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O Diálogo da Ciência
Platônica com o
Materialismo Antigo:
a ética do escritor-filósofo
DIALOGUE BETWEEN PLATONIC SCIENCE
AND OLD MATERIALISM: THE ETHICS OF
THE “WRITER-PHILOSOPHER”
Resumo Subjacente a esta exposição sobre o diálogo entre ciência platônica e materialis-
mo grego, uma questão de fundo está sendo debatida com os partidários das doutrinas
não-escritas desse filósofo, a das relações entre o Platão-escritor e o Platão-professor. A
crítica platônica aos materialistas – o divino tudo deve governar – evidencia justamente os
extraordinários dotes do escritor-filósofo. A dialética – cujos movimentos fundamentais
de ascensão e descensão englobam outros recursos, como metáforas e mitos – permite-
lhe falar do inefável com propriedade e clareza: faz nascer na alma do leitor (daquele ao
menos que “a partir de algumas indicações alcança verdades últimas”) a compreensão da
natureza do Absoluto. O querelante diálogo com os materialistas exigirá que o Platão-es-
critor refine o método para abordar seriamente o que é mais alto e de maior valor, apesar
das conhecidas restrições da Carta VII e do Fedro quanto ao alcance da escritura. Procura-
se mostrar então que, ao escrever os Diálogos, o filósofo não confiou tudo a seus escritos,
consciente das insuficiências do lógos (como afirma na Carta VII, e os pensadores da Es-
MARIA CAROLINA
cola de Tübingen ressaltam devidamente). Entretanto, movido por sua ética pedagógica,
não teria procurado transmitir o suficiente para que pudéssemos apreender o cerne de ALVES DOS SANTOS
seus ensinamentos sobre as impalpáveis realidades essenciais coroadas pelo Bem e, assim, Unicamp/SP, Brasil
aquilatar a maestria desse professor-escritor que as concebeu e definiu? mainasantos@terra.com.br

Palavras-chave MATERIALISMO GREGO – CIÊNCIA PLATÔNICA – DIVINO – DIALÉ-


TICA – ÉTICA – PLATÃO-ESCRITOR.

Abstract Underlying the suggested exposition on the dialogue between platonic science
and Greek materialism, there is a basic question to be discussed with the followers of the
“unwritten doctrines”, namely the relationship between Plato-writer and Plato-profes-
sor. The critique Plato addresses to the materialists – the divine must govern all things
– reveals the extraordinary gifts of the writer-philosopher. His dialectic, whose move-
ments include the use of metaphors and myths, allows him to speak about the ineffable
with property and clarity: it gives birth to the comprehension of the Absolute within
the soul of the reader (at least in the one who “based on some indications reaches ulti-
mate truths”). The argumentative dialogue with the materialists demands that Plato-
writer refines the chosen method to “seriously” approach that which is “highest and
most valuable” in spite of the well-known restrictions found in Letter VII and in Phae-
drus. Therefore, our aim is to demonstrate that if Plato “did not entrust everything” to
his writings due to the insufficiencies of the “logos” (as emphasized by the School of
Tübingen), he – due to his pedagogical ethics – disclosed enough for us to grasp the es-
sence of his teachings on spiritual realities and their magnificence and, thus, the mag-
nificence of philosophy which defined them.
Keywords PLATO-WRITER – GREEK MATERIALISM – DIVINE – DIALECTICS – ETHICS.

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INTRODUÇÃO: O SENTIDO ÚLTIMO DA CRIAÇÃO PLATÔNICA


O autêntico sentido de uma doutrina filosófica só pode ser apreendido com
a tomada de consciência dos problemas aos quais pretende trazer resposta
J. MOUREAU1

D
ecidido a mudar os rumos da investigação filosófica –
com as velas ao vento, os fisiólogos teriam aportado nas
ilusórias paragens do sensível apenas –, Platão empreende
uma segunda navegação (deuvtero" plou'"), melhor dire-
cionada:2 sua saga de viajante dos lovgoi ??o fará estabe-
lecer, em territórios ainda mal demarcados, contornos
mais nítidos.3
A circunstância feliz dessa nova expedição filosófica de-
veu-se não só às condições de navegabilidade do mar e dos ventos favorá-
veis, que lhe oferece a ciência dialética, como também à limpidez do céu
das Idéias, que lhe serviu de referência norteadora. Para descortinar inau-
ditos horizontes, para além das ondas azuis do Mediterrâneo, na superior
província do supra-sensível, onde se oculta o grande tesouro, essência de
todas as coisas, o filósofo embarcou, tal como o herói homérico, em “ve-
loz navio, de púrpuras e aplainadas proas, de lisos remos que são como
asas”:4 a extrema mobilidade do método adotado, a dialética, dá asas à
alma para que possa vencer as inevitáveis aporias do íngreme caminho.
Executando o par obrigatório de movimentos metódicos, ascensões e
descensões, acabará por vencer, palmo a palmo, a extensíssima rota que
conduz à grande Planície (leimwvn), onde a Verdade reside.
Somente com a vitalidade de raciocínios e postulados (uJpovqevsi")
inatacáveis, postura ética própria do dialético, ele estará preparado para a
valorosa descoberta, ao termo da aventura empreendida. Depois de remar
arduamente para vencer procelosas águas, as aporias (verdadeira tempes-
tade a ser enfrentada),5 divisará de seu posto de observação, um vasto oceano
de luz,6 fonte de inteligibilidade de tudo quanto é real e que sobre ele rei-

1 MOUREAU, 1967, p. VI.


2 PLATÃO, 1946-1956. Féd. 99b-d.
3 Sobre as metáforas presentes neste parágrafo, cf. PLATÃO, 1946-1956. Protág. 338a: “nem tu, Protá-
goras, do teu lado, soltes todas as velas ao vento favorável, até perderes a terra firme de vista no mar largo
da eloqüência (eij" to; pevlago" tovn lovgon)”. O mar, com as correntes e os perigosos turbilhões, espaço
difícil de atravessar, é metáfora excelente para descrever as aporias enfrentadas pelo discurso filosófico na
busca da verdade. Platão a utiliza em algumas passagens dos Diálogos: na República (453e), ao abordar a
questão da educação das mulheres, Sócrates convida o interlocutor a nadar (tal como quem cai em meio
ao mar [eij" tov mevgiston pevlago" mevson]) para salvar-se da perigosa discussão (swvzestqai evk tou'
lovgou); em Parmênides, o velho filósofo, no início da investigação, experimenta grande temor, por causa
da idade, de ser obrigado a atravessar a nado “tão rude e tão vasto oceano do discurso” (Pevlago" lovgou-
137a). Cf. KOFMAN, 1983, p. 23-28.
4 HOMÈRE, 1934, p. 156.
5 Cf. PLATÃO, 1946-1956. Filebo, 29b.
6 Ibid. Ba 210d.

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na soberanamente, o Belo,7 tal como o descreve concepção platônica de ciência. O filósofo usa
no Banquete. nas Leis uma antiga palavra para resumi-la: “Deus
Depois de muito navegar e de enfrentar está na origem, no meio e no fim de todas as em-
abismos infernais de temível poder,8 a inteligên- preitadas humanas”.16 Conseqüentemente, pode-
cia,9 piloto da alma, é conduzida à etapa última e mos dizer que, em qualquer etapa que o dialético
capital, que faculta o reconhecimento da ligação esteja, encontra-se sempre entre Deus e Deus,
necessária entre todas as coisas por um Ser único, sendo este ou o Objeto, para o qual ele tende, ou
causa de tudo quanto há de rigoroso e belo,10 o o Sujeito, causa primeira, do qual inevitavelmente
próprio Deus:11 é fundamento da ciência platô- irá partir.
nica e, portanto, o sentido último de sua criação O traço particular do discurso platônico é
filosófica.12 ser uma filosofia das Formas, cujo ponto de par-
tida é um pressuposto incondicionado, fonte de
toda possibilidade de intelecção. Apresenta-se,
CIÊNCIA É TEOLOGIA em seu mais alto nível, como teologia, no sentido
À luz dos esplendores que extasiam seus de uma aproximação racional de Deus por meio
olhos, emanados do puro espetáculo em que se do lovgo".17? Criação de um espírito que, sendo
constitui a visão desse princípio absoluto e divino, grego, atribui-lhe grande importância, cintilando
o dialético estará de posse de suprema medida em sua obra as luzes de uma nova modalidade de
para os múltiplos expedientes pedagógicos dos discurso sobre a realidade suprema: acerca-se do
quais irá se socorrer em suas investigações e afir- divino com argumentos da razão explicativa para
mações. Segundo Platão, nada que é imperfeito estabelecer com ele íntima convivência e, então,
poderia ser parâmetro do que quer que seja, razão circunscrevê-lo numa clara concepção. Pela vita
pela qual somente Deus – cujo caráter anhipoté- contemplativa, o dialético identifica o princípio
tico (ajnupovqeton)13 permite-lhe impor-se por si primeiro à perfeita ordenação estrutural que o
mesmo, legitimando toda postulação que faz dele mundo inteligível apresenta, ao qual infundiu seu
exigência essencial a uma démarche rigorosamente próprio modo de ser. A vivência exaustiva da ten-
filosófica – poderia ser tomado como referencial são peculiar aos dois caminhos fundadores da
metafísica – o da reunião do que está esparso em
máximo para o homem sob todos os aspectos.
muitos lugares (ta; pollakh'/ diesparmevna) em
A fórmula proposta na República, freqüen- um só termo, por uma visão de conjunto (su-
temente citada, de que “o Bem se encontra além norw'nta), e o das sucessivas divisões e subdivi-
de toda Essência”,14 jamais deve ser subtraída de sões do gênero único em suas infinitas articula-
seu contexto teórico. Pois, no domínio inteligí- ções, as espécies, conduzindo ao a[tomov" eijdo",18
vel, essa idéia que figura em último lugar, embora espécie ínfima – propicia-lhe íntima e inédita
seja a mais difícil de ver, constitui o que é propria- apreensão e expressão da ciência mesma de Deus.
mente cognoscível e, uma vez vista, é causa de
tudo quanto há de rigoroso e belo em todas as A ÉTICA DO FILÓSOFO-ESCRITOR
coisas:15 concentra em si, portanto, o cerne da Arquiteto das palavras, graças à sua aguda
ciência de dialético, Platão engendra com a pre-
7 Ibid. Rep. 518c.
8 Assim são chamadas as aporias levantadas pela doutrinas do Ser,
cisão de um geômetra – aquele que, com um só
mencionadas no Sofista (245e). PLATÃO, 1946-1956.
9 PLATÃO, 1946-1956. Fedro 247c. 16 PLATÃO, 1946-1956. Leis 715e-716a: oJ me;n dh; qeov", w{sper kai; oJ
10 Ibid. Rep. 517b, e também 509b, 510b.
palaio;" lovgo", ajrchvn tekaiv teleuth;n kai; mevsa tw'n o[ntwn aJpantwn
11 FESTUGIÈRE, 1950, p. 263; SCHUHL, 1969, p. 159.
e[cwn ...
12 LACHIÈZE-REY, 1951, p. 30-32. 17 E, desde então, afirma JAEGER (1977, p. 10), todo sistema filosó-
13 PLATÃO, 1946-1956 Rep. 509b. fico que surgirá na Grécia, com exceção dos céticos, culminará em uma
14 Ibid. Rep. 509b. teologia. Segundo DIÈS (1927, p. 532 e 538), se há uma teologia platô-
15 Ibid. Rep. 517bc. Sendo objeto de uma visão, diz JOLY (1974, p. nica, ela é dominada por essa idéia da primazia do intelecto e do espí-
1001), em razão de seu caráter anhipotético, serve de matéria ao silo- rito, e converge para o reino do invisível e do inteligível.
gismo dedutivo. 18 PLATÃO, 1946-1956. Fedro, 265c-266a.

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gesto, traça figuras perfeitas – monumental in- mora sem um modelo luminoso a pautar sua vida
ventário de lampejos sinóticos da Forma mais al- interior – para que também, em tudo, possam
ta. Apreciações de rara beleza não estão ainda por imitar aqueles periódicos e bem-ordenados mo-
vir, delegadas à instância do inaudito, situada vimentos.
além de toda fala e de todo escrito. Essencialmen-
te verbais, essas visões são tecidas com apaixona- REFINANDO O MÉTODO CONTRA OS
da austeridade com base nos recursos finitos da MATERIALISTAS
palavra escrita. Numa linguagem diurna, solar,
O brilhantismo da concepção expressa por
aglutinante – “os nomes tenazmente soldados
Platão sobre a mais alta das ciências, principal
aos verbos” – e com as reticências características
aquisição da instigadora especulação sobre o mé-
a seu hjqo" filosófico, esboça, nas culminâncias de
todo que, proficuamente, poderia conduzir aos
cada Diálogo, aspectos essenciais do divino ex-
cânones de uma verdade absoluta, dá a essa filo-
pressos ora na Idéia do Bem (República), ora na
sofia sua medida de permanência. Não é um ato
do Belo (Banquete e Fedro), ora na do ser total, o
deliberado, de engenhosa estratégia, contra a te-
pantelw'" o[n (Sofista).
oria de seus adversários materialistas, a resposta
E, no entardecer de suas reflexões, esse fi- tática às contrariedades internas da investigação
lósofo muito viajado, tendo lançado ao mar seu dos defensores de uma inteligência ordenadora,
grande galeão, a dialética, para rastrear com mé- porém, desprovida de qualquer potência divina,
todo, desta feita, as águas menos cristalinas que
incapaz de organizar ou fundamentar o que quer
circundam as terras do devir, constata ali a exis-
que seja? Um flamejante anseio por fazer valer
tência de uma ordem em tudo semelhante a que
a supremacia do princípio, permanentemente
há no supra-sensível.
eficiente e imutável, o leva a refinar, a seu máxi-
Na esteira de convicções menos restritivas mo limite de precisão, o instrumento escolhido, a
com relação ao domínio sensível, Platão usa de dialética.
seu excepcional poder de sugestão didática para
Platão colocará por terra a ambígua pro-
evocar, poeticamente, o aspecto demiúrgico do
posição de Anaxágoras – a existência de uma cau-
divino (Timeu). Seus brilhantes olhos antigos,
salidade definida como explicativa de tudo o que,
como os de Odisseu, o herói da Ilíada, apreen-
na realidade, não desempenha papel algum na or-
dem a bela harmonia existente entre o inteligível
dem do universo, delegando-o ao éter, água e ou-
e eterno, e o plano do que nasce e morre, resul-
tras coisas absurdas21 – por incapacidade de tirar
tante de sua ação providencial. Haveria incom-
partido das genuínas possibilidades do Intelecto
pletude, e o sensível seria ilusória e imperfeita pa-
(Nou'"): o filósofo empenha-se em ressaltar-lhe o
ragem, se não abrigasse, em seu âmago, a perene
poder arquitetônico de construir harmonias, de
presença de um princípio ordenador, cuja gene-
ordenar com exatidão os princípios e as causas,
rosidade pura fez dele o melhor dos mundos pos-
tendo sempre em vista a grandeza do Todo.
síveis:19 não sendo impassível, nem indiferente ao
mundo, o Artífice cria sua mais excelente obra Durante o acidentado percurso dos cami-
por analogia à plenitude que lhe é própria, um nhos do saber que vai do Fédon às Leis, passando
deus sensível, reflexo da eterna perfeição do deus pelo Sofista, discerne-se um mesmo sentido no
inteligível.20 E esse palpável espetáculo oferecido espírito subjacente às críticas veementes, endere-
pelo céu visível deverá ser interiorizado na alma çadas a seus predecessores materialistas: o viés
(yuchv) não só do dialético, mas de todos os que fundamental é contestar asserções que, impropria-
se dedicarem a contemplá-lo – ninguém se apri- mente, escamoteiam a excelência do finalismo so-
bre o mecanicismo, a preexistência ontológica e a
19 Ibid. Tim. 34a.
20 Ibid. Tim. 29e-30e. 21 Ibid. Féd. 97e-98e.

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anterioridade lógica do psíquico e do espiritual, Ajgaqou' ijdevan)


O BEM (A
em relação ao que é corpóreo e material.22 O Objeto supremo, identificado na Repú-
Se um projeto é sempre inseparável daquilo blica ao Bem, é luz imortal intensíssima, compa-
que constitui o seu máximo triunfo, ou seja, a sua
rável à do sol (e{lio"), que surge nos horizontes
execução integral, aquilo que Platão concebeu em
do mundo sensível para dissipar-lhe as sombras
seu laboratório mental apenas se realizou plena-
inconsistentes e cambiantes.25 Reinam (basi-
mente, ao fazer com que o Objeto supremo fosse
apreendido pelos rigorosos mecanismos do mé- leuei'n) ambas sobre o mundo em que cada uma
todo, apresentando-se em palavras ao olhar pen- é, respectivamente, soberana (kuvrio"),26 com
sante do leitor dialético, sob uma claridade abso- grandeza, eficiência e beleza. O grande astro, o
lutamente nova. O tipo de formação (paideiva) mais luminoso do universo das coisas corpóreas,
destinada a preparar, por esses textos, um espírito que ofusca a vista dos homens, denominado seu
genuinamente filosófico coincidiria, na perspec- rebento (evkgono"), tem com a essência última, ra-
tiva de Platão, com os ideais da kalokavgaqiva, cujo diosa e pura – a mais difícil de ser vista pela alma
traço capital é a formação do homem superior em (teleutai kaiv movgi" oJ ravsqai)27 – a maior das si-
todos os sentidos: sua excelência não reside ape- militudes (oJmoiovtato" ejkei'no").28 É o sol extasi-
nas na mera posse de um métier técnico, porém, ante, situado nos extremos do universo invisível,
numa postura ética de desprendimento de uma quem esculpe com fantástica irradiação de inteli-
certa ordem de coisas, o contingente e o sensível, gibilidade o perfil de todas as Formas incorruptí-
de modo a poder alcançar gradativamente o plano veis que constituem a trama da esfera do inteligí-
do que é em si e descobrir, com a maior precisão
vel. Princípio ativo, incondicionado (ajnupovqe-
possível, sua autêntica natureza.23
ton), auto-suficiente (iJkanovn)29 é, também, razão
Somente um homem primorosamente pre-
exemplar e final do que de mais excelente há no
parado teria as condições necessárias para viabili-
ser:30 engendra, no plano das coisas visíveis, a luz
zar o raro acordo, a conjunção exata, entre o olho
e o Objeto, e produzir a partir daí uma obra es- e o senhor dessa, como causa de sua perfeição e
crita tão perfeita como a de Platão. beleza; e no das Idéias, do qual é, especialmente,
Eivados de austera simetria e simplicidade doador de verdade e inteligência, é o unificador
cristalina, os registros verbais firmados nos Diá- de todas as espécies eternas e de seu imutável bri-
logos conseguem captar em sua abrangência lógi- lho.
ca, ética, epistemológica, metafísica, teológica, os Sendo essa plenitude ultraluminosa, sem
atributos canônicos do Ser primeiro: embora seja, sombras, o Bem, fonte e fim de toda existência,
inegavelmente, o que há de mais difícil de com- conhecimento e valor, impõe-se à reflexão do di-
preender e exprimir, há passagens célebres nas alético; e, no ponto máximo de seus estudos so-
criações desse que é o mais excelente dialético, bre aquela natureza (tou' ajgaqou' e{xin), último
em que o divino é caracterizado com incompará- passo metódico a coroar todos os esforços pelo
vel competência. Entre os muitos títulos a ele desenvolvimento da capacidade noética – não há
conferidos estão o de princípio imortal, eterno,
outra mais alta que essa (534e) –, alcançará a ini-
puro, idêntico a si mesmo, auto-suficiente, termo
ciação perfeita, a mais alta ciência (mevgiston ma-
último, incondicionado, divino, todos eles asso-
ciados freqüentemente à imagem visível da luz.24 24 PLATÃO, 1946-1956 Rep. 509a, 518c,611e, Féd. 80b, Fedro 246c,
250d-e, Ba 210d-e.
22 25 Ibid. Rep. 509a.
PAQUET, 1973, p. 44.
23 26 Ibid. Rep. 508a, 517c.
PLATÃO, 1946-1956. Rep. 484c-d. ROIG (1972, p. 112) afirma: “a
27 Ibid. Rep. 517e.
força em que Platão se apóia deriva de sua convicção da capacidade que
28 Ibid. Rep. 506e.
tem a yuchv de captar as essências, e da possibilidade de trabalhar com
elas mediante um método racional; quer dizer, não há dúvida alguma 29 Ibid. Rep. 510b-511b.

da positividade ou cientificidade da dialética na ordem da ‘ousiva’”. 30 Ibid. Rep. 532c.

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qv hma),31 cuja aquisição é indispensável para agir, último na diversidade hierárquica de suas
sabiamente, na vida privada e na vida pública.32 manifestações. Tem lugar uma seqüência de
contemplações, a partir do amor que a beleza de
to; kavllo")
O BELO (t um corpo lhe desperta, passando depois a con-
Em Fedro e Banquete, o virtuosismo verbal templar e amar todos os outros que possuem,
de Platão, num duplo e contraditório movimen- também, parentesco com essa essência divina, e
to, ora de interdição ora de desvelamento, ex- assim sucessivamente, com relação às almas,
pressa o objeto último, tal como na República. ações, leis e ciências. Até que, de súbito, já no
Um delírio de imagens brilhantes, variadas, car- topo do mundo ideal, ponto de perfeição, atinge
regadas de verdade e de força significativa, que a comunhão íntima com a intensa claridade ema-
obedecem à tendência fundamental de represen- nada pelo Belo que, como Idéia, é eterno.35
tá-lo pela luz, explicita a intenção primeira de sua A razão de ser da dialética, e de toda a filo-
vocação filosófica: estabelecer intimidade essen- sofia de Platão, seria, exatamente, exercitar a alma
cial com o Ser supremo. Cintilações, presenças nesse ato essencial, o amor, cuja função natural é
concisas de uma ausência, as imagens visíveis da unir elementos opostos, preencher os intervalos
luz revelariam, como significação principal, o in- entre esferas separadas. Ao introduzir um princí-
tenso desejo da ciência platônica de abordar o pio de ordem, de síntese e de harmonização, dis-
que, à primeira vista, se lhe apresentara como ina- ciplina seus movimentos, de modo a facilitar-lhe
bordável. O Belo ideal é assim descrito, um res- a transição do particular, relativo, humano, para o
plendor de intenso clarão, através do qual a rea- universal, absoluto, divino. A plenitude do esfor-
lidade mais elevada e soberana causa na alma um ço de elevação da alma (yuch)v, momento da visão
imperioso paqov", o amor: a luminosa essência da luminosidade sem mistura, é caracterizada
que o fez nascer a eleva ainda mais, conduzindo com uma metáfora inspirada na cerimônia dos
a alma ao resplandecente e longínquo princípio mistérios eleusianos ou órficos (tav dev tevlea kaiv
de todo conhecimento.33 O Belo em si subordi- ejpoptikav).36 Esse magnífico espetáculo, inteira-
na-se a esse princípio superior da unidade, cimo mente intelectual, somente é comparável ao que é
da luz, e expressa a relação universal e fundamen- fruído pelo neófito, ao chegar ao mais alto grau
tal existente entre todas as coisas, tanto na di- de iniciação e purificação conduzido pelo hiero-
mensão do inteligível quanto na do sensível, fante: a aparição da resplandecente estátua da di-
como o grande mediador que garante a total li- vindade, na epopteiva.37 E a extensa região por
gação entre o mais próximo e o mais longínquo, onde o radioso brilho do Belo se difunde é des-
num universo em que há comunidade entre to- crita por esse heleno que muito navegou e, fre-
dos os seres.34 qüentemente, contemplou o mar, do alto dos
A dialética do Banquete, atividade pura- promontórios de Cirene ou de Siracusa, como
mente intelectual identificada a uma iniciação um vasto oceano de luz: a visão dessa fantástica
erótica, estabelece como dogma essencial do pen- imensidão inexplorada gera na alma do autêntico
samento platônico uma espécie de veneração amante (ejrwtikov"), sem cessar, bem articulados
mística da beleza absoluta. O longo itinerário, discursos38 numa linguagem viva, dotada de ine-
metodicamente percorrido pela alma, em etapas, gável poder de representação, destinada a em-
é o estratagema perfeito para conhecer o termo prestar realidade verbal ao supremo Objeto dessa
31
exaustiva busca.
Ibid. Rep. 505a.
32 Ibid. Rep. 517c. ROBIN, 1964, p. 186-188.
33 Sobre o domínio que a idéia do Bem exerce sobre o universo, e sua 35 Ibid. Ba 209e-212a.
relação com a idéia do Belo, cf. SCHUHL, 1969, p. 159-160. 36 Ibid. Ba 210a.
34 PLATÃO, 1946-1956 Ba 202e. Esse é, segundo DIÈS (1927, p. 37 Ibid. Ba 210e.
556), o verdadeiro Deus de Platão. 38 Ibid. Ba 222a.

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Em Fedro, o termo último identifica-se pantelw'" o[n)?


O SER TOTAL (p
também à Beleza que brilha com uma luz inigua- A infinidade de aspectos essenciais do pan-
lavelmente pura, na Planície da Verdade (ajlhqei- telw'" o[n, por um pudor próprio à filosofia de
av " ijdei'n pedivon), ao lado de outros inteligíveis Platão, é mencionada por meio de matização alu-
supremos. É apontado como o único entre todos siva. Sobre ele não é desenvolvido qualquer arra-
que, no contexto da experiência da multiplicidade zoado exaustivo. Esse Ser que, em sua complexa
infinita das coisas em perpétuo fluxo, tem o pri- identidade, é o eixo de múltiplas ilações, não exis-
vilégio de ser imediatamente percebido pela mais te para permanecer inescrutável em uma
aguda das percepções do homem, a visão.39 Ao incognoscível transcendência. Esse “algo que
penetrarem pelos olhos, essas emanações chegam deve ser visto”45 está presente, pelo menos, na
até a alma, restituindo-lhe antigas e potentes lem- memória do autêntico dialético, o qual apóia seus
branças que a transportam, instantaneamente, à raciocínios e seu dizer, delicadamente precisos, na
aparição extraordinária do que é Belo em si.40 A idéia do pantelw'" o[n.46 E embora não haja, no
forte impressão produzida sobre o intelecto pela Sofista, nenhuma referência explícita ao Bem, de
visão da bela imagem terrestre de um corpo ou acordo com V. Brochard, há um prolongamento
rosto, ambos divinos, o amor, é o vertiginoso elã dessa investigação, no momento em que a refle-
que o faz ultrapassar a diversidade escoante do xão se volta para o Ser maior e principal (tou' mev-
devir em direção ao que é permanente e uno, na gistou te kaiv ajrchgou').47 O que se tem em mi-
esfera em que realmente se realizam conhecimen- ra, então, são as realidades que participam da for-
tos estáveis e duradouros.41 ma desse Ser perfeito, total-mente ser, sem restri-
Aturdida pelo poderoso impacto, a alma ção ou limitação, que contém em si como
percorre, num instante, o extenso percurso da fa- culminância a totalidade, a abrangência de toda a
tigante peregrinação vertical em busca da luz, du- realidade a um só tempo. E, assim, um ser incom-
rante a qual se despoja das paixões pelas coisas paravelmente completo, de vasta extensão, pleni-
sensíveis. A recordação daquela essência de invi- tude perfeita e unificante é, também, o mais divi-
olável brilho, postada em seu pedestal sagrado, no.48 Pois há um princípio que propõe a propor-
contemplada em seu jorro originário, na aurora cionalidade entre o grau de ser e o de divindade,
da vida pré-empírica – quando seguia, não sem de maneira que o Ser mais divino é, por conse-
grande esforço, o cortejo das almas divinas de qüência, mais pleno e universal.49
puro olhar em suas evoluções circulares fora dos Para abarcar, com um só ato de pensamen-
limites do nosso mundo42 –, constitui uma reno- to, algo tão perfeito e vasto, seria necessário ser
vação da experiência iniciática nos mistérios sa- quase um deus, instruído em rigorosos estratage-
grados:43 ao postar-se diante da radiante realidade mas. Valendo-se de sua natural afinidade com o
impalpável, sem cor ou forma, sob os prodígios Objeto supremo – a figura (tov sch'ma) humana
desse paqov", oriundo da veneração constante dos foi concebida assim para que o homem pudesse
que são dotados de uma beleza divina, “aquele ver a verdade50 – e, do virtuosismo de sua arte
que sabe servir-se bem das reminiscências recebe, metódica, o dialético está apto a adentrar a ordem
de modo contínuo, a iniciação completa nos mis- hierarquizada da essência (oujsiva), a apreender o
térios da perfeição absoluta” (tevlou" ajei tele- teor absoluto de seu código arquetípico e a trans-
tv a" tevloumeno"? – 249a), tornando-se assim, ele mutar a precariedade de sua condição de humano
também, imortal, perfeito e divinizado.44 44 Ibid. Fedro 249c.
45 Ibid. Rep. 533a.
39 Ibid. Fedro 250d-e. 46 Ibid. Sof. 248e.
40 Ibid. Fedro 251d, 253a-254b. 47 Ibid. Sof. 243d.; BROCHARD, 1974, p. 139.
41 Ibid. Fedro 249e-250a; 251a-c. 48 DIÈS, 1927, p. 556.
42 Ibid. Fedro 247d-248a. 49 PLATÃO, 1946-1956. Sof. 249d.
43 Ibid. Fedro 250a-251a. 50 Ibid. Fedro 249b.

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em via de inexaurível eternidade: ávido em pers- que lhe garante o acesso à essência dos objetos
crutar, consome sua existência, o mais elevado sobre os quais se propôs a discorrer. Executando
dos gêneros de vida, na infatigável aquisição dessa os circuitos perfeitos de duplo ritmo, a dialética
ciência do divino. de Platão engendra excitante jogo de questões e
De todos os atos de pensamento do dialé- respostas54 – ambiguamente lúdico –, no qual o
tico, em seu diálogo interior (ejntov") e silencioso espírito, com a agradável intranqüilidade que a in-
(a[neu fwnhv"), o mais importante é aquele que, a cessante inquirição da verdade suscita, imitando o
partir de velocíssimas novhsi", propicia a triagem, movimento divino55 na Planície da Verdade ( A j -
a dissociação e a instauração de uma ordem para lhvqeia),56 vai desenhando os contornos daquilo
si mesmo, na plêiade de espécies que integram, que é em sua unidade e multiplicidade, circuns-
essencialmente, o ser total (pantelw'" o[n). Premi- crevendo-o (diorivxw) com palavras.
do pela urgência de uma ciência suprema, desen-
cadeada pela impregnação do amor ao que é eter- DIALÉTICA, ÉTICA E VOCAÇÃO HUMANA
no – uma vez alcançada, a sabedoria (sofiva) con-
Platão espiritualiza a dialética, restituindo-
cederia a graça de um viver feliz para sempre51 –,
lhe o substrato religioso e o primordial caráter ri-
seus olhos, que têm um modo agudo de ver (joxuv"
tualístico, iniciático, em toda a sua riqueza, arcai-
blevponta), apreendem na natureza do que é Um
cas sobrevivências que os sofistas, sem muita re-
em si nexos fundamentais de complexa variedade
flexão, haviam negligenciado radicalmente. Uma
em perfeito equilíbrio. O vertiginoso movimento
vez transformada em mera técnica de persuasão a
dialético dos procedimentos sinótico e diairético,
serviço de teses contraditórias, acaba por preva-
ao reproduzir as reverberações todas das miríades
lecer no seu exercício o embate acicatado entre
de relações que o Um mantém com o Múltiplo,
asserções ambíguas habilmente realçadas por pa-
possibilita a compreensão de como um único
lavras de efeito, usadas mais para seduzir do que
pode desdobrar-se em muitos, ou os muitos po-
para fazer vislumbrar o venerável traçado da reali-
dem ser um só.52 A intenção fundamental dessa
dade: e, ao dizer “as coisas que são como elas não
ciência, cujo saber consiste na mistura precisa de
muitas coisas na unidade para, novamente, dissol- são”, rompe os vínculos com a transcendência.57
vê-la em muitas53 – o qual a inteligência divina, Foi preciso diligente combate em torno da pró-
em sua soberania, possui em grau supremo –, é pria identidade para que os liames do acerado mé-
tecer ligaduras que cubram as distâncias interme- todo com as matrizes divinas, fincadas no solo
diárias entre o Um e seus múltiplos, para que esse firme das paragens do inteligível, fossem restau-
não fique pairando como algo impensável, num rados plenamente. Pois a tenaz persistência nas
horizonte de pura transcendência: a chave do seu aventuras da dialética, sal da vida que faculta o
sentido não permanecerá reservada para si mes- conhecimento do Um e de suas inflexões, é,
mo apenas. para o filósofo, a totalização da grande meta
O dialético platônico não é, pois, aquele epistemológica, pedagógica e, também, a realiza-
que sabe como lidar com a vertigem do salto das ção jubilosa do destino de seu próprio espírito, a
altitudes da instância do não-dito para a cul- divinização.
minância de sua formulação num conceito matri- 54 Sobre o caráter lúdico da dialética, cf. PLATÃO, 1946-1956. Rep.
cial, que lhe preserva a aura luminosa, ao mani- 536c, Leis 701c, Polit. 261e. Cf. também FINK, 1966, p. 90.
festar sua verdade sob a forma de palavra? Sua éti- 55 Segundo o Crátilo, #alh qeiva significa o andar errante do divino
(421b). PLATÃO, 1946-1956.
ca de escritor resulta, em última instância, do ri- 56 Ibid. Fedro 248b.

gor com que escolhe seu método de pesquisa, 57 De acordo com BRUN (1985, p. 176), o lovgo" entre os pré-socráti-
cos é um verbo, um deus do qual são depositários e em nome do qual,
quando inspirados, falam aos homens: essa dimensão transcendente
51 Ibid. Eutid. 293a. teria sido cortada pelos sofistas, ao transformarem-no numa arte de
52 Ibid. Filebo 15d. tudo justificar e sustentar, embaralhan-do o sentido próprio a cada
53 Ibid. Tim. 68d. idéia.

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Ambos, a paixão intelectual autêntica e o mesmo, tudo vê radioso e divino: as Formas, o


inalienável desejo de imortalidade, submetidos Belo, o Bem, o Intelecto, a Alma, o Mundo, os
aos ritmos incoercíveis da dialética, fazem com Astros e a alma humana. Por isso, em seus dis-
que a série escalonada de objetos mais e mais di- cursos proferidos sob a embriaguez doada pelos
vinos – dos quais o termo final é o princípio úl- deuses – aquela que leva à gestação de obras
timo e, também, o primeiro de uma nova e infin- como Fedro, nascida à sombra de um plátano, à
dável série de articulações formais – torne-se beira das cristalinas águas do rio Ilissos, sob a luz
apreensível para ele no conjunto e no detalhe.58 E cintilante do meio-dia –, torna-se fiador de uma
não propriamente para serem interrogados, ajui- ciência do divino, de uma verdadeira religião64
zados no tribunal da racionalidade autárquica que empresta à sua filosofia a tonalidade mística
quanto a seu valor e significação, porém, para
que lhe é intrínseca.
consumar a vocação da alma de imergir na pleni-
tude do fundamento eterno e salvar-se.
SOB OS AUSPÍCIOS DO DIVINO
A virtude natural da dialética, em sua mar-
cha (poreiva)59 em direção ao horizonte de suas O caráter de iniciação atribuído à dialética
expectativas epistêmicas e escatológicas, é propi- unifica-se em um discurso monocêntrico, englo-
ciar a abertura do espírito para o divino. Tal pas- bando a ciência filosófica e a religião de Platão,
sagem, verdadeiramente maravilhosa,60 tem fun- deitando por terra inúmeras tentativas de distin-
ção de salvação para quem se dedica exaustiva- gui-los mais claramente.65 Esse método de inves-
mente a procurar o conhecimento dos seres divi- tigação, definível como ciência do ser ou ciência
nos em si e por si mesmos:61 da experiência religiosa,66 opera sucessivas conversões no senti-
transcendente de comunhão com eles obtêm-se do de emprestar extensão metafísica à hierofania
pensamentos imortais e divinos, aos quais Platão própria às cerimônias de entronização dos misté-
se refere em Timeu e República. Estando no pon- rios, de aglutinar à teologia de cunho arcaizante já
to exato, vigilante, a alma converge completa- existente uma eidética conceitual renovadora.67 O
mente, adquire o notável poder de adentrar a ór- arrebatamento ao infinito pela fulgurante visão
bita circular própria aos deuses, de acompanhá- mística, a ej popteiva, transforma-se em contempla-
los em suas incalculáveis evoluções, de contem- ção (qewriva) das essências abstratas, as Formas,
plar o puro espetáculo dos modelos e de, com atividade intelectual, conexão direta do puro pen-
eles, participar do governo do mundo.62 A aqui- samento com o campo do inteligível, no qual
sição da extrema agilidade proporcionada pelo busca a transparência do significado de cada uma
exercício na verdadeira dialética – mais difícil que dessas unidades em si. A conversação, extrema-
compreender no que ele consiste é praticá-lo cor- mente elaborada, é colocada não somente no iní-
retamente63 – possibilita ao dialético empreender
cio sob tutela divina, como também seu desenro-
altos vôos ao santuário do impenetrável à tempo-
ralidade. Assim, integrado à grande família da 64 Sobre a identidade entre dialética e religião platônicas, cf. GOLDS-
raça divina, com seu pensamento ordenador CHMIDT, 1970, p. 12. O platonismo é um esforço para reduzir, tanto
no plano histórico quanto no plano dogmático, a antítese entre religião
aglutinante, numa perspectiva de universalização e filosofia, segundo GOLDSCHMIDT, 1963, p. 14.
mediante a qual olha o Todo em relação a ele 65 Afirma Goldschmidt que o pensamento religioso de Platão mantém
relações difíceis de precisar com seu pensamento filosófico. Sobre essa
fórmula geral, os intérpretes se poriam de acordo, sem dificuldade.
58 PLATÃO, 1946-1956. Fedro 266b. Mas enquanto, para uns, a religião de Platão tem especialmente um
59 Ibid. Rep. 532b. caráter político e, sobretudo, cósmico (F. SOLMSEN apud. GOLDS-
60 Ibid. Fil. 14c. CHMIDT, 1963, p. 13) para outros, ela exprime-se, pelo menos em
61 Ibid. Rep. 533b. seu início, na teoria das Formas. Cf. JAEGER, W. apud GOLD-
62 De acordo com SCHAERER (1944, p. 114), a dialética reproduz SCHMIDT, 1963, p. 13.
em escala reduzida o curso alado dos deuses, com a diferença que estes 66 JAEGER, 1977, p. 10-12.
sabem e os homens apreendem. 67 Para JOLY (1974, p. 27), a essência é expressa tanto na divindade do
63 PLATÃO, 1946-1956. Fil. 16b. qeiovn como na neutralidade do o[n.

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lar é, freqüentemente, entrecortado por preces e do inovações essenciais a elementos arcaicos ar-
invocações solenes. raigados na cultura grega.
É assim que a maioria das pesquisas filosó- Exigente em seu compromisso com o real,
ficas, em obras de cunho variado, desenvolve-se em reação a um tipo de racionalismo estrito
sob os auspícios de uma divindade: Eros preside emergente, Platão procura erradicar das interpre-
a pesquisa do Belo, em Banquete e Fedro, Afro- tações sobre o caráter das divindades tradicionais
dite, a do prazer, em Filebo, Zeus é patrono da in- tudo o que há de fatuidade e contradição. Empre-
quirição sobre as constituições, legislações e ende obra reparadora, mas conserva, do que foi
jurisdições, nas Leis.68 E, ao mesmo tempo, essas herdado, o que vislumbra serem propriedades ge-
conversações regradas são articuladas numa lin- nuínas do divino: eternidade, transcendência, ve-
guagem específica cujas fórmulas, neutras, co- racidade. Cunhadas com concisão, em sua visão
muns a todas as coisas (o Mesmo, o Outro, o Se- das Formas, com perfeição semelhante à de um
melhante, o Dessemelhante, o Ser, o Não-Ser), cristal, reverberam como princípios fundamen-
instauram um novo tipo de discurso: no neutro, tais de uma ciência religiosa ou teológica.
opera-se a dissociação do visível e do inteligível,69 Embora tenha vivido nesse momento em
da opinião e do conhecimento70 e, também, em
que o pensamento grego se jacta de tudo subme-
suma, como categoria de língua e de pensamen-
ter aos cânones da razão e, ao mesmo tempo, um
to, por sua função de reunião, de reagrupamen-
certo racionalismo vigilante esteja sempre pre-
to de todo o trabalho interrogativo e definicio-
sente no rigor de suas formulações, Platão aceita
nal da dialética.71
a existência dos deuses do Olimpo, da cidade, lo-
cais, infernais e os daivmone" e, também, outros
CONCLUSÃO: CONTRA O denominados deuses visíveis – representantes na-
RACIONALISMO EMERGENTE turais do elemento transcendente na realidade ex-
Os movimentos da vasta trajetória, descri- terna73 –, também cultuados pelo povo, em sua
tos pelas reflexões platônicas, não estabelecem, maioria. Com sua visão ordenadora de dialético,
por princípio, uma diferenciação mais detalhada procura criar nexos, multiplicar os pontos de
entre o teológico, o filosófico, o cosmológico, contato entre as crenças das massas e as dos in-
nem, conseqüentemente, a independência da ra- telectuais. Convicto de que a crença nos deuses
zão crítica perante a religião, como o fazem al- constitui a melhor salvaguarda da sociedade, ins-
guns dos representativos filósofos do século das titui, nas Leis, como atividade central da cidade, o
Luzes. Na época da Aufklãrung grega, ocorre o culto conjunto a Apolo, representando o tradicio-
divórcio entre o racionalismo abraçado por re- nalismo das massas, e a Hélio, significando a nova
duzido número de intelectuais e as crenças da religião natural dos filósofos.74 Ao sol, à lua e às
tradição religiosa professada pelas massas:72 e é o estrelas, deuses perceptíveis na ordem do céu vi-
pensamento de Platão, cujas raízes estão vital- sível – contra os iluministas que os consideram
mente vinculadas à sociedade, um pioneiro, ao nada mais do que pedras, sem qualquer poder de
propor uma contra-reforma estrutural, associan- interferência nos assuntos humanos75 – na socie-
68 Cf. PLATÃO, 1946-1956. Ba 177d, 198e, 201e, Fedro 242b-243c,
dade ideal são oferecidas preces e sacrifícios, pela
Filebo, 12bc, Leis I, 624a-625d. semelhança desses astros com os seres imortais
69 Ibid. Rep. 509d.]
inteligíveis.76
70 Ibid. Rep. 510a.
71 JOLY, 1974, p. 23.
72 A Aufklärung não se identifica com o movimento sofístico: é mais 73 PLATÃO, 1946-1956. Tim. 28c.
74 Ibid. Leis, 885b.
antiga e tem origem na Jônia do século IV, com Hecateu e Xenófanes.
Posteriormente, possui como teóricos Anaxágoras e Demócrito, que 75 Entre os signatários da Aufklärung, Eurípides, inspirado em Anaxá-
criam explicações racionalistas para os mitos, pregam a relatividade das goras, refere-se ao sol como um torrão dourado. Cf. DODDS, 1965, p.
idéias religiosas, desqualificam o culto das imagens e ofendem aos deu- 175-178.
ses, duvidando de sua existência. 76 PLATÃO, 1946-1956. 821b-d, 886a.

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PRINCÍPIOS METAFÍSICOS DA NOVA lebram o Céu e o Oceano como geradores de to-


TEOLOGIA dos os deuses, em detrimento do que é primeiro
O deus que, segundo Platão, deve ser con- na organização e na conservação da excelência do
siderado supremo, luz superior a tudo em digni- Todo.79
dade e potência – aquilo que de mais brilhante há Entretanto, na perspectiva ética desse espí-
no ser inteligível –, não é facilmente aceito pelas rito sinótico, erótico, ávido por preencher inter-
massas.77 Educado pela teologia disseminada pe- valos, é imprescindível recuperar os liames com o
los maiores poetas cosmogônicos da Grécia – que há de mais precioso entre os ingredientes te-
Homero e Hesíodo –, que atribui condutas ignó- ológicos da primeira filosofia: as fórmulas que de-
beis aos deuses, incompatíveis com sua natureza, terminam a anterioridade do que é psíquico e ra-
o povo ateniense apresenta graves deformações cional em relação a tudo o que é matéria. Pro-
morais. Contra esses perniciosos germes, o filó- posições textuais que defendem a divinização do
sofo propõe aquela teologia que crê ser a mais sã, universo nas partes e no Todo acabaram por co-
fundamentada num deus bom e veraz que, sobe- locar ao abrigo dos séculos esses discursos escri-
ranamente, justifica a totalidade do real.78 Pois, na tos perfeitos, que, com palavras tão pertinentes a
ignorância da perfeição que constitui a essência seus inefáveis Objetos, conseguiram tornar pos-
divina, os grandes mestres da literatura grega ce- sível o diálogo entre o racional e o místico pre-
sentes na cultura da época,80 reuni-los em sua
77 Ibid. Tim. 28c.
78 Ibid. Rep. 379a-383c. Platão opera uma verdadeira purgação obra sob a roupagem de uma nova linguagem e,
(kavqarsi") das concepções do divino: por oposição à teologia dos assim, disseminá-los à posteridade.
poetas, representa Deus na verdade de sua natureza (Rep. 379a). É
definido, na República, como essencialmente bom (379b), absoluta-
mente simples (381b) e veraz (382e); e em Fédon, como único em sua 79 Ibid. Leis, 903c.
forma e verdadeiro (83c, 84a), colocações reiteradas nas Leis (X, 885d). 80 SCHUHL, 1949, p. 379-380.

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______. Essai sur la Formation de la Pensée Greque. Paris: PUF, 1949.

Dados da autora
Doutora em filosofia antiga (Unicamp),
professora de filosofia antiga do Departamento de
Filosofia na Unesp, campus de Marília, aposentada,
atualmente pós-doutoranda em filosofia antiga no
Departamento de Filosofia do IFCH/Unicamp.

Recebimento artigo: 15/ago./03


Consultoria: 28/ago./03 a 12/set./03
Aprovado: 15/out./03

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