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SPEDDING, Alison. Quemar el archivo: un ensayo en contra de la Historia, Temas La Paz, 24, P. 367-400, 2003, . De cuando en cuando Saturnina, Una historia oral del futuro. La Paz: ‘Mama Huaco, 2010. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, Araweté: 0s deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1986. WITTIG, Monique. © pensamento aight, In: BRANDAO, Izabel; CAVALCANTI, (Org). Tradugoes da cultura, Perspectivas criticas femit UFSC, 2017. boleth, o ensaio como sotaque: ir entre lenguas, de Sylvia Molloy Pablo Gasparini Em “Cruces mento de seu livro Vivir entre lenguas, Molloy (2016) refere-se & experién- cia biblica do “shibboleth’, Trata-se de um momento da guerra entre os jleaditas e a tribo de Efraim em que os primeiros, vencedores da bata- Iha as margens do Jorddo, estdo a postos ao longo do rio para impedir a fuga dos inimigos sobreviventes, Para distinguir os seus do exército der- rotado, aqueles que aspiravam atravessar o Jordao foram submetidos a um teste que hoje entenderiamos como prosédico. O soldado encarregado de vigiar a passagem exigia que qualquer um que desejasse atravessar para 0 outro lado do rio dissesse a palavra “Chibolete” Se a pronunciasse com 0 sotaque dos da tribo de Efraim, era imediatamente decapitado: hhomens de Gileade perguntavam: “Voc nio, diziam “Entio diga: ‘Chibolete™ Se ele dissesse: “Sibole seguir pronunciar corretamente @ palavra, prendiam-no e matavam-no no lugar de passagem do Jordao. Quarenta e dois mil efraimitas foram mortos naquela ocasiio. (/uizes 12:56) ‘Molloy faz. uma répida referéncia ao termo, ¢ isso, na verdade, para dar peso hist6rico a um episédio semelhante, embora jé pertencente era moderna: o controle genocida de fronteira imposto em 1937 pela Repiiblica Dominicana aos imigrantes haitianos. Molloy conta que 10 que cruzava a fron- teira por motivos de trabalhi 1) Transcreveros aqui esta palavea como aparece na histria também é encontrada para expressar acento dos ef escreverernosshiboleth, como faz Molloy. (onde a forma “Sibolete” No restante do trabalho, iba con la erre gutural del francés y con la jota trabajosa, se taba. El perejil era su shib- # (MOLLOY, 2016, p.35) boleth, como para los miembros de latribu de Er Se pensarmos que um dos sentidos da palavra hebraica shibboleth é “espiga’ parece que a énfase esti colocada aqui em separar a palha do grio, ¢ {sso sempre a partir cle quem se ergue como o fatidico operador dessa debu- Iha linguistica que condena o outro, sempre indicado com tivel, supérfluo (quando néo sobrevivente) ao seu exterminio e destruigao. Dizemos sobrevivente porque nao éirrelevante que esse outro que sera sacrificado seja alguém que tenha menos uma vida do que uma sobrevi- véncia: a do guerreiro derrotado no episédio biblico; a do agricultor que atravessa a fronteira em busca de sua sobrevivénci no caso dos {migrantes haitianos do chamado “Masacre del Perejl’. A dindmica do Dboleth também envolve, acima de tudo, uma légica terttorial. Os epi dios convocados por Molloy supdem, de fato, a criacio ou cuidado de uma fronteira em seu sentido mais literal: a demarcacao das margens do Jordo pelo exército gileaditae o fortalecimento criminoso do controle da fronteira entre a Republica Dominicana e o Haiti em 1937. Eles envolvem também a lingua como territorialidade, isto tanto na diresao apontada pelo gedgrafo brasileiro Rogério Haesbaert (2007), como no sentido territorial de George Steiner (2002), embora neste caso a légica do shibboleth impossibilite toda subjetivo e do cultural puramente flusseriana, uma vez que o mais préprio do sujeito seria imperceptivel para os seus olhos ou, neste caso, para os seus cuvidos, Ao que parece, nem os efraimitas nem os haitianos conseguem ouvir aquilo que os condenaré: 0 seu préprio sotaque. Se em “Habitar a casa na apatridade’, ensaio incluido por Vilém Flusser em seus Bodenlos. Uma autobiografa filosdfica, lemos que “cada patria, & sua maneira, cega aquele que nela estd intrincado” (FLUSSER, 2007, p. 224), aqui podemos dizer que cada idioma silencia seu som para aqueles que so 0s seus falantes, 2 Asctagdes de fragmentos em lingua estrangeira deste capi ‘original da edgio utlizada,devido ao fto de que, em muitos casos cionadas mat dos textos abordados, 10" como um espaco aproy 3, culturaisou econdmicas). lingua 156 Em “Cruces bilingiles’ a referencia ao shibboleth apoia uma das muitas ‘eflexdes pessoais que Molloy eine em torno de sua miltipla condigio de falante de espanhol francés. Vivir entre lenguas, nesse sentido, é um livro que, como Desarticulacones, funde a histéria autobiogrifica com 0 Ensaio Acreditamos que, além da organizagao fragmentiria que é predo- minante em Vivir entre lenguas, as possibilidades narrativas do shibboleth (@ vida como sobrevivéncia), a sua conflituosa territorialidade e a singular maneira em que figura asubjetividade, permeiam, ou melhor dizendo, per- ‘item ler criticamente tanto 0 “romance familiar” que Molloy trac nestes {extos, como certas persisténcias de sua atividade critica’ até, talvez, a forma em que este ensaio se inscreve entre outros que, como os de Silvia Baron Superville (1998) ¢ Etel Adnan (2014), também refletem sobre pro- duugdo artisticae intelectual sob o signo da coexisténcia entre varias linguas. © “ROMANCE FAMILIAR” “Mi madre habia perdido el francés de sus padres, era monolingi, por ende, argenti 10)" — conta Molloy no fragmento de Vivir entre len- Suas, que tem o mesmo titulo da nossa secio (“Novela fami fissio parece decisiva para estabelecer, no fragmento segui de cada uma de suas linguas (espanh Sua aprendizagem ea dinamica dessas linguas na familia. O inglés aparece fliado, como em Borges, o pai ea familia paterna, suas tias sua avd, O francés vem do lado materno, j que a familia de sua mae é descendente de franceses. Em sua fami nuclear, no entanto, falam o espanhol (e nao 4 Gonzilez Roux (2016, p. 1) vé um triptico formado por Varia ima Desarticulacione (2010) ¢ Vivir entre enguas (20 a en el cual Ia forma breve, como retazos de es 0 y el olvido,o por la deriva del recuerdo, esboza reflexio gua la modulacin de a memor 5 Achamos quendo é necessrio explicaro lugar ocupado por S tino-americana, Demos asta produ’ rate hispano-amércaine en France au Xxe letras de Borges (979): Acto de Presencia: la fiteratua aus em inglés: Poses defn desig. Desbordes. en la modernidad (2013), Todas as efencias a Vivir entre lenguas ser fe «acio da pégina, retamente com indi- © inglés ou 0 francés), ¢ isso em razao da falta que 0 “romance familiar” coloca desde o primeiro momento. Devido ao fato de que sua mae é, 20 contrério da familia paterna, monolingue em espanol, a lingua nacional é estabelecida como a lingua da interacao familiar: EI hecho de que mi madre no hable inglés impone el espafiol en las reu- niones dela familia paterna. Condescendientes, mis tias, que son perfecta- se adaptan; yo siento vergiienza, Cuando se dirigen a mi me, y para hacerles ver que no soy monolingie mente bi como mi madre. (p. 12) (© monolinguismo “vergonhoso” da mae é repetidamente enfatizado durante todo o texto. Ela e suas irmas sio descritas como sujeitos que foram privados da possibilidade de falar outra lingua, da qual ainda exis- tem vestigios de origem incerta ero digo mal en llamarla monolingde. 1 bilinghismo que hubiera podido ‘ser suyo, el que le robaron los padres subsistia, como resto, en algunas con versaciones caseras. Asi tanto ella como mi tia usaban constantemente pala- bras francesas cuando hablaban de moda y de costura.[..] Como islotes dela recuerdos precisos jas. En todo caso me per n construir madre. (p. cién de seRoras burguesas argent ‘una imagen menos lingisticamente desamparada de Embora Molloy enfatize repetidamente a origem imigrante de seus pais (ambos so argentinos, filhos de estrangeiros), dir-se-ia que a situa- Gio de falta e desamparo linguistico que é atribufda ao materno inscreve esse lado em uma légica propriamente imigrante. Apelamos aqui para a distingao feita por Abdelmalek Sayad (1998) entre “estrangeiro” e “imi- grante” Segundo Sayad, para poder aprender a verdadeira situagao das pessoas que cruizam fronteiras nacionais, devem ser superadas as limi tacdes do mero status legal, pois se desse ponto de vista a categoria de ia estaria escondendo o frégil estatuto estrangeiro anula qualquer outra, social e politico da alteridade i gular) e pelos estrangeros imblicaeeconomicamente) ~ cf. SAYAD, op. cit, p. 235-263 ep. 265-286, Embora a mie, uma “senhora burguesa argentina’ (p. 13), nao esteja, inscrita na drea social a que se refere Sayad (exceto pelos tragos de desam- paro e falta a que retornaremos), 0 mundo da imigragao aparece incessan- temente visto (e fundamentalmente escutado) por Molloy a partir do hete- rogéneo mundo hispénico em seu pais de residéncia, os Estados Unidos. No fragment jiismo inmigrante’ descreve a lingua fronteiriga de uns trabalhadores salvadorenhos: José Ramirez Salguero, seus irmios e outros compatricios. Trata-se de um spanglish particularmente sonoro no momento de falar sobre 0 que, segundo a légica de Sayad, definiria esses salvadorenhos como imigrantes, isto 6, 0 seu trabalho.’ hermanos y compaiieros lo son menos. Eso ha wermedio, donde la sintaxis es espafila pero el y el taladro con el shirra, que pronto aprendi era el por toilet, elrufo, el trim, el besmen y la boila. Cuando vienen José y los suyos a hacer alin trabajo en casa caigo en esa mezcla con ralidad, después de todo no tengo idea de como se dice sheetrock Penso que é relevante, para a leitura de Vivir entre lenguas, comparar esse “idioma intermedio’, to frequente nas populagdes imigrantes, com as repetidas restrigdes da familia Molloy no sentido de nao misturar suas \guas, No fragmento intitulado “Territorio’, descreve a escola bilingue de sua infincia, e a punigdo que consistia em assinar o black book se um estu- ante fosse pego falando espanhol durante o periodo da manha, que era exclusivamente em inglés (se o livro fosse assinado trés vezes, a aluna era expulsa da escola), Molloy nos conta o total respeit seus pais por esse sistema pedagégico, que estabelecia uma divisio ri de tempo e espagos linguisticos, algo que era reproduzido em sua propria asa: “La casa reproduce las divisiones en la novela familiar: espafiol con la ‘madre, inglés con el padre” (p. 19). Na contracorrente daquela Molloy cland. ue fala, quando nao € ouvida por seus pais, “switcheando” com sua irma (“como una suerte de lengua privada”),’ ou da Molloy que Ié intimamente o impessoal espanhol firma Sayad (op cit, p.s4)~“quase um pleonasma” cia de Kinguas gue ido coma 159 “hay” nos cartazes de feno (“Hay”) pelos campos de seu pais de residéncia 1utofigura¢ao prosédica publica de Molloy obedece a0 de nao misturar as linguas. E isto parece também vilido para 1 deslocamento do sotaque de uma lingua para outra, algo sancionado até quando se trata de uma mera brincadeira. Assim, a crianga Molloy recebe uma forte reprimenda de uma de suas tias de lingua inglesa por imitar divertidamente 0 modo como elas pronunciavam o sobrenome de Belgrano, um her6i nacional argentino ~ dito como “Belgraahno” pela wandado juiero decir acento que delatara que pasaba de un idioma a otro” (p. 60), confessa a autora, abrindo a porta na sua vida adulta para a época dos mandados familiares de sua infancia, ou melhor, para o tempo de L’Enfantin, de Péju: “un tiempo primordial que nunca deja de suceder” (LIENDO, 2014, p. 1).° Se a passagem de um territério para outro € guardada, como ilustrado pela légica do shibboleth, pela exigencia da supressdo de um sotaque “outro’, por uma ferrenha escuta do estrangeiro, vale aqui se perguntar pelo que deveria ser pago se o sotaque fosse percebi (0 &, pela razio desse escrupuloso cuidado em que os territérios linguis cos (que também so familiares) nao se misturem ou nao virem, como diz paterna, uma espécie de “cocoliche” (p. 61), aquela lingua entremeio ino e espanhol que na Argentina foi atribuida, a partir de um famoso palhaco do circo-teatro dos irmaios Podesta, aos imigrantes italianos. © “problema do sotaque” foi um argumento mobilizado na disc: sao cultural dos anos vi vo” da revista Mar Fierro (niimero 8-93 agosto/setemibro, p. 56, 1924) inclui uma forte réplica a.um escritor da chamada literatura popular, e nela 0 principal grupo de vanguarda argentino se declara “argentinos sin esfuerzo, porque no tene- ‘mos que disimular ninguna ‘pronunzia’ exdtica”. O tema foi, como sabe- mos, explorado por Sarlo (1995) em sua leitura do peculiar “criollismo e. O “Suplemento expli unfit decertaincompeténcia lingua em qualquer uma ds pode er considerado como a marca de uma competénciailingue 1994, igo et eg). 10 Refio-me aqul letura que Lendo (op. it) far da Enonce obscure de Pere Pej (Gallimard 201). Rlacionandoo conceto de Pji com 0 “bloc denfanc’ de Deleure, 0 “noyas denfanc’ de Bachelard a autora cont qu os momentos de Enfant "Son algo sis quel sorpesva nota inal en ls historia de na vida ola espera versin cerospec tiva desu principio: representan una sur en el sistema narrativo (Orinico on) dal yo? idem, p26) o ode-switching (cf DEPREZ, 160 a s6 uma década ara o nascimento de Molloy em Buenos Aires e nio resulta surpreen- dente entdo que a sua familia ouga e compreenda a mistura de sotaques (até mesmo do inglés no espanhol) como mais um género do condend- ncias prosédicas ‘conseguem se combinar com o fervoroso poliglotismo da e argentina d jo. Nas polémicas terdrias do primeiro terco do século xx, deveriamos di itismo legitimo y un cosmopolitismo babélico” (SARLO, 1996, ja, entre a “buena heterogeneidad” de todos aqueles que tém 0 espanhol como lingua de nascimento e, portanto, poderiam falar ‘uma outra lingua sem 0 risco da contaminagio (sem o risco ~ segundo 0 grupo martinfierrista ~ de ter que disfarcar uma “pronunzia exdtica’), e uma “heterogeneidad confi grantes e de sua suposta ¢ incontrolvel propensio macarrénica. Dessa ‘maneira, a regra familiar de “no mezclar” parece querer evitar 0 risco de se atravessar a linha que separa imigrantes de estrangeiros, no sentido de Sayad (1998), 0 que no contexto da Argentina do inicio do séc. XX repre- sentava uma fronteira simbélica e social Em diversos momentos de seu ensaio, Molloy se mostra consciente do territério linguistica e socialmente fraturado que significa falar como imi- grante ou falar como estrangeiro. No fragmento “Derroches biingies’ por exemplo, vemos uma Molloy que, ao fazer uma ligagao para uma “amiga de Paris’ (re)descobre a plenitude de sua habilidade para falar a lingua fran- esa, Ela diz se sentir “como un nuevo rico que descubre su inesperada ~ 0 fen mi caso postergada ~ riqueza” (p. 44). Quando desliga, percebe que 0 trabalhador polaco que estava fazendo alguns consertos em sua casa tinha ouvido que ela falava francés e que “se maravillaba” de seu poliglotismo. Molloy nos informa que o trabalhador polaco tem dificuldade para falar em inglés e que, as vezes, até se comunicam por gestos. Mesmo assim, antes de ir embora, 0 polonés arrisca dizer alguma coisa em inglés, alguma coisa que para Molloy parece ser inicialmente algo como deers ou bears, mas que “después de varias repeticiones y cierta mortificacién de ambas partes” (p. 42) descobre que era birds, passaros. As conclusées resultam significativas em relagdo a forma como podemos ver projetado 0 romance familiar de Molloy e os préprios mandamentos sociais e culturais da Argentina de sua infancia no multicultural Estados Unidos de sua maturidade: 161 Era su intento de otra lengua como la habia hablado yo por teléfono, lujosamente ed bien vale un qua cela ne tienne ~ y yo, todavia enajenada por mi lingistico y mi performance en francés, no habia entendido. Me ulpable.(p. 45) Esta Molloy com culpa de sua “riqueza” linguistica, de ter atravessado, poderiamos dizer, o Jordi do shibboleth, ou de nao ter ficado, como meta foriza no fragmento “Vuelo Directo’, em uma das “incémodas, desconcer- tantes (y a menudo humillantes) escalas” proprias dos “tra zamientos ‘os de los menos afortunados’, de aqueles que “viven entre un idioma postergado y otro idioma que no dominan del todo” (p. 56), recupera a dupla figuracio que Steiner (2002) elabora de Nabokov: um Hotelmensch (isto é, um deslocado, uma “victima de la barbarie pol tica del siglo” (STEINER, 2002, p. 21), mas também um escritor que passa ‘de una lengua a otra como un turista millonario” (Ibidem, p. referéncia ao romance familiar de Molloy, poderiamos concluir que parte de sua riqueza linguistica é oferecida como compensacéo a pobreza ou “desamparo lingiis dos a sua mae monolingue: “quise, desde muy temprano, recuperarlo [ao francés] en su nombre” (p. 14), declara zo fragmento significativamente intitulado “Pérdida’. E se o inglés vira a principal lingua de sua vida académica (como prova a escrita de At face Value. Autobiographical Writing in Spanish America, estudo publicado pela Cambridge University Press, em 1991), a sua tese de doutorado seré em francés e com uma emotiva dedicatéria: “A mémoire de mon pére" (MOLLOY, 1972, n.p.). Evocar o pai (bilingue) na lingua (recuperada) de sua mae parece ser nao s6 toda uma sintese de seu romance familiar, ‘mas também aponta para uma figura autoral que prefere se dizer menos a partir das sempre difusas origens do que a partir dos constantes desloca- -mentos ¢ ressignificagdes de legados ¢ fliagées. 0 ETHOS ACUSMATICO Em um trabalho académico sobre Los Naufragios de Alvar Nusiez, Molloy (1987) centra-se na cena em que 0 sobrevivente da fracassada expedicio de Narvaez, depois de anos de peregrinacao entre os varios grupos indigenas, contacta novamente os cristios. Trata-se de uma cena relevante da famosa relacién de 1537. Alvar descreve a “gran alteracin” que os espanhéis tém. 162 a0 vé-lo “tan extrafiamente vestido y en compafiia de indios’, e, como depois de olhar com grande aturdimento para ele por um grande periodo de tempo, 0s soldados “ni me hablaban ni acertaban a preguntarme nada” (NUNEZ, 1971, p. 87). Como na cena anéloga do cativo Aguilar, narrada em Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva Esparia (1568) por Bernal Diaz del Castillo, a corporalidade indigena que adotaram ou se apropriou dos cativos espanhéis confunde os soldados a0 ponto de impedir ou adiaro reconhecimento. Bentdo que tanto Aguilar quanto Alvar utilizam a lingua Para tentar dissipar o constrangimento de seus pares. “Dios y Santamaria y Sevilla’ artisca dizer Aguilar, em um espanhol “mal mascado y peor pro- nnunciado” (DIAZ DEL CASTILLO, 1977, p. 102), que Molloy (op. cit, p. 447), em relagao a Alvar, Ié como préprio de um “hispanohablante no espafol”. Como acontece com a sua corporalidade hibrida, podemos pensar que a lingua de Alvar nao responde mais a nenhuma das variantes regionais da Peninsula; e por isso, perturba, desloca o sistema estabelecido de identi- dades e reconhecimentos. Osotaque, a prosédia estrangeira como desestabilizadora de um reen- vio apaziguador a uma identidade anterior e ja (re)conhecida, é algo que interpela Molloy, cujo romance familia, talvez como um eco dos manda- mentos glotopoliticos da Argentina das primeiras décadas do século XX, se preocupou em tracar territ6rios linguisticos firmes e bem estabelecidos, 'Nio havia ali lugar (pelo menos na drea mais legitimada da vida cultural) para qualquer tipo de espanhol (ou inglés ou francés) “mal mascado y eor pronunciads’, pois se resignar a esse shibboleth niio garantia o gozo cde uma subjetividade (social e cultural) plena, Antes do que isso, qualquer sotaque era, paradigmaticamente, mero “cocoliche” (com todo o dano que este imaginario lingufstico infigia a qualquer pretensio de se dizer a par- tir de um sujeito consolidado). 11. Ennis (2007) argumenta que o “cocoliche” pouco ou nada esti relactonado @ vontade de dlferenciagdo prdpria de qualquer Aistingue o “coca fardo"). © imaginirio linguistico chamado scocoliche» ta conseguir falar i 3590, 0 "C00 a integragio (ef ENNIS, op. lt, p. 299-300). Em Gaspari linimica do “cocoliche”& da lalangue” no sentido de Alemin (sola, p 6 como “encuentro traumstico, sintomit trio con la lengua 163 Vivir entre lenguas narra, entre muitas outras coisas, 0 romance de ori- gem de certa inquietagdo intelectual como forma de conjurar 0 romance familiar: Sustentamos isto porque slo incessantes os momentos em que Molloy, para além dos mandados familiares que, de alguma forma, conti- ‘nuam em sua vida adulta, faz. surgir como objeto de indagacio te6 experiéncia daquele transgressor switcheo entre o inglés e o espanhol que em sua infincia e juventude apenas arriscava se dizer como “lengua privada” ‘com sua irma e que causava 0 desespero, quando feito entre o espanhol e 0 francés, de Madame Suzanne, sua professora naquela lingua. Como o sota- que, o switching é uma experiéncia que perturba a estabilizacao do familiar: “La mezcla, el iryel venir, el switching pertenece al dominio de lo untheimli- che que es, precisamente, lo que sacude la fundacién de la casa” (p.15). Como se a forsa dessa perturbagio do familiar fosse transportada e estimulasse uma area de seus interesses e estratégias de leitura, Molloy indaga, como fizera com o Alvar Nunez de Los Naufragios, uma série de autores caraterizados pelo bilinguismo familiar e/ou literdrio: Canet 24), Nabokov (p. 68), Conrad (p. 23), Roa Bastos (p. 24), Calvert Casey (p. 62), entre outros, sem esquecer um Juan Francisco Manzano ~ “de quien decir que manejaba dos lenguas, la propia, oral, y el espaiiol decimonénico del amo” (p. 74). O livro é precedido, além disso, por duas epigrafes: uma de Vicente Huidobro e outra de Fabio Moribito. Entre todos esses nomes, vou me deter na figura de Hudson, um escritor de lin- gua inglesa nascido na Argentina, a quem Molloy dedica dois fragmentos de Vivir entre lenguas. No primeiro deles, intitulado “Mansiones verdes y tierras purpuireas’ Molloy traga, no que diz respeito as filiagOes linguisticas e culturais em torno deste autor, dois ambitos plenamente territorializados: a leitura escolar e argentina de Hudson, por um lado, e as identificagées familia- as ¢, por fim, nacionais do proprio Hudson, do outro. Se para 0 primeiro desses ambitos, Molloy lembra a argentinizagio do seu nome (“Guillermo Enrique” por “William Henry” de mengio a0 tradutor nas edisées argentinas e o “tono apaisanado” (p. 54) do préprio narrador, aponta para 0 outro, para a conviccio de Hudson de ser inglés (apesar de ter nascido em Quilmes), a maneira como o autor se refere aos argentinos (em terceira pessoa sob a designacéo de the natives), & lingua deles (“the vernacular en lugar de Spanish’, p. 53) e a compreensio da sua 164 ida definitiva para a Inglaterra (a terra de seus avés; seus pais nasceram nos Estados Unidos) como um verdadeiro “going home” (p. 55). Molloy também resgata o titulo original de uma de suas obras, The Purple Land that England Lost (em relacio as falidas invasdes britanicas em Buenos rmente abreviado nas tradugdes argentinas como La tierra purpiirea, O fragmento “Para no perder el hilo” quebra, no entanto, essa ferrenha ‘Cuenta un amigo que cuando Hudson escribia y no encontraba una palabra en inglés la reemplazaba inmediatamente por la palabra en castellano para asi poder seguir la narracién sin perder el hilo. No otra cosa hace uno de sus personajes, un inglés instalado en la Argentina que, después de haber vivido ios among the gauchos, se habia olvidado casi desu lengua materna, Cuando tentaba hablar inglés con algin visitante, comenzaba en esa lengua pero luego vacilaba y su espariol, mis fluido, interferia la conversacién y la aca- Paraba. Terminaba hablando, dice Hudson, en unadulterated Spanish (p. 58) Se Molloy logo declara que teria gostado de ver “esos borradores de Hudson, ver su adulterated English, marcado por ese vaivén lingiistico del que es presa el escritor bilingite” (p. 58), € porque ela mesma, como confessa no fragmento ii eralmente comeca a escrever em uma lingua diferente daquela que finalmente seré a lingua do texto. Trata-se de “una escritura pasajera, un desperdicio, algo que no va a durar” (p. 70), mas que permite nao unicamente “no perder el hilo” mas também abrir o caminho de uma escrita inicialmente resistente, Estas s0 formas daquilo que, no fragmento intitulado “Frontera”, chamara, muito ‘en traduccién” (p. 69). Cabrera (2016) detecta, em uma andlise genética dos manuscritos do multilingue Manuel Puig, esse mesmo procedimento em seus rotei- ‘0s cinematograficos e até mesmo em alguns de seus textos literarios, Por exemplo, em seu romance Maldicién eterna a quien lea estas pdginas, escrito “al mismo tiempo en inglés y en espaitol” (CABRERA, op cit, p92). Cabrera revisita algumas leituras criticas desse romance, leituras que afir. mam repetidamente que nesse texto “El espafiol no suena ‘espaiil’ ni el idem, p.ig2). Porém, ainda mais importante que essa observagao (usual em textos escritos, para tomar a expressdo de Molloy, “en traduccién”) é a leitura de Cabrera no sentido de analisar como essa indeterminagao da lingua do original seria transferida para um aspecto de composicio dos personagens de Puig. Seguindo o conceito de “voz acus- ‘mitica’” de Michel Chion, Cabrera afirma certa “disyuncién entre las voces y el lugar que supuestamente las determina’ (Ibidem, p. 176), uma incon- sruéncia “entre la vor y el cuerpo de donde emana, entre quien habla y su ‘you que suena, en principio, extrafia” (Ibidem, p. 176-177). Considerando que Vivir entre lenguas termina com uma pergunta Sem resposta: “jen qué lengua soy?” (p. 76), poderiamos arriscar que o romance familiar de Molloy, caracterizado por uma ferrenha territor lidade social, sobrevive na autora como gratidao e reconhecimento (para © Pai, o inglés; para a mae, o francés). Contudo, essa gratido nao poupa as suas préprias linhas de fuga, a pergunta pela validade ou pelas razdes desses mandados ¢ historias familiares. E, nessa fuga, e em tudo o que ela supde de perda de territérios estaveis econsolidados, que Molloy inscreve sua tarefa intelectual, um ethos acusmatico' a partir do qual cada um dos los ou fragmentos de sua vida podem virar ensaio. Se Molloy, pode- 10s afirmar, com Flusser (2007p. 83), “vive ensaisticamente’, ou seja, torna-se aquela que no s6 “escreve ensaios’, mas para quem “a prépri vida € ensaio para escrever ensaios’, é porque ela teve a coragem, através do trabalho intelectual, de cr , uma passagem que interfere (para ganho de seu pensamento e escrita) na plena identificagao ‘com qualquer um de seus idiomas. MOLLOY, BARON SUPERVIELLE, ADNAN: OUTROS VIVERES, OUTRAS LiNGUAS woca a figura do poeta Jules Supervielle, “sujeto (P. 51), para se referir a sua ideia de que um escritor s6 pode ser escritor em uma lingua. Molloy nos informa que Jules Supervielle, ao se pensar como poeta francés, decide se afastar do espa- 12 De acordo com Goldchiuk, “en el terreno de a esritura, el espa ‘una lengua de traduccion, delegad, antes que una lengua ‘mate nunea una copia ‘CABRERA, 2016, p50) Longe de um fue para Manuel Puig, laos aqui de ethos no sentido mais plenamente retérico, isto &, como @ ‘moral del orador”(ARISTOTELES, 3978, p 43), ou em de sua autoridade discursva, 3 166 hol que permeia sua biografiae do qual s6restariam, ajulgar Por uma

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