Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ao lado, sentava uma mulher excessivamente magra e triste. Mas seu rosto, apesar das
faces cavadas, ainda guardava um quase nada de harmonia, próprio das coisas que já
foram bonitas. A tristeza vinha era dos olhos. A intervalos curtos, ela consultava o
relógio e mirava a solidão da paisagem à janela.
A garota dormiu, os braços ao longo do corpo e a coluna pregada ao espaldar: sua roupa
de domingo ainda mantinha os vincos do ferro à brasa e um resquício da colônia de
jasmim borrifada no colarinho rendado. A mulher recostou a cabeça da criança no seu
braço. Começaram a surgir casas à beira dos trilhos.
Saíram da estação para a luz branca da rua, sob um sol a prumo que queimava sobre a
cidade recolhida às casas. Cruzaram a praça central em direção ao sobrado erguido em
frente ao busto do primeiro prefeito. No portão de ferro, a placa em bronze confirmou o
nome. A mulher passou o lenço na testa suada e secou também o rosto da menina.
O acesso em pedra de grés entre os ramos das folhagens, uma fonte de chafariz, alguns
degraus e a campainha com barulho de sino.
Quem atendeu foi uma jovem senhora que cheirava a lavanda. Através da porta
entreaberta a menina viu a mobília bem arrumada, os quadros na parede, tapetes de lã
felpuda e uma janela de vidros coloridos ao fundo. Achou que o cheiro era da casa e não
da mulher.
– A essa hora o meu marido está no consultório. – Ela desceu os olhos para a garota e
voltou à mulher: – Se o caso é urgente, vá até lá.
Foram.
A saleta foi esvaziando devagar. Eram mais de cinco horas quando a enfermeira
mandou que elas entrassem. O consultório já fechara.
– Muito bem. – Ele largou a caneta sobre o bloco de receituário. – Qual é o problema?
Calada desde a porta, a mulher só olhava o chão. Ele repetiu a pergunta, debruçando-se
um pouco sobre a mesa. Com esforço, ela respondeu:
A menina não desgrudava os olhos do médico, da sua fronte alta e brilhosa, os ombros
largos, a mão, aquela enorme mão com anel no dedo.
– Tem dificuldade para se relacionar? – Quanto mais baixa era a voz dela, mais alta
ficava a dele.
– Ela é esperta – prosseguiu a mulher. Já sabe bastante coisa. Pode até ajudar na casa.
A mulher desentravou: não achava justo a criança sair errando por aí se havia a
possibilidade de uma vida menos dura, uma casa, uma cama quente, não queria nada
para si, por favor o doutor não confundisse; era difícil ficar lembrando aquelas coisas
mas não tinha outra maneira; e falar assim, nessa situação, dava dor no peito, sim
senhor, uma vontade de não existir até. Disse muito mais. E ao fim, uma grande bolha
de ar encheu-lhe a garganta.
O médico olhava para a mulher, para a menina, mas não encontrava os olhos de
nenhuma. Viu apenas a criança correr ao canto da sala e dependurar-se no cabide de
ferro pregado à parede, e levantar as pernas em posição perpendicular ao corpo, e rir, e
gritar:
Agarrada ao cabide, a menina continua rindo. O doutor vira-se para a mulher, ela agora
o encara. Ele então recebe inteiro o peso do tempo e sente que envelhece de repente.
Tem cansaço e até um certo asco. Ele levanta da cadeira e caminha até a criança. Afaga-
lhe a cabeça, abre a boca na intenção de dizer qualquer coisa, mas fica emudecido.
– O trem parte às seis e meia. Tenho dez minutos para chegar à estação. – Dirige-se à
porta e, com a mão no trinco, torna a falar: – Meu nome é Rosália.
Às seis e meia a mulher sobe no vagão que logo começa a se movimentar. Ainda lança
sobre as poucas casas da cidade um último olhar. Está sozinha.