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Confissões de um Palhaço - 26 de julho de 2009

Por Mercedes Halfon


Originalmente no link:
http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/9-5447-2009-07-27.html

*** No começo dos anos 80, quando se foram os militares, descobriu que as praças podiam ser
imensos cenários gratuitos e se converteu no precursor da arte de rua argentina. Nos anos 90 já
era uma figura emblemática com ponto semanal na praça Francia. Depois, saiu pelo mundo com
seu solo, o que o tornou um especialista nos humores iberoamericanos: fez rir na Espanha com o
franquismo, na Colômbia rodeado de metralhadoras, nas favelas brasileiras e no calçadão da Villa
Gesell. Organizou as míticas Convenciones de Malabares, Circo y Espectáculos Callejeros. O
modo como destroçou o arquétipo do palhaço ingênuo só agigantou sua figura. E agora, depois de
muitos anos, Chacovachi retorna à Argentina para apresentar um espetáculo em que põe à prova
sua própria teoria: a máxima consagração é fazer rir os vizinhos de quarteirão depois de ter feito
rir meio mundo.

Chacovachi é mau com as crianças, é o “anti-patatí-patatá”*, o inverso do palhaço com voz


fininha - mas que também não tem nada a ver com IT, nem tampouco com um malabarista chapado
fã de Manu Chao. É um molotov idiossincrático de rua, humor e circo. Há anos que não atua em
Buenos Aires, a cidade que o criou como personagem, atarefado que estava com suas viagens pela
Europa e pela costa argentina onde realiza seu espetáculo, Circo Vachi, rodeado de artistas de
circo profissionais, e envolto numa aura mais tradicional. Mas Chacovachi é outra coisa: é e será
sempre o palhaço da Praça Francia. Durante dezesseis anos fez ali suas estranhas, brilhantes e
caóticas apresentações onde se alternavam algumas provas acrobáticas, globologia (essa arte de
bexigas fininhas com que se fabricam animais, espadas, ou o que ele faz: mutantes), e ferozes
intercambios com o público que concluíam com ovação e chapéu. Chacovachi é o primeiro palhaço
punk argentino, que solta a língua e fere ternamente com suas piadas, como um Krusty depois de
uma péssima noite.
Seu avatar surgiu quando acabou a ditadura e seguiu durante os anos 80 praticamente só, até que
nos anos 90, os malabares e o circo tiveram um boom por toda parte. Não foi só aqui. O Cirque du
Soleil começou a ser internacionalmente conhecido, os circos deixaram de trabalhar com animais,
e o teatro se uniu às estéticas circenses para criar uma mescla agora conhecida como Novo Circo,
que com distintas proporções, e com particularidades nacionais, se instalaria por todo o mundo.
Escolas de circo no Canadá, França, Espanha e também Argentina. Os irmãos Videla, dois
circenses velhos com mil truques escondidos em seus músculos de super-heróis, se converteram em
pais de uma nova geração, transmitindo seus saberes aos jovens dispostos a entregarem suas vidas
a essa imagem que mais parecia a de um renovado sonho hippie: artístico, internacional,
libertário, contracultural.
Mas quando tudo isso aconteceu, Chacovachi já era o rei da cocada preta. Toda sua vida já tinha
trabalhado sozinho nas ruas, com suas personalidade à prova de balas dentro e fora dos shows. Na
Argentina, na Colômbia e em Cuba, em muitos países da Europa, no Marrocos, rodando com suas
malas coloridas e suas piadas que fazem rir mas que também provocam, incomodam, geram a
empatia estranha dos vendedores ambulantes, dos que sabem inventar bordões, frases poderosas:
reflexos de um inconsciente demasiado popular, demasiado bonito, como que para acabar
condenado a apenas existir “ao vivo”.
*[N.T.] No texto original, descreve-se “[...]es el anti Pińón Fijo”, o que, segundo descreve o
próprio Chacovachi pelo Facebook “piñon fijo: payaso de la tv para niños”. Adequando à
realidade brasileira atual, dei preferência de relação ao duo de “palhaços” patatí e patatá. ***
- Como e quando decidiu ser palhaço?

- Nunca pensei que ia trabalhar de “artista”, porque sempre acreditei que os artistas morriam de
fome. Eu venho de uma família italiana, todo mundo trabalhava, estava bom ter um hobby, mas
tinha que encontrar algo para subreviver. Estudei na escola argentina do mimo Omar Viola, e toda
aquela gente era bárbara, mas não tirava um tostão, tinha que ver, eles às 3 da manhã no
Parakultural, para vinte pessoas. Por acaso, estudando nessa escola, me deu de atuar numa praça.
Mas estavam os militares no poder, e perguntam à escola se algum artista queria fazer algo. A
questão é que eu fui e isso me abriu um mundo. Mudou toda a minha base, a praça me deu tudo
aquilo que não me dava o que eu vinha fazendo.

- O quê?

- A liberdade que eu buscava, uma liberdade física, psíquica e econômica. Digo física, porque me
dei conta que o país e o mundo estavam cheios de praças, poderia trabalhar onde eu quisesse. Eu
trabalhei em 20 países, trabalhei no Marrocos ao lado de um encantador de serpentes, por 3 dólares
o chapéu, mas com 3 dólares se vivia. Com 1 dólar pagava o hotel. Depois, a liberdade psíquica,
porque você não tem que ser o melhor, não tem que mudar o tempo todo. Villafañe dizia isso: não
tens que mudar de número, tens que mudar de público. Também tinha a vantagem de que era uma
época em que era mais importante o que você representava do que o que você fazia. Há algo que
supostamente ofende os palhaços, que é isso de que o que fazemos seja uma arte menor. Para mim é
o contrário, eu gosto que seja uma arte menor, porque não me obriga a de que ser um híper-artista,
para poder gerar isso que é o que o palhaço gera, que é divertir, assombrar, aí está. Se tem sorte
também inspirar, provocar, mas isso já é uma segunda etapa. E depois a liberdade econômica: não
dependes de ninguém.

- Que fazia nos seus primeiros espetáculos?

- Me lembro que na primeira vez que fui atuar na rua, fiz uma listinha de coisas que sabia fazer.
Uma rotina de mímico, uma galinha, três bolinhas que tinha me ensinado meu avô, e com isso
intuitivamente encontrei como entreter, que é a base dos palhaços. Não falava, porque vinha de uma
escola de mímico. E quando comecei a falar, falava em falsete; meu estereótipo de palhaço era esse,
um tipo com voz fininha. Mas não podia ser tonto, se era tonto na rua, por mais que fosse numa
época na qual as pessoa valorizavam, também era um época na qual as pessoas não entendiam que
você podia trabalhar em praça pública. A princípio foi toda uma experiência bonita com muita
inconsciência. A coisa para mim funcionava; o êxito depende das pretensões, e as minhas eram
aquelas de ir para a praça e poder sobreviver. E depois passar o chapéu, quando me dei conta de que
podia fazê-lo foi uma revolução. Porque era a única forma de “ganhar dinheiro”, sem trabalhar, que
é o que sigo fazendo até hoje.

- Tiveram coisas que te marcaram, que te fizeram construir o palhaço que é hoje?

- O ponto, creio que foi chegar à Praça Francia. Eu trabalhava no Parque Centenario, uma praça na
esquina da minha casa. Um dia fui ao Centenario e alí não dava aquele dia, porque estava tendo um
ato político, e eu vivia daquilo, então fui para a praça Francia só por aquele domingo, e fiz o dobro
do dinheiro. Ademais, mudou também o público-alvo que me via: era o público que ia ao Centro
Cultural Recoleta, era um público ao qual me dava gosto criticar, pelo meu ponto de vista. Na
esquina da minha casa a crítica quase não existia, as pessoas eram como eu... em troca, no Recoleta,
nasceu esse palhaço de cidade grande que eu sou. Não sou um palhaço da rua Florida, mas de praça
de sábados e domingos, onde há gente desprevenida e gente que vai ver espetáculos, tem uma
mescla das duas coisas. Chegar na praça Francia mudou o que eu era, comecei com a crítica, a ser
um pouquinho mais politicamente incorreto, trabalhar mais com a inteligência.

- Sua família estava de acordo com o fato de você decidir trabalhar na rua?

- Acontece que eu fui soldado durante a guerra das Malvinaz, não estive na linha de frente, lutando,
mas fui soldado e estive aquartelado até que terminasse a guerra, e não fomos porque o avião era
pequeno, enfim, vivemos um trauma com tudo aquilo. Por isso, quando terminou a guerra tive uma
espécie de liberdade com a minha família, porque eles me disseram que iam me bancar naquele ano.
Não tive que sair para trabalhar imediatamente, mas eu comecei a fazer isso e em seguida comecei a
ganhar dinheiro na praça. Na minha família – minha velha é professora, meu velho é empregado
público -, uma quantidade de dinheiro que aparecia desse jeito era muito valorizada. Ninguém podia
me dizer nada. Minha mãe aceitou em seguida; com meu pai, italiano, foi mais difícil. Me lembro
de uma obra que fiz, os convidei para ir vê-la e era uma com Elizondo (o diretor da Escola
Argentina de Mimo), estávamos todos pelados durante vinte e cinco minutos. Meu velho me dizia
“Escuta, trago tua mãe e tá todo mundo pelado?!” (risadas). Era uma inconveniência muito grande
levar meus velhos lá...

- Como foi montando seu espetáculo de rua?

- Aos 23 anos eu já era um profissional, vivia com minha profissão. Comprei uma bicicleta de
sorveteiro pra levar as coisas, depois comprei um carro, porque assim era mais fácil. Me lembro de
como fui me dando conta de como era a produção de um espetáculo, que é algo fundamental.
Primeiro consegui uma escada, porque me toquei de que se eu subia e passava o chapéu de cima da
escada, dominava mais as pessoas e ninguém ia embora porque eu os vigiava...., bom, eu acreditava
nisso naquele momento, eram coisas que me preocupavam. Depois comprei um tambor porque
pensei: se toco o tambor de cima da escada vão me escutar mais longe. Marketing elementar, não é?

- Deve ter alguma sensação de vulnerabilidade ao trabalhar na rua, ou em lugares desconhecidos...

- Sim, é grande a vulnerabilidade, mas os artistas de rua nos manejamos dentro disso. Voce tem que
convocar, fazer com que venha gente, e se as pessoas não vêem e passam reto, é uma tragédia.
Aconteceu comigo, e a todo artista de rua, sobretudo se não está num lugar seguro. Na praça onde
trabalha todos os domingos, já sabe. Eu no entanto trabalho em lugares desconhecidos e espero
fazê-lo por toda a vida. Quase não necessito agora, o faço para seguir mantendo isso que me dá a
rua, essa marca. Essa coisa de ser uma espécie de soldado. Quando vai trabalhar em lugares como o
festival de Tarrega, de onde sai às 8 da manhã, mal dormido, de um camping, com outros duzentos
artistas, em uma cidade que se suja em seguida, e tem que encontrar seu lugar, e lidar com outros
artistas e convocar as pessoas, e não perder sua dignidade. Isso te dá um treinamento fabuloso. Um
artista de rua, a primeira coisa que aprende é que o fracasso pode ser o triunfo, que não se deve
lastimá-lo. Eu fiz apresentações horríveis que nos dez primeiros minutos eram os melhores da
minha vida. A rua tem dessas coisas, é imponderável porque você não a faz sozinho completamente:
quem a termina de fazer é o público. Mas quando se repete, não põe esse toque a mais, é quando a
coisa começa a se por medíocre.

- Mas as vezes as coisas podem sair mal e não há corte, não há música que apareça e te tire do
sufoco...

Uma vez, no truque que faço com as bolinhas de ping-pong, que sopro uma e outra com a boca, fiz
e saíram voando dois dentes da frente, um pra cada lado. No meio da apresentação e eu procurando
meus dentes e a galera aplaudindo e morrendo de rir, pensando que era uma gag. Eu os tinha posto,
eram dois parafusados com coroa que me tinham saído 100 dólares cada um, fiquei desesperado.
Mas é uma gag maravilhosa, se eu pudesse em cada apresentação cuspir e sair os dois dentes...
- Quando começou nos anos 80, como era a imagem do artista de rua - antes de que se tornasse
habitual ir a uma praça e ver um artista atuando?

Era muito restringido meu humor no ambiente, digamos, culturoso, do teatro de rua. Eu era um
palhaço de outra qualidade. Uma vez, em 87 creio, teve um festival de teatro de rua em Buenos
Aires. Fui, apresentei meu CV, mas não me convocaram. E eu vivia daquilo, eu estava habilitado
para estar em qualquer lado; eu dizia, junto 500 pessoas numa apresentação, goste ou não goste isso
é uma referência. Bom, fiquei mal, mas fui ver todo o festival e me parecia que o que estavam
fazendo ali nada tinha a ver com espetáculos de rua, vinham obras de Rosário que duravam duas
horas, com um intervalo de meia em meia hora, não passavam chapéu, não tinha uma convocatória,
que são coisas elementares de um espetáculo de rua. No último dia se fez uma coletiva de imprensa
e eu agarrei o microfone e disse que o que eu tinha visto não me pareciam espetáculos de rua, que
não tinham as qualidades que tinham que ter. E um levantou e me disse: “tampouco é questão de ir a
rua e perguntar que gosto tem o sal”. E naquele momento eu me re-ofendi! - agora eu morreria de
rir, estaria muito bem se eu dissesse numa apresentação que gosto tem o sal e 500 pessoas me
dissessem “salgado”, se o que tem que fazer na rua é isso.

- Mas próximo ao fim dos anos 80 o panorama foi mudando...

- O teatro de rua se abriu, claro, começou-se a entender o que era o teatro de rua, digo, o teatro NA
rua era uma coisa e o teatro DE rua era outra. E depois, quando comecei a viajar, me dei conta de
que o que eu fazia já faziam outros há cerca de cinco mil anos, no mesmo estilo, a mesma
dramaturgia. O fenômeno começou em 84, quando se foram os milicos e todas as praças se
encheram de artistas, os primeiros que saíram foram os grupos de teatro popular, o Motepo, o teatro
del Dorrego, Adhemar Biachi com Catalinas Sur. E outro tipo de teatro como o Clú de Claun, La
banda de la risa, com eles fomos companheiros de praça, mas eles eram mais atores, estavam
buscando o que depois foram, uns grandes artistas de teatro. Depois, já nos anos 90, começa tudo
isso de malabares, de circo, que de alguma maneira eu e toda gente que trabalhou comigo nas
Convenciones de Malabares anuais, difundimos um pouquinho. No começo dos 90 as pessoas já
captavam o que era um espetáculo de rua.

- Percorreste um longo caminho, palhaço.

*** A partir de 1996 Chacovachi organizou, junto a outros artistas de circo – no modelo europeu –
a Convenção Argentina de Malabares, Circo e Espetáculos de Rua. Alí se encontraram milhares de
malabaristas, acrobatas, contorcionistas, atores, e chegados aquele universo multiforme. Durante
os dias que durava o evento - um tipo de Woodstock mais freak que roqueiro - era possível equipar-
se com malabares, sapatos de palhaços, maquiagens especiais, ou ver todo tipo de filmes temáticos
como o La Strada, ou espetáculos do melhor e inovador circo, tanto local como estrangeiro;
também se podia ter oficinas de qualquer disciplina afim, como era por exemplo a de “parada de
mãos”. Estas convenções continuam acontecendo, anual ou bianualmente, e Chacovachi segue
cumprindo alí um papel central. Mas ao mesmo tempo, ou um pouco antes que as convenções
começassem a ganhar rotina, esse palhaço começou seu itinerário pelo mudno com seu espetáculo
solo. Em cada porto uma história. ***

- Você começou a viajar e foi à Colômbia, Cuba, Espanha. Como era o público e como reagiam a
você?

- Quando fui à Colômbia passei por 18 universidades em todo o país: Medellín, Cali, Bucaramanga,
com uma produtora. O presidente da Nescafé da Colômbia passou pela praça Francia e me viu. Ele
fazia o Nescafé Concert, levava jazz e rock para as universidades, mas me viu e deu de me levar.
Pensou que podia funcionar e foi assim. A mim, me largavam, digo, um argentino – e eu sou híper
argentino, irreverente - me largavam numa universidade, às 10 da manhã, para 2000 colombianos, a
coisa funcionava, a metade me amava, a outra metade me odiava, mas nunca mais iam esquecer de
mim. Foi bem próximo daquele cinco a zero que nos meteram aqui e o tempo todo falavam disso.
Trabalhei também numa praça, mas rodeado de uniformizados com metralhadoras – que me
custodiavam!! - Era muito estranho. Mas foi uma experiência incrível, nós artistas crescemos
quando trabalhamos para outro tipo de público, quando saímos do nosso lugar seguro.

- E no Brasil?

- Quando saio pela América do Sul sou um pouquinho menos picante, manejo por outro lado.
Porque o argentino pode suportar certa ironia, mas no Brasil, ou também na Colômbia, onde têm
um humor mais ingênuo, algumas coisas podem perturbar. E a verdade é que não quero perturbar
ninguém, não me privo de dizer nada mas se não é necessário, se estou no meio da selva, ou
trabalhando numa favela brasileira, não os quero perturbar, prefiro divertí-los, entretê-los, que se
ponham a pensar, mas tem coisas duras que não as quero dizer porque eles as vivem todos os dias,
para quê que vou ficar lembrando-as.

- Na Espanha você faz isso.

- Aí meus chistes são políticos, sobre esta relação que temos o primeiro mundo e o terceiro, chistes
muito sensíveis como, se não me dão muita bola, lhes digo “mas que que há, eu falo com vocês,
falo com vocês, vocês me sorriem mas não fazem caso! Que que eu sou? O rei Juan Carlos?”. O
lhes posso dizer “Tirem a alegria, tirem a sem-vergonhíce, tirem o índio sulamericano que têem
dentro!”, deixo que o façam e digo “ao índio sulamericano que comeram faz 500 anos e devolvam-
me ele”. Todos engolem seco. Meu espetáculo na Espanha é assim: o primeiro que digo quando
todo mundo aplaude no começo do show é “espanhóis, espanhóis, Franco morreeeeeeuuuu”, que é o
que saiu no rádio, e todo mundo grita “aaaahhhh” mas a metade engole seco. Isso é emocionante
para mim. Uma vez em Santiago de Compostela, frente à Catedral onde Franco ia a comungar, uma
senhora me disse chorando “eu pensei que ia morrer sem escutar essa frase”. Depois veio outra e
disse “você não sabe o que disse, dizer isso nessa praça”.

- Não são chistes muito “de palhaço” digamos....

- O que eu faço é gerar emoções nas pessoas, que são um pouco diferentes do sentimento típico que
esperamos do palhaço, que é te fazer rir a partir do lugar mais ingênuo, mais leviano; eu sou um
palhaço um pouco mais maldito. Todos temos um morto no placar. Quando você ri de algo duro é
porque entendeu, todos os chistes que trago têm uma tragédia por trás. Um chiste típico meu é
quando digo a uma criança “meu amor, você é feliz?”. E ele me diz, sim, então eu digo: “Bom, já
vai passar” e o acaricío. Há uma tragédia muito grande, mas quando você ri das tragédias está se
preparando para suportá-las, e não quero dizer que te falta o respeito. O ser humano usa a risada
para sobrepôr-se às tragédias. É a única coisa que podemos fazer. Quando você pode fazer chistes
pode começar a superar, todavia na Argentina não há chistes sobre desaparecidos, não podemos
fazer chistes sobre aviões, gente voando, gente encapuzada, não podemos porque nós não
superamos. Com a aids começa a ter chistes porque a aids está cada vez menos perigosa, não é tão
fatal e a partir de que existam esses chistes se descomprime algo.

- E um palhaço é um dos primeiros a ter permissão para fazer isso?

- A nós palhaços nos permitem dizer coisas que os comuns mortais não podem. Da mesma forma
que podemos dizer coisas às crianças sem sermos malvados, coisas que seus pais quiseram dizer
mas não podem senão vem o Piaget e os mata. Temos essas liberdades e temos que usar; as pessoas
esperam isso, que sejamos diferentes delas.

- E o que te dá de ser argentino, além de ser palhaço?

- Eu quando vou trabalhar na Espanha levo uma túnica que diz “4 pesos = 1 euro”. Essa é minha
ideologia. É a realidade total e os chistes são com isso. Se vou ao Marrocos sou um infiel que acaba
sendo legal. Creio que a atuação é um recurso a mais para o palhaço, como se é um malabarista, é
um recurso a mais. Te serve, sem dúvida. Mas não tem que atuar, o palhaço não atua, tem que sair
de dentro. Eu digo, meio que em piada, que os clowns, quando tirarem o costume de atuar, vão
poder ascender a palhaços. E volto ao anterior, pois o clown não é uma arte menor, se o fazem por
um lado – que eu sei – encurralado.

- Há palhaços muito artificiais, com suas maquiagens, seus gestos...

- Não creio nos palhaços que usam muita fantasia, creio mais no palhaço que se vê a pele. Há um
dito que diz que a fantasia te consola do que não pode ser e o humor te consola daquilo que tu és.
Creio nisso. Para mim o palhaço é o mais humano dos artistas. O artista é a profissão mais humana
que existe, no sentido de que a arte não tem uma utilidade, não é ser carpinteiro, e as vezes é algo
que caracteriza o ser humano, fazer arte. Eu digo que o palhaço é o mais humano dos artistas,
porque trabalha com o perder....

- Com falhar...

- Com tudo o que o artista esconde, com todos seus lugares débeis. E depois o palhaço de rua é o
mais humano dos palhaço, porque trabalha na rua, onde está a humanidade, de alguma maneira.
Creio que não se pode perder esse norte. O mundo vai mudando e vai mudando isso de que rimos:
Os Simpsons, Family Guy, South Park, meu deus, impensável que antes alguém risse dessas coisas
que eles riem. Para poder fazer humor tem que se meter nesses lugares, complicados. O humor
branco quase não faz mais rir. Por isso, creio que o desafio dos palhaços, dos palhaços de rua digo,
é não perder a humanidade. Ser cada vez mais humanos, como dinossauros.

*** A grande risada de todos esses anos.


Mas Chacovachi volta à Buenos Aires para fazer seu espetáculo Cuidado! Um Palhaço Ruim Pode
Arruinar Tua Vida, depois de anos e anos, outra vez na cidade que viu seu nariz se avermelhar, e
não pelos efeitos do álcool. O fará nos Circo de Aire, o espaço de María Bordesio, outra trapezista
mítica dos tempos do boom malabarístico. E todo tem um toque de nostalgia, ter que vê-lo num
teatro, fora do seu terreno propício da rua, da improvisação, a resposta imediata forte, a
desprolixidade de um artista que não se define por seus truques mas sim pelo que os rodeia. Não
importa o monociclo, o diabolô, a bolinha de ping-pong que permanece no ar. Ou cai. Nostalgia
porque a época dos grandes espetácuos de rua em rua, em Buenos Aires, parece ter terminado. ***

- Te dá vontade de voltar aqui?

- Me encanta. Outro dia fiz uma apresentação, não me lembro onde mas aqui, e disse a palavra
“sorete” e me entenderam e eu fiquei feliz por que tinha seis anos que eu não podia dizê-la em
nenhum lugar porque ninguém me entendia. Estou como que pegando a volta, vê? Um artista de rua
primeiro tem que dobrar a esquina da sua casa, seu desafio maior é fazer rir à sua gente, que são os
mais críticos, porque te conhecem. Depois tem que ir provar no centro da cidade, com outros artista,
gente que não é igual a você; depois tem que ir para lugar que nunca imaginava que existiam e no
final tem que voltar para a esquina da sua casa e ver o que acontece. É o que me passou em janeiro
e em fevereiro na Villa Gesell, eu voltei a encontrar com o público argentino. Foi espetacular
porque não tinha que traduzir nada.
- Nunca se cansou de viver de maneira itinerante?

- As pessoas se perguntam “se trabalhas na rua, onde viverás”, e a verdade é que se se organizar
num circuito profissional pode viver a vida toda assim. Enquanto tiver energia: na rua às vezes faz
frio, às vezes as circunstâncias, os loucos, os ladrões, a polícia, tudo está na rua. Mas a rua te faz
parte desse folclore e te aceita.

- E no que te mudou ter um filho?

- Ringo vai completar 4 anos. A última sacudida forte tinha sido a morte da minha mãe em 2002. E
meu palhaço ficou obsscuríssimo, nos primeiros seis meses, eu estava sem par, meu palhaço era
esse, esperançado mas obscuro. O nascimento do meu filho mudou meu palhaço de novo. Me
acontece de descobrir as crianças agora. Trabalhei a vida toda com crianças e me dei conta do que é
uma criança desde o nascimento do meu filho. Tem chistes que não faço mais. Porque agora
entendo, os fazia a partir da ignorância, agora não posso, me dói muito.

- A rua de Buenos Aires parece ter perdido sua vitalidade dos anos 90, quando havia grupos de
muita qualidade nas praças.

- A mim me encantaria que começassem a ter festivais de teatro de rua na Argentina, que nos dêem
esse lugar, sonho com isso, com um Aurillac (o festival Francês), com um Tarrega, creio que podia
ser uma forma importante de educação. Como quando fui para Tarrega pela primeira vez, que é esse
festival que acontece na Espanha e recebe 20.000 pessoas que vão ver teatro, que tem um camping
quase grátis, que tudo acontece na rua, que na grande maioria é baseada no chapéu, eu vi punks,
com agulhas passadas por todos os lados, chorando com números de bonecos.

- Essas são as particularidades dos espetáculos de rua. Podem vê-los quem quiser, não tem que
entrar em lugar nenhum, nem pagar entrada.

- Na rua uma pessoa vai andando, e tem que apostar em ver esse espetáculo, e se sente em perigo,
em perigo de jogo de criança, mas aceita como todos os demais, e compartilha dessas circunstâncias
híper particulares. E se há 400 pessoas gargalhando por algo que as faz muito feliz, isso é
compartilhar, que todos pensamos igual em algo, se não não riríamos; o que faz a risada é unir as
pessoas. E isso é ancestral. Os índios, em roda, o fogo no meio, o médico bruxo falando, os outros
festejando, na rua se passa exatamente o mesmo. E como somos todos muito viajantes cumprimos
aquilo que era do circo antes, aquilo de transmitir cultura. Antes chegava um circo na sua vila, não
tinha TV, e via uns húngaros, uns brasileiros, uns japoneses, era uma coisa cultural, eram diferentes
de você. Nós artistas de rua somos bichos estranhos em qualquer lugar. Eu uma vez fiz um cálculo
do que acontece. Eu tinha na época um marcador de contagem e quando começava a apresentação
eu dava para uma pessoa do público e dizia “cada vez que tu rir, marca no contador”. Eu depois
pedia um centavo por risada, era uma história que tinha alí, mas a questão é: as pessoas riam 100
vezes, 100 gargalhadas por 400 pessoas são 40.000 risadas. Que ricocheteiam num círculo de 15
metros de diâmetro. Isso é muito forte, tanto que falam de reiki e isso, estar num círculo onde
ricocheteiam tantas risadas, isso faz bem a qualquer um. Um artista de rua que faz rir às pessoas e
as descomprime, é um xamã.

Tradução voluntária: Tio TAZ – Cia Moscas Volantes (cia.moscas.volantes@gmail.com)


O tradutor não é vínculado à página original desse texto, tendo apenas se voluntariado para
traduzir e ampliar a gama de leitores do texto.

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