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APATRIDADE, APATRIDA Pablo Gasparini Meee a eee ee sm, Comeso. Do ponto de vista legal, a condigdo apstrida se refere a um sujeito ‘que, por diversas razdes histéricase politicas ou por um mero conflito de legislagbes nacionais em relapio @atribuigio de nacionalidade, nfo goza do direito a mesma, Distante desse entendimento legal, este verbete se refere 2 ressignificagfo que 0 fildsof tcheco Vilém Flusser (Praga, 1920-1991 exilado no Brasil de 1940 até 1973) realiza desse conceit, retirando-o de sua negatividade e convertendo-o em uma forma de existéncia alternativa Aquela ensaizada em determinada patria. Em um de seus ensaios mais paradigméticos, “Habitar a casa na ap2- tridade (Patria e mistério ~ Habitaglo e habito)’, inserido na sesio “Re flexdes” de Badenles: uma autobiografa filsifca (2007), Flusser identifica a pétria com o hibito, com o exercicio inconsciente de um eédigo que per- mitiria, em principio, o marco necessirio para a vida: “sem habitaga0, sem protegio para o habitual e o costumaz, tudo © que chega até nés € ruido, nada é informasio, ¢ em um mundo sem informagbes, no caos, nio se pode nem sentir, nem pensar, nem agir" (2007, p.232).A patria, entendida c *habitagio” produida pelo "habito’, nfo supde uma transcendéncia, antes a “sacralizacio do banal” (p. 232) e, do ponto de vista estético, a con- sideragio do préprio como © “bonitinho", pois “Toda casa é bonitinha para seu habitante, porque ele esta habituado a ela” (p, 234). Essa considerasio, pela qual se afirma que “O patriotismo é sobretudo o sintoma de uma doen~ sa extétia” (p. 234), implica uma importante dimensio ética: (Quando considera « Provensa ow Allgiu bela, no significa que eu escobert ext tevtéio mas sim qu estou habiruado a ee, estou ras ao necesariamente de um erotic. idade bon vision de wm erro es entanto, se consiero So Pasloums do um pecado pit o eabertor de i do hibio, que esconde e are todos 0 fenémenos, nfo me dea mas ptceber 2 misériae2 que lf dominam, mas me permite continuar senting 0 sbafido, Nese caso, tornase paste daquelabelesinha ptr Bsa éa eatésuofe do ibito (FLUSSER, 2007, p. 234). A habitacio ou habito supde assim 0 “fundamento de uma conscien- cia’, mas também “uma anestesia, porque ela propria nfo é perceptivel mas apenas sentida de maneira abafada” (2007, p. 235), isto & 2B es Ee SSN forca do costume. Colocando em questio as mistificagdes éticas ¢ estéti- cas de determinada patria, 0 migrante, uma figura que arrasta “fragmentos de mistérios de todas as pitrias por que passou” (p. 235), no se encontra “ancorado em nenhum desses mistérios", demonstrando que a pétria nio é Jmprescindivel para “morar” nem garantia exclusiva da “habitagao": se mudar de pitria ou entio simplesmes Avschwite (FLUSSER, 2007, p. 232), A condigéo apitrida abre, por outro lado, a possbilidade de ser agen- te de ruptura do “bonitinho” ¢ de seu sagrado mistério, permitindo uma “dialética entre habitagio e inabitual, entre redundéncia e ruido” (1997, p. nde as certezas ¢ segurancas de determinada patria slo expostas 20 hegeliana da consciéncia infeliz que diz “que eu me perco a mim mesmo quando encontro o mundo ¢ perco o mundo quando me encontro a mim mesmo” (p. 233). ‘A condiglo apatrida que forma parte inerente da filosofia do baden- dos Busseriana, isto é, uma filosofia do nfo fundamento ou do “nfo chio”, guarda finalmente, através do recurso a0 nuclear conceito de “engajam € 2 uma reconversio do conceito de pétria, uma grande possibilidad bertiria. Decerto Flusser, ao rechagar 0 entendimento da pétria como uma rede de h conscientes ¢ mistificados, postula a ideie da mesma como © conjunto de “homens pelos quais tenho responsabilidade” (1997, p. 232), ‘ou seja, como um ato de liberdade pela qual se pode reunir uma série de compromissos com diversos grupos de pessoas: Ful langado em min sido perguntado ce eu imei ptra através do meu nascimento, sn cordava com ino, Ae amarras que Id me atavam aos meus consécis (Miemenscen) foram em grande parte ado ‘adas, Agora com ess iberdade que aleancei, sou eu mesmo que tego as ligages com ox companheiros (Mirmenchr) ena verdade em trabalho conjunto com eles. A responsabildade que eacrege por meus compa 24 tm anf), Sou praguense, paulistno, perteago ao clrclo de cultura chamadoalemo, ¢ eu im o aco para poder negi-lo (FLUSSER, 2007, p. 226) s6es do conceito de apétrida, no que tange a0 cultural ¢ se desenvolvem principalmente nos capitulos 7 (‘A natureza ")e 8 (‘A lingua brasileira”) da primeira parte de Bodenios. Entre outras considerasé + explica nesses capitulos seu “engsjamento” com o idioma portugués, que consistiré em eserevé-Lo com o ritmo “trégico do hexametro tcheco ~ uma decisio ideologica e estética que, segundo suas esp ‘mento Literdrio do Estado de S40 Paulo, no qual praguense escreveri 3s declaragées, nfo contari'com o consenso de seus colegas do Suple- sua estadia b Em relagio 0 biogrifico, Flusser confessa que, ap6s dez anos de sua chegada ao Brasil, ele assume o compromisso de construir “uma nova patria, livre de preconceitos e digna do ser humano” (2007, p. 228). A afirmagio sobressai sobre o escuro fundo europeu que o ha fido quando acaba- vva de chegar a0 cais do porto do Rio de Janciro, com a noticia da morte de seu pai assassinado, assim como o resto de sua familia, em um campo de concentragio). No entanto, o entusiasmo inicial para com 0 compromisso adotado ("tecer um futuro cédigo secreto, o cédigo de uma futura patria 230) parece ir perdendo forga a medida que (para seguir as tos da nova pitria vlo sendo “sacralizados". ruaglo percebida como origindria ao tempo como “pais vazio” ou “terra de ningué 220), se passa a uma dirime, segundo Flusser, entze « opeio pela tendéncia *populista” (repre sentada por Gettiio Vargas) ¢ a “tecnocritica’, aquela que, propondo uma 2s planificagio centralizada para a erradicagio da miséria, “pressupoe ditadura « impedimentos ‘provisésios’ para qualquer perturbagio social, politica e cultural do plano” (p. 231). Tendo elegido conscientemente est tltima pro- posta (‘Depois de 1964, ficou claro para mim que a vitdria da teenocracia sobze 0 ‘populismo’ era 0 tinico caminho para fazer do Brasil finalmente ‘uma patria’, p. 251), Flusser deve arcar com suas consequéncias politicas, claramente autoritirias e repressivas a partir do golpe militar que derrocaria © presidente Joio Goulart. Desse modo, ¢ paradoxalmente, a fundagio da pétria em termos tecnocriticos se traduz como decepsio € como desisténcia de seu “engajamento” brasileiro: Bean! coe progessvo que, em termos de ing n pudeimaginaroaapecto des pétria: um spare gigenter- patiticon af Sara ate de nenbums piriaevropela. Demorou ado ano de 1972 para que eu me deciisse, de maneira dolor a esistr de seu engajamento no Bra ose mora na Provenga, esse ant-Bras fbi a desecherta de g Aeotemente de nos tersidolangadnatavés do nascimento ou de estarmos se, nada tis € senda a scrlizasto do banal. A qe mans for, to & nada al de uaa habitagto enove- ros, B ainda: quando se deseja mantra liberdade da apa ‘widade, adguiida com sotiment, necestiro que a gene recuse smistifcagto dos habitos (FLUSSER, 2007, p. 231232) A decepsto com 0 Br cada psa, indepen cngsiados em wi partelpar de REFERENCIAS FLUSSER, Vilém. Bodenlos: uma autobiografia filoséfica. Sto Paulo: An- nablume, 2007. 2% EXTRATERRITORIALIDADE Pablo Gasparini Sd \ lerritorial: @ teoria romantica que, segundo Steine ‘obviamente encarna o gé (1990, p. 15), 0 ensaio se debruca sobre uma de sua producto litera em uma Ling ico verndculo. s a outros autores (Heine, Wilde, Beckett, Borg: patadigma principal d ingua de sua produsi, mas desloado ou em ra” (1990, p. 15). De f Nabokov, suas tradugo Sobre esse fundo mul dusio em lingua in se tipo de escritor “no cor Iembrada no ensaio a natureza poliglota de Loita, enuncia uma série de hipéteses de estudo da “interingua anglo a escrito ¢ que poder americana’ em que esse texto est didaticamente da seguinte manera 1) Com que frequéncia as frases inglesas de Nabokov sio metatra- dugdes do russo?—* 2) Até onde as associagbes semdnticasrussas geram as imagens que podem ser encontradas nas frases em inglés? 3) Considerando que a familia de Nabokov marchou para 0 exilio parte da prosa em inglés de a puro contrabando (una passagem ilegal pela fronteira) de sociedade que ele desprezava? 1 russ0s prisioneiros de uma 4) i em uma espécie de TEINER, 1990, p. 21) da rrusso, etc? 139 5) Seria interessante atentar para os imagindrios de lingua envolvidos. Segundo Steiner (1990, p. 21), 0 inglés de Nabokov invoca “os verses lilases de uma ordem aristocritica perdida eas ambiguidades erdticas de Lewis Carroll”. [As hip6teses levantadas por Steiner sobre Nabokov revelam um projeto estético assentado sobre a situagio de escrever "nio completamente em casa na lingua’ (STEINER, 1990, p. 15). Decerto, Nabokov nfo s6 produz em inglés sendo russo, mas também traduz Lolita do inglés para 0 russo, tendo, aliés, realizado retradugdes parao inglés de versbes russas de textos de Edgar Allan Poe. Isto é, em Nabokov a tradusdo, « autotraduglo ¢ a retraducio revelariam ‘uma forma de trabalho literdrio a partir das ressignificagSes permitidas pelas passagens entre as Kinguas, Dessa maneira, mesmo que 0s deslocamentos ter= ilo que Steiner chama de “a barbérie politica do século", os efeitos desses deslocamentos em relagio reinvencio lteréria em uma outra gua fariam de Nabokov um rico “potentado em viagem’ (1990, p. 18, 19) A reflexo que permitiria 0 conceito de extraterritorialidade nos ou- {ros autores mencionados ampl -1 a compreensio do mesmo. Por ritoriais obedess que Oscar Wilde faria do inglés ao fato de a Franca ser para um ilandés um contrapeso aos valores ingleses, isto é, haveria aqui uma razio fortemente politico-cultural. Contudo, no caso de Wilde haveria ainda outra hipétese proclamaria de ndo ser entendido exclusivamente como autor em inglés es- taria dizendo do seu direito a certa instabilidade identitria, especialmente relevante no que diz respeito 20 direito & instabilidade de género. Jé 0 caso de um outro irlandés, Samuel Beckett, que gana no livro um ensaio pra- ticamente dedicado a sua obra ("Da nuance ¢ do escripulo”),enfatiza uma das hipéteses assinaladas para a situagio de Nabokov, aquela que colocava a questio de uma “imaginagio multilingue”, Devido ao fato de que, em mui tos textos de Beckett, seria muito dificultoso nna qual teriam sido gerados, é colocada a existéncia de uma “criptol composta igualmente de francés, inglés, anglo-ielandés ¢ fonemas total- mente particulares” (STEINER, 1990, p. 17). O conceito de extraterritorial ‘ibuir com clareza a Kingua ade envolve, dessa maneira,diferen- rificos, tes problemiticas e razdes variadas, deslocamentos te 140 icos e questées de politica cultural e de género. 6 que esti sendo realgado € a condigio do gua. Como trabalhard Steiner em outcos mas também projetos es Contudo, em todos esses cas excritor moderno em relaydo principalmente em Aprés Babel (1978), essa relasio jé nto estaria sendo concebida como natural e dada 2 uma origem pura ¢tinica. Contra~ ramente a esse tipo de confianga, a relagio da modernidade literdria com a lingua estaria determineda pela sua condigio pés-edénica, pela perda dos mitos da transparéncia e da confiablidade no proprio dizer. Daf que 1 grande figura simbélica dessa condigto seja a do exilio. Nesse sentido, poderiamos atribui, a titulo de gesto precursor, que a construsio toda da figura do “extraterritorial” por Steiner poderia ser filiada a uma rica obser vagio de Adorno sobre Heine. No ensaio “A ferida Heine’, escrito a propésito do centendrio da morte desse escritor judeu aleméo, exilado grande parte de sua vida na Franga, Adorno afirma que: “Somente dispée da linguagem como um ins trumento aquele que, na verdade, nela no se encontra” (2003, p. 130). O “extra” que compe 0 conceito eriado por Steiner pode ser entendido, dessa rmaneira, como a necessidade de uma perspectiva externa em relasio gua (mesmo com aquela que se convenciona chamar de lingua materna), que permitria nko 26 a possibilidade de trabalhar nela esteticamente, mas também a capacidade de enxergé-la cientificamente, Nesse sentido, adqui importincia o subtitulo do livro no qual estd inserido 0 ensaio “Extrates- da insersio, no livro de Steiner, de uma série de ensaios (“O animal com “Linguistica e poétiea") onde o autor liga, com diversos matizes e enfoques, o que ele chama de “crise da lingua ‘icamente representada pela “Carta de Lorde Chandos” de linguagem’, “Linguas dos homens Circulo de Viena e no Circulo Linguistico de Praga. A tese forte de Stei- ner parece set, de fato,aideia de que o crescente sentimento de desgaste o inouficiéncia da lingua, em relaglo a suas capacidades de significasio, teria alentado uma indagagio sobre cla sob o olhar da ldgica e da ciéncia. Sem entrar aqui no posicionamento do préprio Steiner nesse debate ingua que, Jonge de qual- (quer redurio & légica, antes resgata o que a lingua teria de ambiguidade racial para a comunicasio ~, seria importante mencio- 141 nar outros aspectos que enriquecem o conceito de extraterri lee que seriam especialmente relevantes para a América Latina. Fago referéncia gui A inclusio do escritor argentino Jorge Luis Borges como um desses es- ingua de seu pai de que “com frequéncia um texto inglés ~ Blake, Stevenson, Coleridge, De Quincey ~ subjaz & expressio em espanol” (1990, p. 17), como também, fandamentalmente as literaturas de lingua inglesa. Esse entendimento de realgado na leitura de Steiner pela capacidade specifica, produz um ide, do seu sentido estrito de escrever em uma lingua outra, para um entendimento literstio: extraterri- a que, gracas a seu extraordindrio conhecimento de outras literaturas, produz. uma “amplitude vertiginosa de sua esfera alusiva” (1990, p. 40) ‘Nessa compreensio, deverfamos notar que, mesmo que a Steiner atente para certas condig6s dessa universalidade (no ensaio “Tigres no espelho” sio m igones, Macedonio Fernindez e Eva deslocamento do conceito de extraterritor itura de toda uma operatéria de politica cultural. Decerto, em seu ensaio “O escritor argentino ¢ a tradigio” (1953), Borges defende o direito do escritor sul-ame- ricano de trabalhar todos os temas, ¢ nfo apenas aqueles entendidos como proprios: um 30 de relacio ue o escritor sul-americano estabeleceria com o cerne da literatura europeia, ito que, segundo Borges, seria possivel pelo Borges ainda afirma que, de forma anéloga i relagio do islandés com a lingua Inglesa ou & do judeu com a cultura ocidental (resulta notivel a semelhanga dos exemplos com os de Steine de dentro-fora © escritor sul-americano teria um vinculo ‘raterritoril” poderiamos dizer) com os “temas europeus” {.dosnacionalistassimalam veneraascapacidades da mes GES, apud SCHWARZ, 1999, p. 152, ¢ 2 “extrterritoralidade” do escritor latino-americano, als, idade borgeana. Jé em 1926, Pedro Henriquez Urefia as- sentava Sua vor americanista na conviegdo de que “tenemos derecho a tomar de Europa todo lo que nos plazca tenemos derecho a todos los beneficios de la cultura occidental” (1988, p. 42) E, voltando ainda um pouco mais, Roberto Jembra que a noszo principal dessas observa~ 9 seu ensaio “Instinto de a pactir de uma reflexto assentada sobre a sua problem: iciona em 1969 teriam const cultural, 0 conceito de extraterrtorialidade que Steiner seando-se, principalmente, nos de A pertinéncia dessa reflexto para a América talvez possa ser sintetizads na observasio que o ensaists mexicano Octavio Paz elabora sobre a condigdo do portugués, do castelhano e do inglés no continente: “La lengua que hablasmos estuna lengua desterrada desu lugar de origen® (199, p. 51). REFERENCIAS ADORNO, ‘Theodor W. A ferida Heine. Ir: Notas de literatura I. ‘Tradusto de Jorge de Almeida, Sio Paulo: Editora 34, 2003. p. 127-134, PAZ, Octavio. Alrededores de la ‘Obras completas. México: FCE, 1991. t. eratura hispanoamericana. In: ____, . 49-57, SCHWARZ, Roberto. A nota especifica, In: _____. Sequéncias brasi Ieiras: ensaios, Sao Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 151-154. STEINER, George. Extea gem [1972]. Tradusto de Julio Castafion Guimaries. shia das Letras, 1990. io Paulo: Compa- 3 STEINER, George. Aprés Babel: une poetique du dire et de la traduction. Paris: Albin Michel, 1978. La URENA, Pedro Henriquez. El descontento y la promess. In: utopia de América, Caracas: Ayacucho, 1989. p. 33-45.

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