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o LUGAR NA GEOGRAFIA HUMANISTA *

Werther Holzer**

Humanistic Geography and the Concept of Place

Place is, undoubtedly, one of the relationship with other concepts such
key concepts in the field of geography. as space, landscape and scale. With the
However, its relevance has only been help of geographers like Edward Relph
fully recognized in the J 980s, and until and Eric Dardel, as well as of the
now there are some problems and philosopher Martin Heideg g er. this
questions regarding its importance for paper aims at clarifying some of these
human exp erience, as well as its questions.

Hoje o "lugar" é um conceito fundamental para o estudo da geografia.


No entanto ele só ganhou importância para a disciplina a partir da década de
1980. Desde a implantação da geografia como disciplina acadêmica - a partir
de uma idéia positivista da ciência - o lugar foi eventualmente estudado pelos
geógrafos, mas sempre em um plano secundário.
. Na geografia clássica, do início do século, quando o estudo e a confec-
ção de mapas eram um dos fundamentos da disciplina, o lugar em seu sentido
locacional era utilizado para definir a geografia: A Geografia é a ciência dos
ti

lugares e não dos homens" (LA BLACHE, 1913; citado por RELPH, 1976).
Definição que perdurou por 50 anos: "As integrações que a geografia deve
analisar são aquelas que variam de lugar para lugar" (HARTSHORNE, 1959;
citado por RELPH, 1976).

* Este artigo é uma versão de capítulo da tese "Um estudo fenomenológico da paisagem e do lugar:
a crônica dos viajantes no Brasil do século XVI", apresentada em novembro de 1998 à FFLCHI
USP, para obtenção do título de doutor em Geografia.
** Professor da FAU - UFF.
68 Revista Território. Rio de Janeiro. ano IV, n° 7. p. 67-78. jul./dez. 1999

Como podemos ver, durante estes 50 anos relacionou-se o conceito de


lugar à origem da própria disciplina. Porém, a busca crescente da objetividade
praticamente inviabilizou qualquer consideração que extrapolasse o seu signi-
ficado locacional.
Sauer talvez tenha sido o primeiro a desvincular o lugar deste sentido
estritamente locacional. Isto porque ele via a disciplina geográfica como algo
que estava "além da ciência", ou seja, que não devia necessariamente trilhar
os caminhos preconizados pelos positivistas.
O estudo da Geografia para Sauer estava vinculado ao conceito de
"paisagem cultural", no qual "a cultura é o agente, a área natural é o meio, a
paisagem cultural é o resultado." (SAUER, 1983: 343).
Este conceito de paisagem cultural incorporava fortes elementos subje-
tivos, e esses elementos remetiam ao conceito de lugar, como se pode depreender
da passagem a seguir: tiA literatura da Geografia, [00']' inicia-se como parte das
primeiras sagas e mitos, vividas como o sentido do lugar e da luta do homem
com a natureza." (SAUER, 1983: 317; grifo meu).
Levando suas propostas a uma atitude intelectual mais radical, Sauer
incorporaria integralmente a subjetividade que estava implícita no conceito de
lugar: "Os fatos da Geografia são fatos do lugar; sua associação origina o
conceito de paisagem" (SAUER, 1983: 321). Estas idéias certamente iriam
influenciar os geógrafos humanistas 50 anos depois.
Outro autor, este um simples professor secundarista, ao propor um es-
tudo fenomenológico da geografia, se referia à geografia vivida em ato, a partir
da exploração do mundo e à ligação do homem com sua terra natal, "a relação
do homem com a Terra [00'] como modo de sua existência e de seu destino."
(DARDEL, 1990: 2).
O pólo de tensão desta relação estaria na distância, que obrigaria a
construção do mundo tendo o corpo como referencial. A direção, associada à
distância, resultaria em um sítio estável e inerte (o lugar"), ou, como definia
o autor: liA situação de um homem supõe um espaço onde ele se move; um
conjunto de relações e de trocas; direções e distâncias que fixam de algum
modo o lugar de sua existência. (DARDEL, 1990: 19).
ti

Para este autor, que influenciaria, 20 anos depois, os geógrafos humanistas,


a paisagem é uma manifestação mais ampla e complexa que o lugar. Ela se
refere às ligações existenciais do homem com a Terra, a Terra como
ti [ ••• ]

lugar, base e meio de sua realização. ti (DARDEL, 1990: 42).


Como disse, pelo menos 20 anos separam estas idéias das diversas
correntes e influências que se amalgamariam na década de 1970 e constitui-
riam o conceito humanista de lugar, conceito este já destituído de suas conotações
exclusivamente locacionais. LUKERMANN (1964) seria dos primeiros, num
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diálogo com a obra de Sauer, a discorrer sobre as propriedades locacionais do


lugar, e a definir a Geografia como a ciência dos lugares. Segundo ele:
"O ponto culminante do estudo geográfico é a descrição da Terra em
ordem geográfica. A chave para tal ordem está no conceito locacional de lugar.
Enfatizar o relativo, o cultural, a experiência histórica da humanidade, em
relação aos atributos físicos da área, é fazer o estudo completo da geografia
- o estudo dos lugares." (LUKERMANN, 1964: 172).
Estudo dos lugares porque o conceito primordial da geografia seria o de
"localização" (location), definido como a relação entre o arranjo interno de traços,
ou sítio (site) com o seu entorno (environs). Esta relação definiria o lugar.
Esta relação exigiria mais do que o inventário dos conteúdos da área, ela
se refere ao modo de ver o mundo, a seus padrões objetivos, mas também às
crenças das pessoas, aos significados subjetivos dos lugares. Segundo o autor:
"A coisa sobre a, qual a Geografia se dedica, seus dados, são ,
os fatos
da área (areal facts). E sobre isso que a Geografia sempre fala. E do conhe-
cimento do mundo como ele existe nos lugares. Como é o mundo - ou como
nós vemos o mundo - dividido em lugares e regiões, esta é a questão geográ-
fica. [...] O estudo do lugar é a matéria-prima da Geografia, porque a cons-
ciência do lugar é uma parte imediatamente aparente da realidade, e não uma
tese sofisticada. [...] O conhecimento do lugar é um simples fato da experiên-
cia." (LUKERMANN, 1964: 167-168).
Estas idéias apontam para um dado: o das semelhanças entre o que os
fenomenólogos chamam de "mundo" e o que os geógrafos humanistas denomi-
nam de "lugar; o do "lugar" como um dos constituintes básicos da Geografia,
como uma de suas essências. Para os fenomenólogos:
"[...] a percepção é sempre percepção da coisa total, compreendida
num campo mais amplo, o qual, por sua vez, é abrangido em um horizonte de
significados mais distantes. O conjunto desse complicado sistema de sempre
mutáveis significados 'próximos' e 'longínquos' ligados aos sempre mutáveis
momentos de atualidade e potencialidade da percepção, eis o que se chama
'mundo' na fenomenologia." (LUIJPEN, 1973: 106).
Este "mundo" se refere às vivências individuais e intersubjetivas, ou
como define DARTIGUES, (1978: 28): "[...] ele é em primeiro lugar o que
aparece à consciência e a ela se dá na evidência irrecusável de sua vivência."
Segundo TUAN (1965) o mundo é um campo de relações estruturado
a partir da polaridade entre o eu e o outro, ele é o reino onde a história ocorre,
onde encontramos as coisas, os outros e a nós mesmos, e deste ponto de vista
deve ser apropriado pela Geografia.
BUTTIMER (1976) nos forneceu uma ponte entre a Geografia e a
fenomenologia. Segundo a autora, a fenomenologia vê cada pessoa como tendo
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um "lugar natural" considerado como o ponto inicial de seu sistema de referências


pessoais. Este "lugar natural" é definido pela "associação de espaços circundantes
(surrounding)" , uma série de lugares que se fundem em "regiões significativas",
cada qual com uma estrutura apropriada e orientada em relação a outras regiões.
A partir destas considerações, a autora concluiu que:
"Muitos estudos fenomenológicos enfatizam a natureza dialógica das
relações entre as pessoas e os lugares ... Os fenomenologistas afirmam teori-
camente que esses ambientes (environments) ("worldlt) têm um papel dinâmi-
co na experiência humana mas, inclusive na prática, eles implicitamente sub-
metem este dinamismo ao diálogo no qual aos agentes humanos atribuem
significado." (BUTIIMER, 1976: 284).
Estas definições assemelham-se a outras enunciadas por TUAN (1979:
421):
"Todos os lugares são pequenos mundos: o sentido do mundo, no entanto,
pode ser encontrado explicitamente na arte mais do que na rede intangível das
relações humanas. Lugares podem ser símbolos públicos ou campos de pre-
ocupação tfields of care), mas o poder dos símbolos para criar lugares
depende, em última análise, das emoções humanas que vibram nos campos de
preocupação. "
A partir destas definições pode se concluir que o conteúdo dos lugares
é o mesmo conteúdo do "mundo": ambos são produzidos pela consciência
humana e por sua relação intersubjetiva com as coisas e os outros, gerando os
"campos de preocupação", como são denominados por Tuan.
Tuan proporia definições semelhantes às de Luckermann para discutir os
significados do lugar. Para ele, a geografia estuda os lugares sob duas óticas:
a do lugar como localização (location) e a do lugar como um artefato único
(TUAN, 1975).
O autor escolheria a segunda perspectiva. Como localização, dizia ele:
"[...] o lugar é uma unidade entre outras unidades ligadas pela rede de
circulação; [...] o lugar, no entanto, tem mais substância do que nos sugere a
palavra localização: ele é uma entidade única, um conjunto 'especial', que tem
história e significado. O lugar encarna as experiências e aspirações das
pessoas. O lugar não é só um fato a ser explicado na ampla estrutura do
espaço, ele é a realidade a ser esclarecida e compreendida sob a perspectiva
das pessoas que lhe dão significado." (TUAN, 1979: 387).
A preocupação dos geógrafos humanistas, seguindo os preceitos da
fenomenologia, foi de definir o lugar enquanto uma experiência que se refere
essencialmente, ao espaço como é vivenciado pelos seres humanos. Um centro
gerador de significados geográficos, que está em relação dialética com o
constructo abstrato que denominamos "espaço".
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Ainda segundo TU AN (I 979), espaço e lugar definem a natureza da


geografia. Mas o lugar tem uma importância ímpar para a geografia humanista,
pois, se para as técnicas de análise espacial o lugar se comporta como um nó
funcional, para o humanista ele significa um conjunto complexo e simbólico,
que pode ser analisado a partir da experiência pessoal de cada um - a partir
da orientação e estruturação do espaço, ou da experiência grupal (intersubjetiva)
de espaço - como estruturação do espaço mítico-conceitual.
Para RELPH (1976: 29): a localização ou posição não é condição ne-
cessária ou suficiente para a constituição do lugar. Ao contrário "[...] eles são
experimentados como no 'chiaroscuro' do cenário, paisagem, ritual, rotina,
outras pessoas, experiências pessoais, cuidado e preocupação com o lar, e com
o contexto dos outros lugares."
Deste modo o lugar se diferencia da cena (scene) ou paisagem, falta a
esta a estabilidade, ela se altera a cada mudança de perspectiva; enquanto que
o lugar possui uma existência estável (TUAN, 1979), é a experiência, individual
ou coletiva, que toma os lugares visíveis (TUAN, 1975).
Uma boa maneira de se esclarecer este ponto é recorrendo a uma
definição de TUAN (1978a), segundo a qual "o espaço não é uma idéia, mas
um conjunto complexo de idéias. [...] o lugar é um espaço estruturado". Ou
seja, o lugar é necessariamente constituído a partir da experiência que temos
do mundo (TUAN, 1975).
Outro modo de se estabelecer uma distinção foi o de explorar as possíveis
relações existentes entre o espaço e o lugar. Como fez RELPH (1976: 8):
concluindo que: "O espaço é amorfo e intangível e não uma entidade que possa
ser diretamente descrita e analisada. Contudo, [...] ele está sempre próximo e
associado ao sentido ou conceito de lugar."
O autor faria uma análise de diversos tipos de espaço que nos conduzem
aos significados do lugar: o espaço primitivo, o espaço perceptivo, o espaço
existencial, °espaço arquitetônico, o espaço cognitivo e o espaço abstrato.
Entre estes o que mais nos interessa é o do espaço existencial, ou espaço
vivido, definido como "[...] a estrutura oculta do espaço como aparece para nós
em nossas experiências concretas como membros de um grupo cultural."
(RELPH, 1976: 12).
O espaço vivido, segundo RELPH (1976: 16): contém o espaço sagrado
e o espaço geográfico. Ambos são "centros de significado, ou focos de inten-
ção e de propósito". O segundo se trata do: "[...] espaço significante de uma
cultura particular que é humanizado pela nomeação dos lugares, por suas
qualidades para o homem, e por refazê-lo para que sirva melhor às necessi-
dades da humanidade. 11

Segundo esta concepção, o lugar tem uma personalidade e um sentido.


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•.
Antes dos humanistas já se formulava esta questão; PRINCE (1961) dizia que
a Geografia deve evocar o "gênio do lugar". A personalidade, ou espírito, é
resultante das qualidades físicas do sítio e das modificações que lhe imprimem
as sucessivas gerações humanas (TUAN, 1979). Outro autor, no entanto, nos
lembra que apesar de há muito tempo se reconhecer que os lugares possuem
personalidades, estas: "[...] são complexas e mudam segundo os que perce-
bem. Existe um evidente contraste entre aquele que percebe como visitante,
que observa - que vê a cena superficialmente (sight-seeing) - e aquele que
está 'em casa' e que experimenta o lugar." (POCOCK, 1981: 342).
O sentido do lugar também seria It[ ...] demonstrado quando as pessoas
aplicam seu discernimento moral e estético aos sítios e localizações" (TUAN,
1979: 410). Mas, para que se constituam efetivamente em lugares é necessário
um longo tempo de residência e um profundo envolvimento emocional.
Estas reflexões nos remetem à questão do "lugar" colocada em termos
fenomenológicos. Segundo RELPH (1976: 42-43): a essência do lugar é a de
ser o centro das ações e das intenções, onde são experimentados os eventos
mais significativos de nossa existência. Assim:
"Lugares são os contextos ou panos de fundo para a intencional idade
definir objetos ou eventos, ou seja, eles podem ser objetos da intenção em seu
sentido primordial [...] [pois] toda consciência não é meramente consciência de
algo, mas de algo em seu lugar, e [...] esses lugares são definidos geralmente
em termos dos objetos e de seus significados. Como objetos, no seu verdadeiro
sentido, lugares são essencialmente focos de intenção, que têm usualmente
uma localização fixa e traços que persistem em uma forma identificável."
(RELPH, 1976: 42-43).
Duas outras características dos lugares foram destacadas por diversos
autores: a identidade e a estabilidade. A identidade refere-se ao espírito, ao
sentido, ao gênio do lugar. Ela provém das intenções e experiências
intersubjetivas, que resultam da familiaridade (RELPH, 1976). Estas ligações,
que se iniciam com o nosso nascimento e se aprofundam com a experiência
(TUAN, 1983), implicam em um conhecimento detalhado do lugar, e na cons-
tituição de raízes, de um centro de significados que se tome insubstituível.
Existiriam diversos tipos de identidades do lugar, como foram descritos
por RELPH (1976: 64-65). Todas estas identidades possuindo como caracte-
rística comum a de que: "[...] não podem ser entendidas simplesmente em
termos de padrões físicos e de traços observáveis, nem só como produtos de
atitudes, mas como uma condição indissociável destes." (RELPH, 1976: 59).
A estabilidade, assim como a convivência temporal prolongada, seria um
fator fundamental na constituição dos lugares, segundo TUAN (1979: 411):
"Uma cena pode ser um lugar, mas a cena em si não é um lugar. Falta-
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lhe estabilidade: é da natureza da cena mudar a cada mudança de perspectiva.


A cena é definida por esta perspectiva, o que não é verdadeiro para o lugar:
é da natureza do lugar aparecer como tendo uma existência estável, indepen-
dente de quem o percebe."
A estabilidade nos leva a relacionar tempo e lugar. Em diversas passa-
gens, TUAN (1978a; 1983) afirma que o lugar é pausa no movimento. Isso não
quer dizer no entanto que o lugar esteja além da história ou seja atemporal,
significa sim, que o lugar denota a relação inseparável entre espaço e tempo:
a pausa, ao permitir a localização, transforma-se em um pólo estruturador do
espaço, o que implica no estabelecimento de uma "distância", sendo este um
conceito, ao mesmo tempo, temporal e espacial.
A espacialidade original e a mobilidade humanas delineiam as direções.
Como resultado, a espacialidade cotidiana é determinada como afastamento e
direção. As distâncias não são, então, experimentadas como quantidade, mas
simplesmente como a qualidade de se estar perto ou longe de algo.
O mesmo sentido prático fixa as direções: "Ao mesmo tempo que pro-
cura tornar as coisas próximas, o homem necessita se dirigir, por sua vez, para
se reconhecer no mundo circundante, para aí se encontrar, e para manter reta
sua caminhada e para abreviar as distâncias." (DARDEL, 1990: 14).
A distância é definida por FRÉMONT (1982) como a relação mais
simples entre dois lugares, entre um homem e um lugar ou entre dois homens.
Ele identificou cinco tipos de distâncias: a distância métrica, que é uma exten-
são objetiva; a distância-tempo, que se relaciona com o tempo necessário para
se preencher o espaço entre dois objetos; a distância afetiva; a distância
ecológica; e a distância estruturaL
Estas três ultimas haviam sido anteriormente propostas por GALLAIS
(1976), e se prestam muito bem para demonstrar que a relação dialética entre
distâncias e lugares está muito além do caráter objetivo, locacional, que a
Geografia durante muito tempo impôs aos lugares.
A distância afetiva, por exemplo,
"[...] com forte componente psicológico, acontece entre um homem e um
lugar, ou entre os homens e os lugares, independentemente da extensão medida
ou do tempo de percurso, uma carga afetiva devida a diversos fatores [...] que
tem o efeito de 'aproximar' ou, ao contrário, de 'afastar'; a distância ecológica,
mede e aprecia, segundo um 'prisma seletivo' próprio a cada homem e, por
acumulação, a cada sociedade, todas as nuanças do ambiente natural; a dis-
tância estrutural [...] tem em conta as relações sociais como fatores de apro-
ximação ou distanciamento dos homens entre si, e por conseqüência, dos ho-
,,#

mens com os lugares. (FREMONT, 1982: 26).


ti

Daí a importância das viagens, do conhecimento de novos lugares, para


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o estabelecimento de bases comparativas. Como observa POCOCK (1981), a


viagem provê a base para a comparação entre os lugares.
BONNEMAISON (1981: 253-254): no seu estudo sobre o território,
define-o como uma coleção de lugares dispersos, um "arquipélago" assentado
sobre espaços indistintos limitados por pontos notáveis, e conclui que: "[...] um
território [...] é um conjunto de lugares hierárquicos, conectados por uma rede
de itinerários [...] os grupos e as etnias vivem uma certa ligação entre o
enraizamento e as viagens."
Por se constituir de um centro de significados espaciais pessoais ou
intersubjetivos o lugar não possui escala definida. Esta posição é defendida, por
exemplo, com os seguintes argumentos:
"O lugar pode se referir a uma variedade de escalas, em cada uma
delas, em termos experienciais, há um limite característico com estrutura
interna e identidade, no qual o local (insiderness) se distingue do estrangeiro
(outsiderness) [...] Nós, portanto, habitamos em uma hierarquia de lugares,
levando-nos ao nível apropriado de resolução de acordo com o contexto par-
ticular no qual encontramos a nós mesmos. Cada nível ou estado nasce da
experiência das interações mútuas entre homem e ambiente." (POCOCK, 1981:
337).
Em várias oportunidades TUAN (1975, por exemplo) alertou para o fato
de que a experiência constitui os lugares em diversas escalas. Atualmente ela
formaria um contínuo que inclui: o lar, como provedor primário de significados;
a cidade, como centro de significados por excelência; os bairros e as regiões;
o Estado-Nação.
,
E preciso admitir que, seja para o indivíduo ou para o grupo, o au-
mento da escala impossibilita, progressivamente, um relacionamento espa-
cial direto, remetendo-nos para uma apreensão cada vez mais fragmentária
dos lugares, a uma visão em "arquipélago", como nos sugere Bonnemaison.
Neste momento torna-se necessário recorrer a outros conceitos espaciais,
,
entre eles o de região, que FREMONT (1980) nos ensina não se tratar de
um lugar em escala ampliada, e o de território, que define relações com-
plexas dos homens com os lugares. Não cabe aqui, no entanto, a análise
destas outras categorias espaciais.
Recentemente o historiador Pierre NORA (1993) criou o conceito de
"lugares de memória". Este conceito, que vem sendo utilizado por geógrafos
inseridos no âmbito do pós-modernismo, relaciona-se com uma crença na
aceleração da história e na ruptura do elo entre história e memória. Para Nora,
se temos memória não precisamos lhe consagrar lugares, pois não haveria
lugares se a memória não fosse transposta para a história. No entanto, para
° autor, a tradição da memória acabou, e com ela temos apenas os lugares de
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memória como sobreviventes da desritualização do mundo. Eles seriam um


meio não-espontâneo de se guardar a memória, de se legitimar um passado
coletivo (do Estado-Nação) cada vez mais ameaçado pelo individualismo que
procura legitimar o futuro. Eles conjugariam a vontade de parar no tempo com
a valorização do espetáculo, do que é simbólico. Em última instância eles estão
ancorados na realidade, sendo auto-referentes.
Vários geógrafos apropriaram-se do tema, procurando ajustá-lo às ques-
tões da geografia contemporânea. Questionamentos que têm sua origem, cer-
tamente, na crise do Estado-Nação, que leva a uma fragmentação dos lugares
(AGNEW e DUNCAN, 1989), e a dependência do Estado-Nação de identifi-
car-se com os "lugares de memória". E, num momento anterior, na ampla
discussão ocorrida na década de 1980 sobre a questão da linguagem em geral,
e geográfica em particular, como metáforas da vida cotidiana (TUAN, 1978b~
LIVINGSTONE e HARRISON, 1980 e 1981; BUTTIMER, 1982; OLSSON,
1983).
Alguns geógrafos franceses uniram a questão da linguagem com a pro-
posição dos lugares de memória
11 criando a figura dos "haut lieux", que
11,

podemos traduzir por "lugar distinto" e os ingleses traduzem para "symbolic


place", Eles são associados à ausência de um território definido que obriga à
reconstituição de situações espaciais apenas a partir da memória (BRUNEAU,
1995), ou a uma dissociação entre as categorias espaciais tradicionais e o
mundo contemporâneo que exige a subsistência de todos os territórios como
"lugares de memória" (PIVETEAU, 1995).
DEBARBIEUX (1995) associa os "haut lieux" à sinédoque, figura de
linguagem onde uma coisa é tomada por outra, o que resulta, no caso, de que
um lugar pode designar outros objetos cuja configuração evoca outros lugares.
Assim:
"[00'] os lugares distintos são os produtos combinados de uma parte da
memória e da história, e, por outro lado. da leitura que se faz de nossa época.
[00'] O lugar distinto vem a ser o suporte de uma atividade que pode ser
totalmente desconectada de sua própria significação." (GENTELLE, 1995).
Parece-me totalmente inadequada esta utilização do "lugar" descaracte-
rizado de suas qualidades espaciais e geográficas e transfigurado em um mero
símbolo não-espacial denominado "lugar de memória" ou "lugar distinto". Na
verdade essas formulações caminham na direção do "não-lugar" como foi
definido por RELPH (1976).
Creio ser razoável a sugestão de BERDOULAY (1989), segundo a qual
o lugar envolve pessoas, objetos e mensagens. Mas acho preferível dizer que
ele envolve as relações intersubjetivas, e não mensagens, que resultam na
produção de significados espaciais.
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Proponho que se defina o lugar sempre como um centro de significados


e, por extensão, um forte elemento de comunicação, de linguagem, mas que
nunca seja reduzido a um símbolo despido de sua essência espacial, sem a qual
torna-se outra coisa, para a qual a palavra "lugar" é, no mínimo, inadequada.
Concluindo: é necessário um retorno à ontologia da geograficidade e
uma análise da importância do lugar para a constituição da própria geografia.
Entre os filósofos, HEIDEGGER (1992: 179) foi quem mais contribuiu para que
se possa desincumbir dessa tarefa. Segundo ele, a habitação e o lugar se
configuram como a morada do Quadripartido (das Geviert), composto pela
terra, pelo céu, pelo divino e pelos mortais em sua Unidade original. "A habi-
tação (no sentido de habitar a terra)", nos diz ele, "como organização, preserva
o Quadripartido naquilo em que os mortais residem: nas coisas."
Heidegger exploraria as possibilidades ontológicas do tema:
"As coisas que de alguma maneira são os lugares", "outorgam, por sua
vez, os espaços. [...] Um espaço iRaum) é qualquer coisa que é "organizada",
tornada livre, no interior de um limite. [...] O limite não é onde qualquer coisa
começa a ser (sein Wesen beginnt) [...] Aquilo que está "organizado" é por
sua vez dotado de um local (gestattet) e desta maneira se insere, ou seja,
congrega-se num lugar [...] O que resulta de que os espaços recebem o seu
ser dos lugares e não do espaço. [...] As coisas que, tal como os lugares,
"organizam" um local, nós as denominamos por antecipação de construções
(BAUTEN, 1992: 183-184): [...] Estas coisas são os lugares que conciliam um
local no Quadripartido, aquele local conduz (einrãumt), por sua vez, a um
espaço. No ser das coisas, tal como nos lugares, reside a ligação entre o lugar
e o espaço, reside também a relação entre o lugar e o homem que está nele."
O espaço, tomado simplesmente por suas três dimensões, é o "abstractum"
que se reduz a uma simples extensão (extensio), e que pode ser abstraído nas
relações algébricas. Mas, o espaço organizado pelos lugares se deslinda como
intervalo,° "Spatium" e a "extensio", que tornam "possível medir as coisas e
os espaços que elas organizam segundo as distâncias, os trajetos, as direções,
e de calcular as suas medidas. Mas não podemos, em nenhum caso, pela única
razão de que as unidades de medida e as suas dimensões são universalmente
aplicáveis a todas estas extensões, afirmar que as unidades de medida e suas
dimensões são também o fundamento do ser dos espaços e dos lugares
mensuráveis com a ajuda das matemáticas. [...] Os espaços que nós percor-
remos diariamente são "organizados" pelos lugares, onde o seu ser é fundamen-
tado sobre as coisas do gênero das construções." (HEIDEGGER, 1992: 185-186).
Revista Território. Rio de Janeiro. ano IV. n° 7~ p. 67·78, jul./dez. 1999 77

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