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Copyright O 2018 by Marina de Mello e Souza
CDD 960
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fosse aindaexistente à época da carta ou já passada, mas consi-
derada ainda em vigor no discurso laudatório.
A região compreendida pelos rios Bengo, ao norte, e Cuanza,
ao sul, chegando até onde o rio Lucala deságua no Cuanza,foi
chamada de Dongo (Ndongo) nas fontes portuguesas. A organi-
zação social desses povos era semelhante à de seus vizinhos do
norte, sendo os gruposde parentesco a unidade básica, na qual a
autoridade dos chefes de linhagem determinava a condução dos
assuntos comunsao grupo, comoa distribuição das terrase a apli-
cação dajustiça. A economia estava fundada na agricultura de
subsistência e na criação de gado miúdo, complementada pela
pesca, pela caça e pelas trocas de alguns produtos. Entre estes,
destacavam-seo sal, que era abundante em uma região ao sul de
Luandae servia também de moeda, e os instrumentosdeferro,
feitos por especialistas muito respeitados que, além de conhecer
os locais onde o minério era coletado, dominavam as técnicasde
sua transformação. A autoridade política era definidaa partir dos
chefes dos grupos que primeiro chegaram àslocalidades em que
viviam e estavaligada aos espíritos territoriais e à ancestralidade.
Insígnias como um sino duplode ferro, braceletes e machadinhas
eram depositárias do poder do chefe, que, ao recebê-las, adqui-
ria os direitos e responsabilidades conferidos pelo conjunto da
comunidade. Além das insígnias de poder, um sistemade titula-
ção identificava os lugares ocupados pelosvários chefes no con-
junto das sociedades. Havia umaarticulação entre diferentes al-
deias e linhagens definida por laços de parentesco traçados a
partir de um mesmoancestral, porligações constituídas por meio
de matrimônios,e relações entre os diferentes títulos, inseridos
numa hierarquia queindicava níveis de poder e proximidade en-
tre os grupos.
O principal chefe de uma aldeia, chamado de “soba” nasfon-
tes portuguesas, governava com o auxílio de um conselho com-
posto pelos cabeças de linhagens, os makota. A natureza do po-
der do soba ligava-se ao sagrado,e ele detinha o privilégio de
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istigar osinfratores - portanto, de exercício da violência - e era
responsável pelo bem-estar do grupo, pela chuvae pela fertili-
ade das lavouras- nas quais era o primeiroa jogar as sementes.
his poderes justificavam que cobrasse tributos de seus subordi-
ados e de qualquer um que desejasse passar pelo território por
le controlado. A reciprocidade era a base das relações, tanto no
do visível, como no invisível. Os ancestrais e espíritos diver-
Os agiam na vida cotidiana, e, para que tivessem sobre ela uma
ição positiva, era necessário que fossem cumpridos adequada-
entre ritos a eles dirigidos. Portanto, além dos chefes, os sacer-
Dtes, especialistas em lidar com as coisas do mundoinvisível, ti-
ham um lugar de destaque na vida social!
No século xvi, quando os portugueses de São Tomé começa-
im a realizar trocas de produtos com as populações ambundas
ue viviam ao sul do Congo, estava em cursoo fortalecimento do
Ítulo de ngola. O então detentor dotítulo aparece nas fontes como
-a-kiluanji (angola-aquiluange) com o complemento desig-
ando a sua linhagem, uma das principais do Dongo, com direito
fornecer o ngola. Este congregava em torno de si chefes porta-
lores detítulos diversos e pertencentesa outras linhagens. O modo
pmo se deu a centralização do poder em torno do título ngola é
gsunto obscuro, pois a informação existente para o período an-
rior à chegada dos portugueses na região resume-se a algunsre-
tos orais coletados por missionários no século xvir, principal-
mente Cavazzi e Gaeta”. Em algunsregistros, o ngola é identificado
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|5 entre algumas chefaturas como pela incorporação de gente
la guerra. Esta, entretanto, não era a principal atividade dos am-
indos, descritos comoagricultores sedentários.
Em meados do século xvi, além do Dongo, sob o governo do
ola, existiam ao sul do Congo outras chefaturas, como Matamba
que utilizavam título de dembo - motivo pelo qual a região
sou conhecida como Dembo (Ndembu). Os laços de amizade e
Wbordinação entre elas era fluido, dependendo de correlações
E forças variáveis no tempo.Poressa época,alguns chefesjá de-
stravam interesse em ter acesso aos produtos europeus e
andavam presentes para o mani Congo com vistas a serem in-
dos nos novoscircuitos de trocas. Em pouco tempo, os pró-
Os comerciantes de São Tomé passariam a agir na costa ao sul
Congo, principalmente na região da ilha de Luanda, onde as
ras do mani Congo faziam fronteira com território controla-
pelo ngola-a-kiluanji - ou seja, o principal chefe do Dongo,
n ascendência sobre os sobas. Ali, os portugueses não foram
ebidos com a mesma boa vontade encontrada entre os gover-
ntes do Congo,e, apesar das trocas serem desejadas, os cami-
8 do território não foram abertos para os estrangeiros, nem
faceita a sua pregação religiosa. A princípio, o contato entre os
rciantes de São Tomé e os ambundos que viviam naregião
lo Cuanza era independente tanto das normas traçadas pela
a portuguesa como daquelas estabelecidas pelo mani Con-
Ds portugueses de São Tomé agiam de forma autônoma com
lação às políticas metropolitanas - o que pode ser confirmado
las queixas que dom Afonso fez em carta enviada a dom João
im 1529. Os chefes ambundos, por sua vez, agiam de formain-
pendente do mani Congo, que perdia o controle sobre o comér-
é mesmo entre alguns de seus tributários.
'Na segunda metade do século xvr, apelos dos chefes ambun-
Epor contato direto com Portugal, transmitidos por parceiros
eses e por embaixadas que pediam missionários e ami-
de, somaram-se à percepção da administração lusitana de que
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vos. Estes ficaram conhecidos como “pessoas de nzimbo',
grem negociados com essas conchas. Quanto aos mercados,
1 chamados de mpumbo,e daí veio a designação de “pom-
” para os negociantes de escravos quefrequentavam asfei-
interior do Congo e de Angola. No final do século xvr, por
o da fundação de Luanda por Paulo Dias de Novaes, o mani
o dom Álvaro 1 se encontrava especialmente devedordorei
guês. Isso porquedele havia recebido ajuda militar com o
fetivo de recuperar parte doseuterritório e mbanza Congo,de
de havia sido expulso por invasores que vieram dointerior, cha-
los de “jagas” pelas fontes portuguesas. Foi com autorização
Álvaro1 que Paulo Dias de Novaes desembarcou na ilha
da, pois os portugueses eram seusaliados,e a expedição
graças à qual os jagas foram expulsos ainda estava em ter-
mani Congo*.
'Da ilha, Paulo Dias de Novaes, feito donatário deterras quejá
am seus governantes, passou para o continentee instalou-se
E Ito de um morro que chamou de São Paulo, em referência ao
ftolo que espalhou a palavra de Jesus, como os portugueses
cavam fazer, e cujo nome também era o seu. Conquista ins-
gão do evangelho à “gentilidade” para o “bem das almas des-
imbundainha” são as motivações ressaltadas por António de
veira de Cadornega para a ocupação daquele território”. O do-
lário trouxe colonos, sementes, animais, pedreiros, carpintei-
padres e soldados, e, com esse apoio, fundou a sede da capi-
fla que lhe havia sido atribuída.
Nofinal do século xv1, a missão evangelizadora do Congo era
isiderada um “falhanço” um fracasso. Essa interpretação teria
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ão e os seus costumes, pois havia vivido na kabassa no ngola
f cerca de 5 anos. Mas a diplomacia dos primeiros anos logo
sformou-se em guerra de conquista,afinal era esse o intuito
sico dos portugueses capitaneados por Paulo Dias de Novaes
apoiados pelos jesuítas, legitimadores das ações bélicas em nome
salvação das almas e do aumento dacristandade.
* À partir dofinal do século xvi foram empreendidas campa-
s militares portuguesas contra povos habitantes da região do
or de Luanda e dos vales dos rios que desaguavam na costa,
incipalmente o Cuanza, o Bengo e o Dande.Elas decorreram
resistência posta pelos gruposlocais e pelos comerciantes se-
ados em São Tomé e Cabo Verde, que queriam manter a suali-
dade de ação, mas responderam principalmente ao interesse
lo comércio de escravos, o único negócio que compensavafi-
Ceiramente os investimentos necessários para a instalação de
ma colônia portuguesa em terras centro-africanas. A esperança
encontrar metais preciosos, especialmente prata, também foi
n forte incentivo à ocupação, persistindo por muito tempo, mes-
[diante das repetidas frustrações. A possibilidade de chegar às
inhadas minas foi argumento recorrentemente usadopara pres-
a Coroa portuguesae, depois, a espanhola, a continuar in-
tindo na conquista”.
Já em 1579, começaram as hostilidades entre portugueses e
ibundos: os primeiros avançando continente adentro seguin-
O curso dos rios; os últimos,talvez instigados pelos comercian-
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'Nas terras deste foi instalada a primeira fortaleza portuguesa,
ada de Muxima, mesmo nome do sobadoqueali havia:
Idem, ibidem.
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| Essa carta, além de explicitar um padrão de conquista quevi-
ainda por cerca de um século, indica a postura então ado-
pelos jesuítas, segundo a qual a submissão pelas armas era
idição indispensável para a conversão ao catolicismo. Em do-
mento de 1588, lemos:
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Ivassalados e o apoio de alguns grupos jagas aos portugueses
E permitiu que estes instituíssem o que chamavam de “guerra
| Tratava-se de exércitos formados com a arregimentação de
uposlocais e uma minoria de soldados, capitães e arcabuzei-
E portugueses ou luso-africanos, contando às vezes com alguns
ucos cavalos e canhões, e que lutavam contra os sobas quere-
à conquista.
pram diversos os caminhospelos quais os sobas ambundos
-se vassalos do rei de Portugal, representado nas ceri-
às pelo governador de Angola ou pelos capitães-mores dos
Ídios construídos pelos portugueses. O caminho mais radical
ja derrota na guerra e a aceitação da subordinação como única
irmativa à sobrevivência do grupo. No extremooposto, estavam
t efes que procuravam os portugueses, preferindo a submissão
à derrota frente a outros sobas, contra os quais pediam aju-
hilitar e proteção. No meio-termo, encontravam-se os que se
n ameaçados pelos exércitos comandados pelos portugueses
por sealiar a eles antes de ter suas cabeças cortadas e
E aldeias, saqueadas e queimadas. Certamente, a ameaça do
ue, dos assassinatos e da escravização influía nessas opções.
g sobas renderam-se aos portugueses antes de experimen-
)8 horrores da guerra; outros, após tentativas frustradas de re-
lr; e outros ainda apresentaram umaresistência relativamen-
fics , mantendo por mais ou menos tempo sua total autonomia.
do vencidos, era imposta aos sobas a vassalagem ao rei
gal, por meio de tratados escritos e cerimônias elabora-
e misturavam ritos medievais portugueses e tradiçõeslo-
jo chamado “undamento”=. Os sobas vassalos tinham garan-
|autoridade em suasterras e sobre seu povo, e contavam com
joão Antonio Cavazzi de Montecuccolo, op. cit., 1965, vol. 2, p. 66. O único
* autor que dá uma data para o nascimento de Njinga é Cavazzi, que diz ter
ela nascido em 1582. Como Arlindo Correa, acredito que devia ser mais
"moça. Ver, do autor: Arlindo Correa, A Rainha Jinga, 2008.