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O Gide de Sobre o Gide de Lacan

Maria Helena Barbosa (EBP/AMP)

No final de 1988, no Seminário de Estudos Aprofundados, Jacques Alain-


Miller proferiu quatro sessões intituladas Sobre o Gide de Lacan (1). Nelas,
abordou o texto A juventude de Gide ou a letra e o desejo (2), de Jacques
Lacan, publicado na revista Critique, em 1958.
Este texto de Lacan, por sua vez, é uma resenha do livro Juventude de André
Gide, um estudo biográfico, escrito em 1956/57, por Jean Delay, psiquiatra,
neurologista e escritor francês, que acolheu o Seminário de Lacan, em Saint-
Anne.
Para tanto, os três autores se valeram de diversos textos de Gide, de sua
correspondência com a mãe, de referências a outros trabalhos sobre sua
obra, de outros escritores que procedem, na escrita, da mesma forma que
ele, e trechos da obra de Goethe.
Naquela ocasião, Miller desenvolveu uma abordagem desse texto de Lacan
visando o tema traços de perversão, do Encontro Internacional do Campo
Freudiano de 1989.
Hoje, retornamos ao Sobre o Gide de Lacan, agora visando a adolescência,
nos preparando para o XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, com o
tema Adolescência, a idade do desejo.
Esta orientação surge da intervenção de Miller Em direção à adolescência
(3), ocorrida no encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança, em
2015. Ele propõe que nos ocupemos de três aspectos da adolescência sendo
que, um deles, a imiscuição do adulto na criança, está diretamente articulada
a esse texto de Lacan, de onde Miller extraiu e trabalhou duas formas da
imiscuição, que abordarei aqui.
Isto toma seu valor, como o diz Miller, na medida em que, através de Gide,
Lacan apresenta uma abordagem clínica da juventude como um processo
determinante para o sujeito, valorizando instâncias e funções que não estão
presentes na infância, modificando nossas referências no que diz respeito à
própria estruturação subjetiva como considerada a partir do período pré-
edípico e edípico.
Também é digno de nota que o desenvolvimento feito por Miller parte das
referências da clínica estrutural, da clínica edípica, do significante e do
desejo, porém, a função da letra, tal como a abordamos na clínica universal
do gozo, é o viés por onde esta abordagem será tratada.
Além de apontar que, este é um caso de perversão em que o esforço de
Lacan é apresentar uma perversão não-standard, Miller avança afirmando
que “é como um elo que se segue a articulação da psicose em direção a
teoria da neurose”, e traz o fundamento do que propôs como a clínica não
diferenciada, unificada.
Desde o início, Miller deixa bastante evidente a tese de Lacan, donde: na
“relação do homem com a letra”, ... “o estilo é o objeto”. Assim sendo, a
criação literária de Gide apresenta o processo de instalação de um estilo que
se formou no fim do período de sua juventude e lhe valeu como solução para
seu sintoma. É uma criação literária marcada pelo Eu, onde assume sua
própria posição, um diário do narrador, na primeira pessoa. É uma narração
que duplica sua vida, formalizando-a. Dito de outra forma, na ordenação da
narrativa se encontra a própria estrutura do sujeito que a psicanálise designa.
Nas palavras de Lacan: vemos ordenar a ‘composição do sujeito’, a
‘constituição da persona’, ‘a construção de André Gide’, ‘a fabricação da
máscara’”. Miller completa dizendo que, é o “’auto-engendramento’ de André
Gide - com todas as aspas que se impõe, pois é certo que isto se faz com
relação ao Outro”.
Miller situará que a questão clínica central, de que devemos partir, é saber
como a relação parental determina uma relação entre o sujeito e o Outro
sexo, e que acesso ela determina. É a operação da metáfora paterna em
funcionamento articulada à questão da castração.
Ele volta à infância de Gide e a seus pais para estabelecer em que termos se
dá a relação parental e como a criança Gide se localiza nela.
Do pai, não há um retrato explícito. Qualquer que seja sua presença, por
mais terna que seja, ou ainda que constitua objeto de nostalgia desde seu
falecimento, nada tem a ver com a maneira operatória da função do pai.
Mesmo, se colocarmos em primeiro plano sua veneração pelo pai, esta não
seria a posição normatizada, não substitui a autoridade que não tem
necessidade de ser venerada. O pai de Gide exerce a função do pai mais
como um amiguinho. É uma figura de pai em tons pastéis.
Já a mãe é bastante envolvente e tem uma prevalência determinante. Uma
mãe bastante própria, que nos arranca do universal da mãe.
Por fatos da vida dessa mãe, Lacan pôde extrair que sua posição subjetiva
se dá a partir da homossexualidade feminina, mesmo que não efetuada do
lado do corpo uma vez que não há a menor indicação disso. Nela, o falo não
tem o lugar que deveria ter para assegurar o bom funcionamento da metáfora
paterna. Ela não simboliza o objeto de seu desejo no falo. O desejo desta
mãe, DM/x, permanece, em sua significação, problemático. Para a posição
de madame Gide, há uma negatividade que vem se depositar sobre o falo,
porém de modo completamente distinto da castração, DM/x = (-φ). O falo não
se inscreve, há aqui uma mortificação do falo (-). É o que comporta a falha do
desejo dessa mulher.
Lacan se pergunta, Miller o segue, e por aí vamos também: “Que foi esse
menino para sua mãe?”. Para esta análise, Miller formaliza que Lacan propõe
um ternário clínico entre o amor, o desejo e o dever.
Se na metáfora paterna o pai reina como lei na medida em que domina a
função dita do Desejo da Mãe – lei/DM, na metáfora gideana há uma
modalidade especial – Gide foi a criança amada, não a criança desejada.
O que isso quer dizer? Qual é o amor desta mãe? O amor de que se trata
aqui não é um amor enlaçado ao desejo simbolizado pelo falo, é um amor
desencarnado. De um lado temos a dissociação do amor e do desejo:
amor//desejo, e de outro, a identificação do amor ao dever: amor ≡ dever,
mais precisamente ao mandamento do dever. A palavra, mandamento, que é
uma palavra cara a Gide, visa o supereu. Não é simplesmente a lei, mas o
aspecto que ela toma quando é sustentada pelo objeto voz, que é a da mãe.
Uma mãe que, de maneira explícita, suporta o reino da lei
Onde está o desejo? O desejo que aparece aqui exclui a criança Gide da
questão. Existe amor ou dever – o desejo parece em posição de exclusão. A
mãe de Gide apresenta o amor identificado ao dever, e tem, igualmente, um
desejo, mas um desejo que tem como consequência (φo). É no que ela pode
ser dita mortífera, ela leva à morte.
Quando seu pai morre, Gide, com onze anos à época, diz que “está preso, no
invólucro de seu amor” – a mãe é toda dele. Miller destaca que, “o princípio
fálico do desejo comporta, precisamente, que a mãe não é toda da criança,
ele desfaz o invólucro do amor”.
Então, no lugar do que deveria ser o significado do desejo da mãe, há a
mortificação, e de maneira concomitante e consequente, o gozo fálico
desempenha seu papel totalmente sozinho, e a criança Gide se localiza
“entre a morte e o erotismo masturbatório”.
Dito de outra forma, se tomamos o significante da castração, (-φ), podemos
dizer que é como se estes dois elementos se encontrassem disjuntos: de um
lado o menos, (-), que funciona sozinho – é a mortificação, e do outro, o falo,
(φ), que faz a sua parte, sozinho.
A criança Gide não renuncia o sexo. Pelo contrário, parece que por não estar
inscrito no reino da lei, o órgão, completamente fora da lei, é muito ativo. A
função permanece absolutamente operante, e ao mesmo tempo, vai vaguear
de maneira totalmente transgressora. O gozo do órgão não foi enganchado
na metáfora paterna. Uma ilustração disto é o fato de Gide ter sido expulso
do internato onde estudava, aos oito anos de idade, por praticar a
masturbação na sala de aula.
Temos, assim, a infância de Gide. Sua juventude se estendeu até tarde, por
volta dos vinte e cinco anos, até que ele pudesse concluir, relativamente, sua
posição em relação à sexualidade, ao desejo enquanto tal. Relativamente na
medida em que a solução encontrada pelo sujeito Gide, frente à dissociação
do amor e do desejo, não foi a solução da metáfora paterna, que associa o
amor ao desejo. Na fórmula de Lacan, onde “o amor permite ao gozo
condescender ao desejo” encontramos o amor como mediação entre o
desejo e o gozo – o amor que humaniza o gozo. Novamente, para ilustrar,
Gide escreve que viveu “completamente virgem e depravado” até quando,
aos vinte e quatro anos, inicia relacionamentos sexuais com pivetes, de
forma clandestina, e, aos vinte e cinco, casa-se com a prima Madeleine.
É o que justifica dizer que, na vertente do amor, de seu amor tão grande e
único por sua prima, Gide obedece a fórmula masculina – as mulheres são
todas as mesmas, com o lugar marcado da exceção conferido a Madeleine,
que é o ideal de anjo, sem sexualidade, e promove um casamento não
consumado. Por outro lado, na vertente do desejo ou do gozo, ele obedece à
fórmula feminina, o desejo permanece clandestino, não associado ao amor,
praticando a pedofilia.
Aqui veremos o processo por onde vai, e o que é, “a imiscuição do adulto na
criança”, no sentido de promover a possibilidade da posição do sujeito
desejante.
Como destaca Miller, “sabemos que Gide é um homem de desejo e, a partir
deste dado de base, Lacan foi conduzido a colocar o desejo na posição de
intrusão”. Se o ternário clínico – amor, dever e desejo, indica que o desejo
está na posição de exclusão, a presença do mesmo, na vida de Gide, o
reintroduz por uma intrusão.
Para dar conta da primeira forma da imiscuição, que chamei “do desejo do
Outro no gozo do Um”, Miller formaliza que, “esta necessidade lógica de
efração do desejo, (do desejo em posição de exclusão), explica que Lacan
tenha selecionado, na história de Gide, o episódio da sedução pela tia,
lembrança de Gide que data de seus treze anos, e é concomitante à escolha
de Madeleine como único objeto de amor”.
Entre a mãe e Madeleine, Lacan foi procurar o elemento mediador que os
conecta – uma segunda mãe. Miller localiza que “a tia, em primeiro lugar, é a
segunda mãe porque é a mãe de Madeleine, e que, poderíamos,
consequentemente, tentar dizer – uma mãe para o desejo”.
O que justifica elevar a mãe de Madeleine a esta posição? Resumindo Miller:
há uma espécie de par significante entre as duas mães em A porta estreita,
de Gide: uma voltada ao negro; na outra, o negro está absolutamente
excluído; uma virtuosa, outra da perdição. Madeleine, de um lado, parece-se
com a mãe de Gide em sua cor, sua ausência de graça, etc. De outro, ela
tem, também, os traços de sua própria mãe, é como um cruzamento destas
duas mães.
Esta tese das duas mães leva em conta a dissociação do amor e do desejo.
Mais ainda, não são apenas as mães que são duplicadas, é propriamente a
função fálica que se encontra cindida.
Lacan situa que no episódio da sedução pela tia, “é na mulher que o sujeito
se descobre transmudado como desejante”. Em Porta estreita, Gide descreve
o efeito desta sedução sobre ele, e Lacan o formaliza ao dizer que “no
imaginário, ele se torna o filho desejado”, precisamente aquilo que lhe faltou
na sua relação com sua mãe de todo amor.
Ainda assim, o encanto mortífero da mulher ideal, em que Gide mergulha ao
se oferecer, como o objetivo maior de sua vida, a proteger Madeleine, de
tudo, de todos e da vida, leva Lacan a apontar que “resta saber porque o
desejo e sua violência, que por ser a do intruso, que não era sem eco no
jovem sujeito ... não romperam este charme mortífero, depois de lhe ter dado
forma”.
Miller desenvolve esta questão ao apontar que a tia é a mãe do desejo, mas
apenas na medida em que seria a chance de repositivar o falo, uma vez que
o desejo da mãe só deixou sua incidência negativa, DM/x = (-), deixou um
desejo, de certa forma, sem violência, um desejo neutralizado, que leva à
morte, um desejo não simbolizado pelo falo. A chance de reposittivar o falo
viria da “intrusão pela qual teria havido uma chance que se inscreva, no lugar
da negatividade do desejo, sua positividade, sua violência”, diz ele.
Vejamos, então, qual é o status do desejo da tia? É de um Outro do desejo,
porém fora da lei, DM/x = (φ), não traz as marcas da castração, o que não
possibilitou repositivar o falo. Com Miller: “A castração é uma articulação
entre a incidência positiva e a incidência negativa do desejo”.
Por esta via, Gide mantém a escolha de objeto clivada em dois: a escolha do
objeto amoroso que foi consequente desse episódio de sedução, e a escolha
do objeto do desejo, que passaremos a tratar agora, na segunda forma de
imiscuição, a da mensagem de Goethe que, também, vem de fora, onde
dizemos da “palavra do Outro no Sujeito”, e que foi um encontro decisivo
para ele.
Gide, aos vinte e três para vinte e quatro anos, começa a aprofundar seus
conhecimentos sobre Goethe. Com ele, descobre a legitimidade do prazer,
em oposição ao puritanismo que sempre havia conhecido com sua mãe.
Relata isso numa publicação em que diz “é um dever ser feliz”.
Miller formaliza a intrusão da mensagem de Goethe no sujeito Gide, seu
efeito decisivo, apontando que Goethe empresta seu selo simbólico à
proliferação imaginária dos personagens gideanos. A mensagem de Goethe,
de certa forma a estofa, põe um ponto de basta na persona de Gide e indica
certo restabelecimento da metáfora paterna gideana. Ele encontrou em
Goethe a palavra que humaniza o desejo, que enlaça o amor e o desejo.
Como diz Miller, “o humaniza relativamente, já que este desejo é em parte
clandestino, mas Gide acabará por colocá-lo em praça pública. Ele
encontrará uma maneira de revelá-lo e articulá-lo ao universal. Encontra em
Goethe a palavra que vem dizer: Tu podes ser o que tu és. É uma licença
com efeito, e ao mesmo tempo uma licença que conduz ao universal”.
Esse efeito decisivo é onde se estabelece uma reconfiguração do narcisismo,
na articulação do Ideal do eu e do eu ideal, no período púbere, como
desenvolve Freud na Introdução ao Narcisismo (4), e faz modificar o marco
do período edípico como determinante e final na estruturação subjetiva.
O Ideal do eu, que é o outro como falante, aquele que mantém uma relação
simbólica, encontrou na mensagem de Goethe um novo lugar que lhe
permitiu estar melhor articulado com o eu ideal, que é formação
essencialmente narcisista, do registro do imaginário.
Concluindo com Miller: “Gide troca a palavra mandamento, que é a palavra
gideana da interdição, da inibição, pelo lugar que deu à mensagem de
Goethe – deixa o reino da interdição e do mandamento: há uma promessa de
universalidade se aceitas o mais extremo de tua relação com o que desejas”.

(1) Miller, J-A., Sobre o Gide de Lacan, Opção Lacaniana, nº22, p.16, ou
na versão online, nº 17 e 18.
(2) Lacan, J., A juventude de Gide ou a letra e o desejo, Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar editor, p.749
(3) Miller, J-A., Em direção à adolescência, Opção Lacaniana nº72
(4) Freud, S., Introdução ao narcisismo, Obras Completas, vol. XIV, Imago
editora

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