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Exu:

fonte de inspiração para refletir sobre ciberespaço


LÚCIO ANDRÉ ANDRADE CONCEIÇÃO*

Resumo: O texto se fundamenta em Exu, força que impulsiona mudanças no sistema religioso
afro-brasileiro, aquele quem assegura a dinâmica de movimentação da energia vital nessas
comunidades, associado às transformações do cosmo, à comunicação dos seres, às interações
entre os contrários, consubstanciando uma perspectiva de entendimento e de como se conduzir
no mundo. Neste artigo, Exu será pensado a partir de duas perspectivas: na primeira, como um
signo que representa o sistema de comunicação mundial entre computadores, interconectados pela
internet e criador do ciberespaço. Na segunda, enquanto fragmento de pensamento do povo-de-
santo, o qual tanto pode estar isolado ou não isolado, implicando numa expressão denunciadora
de um contexto maior, que é parte e requer a compreensão ontológica do “ser nagô”, legitimando
a compreensão ou o conhecimento semântico do enunciado. Virtualidade e subjetividade são
categorias discutidas no ciberaxé, parte do ciberespaço destinada a circulação de conteúdo das
religiões afro-brasileiras.
Palavras-chaves: virtualidade; subjetividade; redes sociais; candomblé.
Exu: source of inspiration to reflect on cyberspace
Abstract: The text is based on Exu, the driving force behind changes in the Afro-Brazilian
religious system, one that ensures the dynamics of movement of vital energy in these
communities, associated with the transformations of the cosmos, the communication of beings,
the interactions between opposites, substantiating a perspective understanding and how to conduct
yourself in the world. In this article, Exu will be thought from two perspectives: in the first, as a
sign that represents the world communication system between computers, interconnected by the
internet and creator of cyberspace; In the second, as a fragment of thought of the people-of-saint,
which can be either isolated or not isolated, implying an expression that denounces a larger
context, which is part of and requires an ontological understanding of “being Nagô”, legitimizing
the understanding or the semantic knowledge of the statement. Virtuality and subjectivity are
categories discussed in cyberxé, part of cyberspace for the circulation of content of Afro-Brazilian
religions.
Key words: virtuality; subjectivity; social networks; candomblé.

*
LÚCIO ANDRÉ ANDRADE CONCEIÇÃO é professor do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), Assogbá do Terreiro Vintem de Prata (BA), Doutor pelo Programa
de Pós-graduação Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (UFBA), Mestre em
Educação e Contemporaneidade (UNEB), Licenciado em Pedagogia (UNEB).

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Introdução
E diz que Exu, quando nasceu, teve uma fome sem fim.
E seus pais, Orunmilá e Iemanjá, lhe davam de um tudo para aplacar a fome, mas sem sucesso.
De primeiro sugou todo o leite dos peitos de Iemanjá e continuou berrando de fome:
- Cumê, quero cumê!
Orunmilá trouxe o que havia de mantimento na despensa e ofereceu ao filho que, escancarando uma
bocarra de jacaré, engoliu tudo sem nem mastigar e continuou:
- Cumida! Tenho fome!
Veio gente de todo canto trazendo grãos, frutas, verduras. Ofertaram aves, peixes, quadrúpedes, bois
inteiros, e até um búfalo velho da carne bem dura trouxeram, pra ver se aplacava a fome sobrenatural do
recém nascido.
Mas nada saciava a fome de Exu, o arado!
Já sem alimentos, o povo viu assombrado Exu avançar sobre os telhados, as paredes das casas, as árvores,
os matos e próprio chão. A tudo tragava com uma avidez que só parecia aumentar, na medida em que
engolia o que encontrava pela sua frente (...) Veio gente de todo canto trazendo grãos, frutas, verduras.
Ofertaram aves, peixes, quadrúpedes, bois inteiros, e até um búfalo velho da carne bem dura trouxeram,
pra ver se aplacava a fome sobrenatural do recém nascido. Mas nada saciava a fome de Exu, o arado!
Já sem alimentos, o povo viu assombrado Exu avançar sobre os telhados, as paredes das casas, as árvores,
os matos e próprio chão. A tudo tragava com uma avidez que só parecia aumentar, na medida em que
engolia o que encontrava pela sua frente (Domínio Público)

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O ciberespaço é domínio de Exu que, por entre os contrários, consubstanciando
extensão, comanda o ciberaxé, nome que uma perspectiva de entendimento e de
atribui a parte da imensa rede virtual como se conduzir no mundo. Sendo
destinada a circulação de conteúdo das assim, é possível tomar Exu como base
religiões afro-brasileiras. O esforço ao de um pensamento interpretativo sobre o
longo desse texto será desenvolver essa ciberespaço. Sigo a orientação de Sodré
tese. O mito é um primeiro fundamento (2017), ao utilizar um provérbio africano
nessa defesa. Nele Exu demostra sua sobre Exu e escapar da interpretação
fome incontrolável, consumindo tudo ético-religiosa que comumente fazemos,
que aparece a sua frente: comidas, quando nos debruçamos na análise do
coisas, animais, plantas, não importa a legado cultural africano, para propor
natureza, tudo, absolutamente tudo, raciocínios em outras esferas. Este autor
serve de alimento para Exu. O mito afirma que raramente fazemos alguma
sinaliza a relação dos membros do reflexão de cunho político a partir desses
candomblé com Exu: é o primeiro a ser resquícios culturais. Nessas
louvado antes de qualquer ritual, sente- interpretações buscamos situar as
se agraciado com tudo aquilo que lhe heranças negras no processo de
oferecemos, sobretudo se for de boa formação histórica da sociedade
qualidade! Dessa forma, ele se posiciona brasileira, em uma postura intelectual
muito próximo de nossos afazeres afirmativa, em contraponto a uma lógica
cotidianos e lugares pelos quais dominante de se legitimar uma única
circulamos. Percebo o mesmo com o perspectiva discursiva civilizatória.
ciberespaço e nossa relação com as redes
sociais virtuais. Lá, encontramos tudo e Contudo, podemos fazer mais. Sendo
qualquer assunto ao navegarmos pelos assim, Exu será pensado nesse artigo a
sites, blogs e páginas da internet. Uma partir de duas perspectivas: na primeira,
diversidade de posicionamentos como um signo que representa o sistema
políticos, ideológicos, econômicos, de comunicação mundial entre
assuntos, de pessoas, formas e lugares se computadores, na sociedade atual,
acessa só com o movimento do mouse, interconectados pela internet e criador do
além do registro de atitudes mais ciberespaço. Uma rede mundial virtual,
elementares que realizamos, como o que interfere potencialmente em todas as
acordar, a maneira de sorrir, e se esferas da sociedade, desde o
enraivar. Exu se mostra insaciavelmente entretenimento e lazer, passando pelo
faminto e presente em nossas rotinas; trabalho, gerenciamento político,
ciberespaço se mostra ambiente de atividades militares, comunicação,
sucessivas movimentações, onde educação e consumo (SANTAELLA,
absolutamente nada é estático e vêm se 2013).
tornando uma extensão de nós mesmos!
Na segunda perspectiva, o mito de Exu é
Mas, para além das semelhanças visto enquanto fragmento de um modo
destacadas, Exu, no sistema religioso coletivo de pensamento, o qual tanto
afro-brasileiro representa uma força pode estar isolado, como não isolado,
impulsionadora das mudanças, é ele implicando uma expressão denunciadora
quem assegura a dinâmica de de um contexto maior, que é parte e
movimentação da energia vital nessas requer a compreensão ontológica do “ser
comunidades religiosas, está associado nagô”, legitimando a compreensão ou o
às transformações do cosmo, à conhecimento semântico do enunciado.
comunicação dos seres, às interações O saber abstraído do mito de Exu, difere

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do fato filosófico do tipo strictu-sensu, santo, frequentemente impelido a seguir
porém representa fato de conhecimento outras trilhas, instaurando desordem,
de comunidade do povo-de-santo. Nessa para depois pôr ordem.
perspectiva de pensamento, Exu,
A virtualidade e as identidades no
princípio dinâmico do sistema simbólico
ciberaxé
do axé, relaciona tudo que existe, desde
as divindades, até os vivos e mortos No sistema simbólico negro-africano e
em suas reinvenções na diáspora é
No ciberespaço as mudanças são representado possuindo muitas bocas,
constantes; encontramos uma infinidade aquele que fala em todas as línguas, as
de assuntos, pessoas, coisas e lugares, estátuas e assentamentos em sua
em uma só tela, onde distância e tempo homenagem são esculpidos tendo duas
são definidos a partir do movimento do faces. É um símbolo que fornece
mouse, local de manifestações de subsídios para tradução de um
sentimentos e pensamentos, desde os pensamento. As culturas são formadas
mais sublimes até os mais indescritíveis pelos processos de comunicação, cujas
e inaceitáveis para a espécie humana. formas são baseadas na produção e
Isto se assemelha ao domínio de Exu: consumo de sinais. Por isto realidade e
arredio, inconstante, senhor das representação simbólica não se separam,
transformações, indiferente às e em todas as sociedades existem um
marcações de tempo e lugar, a ambiente simbólico, através do qual elas
dicotomias como positivo/negativo, atuam (CASTELLS, 1999, p.395) e que
feminino/masculino, direita/esquerda; se reflete no ciberespaço. O símbolo só
consegue, ainda assim, fornece tem sentido enquanto representação do
elementos não dissonantes com a encontro de partes distintas e que, fora
dinâmica ritualística e organizacional do desse contexto, ele nada significa. O
candomblé símbolo é um organizador de elementos,
postos em interação. O símbolo, segundo
O ciberespaço será, assim, pensado
o autor é uma abstração que, uma vez
enquanto extensão da realidade
constituída em textura própria, funciona
sociocultural, não uma esfera autônoma
como mediação e equivalência para
divorciada da primeira, ainda que a
objetos diversos e esparsos no mesmo
práxis virtual seja pautada por
nível de realização de trocas (SODRE,
especificidades. O que vemos é uma
2017, p.178).
relação de complementaridade com o
real, viabilizada pela progressiva Para Sodré (2017) a mediação é uma
convergência tecnológica (MORAES, representação, mas também um texto que
2001). Se Exu, enquanto força dinâmica se consolida na forma de palavras ou
e protetora dos terreiros de candomblé, imagens. A mediação seria o resultado
inspirou as populações negras a usarem da vinculação de partes. Então, textos,
suas heranças africanas para construir imagens, figuras são símbolos, resultam
espaços sagrados nas fissuras deixadas de mediações, que equivale a mais uma
pela sociedade real, a partir de diferentes artimanha de Exu, na manipulação de
formas e interlocuções, então a aspectos convergentes e divergentes. No
ampliação dessa influência para rede ciberespaço é, portanto, onde ocorrem
virtual é uma consequência promovida todas essas mediações, operando os
pela natureza desordenadora de Exu, símbolos (textos, imagens, figuras,
uma continuidade daquilo que vídeos, fotos, etc.), ora combinando-os,
historicamente ocorreu com o povo-de- outras não, mas sempre circulando em

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rede, fazendo a interconexão entre os fornecedores de sentidos dentro de cada
usuários, constituindo o que Castells ritual do candomblé, “lidos” e
vem chamando de cultura da virtualidade interpretado por seus membros. Como
real. exemplo, cito o atabaque (instrumento
musical, mas também objeto sagrado
Na definição apresentada pelo autor, o nesse universo): não se trata apenas de
real é aquilo que existe de fato, enquanto tocá-lo, mas de fazê-lo seguindo
o virtual é uma percepção, via símbolos determinados preceitos, nos quais estão
constituídos de acordo com a cultura e codificados os fundamentos sagrados. A
sujeitos a diferentes elaborações partitura que o alabê1 irá seguir, ao tocar
interpretativas. O virtual, embora derive o atabaque, deve evocar as memórias
do real, pode assumir vários sentidos, ancestrais, ao mesmo tempo em que
fruto de sua natureza polissêmica. A demarca a sequência de procedimentos
virtualidade, de acordo com essa de passos de dança, de movimentos
acepção, sempre nos acompanhou na relacionados ao ritual. A percepção da
história da humanidade. Não é atributo musicalidade é apreendida pelo povo-de-
exclusivo do desenvolvimento do santo na vivência na roça de candomblé,
ciberespaço. Expressões artísticas a partir de sua pedagogia; eis um
retratando a morte, o nascimento, ou o exemplo de como a virtualidade faz parte
cotidiano, por exemplo, podem ser desse contexto.
encontradas sob diferentes formas e
modelos em todas as culturas, Outra situação que ilustra a reflexão
demonstrando que as manifestações acima é na ornamentação feita nos
virtuais sempre existiram. No espaços de culto e nas indumentárias
candomblé, a virtualidade pode ser usadas pelos adeptos, quando seus
associada a uma dimensão ainda mais corpos são tomados pelos/as diferentes
preponderante, porque diz respeito aos encantados/as2 quando estes/as chegam
elementos estruturante do processo de em terra. Todo aparato estético ali têm o
transmissão de saberes litúrgicos, ou sentido de recriar um ambiente mais
seja, a pedagogia do candomblé próximo dos elementos das entidades
(CONCEIÇÂO, 2016). celebradas: o fogo, as matas, as águas e
demais elementos que se associam às
A linguagem artística, a não separação entidades cultuadas, de uma forma ou de
entre dimensões objetivas e subjetivas do outra, estarão virtualmente
sujeito, as diferentes temporalidades, as representados no barracão3 e nas vestes
identidades assumidas por cada pessoa dos/as encantados/as que naquele
são alguns dos elementos estruturantes momento, assumem o corpo do/as
da pedagogia do candomblé. A iniciado/a. Nessa condição singular, em
linguagem artística se expressa na que o “eu” do/a iniciado/a dá lugar a
musicalidade, na dança, na culinária, nas outro ser (os orixás, voduns ou inquíces,
indumentárias e tudo isso resguarda os caboclos, e demais entidades
elementos estéticos específicos, cultuadas no candomblé), sua postura,
1
Responsável no candomblé pela execução dos forma como eu costumo me referir, no cotidiano
toques e cânticos sagrados, nos rituais do culto, às diferentes entidades presentes. Tenho
2
Uso o termo “encantados/as” não desconsidera ciência que, a depender da nação, existem nomes
que no culto indígena da Jurema Sagrada (que específicos, por exemplo: orixás (não cão ketu),
tem entre suas influências elementos afro- voduns (nação jêje) e inquíces (nação angola)
3
brasileiros e do catolicismo), é utilizado para se Local do terreiro destinado para as festas
referir as suas entidades. Expressa apenas, a públicas

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fala, gestos devem confirmar o que boi fugiu eu vou buscar // Xetro a, xetro
parece ser um entrelaçamento de a, hêêê corda de laçar meu boi”
identidades. Há uma expectativa da (domínio público).
comunidade litúrgica quanto a esse
Dessa maneiras as identidades no
acontecimento, com relação ao sujeito
candomblé podem ser múltiplas; o corpo
que entra no processo iniciático para
dos sujeitos nesse lugar é visto como
“fazer o santo”. Quando ele ou ela estiver
espaço sagrado, pois funciona como
no “transe”, se admite no grupo que
meio, um veículo para expressão de
ele/a, agora entrelaçada ao/a
várias personalidades; por isso tende a
encantado/a, expresse uma forma de
ser cuidado exaustivamente, em ocasiões
falar, de andar, de olhar característicos
especificas, com banhos, defumadores,
desse outro ser encarnado.
limpezas e interdições temporárias de
É importante lembrar que, em um bebidas, comidas e práticas sexuais.
mesmo terreiro de candomblé, duas, ou Convém acrescentar, também, que as
mais pessoas iniciadas para um mesmo apreensões de conhecimento nessas
orixá, quando em transe, tem comunidades, a acomodação do saber
comportamentos semelhantes, mas não (valendo-se de linguagem piagetiana) só
exatamente iguais. Tal explicação pode se consolida, só torna o conhecimento
ser entendida com base em um ditado efetivamente significativo, quando esse
usado pelos/as mais antigos/as do saber passa pelo corpo, pois deriva de
candomblé: “o desempenho do experiências e assim adquiri peso
cavaleiro, depende do cavalo”. Como é perante a comunidade de axé. Trata-se de
admissível também o sujeito iniciado uma situação recorrente considerar o
incorporar mais de uma entidade, sendo corpo como uma dimensão, um critério a
uma de cada vez, afinal, é apenas um ser levado em conta, antes de qualquer
corpo. Por isso, a ideia de um mesmo decisão. Quantas vezes, por exemplo,
sujeito no candomblé é múltipla, seu acompanhei situações nas quais o sujeito
corpo é instrumento de muitos, que se manifestava um posicionamento sobre
expressam de formas singulares, o que é alguém ou a respeito de um assunto,
diferente das representações identitárias porém o encantado/a, que
no ciberespaço, que não são fixas. frequentemente toma seu corpo,
manifestou posição diametralmente
Um exemplo: o/a iniciado/a quando contrária a sua e diante desse
“incorpora” o caboclo Boiadeiro, trata-se contraditório, precisou mudar de decisão
do Boiadeiro desse sujeito, mesmo que para seguir em frente? Encerro este
existam outros parecidos. Aquele corpo tópico afirmando que as teorizações
“emprestado” ao encantado irá vestir o sobre o candomblé, para o interior das
chapéu e gibão de couro e usar chibata comunidades passam, dentro outros
nas mãos, para interagir com os crivos, pela dimensão do corpo, ou seja,
membros da comunidade de axé, irá pelo vivido e sentido.
entoar rimas e cantigas, evocando
Subjetividade na rede ciberaxé
belezas e agruras vividas, capazes de
criar nos expectadores imagens virtuais A sociedade como um todo hoje precisa
da realidade ali versada, sem mesmo ser pensada considerando a existência do
nunca ter conhecido tal contexto com os ciberespaço como uma dimensão real,
próprios olhos: “Xetro a, xetro a, minha presente em todos os setores da
corda é de laçar // Xetro a, xetro a, corda sociedade e de nossas vidas, não como
de laçar meu boi // Xetro a, xetro a, meu algo anexo, não como uma existência a

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parte e que não interfere em nossas vidas, com mundo fora da rede (off-line). Estas
mas sim como agregadora de condições subjetividades, segundo Sibilia, são
para desenvolver subjetividades formas de ser e estar no mundo, longe de
individuais e coletivas. Vivemos em uma essencialismo fixo e estável, no qual seus
sociedade que passa a ser pensada em contornos são elásticos e mudam
rede, na qual a parte e o todo se conforme diversas tradições culturais.
interligam, sob a lógica do atual Ela complementa dizendo não se referir
desenvolvimento tecnológico e da a subjetividade como algo imaterial
internet, aprimorando a comunicação dentro das pessoas, podendo existir
mediada por computadores. Trata-se de encarnado no corpo, com também
um novo espaço de socialização e embebida numa cultura intersubjetiva.
interlocução que tem promovido Neste sentido, Sibília explica que
interferência em seus participantes, tanto características biológicas delimitam o
do ponto vista individual, como na horizonte de possibilidades dos sujeitos,
percepção coletiva sobre assuntos porém é uma área de conhecimento cujas
diversos. Um território com infinitos respostas, algumas, permanecem
centros, sempre em constante indeterminadas. Por isso, as experiências
deslocamento e mutações. Independente individuas se veem influenciadas pelas
de qual seja seu nível de domínio e interações com os outros e com o mundo,
interação com as mídias digitais, e sobretudo da cultura na conformação
inevitavelmente sofrerá influências das do que se é. Com base nisto, a premissa
demandas que por lá circulam, defendida por Sibilia é que mudanças
interferindo em sua forma de ver e estar nos modos dos sujeitos interagirem,
no mundo. Neste contexto a influenciadas por circunstâncias
subjetividade individual e coletiva é que históricas, afetam o campo das
vêm sendo afetada. O estímulo constante subjetividades, como em um jogo
à exposição, para posicionar-se motivada intricado, múltiplo e aberto (2016, p.26-
por diferentes demandas e anseios 27).
específicos, tem sido uma tônica na
medida em que as instituições e A ideia da subjetividade enquanto
organizações sociais, construídas ao resultado inacabado, em processo,
longo da história para cumprir tais coaduna com o pensamento de Guattari,
papeis, vêm perdendo sua capacidade de ao concebê-la como produzida por
se manterem fiéis a estes compromissos. instancias individuais, coletivas e
institucionais; ele acrescenta que a
Por isso, é preciso aprofundar na subjetividade é plural, polifônica e não
reflexão sobre a importâncias das conhece nenhuma instancia dominante
subjetividades expressas no ciberespaço, de determinação que guie as demais
porque elas representam pessoas, que são segundo uma causa única. Este autor
os nós da rede social na internet propõe um conceito mais ampliado para
(RECUERO, 2009). Para reflexão sobre subjetividade, que ultrapasse perspectiva
subjetividade tomo como base as tradicional da subjetividade imanente e
contribuições de Guattari (1992), Sibília desconexa da realidade exterior ao
(2016) e Santaella (2003). O ciberaxé, sujeito. Para isto, citará três problemas
enquanto recorte do ciberespaço, enquanto incitadores da ampliação de
aglutina subjetivações forjadas das definição sobre subjetividade: a irrupção
percepções dos sujeitos conectados, de fatores subjetivos no primeiro plano
produzidas tanto na própria rede, como da atualidade histórica, o
também de suas experiências sensíveis desenvolvimento maciço de produções

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maquínicas de subjetividade e, em em um enfoque no campo da psicologia
último lugar, o recente destaque de por exemplo; outra numa dimensão mais
aspectos etológicos e ecológicos a universal, abrangendo todas as
subjetividade humana. (GUATTARI, características do gênero humano, como
1992, p.11) saberes da linguística e da biologia; e
uma terceira via, a que irei adotar para
Neste artigo me concentro no segundo esta pesquisa, é intermediaria e visa
problema apresentado por Guattari, que detectar aqueles elementos comuns a
considera as produções semióticas das alguns sujeitos, mas não
mídias e demais tecnologias de necessariamente inerentes a todos. Esta
comunicação como dentro da última perspectiva contempla elementos
subjetividade psicológica. Em sua da subjetividade relacionas com a
acepção, as máquinas tecnológicas de cultura, derivados de forças históricas
informação e comunicação operam no perpassadas por vetores políticos,
núcleo da subjetividade humana, no econômicos e socias, que determinam
âmbito da memória, na sua inteligência, formas de ser e estar no mundo,
mas também em sua sensibilidade, em estimulando diferenciadamente, o
seus afetos e nos fantasmas do cumprimento de configurações
inconsciente. Vejo isso, por exemplo, subjetivas e inibindo outras, deste moto
nas pessoas que, atualmente, em frente as assegurando que o funcionamento do
telas do computador, expõem-se em presente se realize de forma mais eficaz
narrativas desde as mais intimas, (Idem, p. 27).
tratando de afetos, violências, visões de
mundo, desejos; falam de assuntos A subjetividade é resultante da cultura e
públicos e privados, de interesse coletivo das formas de socialização que dela
ou de grupos específicos; tratam de derivam. Nesta equação, as mídias são
banalidades, assuntos cotidianos, determinantes para o entendimento das
interações significativas e ocasionais; e subjetividades, porque elas conseguem
de tudo mais que a imaginação humana produzir um efeito de fetiche, dada sua
permita elaborar. É, porém, uma onipresença individual e social
construção que não nasce só do sujeito (SANTAELLA, 2003). A cegueira
perante a tela, mas pode ser um ponto de promovida pelas mídias, continua esta
partida, de motivação que tende a ser autora, tende a negar o deslindamento da
retroalimentado, de forma contínua, na linguagem, dos processos sígnicos que
interação em rede através da máquina. O permeia as mídias e sem as quais
interessante é que apesar dessas inexistem subsídios objetivos para se
máquinas, serem apenas meios e pensar a cultura e as formas de
reproduzirem o sentido literal das socialização. E como estas formas de
informações do emissor inicial, a criação socialização tiveram momentos na
e subversão de sentidos em um história de maior esplendor, trago aqui a
enunciado é algo passível de ocorrer, divisão que Santaella faz das eras
resultado em elaborações nas mais culturais em seis tipos de formação:
diversas. Reforça, portanto, o papel dos cultura oral, cultura escrita, cultura
meios comunicacionais digitais na impressa, cultura de massas, cultura das
construção da subjetividade. mídias e cultura digital. Um divisão,
segundo esta autora, pautada na
Sibília informa ainda que os estudos compreensão dos meios de
sobre subjetividade podem seguir de três comunicação, desde o aparelho fonador
dimensões: uma mais singular, baseada até as redes digitais, como sendo meros

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canais nos quais transitam informações, Santaella anuncia o aparecimento, do
porem capazes de fazer circular tipos de que chama de cultura do disponível e do
signos, engendrar tipos de mensagens, transitório, em função dos dispositivos e
possibilitar tipos de comunicações que equipamentos como fotocopiadoras,
moldam pensamentos e sensibilidade videocassetes e aparelhos para gravação
dos seres humanos, bem como propiciam de vídeos, e mais a forte indústria de
o surgimento de novos ambientes vídeclips, vídeogames, juntamente com a
socioculturais (Idem, p.13). Embora expansiva produção de filmes em vídeo
utilize na divisão a termo “era”, a que são alugados nas vídeo locadoras
expressão “formações culturais” edificando o caminho do surgimento das
costuma ser adotada por Santaella, TVs a cabo. Estes mecanismos
sobretudo para afastar a ideia de período tecnológicos asseguram o consumo
culturais lineares, como se fosse uma individualizado em contraposição ao
sucessão de fatos, desconsiderando consumo massivo, característico das
complementaridades, contradições, mídias de massa. Uma reflexão que esta
sincretismos, reajustes e autora absorve de Canclini (2013),
desaparecimentos nestes fluxos. quando ele analisa a hibridação cultural
e trabalha os processos combinados de
Referindo-se a cultura como organismo
descolecionamento e
vivo, inteligentemente capaz de
desterritorialização:
adaptações imprevisíveis, Santaella
eleva os princípios da semiótica como As culturas já não se agrupam em
definidora das formações culturais, grupos fixos e estáveis e, portanto,
independentes da técnica ou da desaparece a possibilidade de ser
tecnologia de comunicação mais culto conhecendo o repertório das
preponderante em cada período grandes obras, ou ser popular porque
histórico. Um destaque desta autora é se domina o sentido dos objetos e
sobre as ambíguas e imprecisas mensagens produzidos por uma
definições atribuídas ao contexto atual, comunidade mais ou menos fechada
que consideram sendo tudo cultura (uma etnia, um bairro, uma classe).
Agora essas coleções renovam sua
midiática. Para ela, soa como “cortina de
composição e sua hierarquia com as
fumaça” sobre este território pois modas, entrecruzam-se o tempo
questões do tipo: quais são estas mídias, todo, e, ainda por cima, cada usuário
como são inseridas na dinâmica social, pode fazer sua própria coleção. As
em quais o capital está sendo investido e tecnologias de reprodução permitem
como impõem sua lógica ao conjunto da a cada um montar em sua casa um
cultura geral, não são respondidas pela repertório de discos e fitas que
imprecisão conceitual. Assim, ela combinam o culto com o popular,
explica que cultura das mídias, refere-se incluindo aqueles que já fazem na
ao fenômeno ocorrido no início da estrutura das obras: [...]. Proliferam,
década de 80, quando se intensificam as além disso, os dispositivos de
reprodução que não podemos definir
misturas e entre linguagens e meios, com
como cultos ou populares. Neles se
objetivo de multiplicar as mídias, perdem as coleções, desestruturam-
produzindo mensagens hibridas, “por se as imagens e os contextos, as
exemplo, nos suplementos literários ou referências semânticas e históricas
culturais especializados em jornais e que amarram seus sentidos. (2013,
revistas, nas revistas de cultura, no p. 304)
radiojornal, telejornal, etc.” (Idem,
p.15).

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São, portanto, estas possibilidades oferecem aos usuários. Resulta também
tecnológicas de fragmentação dos das apreensões e interações do sujeito na
diferentes conteúdos, que nos tiraram da realidade off-line, ou seja, de suas
postura passiva de receptadores inertes, percepções e vivencias apreendidas
para a condição alternativa de no/com o mundo - pessoas, lugares,
proatividade individual que busca, situações e consigo mesmo. Isto faz
escolhe e recria conteúdos acender o entendimento da cultura como
disponibilizados. Esta foi uma etapa, na base, um solo de onde se produz
visão de Santaella, preliminar e significações sobre o real, que pode ser
preparatória da sensibilidade dos visto pautado no olhar tanto coletivo,
usuários para a chegada dos meios como singular, mais sempre
digitais (era seguinte a cultura das possibilitando significações. As
mídias, segundo sua divisão), na qual a representações dão pistas das
postura individualizada é também subjetividades dos usuários na rede, não
caracterizada pela busca dispersa, alinear são fixas, modificam-se continuamente.
e fragmentada. Então as percepções que “outro”
elaboram sobre as representações do
Castell (1999, p. 362-367), é outro que
“eu” exibidas, também se modificam,
ao tratar da “cultura da virtualidade
dando à interação, à mediação, dinâmica,
real”, faz uma análise em “A novas
mobilidade, porque Exu é movimento e
mídias e a diversificação da audiência de
a rede não pode ser estática, desta forma
massa”, e nos traz detalhes das
ela gera sempre novas significações.
transformações propiciadas pelas novas
tecnologias das mídias nos anos 80, que
permitiram a transmissão das
informações de forma mais Por outro lado, Exu é guardião do axé e
“especializada, diversificada, tornando a assegura a preservação do sistema
audiência cada vez mais segmentada por religioso do candomblé. Fez isso em toda
ideologias, valores, gostos e estilos de trajetória da população negra, em terras
vida”. (idem, p. 364). brasileiras, desde a fundação dos
primeiros terreiros, conduzindo-os nos
Posto tudo acima, faço uma breve ajustes, sincretismos, perseguições, e
síntese: o meio é a mensagem, o meio práticas de intolerância. Contudo, se Exu
atual é a rede, assim como o ciberespaço pode ser relacionada a rede, sendo o
é também rede. O ciberaxé é parte do ciberaxé a mais nova expressão de suas
ciberespaço. Exu é visto como meio, ele artimanhas, na abertura de novas
o intermediário entre o orun e o ayiê. fronteiras de atuação e manifestação do
Porém na rede, Exu intermedia os “nós” candomblé, com quais “máscaras” as
da rede, as pessoas, que se utilizam de pessoas se expressarão no processo de
representações, máscaras/avatares, para entrelaçamento da rede ciberaxé?
expressar suas subjetividades, com as Acredito que sejam infinitas as
quais estabelecem as interações, os laços possibilidades porque são singulares as
nos espaços comunicacionais, compreensões expressas pelas pessoas,
configurando as redes sociais na internet. sobre a vida em seu entorno, mas que
também podem, ou não, mudar de visão.
A produção das subjetivações deriva de
Quais subjetividades podemos
fatores diversos: das percepções
interpretar através destas máscaras? E
apreendidas nas interações, da relação
que relações podem ser feitas com o
com o computador em si, e com os
universo simbólico do candomblé?
programas e softwares que estes

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Nas plataformas virtuais (Facebook, Referências
Blogs, You Tube, WhatsApp, etc.) os BORGES, Luzineide Miranda. Facebook e
usuários utilizam em seus perfis afroreligiosidade: o orunkò e os ‘nós’ no
representações relacionadas com intercruzamento das redes que nos formam.
Odeere: revista do programa de pós-graduação
candomblé. Nelas acontecem interfaces
em Relações Étnicas e Contemporaneidade –
para autoria e publicação online que UESB. ISSN 2525- 4715. Ano 2, número 3,
abrem aos sujeitos a possibilidade de volume 3, janeiro – junho de 2017
colaborar na construção do conteúdo e CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas.
criar em co-autoria (BORGES, 2017). São Paulo: Editora USP, 2013
São traços identitários, aspectos da
CASTELL, Manuel. A Galáxia da Internet:
intimidade, que são apresentados para reflexões sobre internet, os negócios e a
visualização pública no ciberespaço. sociedade. Rio de Janeiro; Zahar Ed., 2003
Recuero (2009) dirá que estas CONCEIÇÃO, Lúcio André Andrade da. A
representações são espaços de interação, Pedagogia do Candomblé: aprendizagens, ritos
lugares de fala, construídos por quem e conflitos. Programa de Pós-Graduação em
produz os perfis, a fim de expressar Educação e Contemporaneidade: Universidade
elementos de sua personalidade ou do Estado da Bahia. Dissertação, 2006.p. 128
individualidade, caracterizando assim a GUATARRI, Felix. CAOSMOSE: um novo
pessoalidade na internet. Recuero cita paradigma estético. Rio de Janeiro; Editora 34,
Sibília (2003) e Lemos (2002) que 1992
demonstraram como alguns weblogs LEMOS, A. A Arte da Vida: Diários Pessoais e
trabalham aspectos da “construção de si” Webcams na Internet. Trabalho apresentado no
e da “narração do eu”. Ou seja, são GT Comunicação e Sociedade Tecnológica do X
COMPÓS na Universidade Federal do Rio de
indícios da hibridez destas Janeiro, de 04 a 07 de junho de 2002.
representações, sugerindo fluidez,
MORAES, Dênis de. O concreto e o virtual:
associações, sincretizações, mutações, mídia, cultura e tecnologia. Rio de Janeiro;
acréscimos, sobreposições, conforme DP&A, 2001.
motivações de quem esteja
RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet.
representado/a naquele nó da rede. Porto Alegre: Sulina, 2009.
SANTAELLA, Lúcia. Culturas e Artes do Pós-
humano: da cultura das mídias à cibercultura.
São Paulo; Paulus, 2003.
SIBÍLIA, Paula. Show do Eu: A intimidade
como espetáculo. 2ª Ed. Contraponto, Rio de
Janeiro; RJ, 2016.
SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Rio de Janeiro:
Vozes, 2017, 238 p.

Recebido em 2020-05-21
Publicado em 2021-03-06

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