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br | Jus Navigandi
Publicado em 04/2019.
PARECER
CONSULTA
Por isso, num capítulo preliminar deste parecer, serão estudadas em geral duas
liberdades fundamentais, raramente analisadas entre nós, quais sejam o
direito à privacidade e à liberdade religiosa, para depois responderem-se os
quesitos formulados.
CONSIDERAÇÕES GERAIS
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O DIREITO À PRIVACIDADE
Tais direitos já foram vistos como esculpidos pelo próprio Deus na consciência do
homem, como inerentes à natureza humana, como confirmados por uma prática
unânime dos povos cultos, como “ideal de todos os povos e todas as nações”. Sobre
isso dissentem as escolas e as épocas, entretanto, sempre perdura, e no mundo
contemporâneo de modo absoluto, a convicção de que são a expressão lídima da
dignidade da pessoa, e como tal, merecedores do respeito e da proteção por parte
dos Poderes políticos.
A relação desses direitos não é objeto de uma “revelação” feita de uma vez para
todo o sempre. Ao contrário, em cada momento histórico, diferentes conjunturas
fazem ressaltar determinadas projeções desse núcleo básico.
Ou, na tradição nacional, como o exprime, p. ex., a Constituição de 1891 (art. 78):
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Dela decorre que cada ser humano tem o direito de conduzir a própria vida como
entender — fora dos olhos da curiosidade e da indiscrição alheias — desde que não
fira o direito de outrem.
Duas são as faces desse direito, segundo aponta o Juiz Stevens, da Suprema Corte
Americana, em famoso aresto, Whalen v. Roe: “a de evitar a divulgação de
questões pessoais” (“avoiding disclosure of personal matters”) e a
“independência em tomar determinada espécie de decisões importantes”
(“independence in making certain kinds of important decisions”) (V.
Laurence H. Tribe, American Constitutional Law, 2ª ed., Mineola, the
Foundation Press, 1988, p. 1302).
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A seu turno, a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, de 1969, art. 11,
é expressa:
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DA LIBERDADE RELIGIOSA
Vale, neste passo, reproduzir, resumindo, as observações gerais que Jean Rivero
formula no seu livro Les Libertés Publiques, sobre “a especificidade do fato
religioso” (Paris, PUF, vol. 2º, 1977, p. 148 e s.).
Ora, acrescenta:
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Assinala, mais:
Ademais:
E completa:
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Desse conflito entre cristãos em torno da liberdade religiosa, porém, iria resultar a
reivindicação da liberdade em geral que cresce no século XVIII. Culmina ela com a
consagração dos Direitos do Homem, seja nas declarações editadas no final do
século na América do Norte, seja na Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão de 1789.
De fato, segundo Canotilho, autores como G. Jellinek consideram que “na luta pela
liberdade de religião” está “a verdadeira origem dos direitos fundamentais” (José
Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 6ª ed.,
1993, p. 503).
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d’) No Brasil
“Ninguém poderá ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do
Estado, e não ofenda a moral pública.”
..............................................................
..............................................................”
E este princípio não falta em qualquer das Constituições posteriores: 1934, art. 17,
II; 1937, art. 32, b; 1946, art.31, II; 1967, art. 9º, II; 1969, art. 9º, II.
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..........................”
Na Constituição de 1934, a matéria veio a ser regida pelo art. 113, 5):
Deu ela, ademais, dois passos significativos em consonância com essa liberdade.
Um, a consagração da “objeção de consciência”, no art. 113, n.º 4; outro, a previsão
da assistência religiosa, no art. 113, n.º 6.
A Carta de 1937 reproduz praticamente, no art. 122, 4º, o texto de 1891, salvo na
parte final que é inspirada pela Constituição de 1934:
Já a Lei Magna de 1946 preferiu, no art. 141, § 7º, seguir o texto de 1934:
Já a assistência religiosa sofreu uma alteração maior, ainda que de redação apenas
(§ 7º).
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E também salvaguardou a escusa de consciência (no art. 141, § 8º) bem como a
assistência religiosa (art. 141, § 9º).
Dela pouco discrepa a Constituição de 1967. Esta, no art. 150, § 5º, dispõe:
Essencialmente, é ela o direito de cada ser humano ter sua religião, por
escolha livre, segui-la livremente nos seus mandamentos, prestar,
segundo estes, o seu culto à divindade, sem ingerência, mas com o
apoio do Estado (seja-me perdoada a formulação pleonástica).
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Mas, como o direito não alcança o foro íntimo, sendo baldadas de êxito todas as
tentativas dos detentores da verdade de impor uma crença, mormente religiosa,
ou proibi-la, segundo revela a história do passado e do presente (v. o fracasso da
campanha ateísta soviética), ambas aparecem confundidas e são usadas como
sinônimas (Cf. José Cretella Jr, Comentários à Constituição 1988, Rio de
Janeiro, Forense Univ., vol. I, 1989, p. 216 e s.).
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Nenhuma religião, com efeito, aceita que o homem não viva segundo os seus
ditames. “Res, non verba”, é o seu critério. E, como ensina a história,
incontáveis são os mártires que sacrificaram a própria vida para não traírem a
convicção religiosa.
Tenha-se presente que a liberdade religiosa é uma das formas por que se
explicita a liberdade.
Esta é, de per si, um dos direitos fundamentais, conforme está no caput do art. 5º
da Constituição em vigor.
Mais do que isto, é ela para todos os que aceitam um direito superior ao positivo,
um direito natural. É o mais alto dentre todos os direitos naturais. Realmente, é
ele a principal especificação da natureza humana, que se distingue dos demais
seres animais pela capacidade de autodeterminação consciente de sua vontade.
Se cabe uma hierarquia entre os direitos fundamentais, esta, pela importância dos
valores que tutelam, a liberdade é o primeiro dentre todos. Com efeito, de quanto
vale a vida, a segurança, a igualdade, a propriedade, sem a liberdade? Talvez esta
colocação peque por estar vinculada a uma cultura, ou eivada de subjetivismo, mas
é a cultura greco- romana-cristã, a que o Brasil incontestavelmente pertence.
Não mais se sustenta, hoje, serem absolutos os direitos fundamentais. Esta visão é
ilógica, na medida em que se incompatibiliza com a vida social.
Disto resulta conseqüência clara para os casos em que ocorre o que Canotilho
chama de “concorrência” de direitos fundamentais (ob. cit., p. 641). Ou seja, a
hipótese de sujeitar-se uma conduta ao regime de dois (ou mais) direitos
fundamentais de um só e mesmo titular. Descabe aí impor comando
heterônomo àquilo que é de escolha livre do animal racional que é o homem.
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Num conflito, por exemplo, entre o direito à vida e o direito à liberdade o titular de
ambos é que há de escolher o que há de prevalecer. E este registro não teoriza
senão o que na história é freqüente: para manter a liberdade o indivíduo corre o
risco inexorável de morrer. Não renegue isto quem não estiver disposto a, para ser
coerente, lutar para que se retirem das ruas as estátuas de incontáveis heróis, dos
altares da Igreja Católica numerosos santos. Nem se alegue que este argumento
levaria à admissão do suicídio. Não, porque não há o direito à morte, embora haja
o de preferir, por paradoxal que seja para alguns, a morte à perda da liberdade.
É verdade que a doutrina alemã, como relata Canotilho, propõe outros critérios,
embora este advirta que “não existe, porém, um padrão ou critério de solução de
conflitos de direitos válidos em termos gerais e abstratos” (p. 647). São os
princípios de “ponderação e/ou harmonização concretas” (F. Mueller), “da
concordância prática” (Hesse), “do melhor equilíbrio possível entre os direitos
colidentes” (Lerche) (id., ibid.).
Ao primeiro:
Sim.
Esta posição coincide com o que registra Tribe a propósito da jurisprudência mais
recente dos tribunais norte-americanos.
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Aponta ele, de fato, que esses tribunais são receptivos ao argumento de que
Ao segundo:
Ao terceiro:
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A parte final deste parece destoar do princípio. Entretanto, cumpre registrar que a
hipótese não é do tratamento de uma doença, mas sim do jejum voluntário, que
levado às últimas conseqüências equivaleria a um suicídio.
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Na verdade, as Cortes americanas, mais atentas para esse problema, têm, como já
se viu, reiteradamente consagrado a idéia de que os indivíduos “têm o direito de
recusar qualquer espécie de tratamento médico” (Tribe, ob. cit., p. 1363). E,
inclusive, quando ele teria por efeito prolongar significativamente a vida do
paciente.
Ao quarto:
Em decorrência do Código Civil, art. 82, para a validade de um ato como os que
aponta a pergunta, basta que a manifestação que ele traduz seja assumida por
agente capaz, já que para eles inexiste forma prescrita, ou defesa pela lei. Assim,
para a validade do referido Termo ou Cartão basta a assinatura do interessado.
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Sem que isto seja exigência essencial, conviria ser essa manifestação de vontade
subscrita por duas testemunhas que corroborariam a livre escolha da parte.
Ao quinto:
Manda a prudência — que é a virtude por excelência do jurista — que em casos que
envolvem a liberdade, a liberdade religiosa e a privacidade, todos direitos
constitucionalmente reconhecidos como fundamentais, não sejam deferidas tais
liminares.
Ao sexto:
Não.
Com efeito, do ângulo penal, inexiste crime sem culpa. Ora, na hipótese de recusa
do tratamento, não haverá culpa por parte do médico em não ser este prestado.
Não terá havido omissão de responsabilidade do médico, mas recusa de
tratamento específico por parte do paciente.
Igualmente, não haverá nesse caso responsabilidade do médico por falta ética.
Falta que ele, aliás, não cometeu, porque se o tratamento, ou a transfusão, não
foram ministrados, isto se deu pela recusa por parte do paciente.
Ao sétimo:
Não se pode esquecer que a criança e o adolescente gozam, como é óbvio, dos
mesmos direitos fundamentais que o adulto. Assim, da liberdade, da liberdade
religiosa e da privacidade.
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Sempre foi reconhecido que, entre os poderes dos pais ou representantes legais do
menor, se inscreve a matéria religiosa, como também a eles cabe a
responsabilidade por sua saúde, etc.
Corrobora essa tese o fato de que, nos preceitos constitucionais sobre a prestação
de assistência religiosa, com a redação anterior a esta Constituição, era expresso
que sobre isto se deveria atender à vontade dos representantes legais do menor. E,
na verdade, se a redação ora vigente assim não o diz, essa mesma solução resulta
do sistema.
É o meu parecer.
Autor
Manoel Gonçalves Ferreira Filho
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