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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 27: 7-14 NOV.

2006

DOSSIÊ POLÍTICA INTERNACIONAL:


TEMAS EMERGENTES

Apresentação

É consensual entre os especialistas de Rela- zação do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o


ções Internacionais que o fim da Guerra Fria teve Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organi-
como um de seus principais resultados a frag- zação Mundial do Comércio (OMC)) levou, com
mentação da agenda internacional, ou seja, o fato grande visibilidade nos meios de comunicação, ao
de ela tender a ser menos hierarquizada. Assim, o surgimento do chamado movimento globalista.
recuo da excessiva preocupação com assuntos de Para quem considera a teoria das Relações Inter-
segurança nacional e internacional de natureza nacionais em relação ao tipo de atores, esses pro-
militar cria brechas teóricas e institucionais para testos, embora sejam de ação difusa e temporária,
questões da agenda social global que, embora fos- levam a pensar o sistema internacional a partir de
sem pensadas e discutidas durante a Guerra Fria, atores não-estatais, que redefiniriam a noção de
ainda não tinham suficiente destaque na ação in- espaço público internacional, desde Vestfália tão
ternacional dos estados nem na de seus policy- limitado ao Estado. Exagero ou realidade, o dado
makers. A década de 90 do recém-concluído sé- relevante a ser levado em conta era que abarcar
culo XX tem sido considerada a época das confe- uma causa global social aparecia como uma nova
rências sociais globais pela imensa proliferação de possibilidade de impulsionar a mudança em um
encontros promovidos pelo Conselho Econômico mundo que se desenhava, por assim dizer, meio
e Social da Organização das Nações Unidas morno desde o definhar da Guerra Fria.
(Ecosoc). Esses encontros tratam de um leque
O que esse desenvolvimento significava tam-
amplo de temas, que vão desde os direitos huma-
bém era que as duas metáforas básicas em que
nos até o crime organizado e os ilícitos
operava o mundo da Guerra Fria (Leste-Oeste,
transnacionais. Um dos temas a que se atribuiu
que frisava o embate ideológico, e Norte-Sul, que
maior prioridade foram os impactos ambientais
chamava a atenção para o dissenso e distância
da ação humana no planeta – não por acaso, o
entre países pobres e ricos) haviam cedido espa-
encontro que inaugurou a agenda social global foi
ço para um novo mainstream da política interna-
a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e
cional, em que um tipo de ator mais flexível e de
Desenvolvimento de 1992. Esse amplo esforço
atuação transnacional era passível de ser incorpo-
diplomático reconhecia que era possível pensar-
rado nos processos de decisão global. Essas in-
se, no aspecto mais teórico, na emergência de uma
fluência e possibilidade devem ser bem entendi-
ordem ecológica internacional de características
das: não que o Estado tivesse ou tenha perdido o
próprias, mas também reconhecia que a adminis-
controle dos aspectos militares e de segurança
tração dos conflitos de interesses que derivam
nacional e internacional relacionados à high
dessa ordem deve dar-se pela via de sua
politics, mas, certamente, o funcionamento
institucionalização em regimes internacionais eco-
heteróclito das atividades e das iniciativas priva-
lógicos e por meio de soluções políticas e técni-
das transnacionais demonstra que os estados, to-
cas tópicas, dependendo da matéria ambiental em
mados individual ou coletivamente, não podem
questão.
responder a um certo número de necessidades e
Ao mesmo tempo, os protestos contra as de- de demanda que se manifestam tanto no interior
sigualdades e a injustiça internacionais praticadas dos estados como além de suas fronteiras
no interior do multilateralismo de poder represen-
Ora, a premissa de que o Estado continua a
tado por algumas organizações (como a Organi-
ser o principal agente do sistema internacional e

Recebido em 17 de março de 2006 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 26, p. 7-14, nov. 2006
Aprovado em 20 de março de 2006 7
APRESENTAÇÃO

que os processos da política internacional hard ou não ser neoliberais – refletiu uma divisão de
continuam a ter sua importância não significa que parcela da sociedade civil e de instituições como
questões importantes que têm a ver com a pró- os poderes Executivo e o Legislativo, originando
pria soberania estatal não sejam passíveis de se- uma cisão entre segmentos neodesenvolvementista
rem questionadas Aliás, para ficarmos com um e liberal. “Neste quadro, a politização da socieda-
exemplo, a redefinição da soberania estatal, tendo de brasileira [...] chegou ao âmbito diplomático,
por pano de fundo o tema dos direitos humanos, fazendo que se estabelece-se uma diferenciação
é uma questão que já vem sendo constatada des- entre posturas próximos a um ideário
de os anos 1970 pela atuação humanitária de ur- desenvolvimentista – e conseqüentemente nacio-
gência de algumas organizações não-governamen- nalistas – e posturas mais sintonizadas com o
tais internacionais como os Médicos sem Fron- neoliberalismo, com um sentido mais cosmopoli-
teiras e Medicina do Mundo. Como sustenta ta” (HIRST & PINHEIRO, 1995, p. 9).
Vilanova, comentando a atuação dessas organiza-
Também entre essas tendências realçadas pelo
ções não-governamentais (ONGs), “O resultado
pós-Guerra Fria há um forte ressurgir da “região”.
final é sempre o mesmo: vem-se aceitando que o
Poder-se-ia até sugerir que especialmente a Amé-
dever de ajuda humanitária leva diretamente ao
rica Latina volta a ser importante, se não pelo im-
direito de ingerência por motivos humanitários nos
pacto e pelo peso econômico, talvez devido aos
assuntos internos de um Estado. Isto é provavel-
desdobramentos políticos que se vêm sucedendo
mente uma das maiores conquistas da ação hu-
desde os anos 1990. E não há dúvida de que o
manitária de urgência de nosso tempo”
início do novo milênio – o ano de 2006 em parti-
(VILANOVA, 1995, p. 97).
cular – tem sido bastante movimentado na políti-
Em suma, a agenda social global, no seu sen- ca latino-americana. Destaque-se, entre outros
tido mais amplo de realização oficial e não-estatal fatos, o impacto da ascensão de Hugo Chávez na
de eventos internacionais, assim como o desen- região sul-americana e os temores que suscita,
rolar de movimentos de ação internacional menos com o ingresso da Venezuela no Mercosul. Por
orgânicos e mais esporádicos (os antiglobalistas), outro lado, a eleição de Evo Morales na Bolívia foi
abriram o espaço necessário para a ampliação do seguida por uma conturbada e polêmica
sistema internacional por via de novos atores, den- (re)nacionalização da indústria boliviana do gás e
tre os quais destacam-se os ambientalistas e de do petróleo. Não menos tenso foi o pleito eleitoral
direitos humanos. peruano, que se encerrou com a vitória e a volta
ao poder do candidato da Alianza Popular Revolu-
Mas as redefinições de agendas operadas não
cionaria Americana (APRA), Alan García. No iní-
se limitam ao âmbito sistêmico: há uma forte ten-
cio de julho realizaram-se as eleições presidenci-
dência a considerar a política externa como uma
ais no México sob forte expectativa da eleição do
esfera também incluída na esfera pública, isto é,
candidato do candidato de esquerda Manuel López
também submetida à regulamentação constitucio-
Obrador, do Partido de la Revolución Democráti-
nal interna e a processos de accountability. Com
ca (PRD) e no mês de agosto noticiou-se uma
isso se reafirma a tendência a relativizar idéias
repentina doença do líder cubano Fidel Castro,
bastante tradicionais sobre a separação entre as
permitindo uma série de conjeturas sobre o futu-
políticas interna e externa, que durante tanto tem-
ro político do regime político da ilha e sobre a
po o pensamento positivista realista estabeleceu
própria inserção de Cuba no sistema
como um dado quase imutável. No Brasil, essa
interamericano. Para onde apontam estes aconte-
dinâmica tem resultado no questionamento da idéia
cimentos e que tendências políticas eles traduzem?
tão fortemente arraigada durante décadas do
insulamento burocrático da política externa. Acom- Talvez não seja possível generalizar, dadas as
panhando essa mudança institucional brasileira, especificidades de cada país, mas no conjunto
uma importante mudança política deu-se no perfil esses agitados momentos políticos apontam para
dos formuladores de política externa: desde o go- um crescente mal-estar de sociedades latino-ame-
verno Collor de Mello uma característica emer- ricanas com suas elites políticas tradicionais: es-
gente na chancelaria brasileira tem sido a politização ses momentos eleitorais transformaram-se em dis-
dessa instituição. O debate sobre o conteúdo das putas polarizadas entre os setores políticos tradi-
reformas estatais – por exemplo: se elas deveriam cionais e os setores emergentes, ambos impulsio-

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nados pelo apoio de setores socais que se alinham Latina, de acordo com a qual os indígenas da re-
com a política tradicional ou, no outro extremo, gião andina têm uma percepção bastante negativa
que se identificam com as promessas de mudan- da igualdade legal – somente 27,8% acreditam que
ça oferecidas pelas novas personagens que en- “sempre ou quase sempre conseguem fazer valer
tram em cena na política latino-americana. seus direitos”. Essa percentagem só supera a ca-
tegoria dos “pobres”, entre os quais 27,8% acre-
Mesmo quando derrotados no voto, algumas
ditam conseguir fazer valer seus direitos. Mas, de
dessas novas ou antigas opções não podem ser
qualquer maneira, esse índice é superior ao do
considerados derrotados politicamente. No Peru,
México, um dos países latino-americanos de mais
Ollanta Humala conseguiu que um grosso setor
alta composição étnica indígena, em que apenas
de setores de mais baixa renda se agrupasse em
7,5% dos indígenas têm uma boa percepção so-
torno de seu discurso nacionalista – e foi a classe
bre o respeito da legalidade de seus direitos (PNUD,
média e setores de mais alta renda que, assusta-
2004, p. 108).
dos com esse discurso e com a possibilidade de
replicação do estilo e do pensamento chavistas, Mas seria errôneo pensar que são apenas as
decidiram apertadamente em favor do candidato “massas em disponibilidade” o que encontram
da APRA. O mesmo suposto é válido para outra essas novas lideranças no seu caminho ao poder.
nova personagem da política latino-americana, o Ao contrário dos populismos do passado, do tipo
mexicano Manuel Lopez Obrador. Embora as ur- Getúlio Vargas ou Perón, as massas que os cha-
nas confirmem sua derrota eleitoral, sem dúvida mados neopopulistas encontram dispõem de um
não é pouco o espaço político ganhado pelo seu certo grau de organização e de autonomia de ob-
partido (PRD) e pela sua própria figura – amplo jetivos. Como resultante, se é bem verdade que
demais para considerá-los derrotados. E o que é alguns dos movimentos sociais identificam-se em
mais significativo: a afirmação do espaço político princípio com as metas das novas lideranças, tam-
de López Obrador no México pode ter como re- bém é certo que o posterior apoio desses movi-
sultado o aprofundamento da fragmentação do mentos sociais condiciona-se ao desenvolvimen-
sistema partidário mexicano, transformando-se em to de políticas públicas de inclusão. O efeito mais
um sistema multipartidário, algo pouco imagina- profundo dessa “barganha” é que a instabilidade
do até há alguns anos no México do Partido Re- política torna-se uma espécie de fantasma que
volucionário Institucional (PRI). ronda os sistemas políticos latino-americanos des-
de a década de 1990.
Um segundo elemento doméstico da maior
importância também se deduz dos desenvolvimen- Também é importante destacar que o desen-
tos mais recentes da política sul-americana. No- rolar dos acontecimentos de 2006 aprofundaram
vos setores sociais fazem sua entrada em cena, à uma redefinição das relações dos EUA com a
procura de representação política. Nos casos da América Latina. Em geral, com a exceção de Ál-
Bolívia, do Peru e do México é possível até falar varo Uribe na Colômbia, as novas lideranças mos-
que esses novos grupos sociais são constituídos tram um tom mais crítico em relação às políticas
por setores étnicos indígenas, tão longamente ex- comercial e de segurança dos EUA, embora isso
cluídos da representação política. Em princípio não as impeça de, em alguns casos, negociar acor-
poder-se-ia pensar que as novas lideranças, como dos bilaterais com os EUA. Tome-se novamente
Evo Morales, Humala e Lopez Obrador, chama- como exemplos os casos da região andina e do
das de neopopulistas por alguns analistas, têm-se México. Logo após se dar como um fato a assi-
aproveitado de “massas à disposição” e sido sufi- natura do Tratado de Livre Comércio (TLC) en-
cientemente hábeis e sensíveis para incorporar nas tre os EUA, Colômbia, Equador e o Peru (a Bolí-
suas plataformas políticas e em seus discursos as via deveria ser incorporada posteriormente) em
demandas desses setores sociais (o que, sem dú- 2005, já em meados de 2006 só a Colômbia assi-
vida, fornece-lhes maior legitimidade). nara o TLC. No Equador, a substituição de Lúcio
Gutierrez por Alfredo Palácio significou um aban-
Em principio, a hipótese da instrumentalidade
dono do alinhamento que primeiro mantivera com
dos novos setores sociais poderia ser apoiada pela
os EUA durante mais de três anos de governo. No
tendência detectada por pesquisa do Programa da
Peru, mesmo antes da eleição de Alan García já
Organização das Nações Unidas para o Desenvol-
existiam sinais governamentais de reticência em
vimento (PNUD) sobre a Democracia na América

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APRESENTAÇÃO

relação aos termos do tratado com os EUA. Cer- como política pública e às hipóteses relacionadas
tamente que nessas circunstâncias parece com- com o futuro político da região sul-americana. Eles
preensível que os EUA estivessem longe de torcer foram escritos de maneira densa por um conjunto
por uma vitória de Lopez Obrador no México. Não de jovens professores e pesquisadores de Rela-
porque esse candidato fosse arriscar-se a retirar ções Internacionais no Brasil.
o México do Tratado de Livre Comércio da Amé-
No primeiro deles, escrito por Paulo Esteves,
rica do Norte (Nafta) – o México hoje em dia de-
professor da Pontifícia Universidade Católica de
pende muito do mercado norte-americano para
Minas Gerais (PUC-Minas), o autor vale-se do
fazer opções tão arriscadas – mas, em virtude da
método genealógico e de análises pós-modernis-
pressão dos setores campesinos mexicanos, so-
tas baseadas em Michel Foucault para estudar as
bretudo os produtores de milho, Lopez Obrador
condições de existência do Estado territorial mo-
poderia forçar uma renegociação dos termos do
derno. É uma abordagem nova no Brasil, que con-
intercambio agrícola, já que nos atuais momentos
centra esforços em determinar como essa forma
a maior competitividade do milho norte-america-
política que emergiu na Idade Clássica (séculos
no tem levado à falência muitos produtores mexi-
XVII e XVIII) prosperou por meio da articulação
canos.
de um regime de poder próprio, cujo resultado
No aspecto da segurança dois países latino- seria a emergência do que hoje conhecemos como
americanos são problemáticos em perspectiva: soberania. O argumento principal do autor é que a
Cuba e Venezuela. Os fatos conjunturais sinali- soberania na Idade Clássica foi capaz de articular
zam claramente isso. A repentina doença do líder poder e saber em um mesmo quadro, produzindo
cubano Fidel Castro gerou nos EUA um duplo um conjunto de dispositivos, estratégias e
sentimento de alegria e de preocupação. O pri- tecnologias de poder que terminaram por estabe-
meiro aspecto é compreensível, já o segundo tem lecer modos de conhecer e de agir no mundo que
a ver com um cenário em que a desaparição de tinham como referência ubíqua o Estado territorial
Castro leve a uma fragmentação social e política soberano. Dessa maneira, Esteves, bem dentro
da ilha, pressionando a fuga de milhares de cuba- daquilo que se vem convencionando chamar de
nos rumo ao litoral dos EUA. Por outro lado, tam- análises pós-positivistas, apresenta uma proposta
bém temem as autoridades norte-americanas as de explicação do fenômeno da soberania em que
conseqüências imprevisíveis da desaparição de os elementos do saber e do papel das idéias apare-
Castro na comunidade cubana da Flórida. cem como central nessa formação histórica.
Também a Venezuela preocupa os EUA. Até Na seqüência, Rossana Rocha Reis, professo-
2002 a América Latina era uma região que gasta- ra de Relações Internacionais da Universidade de
va pouco com armas, despendendo uma média São Paulo (USP), entra diretamente na análise de
de 2,1% de seu produto interno bruto com arma- agenda social global pela via do tratamento dos
mento, comparado aos 3,4% dos Estados Unidos direitos humanos. Seu artigo foca os esforços
(ZIBECHI, 2005). Mas a situação pode estar mu- analíticos na identificação dos fatores explicativos
dando. O que mais preocupa o governo dos EUA do crescente reconhecimento internacional dos
são as aquisições de 100 000 fuzis automáticos direitos humanos desde o fim da II Guerra Mun-
AK-47 de tecnologia militar avançada, compra- dial e como esse reconhecimento tem afetado a
dos pelo governo da Venezuela do governo russo arena da política internacional. A autora faz um
no primeiro semestre de 2005, assim como acor- balanço do debate que insere os direitos humanos
do com o governo espanhol, do segundo semes- nas relações internacionais; assim, uma primeira
tre de 2005, que permitiu à Venezuela adquirir oito conclusão é que os argumentos sobre o papel dos
barcos patrulheiros e 12 aviões de transporte es- direitos humanos na política internacional está
panhóis. Teme-se no fundo uma minicorrida cindido entre os que os observam em uma pers-
armamentista na região. pectiva meramente discursiva, de retórica, para
encobrir interesses particulares, e aqueles que
O conjunto de artigos que este número da Re-
enxergam em sua afirmação um potencial trans-
vista de Sociologia e Política apresenta enfren-
formador da ordem internacional, uma espécie de
tam, de maneira direta ou indireta, esse conjunto
nova estrutura de referência para aquilo que é
de temáticas relacionadas à nova agenda social
mudança e aquilo que não o é na política interna-
internacional, à consideração da política externa

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cional. Outro argumento forte da autora é que a mecanismo normativo de segurança coletiva. A
adoção de mecanismos coercitivos com maior questão central a ser levantada é: como adequar
capacidade de enforcement para a proteção dos seu principal instrumento de ação, o uso dos re-
direitos humanos, como é o caso das chamadas cursos militares para auto-defesa, aos desafios
intervenções humanitárias, deriva em desenvolvi- impostos pela natureza multifacetada dos desafi-
mentos mais complexos pelos efeitos que isso os de segurança identificados com o mundo pos-
chega a ter sobre conceitos e práticas historica- terior à Guerra Fria?
mente sedimentadas, como a soberania.
A autora reconhece que, no entanto, os decision-
Ao artigo de Reis segue-se um interessantíssi- makers da OTAN não são alienados nem autistas
mo de Juliana Lyra Viggiano, jovem doutoranda a respeito desse problema. A OTAN teria reavaliado
do Departamento de Ciência Política da USP e suas funções e seu papel no contexto europeu em
professora de Relações Internacionais da Univer- conformidade com essa leitura heterodoxa da se-
sidade Anhembi Morumbi de São Paulo. Na gurança introduzida pela natureza multidimensional
perspectiva dos regimes internacionais e com base da segurança e dos eventuais elementos
nos estudos de casos das guerras de Bósnia e do perturbadores da paz. Assim, a autora identifica
Cosovo, a autora aborda as transformações uma primeira mudança significativas, de natureza
sistêmicas do período posterior à Guerra Fria e normativa, desde 1991, ano em que seus mem-
como elas afetaram o regime da Organização do bros ratificaram os novos objetivos estratégicos
Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Essas trans- da aliança. Sem que o conceito seja utilizado dire-
formações teriam colocado temas de política soft, tamente por Viggiano, seus argumentos parecem
como aspectos econômicos, de direitos humanos avançar no sentido de postular que a OTAN avan-
e de meio ambiente, em posições de destaque na çou no período posterior à Guerra Fria para a afir-
agenda internacional, ao contrário do privilégio mação de uma verdadeira comunidade de segu-
concedido às questões estratégico-militares. Ar- rança: “A OTAN redefine seu papel ao associar
gumenta Viggiano que o viés essencialmente po- diretamente a noção de segurança à estabilidade
larizado da agenda militarista dominante nos anos regional, derivada da consolidação dos valores
da Guerra Fria inviabilizava a elaboração de uma democráticos e liberais no continente, sobretudo
pauta comum de segurança a todos os estados; com referência aos direitos humanos. A
nesse sentido, seu argumento avança a tese de institucionalização normativa da democracia libe-
que, com a promoção dos temas de terceira gera- ral remete-nos ao interessante debate do papel das
ção, os de política soft, as esferas do discurso idéias enquanto variáveis explicativas para a ação
internacional, inclusive os elementos relacionados externa dos estados. Se, por um lado, não há muita
à segurança, foram afetados. A partir desse mo- controvérsia acerca da importância da questão
mento, seria artificial a separação entre as gran- ideológica como causa motivadora do agir na po-
des áreas englobadas pelas relações internacionais. lítica, por outro lado as conseqüências esperadas
Também o conceito de interdependência, pensa- das idéias enquanto causas diferem nas diversas
do originalmente em uma dimensão economicista, perspectivas teóricas”.
apresenta uma crescente complexidade, pois di-
Por outro lado, a institucionalização dos valo-
versos temas da política externa dos estados não
res da democracia liberal nas diretrizes normativas
podem mais ser desvinculados, nem para efeitos
da OTAN, na realidade, refletiriam, ao menos par-
analíticos e menos ainda no aspecto prático, de
cialmente, a incorporação pelos países-membros
temas domésticos. Essas mudanças certamente
desses mesmos valores em suas percepções do
afetam o conceito de segurança, que passa a ter
que devem ser as relações interestatais. Da mes-
uma “natureza multidimensional, ou seja, “já não
ma forma que a maleabilidade assumida pelas clá-
pode mais ser visada em termos de acréscimo de
usulas do Conceito de Segurança em 1999 acerca
poder” (VILLA, 1999, p. 177).
da interferência armada da organização em favor
Para a autora o reconhecimento desse caráter da manutenção da estabilidade européia, conquis-
multidimensional dos assuntos de segurança sus- tada pela perfeita observação desses valores, evi-
cita um problema novo para a OTAN, dada que dencia a fragilidade desse processo no âmbito do
suas natureza e estrutura institucional até o fim da uso da máquina militar no cenário internacional
Guerra Fria estavam intimamente relacionadas ao Assim, com uma linguagem teórica bastante

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APRESENTAÇÃO

institucionalista, a autora conclui que as idéias clusões da autora são bastante interessantes: é
institucionalizadas pela OTAN moldam as prefe- possível identificar um papel instrumental e estra-
rências de acordo com as circunstâncias e que a tégico das instituições na luta pelo poder nas rela-
heterogeneidade com que os eventos afetam os ções internacionais: “Em outras palavras, não são
diferentes atores envolvidos nas decisões demons- apenas regras formais e embates frontais que con-
tra a incompleta internalização dos valores demo- tam nas relações internacionais”. Sustenta a auto-
crático-liberais pela opinião pública e pelos ra uma conclusão institucionalista: as instituições
formuladores de política acerca da legitimidade dos regimes internacionais importam na competi-
de agir-se exclusivamente em nome das idéias. A ção internacional e os atores não-estatais impor-
participação ativa da aliança nos conflitos da Bósnia tam nos regimes internacionais. Mas, por outro
(1992-1995) e do Cosovo (1999) instiga a pensar lado, a autora não é ufanista nem pessimista quanto
o caminho futuro para o qual se movimenta a re- ao futuro do Estado e o papel dos atores não-
lação entre valores, preferências e organizações estatais da sociedade civil. Não haveria provas
internacionais. contundentes de que o papel histórico dos esta-
dos nacionais e o modo de competição internaci-
Dando seqüência aos artigos de Reis e
onal por poder esteja-se ponderando, mas, sim –
Viggiano, Ana Paula Tostes, professora convida-
e esta é uma interessante tese que a autora propõe
da e pós-doutoranda em Relações Internacionais
–, “que novos instrumentos de pressão e domina-
no Departamento de Ciência Política da USP apre-
ção passaram a ser cada vez mais importantes em
senta uma interessante abordagem teórico-
um mundo pós-guerra em que comunicação, co-
empírica sobre o impacto da agenda ambiental nas
nhecimento, ciência e informação são cada vez
relações internacionais. A autora identifica na Con-
mais valorizados”.
ferência da Organização das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento (Unced), ocor- Fecha esse grupo de questões emergentes
rida de 3 a 14 de junho de 1992 no Rio de Janeiro, Feliciano Sá de Guimarães, jovem pesquisador e
o marco que acelerou a assinatura de acordos in- professor de Relações Internacionais da Faculda-
ternacionais sobre o meio ambiente e para o apa- de Belas Artes de São Paulo. O artigo trata de uma
recimento de fóruns paralelos às conferências in- temática que pouco a pouco vem sendo resgatada
ternacionais em somente os estados têm repre- nas análises de Relações Internacionais, a saber,
sentação. as relações entre países desenvolvidos e em de-
senvolvimento em face de arenas de negociação
Na verdade, o objetivo da autora é cognitivo:
multilateral. Conforme diz o autor, o artigo pre-
identificar “o princípio e o valor de que a preser-
tende compreender como as negociações da Ro-
vação do planeta é um interesse social e não ape-
dada Uruguai (1986-1994) e as pressões dos paí-
nas estatal e tem caráter universal”. Esse princí-
ses desenvolvidos tiveram efeito sobre a
pio permearia as iniciativas normativas, expres-
reorientação dos posicionamentos dos países em
sas em acordos internacionais, com a prolifera-
desenvolvimento no âmbito multilateral do comér-
ção de instituições internacionais e agrupamentos
cio. Em outras palavras, Guimarães trata de reco-
de setores da sociedade civil interessadas no meio
nhecer se o regime de comércio gerado com a
ambiente. A constatação desse princípio permiti-
Rodada teve efeito sobre as preferências e esco-
ria identificar uma nova “força profunda” movi-
lhas dos países em desenvolvimento. Com esse
mentando-se na política internacional; ou, nas
intuito o autor revisa as estratégias de ambos os
palavras de Tostes, a emergência de uma nova
grupos de países (desenvolvidos e em desenvol-
concepção de política de meio ambiente que co-
vimento) na condução e construção das regras do
meça a forjar-se, tendo como pano de fundo o
regime, mas, mais importante, o autor não desco-
processo de globalização, mas, além disso, um
nhece as injunções que derivam de práticas de
novo agente social, de dimensão também global: a
assimetrias de poder entre ambos os blocos de
sociedade civil global.
países. Assim, o argumento de Guimarães acaba
Assim, uma pergunta-chave para a autora é: conduzindo a uma interessante reconstrução do
como o aumento de regras internacionais está as- processo que refletia um ambiente bifurcado de
sociado ao aumento do interesse e da diversidade coerção e pactuação assimétrica que teria como
de atores interessados e da maior participação resultado os países em desenvolvimento adota-
sobre um tema de caráter internacional? As con- rem “a liberalização comercial como única estra-

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tégia comercial possível ao final das negociações”. ência Política da USP. O artigo analisa a relação
entre regimes políticos domésticos e integração
Dois ótimos artigos compõem a parte dedicada
regional na América do Sul. A tese central dos
à América do Sul. O primeiro é de Marcelo
autores é que uma convergência política maior
Coutinho, que coordena com Maria Regina Soa-
com outros regimes de esquerda da região
res de Lima o Observatório de Política Sul-Ame-
aprofundará a integração sul-americana, encerran-
ricana do Instituto Universitário de Pesquisas do
do um paradoxo ainda não suficientemente explo-
Rio de Janeiro (Iuperj). Centrando a análise na
rado pela literatura de integração mais recente.
mudança política nos países andinos, a tese cen-
Possivelmente o anúncio do governo Chávez, de
tral de Coutinho é que entre os problemas princi-
fazer da Venezuela um governo socialista, aumen-
pais que atingem a América do Sul contemporâ-
te ainda mais as possibilidades analíticas desse
nea, destaca-se a constatação de que, desde a de-
paradoxo. Os autores também questionam a idéia
mocratização política e liberalização econômica
de que os governos de esquerda tenham maior
nas últimas décadas do século XX, seus gover-
propensão a conferir apoio político ao regionalis-
nos nacionais são eleitos pelas “ruas”, com os
mo sul-americano de maneira simples, pois é igual-
votos oriundos, sobretudo, das populações me-
mente verdadeira a idéia de que regimes
nos privilegiadas, mas querem ou simplesmente
presidencialistas de esquerda são menos propen-
são forçados a agir em maior sintonia com os
sos à supranacionalização de normas e de cessão
“mercados” e com todas as exigências de refor-
de soberania a instâncias supranacionais. Muito
mas e ajustes a um mundo cada vez mais
possivelmente os autores associam esses gover-
globalizado e interdependente que isso implica.
nos de esquerda na região a traços nacionalistas.
Desse modo, ativa-se um mecanismo de policy
Mas não seria essa uma observação igualmente
switch derivado de um estelionato eleitoral em que
válida para o Brasil, em que, independentemente
a expectativa dos eleitores em termos de políticas
da natureza do regime político, a tendência sem-
públicas é deliberadamente frustrada pelos novos
pre tem sido de reservas e ressalvas permanentes
governos.
a respeito da institucionalização supranacional?
De acordo com o autor, essa contradição cons-
Finalmente, Michelle Ratton Sanchez, profes-
titui a casuística de grande parte das crises políti-
sora de Direito e Relações Internacionais da Fun-
cas na região nos últimos 20 anos, cuja força pro-
dação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), e
funda relaciona-se com movimentos de mudança
um grupo de colaboradoras apresenta uma pes-
que não ocorrem somente na América Latina, mas
quisa inédita sobre a política externa brasileira como
que nela assume proporções bastante nítidas, com
uma política pública. O artigo propõe uma inda-
variações significativas entre os países. Mas
gação direta para o leitor: a concepção da política
Coutinho não generaliza a instabilidade e a mu-
externa como uma política pública não seria uma
dança para toda a região sul-americana: elas seri-
antinomia per se? Afinal, como dizem as autoras,
am mais fortes nos países andinos que no Cone
a “política externa sempre foi considerada como
Sul. A explicação para isso estaria no sistema parti-
‘externa’ aos Estados e distinta de toda e qualquer
dário de cada região: enquanto nos países do Cone
política doméstica”. Por outro lado, questionam
Sul o sistema partidário conseguiu sobreviver ao
as autoras que essa percepção poderia aprofundar-
longo dos anos, possibilitando a existência de ca-
se, no caso de levar-se em conta a forte percep-
nais institucionalizados de expressão dos conflitos
ção de que as consideradas políticas públicas stricto
e facilitando a inclusão de novos atores políticos e
sensu são as políticas domésticas, devido às suas
sociais, nos Andes os sistemas partidários tradicio-
possibilidades de gerar “situações socialmente
nais enfraqueceram-se e em seu lugar não emergi-
problematizadas”.
ram novas estruturas partidárias, capazes de cum-
prir as mesmas funções dos países do Cone Sul. Na verdade, de entrada o artigo já traz um de-
safio: provar que a política externa é uma política
Um segundo artigo na mesma linha de argu-
pública – ou solucionar esses impasses, como
mentação de Coutinho é o de Janina Onuki, pro-
preferem as autoras. Para encarar esse desafio
fessora de Relações Internacionais da Universida-
elas fixam dois pressupostos: um mais suave, o
de Estadual Paulista, campus de Franca (UNESP-
de que as políticas interna, externa e internacional
Franca), e de Amâncio de Oliveira, professor de
compõem um continuum de processo decisório,
Relações Internacionais do Departamento de Ci-

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APRESENTAÇÃO

e outro de argumentação mais forte: a política as políticas interna, externa e internacional”. To-
externa não se diferencia das demais políticas mando emprestado o conceito de Keohane e Nye,
públicas. Esses pressupostos apóiam-se um ao as autoras reconhecem que a interdependência afeta
outro de modo a permitir a reconcepção do pro- duas dinâmicas fundamentais da política externa:
cesso decisório da política externa sob as refe- no âmbito doméstico o processo decisório e, no
rências das políticas públicas. âmbito externo, o processo de coordenação de
ações coletivas.
As autoras sustentam o pressuposto, ou o re-
conhecimento, de que há grandes desafios –diría- Todo esse set de artigos, sem dúvida, são ten-
mos riscos – do isolamento da política externa como tativas de respostas atualizadas e densas a proble-
uma política distinta e com autonomia em relação mas de política internacional contemporâneos tão
às demais, quando se considera a intensificação dos visivelmente colocados a descoberto no inicio do
fluxos de interação entre os ambientes interno e novo milênio. Os leitores terão a rica oportunida-
internacional. Para as autores o próprio discurso de de procurar respostas a paradoxos, mas tam-
de atores relevantes do sistema internacional reco- bém de descobrir novos problemas levantados por
nhecem de maneira explícita uma dinâmica funda- esse conjunto de pesquisas que a Revista de Soci-
mental das relações internacionais, o fato de viver- ologia e Política tem a honra de apresentar neste
mos em um “mundo interdependente”: “Tais dis- número.
cursos políticos evidenciam as inter-relações entre
Rafael Duarte Villa

Rafael Duarte Villa (rafaelvi@usp.br) é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo
(USP), professor de Relações Internacionais do Departamento de Ciência Política e Diretor do Núcleo
de Pesquisas em Relações Internacionais (NUPRI) da mesma universidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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nuevo militarismo? Disponível em : http://
www.voltairenet.org/es. Acesso em :
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