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Relatório Prática de Pesquisa II1

Iniciarei esse relatório avisando, ou talvez alertando, que sua proposta


diverge um tanto do que se espera de um relatório científico. Ele tem mais um
caráter de relato ensaístico apaixonado do que de descrição de procedimentos. A
isso não cabe desinteresse ou desmerecimento acerca dos procedimentos
científicos acadêmicos, mas um interesse desmedido e entusiasmado pelos
processos que passo e passei ​— ​e, igualmente, um interesse desmedido e
entusiasmado de propor caminhos diferentes dentro dos moldes que me cabem.
Afinal, não teria por que escrever com frieza e distanciamento um processo que
transformou-me exponencialmente, como fez essa oficina de expressão corporal,
“objeto” escolhido para embasar a pesquisa da disciplina de Prática de Pesquisa II.
Creio que a própria forma com que escolhi relatar o que (me) aconteceu, ligando a
alguns pontos teóricos, faz jus à dinâmica de como a pesquisa mesma dessa
vivência se deu: apaixonadamente. Peço que ao ler, se deixe emergir no fluxo
poético que essa prosa trôpega propõe.

1
Avaliação de Renata Abel para a disciplina de Prática de Pesquisa II, ministrada pela professora
Marcia Da Silva Mazzon, da graduação em Ciências Sociais pela UFSC. O professor Marquito (Marcos
Eduardo Rocha Lima), do Departamento de Psicologia, foi meu orientador, o qual me auxiliou
inspirando-me pelo seu jeito apaixonado de viver, bem como com conversas, explicações (através das
aulas de Psicologia Social) e, claro, sua encantadora tese de doutorado pela UFRGS, intitulada ​Três
Esquizos Literários (2010)​.
Morte, transformação e alteridade:
o devir-outro imanente em nós.

“Ainda não comecei.


​ Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo. Mas
preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar
propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um
jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história.
Principalmente se for uma história de dragões.” (Caio Fernando Abreu
em “Os dragões não conhecem o paraíso”, 1988)

Eu, eu, eu. Devir… eu? O que se trata de eu? Qual a distância ou
diferenciação que torna o eu, eu, e você, outro? Que processo de subjetivação
dança em nossos esquemas de percepção e ação2 que desemboca em… mim?
Alteridade, (human)idade limite ​— só me consolido e me percebo enquanto eu no
limite, na fronteira com o Outro. Os antropólogos estão dizendo isso há um século,
Reich mapeou o processo de alteridade psíquica-corporal do filhote humano em
relação ao mundo que o cerca, e disse mais: aos que não vivenciam de maneira
efetiva o processo, aos impossibilitados de experienciar o limite, a fronteira, a
linha-fuga, resta a diluição no mundo, no real, no arreal (que quando converge-se
para si mesma, implode em fusão. lírios flamejantes lânguidos vida líquida escorre
​ veneno volátil mutação instável da sensação de si) ​— núcleo psicótico, mar de
desrazão interceptado por ilhas inabitadas sinestésicas de… controle? De… Eu?
É, sou, ser. O que ser. Quem ser quando não se é.3 E reside nisso, enfim?
Sistema binário, dicotomia “ser ou não ser?”; Hamlet conversava com uma caveira
que, por sua vez, não queria conversar com Hamlet.
Essencial, me parece essencial, cru-cial não tomar a alteridade como linear,
unilateral ​— Hamlet que fala, caveira que escuta. Alteridade é explosão, implosão,
díspare, múltipla: estritamente fusional. Mas, se digo do processo de diferenciação
fusional, como se diferencia, então? Não vamos reificar a diferença, vamos
diferenciar a diferença. Sinestesia líquida, magmática, viscosa: nesse

2
Chave que resgato do antropólogo Tim Ingold (2011) e que também Bourdieu (2002) utiliza.
3
“Detalhadamente não sendo, eu me provava que - que eu era.” (Lispector, 2005, p.31)
vai-vem-sobe-desce-lado-a-lado-b, nessa potência existencial que a vida se insere e
se inscreve, processo multifacetado sem face, planeta disforme, informe a amorfia
se partícula ou onda: eu grito AS DUAS. TODAS. NENHUMA (eu tu ele nós vós
quem?).

Não representar.
SER
estar sendo… o contínuo vir a ser…
e NUNCA NUNCA NUNCA NUNCA
barrar o movimento
daquilo que é
se tornar
o que nunca antes foi

Chegou até mim, por meio de divulgação online, que aconteceria uma oficina
de expressão corporal ao longo do semestre, que se daria no Centro de Desportos
da UFSC. A oficina seria conduzida pela doutoranda (e magnifiquíssima pessoa)
Raquel Purper, com o intuito de ser uma pesquisa parte de seu doutorado em dança
pela UDESC. Se daria todas as quintas-feiras, das 14:30 até 17:30 (horário que
passou a se estender, na medida que o engajamento do grupo foi aumentando). Ao
contato com a possibilidade da oficina, logo pensei ​— que hora para me jogar no
incerto que hora para desdobrar-me na arte do corpo no corpo da arte porque já
chega palavras discursos perdidos ao vento sul não estou aqui para ler e interpretar
quero viver até a última gota de desejo que há em mim e viver com todas as forças
tudo aquilo que também como força me pulsa me (de)compõe me desfaz pois no fim
de tudo eu só acredito mesmo é no tesão de estar viva e pra nele acreditar, ele
tenho que sentir.
Por uma coincidência irremediável, ou um Encontro a la psicodrama, ou o
acaso, ou o descaso: Comuniquei-me com Raquel e começamos, em março, os
nossos encontros semanais. Sua proposta era experimentar; os encontros se
dariam em três partes ​— meditação, exercícios somáticos (em sua maioria, pelo que
percebi, da bioenergética) e composição ​— e, ao final de cada encontro, deveríamos
escrever/desenhar/rabiscar num caderno o que fosse que viesse após o processo4 .
Vivamos. Façamos. Sejamos. Fechem os olhos e entreguem seus corpos ao
movimento, sua alma ao ridículo, não ao animalesco: ao ​visceralmente humano.
Sejamos humanos, corpos andantes, corpos que vibram, suam, peidam, gritam,
olham. Corpos que (se) produzem. Corpos que se tocam, se enchem; transbordam.

“entre meu ser e seu ser a linha limite se rompe”5

Nessa oficina, em meio e junto a tantos outros processos da vida que me


põem em questão para que eu resista; re-exista; pude (me) pôr a prova e explorar
campos outros, linhas outras, devires outros. Porque, de todo modo, voltava a
questão (difusa e) central: ser, não representar. QUEBRAR O TEATRO. Não mais
interpretação psicanalítica do fantasma; experimentação antipsicanalítica do
programa (Deleuze-Guatarri, 1996). Estar na vida pelo prisma da transformação e
da mudança, não o da permanência. Estar em contato, para Reich; o Encontro, para
o Psicodrama; aqui e agora, para a Gestalt; grounding, para Bioenergética; devir,
campo de imanência, plano intensivo, corpo sem órgãos, para Deleuze e Guattari ​—
mais do que arcabouço teórico-intelectual, mais do que explorar novas epistemes,
criar pela destruição novas ontologias poéticas, poiesis outras, reinventar-se pela
degeneração do que constitui o Eu. Transformar-se (para acessar o Outro) e se
(des)incorporar na amorfia. Por quais meios? Pela experimentação. Pelo tesão. Pelo
amor. Pela agonia. Pela vida que pulsa. Pelo desejo. Se botar em questão, estar
constantemente à beira do abismo: como quem, cansado da certeza do chão, se
põe á prova na incerteza do voo.

... dadme la muerte que me falta...6

A metáfora gera a linguagem, e não o contrário. O caminho indireto, o


descaminho, abre espaço para os múltiplos caminhos, o fluxo rizomático dos signos

4
Grande parte do que está escrito aqui tem apoio nesses registros, porém, a discussão que busco tecer
e traçar se estende para além deles, embora, de certa forma, ​advenha deles.
5
Do poeta Samuel Luis Borges.
6
Rosário Castellanos ​apud Estes (1994).
— aqui, palavras ​— que ora desembocam em fonemas articulados carregados de
significância no terreno da representação, ora escorrem em grunhidos, cuspes
intercalados de bile, “​regime de signos material-semiótico selvagem”7 . E aqui reside
uma correlação interessante com os sistemas autopoiéticos8, ou o pólo esquizo do
delírio, as forças ativas da singularização, Aion: tempo do devir; em contraste com o
sistema de socialização, o pólo paranoico, as forças reativas de padronização,
homogenização, Cronos: tempo do dever.9 Quando se abre espaço para quebrar a
homogeneidade, para desterritorializar o terreno da representação, abrir os
caminhos múltiplos de brilho10, quebrar-o-teatro​: aí, buraco no que sei-que-já-sou,
flutuar no vácuo da fenda ininterrupta do assistemático de si, de nós: sejam, vivam,
façam; não force a barra, espera vir, não sai levantando se movendo à toa, espera
que venha de dentro de ti, faz emergir da vibração subatômica que te constroi o
paralelo por onde te traçaras nesses caminhos outros, possibilidades outras, espera
em silêncio inquieto o que pode vir da destruição enquanto Tu ​— a criação de um
outro (des)alguém: ela. Grito G.H.: “Minha pergunta, se havia, não era: ‘que sou’,
mas ‘entre quais sou’.” (Lispector, 2005, p. 27).

para que um acontecimento aconteça, é preciso a diferença.


(“existir é diferir”)11

Na busca de instigar-nos para que explorássemos movimentos, Raquel


propôs que pesquisássemos o significado de nosso nome e qual a relação desse
significado com cada um. Renata: do latim ​renatus, renascer. Para um renascimento

7
​Laymert Garcia dos Santos​, sobre os desenhos-imagem yanomami, disponível em:
http://www.laymert.com.br/yanomami/​.
8
“Essa noção [de ​organismo, para Ingold] tem semelhanças com a ideia desenvolvida por Toren
(1999), a partir dos escritos de Humberto Maturana e Francisco Varela, de que os seres humanos (tal
como todos os outros seres vivos) são “sistemas autopoiéticos”, sistemas auto-organizantes, cuja
principal característica é a de ser autônomo e ativo. (...) Ele se produz ou cria a si mesmo, mas não
esquecendo que a relação com o outro é essencial no processo autopoiético humano.” (Pires, 2010, p.
145). Ver ​O que as crianças podem fazer pela antropologia? (Pires, 2010).
9
Devo em grande parte essas analogias e correlações ao professor Marquito. Ver ​Os Três Esquizos
Literários (Lima, 2010).
10
Alusão a uma chave da cosmologia Yanomami, acerca dos caminhos luminosos que os espectros
dos ​xapiri (“espíritos da floresta”) traçam para se deslocar de um lugar ao outro (do peito do céu ao
peito do xamã, por exemplo). Ver o capítulo “A Iniciação”, no livro ​A queda do céu (Kopenawa, Albert,
2015).
11
Eduardo Viana Vargas, na Introdução de ​Monadologia e Sociologia e Outros Ensaios (2007).
ser possível, é necessário que partes de nós morram. O ciclo de vida-morte-vida, de
que Clarissa Pinkola Estes descreve tão bem em seu livro ​Mulheres que correm
com os lobos (1994): A morte é intrínseca à vida; mais: é ela que abre o caminho
para que a vida possa renascer.
Nesse jogo, busquei movimentos a partir de um conto de Caio Fernando
Abreu, intitulado “Uma história de borboletas”, acerca de enlouquecer, de retirar
gentilmente borboletas do cabelo ​— roxa, azul, amarela, preta. Presenteei-me com a
caricatura (mais minha que do conto) de um possível processo, talvez mais
paranoico do que esquizo. Primeiro, retirar do cabelo as borboletas mais leves,
dóceis, as que, a cada batida de asas, um novo voo se alça. Voo esse que reside no
descobrimento primeiro, no deslumbramento de uma criança que observa e brinca
com o mundo simultaneamente; que acolhe, escuta, abraça; que tenra, plena.
Depois, borboleta preta, viscosa, ácida, voa em peso: dor, angústia, dilacera a
carne, debaixo das unhas, (meu) sangue humano, vísceras do lado de fora, escuro
agonizante (a máxima sanidade nos faz loucos). Nesse momento, tomada por uma
crescente angústia, corria para um canto da sala, sentava abruptamente no chão e,
batendo com as mãos e braços no chão, gritava. Terceiro momento: nada. Vazio
que vagueia por órgãos sem corpo. Diluição desatenta pós-catarse, o vácuo me faz
e expulsa tudo que fui de mim. Aqui, o movimento residia em se estender pela
parede com os braços, de certa forma explorando, e lentamente, voltar a sentar,
com olhos que não veem, que não brilham; vida que se esvai e que não passa pelas
infinitesimais combinações eclodidas, explosivas, do viver a vida, do estar na vida.
Mais do que a ausência; não-estar-presente quando se faz necessária a presença.

(escuro-)irretratável-(da-)alma-em-desalento
se desintegra
em movimento

(O continuum looping da experiência.) As borboletas e seus três tempos de


delírio: amor lúcido, surto gritante e vida esvaída. Quem eu sou sendo-os? Quem
deixo de ser para que esses outros ​possam desabrochar livremente, como uma
borboleta que, gentilmente, com a ponta dos dedos, retiro pelos cabelos?
Há algo que deixo ali para os outros que experienciam essa dobra conjunto a
mim; há algo que eles me deixam enquanto experienciam aquela dobra junto a mim.
O que vai, o que fica, o que sai, o que entra, o que vem, o que vai.
vem-vai-vem-vai… Mar, (a)mar é de maré, maré que vem sobe desce pega leva
traz. [​Não há mar em abraços rasos]. Profundo, quero as profundezas desse oceano
que minha percepção denuncia líquido, mas sinto que é mais do que um estado
físico tangível, mais do que experimentos categóricos decodificadores podem
arriscar-se dizer sobre. Afinal, do quanto saberia da liquidez, do quanto me
permitiria às sensações oceânicas, estratosféricas, se não fossem as tentativas
trôpegas, bêbadas, que a cada momento buscam experienciar o que me grita
sentimento, sensação, convulsão, emoção? Recipiente cheio que transborda a cada
vez que uma gota periga enchê-lo na medida certa. Desvio, transgressão,
reinvenção.
a sobrenatureza mágica da existência

Na busca por outra composição, Raquel nos disse para escrevermos


perguntas que gostaríamos de fazer ao mundo, e entre elas, escolheríamos uma
para responder com movimentos. A pergunta escolhida pelo grupo foi “quais são,
efetivamente, meus limites?”. Indagando-me, veio-me como limite o espelho. E
como desfazer, como romper com esse limite? Destruindo o espelho. Devo destruir
o espelho em que me miro, que me vejo, que tenho desenhado tudo o que esperam
e não esperam de mim, o espelho onde vou me situando e me encaixando na
imagem moldada por outros que operam em mim através de mim. Quebrar o
espelho, quebrar a imagem pré-moldada de “Eu”, romper com os limites impostos
por outrem que eu própria me enveredei. (É que Narciso acha feio o que não é
espelho, canta Caetano Veloso). Quebrar o espelho. Matar Narciso. Matar Édipo,
enquanto Deus se suicida cheirando pó na esquina de prostituição numa grande
cidade globalizada. Desfazer-me no tempo que não para e não passa, no grito que
ecoa em silêncio. Se há a possibilidade de morrer, é porque, espantosamente, estou
viva…
Então, que morra! Que morra espelho, que morra Narciso, que morra Eu.
Morrer é tornar-se outro… Davi Kopenawa, através do livro “A queda do céu”,
aponta uma questão chave quando fala do “povo da mercadoria”, mostrando o que
a imperativa necessidade de ter propriedade de objetos, de pessoas, de si mesmo
produz: um Eu delimitado, uma entidade garantida através da permanência das
coisas que possuo. A máxima aqui parece ser a de fixar para não esquecer e, nesse
processo, os ​napë12 tornam-se cegos, incapazes de enxergar o Outro. Produzem
um mundo que ignora a morte, que acredita-se imortal. Um mundo que não
convulsiona, enfim. E a isso, me contraponho: não me interessa a garantia da
imortalidade, não me interessa não deixar morrer, não permitir a transformação…
“Amar e mudar as coisas me interessa mais”, canta Belchior. Que vá! Que ande
pelos caminhos generosos, que ande pelas inúmeras possibilidades de infinitos
caminhos… Destruir a querência ​napë desmedida de fixar (identidade, propriedade,
mercadoria…) para não esquecer, para não perder (-se de si). Atitude ensimesmada
que não consegue enxergar o Outro... E quem não consegue enxergar o outro,
quem acha feio tudo o que não é espelho, não consegue morrer, não consegue
tornar-se outro Outro, não é capaz de transformar-se - até porque, antes de tudo, a
transformação é perigosa: você se precariza para acessar o outro e se transformar.
E aí, é necessário o ato quase heroico, epopeico, de assumir com prazer que a
precariedade que a quebra de si traz não é deficiência, mas potência, pois lhe
permite tornar-se espectro: tornar-se Outro. A quebra é abertura para a
molecularidade dos molares, para as infinitesimais forças de um conjunto de
agenciamentos ​— ​abertura para o desejo. Intensidades, não identidades.

Eu sei que a morte é uma flor.


Mas o que mais a morte é?
Ele lê e diz que a morte é uma flor.
Se ela se abre, nada abre com ela.
Pode abrir a qualquer momento.
Ela é o corpo do qual se deseja ser a roupa.
(KIRALY, 2016)

12
Palavra Yanomami antigamente utilizada para designar estrangeiros estranhos, atualmente refere-se
em específico aos Brancos.
Toda morte é uma flor que se abre nesse processo de alteridade, em que
justamente você precisa da morte para ser roupa de outro corpo ​— assumir a
perspectiva do outro corpo, o devir-outro do outro corpo. Metamorfose.
Antropofagia. Renunciar da posse de si para entrar em relação ​— morrer seus olhos
para enxergar o outro, deixar-se morrer para tornar-se outro, assumir a
precariedade de ser espectro para entrar em contato com outro espectro, que
também se precariza. O ciclo de vida-morte-vida: a morte imprescinde o
renascimento, este só pode vir a existir com aquela. A transformação somente é
viável ao assumir-se precário, mortal. E, com a oficina, assumi com prazer minha
precariedade, minha morte. Renasci; concretamente, tornei-me outra.

“a arte de deixar de ser sujeito para devir acontecimento


(o incessante processo de descodificação
e desterritorialização,
a metamorfose ambulante).”
(LIMA, 2010, p. 59)

Desses três meses de oficina ​— entrecortados por vivências outras, tanto no


âmbito da vida em si quanto no acadêmico, que possibiltaram-me o contato com
outros tipos de percepções, de conhecimentos, enfim ​— o que retirei pode talvez
resumir-se na frase em que Kiraly (2010) coloca bem em seu livro: “A saída para o
limite do conhecimento tem sido o deslocamento da reflexão para o devir”. De
repente, o que eu própria estava vivendo e os saberes que chegavam até mim
foram articulando-se e tangenciando-se de uma maneira quase mágica,
assumidamente espantadora e bonita, extremamente bonita. Corpo, poesia,
antiteatro, arte, cosmologia yanomami, processo terapêutico reichiano, psicodrama,
experimentação. Tudo se interligando como uma dança, como uma composição de
molecularidades tão potentes, tão vívidas, que provaram-se capazes de transformar
radicalmente o molar. Aprendi a estar atenta à constância de se fazer enquanto
pessoa ​— o que você bota para dentro, o que você purga para fora. Aprendi o afeto:
a potência de afetar e ser afetado, e em que momento deve-se abrir à ele ou não. O
Eu tem de ser fabricado constantemente, “o inconsciente não é um teatro, um lugar
onde há Édipo e Hamlet que representam sempre suas cenas; é uma fábrica, é
produção constante”13 . Desse semestre como um todo, na verdade (porque não
consigo (e nem quero) separar a oficina numa caixa e então contar o que
experienciei), aprendi que é fundamentalmente revolucionário o processo de
aprender a apreender o mundo pelo prisma da transformação, da inconstância, da
mudança, do devir. É uma quebra, como disse, mais do que epistêmica; ontológica.
Nisso se insere corpo, se insere psique, se insere relações tecidas com os outros, a
relação que teço comigo mesma, se insere os esquemas de percepção e ação... A
partir da confluência de todas as agências que atravessaram-me, desflorou-se em
mim uma paixão gritante por experimentar, por pôr-me a prova. E não há um lugar
fixo para o experimento, afinal ele em si é desvio, dobra, transvio, descaminho ​—
não há lugar melhor para experimentar do que ​qualquer lugar. Em casa, na beira do
mar, na sala de aula, no deslocamento de um lugar ao outro, num suposto relatório
acadêmico, em cada possibilidade de relação, em cada momento do dia, em cada
beijo, abraço, em cada tato, ato… Zé Celso disse: Vida é mistério e amor.14 Eu não
poderia concordar mais.

[ILEGIBILIDADE]
Ilegibilidade deste
mundo. Tudo duplo.
Roucos,
os relógios fortes
dão razão à hora fendida.
Tu, preso a teu mais profundo,
sais de ti
para sempre.
(Fonseca, Celan, 2001)

13
Deleuze em “Abecedário de Deleuze”, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=7tG4fceymmY
14
“Se não podemos conhecer os mistérios da vida, muito menos é possível decifrar os mistérios do
amor, sua mais íntima e precisa expressão.” (Freire, Brito, 2001, p. 88)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Raymond Roussel e Jean-Pierre Brisset. 1ª. ed. Porto Alegre: Editora Sulina e
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VALENTIM, Marco Antônio. A sobrenatureza da catástrofe​. Os mil nomes de
Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra. 2014.
EVOÉ! Retrato de um antropófago. ​Direção: Tadeu Jungle, Elaine César. São
Paulo, 110 min, 2011.

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