era criança, costumava


ouvir minha vó conversando com as cumades. Era comum, elas
perguntarem pra vó: Honorata, de que povo tu veio? Minha vó
lhes respondia: Vim do Povo de bunda!!! Escondidos, eu e meus
irmãos ríamos e ríamos! Pra nós, naquela inocência, ela se referia
às nádegas. Ela tinha belas nádegas grandes. Quando cresci e
estudei, descobri que minha avó falava do Povo Nbundo.
Em fevereiro de 1997 ocupei a terra na luta pela reforma
agrária. Dias depois procurei minha avó e lhe disse: Vó Eu
estou morando num acampamento Sem Terra no município de
Tracunhaém. Minha avó muito espantada falou: Minha filha,
você voltou pra tribo! Voltei pra tribo!? Pega de surpresa, eu
perguntei: Como vó, voltei pra tribo? Me conte o que é isso.
Minha vó então me contou que nasceu neste município no
engenho Vinagre. Ela me disse que sua mãe e seu pai foram
sequestrados de África para serem escravizados no engenho
Vinagre no monocultivo de cana-de-açúcar. Com saudade no
102
olhar, ela falou: Minha mãe era uma mulher linda! Ela recordou
que quando era criança entre seis e sete anos, sua mãe foi
buscar água no rio como fazia todo dia, porém, neste dia sua
mãe não voltou. O povo saiu a procurá-la não encontrou. O
rio não devolveu o corpo porque nele ela não entrou. Minha
avó cresceu sem sua mãe. Um dia, a dona do engenho pediu a
seu pai José Deodato que a entregasse para ser cuidada na casa
grande. Assim, minha avó passou a ser criada pela senhora
do engenho Vinagre.
Vó Honorata me contou que conheceu todos os engenhos
da Comarca de Nazaré da Mata. Por ser o engenho Vinagre
produtor da melhor cachaça da região, toda semana eram
convidados a irem à festa. Os outros engenhos compravam
a cachaça e convidavam o povo do Vinagre. Aí, a senhora
arrumava as meninas pretinhos pra serem suas acompanhantes
até a festa! Elas iam em carros de bois e assim, vó Honorata
conheceu toda a comarca. Quando minha avó fez 18 anos, um
jovem a pediu em casamento. A senhora consentiu e fizeram
uma grande festa!
Após o casório, o marido a trouxe pra morar em Recife,
Casa Amarela. Nesse bairro, Vó Honorata criou seus 4 filhos:
Esmeraldo, Maria José, Paulo e Zeza.
Minha mãe, Maria José, me contou que sua mãe, Honorata,
sofreu muito pra criar seus 4 filhos. Lavava roupa de ganho.
Costurava. Minha mãe conta que andavam léguas pra ir buscar
imensas trouxas de roupas, depois para entregar limpas. Minha
avó mal podia se ajudar e pôr a trouxa na cabeça. Honorata
Maria filha de Sá Fuló e José Deodato viveu 105 anos até 2009.
Sua vida foi bem honrada especialmente pelos mais novos
da sua extensa família. Vó Honorata foi uma mulher alegre.
103
Ela nos ensinou a não ser submissa a homens, a não aceitar o
racismo. Com ela, aprendi a observar os efeitos do tempo sobre
nosso corpo. Com seu lindo e permanente sorriso, minha avó
dizia: minha netinha, fale mais alto pois sua vó já está com
as ouças curtas! Ou então, minha netinha chegue mais perto
porque sua vó, já está com as vistas curta!
Honorata, filha de Sá Fuló e mãe de Maria José, soube
aproveitar sua vida apesar dos sofrimentos impostos. Faleceu
em casa com toda saúde e lucidez que o tempo lhe permitiu.
Cada dia, ela diminuía um pouco a vitalidade. Foi lindo poder
acompanhá-la. Uma grande oportunidade que a vida nos deu.
Minha avó Honorata descendia do Povo Nbundo em África.
Eu sei de onde vim.
Sou filha de Lilia. Maria José, filha de Honarata Maria.
Minha mãe é uma admirável guerreira! Dona de uma grande
alegria! Nas minhas memórias de infância, ela está sempre a
cantar, a dançar com a gente, seus filhos, entre a máquina de
costura e outros afazeres. Mamãe fez 18 barrigas. Duas foram
abortos, nasceram 16. Criaram-se 10. Hoje ela tem 8 filhos
vivos, 4 mulheres e 4 homens.
Minha mãe apesar da alegria e invejável vitalidade, traz
consigo muitas dores afetivas, sepultou tantos filhos, irmãos,
sobrinhos, netos, bisnetos, pai, mãe, marido, amigas, cunhadas,
noras. Muitas batalhas em sua vida. Ela é uma inspiração!
Começou a trabalhar aos 12 anos, numa fábrica de confeitos
no Recife, ela. Mamãe tinha a função de embrulhar os confeitos
juntamente com outras meninas. Um certo dia, o patrão chegou
por trás dela, e foi se encostando! Mamãe disse que sentiu tanta
raiva, virou-se e o esbofeteou, chamando-o de cabra safado.
Em seguida, ela correu pra casa, contou a minha avó que foi lá
104
também cobrar do sujeito. Até hoje, mamãe não tolera assédio.
Aprendemos cedo com ela, a nos defender do machismo.
Mamãe sempre trabalhou como costureira. Costureira de mão
cheia, das boas! Ela aprendeu com sua mãe.
Nessa labuta diária costurando em domicílio, minha mãe
todo dia enfrentava o assédio do machismo. No ônibus cheio,
ela era obrigada a ameaçar ou mesmo bater em cabras safados.
Minha mãe conta que quando eles se encostavam nela, ela
puxava um alfinete na bolsa e os espetava. Pra nós, soava
indignadamente engraçado ela contando os fatos! Quando
espetado, o safado dizia: Oxe dona Maria, tá ficando doida? Ela
logo respondia: Doida o que seu canalha, me respeite. Você tá
querendo se esfregar em mim. _ Tá vendo essa canhota aqui?
Ela mostrava a mão esquerda empunhada. _ Dou lhe um soco
na cara. Na verdade, quando ela falava, o soco finalizava no
meio da cara dele! O motorista parava o ônibus pro safado
descer acompanhado de vaias. Todo dia isso se repetia durante
anos. Até que nós filhos, a convencemos a de trabalhar em
casa pra evitar perigos maiores, ela já estava com muita idade.
Esses fatos ainda hoje servem pra dar boas risadas. Minha mãe
conta com muito bom humor, suas estratégias de autodefesa na
rua e com isso ela educa sua família, os homens a respeitarem
as mulheres em todo e qualquer lugar, e a nós mulheres, a
sabermos garantir nosso direito de não ser assediadas.
Mamãe nos ensinou a indignação e combate ao racismo
e as injustiças. Com ela aprendi o gosto pela vida. Aprendi
a cantar, dançar, costurar, fazer amizades. Aprendi a sorrir
a cozinhar. Aprendi a partilhar com igualdade o pão. Com
mamãe aprendi a conhecer as plantas, fazer usos pra curar
as feridas, pra manter a saúde. Com minha mãe, continuo
105
aprendendo a envelhecer sem perder a graça, a leveza, a
vivacidade. Juntas, aprendemos com Honorata a observar os
efeitos do tempo sobre nós, sem perder a ternura e alegria. Sou
grata as minhas mais velhas.
Eu nasci em 31 de agosto de 1960. Foi um dia muito
esperado, contou-me minha mãe! Após tantas perdas de
filhos nascidos e já conseguido manter dois meninos vivos,
finalmente minha mãe diz a meu pai: Rubens, tou grávida de
uma menina. Ele recebeu com alegria e daí, ambos esperaram
com muitos cuidados! Mamãe contava os sóis pra saber com
quantas semanas estava de gravidez! Acredito ser isso, uma
das razões de eu ser luz. Ela me contou que um dia, uma
senhora mais velha, lhe aconselhou a pôr o nome de Luíza. A
senhora lhe disse: Luíza quer dizer luz. E a luz vai fazer com
que seus novos filhos vinguem. Todos que vierem depois de
mim cresceram. E assim foi. Minha mãe sustentou 10 barrigas,
hoje somos oito seus filhos vivos. 4 mulheres e 4 homens.
Mas voltando a agosto de 1960, chegou dia 30 e eu não
nascia. Mamãe conta das cumades na expectativa de comer
do pirão da parida. Era costume preparar uma galinha gorda
pra fazer um pirão pra mulher parida. As vizinhas, todas
comiam junto e disputavam os pés da galinha. Era uma farra.
Nessa expectativa, as cumades começaram a dizer que mamãe
errara a data. Mamãe respondia a elas: sosseguem, amanhã
ainda é 31. Chegou 31. Veio a noite e nada. Todas riam e
duvidavam! Mamãe perseverava: A noite ainda não acabou.
Dizia. Finalmente às 22:30hs, mamãe diz: Rubens, vai buscar
a parteira. Mãe Tonha veio e eu nasci às 22:45hs. Nasci em
casa. Minha mãe conta que nasci rodeada de muita alegria,
muito riso, sou luz.
106
Cresci viçosa, saudável! Mamãe e papai sempre
comentaram que a partir de mim, aprenderam muito a cuidar
dos nascidos e todos vingaram!
Cresci num quilombo urbano de Casa Amarela. Aí,
comecei minha militância por direitos, vendo meus pais
atuando na comunidade. Também ainda pequenina, vi a
ditadura militar se instalar no país. Fiquei marcada pra sempre.
Guardo como se fosse hoje, os gritos, a agonia, os medos, a cor
do dia, as vozes nos rádios. As sirenes da polícia no córrego do
Zé Grande. Cresci. Continuo a luta. Sou mãe de Nzinga, uma
rainha guerreira. Sou avó de Ágatha Vitória, uma linda afro
princesa. Somos juntas, agricultoras afroecológicas, morando
em área de reforma agrária.
Somos juntas, gestoras do Sítio Ágatha e aqui, nossas
histórias se recruzam! Aqui, estamos em território de
RETOMADA ANCESTRAL. O sítio Ágatha tem ao fundo,
o engenho Vinagre, território onde Sá Fuló e José Deodato
foram aportados pra trabalho escravo na cana de açúcar. Nesse
território minha bisavó foi dada sumiço. Foi buscar água no
rio e nunca voltou. Nesse território minha avó nasceu, cresceu,
casou. Aqui está o suor e sangue de meus ancestrais. Nesse
território suas almas e corpos estiveram presos por séculos.
Eu, minha filha, minha netinha, fomos escolhidas pra resgatar
nossa ancestralidade, que hoje habita em paz aqui no Sítio
Ágatha. Axé! Somos nós, 4, 5 e 6 gerações do Povo Nbundo
sequestrados de Angola em África, vivendo o desafio de
construir autonomia e autogestão matriarcal em diáspora.
GRATIAXÉ as que nos antecederam. Nossos passos vêm
de Angola, vem do Nbundo.

107
Esta foto representa a ancestralidade do Sítio Ágatha- SANKOFA =
Passado, Presente, Futuro. Sankofa é um provérbio do Povo Adinkra
que diz: O futuro é o passado, o passado é futuro. O presente precisa
olhar para trás e formar o futuro

108
Magda Santiago
Educadora popular e ativista cultural,
moradora da comunidade de Passarinho e
tem grande atuação na agricultura urbana.É
terapeuta holística, reikiana no sistema Usui
de cura natural, realiza massagem intuitiva
e atua como condutora e guardiã de circulos
femininos.
@magda_2017_flor
E-mail: reikiana2015@gmail.com

Herdeira de uma jornada...

Sou eu ser mulher. Sou Livre, pois fui prisão. Feliz, pois
fui tristeza. Sou luz, pois fui trevas. Multidão, pois fui só. Sou
crença, pois fui nada. Sou minha, pois fui de muitos...Sou eu
ser, negra, mulher. Que venço o medo. Liberto as palavras. E
ainda tento entender tua alma!

109
Sou Magda, a décima segunda filha de Maria José da
Silva. Assim me falaram, ela é Maria em homenagem a Nossa
Senhora e José em homenagem ao pai de Jesus.
Dona Zezé, como é conhecida minha mãe. Sempre foi uma
mulher forte, alegre, vaidosa, que vivenciou muitas dores
e venceu algumas lutas. O que conheço de sua história foi
através das conversas com as pessoas mais velhas da família.
Alguns fatos aqui narrados ela asseverou, mas de fato pouco
contou. Recentemente fomos visitar nossas tias adotivas Lia
e Ivonete, que a muitos não as víamos, elas contaram-nos
que sua irmã, minha avó Lídia Quirino da Silva tinha uma
amiga, que trabalhavam juntas costurando e lavando para o
exército. Ester Borges, a amiga da minha avó, soube através
de sua irmã Leonor, da adoção de uma menina, minha mãe,
nascida em 11 de setembro de 1934, no interior de PE. Vó Lídia
conversou com seu irmão Francisco Quirino que concordou
com a vinda da menina para morar com eles no Bairro de
Água Fria.
Aos 13 anos minha mãe casou com meu pai, João Santiago
da Silva, com quem vive até os dias atuais. E sempre nos
tempos de homenagem a Nossa Senhora iam visitar tia Ester no
Morro da Conceição, em Casa Amarela. E por conta da situação
de saúde de tia Ester vieram morar na casa dela, em frente à
Escola de Samba Galeria do Ritmo. No Morro participaram na
organização da comunidade, com muitas ações culturais. No
Morro se criou quase toda nossa família. Hoje por questões
sociais e de ordem familiar muitos da família não residem mais
no Morro. Mãe teve 18 filhos, todos registrados com nomes
iniciados pelas as letras “M” e “J”.

110
Tem entre nós Maria de Fátima, Maria Cecília, Maria
Auxiliadora, Marluce, Mauricio, Manoel, que já faleceram.
Marlene, Mauricéa, Maristela, Márcia, Margarida, Magda,
Marta e ainda José Dionísio, Marcos Antônio, Marcelo, João
Santiago, Marcio.
A vida de minha mãe é um exemplo de fé. Vivendo sempre
alegre em torno da família. Lembro que na infância em nossa
casa sempre tínhamos muitas plantas, ela cozinhando as
comidas de todos os ciclos festivos, nossa casa sempre decorada
com o tema da época. Sempre tinha um bom suco pra quem
comesse todo seu alimento. E todas as noites, religiosamente
às 18 horas, ao bater do sino da igreja no Morro, nos reuníamos
junto ao rádio, na sala para rezar Rosário em Família. Certa
vez pronunciei a Salve Rainha de forma incorreta, todos
começaram a rir, fiquei de castigo, recebi uma reclamação.

Lídia Quirino Ester Borges

111
Durante os encontros para organização deste livro fui
informada que o “Rosário em Família” foi uma estratégia
da Igreja em apoio ao governo militar para desmobilizar as
reuniões de organizações populares. Minha mãe, como tantas
outras mulheres, conseguia transformar estes momentos para
orientar os filhos nos bons costumes e acalmar a família depois
de um dia de atividades. Depois da reza os mais novos íamos
para o quarto e ela ficava na sala costurando, conversando
com meu pai e os adultos esperando para ouvir radionovela
e a meia noite o programa de contos de terror “Mistério do
Além”. Lembro também que na adolescência, na época da
fome, ela cozinhava uma deliciosa sopa feita com pele de
sobras da limpeza da carne de picanha, comprada com muito
esforço por minha avó Lídia, que sempre saía cedo e chegava
no fim da tarde com alguma comida a única do dia. Hoje
com seus 86 anos continua rezando o terço, preservando seu
encontro com MARIA mãe de Jesus, o momento de alimentar
sua fé e consagrar sua devoção para pedir a proteção divina
para tantos...
E eu, nascida em casa em julho de 1969, um dia de
domingo no bairro de Água Fria. Minha mãe me contou
que chovia bastante e tinha feito muitas comidas de milho,
era o mês de Sant’Ana a avó de Jesus. Meu pai não estava
em casa, um tio saiu pra buscar a parteira em Caixa D’água.
Sou de descendência Africana por parte de mãe, indígena e
portuguesa por parte de pai, tenho uma caminhada regada
por vivências com afetos e aromas. Cresci no bairro de Casa
Amarela, onde sou ligada a mobilizações sociais por busca
de melhoria e efetivação de políticas públicas. No Morro da
Conceição minha juventude foi marcada pela participação
112
na luta por melhores condições de vida para a comunidade.
Ainda jovem fiz parte do Conselho de Moradores, atuando
em várias comissões. Participei na comissão de habitação,
organização esta que favoreceu a conquista de 350 lotes para
moradores do bairro, dando surgimento a Vila Nossa Senhora
da Conceição no bairro de Passarinho. Fui contemplada
com um lote, realizando o sonho da casa própria, onde fixei
moradia. Participo ativamente da construção e organização
social da Vila Nossa Senhora da Conceição, onde moro.
Tenho uma filha, chamada Rita de Cássia e sou avó de um
adolescente, Zeus Santiago. Outras irmãs e irmãos também
têm forte engajamento na luta comunitária, e eu como minha
mãe, também busco envolver a minha filha e meu neto em
ações e de organizações sociais.

Tia Lia Tia Ivonete Mãe Maria José

113
Sobre a vida, tive conquistas e decepções que marcaram
minha caminhada de militante e mulher negra. Minha casa não
tem um grande espaço, mas é um local de afirmação feminina
e preservação do meio ambiente, um espaço de organização
política e lazer. Nele cultivo as habilidades herdadas da
família, cultivo muda de plantas medicinais, ornamentais e
hortaliças, sempre busco conhecimento para fazer a vida, mais
harmoniosa. Tenho como proposta organizar e contribuir com
movimentos por melhores condições de vida, ora criando, ora
desenvolvendo atividades em várias comunidades. A cada dia
está mais claro que só através do afeto e da coletividade será
possível viver melhor. E Para a construção de uma sociedade
com dignidade é preciso entender que sem organização
comunitária e trabalho coletivo não avançaremos.

Mãe Maria José Eu Magda Pai João Santiago

114
De minha mãe Dona Zezé herdei a força de nunca perder
a alegria. A coragem para mudar, tanto de espaço físico como
o relacionamento com os homens.
Certa vez em desabafo, na cozinha ela falou para nós, suas
filhas, em alto e bom som. _Vocês não precisam sofrer com
homem, trabalhem, estudem. Essas palavras me deram força
para cuidar da vida. Então é no plantio dos grãos, no usar das
ervas, no regar a flor que sigo minha jornada. Fortalecendo as
redes e mantendo as relações mais saudáveis para acalmar o
coração e alegrar a alma.

115
Maria Graciane
Sétima dos oito filhos de Djalma e Maria
Adelayde. Sobretudo, mãe, esposa, avó e
Professora apaixonada.
E-mail: gracianecmelo19@gmail.com

Maria, todo dia celebrada

São João Novo, lugarejo do Município de Pombos, em


Pernambuco, recebia, no dia 02 de abril de 1935, a primeira
filha do casal José Bibiano e Adelayde Maria. Em homenagem
a sua mãe, a linda menina recebeu o nome de Maria Adelayde.
No decorrer da vida, Adelayde (a filha) ficou reconhecida
como Maria, diferenciando da identificação da mãe, que era
chamada por todos de Adelayde. Sim, Adelayde com Y. A
decisão de colocar essa letra, que nem fazia parte do nosso
alfabeto, não se tem notícias, deixando-nos com aquela
curiosidade que precisará ficar adormecida.
Um detalhe... Maria foi registrada em 26 de junho de
1935, mais de dois meses após seu nascimento. José Bibiano
foi o “culpado” por essa façanha. Conta-se que ele, chegando
ao cartório da cidade, achou que deveria colocar a data em
que Maria estava sendo registrada e não a data em que havia
nascido de fato. Maria então pode usufruir de duas datas
comemorativas para sua vinda ao mundo. Privilégio de
116
poucos... Mas sabe de uma coisa? Maria é daquelas pessoas
que a gente sente a maior alegria em celebrar sua vida todos
os dias. Todo dia é dia de Maria!

Ser a primeira filha tem seus encantos... Mas, imagine,


há oitenta e cinco anos, o “peso” da responsabilidade de ser
irmã mais velha dos outros irmãos que iam chegando, com
intervalos de pouco mais de um ano. O gênero, já trazia os
encargos dos afazeres todos do mundo... E Maria, sem fugir
à regra do tempo, aos nove anos já cuidava dos “pequenos”.
Dava banho, lavava as roupas, fazia comida, varria a casa
(com aquelas vassouras feitas de mato). Chegava ao fim do
dia exausta e nem sentia a dor da dormida, muitas vezes em
esteira e nos melhores momentos, em colchão de capim. Aquele
que dá uma coceirinha... Quem já dormiu num desses, sabe
bem do que estou falando.
Mas Maria teve o prazer de ir à escola. Ela não sabe ao
certo com quantos anos, mas lembra muito bem como foi seu
117
primeiro dia de aula. Ela conta, entre risos, que só conhecia a
imagem de Professoras nas folhinhas de calendário. Ao chegar
naquele espaço tão distante (inclusive fisicamente), a menina
beliscou a Professora para saber se era de carne (risos). A
reação da Professora foi, ainda bem, um olhar afetuoso, porém
intrigado. Mas esse fato não trouxe maiores repercussões. Ufa!!!
Maria não ficou de joelho no milho! Talvez essa Professora
tivesse uma alma freiriana.

Aos sete ou oito anos Maria vem com a família para Recife.
Naquele tempo, os pais não conversavam com os filhos sobre
suas decisões, por isso Maria não sabe por que essa saída da
tranquilidade do campo, para os gargalos da cidade grande.
A vida foi ficando mais difícil! Morou, a princípio, em
um lugar chamado Azulão, depois no bairro de Cavaleiro e
pouco tempo depois no bairro do Pacheco, os dois últimos sob
a jurisdição de Jaboatão dos Guararapes. Pacheco foi o lugar
de moradia até sua saída de casa, já na vida adulta.
Nessa última casa, agora já com oito irmãos, a menina
(filha mais velha), assumia cada vez mais a tarefa de cuidadora
de todos. Maria era a responsável pelo cuidado com a
118
organização do lar e dos irmãos. Mesmo com esse cenário, ela
estudou até o 4º ano primário na Escola Alberto Torres, que
era, na época, escola agrícola. Esse pouco estudo lhe rendera o
gosto pela escrita, sobretudo dos registros de acontecimentos
diários em seu caderninho, hábito que ela cultiva até os dias
de hoje. Além disso, era ela quem lia a Bíblia para seu pai,
Católico fervoroso, que não faltava à missa dominical, porém
era analfabeto e cego de um olho. (Por influência dos seus pais,
Maria tornou-se também uma Católica fervorosa, devota de
Nossa Senhora e da reza do Terço, mais tarde entrando para o
grupo “Filhas de Maria” e Apostolado da Oração na Paróquia
de Nossa Senhora do Rosário, em Tejipió). Dentre os afazeres
domésticos, Maria lembra com um misto de sentimentos, suas
idas à cacimba de “Seus” Prazeres, de onde trazia a lata d’água
na cabeça. Água fria e doce para encher a jarra e cobrir com
um paninho branquinho, a fim de matar a sede da família.
Quando os irmãos homens foram crescendo, essa tarefa lhes
foi conferida.
Maria era muito inteligente e observadora. No seu íntimo
nutria a vontade de se libertar daquela vida de ocupações.
Entre doze e quinze anos aprendeu a costurar calça de
homem. José Bibiano, vendo o esforço da filha, mesmo com
o dinheirinho curto, lhe presenteou com uma máquina de
costura. Maria, vendo o sacrifício do pai, fez questão de pagar
as prestações da máquina com seu trabalho. Ela trabalhava
para duas alfaiatarias. Começou a ganhar seu dinheirinho que
lhe proporcionou comprar suas roupas. Comprou seu primeiro
relógio! Comprou trancelim e brincos... Ah, e também um anel
de ouro 18 na Joalharia Aliada. Isso já demonstrara o quanto
ela havia herdado um pouco da vaidade da sua mãe Adelayde,
119
mas que a vida de tantos afazeres havia abafado.
Entre 20 e 21 anos o amor bateu forte no coração de Maria.
Um homem alto, com roupas de linho branco, conquistou seu
coração. Mas seu amor, Djalma, conhecido como Jaime, não
era do agrado do seu pai José Bibiano. Jaime era divorciado...
Maria então resolveu enfrentar tudo para viver seu romance.
Saiu de casa, num ato de muita coragem. Após alguns anos
voltou a morar no mesmo bairro, em frete a casa dos seus
pais. Isso causou a reaproximação entre eles, já que a relação
estava estremecida. Até bem pouco tempo, Maria não gostava
de contar esse acontecimento da sua vida. Segundo ela, seria
um mau exemplo para suas filhas e netas. Qual nada... A cada
uma que chegava essa história, a admiração por aquela mulher
só aumentava. Maria era verdadeiramente uma mulher além
do seu tempo.

Depois do “casamento”, Maria se transformou em “Maria


de Jaime”. Uma tentativa histórica de manter a identidade da
mulher sob os desejos do marido. Os dois estiveram casados
até a morte de Jaime. Tiveram nove filhos e a última, morreu
de “doença de menino”.
120
A vida de casada trouxe para Maria muito sofrimento. O
dinheiro era curto e mesmo assim, ela deixou sua profissão
para se dedicar novamente ao cuidado da casa e de tantos
filhos, também nascidos em pequenos intervalos de tempo.
Maria não se sente à vontade em contar os detalhes do
relacionamento do casal, mas lembra que muito jovem, Jaime
adoeceu. Ele era Maquinista e teve o afastamento do trabalho
em virtude dos inúmeros AVCs. Com isso a vida de Maria foi
ficando cada vez mais difícil.
Maria e Jaime, mesmo em meio às agruras, sempre
apostaram nos estudos dos filhos. Nenhum deixou de estudar,
pois “pra ser alguém na vida”, tinha que passar pelos bancos
da escola.
E o amor da vida de Maria parte para a eternidade aos 50
anos de idade. Após esse fato, certo dia Maria, ao olhar sua
imagem refletida em uma foto, não se reconheceu. Aquela
não era a jovem que causava admiração de todos pela sua
beleza. Ela estava numa magreza só. Mas o tempo é nosso
grande aliado... Maria, agora viúva, vai se permitindo um
novo respiro, ela não é mais “Maria de Jaime”. Vai tomando as
rédeas da sua vida. Começa uma sessão de pequenas viagens,
vai conhecendo lugares que nem pensava ir.
Os filhos e filhas já não a encontravam tão disponível
a qualquer hora. Ela estava renovando seu desejo de viver.
Os filhos foram crescendo, conquistando autonomia, ajudando
nas despesas da casa, construindo suas famílias e Maria é hoje
uma linda senhora de 85 anos amada e admirada por todos,
sobretudo pelos seus oito filhos: José Carlos, Carlos Alberto,
Maria das Graças, Jailson, Maria Graciete, Jailton Paulo, Maria
Graciane e Maria Gracineide.
121
Em 1995, motivada por Padre Aníbal, Pároco da Paróquia
que ela frequentava, começou um projeto comunitário para a
construção de uma capela no bairro em que morava (Pacheco).
Maria se descobria uma líder nata! Foi buscando parcerias com
moradores, com comerciantes do bairro, com os “homens de
boa vontade”. Após alguns anos de intensas campanhas, viu
seu sonho (que não era só seu) ser realizado. Estava de pé a
Capela de São Dimas, aquele a quem a tradição oral atribui o
termo de “bom ladrão”.

Uma velha sábia! Quem não gosta de sentar à mesa com


ela, tomando um cafezinho com um bolo de fubá ou um pão
caseiro? Aliás, desconheço o que não sai gostoso de suas mãos
enrugadas pelo tempo, mas de uma firmeza indescritível.
Uma saudade danada daqueles momentos... Em tempos
122
pandêmicos, as visitas à Maria se reduzem a minutos... Sem
abraços, sorriso escondido pelas máscaras, ela sorri com os
olhos, com os pequenos olhos.
Uma velha sábia! Conversar com ela é um refrigério!
Incapaz de lançar julgamentos e preconceitos, Maria acolhe
a todos em seu coração. Sua casa tem aquilo que chamamos
de energia boa, um cantinho na sala repleto de imagens de
santos, não deixa Maria esquecer suas origens, suas crenças,...
Velha sábia! Dos 8 filhos de Maria, floriram 15 netos e 14
bisnetos. Ela hoje divide seu tempo entre o cuidado com sua
casa, com seu jardim e com sua máquina de costura. Encontrou
na confecção de máscaras, bolsas e necessaires, uma forma de
fugir do conjunto de emoções que foram e são experimentadas
nesse tempo. Maria é empática com as dores do mundo, mas
tem uma alegria que nos encanta.
Velha sábia, Maria também gosta da tecnologia! Ela
acompanha as mudanças impostas pela dinâmica da vida,
mesmo com suas limitações. No seu instagram vai, com
ajuda da neta Jullyana, apresentando suas produções. Ah,
ela também usa o WhatsApp, com mensagens e chamadas de
vídeo. Aos sábados, marca presença com os filhos numa sala
virtual para a oração semanal. Essas coisas, segundo ela, são
uma bênção de Deus”.
Velha sábia! Maria ama a vida! E nós, amamos Maria! Ah,
ficaram curiosos para saber qual o meu grau de aproximação
com Maria?
Ela é minha mãe! São meus olhos que a descrevem, a partir
das nossas conversas e o que é melhor, a partir das nossas
vivências.

123
Maria Ribeiro
Nascida em Recife e mora em Olinda desde
muito jovem. Formada em Pedagogia
com especialização em Educação especial.
Atualmente trabalha com Educação infantil no
município do Paulista - PE.
@mariaribeiro7943
E-mail: mariahribeiro29@gmail.com

Vovó Zefinha

Josefa Pereira da Silva, nascida em Vicência, interior de


Pernambuco, filha de um português chamado Isaias e uma
pernambucana de nome desconhecido por ela durante a
infância e a juventude. Josefa não sabia nem ao menos seu
nome completo, tudo que sabia era que se chamava Josefa. E
lhe contaram que seu nome era Josefa porque nasceu no dia
de São José (19 de março), mas não souberam lhe informar o
ano exato. Quando precisou tirar seu registro de nascimento,
ela escolheu o ano de 1906 e um sobrenome qualquer, passou a
assinar Josefa Pereira da Silva. Da mesma forma, nesta ocasião,
escolheu o nome Severina Madalena para preencher o espaço
do nome da genitora no documento. Pois sua mãe faleceu
quando ela tinha apenas dois anos de idade. Ficaram órfãos,
ela mais duas irmãs que se chamavam Madalena e Francisca
e um irmão que se chamava Manoel. Seu pai, quando se viu
só, resolveu dar os quatro filhos, que seguiram por caminhos
diferentes. O povo da localidade falava que o Sr. Isaias, depois
124
de dar os filhos, teria voltado para Portugal. História essa que
lhe foi contada.
Josefa era a filha mais nova quando a mãe faleceu, o
irmão mais velho tinha cerca de 10 anos. Ela foi criada por
uma família que a tratou como serviçal, não conheceu carinho
de mãe, nem sabia o que era ter uma família de verdade. A
situação que viveu nesta casa hoje é definida em lei como
trabalho análogo a escravidão, na época era muito comum
para crianças pobres e órfãs. Ficou com aquela família até
mais ou menos 8 anos de idade. Quando fugiu com a ajuda
de uma senhora que frequentava a casa e se compadeceu de
seu sofrimento. Assim foi trazida para Recife, e levada para
trabalhar na casa de um médico muito conhecido. Nunca foi
à escola, mesmo assim, aprendeu a ler e a escrever com a filha
da patroa que era professora e lhe ensinava à noite escondido
da mãe, a luz de candeeiro. Ela permaneceu nesta casa até a
sua adolescência. Depois ampliou seus conhecimentos sobre
a cidade, conheceu outras pessoas e trabalhou para outras
famílias. Assim viveu até conhecer seu primeiro marido, que
se chamava João Henrique.
Deste casamento Josefa teve um casal de filhos; Gildo e
Creuza. Com seus filhos ainda crianças, seu marido morre
afogado no açude da Macaxeira, bairro do Recife, lhe deixando
duas casinhas, a que ela morava e outra que alugava para se
manter. Como era muito pouco o dinheiro que conseguia com
esse aluguel, precisava lavar roupa de ganho e criar porcos,
galinhas e outros animais para completar a renda. Daí tirava
seu sustento e de seus filhos.
Mais tarde, Josefa conhece José de Almeida, com quem
se juntou. Deste segundo relacionamento, Josefa teve mais
125
duas filhas: Maria José e Valdeci. José de Almeida trabalhava
no carvão de pedra, atividade de carregar e descarregar os
navios no Cais do Porto, com carvão e outros produtos para
exportação e importação. O casal vivia na Mangabeira, bairro
de Recife, em uma das casinhas deixadas pelo primeiro
marido.
Em 1936 construíram uma casinha de taipa na encosta
do Morro da Conceição. Nessa época era possível ocupar
um terreno grande, onde além de construir a casa, plantaram
árvores frutíferas e outras espécies comestíveis, cavaram uma
cacimba, e criavam animais. Ele passava semanas sem vir em
casa por conta do trabalho e ela ficava sozinha cuidando dos
filhos, dos animais e lavando roupa de ganho. Para alimentar
os animais precisavam sair em busca de restos de alimentos
nos bares do centro comercial do bairro e frutas nos sítios da
vizinhança. Juntando os restos de alimento fazia-se a mistura
que chamavam de lavagem. Era necessário continuar com
essas atividades para ajudar no orçamento, pois o trabalho de
carvão de pedra era temporário e quando ele estava parado
era ela quem mantinha a casa. O marido não tinha o mesmo
compromisso e dedicação à família. Não se sentia responsável
pelos dois filhos que ela trouxe do casamento anterior. Usava
a maior parte do dinheiro que ganhava para o lazer e em
despesas com amantes e namoradas.
Para tentar conseguir um emprego fixo, José de Almeida
tira uma carteira de marítimo e muito tempo depois de esperar
ele consegue o emprego na Companhia Loyd Brasileira,
empresa da marinha mercante. Nesta nova atividade ele
passou a viajar com frequência, mas ainda contribuía com o
sustento da família. Dizia que sua função agora era fazer um
126
pouco de tudo no navio. Em uma dessas viagens, José leva a
família para o Rio de Janeiro.
Josefa e José de Almeida viveram juntos por muitos anos,
até ele conhecer outra mulher e abandoná-la. Porém, quando
José deixou a mulher, ele já havia vendido uma das casinhas
que era a principal fonte de renda dela. Nessa época, Josefa se
viu sem ter de que viver e precisava lavar muito mais roupa de
ganho e procurar outras atividades como por exemplo, vender
mungunzá na rua para completar a renda.
Foi uma vida difícil, de muito trabalho, sem ter ninguém
para ajudá-la, e assim ela viveu sua vida de sacrifício, o que
não a impediu de ser generosa. Estava sempre preocupada com
problemas de outras pessoas, e, procurava ajudar com o pouco
que tinha. Em uma ocasião, uma de suas vizinhas veio a falecer,
deixando uma criança ainda bebê, Josefa não pensou duas
vezes. Acolheu a menina e a criou como se fosse sua própria
filha. Desde então Vilma passou a ser sua caçula e recebeu o
mesmo carinho dos outros filhos, aprendeu a chamá-la de mãe
e hoje relata que lembra de Josefa com muita saudade. Sente
por achar que poderia ter convivido mais tempo ao lado da mãe
se ela não fosse uma pessoa tão ocupada, que estava sempre
em busca de alguma ocupação para completar o sustento da
casa, por diversas vezes era preciso ficar com a irmã Valdeci e
nesses momentos, Vilma sentia falta do carinho da mãe.
Apesar de tantos problemas, Josefa era uma pessoa de
muita fé e oração, era o que lhe dava força para suportar
os intemperes da vida. Josefa e seus irmãos se reencontram
apenas quando adultos. Foi quando descobriu que Manoel,
seu irmão mais velho, procurava por ela e por suas irmãs
a bastante tempo. Em um dos encontros que teve com seu
127
irmão, Josefa ganha como presente dele, uma linda imagem
de Santo Antônio, trazida de Portugal, onde esteve em uma
viagem a trabalho. Esta imagem permaneceu com ela pelo
resto de sua vida.
No final de sua vida, ela bastante debilitada, foi enviada de
volta para o Recife, onde na época moravam suas duas filhas
do segundo relacionamento. Ao retornar Josefa traz consigo a
imagem de Santo Antônio que ganhara do irmão. Josefa faleceu
no Recife em fevereiro de 1978. A imagem de Santo Antônio
ficaria com sua filha Valdeci até 2007 quando esta faleceu. Hoje
se encontra comigo, que sou uma de suas netas. Devo cuidar e
preservar e mais tarde pretendo deixar para minha filha Ana
Cláudia, que passará para minha neta, Maria Clara, e assim
permanecerá na família por várias gerações em homenagem
a velha sábia, Josefa Pereira da Silva.

Josefa Pereira da Silva Santo Antônio

128
Marília Gabriela Santos
Nascida e criada na Zona Norte do Recife,
Suburbana, Periférica, Educadora Social,
Graduada em Serviço Social
E-mail: mariliasantos06@hotmail.com

Maria de Fátima, florescer e educação


amorosa

Maria de Fátima Felix do Nascimento, nascida em 09


de novembro de 1955, mulher negra oriunda do interior de
Pernambuco, Vitória de Santo Antão, há aproximadamente
1 hora de distância de carro, para a Região Metropolitana do
Recife, ex-empregada doméstica, crocheteira, mãe de Maria
da Conceição, Maurílio Guilherme, Marília Gabriela. Filha
de Maria José Felix do Nascimento, mulher que dedicou sua
vida a(os) filho(as), esposo, o lar. Marcada pelo Patriarcado,
pois, não teve o direito a se alfabetizar. Seu pai entendia que o
aprendizado era na barra da enxada, que a leitura a levaria a
escrever carta para namorado. Seu José Felix do Nascimento,
homem íntegro, formação conservadora da época, pedreiro
de mão cheia, regado de muita disciplina tanto para os filhos
homens, quanto para as mulheres, educou filhos e filhas com
muita dedicação, existia dificuldade, mas a fartura se fazia
presente sempre que possível.
129
Uma família de doze filho(as) é de se imaginar, que em
meados dos anos 50 não foi nada fácil educar. Foi uma tarefa
árdua às vezes, principalmente por se viver em um país
marcado pela desigualdade social.
Já pensou roupa, comida e todos os subsídios que precisa
para viver dignamente? Fome não passaram, mas dificuldades
existia, era um esforço enorme colocar comida na mesa.
Lembremos que as roupas, em sua maioria, eram feitas por
encomenda e para as filhas a vestimenta era recomenda pelo
pai, vestido ou saia todas abaixo do joelho. Os estudos apesar
das dificuldades foram presentes, todo(as) filho(as) tiveram
acesso à escola básica.
Maria de Fátima vem dessa família, de 11 irmãos, alguns já
falecidos, marcada por uma infância típica de interior, com uma
educação baseada em princípios cristãos bem conservadora,
como diz o ditado: “Escreveu não leu pau comeu”, era assim
na época, desobedeceu o couro comia, infelizmente era na
base do cinturão, a maneira que se disciplinava, educava as
crianças. O modelo de educação vigente era muito rigoroso, o
carinho e o afeto às vezes ficavam negligenciados, não porque
os pais não quisessem, mas pela educação que receberam.
Educar não é uma tarefa fácil, principalmente quando não se
tem condições dignas e estruturais para uma educação mais
humanizada e menos conservadora.
O carinho, o afeto existiam, porém, não eram demonstrados
através de um abraço, através de um beijo. O carinho e o afeto
eram demonstrados de outras maneiras, ter comida na mesa,
a fatura, ter o material escolar, isso demonstrava muito do
que os pais desejavam para os filhos: boas condições de vidas
e um futuro melhor, segundo a percepção deles. A educação
130
era daquela maneira não por pura negligência, mas pela falta
de informação, pela ignorância e pela reprodução da educação
que tiveram, pelo que acreditavam ser melhor para educar e
disciplinar filhas de filhos.
A mocidade chegou, as transformações no corpo, na mente.
A vontade, coragem e ousadia da juventude, já pensou tudo
isso em uma cidade pequena do interior? Para Maria de Fátima
a juventude foi um tempo de muitas vontades, curiosidade e
sobretudo nessa fase almejava a liberdade. Porém, a liberdade,
algumas vezes, tem um preço. Pode custar alguns percalços
na vida de qualquer jovem, principalmente quando se é uma
mulher negra que deseja ser dona de si.
Uma mulher jovem, destemida, cheia de sonhos, desejos,
mas que estava em um núcleo familiar, que não permitia tanta
liberdade feminina. A educação, mesmo para os meninos, era
marcada de bastante conservadorismo. A proibição e punição
era bem presente, as meninas era dada a função do lar, cuidar
dos irmãos mais velhos.
No Carnaval minha mãe relata que todas eram proibidas
de sair para as festas de rua. Naquela época as festas de
Carnaval do interior eram festas de rua com orquestras de
frevo, clubes de fantasia e as jovens gostavam muito. Minha
mãe relata que era muito rebelde, que mesmo sabendo que
iria apanhar quando seu pai soubesse, dava fugidas. Conta
também que se arrumava na casa de uma colega, já que as
roupas eram compridas, levava alfinetes para encurtar a roupa
ficando mais à vontade diante das outras jovens.
Sair de casa com certeza era a maior festa, porém na
volta, o cinturão ou cipó aguardava, isso possivelmente, para
uma pessoa que almeja mais liberdade, alcançar outros voos,
131
era motivo de rebeldia. A partir disso, inicia a insatisfação e
desmotivação com os estudos, começaram as faltas na escola e
rebeldia em casa. Como já relatado o diálogo era difícil e quase
inexistente. Minha vó Dona Maria José, era uma mulher sem
estudo, o que pouco sabia era assinar o nome. Mulher de muita
garra, coragem, fez de tudo por filho(as), neto(as), guardava
dores que poucos sabiam causadas pela rigidez do seu pai.
Aos dezoito anos chega a maior idade, minha mãe decide
vir para a grande Recife, com dinheiro emprestado, cheia de
desejos, sonho a inocência de uma jovem que não imaginava
o que a esperava. Não muito diferente de muitas mulheres
negras deste país, o único lugar que lhe foi oportunizado
foi a cozinha de famílias brancas e elitizadas. Na cidade a
“liberdade” custou caro a uma jovem com pouca informação
e sem uma pessoa que a orientasse, para que não caísse na
armadilha da cidade grande.
Em consequência disso, uma gravidez não planejada
aconteceu e o homem branco não reconheceu sua
responsabilidade, então nasce uma nova mulher mãe. Não
foi fácil, a passagem nas casas de famílias, na maioria das
vezes foi um lugar de dor, de submissão e desrespeito a uma
trabalhadora na luta de manter sua dignidade e sustentar sua
família. Na sequência, outro envolvimento mais dois filhos,
bons e maus momentos vividos. Por conseguinte, uma relação
com vestígios da violência doméstica tornando ainda mais
difícil a situação, isto durou idas e vindas até ela perceber que
sua vida deveria tomar outros rumos. Por fim, saiu da relação
violenta e abusiva seguindo sua vida, com muita coragem,
dificuldades, porém com paz e sossego com seus filhos/a.
Foram dores, que algumas vezes entristecem, mas ao olhar
132
para tudo que construiu sozinha, enaltece ainda mais a mulher
que se tornou.
O caminho foi árduo, portas fechadas, resistência. A
vontade de ser feliz e realizada, muito aprendizado e muita
luta. A educação que minha mãe escolheu para as filhas e o
filho, foi totalmente diferente da que recebeu. Em nossa casa
sempre teve muita conversa, ainda que dentro das limitações
e tabus de uma sociedade machista e patriarcal. Nos criou
amor, carinho, afeto, atenção, responsabilidade, cuidado,
choro, alegrias e disciplina.
Considero que vivi uma liberdade vigiada. Com quem
estava, andava? O intuito era cuidar e preservar a mulher que
pudesse me tornar. Não desejava que fosse mãe cedo ou não me
dedicasse aos estudos. Uma mãe sempre presente, na medida
do possível, pois o trabalho doméstico não a possibilitava que
participasse ativamente nas reuniões escolares ou festividades
que envolvesse o ano letivo.
Somos cúmplices, cada qual com sua potência,
individualidade, conflitos, complexidades, respeito e
admiração. Juntas já vivemos alegrias, como a minha conclusão
de um curso acadêmico, maior incentivadora dos meus
estudos, sua participação foi fundamental para que eu não
desistisse na primeira dificuldade, a formação acadêmica é
um sonho concretizado. A referência que tenho é uma mulher
que luta diariamente por ser quem é. Independente, nunca
precisou de homem para sua autonomia financeira, mesmo
com as mais variadas dificuldades. Suponho, que muitas
vezes ser essa mulher foi um peso. É pesado ser uma mulher
negra segurando o barco sozinha, tendo que ser o estereótipo:
“mulher forte ou guerreira”. Ela é tudo isso, mas muitas vezes
133
a sociedade não dá o direito as mulheres negras de ser apenas
mulheres, humanas, que choram, que erram, que são frágeis
e que também precisam ser cuidadas. Temos nossas brigas,
porém somos resistência e fortaleza juntas. A mulher que
venho construindo, tem uma parcela direta da minha mãe,
boa parte do que sou tem a sua mão e sua bênção.
Eu sou, porque ela lutou e resistiu para que eu pudesse
ter meus caminhos menos apedrejados ou doloridos. Ela é a
pessoa que posso contar em todas as horas, mesmo com as
nossas diferenças, o diálogo sincero tem nos aproximado cada
dia, porque assim escolhi percorrer esse caminho, por mais
divergência que temos. Somos de gerações diferentes, tenho
buscado aprender com sua narrativa, em suas particularidades,
sem julgamentos. Tento compreender as minhas vivências
internas e extremas a partir das minhas ancestrais, esse
tem sido o lugar de autoconhecimento, acolhimento, cura.
Fundamento para honrar minha ancestralidade, quem veio
antes como minha mãe.
Ser quem sou também não é fácil, mas a minha referência
de mulher preta, me levanta todos os dias, existo porque ela
abdicou, dedicou a mim seus ensinamentos de vida a mim e
aos outros filhos. Nosso aprendizado é diário, concordando,
discordando, caminhando juntas. Essa mulher é útero sagrado,
que me gerou, que me guardou e me ensina a caminhar com
caráter, sem passar por cima de ninguém. Leoa quando tem
que ser, fonte sagrada na trilha do que busco ser nesta vida.
A mulher que sou vem dela, agradece e acolhe sua jornada
com todo amor e respeito trajetória que me trouxe até aqui.

134
Marisa Albino
Trabalhei na área de Educação e Saúde,
hoje estou aposentada. Sou artesã, raizeira,
benzedeira. Estou estreando como escritora.
E-mail: marisaalbino 1953@gmail.com

Eu e ela

Eu sou Marisa Albino, filha única de Martinha. Falar dela


é um prazer; mulher simples com o coração grande, sempre
se dedicou em cuidar mais dos outros do que dela. Filha de
Maria e Manoel, irmã de Elvira, filha caçula do casal, moça
atraente que casou logo. Minha mãe casou com a idade já
avançada, mesmo assim não deu muita sorte no casamento,
a mãe ficou viúva e morava com ela. Nasceu no dia vinte de
março de mil novecentos e vinte e um, somos negras, só a
mãe dela era branca. Nasci no dia oito de novembro de mil
novecentos e cinquenta e três, na rua Dr. José Rufino, no (Cajá)
em Vitória de Santo Antão/PE. Foi lá que comecei a perceber
as diferenças sociais. Meu pai José Ulisses (em memória), tinha
outras mulheres e amigos, não ajudava muito em casa na parte
financeira, quando completei oito anos ele saiu de casa. Minha
mãe Martinha Albino (em memória), era lavadeira, ganhava
pouco, pagava aluguel, assumia as despesas da casa e cuidava
da minha vó. Na época não tinha nenhum projeto social para os
135
idosos, mesmo assim, ela tratava bem. Apesar das dificuldades,
eu brincava e me divertia muito em grupo, o que me faz
bem até hoje. Lembro da feira do (Cajá) nos domingos pela
manhã, achava lindo acordar e ver o movimento da feira na
frente da minha casa. Tomar o café da manhã com macaxeira
e carne de porco guisada, que delícia! No sábado à noite, os
bancos da feira eram armados e as crianças e adolescentes
esperávamos para brincar de se esconder, comemorávamos
quando encontrávamos os companheiros. Toda semana em
plena brincadeira, eu tinha que sair com a minha mãe para
levar as roupas no centro da cidade. Ficava me perguntando o
porquê as outras crianças não tinham este compromisso. Com
trouxa na cabeça, ombreiras na mão que deixava ela cansada e
o pescoço doendo. Sentia vergonha, muitas vezes me escondia
atrás dos bancos, ela me chamava várias vezes e eu não
respondia. Depois sentia remorso e saía atrás dela e a ajudava
(gostaria de lhe pedir perdão), foram fatos que marcaram
minha adolescência e ao mesmo tempo despertou em mim, o
respeito pelo ser humano, principalmente com as mulheres.
É bom lembrar que as roupas eram lavadas no rio Tapacurá,
de segunda a sexta feira tinha que acordar cedo e ir com ela.
Havia outras mulheres na mesma situação e com mais filhos,
brincávamos muito e tomávamos banhos de rio, sem saber que
a água era contaminada. As roupas eram passadas com ferro
de carvão, o que a cansava mais. Tem uma coisa que eu lembro
da minha mãe, é que ela adorava bordar. Isto acontecia mais
quando ela era solteira, sempre falava e guardava muitas folhas
de papel com riscos, cada um mais lindo que o outro. O tempo
foi passando e poucas vezes eu a vi bordando. Infelizmente
isto acontece, muitas mulheres deixam de fazer o que gostam
136
e passam a assumir outras coisas, para cobrir as necessidades
do dia a dia. Foi o que aconteceu, se casou e apareceram outras
responsabilidades. Só quando estava com a idade avançada,
aquela fase difícil do casamento tinha passado, ela resolveu
fazer colchas de retalhos. Ela costurava à mão porque não sabia
usar a máquina de costura.
A mãe dela era rendeira, tinha almofada e fazia renda
de bilros. Eu achava lindo, ainda era pequena, mas ela não
deixava nem chegar perto, que pena. Ela faleceu com mais de
90 anos. A madrinha da minha mãe, fazia boneca de pano, as
bruxinhas com travesseiros bem pequenos, morava no centro
da cidade, no comércio mesmo. Todas as vezes que íamos pra
rua, mamãe passava na casa da madrinha e eu contemplava
aquelas belezas nas caixas de sapato que ela vendia na janela
de casa. Pois a feira era ali na frente, até hoje a feira é no mesmo
local. Foi daí que nasceu a minha paixão por retalhos e bonecas
de pano, que bom! Hoje serve de terapia para me encontrar
quando estou estressada.
Minha mãe casou de novo com um viúvo, o Sr. Sebastião
Lulu, e fomos morar no sítio Conceição, lá em Vitória. No início
não gostei muito, depois fui me acostumando, principalmente
por ele ter tirado ela da lavagem de roupas.
O rio Tapacurá deveria ser o cartão postal da cidade, até
hoje continua poluído e serve de depósito de lixo e esgoto
doméstico e empresarial. Há muito tempo, este rio era
usado pela população. No sítio Conceição onde morávamos,
tínhamos que atravessar o rio, para a comunidade Águas
Brancas, área urbana que facilitava pegar ônibus e ir para a
cidade. Além de lavar roupa, dá banho em animais etc, muitas
pessoas morreram com problema no fígado, provocado pela
137
esquistossomose, que é uma doença causada pelo Schistosoma
Mansoni, a mesma, conhecida como “xistose”, barriga d’água,
ou doença do caramujo (hospedeiro intermediário) que tem
o homem seu hospedeiro definitivo. O ciclo da doença se dá
quando uma pessoa contaminada defeca perto dos rios, riachos
etc, e soltam ovos que em contato com a água, liberam novas
larvas, infectam as águas e com certeza as pessoas.
Do sítio para a cidade; antes eu já tinha vindo morar em
Recife/PE, na AV. Norte em Casa Amarela. Na época, não
participava de nenhum movimento social e nem trabalhava
fora e já tinha três filhos. Alguns anos depois, o casal vendeu
o sítio e compraram uma casa no Morro da Conceição e se
mudaram pra cá.
Estava esperando meu quarto filho e fiquei viúva quando
tinha vinte e quatro anos e meu marido; vinte e sete quando
faleceu. Ele morreu em agosto, vítima do Schistosoma que
tinha destruído o fígado. Ele era do interior, usava muito o rio
e trabalhava com animais. Mesmo tendo se afastado há muito
tempo e por não termos conhecimento, ele não foi tratado
antes. Morreu em agosto e tive a criança em dezembro, foi
muito difícil.
Após a morte do meu marido fui morar com minha
mãe e meu padrasto no Morro da Conceição. Um dos meus
pensamentos era que eu tinha que trabalhar para criar meus
filhos, não podia separá-los. O pai tinha deixado uma pensão,
a qual ajudou muito.
Estou no Morro da Conceição, aqui fui acolhida pela igreja
Católica, na pessoa do Pe. Reginaldo Veloso e Helena Lopes,
coordenadora do clube de mães. Me deram oportunidade
de participar por vários anos nos trabalhos comunitários e
138
das lutas sociais, foi um grande aprendizado. Alfabetizei por
vários anos, adolescentes, jovens e adultos, com o método de
Paulo Freire. Hoje, muitas famílias agradecem pelos filhos
terem seguido os estudos. Assumi a tesouraria da comunidade
cristã, juntamente com uma equipe, onde desenvolvemos
um trabalho social com as famílias carentes. Participei da
organização e fundação do Conselho de moradores. Fui
educadora social do grupo de saúde do conselho. Anos depois
fui convidada para participar do grupo de mulheres, como
educadora e posteriormente como coordenadora, junto com
a equipe, onde desenvolvemos um trabalho de prevenção às
DST/AIDS
Fiquei quatro anos viúva, depois fui morar com uma
pessoa, com o qual vivi vinte e sete anos, tive um filho com
ele. Após estes anos, acabou. Foi bom enquanto durou o amor.
Minha mãe ficou viúva, na época estava bem de saúde,
anos depois adoeceu com problema de reumatismo. Passou
muito tempo em cima da cama. Morávamos juntas e foi mais
fácil cuidar dela, meus filhos e minha sobrinha ajudaram
muito e tinham um carinho grande por ela. A mesma faleceu
com oitenta e três anos. Agradeço a Deus por ter tido a
oportunidade de cuidar da minha mãe.
Cheguei aqui em um momento muito triste da minha vida,
com vinte e quatro anos, quando completei sessenta, resolvi
parar e cuidar de mim. Sou artesã, gosto de fazer bonecas de
pano negra, sou rezadeira, vendo na minha casa, lambedor e
plantas medicinais.

139
140
Sempre visitei meu pai. Ele se casou de novo, teve quatro
filhos, ficou viúvo, abandonou os filhos e depois de alguns
anos, ele foi morar com uma pessoa no interior. Os filhos
não o procuraram mais, depois de muitos anos, adoeceu e
ficou em cima da cama sem andar. Era só ele e a mulher,
foi uma experiência muito triste pra mim. Fiquei com a
responsabilidade de estar por perto. Quando eu era mais nova
ia de ônibus, depois ficou mais cansativo e ia de carro uma vez
por mês, levar as coisas para ele. Hoje estou com sessenta e
sete anos, meus cabelos estão brancos, é um sinal que o tempo
passou. É bom lembrar que eu não separei meus filhos. São
quatro homens e uma mulher, tenho quatro netas e três netos,
graças a Deus.
No dia vinte e nove de abril, de dois mil e vinte, em plena
pandemia, meu pai faleceu com noventa e três anos. Vítima
da Síndrome Respiratória Aguda Grave, após dezesseis anos
do falecimento da minha mãe. Foi triste não ver mais o rosto
dele. Terminei o ciclo de filha, que eles descansem em paz.
Na estrada da vida continuo a caminhar e trago até vocês o
que eu pude registrar. Fugir da própria história ou passar por
ela como o vento que sopra as cortinas em dias frios, é muito
pouco. O coração bate forte e as lembranças vêm à tona. Olho
o passado sem apego e certa de que foi um bom aprendizado.
Deixo com vocês a história da minha mãe, completando com
a minha história.

Hoje agradeço a Deus, aos espíritos de luz, a família e a


todos(as) que fazem ou fizeram parte da minha vida, o que
me faz uma mulher forte e feliz.

141
Perpétua e Rose Mary
Rose Mary Cristina Pinto, minha
formação é Tecnologa em Segurança
do trabalho, Nascida e Resido na
Comunidade do Morro da Conceição em
Recife, Pernambuco.
@rosemarycristinapinto
E-mail: pinto.rose@yahoo.com.br

Guerreira na construção da geração


descendente

Eu, Maria do Perpétuo do Socorro Pinto, mais conhecida


por Perpétua, nascida em 21 de Julho de 1941, em Recife,
Pernambucana, Brasileira. Filha de Joaquina Bezerra dos
Santos e de João Ramos. Os meus irmãos: Maria das Mercês
Ramos, Rosineide Maria Ramos do Nascimento, João Batista
Ramos (falecido). Passei a minha infância morando no Córrego
de São Bartolomeu em uma casa alugada, A minha mãe,
lavadeira trabalhava nessa função para manter nosso sustento,
as roupas de ganho eram lavadas no rio Beberibe por trás
da fábrica da Minerva, ali na Linha do Tiro no bairro Dois
Unidos. Após alguns anos, a minha mãe comprou um terreno
no Alto do Brasil e começou a construir uma casa pra gente
morar. A casa era de taipa e o telhado de capim, e quando era
no inverno chovia fora e dentro da casa, era um transtorno e
mesmo assim a minha mãe tinha que pagar todo final de mês
a prestação do terreno. Às vezes não tínhamos o dinheiro para
142
fazer o pagamento ao proprietário, o que se dizia dono dos
terrenos. Mesmo dizendo que não tinha condições de efetuar o
pagamento, o homem ficava bravo e queria receber o dinheiro
de todo jeito.
A minha infância e adolescência, não foi fácil. Porque
Tínhamos bastante dificuldade, chegamos a passar
necessidades, fome a tal ponto que minha mãe chegava a ir
pescar aratu no mangue. Ela era uma mulher guerreira e eu
tinha pena dela e a única coisa que eu podia fazer para ajudar
era lavar roupa no rio antes de ir para a escola. Mas assim,
estudei muito pouco, porque não entrava nada na minha
cabeça, eu só pensava em ajudar a minha mãe com as lavagens
de roupa para poder ter algum dinheiro, para colocar comida
em casa, e ter o dinheiro do dono do terreno. As coisas foram
ficando difíceis e eu também não tinha boa saúde, tive várias
doenças como: cansaço, e uma febre que caiu todo o meu
cabelo, e a minha mãe não tinha condições de ficar comigo
em casa. Daí ela me levou para o colégio interno chamado São
Vicente de Paula, administrado por freiras, onde fiquei dos
meus doze até os dezoito anos. Lá eu aprendi a escrever o meu
nome e também conhecer as letras do alfabeto e também outras
atividades manuais como: bordado, corte e costura, fabricar as
hóstias sagradas (para missa), pão caseiro para alimentação dos
internos e também participava da Confraria de Paula junto com
a irmã Marta que era a freira responsável. Os meus dois irmãos
estudaram e tiveram uma profissão, a minha irmã Maria Das
Mercês (Dadá) estudou o colegial e depois fez curso Auxiliar
de Enfermagem, o meu irmão João Batista estudou o colegial e
serviu o exército e depois foi trabalhar no DER (Departamento

143
de Estrada e Rodagem) e a minha mãe continuou a trabalhar
em casa de família como lavadeira.
Eu conheci Paulo do Rosário Pinto, meu marido, ainda
no período do internato dentro da capela do colégio São
Vicente de Paula, onde ele fazia parte da Confraria de Paula,
ia todos os domingos a missa acompanhado da sua madrinha
Conceição Carneiro Campelo. O mesmo não tinha mãe nem
pai, ambos já falecidos. A mãe dele faleceu de parto, para salvar
a sua vida, e pai de morte natural. Começamos a namorar e
a irmã Marta não concordava com esse relacionamento, por
entender que Paulo não tinha família. O seu histórico de família
estava relacionado a um pedido feito pela sua genitora antes
de morrer, para que Conceição tomasse conta do filho, e só
permitisse sua saída de sua casa na condição da construção
de família. E assim foi. Conceição fez o que pôde para ver
concretizado o desejo e o pedido da amiga. Conceição era moça
solteira, dentro das normas da Igreja Católica ela e o menino
que cuidou não eram considerados uma família.
Mesmo assim ocorreu o casamento, ele e Conceição
Campelo Vieira foram conversar com a minha mãe, e a
mesma concedeu e permitiu o nosso namoro. Até mesmo a
minha irmã Dadá, que no início não era muito simpática com
o meu relacionamento, aceitou. E foi assim que se iniciaram
os preparativos. Minha mãe deu um prazo de seis meses para
o casamento. Eu na época com vinte e um anos, Paulo era
mais velho, tinha vinte e cinco anos. A minha mãe foi logo
dizendo quem casa, quer casa, e que não havia criado filha
para ficar chamegando por aí... ou seja para casar tinha que
providenciar onde morar. Foi aí que ele comprou uma casa no

144
Morro da Conceição, com a ajuda de Conceição Campelo, ela
tinha condição financeira, a minha mãe não. Ela ficou com a
responsabilidade da organização da papelada (documentos)
do casamento. Casamos na Igreja da Harmonia com o padre
Teobaldo, esse padre na época fez restrições a minha madrinha
de batismo a senhora Severina (madrinha Biu) e aos seus filhos
Ivo e Conceição que eram os meus padrinhos de casamento,
pelo fato deles serem donos de terreiro de candomblé, e a
Igreja Católica não aceitava relação com essa crença. Tivemos
que pedir a intervenção da irmã Marta que solicitou ao padre
Teobaldo a realização do casamento. Após todo esse impasse
o meu casamento foi marcado para o dia 29 de dezembro, me
casei e vim direto para a minha casa, onde moro até hoje, aqui
na rua Correntina, 32 (antiga segunda travessa do Dendê)
Morro da Conceição. O meu casamento é lembrado até hoje
por amigos e antigos vizinhos, pelo fato deles na época, nunca
ter visto de perto uma pessoa vestida de noiva, e uma festa que
ocorreu ao ar livre, na rua, onde todos participaram e comeram
bolo de noiva, com toda euforia, coisas que são faladas até hoje.
Continuo morando na mesma casa onde realizamos
reformas com muito sacrifício e contando com o apoio de
dona Conceição Campelo que nunca abandonou o filho
adotivo. Foi uma dedicação inteira à vida do afilhado Paulo
Pinto, deixando para trás sua vida pessoal, continuou solteira.
Com a chegada dos meus filhos, os quais ela fazia questão de
dizer que eram netos dela, deixava as pessoas abismadas pelo
fato de ser branca de olhos claros e os netos serem negros do
cabelo pixaim. Era assim que se dizia com as pessoas negras,
mas ela nunca ligou para isso. Eu mesma ficava preocupada
pelo padrão de vida que ela levava, muito distante do meu.
145
Dona Conceição Campelo era instruída, formada professora,
moradora em bairro nobre (rua Real da Torre). Pessoas que
moravam naquela época nesse logradouro eram consideradas
ricas. Mas ela nunca se importou com isso, e muito pelo
contrário sempre amou e considerou os netos e tinha a
preocupação com a formação escolar deles. Graças a Deus,
todos os nove estudaram, se tornaram adultos, e aprenderam
a ler, só uma fez faculdade, os demais, concluíram o segundo
grau, uns casados em suas casas, e outros não quiseram se
casar, porém tem as suas vidas feitas.

Eu hoje não tenho mais o meu marido, que faleceu,


agora estou levando a vida até onde Deus quiser. Dando
continuidade a missão que ele me deu para terminar de criar
essa minha raça que às vezes me dão dores de cabeça. Cada
um com gênio diferente, mesmo assim todos deram para gente,
não se envolvendo em mau caminho. Agora é a vez dos netos
146
e bisneto que chegam para assumir o pedaço e aperrear, ao
mesmo tempo trazer alegria para a nossa casa. Apesar de toda
essa trajetória de luta e de alegria continuo com pouca saúde.
Com a idade avançada estou dando trabalho a família, e ao
médico que é um santo que me ajudou na medicação que curou
o cansaço (coração), o meu médico Dr. Josemilson Cosmo.
Espero que vocês gostem da história da minha vida e muito
obrigada Fatima Soares por ter lembrado de minha pessoa, que
Deus e Nossa Senhora da Conceição lhe protejam.
Essa história foi narrada por Perpétua, minha mãe. E
anotada por mim, Rose Mary, sua filha encostada a mais velha.

147
Pollyana Ferreira
Mulher negra, filha de Beatriz, neta
de Maria e bisneta de dona Dudu.
Psicologa Clínica, especialista
em Análise Bioenergética e
pesquisadora da psicologia preta
antirracista.
Instagram: @enraizarpsi
Email: pollyana.psique@gmail.com

Curandeiras do mato

Essa é a história que carrego na minha pele, de saberes


passados de útero para útero, no contato dos pés descalços
com o chão, raízes que se aprofundam no meu eu mulher. É
a história da minha mãe, minha avó, minha bisavó e tantas
outras que vieram antes e que seguem conectadas pela nossa
linha ancestral. Mulheres pretas retintas trazidas pelo mar,
feitas de água e sal, lágrima poderosa de dor e cura.
Mulheres do mato, de aldeias que nem sei o nome,
mas sinto através da terra e de cada plantinha que toco e
vejo crescer. Raizeiras, parteiras, benzedeiras, curandeiras,
mulheres-medicina todas elas e que hoje reconheço também
em mim.
Da brutal violência colonial na nossa história apagada
com sangue, refaço os passos através de dona Maria José e de
dona Dudu, ancestralidades que me chegam aos ouvidos e no
corpo. Nesse caminho, ainda pequenininha na rede, minha
mãe me embalava, e antes de mergulhar no sono mais um
148
pedacinho desse quebra-cabeças ela me contava. Dizia ela,
que Dona Dudu, sua avó, quando criança foi arrancada de
sua aldeia e trazida pelo campo, era indígena de uma etnia
que nem ela mais recordava, desaprendeu a língua e o nome,
mas no coração carregava a mata, conhecia as plantas de cura
para todos os males. Sempre que surgia alguém a sua procura
pedindo ajuda para alguma doença do corpo, da alma ou do
espírito, Dona Dudu logo enrolava os longos cabelos num
lenço, amarrava o avental, tirava as chinelas e entrava na mata
sentindo o que precisava para curar o enfermo.
Quando chegava a hora das dores de parto das mulheres
da redondeza, sempre aparecia um menino pra chamá-la e
lá ia ela com seu candeeiro e uma sacola que ninguém podia
mexer. Ela conhecia todas as rezas...
Em noites de lua cheia, Dudu ainda moça, dançava no
terreiro e todos na vila vinham ver, era formosa e sábia. Seu
marido muito ciumento a levou para uma casa afastada e lá a
trancou. Durante anos Dudu se viu vivendo para parir, teve
quase 20, todas com nome de Maria, santas, mas chamadas
por outros nomes construídos no dia a dia das crianças: Prege,
Locha, Pitota, Mulata, Nete, Neves... Cada uma delas carregava
uma peixeira nos “quartos”, eram mulheres brabas, e ai de
quem mexesse ou falasse mal de uma delas.
Conta mainha que um dia o marido de Dona Dudu
“morreu de flechada”. Minha mãe pequenininha perguntava:
- Quem matou seu marido Vovó? E ela respondia:- Foi o pai
da mata minha fia.
À tardinha, dona Dudu andava até o quintal para fumar
seu cachimbo, sentava na cadeira de balanço e um furão
corrido da mata e se enroscava em suas pernas, assim passava
149
as tardes conversando com seus encantados, observando as
cores das árvores, o cheiro do vento, os movimentos do sol e
os ciclos da lua.
Ela tinha longos cabelos negros, morreu sem nenhum
cabelo branco e com quase 100 anos. Quando se sentava no
chão e começava a enrolar os cabelos as crianças já sabiam: -
Corre que vovó vai contar história! E subiam em sua corcunda.
Ela contava histórias de Trancoso e Cumade Fulozinha, dizia
até que um dia passou de morrer por colocar pimenta em seu
cachimbo que a Cumade costumava fumar.
Dona Dudu não sabia ler as letras dos brancos, seu
conhecimento e sabedoria eram orgânicos e mais fortes de que
toda tentativa de apagamento de nossas raízes, fala de uma
resistência no modo de vida que se atualiza no presente, no
conhecimento que carregamos no corpo e que é mais poderoso
do que a lógica imposta de modernidade, que nos tenta
arrancar o que ainda nos resta de humanidade, de coletividade,
do nosso lugar na natureza.
Uma das Marias, sua filha, foi minha avó Maria José ou
Dona Locha como era conhecida, mulher preta feita de terra
e vida.
No interior de Pimentel, Vila de Juçaral era conhecida
por costurar saias plissadas e fazer as primeiras calcinhas da
região feitas de pano de saco, fazia também batom com urucum
para as moças dançarem nas noites de forró do terreiro. Após
a morte do companheiro resolveu vir pra cidade em busca
de trabalho para sustentar o filho. Em Recife trabalhou como
empregada doméstica e conheceu meu avô, que trabalhava
como tipógrafo num prédio ao lado da casa de sua patroa.

150
Logo foi morar numa casa humilde em Jardim São Paulo,
meu avô aparecia de tempos em tempos enquanto ela com
quase 13 filhos se virava para sustentar a todos. Trabalhava
como lavadeira, costureira, quitandeira, cozinheira, de tudo
um pouco ela fazia dentro e fora de casa. Assim como sua
mãe era benzedeira e conhecia os matos de cura e rezas para
o corpo e a alma.
Certo dia resolveu seguir o marido em uma de suas
viagens, escondida, mesmo sem saber ler conseguiu chegar
ao local e descobriu que esse já era casado com uma mulher
branca e de uma boa condição financeira, voltou para casa
sem ser vista e no retorno do marido decidiu deixá-lo. Depois
disso meu avô teve um infarto e implorando pediu para que
reconsiderasse pois sua outra esposa era muito doente e não
podia ter filhos e com ela já tinha vários.
Depois de algum tempo meu avô morreu desse mesmo
mal e as duas mulheres se aproximaram, como a outra era
muito sozinha se tornaram grandes amigas e seguiram
compartilhando o cuidado das crianças que passaram a ter uma
tia tão próxima como a própria mãe. Antes disso, Dona Maria
teve um filho por ano, quase 15 entre abortos e nascimentos,
dos vivos ficaram 6 homens e 5 mulheres, os mais velhos
ajudavam a cuidar dos mais novos, e ela com o barrigão de
mais uma criança colocava o balaio de verdura na cabeça e
saia pra vender na feira.
As meninas mais velhas Alice e Beatriz minha mãe, saiam
de manhãzinha pro açude lavar a roupa da casa, ensaboavam,
esfregavam, esparramavam na grama para coará no sol,
enxaguavam e estendiam mais uma vez na grama pra secar.
Caso a aboiada passasse tinham que correr pra apanhar toda
151
roupa a tempo, minha mãe morria de medo dos chifrudos, as
duas tinham entre 10 e 11 anos na época.
Depois da roupa seca já vinham tomadas banho, chegando
em casa o almoço preparado pela mãe era devorado e corriam
pra escola que ficava a canelas e canelas de distância. Todos os
dias tinham que passar por uma ladeira de pedra a dois pés
da pista onde os caminhões e carros se espremiam, além disso
tinham que passar ainda pela linha do trem em que muitos já
haviam morrido.
Apesar da dureza da vida diziam com orgulho que
nenhum filho e nenhuma filha de dona Maria “deu pra o
que não presta”. Na época do surto da coqueluche minha
avó acordava ainda na madrugada todos os filhos, saia pelo
descampado com a filinha de crianças, e na fazenda ao lado os
obrigava a tomar banho de cacimba e tomar leite quente saído
da vaca naquele mesmo instante, e assim todos se curaram.
Muitos tiveram cansaço e fraqueza nos momentos de mais
aperto, mas com cuidado, fé e uma coragem sem tamanho ela
conseguiu manter a família.
Anos mais tarde, todos os netos, quase 20, se reuniam na
casa dela. Todas as manhãs ela acordava a gente com furadas
de agulha e gelo no pescoço, dava uma gargalhada aberta pelo
susto que nos dava e depois um copo de vitamina que ninguém
sabia o que tinha dentro, mas que todo mundo tinha que tomar.
Se passávamos muito tempo no banheiro ela entrava
caladinha adivinhando uma prisão de ventre e deixava um
raminho de arruda na cabeça do enfezado, e olha que ajudava!
Dizia sempre que mulher não podia colocar os pés descalços
no chão gelado ao acordar pois a frieza ia direto pro útero.
Aprendeu a ler sozinha aos 50 anos com uma bíblia antiga que
152
carregava consigo. Dentro do sutiã guardava ervas para todo
tipo de doença que colhia nas caminhadas que fazia até a igreja.
Antes de dormir em sua casa todos tinham que dizer um
versículo da bíblia ou cantar um corinho do hinário. Muitas
vezes dormi com ela sentindo o cheirinho das plantas e da
pomada doutorzinho que passava em suas pernas. Ela tinha o
cheiro da terra e das cascas de planta-proteção, de planta-vida
e de planta-re-existência, muitas vezes também era planta-dor,
mas sempre planta-raiz minha e de todas que vieram depois.
Pra mim era uma deusa do mato não importa o que dissessem,
era curandeira.
Beatriz, a segunda mais velha entre as mulheres filhas
de Maria, é minha mãe, estudou até a oitava série com muito
sacrifício, sempre inventando brincadeiras novas, gostava das
artes, era uma menina de criatividade gigante, mas cedo, aos
14 anos teve que trabalhar como empregada doméstica na casa
da filha da antiga patroa de sua mãe. Na biblioteca do casarão
vivia encantada, adorava romances policiais e fantasias.
Até hoje é contadora de histórias como sua avó, me trouxe
aos ouvidos e no arrepio da pele a força, a potência dessas
mulheres. As carrego todas comigo, as honro e agradeço pelos
ensinamentos que tão forte me chegaram aqui nesse tempo,
através dessas memórias compartilhadas.
Somos curandeiras de ontem e de hoje, histórias marcadas
na cor da pele, no formato do nariz e boca, nos cabelos crespos,
na beleza do nosso tambor, na chama acesa que ainda queima
em nosso ventre mulher, nas raízes profundas construída com
o sangue e a sabedoria das mulheres que vieram antes e que
revivem nessa história contada, hoje por mim, é a tarefa que
me cabe nessa espiral de histórias que se cruzam nos traços
153
da minha face e na ponta da minha língua, remexe meu útero
e transborda nesse espaço-papel as vozes dessas mulheres.

Dona Locha com filha(minha Dona Dudu


mãe) e netas

Dona Bia minha


mãe

154
Rosângela Oliveira
Pedagoga, mulher negra periférica, mãe
de Adriele Luisa,idealizadora do projeto :
afromaternidade na periferia, agora a primeira
escritora da familia.
@pedagogarosangelaoliveira
E-mail: rosas24pliveira@hotmail.com

Maria não foi Criança

O ano de 1940, havia reservado a Dona Josefa Antônia da


Conceição mais uma criança, uma menina que veio junto com
a primavera, uma pausa para fechar a janela, o suor corria pela
testa, perto da cama uma bacia de água. Era esse o cenário do
quarto preparado para o parto de Dona Josefa, sem gemidos
ou gritos ela dispensava as parteiras de perto e sozinha, paria
natural, com a mesma naturalidade e beleza da primavera.
Mas, para as trabalhadoras rurais, o encanto das flores e
pássaros não durava mais que algumas horas a contemplar o
filho, o tempo de comer um pirão forte e cantar um odre da
Jurema Sagrada, talvez, oito dias, entregar a bebê aos cuidados
da criança mais velha, acredito que tinha 07 anos, a pequena
mais velha de Josefa.
A mãe, Josefa, voltava a cuidar dos bichos e da terra, não
antes de dar um nome a filha, essa seria Maria Antônia da
Conceição, tinha uma aparência de esperta e seria uma boa
ajuda no trabalho, agora, engana-se quem acredita que a vida
155
de Maria seria florida como o mês que nasceu, na primavera.
As crianças desde muito cedo labutavam nas lavouras da
família no interior de Pernambuco, Panelas, Sítio da Pedra
de Mocó.
Tempos depois, a menina já puxava os bichos, alimentava
os porcos, matava galinhas para o almoço, ainda muito
criança, suas lembranças apontavam para 05 anos de idade,
entre brincadeiras com as espigas de milho seca e as brigas com
os irmãos, ela exercia muitas e muitas atividades domésticas,
quando algo não saia como os adultos planejavam, as surras
eram constantes e aprumavam a direção da vida, sem infância.
Porém, um dia, Maria insistiu em ser criança e junto com
outra irmã pegou uma cédula na gaveta do seu pai João,
dinheiro suado e guardado na gaveta com muito cuidado, ela
queria fazer um aviãozinho de papel que viu o padre mostrar
na igreja, a menina, cuidadosamente rasgou a cédula para
dobrar foi interrompida pelo pai, que sem maiores explicações,
cobro-lhe na pele com um açoite de corda, a violência, serviu
lhe para reprimir a vontade de ser criança, Maria agora seria
apenas trabalhadora.
A rotina de trabalho árduo continuava, até numa
madrugada que a tosse do seu pai era cada dia mais forte, os
escarros eram acompanhados com muito sangue e ele que era
um homem forte estava magro, deitado numa rede para morrer
e quando ela completou sete anos, seu pai morreu, em 1947,
dona Josefa estava viúva, aos 32 anos, com seus cinco filhos,
Anália, Josefa (nina), José, Maria e Antônio.
Não demorou muito para Maria notar que seu pai, ainda
que de personalidade desconhecida para ela, sem grandes
afagos ou palavras trocadas, a simples presença dele, seria de
156
grande valia, afinal era um homem adulto naquela sociedade
que valorizava apenas homens. Em poucos dias começaram
os furtos do feijão, dos instrumentos de trabalho, a invasão
da roda de farinha por outros homens, os assédios a sua mãe
e suas irmãs mais velhas, seus irmãos, muito novos não iriam
substituí-lo tão cedo.
O trabalho aumentava a cada dia, os homens mais velhos
estavam sempre em volta das suas irmãs, a fome cada vez
maior, a mãe estava cada dia mais distante sempre balbuciando
de joelhos palavras, rezando e chorando, às vezes batia nas
crianças usando um rosário pesado, não demorou muito e
uma cena marcou sua memória era, Dona Josefa, totalmente
nua, sem reconhecer ninguém, vieram padres, rezadeiras
e a mãe não recobrava o entendimento, chorava e rezava,
sem comer há dias, a falta de reação da mulher, fez com que
vizinhos a levassem para ser tratada no Recife, lá sim, haveria
tratamento para sua insanidade. Conduziram dona Josefa
para o tratamento, enquanto isso, as irmãs mais velhas foram
abrigadas pelas freiras e iriam limpar os conventos e as casas
paroquiais.
As crianças mais novas seriam assistidas pelas vizinhas
caridosas, acontece que elas demoravam a chegar e a fome
não permitia esperar, assim, Maria resolveu vender o feijão que
tinha sido colhido pela sua mãe na feira como ela observava dona
Josefa fazer e assim antes do amanhecer aprumou uma besta,
colocou cela no animal, colocou as cestas de feijão e foi vender,
vendeu tudo que levou, comprou o que precisavam e voltaram,
ao retornar as bondosas vizinhas já tinham ido até lá levaram
farinha, levaram as galinhas, ovos, tudo que conseguiram e
deixaram as crianças ali sem ser alimentadas, Maria naquele
157
momento, duvidou se aquelas pessoas que retiravam o pouco
que lhes restavam eram tão bondosas mesmo. Começou a
procurar algo que lembrasse aos vizinhos a distinção dos pais
deles, que pudessem os afugentar da comida das crianças, as
idas à feira para vender e trocar produtos era constante agora,
as crianças sabiam negociar, limpar a casa, cuidar dos bichos,
brincavam e aos sábados resolveram ir às missas como de
costume na família, aproveitavam e tomavam banho.
No entanto, os furtos que a vizinhança fazia era(m)
constante(s), além disso, crianças maiores e adolescentes
estavam sempre a se meter com seus irmãos e bater, ferir os
olhos, pisavam-lhes as mãos. Poucas notícias da mãe, mas
agora não importava mais, Maria e os irmãos estavam maiores.
Na feira, além de comida, agora compravam também
facas para se defender das agressões, jogavam pedras nos
vizinhos que insistiam nas visitas, armavam emboscadas para
as crianças maiores que tentavam lhes machucar, às vezes
tentavam ir aos grupos escolares, mas a mãe dona Josefa, não
gostava de mulher escrevendo, só trabalhando.
As crianças recebiam a mãe agora e cuidavam dela entre
uma internação e outra, dona Josefa voltava pior, sem cabelos,
magra e ainda pior, decidiram que ela não voltava mais a
Recife, lá davam-lhe choques elétricos na cabeça, as crianças
não entendiam direito o que era choque elétrico, mas sabiam
que não ajudava a mãe Zefa. Maria olhava e chorava escondida
com pena da mãe, parece que isso foi o bastante, dedicou-se a
vida a cuidar das pessoas, as doenças poderiam ser incuráveis,
mas ela cuidava, ainda que não curasse, mas ao partir dessa
vida, todas as pessoas que eram por ela cuidadas saiam menos
feridas.
158
Assim, cresceram um pouco mais, viram as irmãs mais
velhas casarem e receberam um apelido na vizinhança “raça de
Satanás” afinal se tornaram filhos órfãos de pai e com uma mãe
doente e precisavam cuidar de uma propriedade, encontraram
forças na irmandade para cuidar de si e nessa tarefa tão difícil,
eram fortes e reagiam com violência a qualquer ameaça.
Na adolescência tudo mudou, os irmãos brigavam muito,
os netos de dona Zefinha chegaram aos muitos, inclusive, o
trabalho continuava muito grande, José viajou foi tentar a sorte
em São Paulo, Antônio foi percorrer outros interiores, fazer
apostas e comercializar animais, Maria, estava só com mãe
Zefa, às vezes se desentendiam e agora a doença que matou
o pai havia chegado a adolescente, estava com tuberculose,
recebeu o diagnóstico em Caruaru, o tratamento era em Recife,
por um ano Maria esteve internada no hospital Otávio de
Freitas, ficou curada, todavia algo mudou, Maria, não gostava
mais da casa, os vínculos entre a família parecia que só era
fortalecido se Maria esfolasse as mãos diante do trabalho, mas
agora era preciso ter cuidado a tuberculose não levou a vida,
mas carregou lhe o pulmão direito.
Ela resolveu ir embora, quase uma fuga, disse que iria
a feira, fez as compras e enviou por portador, num balaio,
colocou duas mudas de roupa e veio para Recife, ficou
hospedada na casa de conterrâneos, por pouco tempo, logo
foi trabalhar como doméstica em “casa de família” como se
acostumou a dizer, quando resolveu visitar a família, anos
depois foi mordida por uma cobra peçonhenta e quase morreu.
Década de 70, empregou-se na casa de uma mulher
chamada Manoela, mulher branca, gorda que tinha outra
empregada, que não poderia entrar na casa porque era muito
159
preta, dizia a mulher. Maria era muito ágil, todos apreciavam
isso, fazia tudo com muita rapidez e ainda assim era perfeito.
Havia na casa outras pessoas, mas Maria não tinha tempo de
observar quem era, trabalhava apenas. Quando deu mais de
meio dia a fome lhe apertava e como recomendação médica
precisava fazer as refeições na hora certa, sem cerimônia,
perguntou pelo almoço a patroa que disse que estava
terminando a refeição e iria juntar o que sobrasse para que as
empregadas se servissem, Maria comentou com Dinha, a outra
empregada, ela explicou que elas iriam almoçar o resto dos
partos da família, aquilo era um absurdo aos seus ouvidos.
Concluiu ainda mais rápido o que se propôs a fazer, trocou de
roupa e aproveitou que sua mala não estava desfeita, segurou
e se despediu de Dinha, a patroa observou a cena e disse: -
Maria, já levo seu almoço!
Não precisa dona Manoela, estou indo embora.
Mas... por quê?
Sou acostumada a comer merda em pratos limpos, a
senhora não sabe nem servir.
Ao perceber a afronta, a patroa veio lhe pagar com moedas
equivalente ao meio-dia de trabalho. Maria, recusou-lhe as
moedas e disse: Não aceito! Afinal, fará muita falta a senhora,
quem serve restos é pobre demais para pagar a alguém.
Seguiu, por toda vida, com essa forma de responder firme
e de rápidas decisões. O fato é que o serviço doméstico era
a única alternativa para ela com pouca escolaridade, quase
nenhuma na verdade. Não foram apenas essas violências que
ela sofreu, desde as insinuações de furtos, aos baixos salários,
desvio de funções, exploração das mais incontáveis. Dedicou-
se a trabalhar a guardar dinheiro para comprar uma casa,
160
poder chamar de lar e receber a família do interior, conseguiu
construir a sua própria família. Foi morar na década de 80
com um pedreiro com quem viveu 26 anos e teve uma filha,
os esforços dos dois fez com que a filha de Maria estudasse,
trabalhasse e pudesse ter uma vida um pouco mais tranquila.
Maria, fez da sua casa um lar para outras tantas pessoas.
Entretanto a vida dela em nada foi tranquila, aos 78
anos, numa tarde de domingo, Maria houve os gritos de uma
mulher pedindo por socorro, sem demora respondeu aos gritos

Dona Josefa Antônia da Conceição

161
como uma heroína, a mulher era espancada pelo marido, sem
titubear, Maria encontrou tijolos e pedras, assim como na
infância expulsou os intrusos de seu lar, ateou pedras até que
aquele homem parasse com o espancamento, nada temeu,
sempre fez.
Agora, aos 80 anos, Maria Antônia da Conceição, acorda
cedo e varre, a agilidade no serviço não é como antes e não
precisa ser, a casa é sua, não é obrigação nada fazer, mas é
feito caprichosamente, resta-lhe tempo para ser precisa em dar
opiniões diversas, até mesmo quando não é apreciada, fala.
Queixa-se apenas de nunca ter sido criança, brincar ela
brincou, mesmo a contragosto de quem queria apenas o seu
trabalho, ainda assim ela sorria, mas criança nunca pode ser,
a pobreza, a cultura da época, a dureza da vida, tudo retirava
o direito de Maria ser criança, às vezes, eu que sou filha, que
agora a vejo velha, encontro nela muito do ser criança, que ela
ainda em tempo tenha muitos dias de criança.

162
Selvina Maria da Silva
Jornalista, 52 anos, natural do povoado
Cabaceira, município Francisco Macedo,
sertão do Piauí. Moradora de São Paulo desde
1973. Amante da terra, das pedras, dos galhos
dormentes que a chuva acorda na resistência
sertaneja. Encantada pelo casarão que guarda
histórias. Suas e de uma grande família.
Criadora e apresentadora do programa Daqui e
Daí, que aborda e aprofunda temas ausentes na
grande mídia.
@daquiedai
E-mail: selvinamariadasilva@gmail.com

Selvina: de silvestre, de selvagem, da selva

Ali naquele casarão havia um cheiro de aconchego


com gosto de saudade. A grande figueira e o platibanda
anunciavam, de longe, que se tratava de uma casa centenária,
construída com muito suor e amor.
Uma arquiteta da vida se deixava ficar no chão de cimento
para uma soneca após o almoço: “Oh, minha filha, é o calor…”
E se abanava. O sertão nordestino escaldava as preocupações
e o gelinho do cimento aliviava as tensões.
O braço esquerdo, quebrado por uma queda de jumento
há anos, lhe impedia alguns movimentos, como pentear os
cabelos. Mas era ágil e exímia cozinheira: ah… que mãos! Com
o alho na mão esquerda, a direita o descascava!
À noite, um cafuné nos pequenos antes de dormir.
Durante o dia, prato de comida na mão, e colherada na boca
dos filhos adultos atrasados, se arrumando: “Toma, come um
pouquinho… você não pode sair assim, com fome...”

163
E quando ela inventava de fazer algo diferente só pra
ela? Nada de especial… a sobra de alguma refeição, ou um
preparo diferente. Todos sabiam que ficaria maravilhoso e
todos também quereriam do mesmo.
Se algum dos filhos a visse mastigando, já vinha a
pergunta: “O que que mãe tá comendo?...” E ela, pra se ver livre
da resposta verdadeira: “Merda, menino, é merda!” rsrsrsrs...
E logo o menino respondia: “Pois a senhora tá comendo coisa
boa…” E a gargalhada era alimento para a alma, e a história,
legado para a família.
E quando ela inventava de “comer com a mão?” Sabe
aquele feijão bem temperado com manteiga de garrafa, coentro,
cebola e mexido com farinha? Pois é. Ela fazia punhadinhos
com os dedos e os levava até a boca. Parecia mais gostoso
ainda! A indígena vivia nela e ela não sabia. A floresta vivia
nela. Selvina. De silvestre, de selvagem, da selva.
Casada em 6 de maio de 1925, contava 50 anos e 12 (!) filhos
quando enviuvou em 16 de maio de 1956. Trinta e um anos
de casada e 10 dias! O marido, comerciante, dispensara um
caminhão que, ao sair, na pequena subida, voltou sem freio. O
marido na parede. Sangue e choro. Abraços e rosas vermelhas
por um ano! História contada e recontada. Sofrimento sofrido
e ressofrido. Tristeza transformada em norte.
Mas, mesa farta. Sempre! Comia a família com as crianças,
comiam os trabalhadores, comiam visitas. Todos juntos na
grande mesa feita e refeita a cada nova chegada. Ela comia
por último. Era o seu prazer servir.
“Filha, nunca deixe a pia suja! Se acontecer algo de ruim,
alguém de fora virá para cuidar da casa. E aí, o que vai pensar de
você, se a casa estiver bagunçada e um monte de louça na pia?”
164
Quando as atribulações da vida pareciam ser eternas, ela
fazia o jogo do contente: “O que não é pra sempre, a gente
aguenta!”
E quando algo caía, quebrava, ou ela se via contrariada?
Logo se recompunha: “Isso é só pra eu xingar! Mas eu não dou
o gosto!” E ensinava a tolerância.
“Filha, fale baixo! Tem gente dormindo!” O respeito pelo
descanso do outro, por trazer ao outro o prazer de dormir bem,
de comer, de estar bem, eram sua alegria.
Cabelo grisalho longo, mas escasso… sempre em coque,
preso por uma travessa, a presilha-pente de antigamente.
Vestido no tornozelo, cores escuras, floridas, mas em tons de
azul. A viuvez lhe impedia de usar cores “extravagantes”.

Eu e madrinha em 1990

Madrinha Selvina

Casarão centenário onde


Madrinha Selvina viveu
com marido e filhos

165
Aos 12 anos, minha primeira entrevista em fita k7:
“Madrinha, quantos anos a senhora tem?” Ouço, ainda, aquela
voz rouca e cansada: “82…” “E como a senhora está de saúde?”
Uma resposta meio sem expectativa: “Tô mais mió…”
Eu não tinha uma avó. Eu tinha uma madrinha. Porque
esse era o costume, naquela época: os padrinhos do primeiro
filho do casal eram os pais da esposa e os padrinhos do
segundo filho, eram os pais do esposo.
Dela para mim ficou um sentimento de ausência… um
querer mais que a saudade matava quando as minhas digitais
tocavam as digitais daquela casa. Um ar que abriga a alma e
adezembra o coração. Madrinha… madrinha… Aconchego,
acolhida.
Dela para mim ficou Selvina: de selvagem, de silvestre, da
selva. Grata pela emoção que me banha o rosto.

166
Sheila Martins
É intérprete de Libras, pedagoga, mestranda
em educação (UERJ/FFP), poeta, escritora
periférica, mãe e boa contadora de histórias
negras. Em meio a todos esses afazeres poéticos
da vida decide iniciar a Livraria Ayó (que
significa “alegria” em yoruba).
@sheila_mrts
E-mail: sheila.jh@hotmail.com

Lembranças de cura

Amada Vó Gina,
Escrevo esta carta movida por vários motivos, ainda
assim, o primeiro que me impulsiona é uma vontade de
revisitar minhas-nossas memórias sobre terra, assim como
nossas vivências nesse quintal ainda de chão batido de barro
vermelho, local onde fui nascida e criada sob seus cuidados
e ensinamentos.
E por falar em memórias, elas são tão fortes e vívidas
que posso tentar neste instante dar uma curta pausa nessa
escrita, fechar os olhos, respirar fundo e logo sentirei em
meu corpo traços de cada uma delas, como se fosse uma
fotografia iluminada pelo sol da manhã que possui um brilho
de esperança e fé do que ainda está por vir, porém possuindo
em si a marca do dia anterior. Lembro da senhora, mulher
preta, firme quando necessário e sábia, pois sempre tinha
uma resposta pronta para nossas angústias. Tinha um lindo
sorriso largo e os olhos com as cores do arco-íris, que brilhavam
167
quando olhava para seus netos. Recordo das rugas que tinha
em sua face, as quais foram desenhadas pelo escorrer do
tempo, fluindo pelos rios de sabedoria que se moviam rumo
à eternidade. Uma das lembranças que jamais esquecerei é a
imagem de suas mãos. Eu sabia que tinha algo especial nelas,
e com o passar do tempo, entendi que era o dom poderoso
de cura, o qual era passado de geração a geração. Quando as
banhava com óleo, feito de ervas colhidas do nosso próprio
jardim, o cheiro pairava e invadia cada casa ao longo da viela
onde morávamos, logo sabíamos que aconteceria alguma
curimba.
Durante a minha meninice ouvia rotineiramente os
vizinhos afobados chamarem no portão, demandando por sua
ajuda. A verdadeira causa dessa procura desenfreada e sem
horário marcado eram suas rezas. Buscavam a senhora para
curar desde dores no corpo, olho gordo, mal olhado, vento
virado, falta de trabalho e até males d’alma. Tudo era digno
de recorrer a sua sabedoria, “estavam com uma dorzinha, já
caçavam uma “benzeção” dizia o povo.
Um dia, eu ainda adolescente (rememoro como se fosse
hoje) estava com problema no coração. Meus pais não sabiam
o porquê de tanto sofrimento. Sem pensar duas vezes fomos
até a sua casa. Não estava me sentindo bem, mas consegui
apreciar a grandiosidade do que vi a senhora fazendo. E assim
começou um ritual entoando preces tranquilamente como se
estivesse concedendo uma oferenda primorosa. Eu admirava
os detalhes, vendo o movimentar das suas mãos e afluências
das águas na bacia misturadas com uma planta que se chamava
“coração magoado”, por incrível que pareça, tinha o formato
de um coração. Nesse dia, vi, ouvi, senti vibrações com fé
168
que nunca havia sentido antes, algo ancestral. E não é que a
senhora tinha poderes mesmo, fiquei melhor rapidamente, me
abriguei em seu colo e suas rezas e afeto me curaram. Nesse
dia comecei a ver a sua ação de benzer com um outro olhar.
Pulsava em mim uma vontade de acompanhar os rituais junto
a senhora. Quando ouvia um chamado no portão, eu corria
para apreciar suas práticas.

O tempo passou, sabe minha mais velha... E hoje me


encontro aqui focada nos meus pensamentos, me perguntando
“o que nos fez chegar até aqui? O que nos guiou até agora?
De onde veio esse dom de cura que temos em nossas mãos?”
Compreendo as respostas, no entanto gosto de constantemente
banhar-me nesse mar de questionamentos pois permitem
olhar para nossas experiências ancestrais, nesse percurso

169
d’aguas negras de memórias. (Re) existir ao seu lado, vó Gina,
me fez entender que todas as nossas histórias-heranças estão
vivas dentro de mim e alimentam ao nosso povo com uma
vitalidade inexplicável. Por isso que estou aqui nesse mesmo
quintal onde vivíamos juntas, onde viveram, onde vive e onde
vivo sendo continuidade do dom-vida-cura sendo benzedeira
assim como minha mãe, minha bisavó, minhas tias, minhas
primas, minha Ialorixá, como a senhora. Mulheres pretas que
me convidaram da maneira mais bela a enxergar o poder que
habita em meu interior.
Teço estas palavras para dizer que sou grata a todas as
matriarcas que vivem em mim nesse universo e que me ajudam
a lutar sem temer o dia de amanhã. Gratidão por tudo.
Modupé a nossas matriarcas!

170
Sofia Leal Batista
Em coletivo com mulheres, estudo e promovo
o espanhol como língua de encontro, de
reconhecimento e de identidade latino-
americana. A palavra por meio da prática oral,
escrita, tradução e leitura bilíngue permite
enxergar e reconhecer-nos como criadoras
das historias que nos habitam. Participo do
Livro Aberto – Sebo Itinerante. Tenho feito
tradução/versão ao espanhol de três livros em
português, e publicação de três textos, escritos
em português, em livros coletivos.
E-mail: sofialealb@gmail.com

Ser daqui e de lá

“Somos uma espécie em viagem


não tenemos pertences
senão equipagem
vamos com o polem no vento
estamos vivos porque estamos em movimento.
Nunca estamos quietos, somos transumantes
Somos padres, filhos, netos e bisnetos de imigrantes
É mais meu o que sonho que o que toco””
Jorge Drexler

A minhas tias, tios, primas, primos, a meu irmão Antônio.


Tantas saudades só se diluem nas conversas e memórias.

As duas nasceram em datas próximas, uma em agosto de


1916, outra a precedera alguns meses, em outubro de 1915.
Quando as conheci já não tinham cabelos cinzentos, todos
eram fios brancos e curtos, daquele branco que brilha bonito.
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As suas mandíbulas inferiores eram um pouco protuberantes,
por causa das dentaduras que usavam havia anos, e seus rostos
torrados pelo sol tinham sinais, manchas, rugas do tempo, de
sabedoria, de tristezas, de alegrias. Ambas tinham parido cinco
filhos, a primeira, quatro meninos e uma menina, a segunda,
três meninas e dois meninos. Elas gostavam de conversar, ler
jornais e alguns livros, costuravam, bordavam, cozinhavam,
plantavam.
A primeira teve logo que se assumir como arrimo da
família, em tudo; perdeu cedo o marido, não porque morresse
e sim porque foi embora lhe deixando com as crias todas.
Recebendo então o apoio de irmãos, compadres e cunhados.
Com alguns dos seus filhos espalhados nas casas dos outros,
naquele povoado em um país que se jogava ao abandono,
cada vez mais, desaparecia a dedicação ao campo, à roça,
ao plantio de café, de cacau, de cana, de frutas, como tinha
feito antes e durante muito tempo; era, nessa época, um país
que começava afundar na viscosa extração petroleira e nos
aprendizados que brindaram as primeiras décadas daquela
indústria. No fim da década de trinta e durante a década dos
40, o comum era migrar, migrar de alguns pequenos povoados
para outros maiores, para vilas e cidades petroleiras ou para
a capital. Em julho de 1946, Josefa tomou coragem e migrou
para Caracas a procura de um emprego, melhores condições
de vida e educação para os filhos.
A segunda, Maria Florentina, teve que se refazer, várias
vezes, ao longo da vida. Tantas vezes os obstáculos a cercavam,
tantas vezes ela sintonizava o cuidado físico e emocional de
si mesma e dos filhos e netos. Ela também teve que migrar
como muitas outras pessoas das Ilhas Canárias. Depois da
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guerra civil espanhola se seguiu uma seca inclemente que
não deixava brotar nada da terra. Partiu em 1951, em um dos
primeiros voos de avião que saíram de Tenerife, levando os
dois primeiros filhos que tinha. Emigrou de um país ao outro,
do novo endereço mudou-se a outros, entre cidades diferentes
e depois dentro da mesma cidade; em Caracas se estabeleceu
por muitos anos.
Pouco tempo depois do meu nascimento, minha mãe
decidiu morar perto de minha avó materna, Maria Florentina.
Não sei certamente como, nem quando e nem o porquê
aconteceu, mas o certo é que lembro que as minhas avós
viviam por perto. Um perto, perto mesmo, as duas moravam
em casas na mesma rua, separadas por uma avenida que
sozinha só atravessei depois dos treze ou catorze anos, pois
era muito movimentada. Ninguém poderia imaginar que a
presença das duas seria fundamental aos poucos anos do
meu nascimento. Minha mãe faleceu quando eu contava
com aproximadamente dois anos e meio de idade. Enquanto
minha avó materna assumiu os cuidados cotidianos, minha
avó paterna participava sempre contendo, acompanhando,
brincando, cantando e me ensinando melodias e letras que a
minha avó materna não conhecia ou cantava talvez por ser de
outro país, ou por não ter muito tempo para algumas coisas,
imersa no oceano de tarefas e responsabilidades assumidas
para si. Desse jeito fui compreendendo que era possível ser
daqui e ser de lá ao mesmo tempo, como elas o eram.
Tenho memória de escutar a minha avó Josefa cantar para
mim melodias, como La vaca Mariposa, do álbum lançado em
1976 pelo cantor e compositor Simón Diaz, mesmo ano do meu
nascimento. Ela entoava melodias, cantava e me encantava...
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…“la vaca mariposa tuvo un terné, un becerrito lindo como un
bebé, dámelo papaíto dicen los niños cuando lo ven nacer…”,
ou canções infantis populares como “arrurú mi niña que
tengo que hacer, lavar los pañales, ponerme a coser…”. Para
cantar essas e outras músicas ela tinha uma memória incrível,
prodigiosa, também para recitar versos que aprendera desde
criança e ao longo da vida.
Josefa, a mãe do meu pai, nascera perto da Mesa de
Guanipa, num povoado chamado Atapirire no centro-leste
do país, no Estado Anzoátegui, o único Estado que fica às
beiras tanto do Rio Orinoco como do mar do Caribe. Pouco
escutei de sua família, de suas origens, o que recordo é que
com frequência nas rodas de conversa, nos aniversários e datas
festivas quando todos meus tios se juntavam, se contavam
e recontavam fatos, feitos e façanhas mais de seus filhos, de
seus irmãos, dos homens, como se seu próprio passado, antes
de parir, tivesse ficado muito longe. Mesmo assim, alguns
detalhes foram se coando, falava-se que minha avó era filha
ou neta de alguma mulher indígena de um povo próximo
ao rio Orinoco, o povo Kariña e que sua mãe ou avó tinha se
relacionado com um português ou descendente de português
que tinha chegado por aquelas bandas na época do início da
exploração petroleira, ou na época da colônia. Lembranças das
lembranças dos contos de outros são assim.
Depois de casada, Josefa pariu de dois em dois anos, e
quando se mudou para Caracas em julho de 1946 levava as
cinco crianças, o mais velho de 8 anos, o mais novo de 7 meses.
Na capital começou a trabalhar em uma fábrica de costura para
que os filhos pudessem estudar. Logo teve a oportunidade
de aprender a escrever a máquina. Assim como soava sua
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voz melodiosa aos meus ouvidos, devia ser o ritmo de seus
dedos costurando, bordando e também batendo nas teclas da
máquina de escrever.
Aprender a escrever a máquina se tornou um novo desafio
e com ele veio um novo emprego como datilógrafa. Como
poderíamos dizer, um trabalho de formiguinha, que exigia
calma, com uma missão histórica, porém, talvez unicamente
reconhecida pelos filhos e familiares próximos. História
contada e recontada para os netos e netas. Boa leitora como
era, nos tempos em que os afazeres, as crianças e o trabalho
permitiam, esse novo emprego deve ter juntado o útil ao
agradável e reavivado uma chama, uma emoção.
Entre documentos e cartas escritas há mais de um século
por quem participou do processo de Independência do país,
um monte de papéis envelhecidos aguardavam paciente os
olhos ávidos de leitura e uma compreensão audaz de letras,
palavras, termos e estilo do castelhano antigo. Deve ter sido um
tempo de muito aprendizado, curiosidades, descobertas, de
muitas histórias compartilhadas com os filhos através daqueles
documentos que passaram pelas suas mãos e foram transcritos
por ela. Feita a datilografia, os arquivos foram fotocopiados e
colocados depois em microfilmagem para uso de historiadores,
estudantes e de outros interessados.
Josefa deixou de trabalhar quando o seu primeiro filho se
formou na faculdade, então ela continuou a tecer, a bordar, ler,
cantar, fazer brincadeiras, acompanhar e ajudar a cuidar dos
netos e netas. Quando nasci já era avó pela oitava vez e depois
duas vezes mais, em total Josefa teve seis netos e quatro netas.
Não lembro ao certo, mas talvez tenha conhecido algum de
seus seis bisnetos e quatro bisnetas, por enquanto dez ao todo.
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Algumas vezes, nas minhas férias da escola fomos com
meu pai, eu e meu irmão, visitar tios e primos em povoados
que vêm nas minhas lembranças, el Tigre, el Tigrito, San
Tomé. Tempo de rever familiares de meu pai, da minha avó,
de conhecer outros que nos conheciam pelas fotos ou nem
conhecíamos, de matar saudade em longas horas levadas a
“jogar conversa fora” entre uma refeição e outra, entre um
passeio no rio ou uma caminhada pelas ruas. Tempo de
descobrir que entre os trabalhos artesanais que eram feitos
pelas mulheres do povo Kariña, oferecidos com frequência à
beira de estradas, se destacavam a cestaria feita com folhas de
palma do buriti e outros juncos, redes de algodão e fibra de
buriti, assim como peças de barro.
Josefa Pinto de Leal era uma avó com uma picardia única,
alegre apesar de todos os desafios enfrentados em sua vida.
Contadora de estórias, gostava de ver os outros rir, se divertir, e
com o passar do tempo mantinha a mesma audácia. Audácia com
suas mãos sonoras, as que usava ao costurar harmonicamente,
ao escrever a máquina de modo ritmado, nos trabalhos que
possivelmente aprendera de criança, como a cestaria. Uma vez,
já velhinha tentou me ensinar fazer uma pequena cesta de palha,
mostrando como o fazia, e deixou em minhas mãos o material
para depois. Entre suas picardias, costumava colocar nos bolsos
de suas batas algum dinheiro para dar às netas ou netos às
escondidas, fazia isso como uma travessura, um segredo entre
aquela neta ou neto e ela. Mantinha a mesma audácia de suas
mãos ao recuperar com rapidez vertiginosa algumas dessas
moedas e cédulas que caiam dos bolsos de suas batas, fazendo-
as voltarem sem quase ninguém perceber, quase dizendo, que
ninguém saiba que tenho este tesouro.
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Josefa e Maria Florentina possuíam um dom, serem
capazes de ser daqui e de lá. Ao mesmo tempo, manter
tradições e costumes de suas origens e deixar-se desafiar pelas
novas vivências, espaços, culturas.
De Josefa, de sua voz e de suas mãos ficam o prazer e
gosto pela música popular e alguns lençóis feitos e bordados
para mim quando criança. Uma bolsa bordada com flores,
passarinhos e meu nome em cor laranja. Um anel que me
presenteou quando completei quinze anos, uma pequena
cesta de palha e uma de suas batas, de cor amarela, quase
ocre, com aplique de flores coloridas, muito bonita e que
me faz lembrar muito dela. Ela costumava usar este tipo de
vestimenta com muita frequência quando estava em casa. Fico
com sua picardia, sua alegria, seu jeito de contar histórias, sua
paciência, seu gosto pela leitura e pelos versos. Ninguém a
chamava de Josefa, seu apelido era Guisa ou Guisita, e entre os
netos sempre a chamávamos de “abuela” ou “abuela Güisa”.

“Eu não sou daqui


Mas você tampouco
De nenhum lado do todo
De todos os lados um pouco”
Jorge Drexler

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Josefa Leal Pinto, Güisa. Abuela Paterna Maria Florentina,
Mami. Abuela
Materna

Formatura Ensino Medio irmão, Detalhe de minha formatura de


ambas avós, a esquerda Maria ensino medio, abrazando a Josefa.
Florentina, à direita Josefa.

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Vera Lúcia
Vivo em Recife, sou pedagoga, Professora e já
aposentada. Estou estreando como escritora
essa é minha primeira publicação.

Grandes mulheres e grandes amigas

Duas vizinhas, numa convivência cotidiana que ao longo


dos anos tornou-se algo tão puro e sublime que se diferenciava
de uma simples empatia, nascia ali uma grande amizade. Falo
das minhas duas mães.
Celina Maria da silva, minha mãe biológica. Natural de
Aliança-PE, nascida em 1933, casada com Antônio Candido da
Silva, que era da mesma região. A vida no interior era muito
difícil. Ela ficou órfã ainda criança. Veio para Recife trabalhar
como empregada doméstica. Numa casa onde trabalhou por
muitos anos aprendeu a cozinhar, era cozinheira “de forno a
fogão”. Casou jovem, perto dos vinte anos. Depois de casados
meus pais foram morar na rua Joaquim Correia, uma subida
para o Morro da Conceição, onde nasceram seus filhos.
Valdeci Ribeiro Soares, minha mãe do coração. Natural de
Recife-Pe, nascida em 1934, era casada com Belielson Rocha
Soares, mãe de 9 filhos. Vivia na mesma rua desde a infância.

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Dona Celina e Dona Valdeci (Vadé), se conheceram
quando ela veio morar na rua Joaquim Correia, as duas
casas lado a lado. Assim iniciou-se uma relação de respeito e
confiança. Celina morava em uma residência bem simplória,
paredes de barro, só um vão. Nesse mesmo vão acomoda-se,
sala, cozinha e quarto, com banheiro coletivo no quintal, casa
coberta de capim. Valdeci por ter melhor condição, morava
em uma casa de boa qualidade naquela época, sua casa era de
alvenaria, piso de cimento, com terraço, sala, cozinha, quartos
e banheiro.
Entre minha irmã mais velha Lenice e Fátima, filha de
Vadelci, havia divisão dos brinquedos. Em cada Natal, Fátima
doava parte de seus brinquedos para Lenice, como gesto de
solidariedade, pois desde cedo nossas mães nos incentivaram
a compartilhar com o próximo.
A vida foi passando, Vadé e Celina, como elas se tratavam
uma à outra, sempre trabalhando para suas sobrevivências.
Vadé costureira e cuidadora. Celina, para ajudar o esposo
que era carroceiro, devido ao pouco estudo, fazia de tudo.
Carregava frete na feira, criava porcos para vender, e carregava
água de ganho, lavava roupas. Lembrar de tudo isso não é fácil,
é até dolorido, mas as duas heroínas venceram.
Anos depois de casados meus pais melhoraram de vida.
Com a intervenção de uma ex-patroa da minha mãe, meu pai
se empregou na Rede Ferroviária (hoje Metrô Recife), mesmo
sem ter estudo era possível ser admitido para o trabalho pesado
de limpeza e manutenção dos trilhos.
Pensar nessa história de luta, é pensar em duas mulheres
que a cada dia consolidaram a amizade e tornaram-se exemplo
de vida. Seus filhos cresceram ouvindo expressões como: temos
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que ser honestos, trabalhadores e vocês tem que estudar para
ser alguém na vida. Celina não sabia ler, Vadé estudou até
o curso de Admissão ao Ginásio. Teve que parar porque no
bairro não havia ginásio em escola pública gratuita. As duas
se esforçaram para que os filhos estudassem, aconselharam,
incentivaram. Lembro de Dona Vadé me aconselhando: você
tem que escolher uma profissão, e tem que estudar para
alcançar a profissão que escolher.
Esses conselhos me ajudaram a escolher ser professora.
Fiz o ensino médio Magistério, comecei a trabalhar em uma
escola comunitária, depois em uma creche. Anos depois,
veio a oportunidade de cursar Pedagogia. Certo dia cheguei
na casa da minha mãe contando que tinha passado no
vestibular, a gente comemorou tomando um vinho seco que
estava guardado no bufê a há muitos meses. Depois falamos
da dificuldade para pagar as mensalidades. Minha mãe me
animou e se comprometeu em economizar em outras coisas
para me ajudar a pagar. Meu esposo também ajudou. Sou a
única filha de Celina que cursou uma faculdade.
No andar da vida, Valdeci precisou se separar do marido.
Nesse momento, para ajudar, Celina dividiu seus móveis e
utensílios domésticos com sua amiga, para ela poder organizar
a casa que alugou. Foi um recomeço na vida para Vadé. As
duas ficaram ainda mais unidas. Nessa época o esposo de
Celina já tinha comprado a casa própria, tinha uma renda
melhor então Celina pode ajudar.
Elas tinham muitas coisas em comuns, três delas muito
evidentes, fé inabalável, amor ao próximo e devoção a nossa
Senhora da Imaculada Conceição. E foi por amor ao próximo
que surgiu mais uma filha em nossa grande família.
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Vadé era cuidadora, em seu trabalho ouvia o choro de uma
criança, filha da empregada da casa. Certo dia ela resolveu ir
ao quartinho onde a criança chorava, chegando lá viu uma
menininha que não era bem cuidada. Depois que soube da
história da mãe, perguntou se ela queria doar a menina para
um casal amigo, para que cuidassem bem, a mãe aceitou.
Ela sabendo que seus amigos Celina e Antônio comentaram
que queriam adotar uma criança levou a menininha até eles.
A princípio ficaram indecisos, pois já tinham cinco filhos,
mesmo assim decidiram adotar por sua virtude de amor ao
próximo. Como gesto de gratidão a Vadé, Celina a convidou
junto com Manuel, seu filho, para serem madrinha e padrinho
da menina. A menina chama-se Verônica, hoje tem 47 anos e
vive em São Paulo.
As duas famílias compartilhavam muitos momentos
juntas, tristes, alegres e até momentos engraçados. Dois ficaram
marcados nas memórias, a sopa de pensamentos e o dinheiro
na lata de leite. No episódio da sopa, Dona Valdeci contava que
em uma de nossas visitas a casa de Dona Vadé resolveu fazer
uma sopa para todos jantar. Como tinha poucos ingredientes
ela colocou o nome sopa do pensamento. Disse às crianças, que
ao tomar a sopa era pensar em coisas gostosas que poderiam
estar na panela. O dinheiro na lata do leite, foi em uma tarde que
Dona Celina, como de costume, esteve na residência da amiga.
Ao chegar lá o esposo da amiga estava adormecido no sofá e
uma quantia de dinheiro, que acreditou ser o salário, expostos na
mesa. Como ele estava sozinho em casa e a porta estava aberta,
ela resolveu guardar o dinheiro em uma lata de leite vazia que
encontrou na cozinha. No outro dia Vadé chegou chorando na
casa de Celina, achando que alguém tinha aproveitado a porta
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aberta e roubado o salário do seu esposo. Foi então que Celina
contou o que havia feito com o dinheiro, que se encontrava
espalhado. Depois de saber como a amiga tinha guardado o
dinheiro, as duas deram boas risadas.
Falar dessas duas amigas eternas, sem lembrar dessas
vivências comuns é simplesmente impossível. Uma amizade
que serviu de exemplo para os filhos de ambas. Na verdade
Celina e Vadé eram mães dos filhos uma da outra. E dessa
forma as duas amigas conseguiram atravessar as dificuldades
impostas pela pobreza em um Estado concentrador, no auge
do falso milagre econômico da ditadura. Dividiam o pouco
que tinham com a alegria de quem recebe um tesouro, e
assim ensinavam a prática a seus filhos, falavam e viviam o
Evangelho cotidianamente.
E Celina, além de seus seis filhos, também conseguia
espaço em seu coração para cuidar dos seus vizinhos como se
fossem filhos. Na sua casa própria Celina e seu esposo Antônio,
eram felizes, realizados por essa conquista, e eram muito
queridos por seus vizinhos. Sempre foram muito otimistas,
mesmo vindo de uma humildade tamanha e uma vida de
discriminação, eles deram a volta por cima.
Na vizinhança ela dava a mão a todos que recorriam a seu
ouvido em momentos de aflições, para serem aconselhados. E
quando tinha alguém doente a procuravam, recorriam às suas
rezas e seus remédios caseiros.
Na casa de Dona Celina havia duas fontes de doçuras, seu
amor e o açúcar preto (demerara/mascavo), que Seu Antônio
ganhava do seu trabalho, na Rede Ferroviária, dos trens que
carregavam açúcar. Apesar das dificuldades sempre existiu
muito afeto em nossa casa.
183
Com o passar dos anos as dificuldades econômicas foram
diminuindo e começaram a colher bons frutos, seus filhos se
encaminharam na vida, todos têm uma vida estável e as amigas
seguiram unidas na tranquilidade, no decorrer do tempo.
Celina depois do falecimento do esposo, continuou
educando e encaminhando seus filhos para uma vida com
honestidade e ensinamentos cristãos. Com o passar do tempo,
foi diagnosticada com Mal de Alzheimer vindo morar em
minha casa.
Valdeci, depois da sonhada aposentadoria, fez algumas
viagens, que era um dos prazeres da sua vida.
Elas eram tão ligadas que Dona Vadé queria passar o resto
da vida ao lado de sua grande amiga/irmã para poder cuidar
dela, infelizmente ela não pode realizar esse projeto devido a
sua partida precoce e inesperada.

Celina Valdeci

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Para preservar Celina omiti a partida de dona Vadé, mas
fui surpreendida com minha mãe relatando que a amiga tinha
ido lhe avisar que estava indo embora. E que ela, por sua vez,
pediu para ir junto, mas a amiga falou que ainda não era o
seu momento de partir. Celina partiu para o encontro de sua
amiga nove meses depois.
Eu sou grata a Deus por ter tido o privilégio de ter essas
duas mulheres como referência na minha vida.

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