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princípio, apesar de, no absoluto, seu triunfo corresponder à morte do princípio.
Assim, a questão não é exatamente escolher entre standard e princípio, mas
demonstrar em que uma modalidade prática – ou, para chamá-la por seu nome,
um dispositivo – é ou não coerente com o princípio que a inspira, ou capaz de
relançar ou mobilizar esse princípio. Enumerarei alguns pontos que podem ser
úteis a essa discussão.
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contingente4, torna-se uma regra universal, e o significante ideal “psicanálise”
passa a excluir todos os que praticam o tratamento em, por exemplo, duas ou três
sessões por semana. Como afirma Esthela Solano-Suarez, “esse padrão adquire
assim a função do Um graças ao qual se torna possível construir um conjunto
homogêneo, aquele de todos os praticantes que a ele se conformam”5.
Um standard, portanto, não é só uma convenção, um acordo celebrado por
determinado grupo, mas também uma disciplina. Tampouco é a simples
estereotipia de uma prática ou opinião, uma espécie de hábito consagrado – e
desgastado – pela repetição, mas sim um padrão de conduta.
Na oposição entre standard e princípio em psicanálise, o primeiro representa
o que se repete sem invenção, a reprodução do mesmo, enquanto o segundo se
refere à singularidade, ao caráter único e irrepetível de um objeto ou ato. O ideal
último do standard é um princípio que passe por inteiro à modalidade, a ponto de
já não se distinguir dela.
Para usar um termo de Walter Benjamin no célebre artigo sobre a obra de
arte publicado na segunda metade dos anos 19306, o princípio está de alguma
maneira ligado à “aura” do objeto, isto é, àquilo que faz com que cada objeto seja
único. A autenticidade, para Benjamin, é representada por esse caráter único do
objeto: “À mais perfeita reprodução faltará sempre uma coisa: o hic et nunc da obra
de arte – a unicidade de sua existência no lugar em que se encontra [...]. O hic et
nunc do original constitui o que se chama sua autenticidade [...]. Tudo o que diz
respeito à autenticidade escapa à reprodução”7.
Há, naturalmente, uma diferença entre a unicidade ou autenticidade de
4 “[…] sou obrigado a dizer expressamente que essa técnica se mostrou ser a única adequada à
minha individualidade; não me atrevo a pôr em dúvida que uma personalidade médica de
constituição bem diversa possa ser levada a preferir outra atitude diante dos pacientes e das tarefas
por solucionar” (Freud, Sigmund. “Consejos al médico sobre el tratamiento psicoanalítico” (1912).
Em: Obras completas, vol. XII. Buenos Aires: Amorrortu, 1974, p. 111).
5 Solano-Suarez, Esthela. “Seguir um fio”, Papers do Comitê de Ação da Escola Una, n. 3, lista EBP-
Veredas, 04 de fevereiro de 2003.
6 Benjamin, Walter. “L’oeuvre d’art: dernière version” (1939). Em: Oeuvres III. Paris: Gallimard,
2000, p. 279. Benjamin define “aura” como “a única aparição do longínquo, por mais próximo que
esteja” (ibid. p. 278).
7 Ibid., p. 273-4.
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Benjamin e a do ato analítico. Enquanto para ele a experiência da unicidade é um
resíduo da função mágica ou ritual que a obra de arte desempenhou em sua
origem remota8, a “aura” do ato analítico está no ponto de passagem do
psicanalisante a psicanalista. Em uma frase conhecida, Lacan chama esse ponto de
passagem de “sombra espessa que recobre esse raccord9 do qual me ocupo aqui,
esse raccord no qual o psicanalisante passa a psicanalista – eis o que nossa Escola
pode se entregar a dissipar”10.
O que o standard dissimula, ou seja, o que, como “sombra espessa”, recobre,
é o fato de que a passagem que define o ato analítico, de psicanalisante a
psicanalista, implica, se posso manter a metáfora hidráulica do raccord, uma
mudança de calibre: feita essa passagem, já não se é mais o mesmo. A “sombra
espessa” que dissimula a hiância por sobre a qual se dá a passagem faz crer que
esta se faz em continuidade, sem ruptura.
A única autenticidade do analista, contrariamente àquela perseguida como
ideal na cultura e sintetizada na fórmula “eu sou igual a mim mesmo” (cuja
contrapartida patológica, segundo Alain Ehrenberg, é a atual importância social da
depressão11), vem do fato de que o prefixo autós representa não a interioridade,
mas, ao contrário, um afastamento da pessoa, exatamente como na constatação
lacaniana segundo a qual “o analista só se autoriza de si mesmo”. Nesse aforismo,
a presença de dois termos que aparentemente dizem respeito ao eu, autós e si
mesmo, não impede que a frase vise, como nenhuma outra, à superação da
interioridade. Jacques-Alain Miller expressou bem essa exigência quando definiu o
analista como aquele que está disponível ao uso que se fizer dele.
8 “O valor único da obra de arte ‘autêntica’ se funda nesse ritual (religioso ou mágico) que foi o
valor de uso original e primeiro” (ibid., p. 280).
9 Raccord, segundo o Petit Larousse Illustré: adaptação de duas partes que apresentam alguma
diferença//peça metálica que permite juntar dois canos//demão que preenche uma solução de continuidade em
uma pintura. Em português, no vocabulário da hidráulica, raccord se diz “redução”.
10 Lacan, Jacques. “Proposition du 9 Octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École” (1967). Scilicet, n.
1. Paris: Seuil, p. 24.
11 Ehrenberg, Alain. La fatigue d’être soi: dépression et société. Paris: Odile Jacob Poches, 2000, p. 14.
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2. O standard mantém com o princípio uma relação complexa, ao mesmo tempo
de proteção e negação
O standard pode servir para proteger o princípio, isto é, para que os conceitos não
se percam, mesmo que não se considerem as implicações práticas e éticas desses
conceitos. Uma das vertentes da crítica de Lacan à IPA vai nesse sentido. À
maneira dos obsessivos ou da religião12, produz-se uma espécie de
encapsulamento do real, que permanece, mas denegado. O efeito é a eliminação da
contingência e da surpresa.
Podemos ilustrar a relação complexa entre standard e princípio, ao mesmo
tempo de proteção e negação, com um exemplo extraído da propaganda. Trata-se
do comercial do Peugeot 206 atualmente veiculado na televisão, e que pode ser
resumido em três cenas principais.
Na primeira, um rapaz do Terceiro Mundo (aparentemente da Índia)
arrebenta seu carro, de modelo antigo e formato clássico: investe contra um muro,
faz um elefante se sentar sobre a lataria, opera uma solda elétrica… Notamos que
sua intenção é achatar o carro, mudar sua forma, ou seja, trata-se não de
destruição, mas de transformação.
Na segunda, o rapaz desdobra um pôster no qual se vê uma grande
fotografia do Peugeot 206. Sua forma ovóide explicita melhor a intenção do
personagem.
Finalmente, na terceira, acompanhado de amigos, dirige seu velho carro
transformado, vagamente parecido com o Peugeot 206 – uma versão Flinstones,
digamos. Nesse ponto, entendemos que todo seu trabalho visava à conquista de
certa garota, para a qual ele agora olha orgulhoso ao volante de seu novo/velho
carro, enquanto se balança ao som de uma música animada.
Esse comercial consegue mostrar algo que é um constante desafio para a
publicidade: como vender um produto standard, isto é, construído para o consumo
universal, que não leva em conta o sintoma particular de cada um, tentando
12 Cf. Lacan, Jacques. “La science et la vérité” (1966). Em: Écrits. Paris: Seuil, em particular a p. 872.
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convencer o consumidor de que é no acesso ao standard que ele alcançará a
singularidade. Ou, dito de outra maneira, a publicidade ensina que se pode fazer o
standard equivaler ao objeto único que se encontra na fantasia, e ao qual o
comercial oferece um correspondente metonímico, à disposição de qualquer um
que possa pagar por ele.
O personagem do comercial não percebe – e é isso que lhe dá tom
humorístico, além do fato de que, como ensinou Freud, fazer rir escamoteia o
fundo superegóico da injunção – que sua verdadeira façanha não é ter produzido
um objeto parecido com o Peugeot 206, a ponto de quase substituí-lo, mas sim ter
escavado uma diferença máxima.
O anúncio preserva o princípio (no caso, a singularidade e a criação), mas o
desloca para a fantasia, cujo objeto, justamente por ser único, não passa ao coletivo.
Da mesma forma, a contingência se desloca para a fantasia: o velho carro se
transforma no novo modelo ideal, ou seja, é por meio do velho objeto que o novo
se torna singular. A verdadeira criação, ensina o anúncio com certo cinismo que a
comicidade tempera em parte, se acha na adesão ao standard.
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do significante: “o mesmo significante em um outro contexto tem outro sentido” 13.
Após escrever D. Quixote exatamente com as mesmas palavras de Cervantes, Pierre
Menard inventa no final algo novo. Explica Borges: “Compor o Quixote no começo
do século XVII era uma empresa razoável, necessária, talvez fatal; no começo do
século XX, quase impossível. Não em vão transcorreram trezentos anos, carregados
de complexíssimos fatos. Entre eles, para mencionar um só: o mesmo Quixote”14.
Outra passagem vai no mesmo sentido: “O estilo arcaizante de Menard –
estranho, no fim das contas – padece de alguma afetação. Não assim o do
precursor, que maneja com desenfado o espanhol corrente de sua época”15.
Isso significa que entre o Quixote de Cervantes e o de Pierre Menard
imprimiu-se uma marca no real, representada pela própria presença do texto de
Cervantes na cultura. Entre os dois emerge uma diferença que faz com que a
repetição literal possa ser um ato de criação. No fundo, há três Quixotes: o
primeiro, escrito por Miguel de Cervantes há trezentos anos; o terceiro, atual, de
autoria de Pierre Menard; e, entre os dois, um sulco que atravessou a cultura
durante os três séculos e que também tem por nome Quixote. Este último é a causa
de desejo que permite a Pierre Menard ser ao mesmo tempo literal e diverso.
Reunindo e articulando os três, opera um dispositivo ficcional que atende pelo
nome de Borges.
Na análise, o diferencial é o desejo do analista como causa. Em meu
entender, isso está contido nas palavras de Jésus Santiago: “Talvez se possa dizer
que a prática lacaniana é o avesso do standard na medida em que toma o
inconsciente como relativo ao desejo do analista, relativo porque aquele apenas se
realiza como invenção de saber, segundo meios que se mostrem orientados pelo
real inerente ao momento de concluir”16.
13 Miller, Jacques-Alain. “O último ensino de Lacan”. Opção Lacaniana, n. 35. São Paulo, janeiro de
2003, p. 17.
14 Borges, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor del Quijote”, Ficciones (1944). Em: Obras completas
1923-1972. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 448.
15 Ibid., p. 449.
16 Santiago, Jésus. “O princípio temporal da prática lacaniana”, Papers do Comitê de Ação da Escola
Una, n. 1, lista EBP-Veredas, 10 de fevereiro de 2003.
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Isso significa que no standard não há inconsciente? Não, significa que o
inconsciente se produz nos tropeços do standard e em suas falhas, onde e quando
menos se espera.
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unanimemente a um protocolo anteriormente comprovado.
O grande problema, que não pode ser resolvido nos limites do standard, é
que a garantia contra o capricho é, no caso, a mesma que opera contra o desejo do
analista.
É precisamente porque o standard é uma forma de garantia que Graciela
Brodsky, em sua apresentação dos Papers18, nos leva a imaginar uma situação –
nem tão imaginária assim – na qual os analistas lacanianos, supostamente
liberados do standard, nos veríamos sujeitos ao olhar e mesmo à inquirição de um
Outro de má vontade que não se deixa convencer por nossas belas palavras, não
acredita em nossa extraterritorialidade, não volta mais tarde se pedimos que a
secretária lhe diga “o doutor está ocupado” e se dá o direito de exigir explicações
precisas e compreensíveis.
Na Escola, trata-se não de verificar as vantagens e desvantagens do standard,
que recusamos por princípio, mas de levar o mais longe possível a discussão sobre
a garantia. Essa discussão deverá nos levar, por exemplo, a saber um pouco mais
sobre o AME, esse curioso personagem criado por Lacan que, ao mesmo tempo em
que é resíduo de uma estrutura institucional anterior à Escola – ele é, em parte,
herdeiro dos didatas –, deveria ser capaz de testemunhar algo importante sobre a
formação lacaniana do psicanalista e o exercício da psicanálise.
Vivemos atualmente um tempo em que algo de novo precisa ser dito, até
por força da exigência de profissionalização que pouco a pouco nos atinge, em
função das diferentes tentativas de regulamentação da profissão de psicanalista
feitas há alguns anos ao redor do mundo.
18 Brodsky, Graciela. “Apresentação de Papers”, Papers do Comitê de Ação da Escola Una, n ° 1, lista
EBP-Veredas, 10 de fevereiro de 2003.
19 Seldes, Ricardo. “Os três momentos das regras técnicas”, Papers do Comitê de Ação da Escola Una,
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força não da contestação que a modalidade possa ter sofrido no interior do campo
psicanalítico – por exemplo, pela “crítica assídua” recomendada desde 1964 por
Lacan –, mas das transformações na civilização, no capítulo da chamada crise dos
universais: em um mundo no qual a exigência de igualdade tende a diminuir o
impacto das enunciações, o encontro analítico passa, naturalmente, a ser marcado
pela igualdade analisante-analista.
Já não se trata mais do velho standard, surgido em um momento preciso
como apelo ao discurso universitário sob a forma da burocratização, visando sem
dúvida à manutenção defensiva da psicanálise. Da psicanálise como um todo,
entenda-se. A igualdade ao preço das enunciações é diferente, uma vez que são os
próprios significantes da psicanálise que tendem a ser postos em questão. Em vez
da burocracia, o predomínio da democracia histérica. Nos termos de Ricardo, há
uma reação “ao princípio da autoridade”, considerado “obstáculo à livre
conversação entre dois seres com iguais direitos”.
No entanto, como ocorre fatalmente com o discurso histérico, há sempre um
momento de rendição à impotência. No auge da igualdade, surge de repente o
espectro da indiferenciação, que se torna, como indica Eric Laurent, “o Uno que faz
todos parecidos”20.
Será esse “Seja original, faça como todo mundo” um novo standard? Talvez
venham a existir standards múltiplos, inspirados por amos de um novo tipo,
bastando para isso que a noção de standard se separe da exigência de uma só
norma para todos. Chegado esse momento, teremos de retomar o gume da crítica
lacaniana ao standard, ou seja, teremos de explicitar nossos princípios.
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