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Avaliação de Renata Abel para a disciplina de Prática de Pesquisa II, ministrada pela professora
Marcia Da Silva Mazzon, da graduação em Ciências Sociais pela UFSC. O professor Marquito (Marcos
Eduardo Rocha Lima), do Departamento de Psicologia, foi meu orientador, o qual me auxiliou
inspirando-me pelo seu jeito apaixonado de viver, bem como com conversas, explicações (através das
aulas de Psicologia Social) e, claro, sua encantadora tese de doutorado pela UFRGS, intitulada Três
Esquizos Literários (2010).
Morte, transformação e alteridade:
o devir-outro imanente em nós.
Eu, eu, eu. Devir… eu? O que se trata de eu? Qual a distância ou
diferenciação que torna o eu, eu, e você, outro? Que processo de subjetivação
dança em nossos esquemas de percepção e ação2 que desemboca em… mim?
Alteridade, (human)idade limite — só me consolido e me percebo enquanto eu no
limite, na fronteira com o Outro. Os antropólogos estão dizendo isso há um século,
Reich mapeou o processo de alteridade psíquica-corporal do filhote humano em
relação ao mundo que o cerca, e disse mais: aos que não vivenciam de maneira
efetiva o processo, aos impossibilitados de experienciar o limite, a fronteira, a
linha-fuga, resta a diluição no mundo, no real, no arreal (que quando converge-se
para si mesma, implode em fusão. lírios flamejantes lânguidos vida líquida escorre
veneno volátil mutação instável da sensação de si) — núcleo psicótico, mar de
desrazão interceptado por ilhas inabitadas sinestésicas de… controle? De… Eu?
É, sou, ser. O que ser. Quem ser quando não se é.3 E reside nisso, enfim?
Sistema binário, dicotomia “ser ou não ser?”; Hamlet conversava com uma caveira
que, por sua vez, não queria conversar com Hamlet.
Essencial, me parece essencial, cru-cial não tomar a alteridade como linear,
unilateral — Hamlet que fala, caveira que escuta. Alteridade é explosão, implosão,
díspare, múltipla: estritamente fusional. Mas, se digo do processo de diferenciação
fusional, como se diferencia, então? Não vamos reificar a diferença, vamos
diferenciar a diferença. Sinestesia líquida, magmática, viscosa: nesse
2
Chave que resgato do antropólogo Tim Ingold (2011) e que também Bourdieu (2002) utiliza.
3
“Detalhadamente não sendo, eu me provava que - que eu era.” (Lispector, 2005, p.31)
vai-vem-sobe-desce-lado-a-lado-b, nessa potência existencial que a vida se insere e
se inscreve, processo multifacetado sem face, planeta disforme, informe a amorfia
se partícula ou onda: eu grito AS DUAS. TODAS. NENHUMA (eu tu ele nós vós
quem?).
Não representar.
SER
estar sendo… o contínuo vir a ser…
e NUNCA NUNCA NUNCA NUNCA
barrar o movimento
daquilo que é
se tornar
o que nunca antes foi
Chegou até mim, por meio de divulgação online, que aconteceria uma oficina
de expressão corporal ao longo do semestre, que se daria no Centro de Desportos
da UFSC. A oficina seria conduzida pela doutoranda (e magnifiquíssima pessoa)
Raquel Purper, com o intuito de ser uma pesquisa parte de seu doutorado em dança
pela UDESC. Se daria todas as quintas-feiras, das 14:30 até 17:30 (horário que
passou a se estender, na medida que o engajamento do grupo foi aumentando). Ao
contato com a possibilidade da oficina, logo pensei — que hora para me jogar no
incerto que hora para desdobrar-me na arte do corpo no corpo da arte porque já
chega palavras discursos perdidos ao vento sul não estou aqui para ler e interpretar
quero viver até a última gota de desejo que há em mim e viver com todas as forças
tudo aquilo que também como força me pulsa me (de)compõe me desfaz pois no fim
de tudo eu só acredito mesmo é no tesão de estar viva e pra nele acreditar, ele
tenho que sentir.
Por uma coincidência irremediável, ou um Encontro a la psicodrama, ou o
acaso, ou o descaso: Comuniquei-me com Raquel e começamos, em março, os
nossos encontros semanais. Sua proposta era experimentar; os encontros se
dariam em três partes — meditação, exercícios somáticos (em sua maioria, pelo que
percebi, da bioenergética) e composição — e, ao final de cada encontro, deveríamos
escrever/desenhar/rabiscar num caderno o que fosse que viesse após o processo4 .
Vivamos. Façamos. Sejamos. Fechem os olhos e entreguem seus corpos ao
movimento, sua alma ao ridículo, não ao animalesco: ao visceralmente humano.
Sejamos humanos, corpos andantes, corpos que vibram, suam, peidam, gritam,
olham. Corpos que (se) produzem. Corpos que se tocam, se enchem; transbordam.
4
Grande parte do que está escrito aqui tem apoio nesses registros, porém, a discussão que busco tecer
e traçar se estende para além deles, embora, de certa forma, advenha deles.
5
Do poeta Samuel Luis Borges.
6
Rosário Castellanos apud Estes (1994).
— aqui, palavras — que ora desembocam em fonemas articulados carregados de
significância no terreno da representação, ora escorrem em grunhidos, cuspes
intercalados de bile, “regime de signos material-semiótico selvagem”7 . E aqui reside
uma correlação interessante com os sistemas autopoiéticos8, ou o pólo esquizo do
delírio, as forças ativas da singularização, Aion: tempo do devir; em contraste com o
sistema de socialização, o pólo paranoico, as forças reativas de padronização,
homogenização, Cronos: tempo do dever.9 Quando se abre espaço para quebrar a
homogeneidade, para desterritorializar o terreno da representação, abrir os
caminhos múltiplos de brilho10, quebrar-o-teatro: aí, buraco no que sei-que-já-sou,
flutuar no vácuo da fenda ininterrupta do assistemático de si, de nós: sejam, vivam,
façam; não force a barra, espera vir, não sai levantando se movendo à toa, espera
que venha de dentro de ti, faz emergir da vibração subatômica que te constroi o
paralelo por onde te traçaras nesses caminhos outros, possibilidades outras, espera
em silêncio inquieto o que pode vir da destruição enquanto Tu — a criação de um
outro (des)alguém: ela. Grito G.H.: “Minha pergunta, se havia, não era: ‘que sou’,
mas ‘entre quais sou’.” (Lispector, 2005, p. 27).
7
Laymert Garcia dos Santos, sobre os desenhos-imagem yanomami, disponível em:
http://www.laymert.com.br/yanomami/.
8
“Essa noção [de organismo, para Ingold] tem semelhanças com a ideia desenvolvida por Toren
(1999), a partir dos escritos de Humberto Maturana e Francisco Varela, de que os seres humanos (tal
como todos os outros seres vivos) são “sistemas autopoiéticos”, sistemas auto-organizantes, cuja
principal característica é a de ser autônomo e ativo. (...) Ele se produz ou cria a si mesmo, mas não
esquecendo que a relação com o outro é essencial no processo autopoiético humano.” (Pires, 2010, p.
145). Ver O que as crianças podem fazer pela antropologia? (Pires, 2010).
9
Devo em grande parte essas analogias e correlações ao professor Marquito. Ver Os Três Esquizos
Literários (Lima, 2010).
10
Alusão a uma chave da cosmologia Yanomami, acerca dos caminhos luminosos que os espectros
dos xapiri (“espíritos da floresta”) traçam para se deslocar de um lugar ao outro (do peito do céu ao
peito do xamã, por exemplo). Ver o capítulo “A Iniciação”, no livro A queda do céu (Kopenawa, Albert,
2015).
11
Eduardo Viana Vargas, na Introdução de Monadologia e Sociologia e Outros Ensaios (2007).
ser possível, é necessário que partes de nós morram. O ciclo de vida-morte-vida, de
que Clarissa Pinkola Estes descreve tão bem em seu livro Mulheres que correm
com os lobos (1994): A morte é intrínseca à vida; mais: é ela que abre o caminho
para que a vida possa renascer.
Nesse jogo, busquei movimentos a partir de um conto de Caio Fernando
Abreu, intitulado “Uma história de borboletas”, acerca de enlouquecer, de retirar
gentilmente borboletas do cabelo — roxa, azul, amarela, preta. Presenteei-me com a
caricatura (mais minha que do conto) de um possível processo, talvez mais
paranoico do que esquizo. Primeiro, retirar do cabelo as borboletas mais leves,
dóceis, as que, a cada batida de asas, um novo voo se alça. Voo esse que reside no
descobrimento primeiro, no deslumbramento de uma criança que observa e brinca
com o mundo simultaneamente; que acolhe, escuta, abraça; que tenra, plena.
Depois, borboleta preta, viscosa, ácida, voa em peso: dor, angústia, dilacera a
carne, debaixo das unhas, (meu) sangue humano, vísceras do lado de fora, escuro
agonizante (a máxima sanidade nos faz loucos). Nesse momento, tomada por uma
crescente angústia, corria para um canto da sala, sentava abruptamente no chão e,
batendo com as mãos e braços no chão, gritava. Terceiro momento: nada. Vazio
que vagueia por órgãos sem corpo. Diluição desatenta pós-catarse, o vácuo me faz
e expulsa tudo que fui de mim. Aqui, o movimento residia em se estender pela
parede com os braços, de certa forma explorando, e lentamente, voltar a sentar,
com olhos que não veem, que não brilham; vida que se esvai e que não passa pelas
infinitesimais combinações eclodidas, explosivas, do viver a vida, do estar na vida.
Mais do que a ausência; não-estar-presente quando se faz necessária a presença.
(escuro-)irretratável-(da-)alma-em-desalento
se desintegra
em movimento
12
Palavra Yanomami antigamente utilizada para designar estrangeiros estranhos, atualmente refere-se
em específico aos Brancos.
Toda morte é uma flor que se abre nesse processo de alteridade, em que
justamente você precisa da morte para ser roupa de outro corpo — assumir a
perspectiva do outro corpo, o devir-outro do outro corpo. Metamorfose.
Antropofagia. Renunciar da posse de si para entrar em relação — morrer seus olhos
para enxergar o outro, deixar-se morrer para tornar-se outro, assumir a
precariedade de ser espectro para entrar em contato com outro espectro, que
também se precariza. O ciclo de vida-morte-vida: a morte imprescinde o
renascimento, este só pode vir a existir com aquela. A transformação somente é
viável ao assumir-se precário, mortal. E, com a oficina, assumi com prazer minha
precariedade, minha morte. Renasci; concretamente, tornei-me outra.
[ILEGIBILIDADE]
Ilegibilidade deste
mundo. Tudo duplo.
Roucos,
os relógios fortes
dão razão à hora fendida.
Tu, preso a teu mais profundo,
sais de ti
para sempre.
(Fonseca, Celan, 2001)
13
Deleuze em “Abecedário de Deleuze”, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=7tG4fceymmY
14
“Se não podemos conhecer os mistérios da vida, muito menos é possível decifrar os mistérios do
amor, sua mais íntima e precisa expressão.” (Freire, Brito, 2001, p. 88)
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