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ANEXO

Questionário

ARTE SOBRE FOTO DE JOÃO VIANA DA SILVA

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414
ARTE SOBRE FOTO DE JOSÉ VARELLA
CAPÍTULO 1

Contextualizando o
"Levantamento Nacional dos Abrigos
para Crianças e Adolescentes
da Rede de Serviços
de Ação Continuada"
21
Enid Rocha Andrade da Silva e Simone Gueresi de Mello
22
1.1 AS POLÍTICAS PARA A INFÂNCIA E A
ADOLESCÊNCIA NO BRASIL

1.1.1 Breve histórico

A trajetória do locus institucional do tema infância e adolescência no Brasil,


ao longo dos anos, teve inúmeras variações, reflexo das diferentes óticas sob as
quais já foi visto dentro do aparato estatal — desde uma perspectiva correcional
e repressiva, visando proteger a sociedade de crianças e adolescentes “em situação
irregular”, até uma visão de garantia de direitos, com o objetivo de oferecer
proteção integral a todas as crianças e a todos os adolescentes.1

Até 1900, o atendimento às necessidades sociais da população brasileira era


de responsabilidade da Igreja, que o fazia principalmente por meio das Santas
Casas de Misericórdia. Não havia qualquer atuação do Estado nesse sentido.
Somente em 1922 começa a funcionar, no Rio de Janeiro, o primeiro
estabelecimento público para atendimento a crianças e adolescentes. Em 1942,
foi criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), então ligado ao Ministério
da Justiça, que era o equivalente ao Sistema Penitenciário para a população de
menor idade, com enfoque tipicamente correcional-repressivo.

Ainda no governo de Getúlio Vargas, na mesma época do SAM, foi criada


a Legião Brasileira de Assistência (LBA) para dar apoio aos combatentes da II
Guerra Mundial e a suas famílias, tendo, depois, se estabelecido como instituição
de assistência suplementar para a sociedade civil de modo geral.
23
Após 30 anos de luta da sociedade para acabar com o SAM, em razão de
suas práticas tipicamente repressivas, no ano de 1964 — primeiro ano do regime
militar — é estabelecida a Política Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM),2
com proposta claramente assistencialista, a ser executada pela Fundação Nacional
de Bem-Estar do Menor (Funabem). O objetivo era dar um caráter nacional à
política de bem-estar de crianças e adolescentes. A Funabem surgiu como
integrante do Ministério da Justiça, tendo sido transferida, depois, para a
Previdência Social, na qual permaneceu de 1972 até 1986.

1
Para um estudo mais detalhado, ver COSTA, 1994.
2
Lei 4.513/64.
Em 1979, foi aprovado o Código de Menores,3 que tratava da proteção e da
vigilância às crianças e aos adolescentes considerados em situação irregular e se
constituía num único conjunto de medidas destinadas, indiferentemente, a menores
de 18 anos autores de ato infracional, carentes ou abandonados — aspecto típico
da doutrina da situação irregular que o inspirava.

No fim dos anos 1970, surge um movimento social com uma nova visão
sobre crianças e adolescentes — considerando-os sujeitos de sua história —,
que evidenciava, entre outras coisas, a perversidade e a ineficácia da prática de
confinamento de crianças e adolescentes em instituições.

Na década de 1980, que se caracterizou pelo início da abertura democrática,


a legislação e as políticas destinadas aos “menores” passam a ser vistas como

24 representativas do arcabouço autoritário do período anterior. Ao mesmo tempo,


o menino de rua torna-se a figura emblemática da situação da criança e do adoles-
cente no Brasil. O crescimento e a consolidação dessas discussões culminaram
com a criação, em 1986, da Comissão Nacional Criança e Constituinte. No mesmo
ano, já no governo de José Sarney, a Funabem foi para o Ministério do Interior,
então responsável pelas áreas social e de desenvolvimento.

Em 1988, a nova Constituição Federal representou um marco na garantia


de direitos básicos. Nesse contexto, a Constituição contempla a proteção integral
a crianças e adolescentes em seus artigos 227 e 228, além de introduzir no
arcabouço legal brasileiro o conceito de seguridade social, agrupando as políticas
de assistência, previdência social e saúde.

Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) coroa a doutrina


da proteção integral, constituindo-se na única legislação no contexto latino-
americano adequada aos princípios da Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito da Criança.

Em decorrência da aprovação do ECA, a Funabem foi extinta, tendo sido


criada a Fundação Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência (FCBIA),
dentro do Ministério da Ação Social, cuja estrutura tinha como objetivo contemplar
os novos princípios do estatuto e realizar a ação integrada com as outras esferas
de governo.

3
Lei 6.697/79.
Em 1995 extingue-se a FCBIA, juntamente com a LBA, no processo de
implementação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)4 pelo governo de
Fernando Henrique Cardoso. Com a extinção desses órgãos, suas atribuições
foram assumidas pela Secretaria de Defesa dos Direitos da Cidadania, no
Ministério da Justiça, e pela Secretaria de Assistência Social, no Ministério da
Previdência e Assistência Social.

Em 2003, primeiro ano do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva,


a área dos direitos humanos foi desmembrada do Ministério da Justiça, tendo
sido criada a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), ligada à
Presidência da República. Dentro da SEDH, o tema crianças e adolescentes está
a cargo da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente
(SPDCA). Já a assistência social chegou a ter, no início do mesmo ano, o status de
ministério, voltando a ser, no começo de 2004, uma secretaria integrante do novo
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

1.1.2 Crianças e adolescentes em situação de abandono:


atribuições e competências das áreas de direitos
humanos e de assistência social

A extinção das agências federais LBA e Fundação Centro Brasileiro para a


Infância e a Adolescência (FCBIA) fez com que as atribuições institucionais
relativas à infância e à adolescência fossem redirecionadas para outros órgãos.
As ações relacionadas a suporte, promoção e articulação para a efetivação dos
direitos da criança e do adolescente, conforme previsto no ECA, foram assumidas 25
pela área governamental voltada para defesa e promoção dos direitos humanos,
hoje SEDH. As ações referentes à execução do atendimento em instituições,
bem como ao suporte técnico e financeiro para os programas na área da infância
e da adolescência, foram assumidas pela pasta governamental responsável pela
Política Nacional de Assistência Social, atualmente a Secretaria de Assistência
Social do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

No tocante ao atendimento a crianças e adolescentes em situação de


abandono e vítimas de maus-tratos e/ou violência, as ações são realizadas de
forma integrada pelas áreas de direitos humanos e de assistência social do governo
federal.

4
Lei 8.742/93.
Com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, mais especificamente a
Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente,5 ficam as
ações de defesa e garantia da proteção integral no atendimento aos direitos da
população infanto-juvenil. A área de direitos humanos atua no sentido de assegurar
que os direitos previstos na legislação sejam atendidos.6 Em linhas gerais, pode-
se afirmar que a subsecretaria é responsável pela coordenação nacional da Política
de Proteção Especial às Crianças e aos Adolescentes em Situação de Risco Pessoal
e Social, cujo atendimento não seja contemplado no âmbito de atuação das demais
políticas setoriais – saúde, educação e assistência social.7 A Política de Proteção
Especial envolve todo o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do
Adolescente, composto por Conselhos de Direitos e Tutelares, Ministério Público
e Judiciário.
26 Assim, no campo das competências do governo federal para o atendimento
integral dos direitos da criança e do adolescente, observa-se a atuação em tripé.
Primeiro, o atendimento aos direitos sociais básicos, cuja responsabilidade está
com os ministérios setoriais, que contemplam as políticas de educação, saúde,
esporte, cultura, lazer etc. Em segundo, está a política pública de assistência
social, que se volta para aqueles que se encontram, por algum motivo, desatendidos
de suas necessidades básicas: carência alimentar e material, falta de moradia etc.
Em terceiro, estão as ações vinculadas à proteção especial, que se voltam para
garantir e proteger a dignidade, inerente à pessoa humana, daqueles que já tiveram
seus direitos violados: assistência médica, psicológica, jurídica, oferecimento de
abrigo, segurança, entre outras.

5
Até dezembro de 2002, funcionava no Ministério da Justiça, com o nome de Departamento da Criança e do
Adolescente (DCA).
6
CENTRO BRASILEIRO PARA INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA. Vale a pena lutar: diretrizes básicas e
missão institucional do CBIA. Brasília, 1991.
7
Atribuições e competências na área da infância e da adolescência da Secretaria de Assistência Social e da Secretaria
dos Direitos da Cidadania (resultado dos trabalhos do grupo técnico instituído, em junho de 1995, para propor
novas atribuições na área da infância e da adolescência aos órgãos recém-criados).
1.2 A REDE DE SERVIÇOS DE AÇÃO CONTINUADA –
SAC/ABRIGOS E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

As ações assistenciais regulamentadas pela Lei Orgânica da Assistência Social


(LOAS) e materializadas em ações e programas no âmbito da Secretaria de
Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
são de cinco tipos, conforme descrito no quadro 1. A Rede SAC/Abrigos para
crianças e adolescentes inclui-se na modalidade “serviços assistenciais”,
juntamente com o atendimento de crianças em creches (SAC/Creche), com os
serviços de habilitação e reabilitação de pessoas portadoras de deficiências (SAC/
PPD) e com o atendimento a idosos em asilos ou em meio aberto (SAC/Idosos).
As características básicas desses serviços são o atendimento continuado e a
definição de recursos em valores per capita.

QUADRO 01
Ações da esfera federal na área de assistência social

(i) Benefícios de prestação continuada (BPC) — asseguram uma renda monetária


mensal, na forma de um salário mínimo, para idosos e para as pessoas portadoras
de deficiências que não tenham condições de garantir o próprio sustento.

(ii) Benefícios eventuais — asseguram um salário mínimo para famílias de baixa


renda em situações de nascimento (auxílio-natalidade) e de morte (auxílio-funeral).

(iii) Serviços assistenciais de atividades continuadas — visam à melhoria de 27


vida da população, e suas ações estão voltadas para as necessidades básicas, com
prioridade à infância e à adolescência em situação de risco pessoal e social.

(iv) Programas de assistência social — compreendem as ações integradas e


complementares com objetivo, tempo, área e abrangência definidos para qualificar,
incentivar e melhorar os benefícios e os serviços assistenciais.

(v) Projetos de enfrentamento da pobreza — são investimentos econômicos e


sociais voltados para grupos populacionais em situação de pobreza, buscando
subsidiá-los técnica e financeiramente.
Assim, de acordo com a LOAS, o atendimento de crianças e adolescentes
em abrigos é parte integrante das atribuições da área de assistência social. O
objetivo e a forma como se deve dar esse atendimento são estabelecidos pelos
princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Entretanto, ainda que a LOAS tenha consolidado as inovações introduzidas


pela Constituição Federal de 1988 — situando a assistência como parte integrante
do Sistema de Seguridade Social, responsabilidade do Estado e como direito
universal gratuito e não-contributivo — e o Estatuto da Criança e do Adolescente
tenha determinado que a colocação de crianças e adolescentes em abrigo é uma
medida de proteção que se caracteriza pela provisoriedade, persistem as contra-
dições que não são superadas pela simples definição legal.

Na prática, os agentes encarregados da implementação dos programas de


28 abrigos são, na maioria, entidades assistenciais que atuam segundo suas próprias
crenças, nem sempre coincidentes com os objetivos e os princípios da LOAS e
do ECA. De fato, o atendimento em serviços de abrigo para crianças e adolescentes
sempre teve maior participação de instituições filantrópicas e religiosas do que
de serviços governamentais.

Na Secretaria de Assistência Social, a Rede SAC/Abrigos para crianças e


adolescentes é tratada como uma “herança histórica”, recebida com a extinção
da FCBIA, para a qual não se conta com estudos técnicos para definição do valor
do benefício per capita/mês e, tampouco, com critérios para a partilha dos recursos
entre estados e municípios. A assistência social dentro do aparato estatal desen-
volveu maior experiência no atendimento a crianças em creches e nos serviços
destinados a pessoas idosas e a portadores de deficiência, que são os indivíduos
enquadrados na incapacidade individual para o trabalho e, portanto, público-alvo
característico das ações assistenciais do Estado.

Assim, a área da assistência social federal concedeu ao atendimento de


crianças e adolescentes em abrigos o mesmo tratamento dado às creches e aos
asilos de idosos. Nesse sentido, o aspecto do financiamento é ilustrativo, pois os
abrigos, que na época da FCBIA eram financiados pela modalidade de projetos,
passaram, no âmbito da assistência, a ser financiados por meio do repasse per
capita. Ou seja, as instituições cadastradas recebem um recurso mensal de acordo
com a meta de atendimento preestabelecida.

A principal crítica a esse procedimento é que a finalidade dos abrigos é bem


diferente da finalidade das creches. Enquanto estas últimas cumprem uma função
educativa, à qual se agregam as ações de cuidado contínuo com crianças entre
zero e seis anos que vivem em um núcleo familiar, os abrigos são equipamentos
de proteção provisória para crianças e adolescentes que necessitam permanecer,
com vistas à própria proteção, temporariamente privados da convivência familiar.

Assim, conquanto o financiamento per capita represente um avanço - uma


vez que agiliza e descentraliza o repasse dos recursos - e uma maior eficiência,
por utilizar menor quantidade de recursos humanos do que a modalidade de
financiamento por projetos, pode, por outro lado, desestimular as instituições a
implementar ações que promovam a volta da criança e/ou do adolescente ao
convívio familiar e comunitário, contrariando os princípios do ECA.8

Na verdade, as características atuais da gestão da Rede SAC/Abrigos no


âmbito da Secretaria da Assistência Social – ausência de estudos técnicos sobre a
melhor forma de financiamento dessas instituições e para a definição de um
valor per capita/mês adequado, bem como a falta de critérios técnicos para a
partilha de recursos e de metas entre os entes federados — indicam que essa
ação não tem recebido prioridade no rol dos programas desenvolvidos na
modalidade “serviços” da assistência social.

O caráter residual do atendimento de crianças e adolescentes em abrigos


também aparece no detalhamento do número de pessoas atendidas na Rede SAC
como um todo: em 2000, enquanto a Rede SAC/Creche atendia cerca de 1,4
milhão de pessoas, a Rede SAC/Pessoas Portadoras de Deficiência, 141,6 mil e a
Rede SAC/Idoso, 266,4 mil, a Rede SAC/Abrigos atendeu apenas 24 mil crianças
e adolescentes.

Outra informação importante que indica o atendimento residual feito por


29
meio da Rede SAC/Abrigos é a comparação entre o número de entidades atendidas
pelo programa e o total de entidades de abrigo existentes em alguns municípios
brasileiros.9 O universo dos abrigos contemplados pela Rede SAC no município
de São Paulo, por exemplo, é de apenas 17,5%; em Porto Alegre, apenas 22%; e
no Rio de Janeiro, 15,8% (tabela 1).

8
No entanto, vale registrar que alguns programas financiados pela Rede SAC já estão se adequando aos novos
princípios do estatuto e substituindo o financiamento a instituições pelo financiamento a famílias acolhedoras,
que viabilizam tanto a manutenção de uma convivência familiar para as crianças e para os adolescentes quanto o
caráter provisório da medida. Essas iniciativas, porém, ainda são incipientes, visto que, do total de entidades
cadastradas na Rede SAC/Abrigos, menos de 1% desenvolve esse tipo de programa.
9
A informação sobre o total de abrigos para crianças e adolescentes existentes não pôde ser obtida nos cadastros
nacionais de entidades do Conselho Nacional de Assitência Social do Ministério da Previdência e Assistência
Social e de Utilidade Pública do Ministério da Justiça, visto que não são agregados por modalidade de atendimento.
Por isso, optou-se por apresentar alguns exemplos de municípios onde as informações estavam disponíveis.
TABELA 01
Entidades contempladas pela Rede SAC/Abrigos para Crianças e Adolescentes
em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre (2003)

Município Nº total de Nº de abrigos % b/a


abrigos (a) beneficiados pela
Rede SAC (b)
São Paulo 80* 14 17,5
Porto Alegre 77** 17 22,0
Rio de Janeiro 120*** 19 15,8

* Sendo 29 abrigos conveniados com o Executivo municipal e 51 conveniados com o Executivo estadual.
(Plano de Assistência Social do Município de São Paulo, 2003).
** Informação obtida no site do Tribunal de Justiça de Porto Alegre: www.tj.rs.gov.br
*** Associação Terra dos Homens, 2003.
30

1.2.1 Financiamento da Rede SAC/Abrigos

O repasse de recursos federais às instituições da Rede SAC encontra-se


respaldado na LOAS, que estabelece que a União, os estados e os municípios
podem celebrar convênios com entidades e organizações de assistência social,
em conformidade com os planos aprovados pelos respectivos Conselhos de
Assistência Social.

Até 1999, o financiamento dos abrigos para crianças e adolescentes dava-se


no âmbito do Programa Brasil Criança Cidadã (BCC), que foi criado em 1996 e
extinto em 1999, e se situava na categoria “programas de assistência social”. Somente
a partir de 2000 é que os serviços de abrigo passaram a fazer parte da Rede SAC.

Os recursos utilizados para o financiamento da rede SAC/Abrigos são


provenientes do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS), criado pela LOAS
com o objetivo de “proporcionar recursos e meios para financiar o Benefício de
Prestação Continuada e apoiar serviços, programas e projetos de Assistência
Social”.10

10
Decreto 1.605/95.
De acordo com a Norma Operacional Básica da Assistência Social (NOB),
de 1998, os recursos para o financiamento dos serviços assistenciais, nos quais se
incluem os da Rede SAC/Abrigos, são transferidos de maneira regular e automática
do FNAS para os fundos municipais ou estaduais, dependendo da condição de
gestão em que estiverem habilitados. O critério utilizado para a definição do valor
a ser transferido é a série histórica de despesas, tendo como referência os valores
alocados pelo Fundo Nacional de Assistência Social para o financiamento dos
serviços assistenciais no ano de 1998. Os gestores estaduais e municipais têm
autonomia para a aplicação dos recursos, desde que as prioridades concedidas
tenham sido estabelecidas no Plano Municipal de Assistência Social aprovado pelo
Conselho Municipal de Assistência Social, desde que atendam aos destinatários
dos respectivos serviços e a qualidade do atendimento seja compatível com as
diretrizes da NOB.

Apenas excepcionalmente, os recursos poderão ser transferidos diretamente


às entidades privadas de assistência social, independentemente da celebração de
acordo, convênio, ajuste ou contrato. Esse mecanismo só ocorre quando o repasse
não pode ser efetuado diretamente ao estado ou ao município, em decorrência de
inadimplência destes para com o Sistema de Seguridade Social.11

Os recursos financeiros envolvidos na Rede SAC/Abrigos foram da ordem


de R$ 10 milhões por ano, no período de 2000 a 2002. O orçamento referente ao
exercício de 2003 previu um montante um pouco menor do que o dos anos
anteriores: cerca de R$ 9,3 milhões para abrigos destinados a crianças e
adolescentes. Os recursos repassados são proporcionais às metas declaradas pelas
instituições beneficiadas, e o valor de referência para o cálculo do benefício é de 31
R$ 35,00 mensais por criança/adolescente a ser atendido.

Importante informar que os valores repassados pela Rede SAC para as


instituições de abrigo não observaram qualquer reajuste desde o ano 2000. Sendo
assim, as perdas já alcançaram 25,27% em função da inflação acumulada no
período, o que, em valores absolutos, significou uma perda monetária equivalente
a R$ 2,5 milhões até 2002 (tabela 2).

11
Lei 9.604/98.
TABELA 02
Rede SAC/Abrigos: recursos orçados (lei +crédito), 2000/2002

Ano Valor nominal Valor real (R$) Perda relativa


(R$)
2000 10.144.800 10.144.800 0
2001 10.144.800 9.093.177 10,37
2002 10.144.800 7.580.734 25,27

Fonte: MPAS (2002). Elaboração: IPEA/DISOC (2003).

1.2.2 Composição do cadastro de entidades da


Rede SAC/Abrigos para crianças e adolescentes
32
A Rede SAC/Abrigos beneficia instituições em todas as regiões brasileiras.
Analisando-se a distribuição das entidades cadastradas, percebe-se que a região
Sudeste concentra praticamente a metade delas (49,4%). Em segundo lugar,
mantendo o mesmo número de entidades beneficiadas, estão as regiões Sul e
Nordeste, cada uma com 19,1% do total. O Centro-Oeste, por sua vez, tem
7,9%, e a região Norte possui apenas 4,5% do total de 670 12 registros do Cadastro
da Rede SAC/Abrigos (gráfico 1).

GRÁFICO 01
Brasil: instituições cadastradas na Rede SAC/Abrigos para crianças e adolescentes.

Fonte: MPAS, Cadastro de Entidades da Rede SAC/Abrigos (2002). Elaboração: IPEA/DISOC (2003).

12
Este número de instituições refere-se às entidades registradas diretamente no Cadastro de 2002 da Secretaria
de Assistência Social, do antigo Ministério da Previdência e Assistência Social, somadas às entidades beneficiadas
pelos recursos repassados a prefeituras, secretarias estaduais e instituições mantenedoras constantes do cadastro.
Essas entidades beneficiadas não estavam no Cadastro original encaminhado pela gerência da Rede SAC em
Brasília e foram identificadas no processo de atualização do cadastro já no âmbito dos trabalhos desta pesquisa.
Essa distribuição regional, quando desagregada por Unidade da Federação,
revela um desequilíbrio entre os estados brasileiros. Ainda que quase todos sejam
contemplados com recursos da Rede SAC/Abrigos — com exceção do Distrito
Federal e do Tocantins13 —, apenas oito unidades da Federação concentram 78%
das instituições cadastradas para receber esses recursos. O Estado de São Paulo
concentra mais de um terço (36,3%) dos abrigos cadastrados, o que significa um
valor absoluto de 243 instituições. Em seguida, o Rio Grande do Sul, com quatro
vezes menos instituições (59), o que representa apenas 8,8% do total.

GRÁFICO 02
Brasil: instituições cadastradas na Rede SAC/Abrigos para crianças e adolescentes,
por Unidade da Federação

33
Fonte: MPAS, Cadastro de Entidades da Rede SAC/Abrigos (2002). Elaboração: IPEA/DISOC (2003).

Vale dizer que a distribuição das entidades cadastradas na Rede SAC/Abrigos


segue padrão semelhante à distribuição do total de entidades filantrópicas no
país, cuja concentração é também maior na Região Sudeste (59%), sendo que o
Estado de São Paulo abriga 34% do total dessas entidades no Brasil.14

13
Segundo técnicos da área, a explicação provável para não haver instituições beneficiadas no Distrito Federal e
no Tocantins é o fato de a rede de instituições beneficiadas ter se constituído a partir da extinção do CBIA, em
1995, mas ainda com base na rede que já era atendida por esse centro e pela LBA. A inclusão de novas instituições,
quando ocorre, dá-se em substituição a outras. Como o estado do Tocantins é mais recente como Unidade da
Federação e o Distrito Federal permaneceu durante muito tempo sob a gestão do governo federal, esses estados
podem não ter presenciado oportunidades de novas inclusões.
14
MINISTÉRIO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL. Conselho Nacional de Assistência Social. Balanço da filantropia
no Brasil. Brasília, 2003. Disponível em http//www.assistenciasocial.gov.br/, na página do CNAS.
No que diz respeito ao número de municípios atendidos, a cobertura da Rede
SAC é pequena em relação aos 5.56115 municípios brasileiros. Apenas 327 são
atendidos pela Rede SAC, o que representa 5,9% do total de municípios do país.

1.3 A PESQUISA: OBJETIVOS, ETAPAS, UNIDADE DE


ANÁLISE E DEFINIÇÃO DE ABRIGOS

1.3.1 Objetivos

A pesquisa “Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Ado-


34 lescentes da Rede SAC” estruturou-se a partir de dois objetivos principais:

a. conhecer as características dos serviços prestados pelas instituições


beneficiadas no âmbito dos Serviços de Ação Continuada (SAC) do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome que desenvolvem
programas de abrigo para crianças e adolescentes;

b. gerar informações que possibilitem ao governo federal, bem como às


demais instâncias públicas que desenvolvem ações nessa área e à extensa
rede da sociedade civil que atua em prol da defesa dos direitos de crianças
e adolescentes, adequar suas políticas e programas e, conseqüentemente,
melhorar o apoio às instituições que prestam serviços a crianças e
adolescentes em situação de abandono social.

1.3.2 Etapas de realização da pesquisa

a. a primeira constou de pesquisa realizada por telefone com os dirigentes


de todas as instituições cadastradas na Rede SAC/Abrigos;16

b. a segunda consistiu no envio de questionários auto-aplicáveis a todos os


dirigentes das entidades de abrigo contatadas;

c. a terceira etapa, realizada por meio de entrevistas com os gestores locais


da política de garantia de direitos da criança e do adolescente em nove

15
IBGE, 2001.
16
Ver IPEA/DISOC. Levantamento Nacional de Abrigos da Rede SAC. Relatório de Pesquisa número 1. Brasília,
outubro de 2003 (não publicado).
municípios selecionados, visou entender e aprofundar a reflexão sobre a
inserção dos abrigos no âmbito da política municipal de proteção dos direitos
da criança e do adolescente.

1.3.3 Unidade de análise

A unidade de análise deste estudo são os abrigos para crianças e adolescentes


beneficiados pelo repasse per capita mensal da Rede de Serviço de Ação Continuada
(Rede SAC) da Secretaria de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome. A opção por esse universo de entidades deu-se,
fundamentalmente, pelo fato de a Secretaria de Assistência Social contar com
informações básicas para o contato com as instituições, facilitando o desen-
volvimento dos trabalhos. Um levantamento completo de todos os abrigos
existentes no Brasil suscitava dificuldades operacionais intransponíveis no curto
prazo, sobretudo as relativas à ausência de informações cadastrais mínimas e
suficientes sobre a totalidade das entidades dessa natureza.

Vale ressaltar que a escolha das instituições beneficiadas pela Rede SAC
confere determinada característica aos resultados da pesquisa: os abrigos contidos
nesse universo tendem a ter uma situação relativamente melhor do que a média
dos abrigos no Brasil. Isso porque a inclusão na Rede SAC traz implícita, ao
menos teoricamente, a necessidade de as entidades estarem registradas, no mínimo,
nos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente, que têm a
prerrogativa de fiscalizar as entidades que prestam serviços a crianças e adoles-
centes nos municípios onde estão instaladas. 35
Do total de 670 registros do Cadastro de Entidades da Rede SAC, 637
eram, de fato, instituições que poderiam ser contadas e consideradas, a priori,
pertencentes ao universo de pesquisa deste levantamento.17 Isso porque algumas
instituições registradas no cadastro apresentavam restrições que as excluíam do
estudo, por não executarem programas para crianças e adolescentes, não receberem
os recursos da Rede SAC, ou até mesmo não existirem mais.

O “Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da


Rede SAC” obteve respostas de 626 unidades de abrigo voltadas ao atendimento
de crianças e adolescentes, vinculadas a 560 instituições – que, por sua vez,

17
O Cadastro da Rede SAC/Abrigos, disponibilizado ao IPEA para o início da pesquisa, refere-se ao atendimento
realizado nos anos 2001 e 2002.
representam 88% do universo de 637 atendidos pelo Governo Federal por meio
da Rede SAC/Abrigos.18 Das 626 unidades pesquisadas, 94,1% (589) oferecem
programas de abrigos para crianças e adolescentes, e 5,9% são instituições que,
embora pertencentes ao cadastro da Rede SAC, apresentam características
diferentes de abrigos, de acordo com a definição adotada nesta pesquisa.

Como pode ser observado na tabela 1, o grupo não considerado abrigo é


composto de 37 instituições: 13 comunidades terapêuticas, 10 centros de atenção
diária, cinco unidades de execução de medida socioeducativa, quatro creches,
duas escolas, uma casa de tratamento para adultos portadores do vírus HIV e
uma casa de acolhimento para adultos portadores de necessidades especiais.

TABELA 03
36 Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo tipo
de instituição

Tipo de instituição Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Abrigo 25 112 290 122 40 589

Comunidade terapêutica 0 3 8 1 1 13

Centro de Atenção Diária (CAD) 1 4 3 1 1 10

Unidade de execução 4 0 1 0 0 5
de medida socioeducativa

Escola 0 2 0 2 0 4

Creche 0 3 0 0 0 3

Casa de tratamento para adultos 0 0 0 0 1 1


portadores de HIV/AIDS

Casa para adultos portadores de 0 0 1 0 0 1


necessidades especiais

Total 30 124 303 126 43 626

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

1.3.4 Definição de abrigo adotada

No Estatuto da Criança e do Adolescente, o abrigamento em entidade é


definido como uma medida de proteção. A interpretação estrita dessa definição
conduz ao raciocínio de que as instituições que oferecem programas de abrigo

18
O total de 560 inclui todas as entidade vinculadas às prefeituras, secretarias estaduais e mantenedoras que, no
Cadastro da Rede SAC mantido pela Secretaria de Assistência Social, são computadas apenas como um registro.
Além disso, as instituições podem possuir mais de uma unidade de atendimento, daí o universo de 626. Para
maiores esclarecimentos, ver IPEA/DISOC. Levantamento Nacional de Abrigos da Rede SAC. Relatório de Pesquisa
número 1. Brasília, outubro de 2003 (não publicado).
atendem crianças e adolescentes que tenham seus direitos violados e que, em
razão disso e pela especificidade do caso, necessitem ser temporariamente afastados
da convivência com suas famílias. Funcionam, assim, como moradia alternativa
até o retorno à família de origem ou até a colocação em família substituta. Além
disso, o ECA estabelece que essas crianças e esses adolescentes serão encami-
nhados ao abrigo por decisão da Justiça da Infância e da Juventude ou dos
Conselhos Tutelares, sendo, neste caso, necessário o conhecimento do Judiciário.19

Entretanto, na prática, são encontradas outras situações em que crianças e


adolescentes necessitam viver em instituições, afastadas de seus familiares. Tal é
o caso, por exemplo, de crianças e adolescentes oriundos de famílias cujos res-
ponsáveis não têm local fixo de residência e moram no local de trabalho, necessi-
tando deixar seus filhos aos cuidados de uma instituição. O convívio com a
família se dá apenas nos períodos de férias ou em fins-de-semana, quando, even-
tualmente, ocorre a folga dos pais. Também as crianças e os adolescentes com
vivência de rua passam pelas instituições sem a companhia de um responsável,
mas, nesse caso, não se configura a situação de moradia alternativa: para eles, os
abrigos funcionam como um espaço de proteção onde podem pernoitar, tomar
banho e se alimentar, sem que isso represente, necessariamente, uma rotina.

O abrigo, assim, acaba por substituir medidas preventivas - por ausência ou


ineficiência -, determinando a privação da convivência familiar por motivos que
poderiam ser sanados com políticas e programas voltados à promoção da família,
de forma a evitar o abrigamento.

Tanto os abrigos propriamente ditos quanto as instituições anteriormente


descritas têm em comum o fato de que as crianças e os adolescentes estão afastados
37
da família ou dos responsáveis, por período ininterrupto ou não. Conseqüente-
mente, o dirigente da entidade é equiparado, do ponto de vista legal, ao guardião
das crianças ou dos adolescentes sob sua responsabilidade, ainda que isso seja
apenas circunstancial.20

19
Ainda de acordo com o estatuto, os próprios abrigos poderão acolher crianças e adolescentes, em caráter
excepcional e de urgência, comunicando o fato às autoridades competentes até o segundo dia útil imediato
(art. 93).
20
Nas instituições do tipo albergue, por exemplo, mesmo que nem sempre se caracterizem como abrigo para
crianças e adolescentes – pois com freqüência acolhem famílias inteiras -, quando os menores de 18 anos
permanecem desacompanhados, o responsável por eles, para todos os efeitos legais, será o dirigente da entidade
(CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de Ação nº 3. São Paulo: março/1993).
Assim, para efeito desta pesquisa, foram considerados abrigos todas as insti-
tuições que oferecem acolhimento continuado a crianças e adolescentes desacom-
panhados de seus familiares, o que pressupõe regularidade nos serviços oferecidos
e determina ao dirigente da instituição a equiparação legal ao guardião dos meninos
e das meninas acolhidos. Oferecendo esse tipo de serviço, entende-se que as
entidades podem, portanto, ser analisadas à luz dos artigos do ECA que tratam
dos abrigos.

São excluídos dessa definição os albergues que acolhem crianças e adoles-


centes apenas se acompanhados de suas famílias, bem como as instituições
denominadas Centros de Atenção Diária, onde o regime de permanência, embora
integral, se caracteriza pelo retorno diário da população atendida para o seu local
de moradia.
38
Por fim, esta definição também deixa de fora as instituições com exclusi-
vidade de atendimento para adultos e adolescentes com transtornos decorrentes
do uso ou abuso de substâncias psicoativas, mais conhecidas como comunidades
terapêuticas. Estas instituições, apesar de prestarem atendimento contínuo e em
regime de permanência integral e de as pessoas atendidas permanecerem sem a
presença de familiares, têm seu funcionamento e prestação de serviços disci-
plinados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e não pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente.21

21
As comunidades terapêuticas são reguladas pela Resolução Anvisa nº 101/01.
1.4 BIBLIOGRAFIA

ANDI/DCA-MJ/AMENCAR. Balas perdidas: um olhar sobre o comportamento


da imprensa brasileira quando a criança e o adolescente estão em pauta da violência. Brasília,
2001.

BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da


Criança e do Adolescente e dá outras providências.

BRASIL. Secretaria de Assistência Social/MPAS e Secretaria de Direitos da


Cidadania/MJ. Atribuições e competências na área da infância e adolescência da Secretaria
de Assistência Social/MPAS e da Secretaria dos Direitos da Cidadania/MJ. Brasília,
julho 1995.

CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de Ação nº 3.


São Paulo: março/1993

COSTA, A. C. G. De menor a cidadão. In: MENDEZ, E. G.; COSTA, A. C.


G. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros Editores, 1994. Série Direitos
das Crianças, n. 4, p. 121-145.

IPEA/DISOC. Levantamento Nacional de Abrigos da Rede SAC. Relatório de


Pesquisa número 1. Brasília, outubro de 2003 (não publicado).
39
MINISTÉRIO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL. Disponível em http://
www.assistenciasocial.gov.br/. Acesso em 06/10/2003.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria Especial dos Direitos


Humanos. Disponível em http://www.presidência.gov.br/sedh/. Acesso em 06/
10/2003.
ARTE SOBRE FOTO DE DANIEL FERREIRA
CAPÍTULO 10

A construção do direito
à convivência familiar e
comunitária no Brasil

Roberto da Silva
287
288
10.1 INTRODUÇÃO

Os conceitos básicos para entendimento da prática do abrigamento de


crianças e adolescentes no Brasil podem ser extraídos a partir do confronto entre
os modelos teóricos consagrados pela literatura especializada e a prática familiar
brasileira, permitindo-nos entender como foi construída a legislação brasileira
sobre o tema e como criamos uma estrutura social baseada na distinção quanto
às formas de organização da família e de nascimento dos filhos.

Em primeiro lugar, devemos entender a teoria do desvio, dentro da qual melhor


podemos situar a discussão sobre direitos reprodutivos, abandono de filhos,
práticas de abrigamento, colocação em famílias substitutas e direito à convivência
familiar e comunitária.

A noção de desvio decorre da presunção de ser o modelo de família nuclear


o padrão por excelência de organização familiar e social, que, no Brasil, sempre
coexistiu com modelos de organização familiar próprios das comunidades
indígenas preexistentes e, também, com modelos de organização familiar e tribal
dos negros africanos, posteriormente agravados por eventos como a Lei Áurea e
a Lei do Ventre Livre.

A legitimação do modelo de família nuclear como padrão hegemônico de


organização familiar e social ocorreu com a edição do Código Civil Brasileiro,
289
em 1916, e a instituição do protótipo de homem — branco, cristão, proprietário
e letrado —, em função do qual dar-se-ia o processo de legitimação social da
mulher e dos filhos a partir do casamento.

A imposição da obrigatoriedade do exercício dos direitos reprodutivos apenas


no âmbito do casamento transformou em tipos jurídicos os tipos sociológicos já
existentes na cultura familiar brasileira, institucionalizando as figuras da mãe solteira,
da concubina, da amante e do filho ilegítimo, constituindo então a base para um processo
de discriminação social que classifica homens, mulheres e filhos a partir da forma
como se organizam socialmente e de como são gerados.
Os códigos de menores, primeiro o de 1927 e depois o de 1979,
estabeleceram as regras do desvio social, a partir das quais se justificava a
intervenção do Estado na família brasileira, especialmente na família pobre.

O Código Criminal do Império, de 1832, e depois o Código Penal Brasileiro,


de 1940, foram concebidos para punir a violação dos direitos previstos no Código
Civil, enunciando, igualmente, um protótipo do possível violador de direitos –
não-branco, não-cristão, não-proprietário e não-letrado.

Caracterizada a forma de entender o desvio em relação ao padrão de família,


duas outras questões precisam ser bem compreendidas: o abrigo como instituição
reparatória e a família substituta como possibilidade de reenquadramento do
sujeito dentro do padrão de normalidade social.

290 O abrigo e a prática do abrigamento encontram sua justificativa ético-moral


na teoria do contrato social, a partir do pressuposto de que a parte mais estável, mais
próspera e melhor estruturada da sociedade possui responsabilidade moral na
proteção dos mais fracos, vulneráveis e desamparados. Assim, a sociedade aceita
de bom grado aprovar leis, destinar recursos financeiros e humanos e criar
instituições destinadas ao amparo de viúvas, órfãos, idosos, doentes e incapazes,
dada a suposição de que tais pessoas se encontram involuntariamente em situação
de desvio em relação ao padrão de organização familiar.

Historicamente, entretanto, especialmente durante a vigência dos códigos


de menores de 1927 e 1979, o abrigamento foi praticado no Brasil não como
medida transitória, de caráter reparatório, com o objetivo final de restituir a
normalidade da organização familiar, mas como medida definitiva, excludente e
corroboradora da situação de desvio sociofamiliar. Isso ocorreu, sobretudo, em
virtude do perfil da criança abrigada — afro-descendente e masculina —,
incompatível com o modelo de família patriarcal fomentado pelo Código Civil
Brasileiro.

O caso em que o reenquadramento da criança ao modelo de família nuclear


pode restituir a ela a situação de normalidade sociofamiliar configurou-se pela
adoção, especialmente, de meninas brancas e recém-nascidas, mais adequado ao
perfil da família padrão. Meninos e meninas afro-descendentes foram e ainda são
condenados a viver em abrigos até a maioridade, assumindo o abrigo a função de
um substitutivo para a família.
10.2 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO DO MENOR

O Código de Menores de 1927, que consolidou toda a legislação sobre


crianças até então emanada de Portugal, pelo Império e pela República, consagrou
um sistema dual no atendimento à criança, atuando especificamente sobre os
chamados efeitos da ausência, que atribui ao Estado a tutela sobre o órfão, o
abandonado e os pais presumidos como ausentes, tornando disponível seus direitos
de pátrio poder. Os chamados direitos civis, entendidos como os direitos
pertinentes à criança inserida em uma família padrão, em moldes socialmente
aceitáveis, continuaram merecendo a proteção do Código Civil Brasileiro, sem
alterações substanciais.

O descumprimento de quaisquer das obrigações estipuladas aos pais pelo


Código Civil, bem como a conduta anti-social por parte da criança passaram a
justificar a transferência da sua tutela dos pais para o juiz e, conseqüentemente,
do Código Civil para o Código de Menores.

O Código de Menores denominou essas crianças de expostas (menores de


sete anos), abandonadas (as menores de 18 anos), vadias (os atuais meninos de
rua), mendigas (as que pedem esmolas ou vendem coisas nas ruas) e libertinas (que
freqüentam prostíbulos).

O mesmo código estabeleceu que os processos de internação dessas crianças


e o processo de destituição do pátrio poder seriam gratuitos e deveriam correr
em segredo de Justiça, sem possibilidade de veiculação pública de seus dados, de
suas fotos ou de acesso aos seus processos por parte de terceiros.
291
O Código de 1927 também instituiu o intervencionismo oficial no âmbito
da família, dando poderes aos juízes e aos comissários de menores, pelo artigo
131, para vistoriarem suas casas e quaisquer instituições que se ocupassem das
crianças já caracterizadas como menores.

Como resultado das negociações para erradicar o Sistema da Roda e a Casa


dos Expostos, garantiu-se também o segredo de Justiça, reservando-se às entidades
de acolhimento de menores e aos cartórios de registro de pessoas naturais o
sigilo em relação aos genitores que quisessem abandonar seus filhos, garantindo-
se em particular o sigilo da mãe quanto ao seu estado civil e às condições em que
foi gerada a criança.
Pelo seu artigo 55, o Código de 1927 conferiu também ao juiz plenos poderes
para devolver a criança aos pais, colocá-la sob guarda de outra família, determinar-
lhe o abrigamento até os 18 anos de idade e determinar qualquer outra medida que
julgasse conveniente.

O Código de 1927 estabeleceu como impedimento para o recebimento ou


manutenção dessas crianças em casa o fato de qualquer pessoa da família ter sido
condenada pelos artigos 285 a 293, 298, 300 a 302 do Código Penal, por ser
perigosa ou anti-higiênica, se o número de habitantes fosse excessivo e se por
negligência, ignorância, embriaguez, imoralidade ou maus costumes fosse incapaz
de se encarregar da criança.

O artigo 48 estabeleceu que, passados 30 dias após a notificação do

292 recolhimento da criança sem que o pai, a mãe ou tutores se manifestassem,


qualquer pessoa idônea poderia requerer diante do juiz os direitos de pátrio
poder sobre a criança.

No caso de crianças que tivessem sido encaminhadas a famílias substitutas,


foi concedida a possibilidade da legitimação adotiva por cônjuges casados há
mais de cinco anos, por casais que não pudessem ter filhos ou por viúvos e
viúvas, ocasião em que a criança passaria a ter todos os direitos de filho legítimo.
Sua tutela passaria a ser regida pelo Código Civil e não mais pelo Código de
Menores, isto é, a inclusão em uma família legalmente constituída e julgada moral-
mente capaz tinha o poder de fazer cessar sobre ela a jurisdição do juiz.

O Código Penal, que data de 1940 e ainda está em vigor, estabeleceu pena
de detenção de seis meses a três anos ao genitor que abandonasse crianças; pena
de reclusão de um a cinco anos se do abandono resultassem lesões corporais de
natureza grave. Se o abandono causasse a morte da criança, a pena seria de
quatro a 12 anos, agravada se ocorrido em lugar ermo onde não fosse possível o
socorro à criança.

A situação anteriormente retratada caracterizou o que se convencionou


chamar Doutrina do Direito do Menor, ao mesmo tempo uma derivação do
Direito de Família e uma nova especialização dentro das ciências jurídicas, que
até 1990 se chamou Direito do Menor, e tanto se constituiu em cadeiras específicas
nos cursos de Direito como orientou a organização da magistratura brasileira,
com a criação do Juízo Privativo de Menores (Lei no 2.059/25), do Conselho de
Assistência e Proteção do Menor (Decreto no 3.228/25), do Serviço Social de
Menores (1938), do Serviço de Colocação Familiar (Lei no 560/49), da figura do
juiz de menores, do Comissariado de Menores, do Serviço de Assistência ao
Menor, sendo os procedimentos de abrigamento disciplinados por provimentos
dos conselhos superiores da magistratura em cada estado brasileiro.

10.3 A DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR

A Doutrina da Situação Irregular, que substituiu a Doutrina do Direito do


Menor ao ser aprovado o Código de Menores de 1979, é uma construção
doutrinária oriunda do Instituto Interamericano del Niño, órgão da Organização
dos Estados Americanos (OEA), do qual o Brasil participa, juntamente com os
Estados Unidos, o Canadá e os demais países das Américas. Sua formulação
teórica é atribuída ao jurista argentino Ubaldino Calvento e teve como maior
propagador no Brasil o juiz de menores do Rio de Janeiro, Alyrio Cavallieri.

A Associação Brasileira de Juízes de Menores incorporou tal conceito a


partir do seu XIV Congresso, realizado no Chile em 1973, sob a justificativa de
que se adequava à tradição legislativa brasileira só tomar conhecimento da
problemática da criança a partir do momento em que se configurasse que ela se
encontrava em situação irregular na família. De fato, as alterações promovidas no
Código de 1927 ao longo dos anos, particularmente pelas Leis nos 4.655/65,
5.258/67 e 4.439/68, foram todas no sentido de especificar a natureza do 293
tratamento necessário ao menor infrator, distinguindo-o do órfão e do abandonado,
ainda que todos fossem caracterizados como em situação irregular.

Sob essa categoria, o Código de Menores de 1979 passou a designar as


crianças privadas das condições essenciais de sobrevivência, mesmo que eventuais;
as vítimas de maus-tratos e castigos imoderados; as que se encontrassem em
perigo moral, entendidas como as que viviam em ambientes contrários aos bons
costumes e as vítimas de exploração por parte de terceiros; as privadas de
representação legal pela ausência dos pais, mesmo que eventual; as que
apresentassem desvios de conduta e as autoras de atos infracionais.

A transição entre os Códigos de 1927 e de 1979 ocorreu efetivamente com


a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor - Funabem, em dezembro
de 1964, que modelou a criação das Fundações Estaduais do Bem-Estar do
Menor - Febens, ainda hoje existentes em alguns estados brasileiros.

A criação da Funabem implicou a formulação de uma Política Nacional do


Bem-Estar do Menor, à qual tiveram de se subordinar todas as entidades públicas
e particulares que prestavam atendimento à criança e ao adolescente.

Concebida para ter autonomia financeira e administrativa, a Funabem


incorporou toda a estrutura do Serviço de Assistência ao Menor existente nos
estados, incluindo o atendimento tanto aos carentes e abandonados quanto aos
infratores.

É preciso entender que a Funabem e as Febens foram concebidas no bojo


de uma ampla reforma, entendida como conquista da Revolução de 1964, que
294 incluiu a outorga de uma nova Constituição em setembro do mesmo ano; a
decretação de vários atos institucionais, como o AI-5; por orientação do governo
e das agências americanas, a reforma do sistema educacional brasileiro a partir
dos acordos Ministério da Educação e Cultura – MEC/Usaid e, posteriormente,
a reforma do ensino universitário em 1968, com o objetivo deliberado de constituir
barreiras ideológicas, culturais e institucionais à expansão da ideologia marxista,
então em voga em todo o continente sul-americano.

A questão do menor passou a ser tratada no âmbito da Doutrina de Segurança


Nacional, cuja matriz brasileira foi a Escola Superior de Guerra, e teve como
matriz americana o National College War e o National Security Act, de 1947.

A criação de uma fundação nacional foi um projeto cultivado desde a


realização da 1a Semana de Estudos dos Problemas de Menores, evento que se
repetiu nos anos de 1949, 1950, 1951, 1952, 1953, 1956, 1957, 1959, 1970, 1971
e 1973 sob o patrocínio do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e que
ocorreu também no Rio de Janeiro a partir de 1955.

Submetida à Câmara dos Deputados em 1961, a proposta foi rejeitada. Em


1964, um filho do então ministro da Justiça, Milton Campos, foi barbaramente
assassinado por adolescentes moradores nos morros do Rio de Janeiro, e o próprio
ministro, juntamente com outros juristas do Rio de Janeiro, convenceu o presidente
General Humberto Castelo Branco a criar, por decreto, a almejada Fundação
Nacional.
Esboçada dentro do espírito da Doutrina da Segurança Nacional, a
formulação teórica da Escola Superior de Guerra, que se constituiu no norteador
das ações dos governos militares, a Funabem propunha-se a resolver um problema
nacional, pois nas palavras de seu primeiro presidente, Mário Altefender, cada
vez mais se acentuava a necessidade da elaboração de uma nova política, cuja
execução fosse entregue a um órgão federal, fazendo desaparecer a idéia de que
cada um pode resolver seus problemas locais, estanques, quase pessoais, sem
pensar na Nação, como que ignorando a existência de 22 estados e territórios e
que tudo se chama Brasil (Anais da X Semana de Estudos do Problema do Menor. São
Paulo: 1971, p 476).

A tônica do discurso era a de que o problema do menor, diretamente ligado


ao problema da família - tendo como agravantes fatores que todos nós conhecemos
(...) como a explosão demográfica, o problema da saúde, a deficiente alimentação,
a migração, o subemprego, a falta de religião, o desrespeito à autoridade, a
ignorância da pátria -, o problema do menor não poderia ser solucionado com a idéia
ingênua de construir abrigos (grifo do autor). Infelizmente ainda se percebe no Brasil
a influência dessa detestável política. Questões como mendicância, abandono de
menores, delinqüência ainda são tomadas como existentes porque os juízes de
menores e a polícia são ineficientes.

Com essa percepção quanto à problemática, o menor passou a figurar em


lugar de destaque na Doutrina da Segurança Nacional, sendo efetivamente tratado
como um problema de ordem estratégica, saindo da esfera de competência do
Poder Judiciário e passando diretamente à esfera de competência do Poder
Executivo. 295
Ao mesmo tempo em que o sistema educacional brasileiro foi afetado pela
Doutrina da Segurança Nacional, com a introdução de elementos curriculares
que reforçassem os sentimentos de patriotismo e de nacionalismo, a educação
das crianças e dos adolescentes sob a tutela do sistema Funabem/Febem passou
a ser feita segundo os preceitos do militarismo, com ênfase na segurança, na
disciplina e na obediência.

É importante ressaltar que os princípios da Declaração de Genebra sobre


os Direitos da Criança, de 1924, não tiveram nenhuma repercussão na redação
final do Código de Menores de 1927. Da mesma forma, os legisladores brasileiros
não foram sensíveis aos princípios já consagrados na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem, de 1948, e no Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, que obrigou
os países signatários a adotarem em seu direito interno os princípios da convenção,
figurando ali a proteção à família e os direitos da criança. Ademais, a Declaração
sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU em 20 de novembro de 1959, o
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais anteriormente citados, ambos de 1966,
não tiveram nenhuma influência significativa na redação final do Código de
Menores de 1979, ainda que o Brasil fosse sensível à agenda de discussões da
OEA, como ficou patente na posterior adoção da Doutrina da Proteção Integral.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, não obstante ter sido
aprovado pela ONU em 16 de dezembro de 1966, só foi ratificado pelo Brasil
em 24 de janeiro de 1992, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente, já
296 aprovado, passou a incorporar as regras previstas nos artigos 2o, 14, 17, 23 e 24
do pacto, que condenavam o tratamento diferenciado para crianças em razão da
forma como foram concebidas, de sua origem social ou de sua condição
econômica, preceitos estes presentes no sistema dual enunciado pela subordinação
de crianças ora ao Código Civil ora ao Código de Menores, segundo sua
composição familiar e origem social.

As mesmas objeções existiam em relação ao artigo 10 do Pacto Internacional


dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, também só ratificado
pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992.

A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em 20 de novembro


de 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, portanto depois da
aprovação do ECA, é o mais completo tratado internacional sobre os direitos da
criança, colocando-a, ao longo de seus 54 artigos, em posição de absoluta
prioridade na formulação de políticas sociais e na destinação de recursos públicos.

10.4 A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

A Doutrina da Proteção Integral do Menor foi enunciada inicialmente na


Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, mas o 8o Congresso da Associação
Internacional de Juízes de Menores (Genebra, 1959) posicionou-se no sentido de
que não era função do Poder Judiciário assegurar à criança direitos tão amplos
como o direito ao nome, à nacionalidade, à saúde, à educação, ao lazer e ao
tratamento médico dos deficientes.

A posição majoritária, defendida por Alyrio Cavallieri, que redundou na


adoção da Doutrina da Situação Irregular, era no sentido de a Justiça de Menores
limitar-se à aplicação do Direito do Menor, relegando os Direitos da Criança à
competência do Poder Executivo.

Nas décadas de 1960 e 1970, Juizados de Menores, como o de São Paulo,


atuaram hegemonicamente na área da criança, legislando, normatizando e criando
as estruturas de atendimento. No Rio de Janeiro, o Juizado não assumia as funções
executivas, e em todos os estados brasileiros havia essa indefinição quanto ao
que era da competência do Direito da Criança e do Direito do Menor, misturando-
se nos Juizados funções executivas e judiciárias.

A criação da Funabem e das Febens estaduais deslindou apenas uma das


questões: o Juizado de Menores passou a se ocupar exclusivamente do Direito
do Menor, com ênfase nos infratores, e as fundações assumiram os encargos de
formulação e execução das políticas de atendimento. Antes dessa definição, a
política de atendimento ao menor era, de acordo com o Estado, centralizada ora
na Secretaria da Justiça, ora na Secretaria da Segurança Pública, ora na Secretaria
da Promoção Social, até que, no início da década de 1980, com a grande vitória
eleitoral do PMDB, fomentou-se a criação de uma Secretaria do Menor similar
nos estados.

Continuavam indefinidas ainda as competências quanto aos Direitos da


Criança e aos Direitos do Menor, sem o que não seria possível a adoção da 297
Doutrina da Proteção Integral.

Foi a conjuntura interna do país na segunda metade da década de 1980,


mais do que todas as declarações e convenções internacionais, que sinalizou com
as condições propícias à adoção da Doutrina da Proteção Integral.

O reordenamento jurídico do país deu-se pelo Movimento Nacional


Constituinte e pela promulgação de uma Constituição Federal em 1988. A marca
do reordenamento jurídico foi a remoção do entulho autoritário, e a preocupação que
norteou os constituintes e as pressões dos movimentos populares e da sociedade
organizada foi no sentido de assegurar a inclusão, a aprovação e a manutenção
de diversos dispositivos que colocassem o cidadão e a família a salvo das
arbitrariedades do Estado e dos governos.
O artigo 226 da Constituição Federal incorporou todos os preceitos das
cartas internacionais de 1945, 1948, 1951, 1959, 1966, 1968, 1969 e 1979 no que
se refere à proteção à mulher e à família, mas foi no artigo 227, ao exigir uma lei
específica que o regulamentasse, que possibilitou, por meio do ECA, finalmente
aprovado em 13 de julho de 1990, que o constituinte incorporasse como obrigação
da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, os direitos
da criança e do adolescente.

O ECA normatizou a atuação do Poder Judiciário na defesa desses direitos,


atribuiu ao Ministério Público e aos Conselhos Tutelares a promoção e a
fiscalização dos mesmos direitos, e aos Conselhos Nacional, Estaduais e
Municipais a formulação das políticas nacional, estaduais e municipais para a
criança e o adolescente.
298
Mesmo no ECA, a Justiça da Infância e da Juventude e o juiz continuaram
com a possibilidade de intervenção junto à família e à criança nos casos típicos
de Direito Processual Civil e de Direito Processual Penal, como a guarda, a
tutela, a adoção, a investigação de paternidade e os maus-tratos.

O juiz passou a ser obrigatoriamente assessorado por uma equipe


interprofissional, a cuja consulta o Código de 1979 deixava a seu arbítrio. A
equipe técnica (normalmente composta por um psicólogo e um assistente social,
no mínimo) tem o mesmo status científico, pois tanto o juiz quanto o psicólogo e
o assistente social são bacharéis. Contudo, o ECA ainda fez uma concessão ao
Poder Judiciário, atribuindo maior autoridade ao juiz, quando ali deveria estar
configurada uma espécie de conselho de sentença, que impediria definitivamente que
as decisões relativas à criança fossem tomadas por um único profissional.

No bojo da remoção do entulho autoritário, foram condenadas as práticas de


custódia do Estado sobre o cidadão, constituindo-se então mecanismos para a
salvaguarda do cidadão diante do Estado: a luta antimanicomial, que condenou os
asilos; a incorporação de um modelo de justiça consensual (Lei no 9099/95), que
permitiu a introdução das penas alternativas como resposta à superlotação carcerária;
a concepção de uma terceira idade, que condenou os asilos; o ECA, que passou a
fazer distinção entre abrigamento e internação, redefinindo a função de ambos como
práticas provisórias e absolutamente excepcionais.

Não incorreríamos no erro de afirmar que abrigo é uma instituição em vias


de extinção, porque reconhecemos que há situações de risco pessoal para as
quais a única alternativa disponível para Prefeituras Municipais, Juízos da Infância
e Juventude e Conselhos Tutelares ainda é o abrigamento, ainda que de forma
temporária e excepcional e sujeito a maior vigilância e fiscalização. Os abrigos
públicos, mantidos mais pela municipalidade do que pelo estado, são hoje sensíveis
à fiscalização dos Conselhos Municipais da Criança e do Adolescente, do Conselho
Tutelar, do Ministério Público, do Juízo da Infância e da Juventude, das entidades
de direitos humanos e das entidades organizadas da sociedade civil, e seu
reordenamento — em diferentes estágios — é uma realidade que pode ser
verificada.

A avassaladora mudança de cultura provocada pelo ECA na sociedade


brasileira, entretanto, não foi ainda suficiente para demover de suas práticas de
institucionalização prolongada os abrigos particulares mantidos por filantropos
e famílias, as instituições religiosas que mantêm grandes redes de abrigos, e
organizações da sociedade civil que importaram e fomentaram no Brasil práticas
estrangeiras de abrigamento, como Rotary e Lions Clube. Algumas das instituições
desse tipo são auto-suficientes, não recebem recursos públicos e, por essa razão,
não se sentem obrigadas ao registro da entidade e de seus programas no Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente local, não recebem
encaminhamentos feitos pelo Conselho Tutelar, nem se submetem à fiscalização
das autoridades judiciárias.

A percepção social que se tem sobre tais instituições é a de que realizam um


trabalho humanitário necessário e altamente eficiente, especialmente pela avaliação
de dois quesitos: a) o tempo de permanência da criança no abrigo, que é longo e
alcança a maioridade; b) o número de adoções, especialmente por famílias 299
estrangeiras. Fazer as entidades e a sociedade entenderem que o quesito de
excelência deve ser determinado pelo menor tempo de abrigamento e não pelo
maior tempo é uma tarefa ainda difícil, que esbarra no imaginário social quanto
ao destino e às opções que tal criança teria fora do abrigo. Da mesma forma,
fazer com que a sociedade compreenda que a prática da adoção internacional
envolve instituições estrangeiras poderosas e vultosas cifras financeiras, dando-
lhe mais o caráter de mercantilização do que de filantropia, igualmente é uma
tarefa difícil em razão do perfil da criança/adolescente abrigados e aos mitos de
que o abrigado é fonte de problemas para a família adotiva e de que brasileiros
não adotam crianças afro-descendentes de maior idade ou com problemas de
saúde graves.
Quando o poder público adota políticas de conveniamento ou de repasse
de verbas para instituições do gênero — algumas históricas, centenárias, com
boa inserção social e ampla rede de contribuintes —, deparamos com outras
dificuldades para fazer com que a prática do abrigamento seja feita exatamente
nos termos em que o ECA preceitua, especialmente quanto à existência e à
formação contínua das equipes técnicas, não-separação de irmãos, não-separação
por sexo ou por idade, estímulo à colocação em família substituta e incentivo à
convivência familiar e comunitária.

A resposta da sociedade brasileira aos abrigos públicos e às entidades


tradicionais e seculares tem sido no sentido de constituir organizações não-
governamentais de caráter profissional voltadas tanto para a capacitação de
administradores, de técnicos do Judiciário, de conselheiros de direitos e de
300 voluntários, quanto para o desenvolvimento de novas modalidades de colocação
familiar, tais como mães sociais, famílias acolhedoras, famílias hospedeiras, havendo
até aquelas que orientam seus trabalhos para a recuperação da capacidade
institucional da família em situação de risco social cujos filhos estejam em abrigos,
bem como para o incentivo à formação de grupos de apoio a candidatos à adoção
e a pais adotivos.

Algumas contribuições ao completo reordenamento da prática do


abrigamento no Brasil consistem em um leque de sugestões, algumas já em vigor,
outras em discussão e outras sequer implementadas, mas todas concebidas a
partir de minucioso estudo da literatura especializada, de pesquisas e de inúmeros
debates públicos travados com as mais diversas instâncias da sociedade brasileira
conforme relacionado a seguir.

1. Regulamentação no ECA dos artigos que tratam do caráter de


provisoriedade e de excepcionalidade da medida de abrigo.

2. Revisão, nos três níveis da administração pública, das políticas de


convênios, para que o poder público não continue financiando práticas
de violação dos direitos da criança e do adolescente.

3. Reorientação das vocações das instituições particulares de abrigo que


precisam de repasse de verbas públicas para o atendimento à família e
não mais à criança e ao adolescente individualmente.

4. Repasse de verbas públicas, nos três níveis de administração,


prioritariamente destinado ao trabalho de apoio, proteção e autonomia
da família, e não apenas de promoção, defesa e garantia dos direitos da
criança e do adolescente.

5. Constituição inédita do cadastro único de adoção no Brasil, unificando


os cadastros das comarcas, dos estados, das CEJAs (Comissão Estadual
Judiciária de Adoção) e das CEJAIs (Comissão Estadual Judiciária de
Adoção Internacional)

6. Extensão dos programas de renda mínima, nos três níveis de


administração, para as famílias que adotam crianças/adolescentes,
independentemente do seu nível socioeconômico, constituindo esta renda
um pecúlio para a criança/adolescente adotados.

301
10.5 BIBLIOGRAFIA

BECKER, Howard Saul. Outsiders: studies in the sociology of deviance. London:


Free Press of Glencoe, 1963.

CAVALLIERI, Alyrio. Direito do menor. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978.

MARTINS, Roberto R. Segurança nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986.

OLIVEIRA, Juarez. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo:


Saraiva, 1988.
302
PROCURADORIA GERAL DO ESTADO. Instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos. São Paulo: PGE, 1996.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique.


Manchester: Vaughan, 1947.

SENADO FEDERAL. Código de Menores. 2. ed. Brasília: Senado, 1984.

SILVA, Roberto da. Os filhos do governo: a formação da identidade criminosa em


crianças órfãs e abandonadas. São Paulo: Ática, 1997.

TEIXEIRA, Antonio L. Meireles. Código Civil, 3. ed. São Paulo: Rideel,


1995.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Anais da X


Semana de Estudos sobre Problemas de Menores. São Paulo: TJ, 1971.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Anais da XI


Semana de Estudos sobre Problemas de Menores. São Paulo: TJ, 1972.

WINNICOTT, Donald W. Privação e delinqüência. São Paulo: Martins Fontes,


1987.
ARTE SOBRE FOTO DE RICARDO LABASTIER
CAPÍTULO 11

Modalidades de abrigo
e a busca pelo direito à
convivência familiar e comunitária

Úrsula Lehmkuhl Carreirão


303
303
304
O estabelecimento e a utilização de programas em regime de abrigo está
previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 90, inciso IV, no
artigo 101, inciso VII e no parágrafo único deste artigo que, para além de
conceituar o programa, delimita sua operacionalização: “o abrigo é medida
provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em
família substituta, não implicando privação de liberdade”.

Cabe ao poder executivo a responsabilidade primeira pelo estabelecimento


de infra-estrutura adequada para a aplicação de medidas requeridas pelo Conselho
Tutelar e pelo Judiciário, pelo Ministério Público, podendo para tal contar com a
parceria de instituições não-governamentais, de forma articulada, como previsto
no artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

É importante entender a origem dos recursos que devem manter os


programas de abrigo, pois no artigo 90 do estatuto está estabelecido que “as
entidades de atendimento são responsáveis pela manutenção das próprias unidades, (...)”.
Sendo a executora do programa uma organização não-governamental, é
compreensível que necessite de recursos públicos (municipais, estaduais e/ou
federais) como adicional para bem operacionalizar o programa, dado que
instituições filantrópicas sem fins lucrativos têm, historicamente, sobrevivido de
doações não consistentes e regulares o suficiente para arcar com as despesas
mensais fixas com pessoal, alimentação, vestuário, higiene, medicamentos,
manutenção da área física etc. Os recursos públicos devem ser repassados através
do Fundo Municipal de Assistência Social, voltado para a manutenção de ações
305
305
ditas continuadas, diferentemente do Fundo para a Infância e Juventude (FIA),
cujos recursos alocados são de valores maiores ou menores, dependendo das
doações, e que subsidiam ações pontuais não previstas nos orçamentos das
políticas públicas e ações de emergência, de acordo com levantamentos apontados,
por exemplo, nas Conferências Municipais dos Direitos da Criança e do Adoles-
cente 1. Já o executivo que mantiver sob sua responsabilidade direta programas

1
É sempre bom lembrar que o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente deve emitir
resolução, ao menos anual, especificando as ações que poderão ser subsidiadas com os recursos do FIA, de forma
que o poder executivo possa bem gerir os recursos alocados por pessoa física, jurídica e poder público. Observar,
ainda, a obrigatoriedade da aplicação de percentual em programas que incentivem o acolhimento, tal como
previsto no artigo 260 parágrafo 2°. O artigo se refere ao incentivo, isto é, campanhas, produção de livros,
cartilhas, seminários, encontros de grupos de adoção etc., que busquem mobilizar a sociedade para a viabilidade
e necessidade de outras formas de se acolher criança e adolescente que não a colocação em programa de abrigo,
de modo que se sintam integrantes de uma família, nas formas de guarda, tutela e adoção.
de abrigos deverá prever e alocar recursos orçamentários próprios na pasta
responsável pela execução do programa, não podendo fazer retiradas do FIA
para a execução mensal do mesmo, exceto na constatação de situação de
emergência, aprovada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente.

Temos, então, que a gestão desta política está sob a responsabilidade do


executivo municipal ou estadual, por meio da área a que está afeto o programa,
geralmente e acertadamente a Assistência Social 2, observadas e respeitadas as
diretrizes apontadas pelo Conselho Municipal (ou Estadual) dos Direitos da
Criança e do Adolescente, preferencialmente articulado ao Conselho Municipal
de Assistência Social e demais conselhos de outras políticas.

306 Para bem operacionalizar o programa, devem os executores se orientar


pelos artigos 90 a 94 do estatuto, onde estão explicitados os princípios e obrigações
a serem constantemente perseguidos. Esses princípios e obrigações devem dizer
respeito a cada criança e adolescente a quem se tenha aplicado medida de proteção
em abrigo. Não basta que princípios e obrigações estejam nos estatutos das
instituições, em seus regimentos internos, pois além de dar o rumo às instituições,
os princípios dizem respeito, sobretudo, às propostas de ação que deverão permear
cada intervenção com cada criança e adolescente, sua família de origem, ou na
busca por família substituta.

Eis aqui uma questão intrigante: temos programa de abrigo para atender a
toda e qualquer criança e adolescente que se encontre sem a proteção de seus
pais ou responsáveis e em situação de ameaça ou violação de direitos, ou
precisamos de programas que levem em consideração situações específicas,
variadas, vividas por esses sujeitos? Programas por faixa etária, por sexo, por
dificuldade de saúde, de locomoção etc.? A resposta deverá estar vinculada,
necessariamente, às diretrizes contidas no Plano Municipal de Atendimento à
Criança e ao Adolescente, parte integrante das políticas de Proteção, de Assistência
Social, de Educação, de Saúde, de Habitação, de Segurança Pública, do Meio
Ambiente, do Trabalho e Renda e demais políticas setoriais, como previsto nos
artigos 86, 87 e 88 do estatuto. Tais políticas devem contar sempre com o
acompanhamento e o controle do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e
do Adolescente, do Conselho Tutelar, do Ministério Público, do Juizado da Infância

2
Apesar de entendermos que a operacionalização do abrigo não é de responsabilidade exclusiva desta política.
e Juventude 3 e demais organismos e indivíduos que buscam fazer valer a
construção da garantia de direitos. Mais importante ainda é termos resposta para
a pergunta: como a política municipal poderá evitar, através de sua rede de
atendimento, a aplicação de medida de abrigo para fazer valer o artigo 227, caput
da Constituição Federal, e o artigo 19 do estatuto, respaldado pelo artigo 4, em
que se relaciona o direito à convivência familiar como um dos direitos
fundamentais das crianças e adolescentes a serem assegurados pelos adultos?
Estão os nossos municípios estruturados para dar respostas rápidas para o resgate
de direitos? Lembremo-nos de que, ainda que protegida por um programa de
abrigo, a criança e o adolescente ainda estão com um direito violado – o da
convivência familiar e comunitária. Por mais que o programa tenha uma
formatação aproximada a uma família, ainda assim ela não é a de origem ou,
ainda que acolhedora, não é a família por adoção. Que vínculos de referência
podem ser construídos em locais que não primam pelo olhar ao indivíduo, dada
a quantidade de situações individuais transformadas em coletivas? Na excepcional
necessidade de abrigar, qual a melhor forma, que modalidade escolher?

As análises feitas da primeira etapa do “Levantamento Nacional dos Abrigos


para Crianças e Adolescentes da Rede de Serviços de Ação Continuada” mostram
que a prevenção ao rompimento de laços familiares não têm sido prioridade nas
ações municipais. Atentemos para o que pensam (e vivenciam) os dirigentes dos
programas de abrigo:

“O retorno da criança e/ou do adolescente abrigado para sua família de


origem foi visto como um dos principais desafios por muitos dirigentes, que reconhecem
que é muito difícil interromper o círculo vicioso de desemprego, vício, violação de 307
307
4
direitos e abandono” .

Ora, trata-se de um direito que tem sido violado, sobretudo com crianças e
adolescentes oriundos de famílias empobrecidas. Para os dirigentes das instituições
que executam programas de abrigo, as maiores dificuldades para o retorno das
crianças e adolescentes para as famílias encontram-se5 nas condições socioeconô-
micas das famílias (35,45%), na fragilidade, ausência ou perda do vínculo familiar

3
Atentar-se para o artigo 95 do Estatuto que atribui ao Judiciário, ao Ministério Público e ao Conselho Tutelar
a fiscalização das entidades que executam os programas previstos no artigo 90 da mesma lei.
4
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Diretoria de Políticas Sociais. Levantamento Nacional dos Abrigos
para Crianças e Adolescentes da Rede de Serviços de Ação Continuada – Relatório de Pesquisa Número 1.
Brasília, outubro de 2003 p. 50-51.
5
Ibidem, pp.52-53.
(17,64%), na ausência de políticas públicas e de ações institucionais de apoio à
reestruturação familiar (10,79%), no envolvimento com drogas (5,65%) e na
violência doméstica (5,24%). Portanto, se não houver pronta e eficaz ação
municipal (aí incluídas intervenções de organizações não-governamentais) assim
que detectada ameaça ou violação ao direito à convivência familiar e comunitária,
só um programa de abrigo não bastará. Reinventaremos a roda dos expostos, os
internatos, os orfanatos, os educandários que cumpriram suas finalidades numa
época em que a “situação irregular” era a marca das crianças e adolescentes
tratados como “menores”, as formas de atendimento massificantes e sem
perspectivas de o indivíduo acolhido pela instituição retornar ao convívio de sua
famíllia6. O que o estatuto e a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS
prescrevem é que as ações municipais poderão responder a essas perguntas de
308 forma particular, mas sempre tendo por objetivo, por ideal e por fundamento o
cumprimento à doutrina da proteção integral e o resgate dos direitos de indiví-
duos e famílias permanecerem juntos7, em condições de manutenção de seus
membros.

Eis aqui a importância do executivo municipal se colocar à frente na execução


da Política de Proteção Integral, pois a ausência de políticas municipais executadas
de forma articulada, que atendam às famílias e indivíduos prevenindo a colocação
de crianças e adolescentes em abrigo tornam o motivo da entrada no programa
sem previsão de modificação, ou, pior, adicionam fatos, motivos, problemas,
perda de vínculos, abandono etc, determinando a permanência prolongada no
programa.

É atribuição das entidades (tanto governamentais como não-governamentais)


que executam o programa de abrigo a preservação dos vínculos familiares8 e,
para tal, deverá a instituição efetivar formas as mais variadas, seja através da
intervenção de profissionais habilitados junto às famílias, seja facilitando e
aproveitando as visitas de parentes para estudos e intervenções, seja no acom-
panhamento regular dos processos judiciais e na emissão de dados estatísticos
para o CMDCA, de forma que se possa elaborar projetos que atendam aos direitos
desses sujeitos.

6
Estas práticas estão expostas em leituras importantes e indispensáveis como a de ARIÈS (1981), DONZELOT
(1986), RIZZINI (1993) e SILVA (1997), motivo pelo qual não repetiremos dados históricos, supondo ou
sugerindo conhecimento ao leitor.
7
Sugiro consulta à metodologia utilizada pela Associação Brasileira Terra dos Homens, apresentada no livro
Cuidar de quem cuida. Reintegração familiar de crianças e adolescentes em situação de rua. Rio de Janeiro: Book
Link, 2002.
8
Artigo 92, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Já a função do executivo municipal, no seu papel de articulador, é a de
propiciar as condições necessárias para que sejam revertidos, com segurança, os
motivos que levaram à aplicação de medida de abrigo para aquela criança e aquele
adolescente, providenciando acesso deles e de suas famílias (como fonte de
proteção) a habitação, saúde, educação formal, geração de emprego e renda e
atendimento psicossocial. Essas medidas poderiam reverter e combater a violência
nas suas mais variadas formas, como o trabalho infantil e outras ameaças ou
violações de direitos, por meio do atendimento nos demais programas previstos
no artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Quanto mais rápidas e
consistentes forem as ações de quem abriga e do gestor da política junto às
famílias de origem e a rede de atendimento local, menor será o tempo de
permanência daquela criança e daquele adolescente no programa.

O objetivo a que este trabalho se propõe é o de buscar fortalecer o consenso


quanto à primazia da convivência familiar, à necessidade de que os municípios e
os programas se estruturem de forma a garantir a excepcionalidade e a
provisoriedade da medida de abrigo e que, na transição para o retorno à família
de origem ou colocação em família substituta, possam as crianças e os adolescentes
ver cumpridos, para si, cada um dos incisos dos artigos 90 a 94 do ECA. Na
dificuldade de se garantir a convivência familiar, que os programas de abrigo
primem pela construção da autonomia dos indivíduos e pelo desenvolvimento
de suas potencialidades.

Destacamos que a medida de abrigo é provisória - e não a modalidade - para


a criança ou o adolescente. No entanto, no período em que crianças e adolescentes
passam nos abrigos, é preciso evitar a transferência brusca de instituição, mesmo 309
309
nos casos em que ultrapassam o limite etário de determinado programa de abrigo.
Os sentimentos positivos construídos no período de permanência de crianças e
adolescentes em abrigo - como o vínculo, o apego, o pertencimento - são
imprescindíveis, sobretudo para os que não conseguiram uma família.

Sabemos que o des-pensar9 o regimento interno, os costumes, os limites


institucionais, profissionais e pessoais, pensar de outra forma e encontrar novas

9
Utilizamos o termo para dizer que, com base no que já sabemos, daquilo que já foi produzido e sistematizado,
há que se construir o novo, sob pena de não evoluirmos, de não efetivarmos o Estatuto da Criança e do
Adolescente. Enfim, “de remarmos, remarmos e morrermos na praia”, junto com os usuários de nossos serviços.
Este termo é utilizado por Boaventura de Souza Santos, que assim define a importância do des-pensar: “Acima de
tudo, o novo conhecimento assenta num des-pensar do velho conhecimento ainda hegemônico, do conhecimento que
não admite a existência de uma crise paradigmática porque se recusa a ver que todas as soluções progressistas e auspiciosas
por ele pensadas foram rejeitadas ou tornaram-se inexequíveis”. SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo
senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 186.
maneiras de fazer causam dificuldades, constrangimentos, dispêndio financeiro
(se houver necessidade de mudanças na área física e contratação de mais
profissionais), mas há que mudar.

Precisamos pensar e encontrar alternativas também para aquelas crianças


que se tornam adolescentes nas instituições e que precisam de um espaço mais
privativo, podendo surgir dificuldades com a rotatividade acentuada de outras
crianças e adolescentes na casa. Precisamos capacitar funcionários das instituições
e a rede de serviços municipais para que possam atender, no programa de abrigo,
crianças e adolescentes com necessidades especiais, aí incluídos os que apresentam
dificuldades motoras, auditivas, de fala, portadores do vírus HIV, evitando-se,
assim, as transferências e os isolamentos. Exemplo de integração de pessoas com
limitações já nos foi dado pelo sistema de Saúde em todo o Brasil, na luta pela
310 reintegração de pessoas internadas em institutos psiquiátricos às suas famílias e
comunidades.

Chamamos a atenção para o fato de que, qualquer que seja a modalidade a


ser adotada no município (ou modalidades), os irmãos devem ser mantidos juntos
o mais possível , evitando-se a constatação das assistentes sociais do Judiciário
de Santa Catarina10:

“Com relação aos irmãos, observamos que, comumente, são separados para
encaminhamento aqueles de mais tenra idade, restando aos maiores a alternativa de
institucionalização por tempo indefinido. Os prejuízos emocionais são irreversíveis,
tanto para os que foram adotados, que sofrem com a separação, quanto para os que
permaneceram no abrigo, situação que reforça neles o sentimento de rejeição.”

A reversão deste quadro está condicionada, no entendimento da equipe


catarinense, à “mudança de postura (...) na perspectiva do judiciário, evitando separações
drásticas; do executivo, implementando projetos adequados de atendimento; e da sociedade
como um todo, passando a encarar essas questões (...) com realismo suficiente que permita
mudanças desejadas”. Sugerimos considerar a possibilidade de, no sistema infor-
matizado que dá entrada aos processos judiciais, constar da capa, além do nome
da criança e do adolescente, o nome da mãe, de forma que irmãos tenham suas
situações relacionadas, mesmo que em processos diferentes (no caso de aplicação
das medidas em datas diferentes), apensados uns aos outros. Outra consideração
a ser feita é a da adoção de um dos irmãos, com o entendimento de que não se

10
SANTA CATARINA. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. O Serviço Social no Poder Judiciário de Santa Catarina:
construindo indicativos. Florianópolis: Divisão de Artes Gráficas, 2001. p.88.
reconhecem como tal. Ora, a história de vida de cada um deles é comum na sua
origem e precisa ser respeitada e preservada para seu futuro conhecimento. Além
do mais, laços de afeto podem ser construídos sob condições favoráveis.

Apresentaremos, a seguir, algumas formas de se operacionalizar programa


de abrigo, com ênfase na modalidade família acolhedora, de forma a subsidiar
aqueles que precisam implantar, reordenar e adequar seus programas à luz do
estatuto, chamando a atenção para os limites dessas descrições que estão baseadas
em experiências de instituições várias, não havendo possibilidade, no momento,
de se verificar a existência de consenso sobre tais características. Certamente,
aparecerão algumas diferenças na execução de uma mesma modalidade entre
diferentes executores, uma vez que a Lei 8.069/90, apesar de indicar a direção
por meio de leitura conjugada de artigos diversos e mesmo pelos princípios e
obrigações colocadas às instituições, não explicita as formas, deixando a melhor
alternativa a ser criada ou adaptada para os operadores da política municipal.

O que importa é que, na execução, aproximemos o programa, o mais possível,


de uma estrutura que permita o atendimento personalizado e em pequenos gru-
pos 11. Nossa contribuição é no sentido de focalizar alguns elementos considerados
relevantes, de forma a melhor elucidar a operacionalização do Sistema de Proteção
Integral 12 no que tange à medida de proteção em regime de abrigo.

Casa-lar ou abrigo domiciliar: com estrutura de uma residência privada,


a casa pode ser de propriedade ou alugada pela instituição responsável
pelo programa. Pode ser coordenada por casal social, pais sociais, mãe social
(Lei 7.644, de 18/12/1987) ou, ainda, por educadores com revezamento
de horários. Sugere-se a não-colocação de placas indicando tratar-se de
311
311
abrigo, o que facilitará o entrosamento das crianças e adolescentes na vida
da localidade, evitando-se a indicação e a denominação de “as crianças e
os adolescentes do abrigo”. É conveniente que, antes da instalação do
programa numa casa, a vizinhança seja informada sobre as características
do programa (o mesmo valendo para outras modalidades), deixando o
nome e o contato de um profissional da equipe para dirimir dúvidas, mini-
mizar ou resolver eventuais conflitos. O número de crianças e adolescentes
na casa deverá se guiar pelas normas estabelecidas pela área de obras e

11
Artigo 92, inciso III, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
12
Caracteriza-se pela ação articulada entre os órgãos responsáveis pela promoção dos direitos (União, estados e
municípios), os responsáveis pela defesa dos direitos (Ministério Público, os Juizados da Infância e Juventude,
os Conselhos Tutelares e os Centros de Defesa de Direitos - Fórum DCA) e os responsáveis pelo controle da
execução da Política de Proteção Integral (os conselhos nacional, estaduais e municipais.
urbanismo da prefeitura municipal (ver tamanho da casa e m2 por pessoa),
sugerindo-se o atendimento máximo de 12 crianças e adolescentes13.

República: tal qual as casas-lares, a república é uma casa comum, sem


placas, ficando o dirigente da instituição responsável pelos móveis,
alimentação, manutenção e equipamentos. É geralmente direcionada a
adolescentes maiores de 18 anos de idade, sem condições de retorno à
família de origem e a quem não foi propiciado, até o momento, família
substituta14. A autonomia será construída durante a permanência do jovem
na instituição, em direção ao processo de desligamento, por meio de sua
inserção no mundo do trabalho, do alcance do sucesso escolar, da sua
contribuição para a manutenção da casa (estímulo a que os jovens aprendam
a organizar e efetuar as compras do mês, realizar as tarefas domésticas,
312 acompanhar os pagamentos das despesas fixas), pois que não haverá
educadores residindo com eles, mas tão-somente como suporte em alguns
períodos do dia, além das intervenções dos técnicos para a devida mediação,
facilitação, compreensão e apoio no planejamento de projetos individuais
de vida15. Sugere-se análise com o Juizado da possibilidade de atendimento
em república dos irmãos menores de 18 anos se acompanhados por irmão(ã)
maior de 18 anos. Nessas situações, pode haver necessidade de se repensar
os dias e horários dos educadores.

Casa de passagem, acolhida, transitória, albergue: trata-se de estrutura


destinada, sobretudo, a meninos de rua16 geralmente encaminhados por
profissionais educadores17 que realizam abordagens na rua, na busca por
construir relação de confiança e afeto para posterior estudo de viabilidade
de retorno à família de origem ou outros encaminhamentos - bem como
àquelas situações em que a criança e o adolescente precisam de segurança

13
As Aldeias SOS parecem se aproximar em muito desta modalidade, sobretudo se garantirem a inserção das
crianças e adolescentes na vida comunitária da redondeza, evitando-se o isolamento em relação aos vizinhos, o
que pode ser minimizado se estruturas e serviços da aldeia forem disponibilizados à vizinhança. Caracteriza-se
por ser conjunto de casas-lares em um mesmo terreno, contando ainda com casa do dirigente, sala para os
técnicos, sala de visitas, biblioteca, quarto de hóspedes, sala para múltiplas atividades e outros equipamentos.
14
Ver capítulo III, sessão III, subseções I, II, III e IV, artigos de 28 a 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
que trata das possibilidades de colocação familiar: guarda, tutela e adoção.
15
O tempo de permanência no programa deve ser definido entre os técnicos da instituição, os dirigentes e o
próprio jovem, tendo como parâmetro as condições do jovem manter-se fora da instituição, apesar de poder tê-
la como referência, como porto seguro.
16
Na referência de MILITO, Cláudia e SILVA, Hélio R.S. Vozes do meio fio. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1995. p. 9) : “ Termo abrangente que designa meninos, meninas e adolescentes, cujos vínculos familiares são cíclicos,
permanentes ou rompidos e que, em decorrência, ocupam a rua intermitente, temporária ou permanentemente”.
17
“Na rua, esses educadores não só educam meninos, mas, sobretudo, civilizam transeuntes”. MILITO e SILVA.
op.cit. p.9.
para ser recambiados aos seus municípios de origem, onde se deve localizar
os pais ou responsáveis para entrega sob termo de responsabilidade. Sempre
que houver indícios de ameaça ou de violação de direitos destas crianças e
adolescentes18, bem como no conhecimento de ato infracional praticado
por criança, deve o responsável pela casa comunicar o fato ao Conselho
Tutelar para a aplicação das medidas19 do artigos 101, I a VII e 129, I a
VII do Estatuto da Criança e do Adolescente. Podem, ainda, atender a
adultos acompanhados por seus filhos(as). Mesmo sendo locais que
oferecem proteção, alimentação, cuidados básicos com higiene e segurança,
orientação de profissionais habilitados como assistentes sociais, psicólogos,
arte educadores, pedagogos etc., entendemos não ser programa em regime
de abrigo, dada sua característica de flexibilidade quanto aos atendimentos
para adultos, das muitas entradas e saídas, por vezes diárias, ou semanais,
de uma mesma criança ou adolescente da casa, se constituindo mais como
um projeto vinculado a Programa Socioeducativo em Meio Aberto. Nossa
intenção de arrolar este atendimento no presente texto, é a de perseguir
melhor elucidação do conceito de abrigo, expressa no artigo 101, parágrafo
único, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Abrigo institucional: é modalidade que atende ainda grande número de


crianças e adolescentes, com dificuldades de proporcionar-lhes o devido
atendimento individualizado e em pequenos grupos, como prescritos no
art. 92, inciso III, do estatuto. Observa-se distanciamento da vida comu-
nitária de origem da criança e adolescente, bem como a crescente fragilidade
ou rompimento dos vínculos com a família de origem. No dizer de Weber
e Kossobudski (apud OLIVEIRA: 2002, p. 14):
313
313
“É fácil perceber que a vida numa instituição está longe de ser equivalente
à vida de uma criança em um ambiente livre. Como ressalta Goffman (1987), o
aspecto central das instituições totais 20 pode ser descrito como a ruptura das barreiras

18
Art. 98 do Estatuto da criança e do Adolescente, que trata das disposições gerais para aplicação de medidas de
proteção.
19
Art. 105 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
20
Goffman define ‘instituição total como um local de residência e trabalho onde grande número de indivíduos com
situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada
e formalmente administrada’”. Segundo Weber e Kossobudzki, Goffman utilizou este termo para diversas
instituições, tais como asilos, conventos, prisões, reformatórios, escolas e outros. WEBER e KOSSOBUDZKI,
apud OLIVEIRA, Márcia G. da Silva. O projeto de apadrinhamento afetivo nas casas-lares Nossa Senhora do
Carmo e São João da Cruz: práticas vivenciadas – 1998 a 2001. Monografia para obtenção do título de especialista.
UDESC, FAED. Florianópolis, 2002. p. 14.
que comumente separam as três esferas da vida: dormir, brincar e trabalhar. Esses
três aspectos são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade.”

Acreditamos ser possível que tais instituições possam, articuladas a outros


atores do sistema de garantia de direitos de seu município, garantir melhor
individualização no atendimento por meio do redimensionamento de suas reais
capacidades e necessidades de atendimento, de estudo social de cada abrigado e
de investimento prioritário na família, na busca do retorno para casa e da
conseqüente redução do quadro de abrigados. Sugerimos atendimento de, no
máximo, 25 crianças e adolescentes em um mesmo prédio.

Bowlby (apud OLIVEIRA: 2002, p.13) ressalta a necessidade do


estabelecimento de apego da criança por outra pessoa, enfatizando que um dos

314 danos da institucionalização é a “privação” principalmente da figura materna:

“Esta conclusão, a que chegam vários pesquisadores renomados, não deixa margem
a dúvida quanto ao fato de que o desenvolvimento da criança que vive em instituições
está abaixo da média desde a tenra idade. Entre os sintomas observados, constatou-
se que o bebê que sofre privação pode deixar de sorrir para um rosto humano ou de
reagir quando alguém brinca com ele, pode ficar inapetente ou, apesar de bem nutrido,
pode não engordar, pode dormir mal e não demonstrar iniciativa.”21

Nos Estados Unidos e Canadá, a colocação de crianças foi estudada por


Steinhauer,22 que observou as crianças encaminhadas para famílias provisórias
antes de ir para famílias adotivas. As primeiras em famílias eram consideradas
temporárias, podendo a criança ficar mais ou menos tempo com ela. O projeto
de família acolhedora elaborado pelo Grupo de Estudos e Apoio à Adoção de
Florianópolis, cita Barth e Cols (1988), que realizaram pesquisa denominada
Prevendo interrupção na adoção, tendo concluído que a diminuição da taxa de
interrupções esteve vinculada à maior utilização de colocações de crianças em
famílias provisórias. O grupo cita, ainda, Barth e Berry, que levantam a
possibilidade de a não-existência de famílias provisórias ser fator de risco,
comprometendo o processo de adoção; recomendam sua discussão como pre-

21
op. cit. p.13.
22
STEINHAUER, Paul D. The Last Detrimental Alternative. A Systematic Guide to Case Planning and Decision
Making for Children in Care. Canadá: University of Toronto Press, 1991. Part Four, pp. 185 a 200.(Tradução de
Regina Helena Cintra Paes de Barros, membro do Grupo de Estudos e Apoio à Adoção de Florianópolis).
venção à interrupção. Frassão23 realizou pesquisa na comarca24 de Florianópolis/
Santa Catarina, tendo como enfoque a devolução de crianças a quem foram aplicadas
medida de colocação em família substituta25, constatou que:

“a ligação afetiva da criança com sua família de origem parece ser um forte contribuinte
no fracasso da colocação em nova família substituta. Esse dado está associado à
interferência de organismos de defesa da criança, que retiram a criança da família
biológica, considerada como inadequada no fornecimento dos cuidados. Esta parece
ser a opção mais praticada pelos órgãos de defesa da criança e do adolescente. Nesta
situação, a colocação em família provisória seria mais adequada.

Estas referências nos encaminham para a necessária constituição de


modalidade de aplicação de medida de abrigo que prime pelo rompimento do
processo de institucionalização, pela necessidade de novas formas de inserção da
criança e adolescente em convívio familiar, comunitário e que gere atendimento
individualizado consistente, como proposto pela modalidade família acolhedora,
que explicitaremos a seguir.

Família acolhedora: trata-se de um indivíduo ou família já constituída


que se propõe a receber em sua casa criança e/ou adolescente, assumindo,
sob termo de responsabilidade, as atribuições relativas ao guardião (tal
qual nas demais modalidades), expressas nos artigos 33 e 92, parágrafo
único, do ECA. No entanto, como esta permanência não é estágio que
vise adaptação para a adoção, a família assume as funções sob termo de
responsabilidade, isto é, firmando um acordo de co-responsabilidade pelo
atendimento a ser promovido com a instituição executora do programa,
derivando daí a necessidade de estabelecimento de deveres e direitos para
315
315
ambas as partes. No caso de medida de abrigo aplicada a grupos de irmãos,
sugere-se ver a condição da família acolhedora em abrigar tantos membros
e, se for o caso, pensar numa acolhida dos demais irmãos numa outra
família acolhedora próxima à residência da primeira, facilitando os contatos
entre irmãos. Há que se pensar se é conveniente que a visita da família de

23
FRASSÃO, Márcia Cristina G. Devolução de crianças colocadas em famílias substitutas – uma compreensão dos
aspectos psicológicos, através dos procedimentos legais. Dissertação para obtenção de Grau de Mestre no Programa
de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina, 2000.
24
A comarca constitui-se de um ou mais municípios formando área contínua, com a denominação daquele que
lhe servir de sede, sob a jurisdição de um ou mais juízes.
25
Art. 101 inciso VIII do Estatuto da Criança e do Adolescente - sob a forma de guarda, tutela ou adoção, de
atribuição exclusiva do Juiz da Infância e Juventude.
origem seja feita na residência da família acolhedora, ou se a opção por
outro local poderá preservar minimamente o espaço da família que acolhe.

Mas antes de tratar disso, sugere-se que a instituição registrada no Conselho


Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente como responsável pela
execução desta modalidade de abrigo explicite, no projeto a ser submetido à
apreciação do CMDCA e do Juizado 26, também os critérios de perfil que adotará
para selecionar as famílias acolhedoras, como sugeriremos a seguir: A faixa etária
dos adultos responsáveis pode ser superior a 25 anos. No entanto, registramos
que os estudos de Steinhauer apontam para “maior eficácia em pais acolhedores 27
acima dos 40 anos” 28. A residência da família acolhedora deve estar em condições
de receber mais um (ou mais membros, no caso de grupos de irmãos) e deve
estar próxima a escolas, centros de saúde, etc. de forma a garantir acesso e agilidade
316 no atendimento da criança e do adolescente. Quanto ao estado civil dos pais
acolhedores, não haveria restrições. Alguns fatores podem ser entendidos como
impeditivos para o exercício da função, quais sejam: ser candidato à adoção
(formalizado ou não); estar em processo de luto (separações ou falecimentos);
estar registrado em órgão de proteção e defesa da criança e do adolescente como
agente de ameaça ou violação de direitos. O desejo de adotar como impeditivo
está relacionado à função primeira da acolhida, ser provisória, mesmo que dure
alguns meses, e o papel dos acolhedores não ser o de “pais substitutos” (pois
não há intenção alguma em substituir a família de origem, mas de fortalecê-la),
mas de co-responsáveis pelas intervenções a serem realizadas inclusive com a
família de origem. Portanto, esses pais acolhedores devem ser encarados como
parte da equipe profissional responsável pelo programa. No dizer de Steinhauer,
“devem funcionar como pais terapeutas:” 29

26
Pois que o Juizado autorizará a transferência da criança e do adolescente de sua família de origem para outra,
acolhedora. Ver artigos 146 e 147 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
27
Steinhauer utiliza a expressão foster parents que na tradução para o português seria pais de criação conforme o
Dicionário Oxford Escolar para estudantes brasileiros de inglês, 1999, p.430. No entanto, para diferenciarmos
das adoções não-legais ou do ato de cuidar sem implicação jurídica, utilizaremos a expressão pais acolhedores.
28
op. cit. p. 188.
29
A função de pais terapeutas, citada por Steinhauer, é por ele assim descrita: “Quando pais acolhedores e
assistentes sociais trabalham bem juntos, após um tempo muitos pais acolhedores desenvolvem uma crescente
habilidade em observar e interpretar comportamentos infantis com precisão e sensibilidade. Eles aprendem a
reconhecer que comportamentos similares ocorrem por diferentes razões. Muitos aprendem a decifrar por si
próprios o significado de determinado comportamento e usar suas habilidades para fazer intervenções úteis.
Assim, com o passar do tempo, o assistente social está sensibilizando e preparando pais acolhedores para
funcionarem como pais terapeutas, ensinando-os a desenvolver uma atitude de observação e investigação, como
utilizar o comportamento diário da criança para entender, estabelecer confiança, aliviar angústia e ajudar a criança
a identificar e resolver conflitos”. op. cit p. 195.
“Mas exatamente o que significa sugerir que se deve esperar dos pais acolhedores
que funcionem como substitutos ou pais terapeutas? O desenvolvimento de qualquer
atitude terapêutica envolve alcançar e manter uma distância apropriada do cliente,
uma tarefa difícil em qualquer circunstância, mas especialmente quando a relação
se dá sem descanso no dia-a-dia dentro do cenário da família. Todavia, alguns
pais acolhedores experientes reconhecem a proteção providenciada para ambos, eles e
a criança, quando seu papel é primeiramente definido como terapêutico, ao invés de
parental. Crucial a esta redefinição é a aceitação dos pais acolhedores como um
membro do time, ao invés de cliente de um programa social. Assim, pais acolhedores
devem começar a se ver – e, igualmente importante, devem assim ser vistos pelos
funcionários – como a principal influência sobre a criança, ficando o assistente social
centrado menos diretamente no caso e mais apoiando, supervisionando e fortalecendo
a habilidade da família acolhedora para entender e ajudar a criança.” 30

Temos, então, que quem acolhe deve estar disposto a assumir este novo
papel de colaborador ativo no projeto de intervenção para com a criança ou o
adolescente acolhido e sua família de origem.

Steinhauer destacou a importância do trabalho do profissional de serviço


social, que ultrapassa o de somente acompanhar a permanência na família
acolhedora, tornando-se apoio efetivo (representando a instituição responsável
pelo programa) para que aqueles pais acolhedores não se sintam exaustos com a
função, que não sejam sobrecarregados com muitas crianças e adolescentes, que
se considere cada estágio por que passa a família que acolhe, pois que, sem
dúvida, sua dinâmica será alterada com a inclusão provisória de mais um membro.
Há, ainda, que se considerar a habilidade e as condições da família acolhedora 317
317
em lidar com as famílias de origem e com as situações que geraram a aplicação
da medida de abrigo, devendo ser preparada para tal. As opiniões das famílias
acolhedoras devem ser consideradas, inclusive quando se opõem ao retorno à
família de origem, de forma que não se sintam como intrusos no trabalho da
instituição.

Para se evitar a exaustão, pode-se, ainda, incluir atividades diretamente


direcionadas aos pais e demais membros das famílias acolhedoras, como reuniões
com outros acolhedores para troca de experiências, de lazer, mantendo-se sempre
um canal aberto de comunicação entre as famílias acolhedoras e o assistente
social, que representa a instituição, como enfatiza Steinhauer:

30
op. cit. p. 189.
“Quanto mais forte a aliança de trabalho entre pais acolhedores e assistente social –
quanto mais completa, aberta e diretamente cada um poder se expressar, ouvir e
negociar áreas de discordância ou tensão com o outro – melhor a chance do sistema
trabalhar junto para proteger a criança acolhida nas suas chances em receber qualidade
máxima e cuidado contínuo.” 31

Outro aspecto importante é a regularidade e a manutenção de uma mesma


equipe institucional para trabalhar com a família acolhedora, pois confiança é
algo que se constrói gradativamente. Esta regularidade inclui a elaboração de um
planejamento sempre atualizado, que leve em consideração as responsabilidades
e situações individuais, das famílias acolhedoras, da família de origem, da
instituição responsável e da equipe do Juizado da Infância e da Juventude.

318 Crucial é o suporte para a acolhida, que deve ser provida de recursos
financeiros e materiais, como um valor prefixado a ser repassado para a família
acolhedora por criança e adolescente atendidos; roupas; brinquedos; alimentação;
acesso à rede pública de ensino infantil, fundamental e médio; utilização dos
centros de saúde próximos à residência da família acolhedora.

Steinhauer assim representa o sistema de serviços para crianças sob


cuidados 32, chamando a atenção para a dinamicidade e a comunicação entre todos.

Para bem ilustrar a melhor forma de entender e aplicar a medida de abrigo


em modalidade família acolhedora, transcrevemos as diferenças entre esta
modalidade e a institucional 33 nas tabela 1, 2, 3 e 4.

DIAGRAMA 01
Sistema de serviços para crianças sob cuidados

Criança acolhida

Família natural Família acolhedora

Profissional e instituição Juizado Infância/Juventude

31
op. cit. p.194.
32
op. cit. p. 190.
33
Quadro apresentado pela Secretaria do Trabalho e Ação Social do Governo do Ceará como integrante do
Programa de Abrigo Tia Júlia, no colóquio técnico promovido pelo Ministério da Previdência e Assistência
Social em Brasília, em agosto de 2002.
TABELA 01
Características do atendimento - socialização

INSTITUIÇÃO LAR SUBSTITUTO (OU ACOLHEDOR)

1. Admissão - "Ansiedade de separação" (Estágios 1. Admissão - adaptação rápida;


de Bowlby), protesto, desespero e desapego;

2. Difícil Identificação (rotatividade de funcionários); 2. Identificação - membros da família;

3. Distribuição por faixa etária - dificulta contato 3. Convivência - grupo de irmãos;


entre irmãos;

4. Afastamento da vivência em ambiente familiar e 4. Vivência num ambiente familiar e comunitário.


comunitário;

TABELA 02
Características do atendimento - emocional

INSTITUIÇÃO LAR SUBSTITUTO (OU ACOLHEDOR)

1. Carência afetiva; 1. Recebem afeto;

2. Baixa auto-estima; 2. Elevada auto-estima;

3. Semblante triste, olhar perdido; 3. Mudança no humor, brilho nos olhos, sorriso;

4. Desejo de sair e ter uma família; 4. Medo de retornar ao abrigo (institucional).

TABELA 03
Características do atendimento - tratamento

INSTITUIÇÃO LAR SUBSTITUTO (OU ACOLHEDOR)

1. Ambiente grande, frio; 1. Ambiente familiar, aconchegante;

2. Coletivo - massificante; 2. Individualizado - personalizado;

3. Horários estabelecidos, rígidos; 3. Horários flexíveis, respeito ao ritmo da criança; 319


319
4. Vestuário coletivo e padronizado; 4. Vestuário individualizado, apropriado;

5. Sem direito a escolhas, gostos, querer. 5. Respeito aos gostos, escolhas e desejos.

TABELA 04
Características do atendimento - desenvolvimento infantil

INSTITUIÇÃO LAR SUBSTITUTO (OU ACOLHEDOR)

1. Atraso no desenvolvimento biopsicomotor; 1. Bom desenvolvimento;

2. Saúde fragilizada; 2. Melhora do quadro de saúde;

3. Dificuldade de ganhar peso; 3. Aumento do peso;

4. Linguagem reduzida; 4. Aumento do vocabulário;

5. Dificuldade de compreender as coisas comuns do 5. Riqueza nas experiências do cotidiano.


cotidiano.
É interessante, ainda, que frisemos a diferença que buscamos constituir
entre a família acolhedora como modalidade de programa em regime de abrigo e
a família substituta prevista no artigo 28 do estatuto, com ênfase no artigo 34,
onde se prevê:

“O Poder Público estimulará, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e


subsídios, o acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou
abandonado.”

Este artigo 34 estará viabilizado por meio do cumprimento ao artigo 260,


parágrafo 2º, do mesmo estatuto.

Observemos que o texto trata daquelas crianças e adolescentes órfãos e


abandonados a quem se deseja ver resgatado o convívio familiar em outra família,
320 já que foi constatada a impossibilidade de retorno à família natural. As demais
crianças e adolescentes abrigados, que estão com seus processos judiciais em
tramitação, ou seja, que ainda são motivo de intervenções de equipes técnicas
de estudos judiciais, visando configurar e viabilizar novas possibilidades de
resgate de vínculos de compromisso com a família natural ou de origem, estes
não estão órfãos e seus pais (ou pai, ou mãe) ainda possuem o poder familiar.
Portanto, presume-se que o abandono, isto é, o não-desejo de ter o filho consigo
pode não estar configurado ou, se o abandono for material, é preciso verificar
se o poder público foi acionado para dar suporte àquela família, geralmente
empobrecida. Portanto, entendemos que a família acolhedora a que nos referimos
como modalidade de abrigo não substituirá a de origem como objetivo último;
antes, viabilizará uma acolhida que prime pelo atendimento individual (aí
incluídos os irmãos), enquanto sua família está em processo de reorganização
para assumir as funções protetoras. A partir do momento em que se decreta,
via destituição do poder familiar, o rompimento do vínculo legal entre pais e
filhos, estas crianças e estes adolescentes devem entrar para as estatísticas de
meninos e meninas que precisam ver resgatado o seu direito à convivência
familiar pela inclusão em família substituta na forma de guarda, tutela ou,
preferencialmente, por meio de adoção.

Como apontamos anteriormente, este texto tem a pretensão de apontar


alguns caminhos que possam melhor conduzir os municípios na operacionalização
desse programa, que tem suas raízes expostas a cada medida aplicada para cada
criança e adolescente. Consideramos que nossos argumentos devem ser colocados
frente a frente às mais diversas realidades brasileiras e que novas produções, a
exemplo desta, possam registrar as formas variadas com que os adultos que se
responsabilizam pela operacionalização do Estatuto da Criança e do Adolescente
buscam minimizar os efeitos das separações, dos lutos, dos sonhos desfeitos, da
esperança a ser sempre renovada a cada troca de olhar entre um adulto e meninos
e meninas.

Em oportunidades como essas é que podemos confrontar o modo de operar


com o conceito. Lembremos o que diz Cláudia Cabral 34:

“Todo sistema complexo inclui uma forte resistência à mudança. Discutir novas
idéias e procedimentos não é fácil, especialmente se profissionais bem treinados são
solicitados a modificar suas maneiras de pensar costumeiras, assim como as práticas
que norteiam o trabalho e a organização dos serviços.”

321
321

34
CABRAL, Cláudia . Mudança de Paradigma: um desafio. IN: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA TERRA DOS
HOMENS (org). Cuidar de quem cuida. Reintegração familiar de crianças e adolescentes em situação de rua. Rio
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322 CABRAL, Cláudia . Mudança de Paradigma: um desafio. IN: ASSOCIAÇÃO


BRASILEIRA TERRA DOS HOMENS (org). Cuidar de quem cuida. Reintegração
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323
323
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324
ARTE SOBRE FOTO DE JOÃO VIANA DA SILVA
CAPÍTULO 12

A rede de proteção a crianças


e adolescentes, a medida protetora
de abrigo e o direito à convivência
familiar e comunitária:
a experiência em
325
nove municípios brasileiros

Luseni Maria Cordeiro de Aquino


326
12.1 APRESENTAÇÃO

Com o objetivo de aprofundar a reflexão sobre a garantia do direito à


convivência familiar e comunitária na implementação da medida de abrigo, o
“Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC”
contou com uma etapa qualitativa, cujo foco foi a inserção dos programas no
âmbito da política municipal de atendimento a crianças e adolescentes em nove
município brasileiros1.

Uma vez que as outras duas etapas da pesquisa debruçaram-se detidamente


sobre as próprias instituições de abrigo, a etapa qualitativa buscou tratar dos
demais atores das redes de proteção a crianças e adolescentes envolvidos com o
abrigamento, seja na aplicação judicial da medida, seja na fiscalização do
atendimento prestado e na sua regularização tendo em vista as diretrizes do ECA.
Neste sentido, foram entrevistados juízes e membros das equipes técnicas das
Varas da Infância e da Juventude, promotores e oficiais do Ministério Público,
conselheiros tutelares, membros dos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança
e do Adolescente (CMDCAs), membros dos Conselhos Municipais de Assistência
Social (CMAs) e gestores ou técnicos dos órgãos estaduais e municipais
encarregados da gestão da política de atendimento a este segmento da população.

Pretende-se neste texto sistematizar a percepção dos atores locais


entrevistados pela equipe técnica do “Levantamento” sobre a contribuição das 327
redes de proteção para implementar o atendimento adequado a crianças e
adolescentes e, ao mesmo tempo, garantir seus direitos, especialmente o direito à
convivência familiar e comunitária daqueles que estão submetidos à medida
protetora de abrigo.

1
A etapa qualitativa do “Levantamento” foi coordenada pela consultora Maria Raquel Gomes Maia Pires. A
técnica de pesquisa aplicada nesta etapa foi o estudo de caso, e os principais instrumentos de coleta de dados
empregados foram: (i) a análise documental dos planos, projetos, normas e leis referentes à política municipal de
assistência social e de atendimento à criança e ao adolescente; (ii) as entrevistas semi-estruturadas realizadas com
todos os atores da rede de proteção local (à exceção dos dirigentes das unidades de abrigo); e (iii) os questionários
aplicados aos técnicos dos órgãos executivos responsáveis pelas ações voltadas para crianças e adolescentes em
situação de risco pessoal e social. Aplicando-se os critérios predefinidos para escolha dos municípios que seriam
investigados, resultou a seleção dos seguintes: Belo Horizonte (MG), Campinas (SP), Campo Grande (MS),
Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Natal (RN), Porto Alegre (RS), Porto Velho (RO) e Rio de Janeiro (RJ). Este
texto faz uso de parte do material coletado nessa etapa da pesquisa, especialmente das entrevistas semi-estruturadas.
12.2 O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS
E AS REDES DE PROTEÇÃO INTEGRAL A
CRIANÇAS E ADOLESCENTES

De forma inovadora e em sintonia com as demandas de setores organizados


da sociedade, a Constituição de 1988 reconheceu as crianças e os adolescentes
brasileiros como sujeitos plenos de direitos2. No entanto, o fato de que esta
parcela da população encontra-se na condição peculiar de pessoas em
desenvolvimento colocou inequivocamente a necessidade de que suas famílias, o
poder público e o conjunto da sociedade em geral reúnam esforços para garantir
a efetivação daqueles direitos com absoluta prioridade, assegurando, assim,

328 dignidade e proteção integral ao desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Neste sentido, a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à


infância e à adolescência por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente -
ECA estabeleceu nova concepção, organização e gestão das políticas de atenção
a este segmento da sociedade, dando origem a um verdadeiro sistema de garantia
de direitos. Do ponto de vista da concepção, esse sistema destaca-se pelo caráter
abrangente, pois incorpora tanto os direitos universais de todas as crianças e
adolescentes brasileiros quanto a proteção especial a que fazem jus aqueles que
foram ameaçados ou violados em seus direitos. Da perspectiva organizacional, o
sistema ancora-se na integração interdependente de um conjunto de atores,
instrumentos e espaços institucionais (formais e informais) que contam com
seus papéis e atribuições definidos no estatuto. Quanto à gestão, o sistema de
garantia funda-se nos princípios da descentralização político-administrativa e da
participação social na execução das ações governamentais e não-governamentais
de atenção à população infanto-juvenil brasileira.

Importante ressaltar que a expressão “sistema de garantia de direitos” denota


a impossibilidade de se considerar isoladamente a atuação de quaisquer dos
componentes do conjunto, já que seus papéis e atribuições estão entrelaçados e
apenas ganham efetividade se conduzidos de maneira integrada. Por outro lado,
“garantir” direitos implica atuar em pelo menos três frentes fundamentais: a da
promoção dos direitos instituídos, a da defesa em resposta à sua violação e a do

2
Segundo o art. 227 da Constituição, são esses o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
controle na implementação das ações que visam a realizá-los (Cabral et alii, 1999).
De tudo isso se deduz que a efetividade do sistema de garantia de direitos resulta
da interação entre atores, instrumentos e espaços institucionais em cada uma das
três frentes, bem como da complementaridade e do reforço mútuo entre essas
frentes.

É preciso ter em conta ainda que as interações entre os componentes do


sistema se dão caso a caso, conforme a especificidade dos diferentes contextos
em que se atua para garantir os direitos de crianças e adolescentes. Neste sentido,
a prática do sistema ganha concretude por meio das redes de proteção integral
que se conformam localmente para promover o atendimento às necessidades de
crianças e adolescentes. Como alerta Brancher, “não se pode supor, senão idealmente,
um conjunto fechado de órgãos ou uma estrutura organizada entrelaçando os diferentes serviços
de proteção à infância. Principalmente, o conceito tradicional de sistema não engloba um dos
principais aspectos de um sistema de conexões interorganizacionais, que é a sua capacidade de
recombinação dinâmica em que o sistema, virtualmente possível em múltiplas combinações,
somente se expressa pela composição de determinados subconjuntos a cada intervenção prática
– e possivelmente nunca se materialize na sua configuração ideal que, por ser estática, lhe
aprisiona a própria significação” 3.

Neste sentido, a noção de rede permite traduzir com mais propriedade a


trama de conexões interorganizacionais em que se baseia o sistema de garantia
dos direitos de crianças e adolescentes, pois compreende o complexo de relações
acionadas, em diferentes momentos, pelos agentes de cada organização para
garantir esses direitos. As redes de proteção integral são, portanto, o aspecto
dinâmico do sistema, conformado a partir das conexões entre atores que 329
compartilham um sentido de ação. Sendo assim, “quando se fala em ‘Sistema de
Garantia de Direitos’, melhor se tem em mente a compreensão teórica, abstrata e estática do
conjunto de serviços de atendimento previstos idealmente em lei, enquanto a expressão ‘Rede de
Proteção’ expressa esse mesmo sistema concretizando-se dinamicamente, na prática, por meio
de um conjunto de organizações interconectadas no momento da prestação desses serviços” 4.

3
BRANCHER, Leoberto N. Organização e gestão do Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude.
IN: KONZEN et alii. Pela Justiça na Educação. Brasília: MEC, 2000. p. 130.
4
Ibidem, p. 131.
Tomando-se o eixo da promoção dos direitos, por exemplo, a teia da rede é
formada por todos os órgãos e serviços governamentais e não-governamentais
que atuam na ampliação e aperfeiçoamento da qualidade dos direitos legalmente
previstos, o que se faz essencialmente por meio da formulação e execução de
políticas públicas, quer se trate de políticas universais de atendimento às
necessidades básicas da criança e do adolescente, quer se trate de medidas de
proteção especial para aqueles que se encontram em situação de risco pessoal e
social. Nessas conexões interagem atores tão variados quanto os órgãos executores
das políticas públicas (nas áreas de educação, saúde, assistência social, alimentação,
cultura, esporte etc.), os conselhos paritários de deliberação sobre as diretrizes
dessas políticas, os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e as
entidades públicas e privadas de prestação de serviços.

330 No âmbito da defesa dos direitos estão as conexões da rede de proteção


integral que articulam as normas, ações e instituições que se prestam a assegurar
o cumprimento e a exigibilidade dos direitos instituídos, permitindo a respon-
sabilização (judicial, administrativa e social) das famílias, do poder público ou da
própria sociedade pela não-observância a esses direitos ou pela sua violação.
Neste caso, as redes congregam o Judiciário, o Ministério Público, as Secretarias
de Justiça, os Conselhos Tutelares e os órgãos de defesa da cidadania5.

Finalmente, no eixo relativo ao controle social, constituem-se as conexões


articuladoras das ações voltadas para a aferição contínua do efetivo respeito, por
parte do poder público e dos setores da sociedade que prestam serviços de
atendimento a crianças e adolescentes, aos preceitos legalmente instituídos. As
organizações da rede de proteção atuantes nessa frente reúnem os setores
organizados da sociedade civil representados nos fóruns de direitos e outras
instâncias não-governamentais, bem como nos próprios conselhos de direitos e
de políticas setoriais, conforme o princípio da participação social consagrado na
Constituição de 1988.

5
Segundo o art. 210 do ECA, as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluem entre
seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo estatuto são legitimamente competentes
para propor ações cíveis fundadas em interesses coletivos ou difusos de crianças e adolescentes, concorrentemente
com o Ministério Público e a União, os estados, os municípios, o Distrito Federal e os territórios.
12.3 AS REDES MUNICIPAIS DE PROTEÇÃO
INTEGRAL E O DIREITO DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES ABRIGADOS À CONVIVÊNCIA
FAMILIAR E COMUNITÁRIA:
A EXPERIÊNCIA EM NOVE MUNICÍPIOS
BRASILEIROS

O abrigamento é a sétima das oito medidas de proteção especial a crianças


e adolescentes indicadas no ECA. A sua aplicação é sempre uma decisão extrema,
pois, se a medida busca proteger crianças e adolescentes ameaçados ou
efetivamente violados em seus direitos no seio de sua própria família - daí a
necessidade de afastá-los da convivência com esse círculo de pessoas -, ela mesma
implica a violação do direito à convivência familiar, fundamental para o
desenvolvimento infanto-juvenil e, por isso, garantido constitucionalmente e
reafirmado no ECA. Neste sentido, o grande desafio que se coloca para a rede de
proteção integral é o de promover uma intervenção psicossocial eficaz sobre as
crianças e os adolescentes abrigados, bem como sobre suas famílias, de modo a
abreviar o período de afastamento e permitir o retorno desses meninos e meninas
para seus lares em condições de segurança; ou, caso se comprove a impossibilidade
de reintegração à família de origem, promover o seu encaminhamento para a
convivência com uma família substituta.

Contudo, tanto o perfil das crianças e adolescentes abrigados nas unidades


conveniadas à Rede SAC quanto os dados relativos aos motivos do abrigamento
levantados por esta pesquisa revelam que a pobreza, embora não devesse ser
331
causa de aplicação da medida, está entre os principais fatores que levam crianças
e adolescentes a serem acolhidos em abrigos. Dadas as dificuldades que as famílias
dos abrigados enfrentam para acessar os serviços públicos de apoio à criação e
educação de seus filhos, muitas delas acabam se acomodando ao seu abrigamento,
nas expectativa de que a institucionalização possa garantir proteção e acesso aos
serviços básicos de educação e saúde. Esta situação coloca um desafio a mais
para a rede de proteção integral, o qual remete para a necessidade de assegurar a
inserção da política de atendimento a crianças e adolescentes em abrigo no âmbito
mais amplo das políticas locais de atenção à família, articulando esforços com
outras áreas de intervenção social (trabalho, renda e assistência social, habitação,
saúde, educação etc.).
Se generalizados os dados relativos às condições do abrigamento de crianças
e adolescentes nas unidades conveniadas à Rede SAC para todo o universo dos
abrigos do país, bem como aqueles referentes ao trabalho desenvolvido por essas
instituições junto aos abrigados e a suas famílias, tem-se um quadro claro dos
limites enfrentados pelos programas de abrigo para fazer cumprir os princípios
da brevidade da medida e do incentivo à convivência familiar. Esses dados,
contudo, evidenciam não apenas os limites da atuação das entidades de abrigo,
mas questionam diretamente a própria dinâmica do sistema de garantias e das
redes de proteção integral no sentido de fazer valer os direitos de uma parcela
das crianças e dos adolescentes brasileiros.

Apresenta-se, a seguir, uma sistematização das declarações dos atores locais


entrevistados pela equipe técnica do “Levantamento Nacional dos Abrigos para
332 Crianças e Adolescentes da Rede SAC” sobre a contribuição das redes de proteção
locais para implementar o atendimento adequado a crianças e adolescentes em
abrigos6. Essa sistematização foi feita a partir de três aspectos específicos: (i) a
contribuição da gestão descentralizada e participativa da política de assistência
social para a reorientação da execução das ações na área; (ii) a organicidade do
sistema de garantia de direitos e o funcionamento da rede de proteção integral a
crianças e adolescentes, tendo em vista a distribuição de competências, a articulação
entre as organizações e sua atuação no atendimento em abrigos no âmbito local;
e (iii) a implementação do reordenamento dos abrigos segundo as diretrizes do
ECA, com ênfase na garantia do direito à convivência familiar e comunitária.

13.3.1 Descentralização e reorganização das políticas


de atendimento a crianças e adolescentes

A intenção fundamental aqui é saber se a descentralização/municipalização


da política de atendimento a crianças e adolescentes, associada à ampliação dos
loci de participação social, representa uma contribuição efetiva para a incorporação
das demandas locais, possibilitando reorganizar as políticas de atendimento de
acordo com as prioridades dos diferentes municípios.

O ECA indica que a política de atenção a crianças e adolescentes deve se


pautar pela municipalização do atendimento, observada a descentralização político-

6
Trata-se de uma sistematização dos achados mais significativos das entrevistas realizadas, os quais permitem,
em alguns casos, a definição de uma tendência ou de uma interpretação mais corrente entre os atores ouvidos e,
em outros, tão-somente a exposição de um quadro das diferentes situações municipais.
administrativa na criação e manutenção de programas específicos. Nos municípios,
essa política normalmente está a cargo dos órgãos responsáveis pela assistência
social, que seguem o modelo de gestão descentralizada, participativa e com
comando único previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS/1993 - e
disciplinado na Norma Operacional Básica da Assistência Social - NOB2-AS/
1999. Esse modelo preconiza maior autonomia ao gestor municipal na
implementação da política e o controle da sociedade civil sobre as ações públicas.
Um município habilitado em gestão municipal formula, coordena e executa a política
de assistência social mediante o estabelecimento em lei e a comprovação de
funcionamento do Conselho e do Fundo de Assistência Social e a formulação do
Plano de Assistência Social. O plano estabelece as diretrizes da política no
município e deve ser aprovado pelo conselho; o fundo, co-gerido pelo conselho
e pelo executivo municipal, destina-se à administração dos recursos que financiam
os programas e projetos de assistência social enquadrados na definição da LOAS7.

Dado o fato de que cabe ao Estado a responsabilidade pela condução da


política de assistência social, embora os serviços sejam majoritariamente prestados
por entidades não-governamentais, comunitárias e filantrópicas, a NOB2-AS prevê
a interação construtiva entre o poder público e a sociedade. Neste sentido,
estabelece, entre outras, as seguintes competências para os gestores da política
no município: (i) organização e gestão da rede municipal de inclusão e proteção
social, composta pela totalidade dos serviços, programas e projetos existentes
em sua área de abrangência; (ii) coordenação da elaboração de programas e projetos
de assistência social no seu âmbito; (iii) execução dos benefícios, serviços
assistenciais, programas e projetos de forma direta, ou coordenação da execução
realizada pelas entidades e organizações da sociedade civil; (iv) definição da relação
333
com as entidades prestadoras de serviços e dos instrumentos legais a serem
utilizados; (v) definição de padrões de qualidade e formas de acompanhamento
e controle das ações de assistência social; (vi) supervisão, monitoramento e
avaliação das ações de âmbito local; e (vii) controle e fiscalização dos serviços
prestados por todas as entidades beneficentes na área da assistência social, cujos
recursos são oriundos das imunidades e renúncias fiscais por parte do governo.

7
Segundo a LOAS, a assistência social tem por objetivos: (i) a proteção à família, à maternidade, à infância, à
adolescência e à velhice; (ii) o amparo a crianças e adolescentes carentes (iii) a promoção da integração ao mercado
de trabalho; (iv) a habilitação e reabilitação de portadores de deficiência e a promoção de sua integração à vida
comunitária; e (v) a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao lei
ainda estabelece que a assistência social visa ao enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos sociais, ao
provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais, devendo as
ações ser realizadas de maneira integrada às demais políticas setoriais da área social.
No que se refere à gestão dos recursos repassados do fundo nacional para o
fundo municipal de assistência social, prevê-se que os municípios terão autonomia
para geri-los, segundo a realidade e as prioridades locais, desde que se garanta o
atendimento aos legítimos destinatários da política e que a qualidade do aten-
dimento seja compatível com as diretrizes estabelecidas na própria NOB2-AS.

Do ponto de vista da estruturação das políticas locais, o processo de


descentralização da assistência social ainda está em fase de construção, embora
todos os municípios selecionados nesta pequisa sejam habilitados em gestão
municipal, contando com conselhos e fundos instalados e com planos aprovados
pelos respectivos conselhos municipais. Em geral, a descentralização/munici-
palização da gestão da assistência social é considerada uma estratégia importante
na execução das ações, dados os ganhos que a proximidade entre as instâncias
334 gestoras e a população podem trazer em termos da maior atenção às especificidades
de cada município, da otimização dos recursos financeiros envolvidos e da
ampliação da eficiência e do impacto das ações. De fato, os entrevistados avaliam
que, com o processo de descentralização, as ações direcionadas a crianças e
adolescentes ganharam novo impulso, pois a municipalização possibilitou, de
um lado, a gestão dos programas federais e, de outro, o reforço a iniciativas
locais que já vinham sendo desenvolvidas ou estavam sendo formuladas. Contudo,
as variações observadas na implementação da gestão descentralizada da assistência
social, bem como no entendimento dos atores sobre questões específicas desse
processo, merecem destaque, pois revelam aspectos interessantes do ponto de
vista da reorganização das políticas de atendimento.

A partir das falas dos entrevistados, pode-se distinguir dois grupos de


opiniões distintos: o primeiro grupo, constituído por atores alheios à esfera da
formulação e gestão da política - e, em geral, envolvidos com as atividades do
eixo da defesa dos direitos -, demonstra pouco conhecimento ou entendimento
superficial sobre aspectos mais específicos da descentralização, emitindo avaliações
sobre o tema baseadas apenas em impressões; o segundo, constituído pelos gestores
e técnicos dos órgãos executivos municipais e pelos membros dos conselhos de
direitos e de assistência social - ou seja, os atores do eixo da promoção dos
direitos -, conhece bem os princípios da descentralização e os estágios do processo
de sua implementação, apostando com mais realismo em suas potencialidades. É
ilustrativo da superficialidade das percepções que constituem o primeiro grupo o
depoimento de um conselheiro tutelar entrevistado, cuja opinião sobre a
distribuição de competências entre as três instâncias de governo restringiu-se à
afirmação ingênua de que “cada um tem seu papel na sociedade”. Este entendimento
superficial sobre o tema também fica explícito na declaração que se segue:

“eu não sei se eu conheço profundamente a política (...) mas eu acho, por exemplo,
que não é uma coisa que deveria estar a cargo só do município. Isso aí deveria estar
a cargo do governo municipal, estadual e federal, né? ” (Trecho da fala do membro
do Juizado da Infância e da Juventude de Curitiba)

Por sua vez, os gestores e os conselheiros de direitos e de assistência social


não apenas dominam o conhecimento sobre os conceitos, instrumentos e processos
envolvidos na descentralização da política, como também são enfáticos quanto
aos ganhos que o modelo tem propiciado, apesar das dificuldades enfrentadas8.
A seguinte declaração ilustra o segundo grupo de opiniões citado anteriormente:

“Descentralizar é muito difícil por muitos motivos. Primeiro, pela burocracia estatal
do governo federal (...) Segundo, pela resistência dos estados, que não querem que os
municípios sejam gestores plenos das políticas assistenciais. E, depois, pela pouca
qualificação dos municípios brasileiros para gerenciarem políticas no campo da gestão
orçamentária, financeira e técnica. Então, esse saldo de problemas é sempre um
grande impeditivo para a questão da descentralização. Agora, ela tem que ser
enfrentada (...) E isso aqui no Brasil é muito recente: a descentralização das políticas
de assistência começa em 1997 ou em 1998, e a grande alavancada foi em 1999.
Então nós estamos falando de quatro ou cinco anos (...). Agora, quando se descentra-
lizou todo o recurso [para o atendimento à população] de zero a seis, por
exemplo, para apoio à criança, apoio à creche, ao abrigo, e o Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil, um pouco mais tarde, [para a população] de sete a quatorze,
eu acho que se consolidou, no município, a importância de se preocupar com o
335
problema. [O município] teve que se organizar”. (Trecho da fala do membro
da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro)

No que se refere especificamente aos problemas enfrentados no processo


de descentralização da assistência social, as questões mais pertinentes foram
levantadas nas entrevistas com os membros da rede de proteção integral vinculados
à formulação e gestão da política. De seus depoimentos pode-se depreender
quatro grandes eixos de problemas: (i) confusão quanto aos papéis de cada ente
de governo no modelo de gestão compartilhada da política de assistência social;

8
Na verdade, entre os membros dos conselhos não são todos que tratam com propriedade o tema da
descentralização, sendo mais comum que isso aconteça entre os representantes governamentais do que entre
aqueles que representam os setores organizados da sociedade civil.
(ii) falta de suporte aos municípios, por parte dos governos federal e estadual,
para a condução da política em nível local; (iii) falta de autonomia ou subordinação
dos municípios na decisão sobre as linhas de ação da política; e (iv) baixa
participação social na fiscalização das ações dos três níveis de governo.

A confusão quanto aos papéis de cada ente de governo no modelo de gestão


compartilhada da política de assistência social é um dos temas mais
recorrentemente destacados na fala dos entrevistados, pois seria um dos maiores
responsáveis pela lentidão no processo de municipalização dos serviços,
especialmente no que concerne à transferência da responsabilidade do nível
estadual para o municipal9. O seguinte trecho da fala de um dos atores
entrevistados aponta o problema, alertando tanto para a falta de clareza sobre as
respectivas competências, em alguns casos, quanto para a omissão no seu exercício,
336 em outros:

“(...) eu acho que ainda há uma certa confusão sobre o que é papel de quem nas
diferentes instâncias (...) Eu ainda percebo que, por exemplo, o governo do estado
(...) na maioria das vezes, faz o papel do governo municipal, da prefeitura. Ele passa
a ser o executor, e não aquele que articularia as políticas, que fortaleceria os municípios.
Então, esse papel que o estado deveria estar fazendo, ele tem deixado de fazer. Acho
que ele já está devendo isso para a gente (...) por conta de interesses (...) eleitorais e
tal. O que aparece, o que tem mais impacto é quando ele vai lá e executa um
programa (...) Este trabalho de articulação, para aparecer, levaria mais tempo, não
é? Então, acho que nessa perspectiva da descentralização há uma confusão, que não
passa só pelos governos. Acho que passa muitas vezes pelos conselhos. Qual é o papel
do Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente? Qual é o papel dos
conselhos municipais? Qual é o papel dos conselhos tutelares? Então, isso ainda é um
processo em construção” (Trecho da fala do membro do CMDCA do Rio de
Janeiro)

O segundo grande problema percebido pelos entrevistados diz respeito à


ausência de suporte adequado aos municípios por parte dos governos estadual e
federal, em termos de recursos financeiros, orientação técnica e capacitação. Essa
falta de apoio seria causa direta da incapacidade dos executivos municipais para
realizarem a provisão adequada dos serviços de assistência social para a população.
Do ponto de vista financeiro, a queixa mais freqüente refere-se à insuficiência
dos recursos disponíveis para a execução das ações, sendo fato comum a ausência

9
Em geral, apenas os programas federais foram municipalizados, e os governos estaduais ainda executam grande
parte das ações de assistência social, inclusive programas de abrigo.
de apoio por parte dos estados ao financiamento da política municipal de
assistência social, que conta apenas com recursos próprios ou provenientes do
governo federal. Outros depoimentos cobram maior participação do governo
federal no seu papel de instância responsável pela definição dos instrumentos
utilizados na estruturação dos serviços de assistência social. Neste sentido, a
declaração a seguir chama atenção para o fato de que a indefinição de certos
aspectos da política nacional de assistência social dificulta a implementação das
ações em nível local:

“Uma outra coisa também que é entrave é a questão da falta de definição: o que é
atendimento? Como a assistência conceitua esse atendimento a essa criança ou
adolescente dentro da própria política de assistência social? O que é abrigo? Quem
pode estar dentro de abrigo? Quem não pode estar? O estatuto define o que é abrigo,
mas na política não tem essa definição clara” (Trecho da fala do membro do
CMAS de Campo Grande)

Um terceiro aspecto problematizado na fala dos entrevistados sobre o


processo de descentralização diz respeito à subordinação da participação dos
entes municipais nas decisões sobre a política. A despeito da existência dos planos
e fundos municipais, a pluralidade de programas federais e estaduais que são
implementados no nível local representaria uma espécie de ingerência sobre a
autonomia municipal de decidir onde alocar os recursos disponíveis, especialmente
tendo em conta sua insuficiência. Neste sentido, por exemplo, a vinculação do
repasse dos recursos federais à execução de programas como o PETI, o Sentinela,
o Agente Jovem10 e a própria Rede SAC é tida por alguns entrevistados como
uma intervenção sobre o espaço de decisão municipal, que desconsidera as 337
prioridades definidas pelo município. Além do desrespeito à autonomia local, a
prática da descentralização também estaria traduzindo, segundo alguns
entrevistados, a percepção equivocada sobre o papel do município na gestão das
políticas de assistência social, que estaria em clara contradição com o princípio
da gestão compartilhada:

“o Governo Federal vê o município como mero prestador de serviços, e não como co-
responsável pela política de assistência social”. (Trecho da fala do membro do
CMAS de Belo Horizonte)

10
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual
de Crianças e Adolescentes (Sentinela), Programa Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano (Agente
Jovem), voltado para a inserção ocupacional, nas próprias comunidades, de adolescentes em situação de risco.
Finalmente, a quarta grande dificuldade para a efetiva municipalização das
ações de assistência social estaria relacionada à falta de engajamento da população
local. Em geral, os entrevistados apostam na constante e vigorosa participação
social na deliberação e fiscalização das políticas públicas como condição de
melhoria dos serviços ora descentralizados, mas julgam que essa participação
tem sido insatisfatória. Por opostos que sejam os sentidos das declarações a
seguir, elas revelam a mesma opinião de que o sucesso da municipalização depende,
entre outras coisas, de uma sociedade atuante, nos espaços formais e informais
de discussão:

“(...) só acho que a população aqui em Porto Velho não tem educação política para
isso. As pessoas não são maduras o suficiente para isso, para estar ocupando esse
espaço político (...)” (Trecho da fala do membro do CMDCA de Porto
338 Velho)

“Então, eu comecei a ter essa ação de falar. Vinha para cá [as plenárias do
CMAS] como conselheira tutelar. Vinha para plenário defender minhas propostas
de assistência social, incluindo o que era necessário e deixando que o pessoal, os
conselheiros, votassem em cima daquilo que eu defendia. Foi muito legal (...) Foi um
momento em que eu não podia votar, mas em que eu tinha direito de fala e meus
colegas... a sociedade civil votava. Eu podia, eu tinha o poder de mudar, sem o poder
de votar” (Trecho da fala do membro do CMAS de Porto Alegre, sobre
sua atuação na área antes de se tornar conselheiro)

Na verdade, a primeira etapa do processo de descentralização contou com


a participação da sociedade civil em grande parte dos nove municípios investigados.
No entanto, a intensidade dessa participação sofreu alterações nas fases
consecutivas do processo, mantendo-se estável apenas naqueles municípios com
experiência mais consolidada de organização política. Em Belo Horizonte,
Campinas, Curitiba e Porto Alegre, por exemplo, a participação da sociedade
civil foi expressiva no início da descentralização e continua atuante por meio dos
conselhos, registrando-se um grande número de demandas e proposições de
política formuladas pelos CMASs que encontra receptividade no órgão gestor. Já
no Rio de Janeiro e em Fortaleza, a participação social direta foi intensa apenas
no início do processo de municipalização; na segunda fase, as discussões sobre a
política e o orçamento da assistência social migraram para o âmbito do órgão
gestor, participando os CMASs apenas de sua aprovação. Em Natal, não houve
participação direta da sociedade na elaboração do plano, que ficou restrita às
organizações civis do município representadas no conselho. Finalmente, nos casos
de Campo Grande e Porto Velho, o plano e as propostas orçamentárias vêm
sendo elaborados, desde o início, pelos próprios gestores municipais, sendo apenas
posteriormente encaminhados aos conselhos para aprovação, como determina a
legislação.

Do ponto de vista da questão central que esta pesquisa formulou em relação


ao tema da descentralização - qual seja, o sentido de sua contribuição para a
reorganização das políticas de atendimento a crianças e adolescentes de acordo
com as prioridades locais dos diferentes municípios –, os problemas colocados
pelos atores entrevistados permitem afirmar que a descentralização da gestão da
assistência social ainda não possibilitou as mudanças previstas. Há que se
considerar o fato de que o processo ainda está em fase inicial de implementação,
sendo que o principal instrumento que disciplina o financiamento, as competências
dos três níveis de governo e os procedimentos operacionais para habilitação de
gestão foi editado há pouco menos de cinco anos.

No entanto, não se pode negligenciar o fato de que a confusão/não-incor-


poração dos papéis de cada ente no modelo compartilhado de gestão, a “subor-
dinação” dos municípios nas decisões sobre a política e a insuficiência de apoio
na sua condução em nível local são problemas de articulação entre as três esferas
de governo que incidem diretamente sobre a capacidade dos municípios de
absorver novas demandas e reorganizar as redes de serviços, os programas e os
projetos da área segundo as prioridades locais. Associados ao baixo engajamento
da sociedade civil, esses problemas repercutem negativamente sobre a política
municipal, inibindo o potencial de se acelerar e aprofundar os avanços que a 339
municipalização da assistência social - e, dentro dela, o atendimento à população
infanto-juvenil - pode trazer.

Este fato é particularmente relevante quando se considera os programas de


abrigo para crianças e adolescentes. Embora a maior parte do serviço seja prestada
por organizações não-governamentais, dentre os entes de governo os estados
ainda possuem unidades de abrigo.11 Isso dificulta o acesso de crianças e

11
No universo dos abrigos pesquisados pelo “Levantamento”, as unidades estaduais correspondem a apenas 9%
do total. No entanto, em algumas unidades da federação os abrigos pertencentes às redes estaduais têm um peso
relevante na rede total. É o que acontece, por exemplo, no Rio Grande do Norte, onde contam com 80% do
total de unidades conveniadas à Rede SAC, em Pernambuco, com 54,5%, no Ceará, com 35,7% e em Sergipe
e no Amapá, ambos com 33,3% - sem contar os casos de Roraima e Piauí, onde os únicos abrigos conveniados
à Rede SAC pertencem aos governos estaduais.
adolescentes abrigados, bem como de seus familiares e responsáveis e dos órgãos
que atuam na defesa de seus direitos, aos canais de participação social existentes
no nível estadual. Com isso, obstaculiza-se a incorporação de suas demandas à
política de atendimento. Além disso, é notória a dificuldade das redes estaduais
de penetrarem em grande número de municípios, tendendo a concentrar-se nos
maiores, o que muitas vezes provoca o deslocamento de crianças e adolescentes
de seus municípios de origem para aqueles onde se situam as entidades que irão
abrigá-los. Tal fato impossibilita a observância a algumas das diretrizes funda-
mentais do ECA, dentre as quais a de que os programas de abrigo devem primar
pela preservação dos vínculos familiares e pela participação dos abrigados na
vida da sua comunidade.

340
12.3.2 O sistema de garantia de direitos,
a rede de proteção integral a crianças e
adolescentes e o atendimento em abrigos

Nesta seção, o principal objetivo é discutir o grau de efetivação dos preceitos


estabelecidos pelo sistema de garantia dos direitos de crianças e adolescentes no
tocante ao atendimento em abrigos, tendo em vista a atuação efetiva dos diversos
órgãos que compõem as redes de proteção integral locais.

O abrigamento é uma medida de proteção especial e, portanto, um serviço


específico dentro da política de atendimento a crianças e adolescentes. Em termos
gerais, esta política envolve cinco amplas linhas de ação: (i) políticas sociais básicas;
(ii) políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles
que deles necessitem; (iii) serviços especiais de prevenção e atendimento médico
e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade
e opressão; (iv) serviços de identificação e localização de pais, responsáveis,
crianças e adolescentes desaparecidos; e (v) proteção jurídico-social por entidades
de defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Do ponto de vista da implementação das ações, a divisão de atribuições e


competências no nível local obedece, com grande proximidade, a lógica
prevalecente no nível federal, já comentada em capítulos anteriores. Sendo assim,
o atendimento aos direitos sociais básicos cabe aos órgãos municipais executores
das políticas setoriais. As ações referentes ao atendimento a crianças e adolescentes
carentes, bem como o suporte técnico e financeiro a essas ações, são da
competência dos órgãos da assistência social. Já as iniciativas que visam a assegurar
a proteção integral no atendimento à população infanto-juvenil estão a cargo dos
organismos públicos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Finalmente,
são realizadas de forma integrada pelas áreas de assistência social e de defesa de
direitos as ações voltadas para o atendimento de crianças e adolescentes em
situação de abandono e vítimas de maus-tratos e/ou violência.

O abrigamento enquadra-se no último caso descrito, sendo reconhecido


tanto como uma ação de assistência social, quanto como uma ação de defesa de
direitos ameaçados ou efetivamente violados. Por isso, a implementação de
programas de abrigo envolve, nos municípios, um órgão executor responsável
pela política de assistência social, o CMAS e o CMDCA. O primeiro, na condição
de gestor da política municipal de atendimento a crianças e adolescentes, que
envolve não apenas os serviços assistenciais, mas também, sempe que necessário,
as ações nas áreas de educação, saúde e lazer, entre outras. Os dois conselhos, na
de órgãos deliberadores das diretrizes dessa política. Essas organizações
conformam, no nível municipal, o espaço da rede de proteção atuante no eixo da
promoção dos direitos.

No entanto, embora o atendimento a crianças e adolescentes em abrigos


esteja inserido no âmbito da assistência social, que efetivamente executa a sua
gestão, o principal instrumento regulatório da área, a LOAS, não traz diretrizes
para essa atividade. É o ECA que fornece o marco legal a esse serviço, elencando
os princípios sobre o objetivo e a forma como deve ocorrer o atendimento, bem
como sobre as atribuições dos atores da rede de proteção envolvidos na
implementação da medida. 341
O estatuto, por sua vez, não menciona as competências dos órgãos da
assistência social, gestores e co-deliberadores da política, o que traz dificuldades
para a compreensão do exato papel dos atores envolvidos na promoção dos
direitos de crianças e adolescentes abrigados. Tudo o que se diz explicitamente
neste sentido é que cabe ao CMDCA conceder e manter os registros dos
programas de abrigo das entidades governamentais e não-governamentais, bem
como comunicá-los ao Conselho Tutelar e à autoridade judiciária. Na prática,
contudo, o órgão gestor da assistência social em nível local atua como
contratador dos serviços, repassador dos recursos (da Rede SAC, do estado e
do próprio município) e destinatário dos planos de aplicação e das prestações
de contas das entidades, enquanto o CMAS cumpre a função de certificar,
registrar e fiscalizar todas as entidades sociais que atuam no município, bem
como de, conjuntamente com o CMDCA, deliberar sobre as diretrizes municipais
para os programas de abrigo.

Essa ausência de definição formal sobre as atribuições da assistência social,


no âmbito do atendimento de crianças e adolescentes em abrigos - bem como de
suas famílias - tem implicações sobre a efetividade da medida, cuja brevidade e
provisoriedade dependem do esforço concentrado de articulação e direcionamento
de políticas e programas sociais específicos para esse grupo populacional. É
importante repetir que criança e adolescente em situação de abandono ou em
risco social são público alvo, por excelência, da política de assistência social.
Entende-se, portanto, que o esforço de articulação de políticas e programas sociais
no nível local poderia ser capitaneado pelos órgãos da assistência social, cuja
incumbência constitucional é concretizar os direitos sociais de determinados
342 segmentos da população, nos quais se incluem crianças e adolescentes em situação
de risco, visando a melhoria de suas condições de vida.

No eixo da defesa dos direitos, a rede de proteção local envolvida com a


implementação da medida de abrigo reúne, mais freqüentemente, o Juizado da
Infância e da Juventude, a Promotoria da Infância e da Juventude e o Conselho
Tutelar. Esses órgãos compartilham a atribuição administrativa de fiscalizar as
entidades que prestam atendimento em regime de abrigo, de modo a assegurar o
respeito aos direitos estabelecidos no estatuto. De sua atividade fiscalizadora
constante podem resultar desde a aplicação de medidas administrativas às insti-
tuições12 até a eventual responsabilização civil e criminal dos dirigentes e funcio-
nários das entidades.

Individualmente, no entanto, as atribuições dos órgãos que atuam no eixo


da defesa dos direitos se distinguem conforme a sua missão institucional. No
caso do Judiciário, apesar de o ECA ter rompido com a lógica da concentração
de poderes jurisdicionais e administrativos do modelo “menorista”, este órgão
preservou atribuições de extrema relevância no novo modelo. Assim, além de
fiscalizar as entidades, compete ao Juizado da Infância e da Juventude a atribuição
de aplicar a medida judicial de abrigo, acompanhar sua execução e dar
encaminhamento à situação de crianças e adolescentes temporariamente abrigados,

12
No caso das entidades governamentais, essas medidas podem envolver a advertência, o afastamento provisório
ou definitivo dos dirigentes e o fechamento da unidade ou a interdição do programa; em se tratando de entidades
não-governamentais, as medidas vão desde a advertência até a cassação do registro da entidade, passando pela
suspensão parcial ou total do repasse de verbas públicas e pela interdição das unidades ou suspensão dos programas.
Se for constatado o cometimento reiterado de infrações que colocam em risco os direitos assegurados no ECA,
caberão as medidas judiciais de suspensão das atividades ou mesmo dissolução da entidade.
sendo possível aplicar, simultaneamente, as demais medidas de proteção especial
e as medidas pertinentes aos pais ou responsáveis13. Dentre as demais atribuições
do Juizado no âmbito do atendimento em abrigo, destacam-se: conhecer casos
encaminhados pelo Conselho Tutelar; aplicar penalidades administrativas nos
casos de infrações contra norma de proteção a crianças ou adolescentes; conhecer
ações decorrentes de irregularidades em entidades de atendimento, aplicando as
medidas cabíveis; conhecer ações civis fundadas em interesses individuais, difusos
e coletivos afetos à criança e ao adolescente; e conhecer ações de destituição do
pátrio poder, que permitem a colocação de crianças e adolescentes abrigados em
famílias substitutas.

Ao Ministério Público, encarregado constitucionalmente de zelar pelo efetivo


respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados na Carta Maior, também cabem outras funções, além da fiscalização
das entidades de abrigo. Extra-judicialmente, a Promotoria de Justiça da Infância
e da Juventude atua como “ouvidora” dos pleitos e reclamações da população
infanto-juvenil relativas ao atendimento em abrigo, tendo plenos poderes para
instaurar procedimentos administrativos, sindicâncias e diligências investigatórias,
bem como para determinar a instauração de inquéritos policiais que visem a
comprovar as denúncias recebidas. Por outro lado, o Ministério Público atua
judicialmente como defensor dos interesses individuais, difusos e coletivos rela-
tivos à infância e à adolescência, sendo obrigatória sua presença em todos os
processos envolvendo crianças e adolescentes, como parte ou como fiscal da lei.
No caso do atendimento em abrigos, são também atribuições do órgão: promover
ações em defesa da normalização do atendimento irregular; representar ao juízo
visando a aplicação de penalidade por infrações cometidas contra as normas de
343
proteção a crianças e adolescentes, sem prejuízo da promoção da responsabilidade
civil e penal do infrator, quando cabível; requisitar a colaboração dos serviços
médicos, hospitalares, educacionais e de assistência social, públicos ou privados,
para o desempenho de suas atribuições; e propor ações de perda ou suspensão
do pátrio poder.

13
Conforme o art. 129 do ECA, são as seguintes as medidas aplicáveis aos pais ou responsáveis: (i)
encaminhamento a programa oficial ou comunitário de promoção à família; (ii) inclusão em programa oficial ou
comunitário de auxilio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; (iii) encaminhamento a tratamento
psicológico ou psiquiátrico; (iv) encaminhamento a cursos ou programas de orientação; (v) obrigação de matricular
o filho ou pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar; (vi) obrigação de encaminhar a criança
ou adolescente a tratamento especializado; (vii) advertência; (viii) perda da guarda; (ix) destituição da tutela; (x)
suspensão ou destituição do pátrio poder. Adicionalmente, o art. 130 estabelece que, “verificada a hipótese de
maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar,
como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum”.
O Conselho Tutelar é o terceiro componente do tripé “defesa” da rede de
proteção. Em termos de história institucional, é o mais recente dos parceiros que
atuam nessa frente. Sua criação, dentre as inovações introduzidas pelo ECA,
significou uma ruptura radical com a estrutura anterior de repartição de compe-
tências na atenção a crianças e adolescentes. Trata-se de um órgão não-jurisdicional
e permanente, cujos membros são eleitos pela população para o exercício de um
mandato. Vinculado administrativamente ao poder executivo municipal, é um
órgão autônomo em suas decisões, ou seja, não está sujeito a qualquer tipo de
controle hierárquico ou político, e essas decisões somente poderão ser revistas
pela autoridade judiciária a pedido de quem tenha legítimo interesse no caso
específico.

Além de fiscalizar as entidades de abrigo, o Conselho Tutelar também tem


344 por atribuição atender a crianças e adolescentes que se encontram em situação de
risco pessoal ou social, bem como a seus pais ou responsáveis, verificando os
fatos e determinando as providências imediatamente cabíveis em cada caso. O
Conselho Tutelar atua, portanto, no âmbito estrito da proteção especial, sendo
que, no caso da medida de abrigo, o órgão é competente não apenas para aplicá-
la (simultaneamente às demais medidas protetoras aplicáveis a crianças e
adolescentes, bem como às medidas aplicáveis aos pais ou responsáveis), mas
também para exercer, dentre outras, as seguintes atribuições: requisitar serviços
públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e
segurança; representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações; encaminhar ao Ministério Público notícia de
fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança
ou adolescente; encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência;
assessorar o executivo local na elaboração da proposta orçamentária para os
programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente abrigados; e
representar ao Ministério Público para efeito das ações de perda ou suspensão
do pátrio poder.

Finalmente, no âmbito do controle social sobre a implementação dos


programas de abrigo, articulam-se nos municípios organismos formais e informais
de controle fundados na participação da sociedade. Trata-se, em geral, do CMDCA
e do CMAS - organizações formais de gestão colegiada entre o poder público e
a sociedade civil - e das próprias organizações civis que se dedicam ao atendimento
a crianças e adolescentes e/ou à defesa de seus direitos. A função de controle
social sobre o atendimento ao público infanto-juvenil não está tratada no ECA.
As competências nesta área são estipuladas na legislação municipal que cria os
conselhos e regulamenta a participação das organizações da sociedade civil. Em
linhas gerais, essas atribuições dizem respeito à vigilância sobre a situação do
atendimento a crianças e adolescente e sobre a observância aos seus direitos,
sendo a mobilização social e a pressão popular os principais instrumentos de
ação das organizações atuantes nesse eixo.

Das entrevistas com atores das redes de proteção nos nove municípios
selecionados, pode-se depreender várias indicações sobre a operacionalização do
sistema de garantia de direitos e o funcionamento das redes de proteção em nível
local. O principal substrato comum às declarações coletadas é a defesa de uma
concepção ampla de proteção integral, a qual, de um lado, vai além das próprias
crianças e adolescentes em situação de risco, incorporando também as suas famílias
e, de outro, extrapola os serviços de urgência e proteção especial, incluindo também
o acesso às políticas sociais básicas como ações de retaguarda essenciais.

Tendo em vista a abrangência dessa concepção de proteção integral


unanimemente propagada pelos entrevistados – de resto, em total consonância
com o ECA -, é sintomático o fato de a maior parte deles afirmar que ainda falta
efetividade ao sistema de garantia de direitos que vem sendo praticado no país.
Em geral, esse problema é atribuído à insuficiência das redes municipais de serviços
sociais. Alguns depoimentos são enfáticos ao afirmar que inúmeras das situações
de ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes estão relacionadas à
ausência de políticas protetoras de fundo, particularmente de programas de apoio
sociofamiliar. As declarações reproduzidas abaixo revelam o teor do problema
percebido: 345
“(...) o que você vai fazer com uma criança que a mãe trabalha e não tem creche, não
tem bolsa-alimento, não tem programa de família, enfim, não tem respaldo das
políticas públicas?” (Trecho da fala do membro do Conselho Tutelar do
Rio de Janeiro)

“(...) infelizmente, o que eu tenho verificado é que, na maioria dos casos, todos os
problemas têm origem na miséria da família e na falha da rede de atendimento.
Porque as famílias poderiam ser trabalhadas se existisse uma rede eficaz, mas
infelizmente não é o que ocorre na prática (...)” (Trecho da fala do membro da
Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Campinas)

“(...) hoje, pelas nossas estatísticas, o maior violador de direitos de crianças e adolescentes
é o Estado, porque falta moradia, falta habitação, falta alimentação (...) Essa
criança, então, não tem a mínima condição (...) Não tem centro de saúde lá perto.
Até tem, mas não atende completamente a demanda do município (...). Então eu
questiono a efetividade (...)” (Trecho da fala de um dos membros do Conselho
Tutelar de Campinas)

Causa preocupação especial que as declarações dos entrevistados confirmem


que a proteção integral a crianças e adolescentes abrigados é ainda mais precária.
Alguns destacaram, por exemplo, as dificuldades que esses meninos e meninas
enfrentam para acessar as políticas públicas de saúde, educação, cultura e lazer,
ressaltando ainda que não há prioridade no atendimento de crianças e adolescentes
submetidos a programas de proteção especial. Tal fato, além de indicar uma
violação aos seus direitos, acaba por sobrecarregar os próprios programas de
abrigo, que, na ausência de complementaridade por parte dos serviços públicos,
346 têm que assegurar também toda a alimentação, os medicamentos, as oportunidades
de lazer etc.

Dado que o problema estaria relacionado à precariedade da rede municipal


de serviços sociais, as críticas em geral são remetidas aos gestores das políticas
de atendimento a crianças e adolescentes e a suas famílias. A análise das entrevistas
com gestores e técnicos dos órgãos executivos municipais, bem como dos
documentos entregues à equipe do “Levantamento”, permite afirmar que, de
fato, existe forte burocratismo e pouca gestão estratégica na atuação da grande
maioria dos municípios pesquisados na área da infância e da adolescência, estando
as ações organizadas de forma fragmentada ou compartimentalizada. Interessante
observar que as declarações mais radicais neste sentido provêm dos membros do
Judiciário e do Ministério Público. Na maior parte dos casos, esses atores
demonstram desconsideração sobre a complexidade da gestão pública, alegando
recorrentemente negligência por parte dos gestores e falta de comprometimento
do município com a prestação dos serviços. Paradoxalmente, no entanto, tendem
a apresentar uma visão simplista sobre a possibilidade de resolver os problemas
sociais por meio da lei e das medidas judiciais:

“(...) a Justiça tem um poder muito forte, um poder limitador e regulador sobre as
pessoas (...) O que a área social não consegue resolver a Justiça consegue, e nós temos
tido bons resultados com isso(...) Porque se nós não interferirmos, se o juiz não
interferir, as pessoas ficam sem atendimento e morrem (...) Eu sou muito implacável
com isso: não atendeu, tomo logo uma medida e nós vamos resolver em juízo” (Trecho
da fala do membro da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude
do Rio de Janeiro)
No que diz respeito à articulação da rede de proteção integral, pode-se
perceber que são poucos os municípios que conseguiram promover ou consolidar
oportunidades de atuação conjunta dos vários órgãos no atendimento a crianças
e adolescentes. A maior parte dos municípios selecionados experimenta uma
persistente desarticulação da rede, sendo que os órgãos trabalham, na grande
maioria dos casos, isoladamente. Os depoimentos colhidos descrevem a atuação
da rede municipal local como fragmentada, não havendo um fórum de discussão
sobre as diretrizes da política de atendimento ou de articulação das ações
implementadas no município:

“(...) nós estamos desarticulados. Não há uma articulação entre juizado, MP,
conselhos (...) Nesse momento, eu vejo a gente muito desarticulado aqui em Fortaleza
(...) Cada um faz a sua parte separada, sem dialogar, sem discutir, sem conversar,
sem cobrar, todo mundo muito silencioso” (Trecho da fala do membro do Juizado
da Infância e da Juventude de Fortaleza)

“eu trabalho, você trabalha, mas a gente tem que dar uma parada e refletir, discutir,
dialogar e buscar caminhos. Eu acho que esse momento de discussão, de interrelação
é que vai processar alguma mudança” (Trecho da fala do membro do CMDCA
de Campo Grande)14

As principais razões levantadas pelos entrevistados como possíveis expli-


cações para os obstáculos à integração e, conseqüentemente, à maior efetividade
da rede dizem respeito aos seguintes fatores: (i) não-absorção das competências
de cada organização estabelecidas no sistema de garantias; (ii) dificuldade de
compatibilizar os “paradigmas” diferenciados das instituições envolvidas na pro-
teção integral; (iii) barreiras enfrentadas por alguns órgãos para fazer valer seu
347
legítimo papel na rede; (iv) desconhecimento ou não-utilização dos instrumentos
de atuação disponíveis; e (v) conhecimento insuficiente sobre o contexto de inter-
venção conjunta dos diferentes atores.

No caso do primeiro aspecto mencionado, o fato de que as competências


estabelecidas não são desempenhadas pelos atores das redes locais, em muitos
casos, se deve à indefinição prática sobre quem vai desempenhar funções que
estão legalmente sobrepostas entre os diferentes órgãos. É o que acontece, por

14
Para exemplificar esta falta de articulação entre os vários atores da rede local, o entrevistado relata que foi
apenas no recente episódio da CPI Mista que investigou a exploração sexual de crianças e adolescentes no país
que o CMDCA de Campo Grande se inteirou do alto número de denúncias e casos de violação registrados pelos
conselheiros tutelares do município no Sistema de Informações para a Infância e Adolescência –Sipia, um sistema
de registro e tratamento de informações sobre a garantia dos direitos fundamentais preconizados pelo ECA.
exemplo, em relação à fiscalização das entidades de abrigo15. Segundo o ECA,
essa atividade cabe concorrentemente ao Judiciário, ao Ministério Público e ao
Conselho Tutelar. No entanto, pelos depoimentos colhidos, são raros os órgãos
dos diferentes municípios pesquisados que incluem a fiscalização entre suas ativi-
dades de rotina. Na grande maioria dos casos, é feita de forma esporádica, como
uma atividade ocasional, em virtude da quantidade de outras atribuições dos
órgãos competentes e da escassez de recursos com que trabalham. É também
comum que as fiscalizações aconteçam em caráter de urgência, como resposta a
denúncias de violação de direitos nas entidades de abrigo16.

Em alguns municípios, os Juizados da Infância e da Juventude, por contarem


com mais recursos materiais disponíveis e com o apoio de equipes técnicas
multiprofissionais, organizam serviços especificamente voltados para a fiscalização
348 das entidades, como acontece no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, em Campo
Grande e em Porto Velho. Essas iniciativas são reconhecidas pelos demais
membros das redes de proteção locais como contribuições importantes para o
monitoramento sobre a situação de crianças e adolescentes abrigados. Contudo,
apesar de eficientes e bem estruturados, esses serviços costumam trabalhar
isolados, sem integração com os demais atores, o que traz perdas evidentes do
ponto de vista da lógica sistêmica do modelo de proteção introduzido pelo ECA,
bastando considerar que, inadvertidamente, pode haver duplicação de visitas a
determinadas entidades, enquanto outras restariam sem ser fiscalizadas.

Neste sentido, a ausência de integração entre os órgãos competentes para


fiscalizar os programas de abrigo é um outro problema que repercute sobre a
efetividade da fiscalização que se realiza. O que acontece normalmente é que,
além de não haver uma estratégia de divisão de tarefas que possibilite cobrir toda
a rede de abrigos existente nos municípios, os resultados das visitas feitas não
são amplamente divulgados entre os órgãos competentes17. A ausência de
comunicação e, mais especificamente, de integração entre os órgãos responsáveis

15
Cabe ressaltar que nem todos os atores da rede de proteção entrevistados compartilham a percepção de que há
uma sobreposição de funções quanto à fiscalização da rede de abrigos. Alguns entrevistados consideram que as
atribuições nesta área estão distribuídas de forma clara e objetiva, havendo complementaridade na atuação dos
vários atores, bastando, portanto, que esses atores as incorporem em sua atuação.
16
A propósito da indefinição de atribuições e da conseqüente ausência de fiscalização, o conselheiro do CMDCA
de Campo Grande afirmou que, embora a fiscalização caiba ao Ministério Público, ao Juizado e ao Conselho
Tutelar, no caso de algum problema o primeiro a ser chamado a responder pelas denúncias é o CMDCA.
17
Um modelo de “comunicação” mais comumente praticado é aquele que acontece no Rio de Janeiro, por
exemplo, onde o Juizado mantém uma rotina de visitas e audiências dentro dos abrigos e envia ao Ministério
Público os relatórios dessas visitas. Em caso de irregularidades, a Promotoria da Infância e da Juventude pode,
então, tomar as providências cabíveis.
pela fiscalização das entidades de abrigo é tão mais surpreendente quando se
considera o elevado grau de restrições financeiras e de recursos humanos relatados
pelos membros dessas instituições entrevistados pela equipe do “Levantamento”.

A dificuldade para promover a integração da rede não reside, entretanto,


apenas no problema da não-incorporação das competências estabelecidas para
cada órgão. O tema da incompatibilidade entre as diferentes culturas organizacio-
nais também é um fator interveniente, sobretudo quando se tem em vista que a
rede de proteção integral congrega em um mesmo espaço órgãos tradicionais e
historicamente consolidados e estruturas novíssimas, sem precedentes na
organização pública brasileira. Tome-se, por exemplo, os casos do Juizado da
Infância e da Juventude e do Conselho Tutelar, órgãos que devem atuar juntos
na defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Por mais que o Juizado tenha
sofrido mudanças institucionais importantes desde o advento da doutrina da
proteção integral, pertence à estrutura de um poder que tem raízes profundas no
quadro institucional do país e cuja cultura profissional está firmemente
consolidada. Além disso, o órgão goza de alto capital simbólico na sociedade e
conserva importância definitiva na aplicação das medidas de proteção a crianças
e adolescentes no atual sistema. Sendo assim, seus membros muitas vezes ainda
tendem a assumir a primazia na responsabilidade pelo encaminhamento dos
problemas com que se deparam crianças e adolescentes no usufruto de seus
direitos, numa atitude francamente corporativista e auto-elogiosa da atuação do
Judiciário, e às vezes desvalorizadora dos demais órgãos. A declaração abaixo
ilustra esta postura:

“(...) nós, do Judiciário, temos atuado com bastante eficiência (...) Então, da nossa 349
parte, enquanto instrumento de poder e coerção, (...) temos dado as respostas satisfatórias
em tempo recorde” (Trecho da fala do membro do Juizado da Infância e da
Juventude do Rio de Janeiro)

No outro extremo, o Conselho Tutelar, embora tenha centralidade inques-


tionável no sistema de garantia de direitos, não possui prestígio social e político
no mesmo patamar de seus parceiros. Seus membros não conformam um corpo
profissional homogêneo, e sua atuação na área da infância e da adolescência está
marcada por um sentido voluntarista e de busca de gratificação individual. Além
disso, os Conselhos Tutelares não contam com a exata compreensão de seu papel
na rede pelos demais atores e, sendo autônomos, não encontram respaldo
institucional em nenhuma estrutura hierarquicamente superior, mas são alvos
fáceis de manipulação política e partidarismos locais. Acrescente-se ainda que,
conforme declaração unânime dos entrevistados - incluindo-se aí os próprios
conselheiros –, a maior parte dos Conselhos Tutelares instalados nos municípios
brasileiros carece de estrutura de trabalho minimamente adequada (em termos
de material, equipamentos, instalações, serviços de apoio burocrático, equipe
técnica de assessoramento etc.), sendo que muitos dos conselheiros em atuação
não estão satisfatoriamente capacitados para o complexo exercício de suas funções
no atendimento a crianças e adolescentes ameaçados ou violados em seus direitos,
tanto no que se refere à capacitação sobre os princípios do ECA e os instrumentos
de que dispõem para atuar, quanto no que concerne à escolarização formal18. É
o que se pode perceber pela declarações a seguir:

“(...) a questão dos Conselhos Tutelares é uma questão emergencial. Há uma


insatisfação muito grande com o caminhar dos Conselhos Tutelares. Eu acho que
350 a gente tem que discutir um pouco isso. Eu tenho feito reuniões quinzenais com os
conselheiros. Acho que isso é fundamental (...)” (Trecho da fala do membro da
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro)

“Eu vou dizer uma coisa: a própria rede (...) tem um olhar diferenciado sobre essas
atribuições [do Conselho Tutelar estabelecidas no ECA]. Tem advogados que
nem conhecem as nossas atribuições (...) Tem delegados de polícia que não entendem
as nossas atribuições. O que eu estou querendo dizer com isso? O próprio CMDCA
às vezes tem um olhar diferenciado (...) Então, o que podemos fazer para padronizar
esse entendimento e esclarecer o papel do conselheiro?” (Trecho da fala de um dos
membros do Conselho Tutelar de Campinas)

Desse tipo de problema resulta a terceira dificuldade mencionada anterior-


mente, ou seja, o fato de que, em muitos casos, os órgãos da rede de proteção
integral com história institucional mais recente se deparam com barreiras efetivas
para cumprir seu legítimo papel. No caso dos conselheiros tutelares, este problema
é evidente, pois eles não têm participado das discussões sobre as diretrizes da
política local e não têm conseguido efetivar sua atribuição de assessorar o órgão
gestor na elaboração de planos e programas de atendimento aos direitos de crianças
e adolescentes. Em muitas ocasiões, esses atores não conseguem fazer valer suas
decisões até mesmo em termos das medidas de proteção que aplicam e que envolvem
o acesso às políticas sociais básicas e demandam atuação imediata do poder público:

18
Devido a este tipo de questão, alguns CMDCAs (órgãos responsáveis pela eleição e capacitação dos conselheiros
tutelares) vêm introduzindo critérios mais exigentes no processo de seleção dos candidatos, passando a cobrar
níveis mais elevados de escolarização (em alguns casos, curso superior completo) e atuação comprovada na área
da infância e adolescência, além de organizar cursos de capacitação mais longos e detalhados, buscando, inclusive,
o apoio técnico das prefeituras.
“Os Conselhos Tutelares são muito desaparelhados. Eu não sei como esse pessoal
trabalha nos conselhos. Falo em termos da Justiça da Infância e Juventude. Os
programas que eu requisito, que a gente requisita aqui, como autoridade judiciária,
não existem. Imagina o trabalho desses conselheiros! Na maioria das vezes não se
entende a importância do conselheiro, a autonomia e a independência de suas funções,
o poder de requisição (...)” (Trecho da fala do membro do Juizado da Infância
e da Juventude de Fortaleza)

“(...) e o que o estatuto coloca? O estatuto coloca que o conselheiro [tutelar] não é
só para apagar incêndio(...) É que o estado e o município são muito inflexíveis,
muitas vezes. Às vezes, você tem quase que ir via Justiça para poder participar das
discussões do orçamento. E o que o estatuto coloca? O conselheiro é para discutir o
orçamento, porque tem a primazia no atendimento à criança e ao adolescente. Quase
nem sempre tem. Então, é uma queda de braço do conselho com o poder público.
(...)” (Trecho da fala do membro do Conselho Tutelar de Porto Alegre)

“Adianta o Conselho [Tutelar] requisitar aquilo que não existe? Então, nós não
conseguimos efetividade porque isso não depende de um papel; depende da construção
de uma política pública de atendimento (...) Depende da vontade popular. Campinas
tem o Orçamento Participativo. A população muitas vezes não consegue perceber as
necessidades da sua própria comunidade em relação a crianças e adolescentes. Então,
prefere o asfalto ao invés da construção da unidade de educação infantil. É muito
ranço, é muita coisa para divulgar. Não é o fato de a lei existir que garante. Os
instrumentos para garantir os direitos são limitados” (Trecho da fala de um dos
membros do Conselho Tutelar de Campinas)
351
Os conselhos de assistência social e de direitos também enfrentam
dificuldades nesse sentido. O maior problema para esses órgãos diz respeito à
efetivação de seu papel de instâncias ao mesmo tempo deliberadoras das diretrizes
da política municipal de atendimento a crianças e adolescentes e controladoras
das ações do gestor público na área. Em grande parte dos municípios pesquisados,
esses conselhos, embora contem com representantes governamentais, estão
institucional e politicamente distantes dos gestores municipais e dos demais
conselhos, o que faz com que suas discussões não incorporem as questão mais
relevantes da gestão da política local, ou que suas decisões não tenham influência
real sobre esse processo. Além disso, é comum a tendência de deixar em segundo
plano o seu papel de deliberadores e controladores da política municipal de
atendimento a crianças e adolescentes frente a sua suposta atribuição de gerir
essa política - papel que, de fato, cabe ao poder público19. Somando-se a esta
compreensão equivocada do papel dos conselhos o fato de que boa parte de suas
atividades está relacionada à análise de projetos e convênios e à inspeção das
entidades de atendimento para registro de seus programas, fica quase
impossibilitado o exercício consistente e rotineiro da formulação de diretrizes
para a política local de atendimento a crianças e adolescentes e do controle sobre
as ações do poder público na área. É o que sinalizam as declarações abaixo:

“A gente fica lá só para inscrever entidade, visitar, fazer um parecer sem muita
fundamentação. E aí, as discussões políticas ficam onde?”(Trecho da fala do
membro do CMAS de Campo Grande)

“(...) quando a gente vai inscrever uma entidade para colocá-la como entidade que

352 desenvolve uma política de assistência social (...) precisa ver se ela atende a todos os
requisitos da LOAS, se é um trabalho sistematizado, se atende ao usuário, se é
qualificado, se tem um técnico, se tem uma equipe. E às vezes não tem nada disso.
Agora mesmo nós estamos com um caso aí bem crítico (...) É a questão de uma
creche, uma situação muito difícil porque o conselho municipal indeferiu, mas o gestor
estadual passa recurso para essa entidade (...) São coisas dessa natureza que acontecem
(...) e que acabam dificultando o trabalho. É aquilo que eu falei: faz-se tudo, menos
assistência social” (Trecho da fala do membro do CMAS de Campo Grande)

“(...) os conselhos de direitos ainda não ocuparam o papel de fomentador de políticas


públicas. Eles ainda estão muito incipientes, sobretudo pela falta de participação do
poder público nos conselhos” (Trecho da fala do membro do Juizado da Infância
e Juventude do Rio de Janeiro)

Outro problema que dificulta a atuação efetiva da rede de proteção diz


respeito ao desconhecimento ou a não-utilização dos instrumentos colocados à
disposição dos diferentes órgãos. No caso do Conselho Tutelar, por exemplo, o
problema da ausência ou descontinuidade na capacitação em serviço dos
conselheiros eleitos, associado às dificuldades enfrentadas para garantir o acesso
de crianças e adolescentes sujeitos à proteção especial às políticas sociais básicas,
ajuda a explicar o fato de que, em muitos casos, os conselheiros se apressam em

19
Em boa parte dos casos, a confusão decorre do fato de que as decisões sobre a destinação dos recursos dos
fundos municipais são tomadas pelos conselhos, embora as contratações e a execução das despesas sejam feitas
pelos gestores municipais. Esta confusão tem origem no próprio ECA, segundo o qual o fundo deve ser gerido
pelo CMDCA. O órgão, contudo, não tem personalidade jurídica e está administrativa e financeiramente
vinculado ao gestor municipal da política de atendimento a crianças e adolescentes (em geral, as secretarias
municipais de Assistência Social ou outros órgãos equivalentes). Uma questão relevante que se coloca, portanto,
é a de saber, na prática, qual é o real poder de decisão e controle do conselho, uma vez que o gestor municipal é
o efetivo ordenador das despesas.
abrigar crianças e adolescentes em situação pessoal ou social de risco, antes mesmo
de propor as demais medidas possíveis.

O fato de que o Sistema de Informações para a Infância e Adolescência –


SIPIA – não funciona é outra manifestação concreta do mesmo problema.
Composto por módulos eletrônicos que permitem registro e tratamento de
informações sobre a garantia dos direitos fundamentais preconizados pelo ECA,
o sistema deve ser alimentado pelos conselheiros tutelares, responsáveis pelo
atendimento “na ponta” a crianças e adolescentes vítimas ou ameaçados de
violação de direitos. Trata-se, portanto, de uma ação estratégica, pois permite
conhecer a realidade das crianças e adolescentes que se encontram em situação
de risco pessoal e social em todo o país, podendo subsidiar a definição das políticas
públicas de atendimento a este segmento da população. No entanto, em muitos
municípios brasileiros, o sistema não está sequer implantado. E em vários dos
municípios onde já está implantado, não é alimentado com informações. Vários
dos depoimentos dos entrevistados destacam que, além da ausência de
computadores e da falta de capacitação para utilização do sistema, outro fator
decisivo para o não-funcionamento do SIPIA é o não-preenchimento dos
formulários pelos conselheiros tutelares que, em geral, alegam falta de tempo
para a atividade. Alguns depoimentos questionam ainda o fato de que os demais
atores da rede não têm acesso aos dados do sistema, o que lhes impossibilita um
conhecimento mais profundo sobre a situação da violação dos direitos de crianças
e adolescentes em seus municípios.

Este argumento remete para o último dos grandes problemas relativos ao


funcionamento da rede destacados nas entrevistas, qual seja, a necessidade de 353
que todos os órgãos envolvidos com a proteção integral a crianças e adolescentes
conheçam com profundidade o contexto de sua intervenção conjunta. Este
contexto envolve aspectos muito variados: os principais problemas sociais do
município, os programas e serviços disponíveis na rede pública local, os principais
tipos de violações de direitos registrados no âmbito local, as iniciativas e medidas
de proteção adotadas pelos demais parceiros em casos específicos, as condições
de vida das famílias em questão, os atores de fora da rede formal com quem se
pode contar ocasionalmente, entre outros. Este é um aspecto fundamental da
dinâmica do sistema de garantia dos direitos de crianças e adolescentes, pois se
trata de poder assegurar as melhores condições, em termos dos custos individuais
e sociais, de garantia desses direitos, o que é especialmente relevante no caso de
crianças e adolescentes em situação social e pessoal de risco, em que seus direitos
estão ameaçados ou já foram violados. As declarações reproduzidas a seguir
expressam esta preocupação:

“eu acho que o conselheiro [tutelar] tem que estar bem integrado na rede e ter
conhecimento da rede de serviços para complementar a sua ação (...) A gente está
na rede, a gente faz parte e a gente precisa dela para complementar as nossas ações de
encaminhamento ou não” (Trecho da fala do membro do Conselho Tutelar
de Campinas)

“É difícil essas equipes se juntarem ou essa rede funcionar em termos de sentar todo
mundo junto e discutir o caso de uma família e não o caso de uma criança, como
fazem. Ainda fazem muito, discutindo o caso de uma criança ou um adolescente.
Mas não se trata só dele: é ele e todo o seu círculo familiar, porque se você não protege

354 o círculo familiar não adianta o resto, não é”? (Trecho da fala do membro do
CMDCA de Porto Alegre)

Mas a realidade do sistema brasileiro de garantia dos direitos de crianças e


adolescentes não é apenas ausência de integração e atuação conjunta. Dos
municípios que conseguiram promover oportunidades efetivas de ação integrada
entre os vários órgãos que compõem a rede de proteção a crianças e adolescentes,
cabe citar algumas das iniciativas implementadas. No que diz respeito à gestão
da política de atendimento a criança e adolescentes, duas experiências se afastam
do quadro geral de fragmentação e compartimentalização observado. Trata-se
dos municípios de Belo Horizonte e Curitiba, que já contam com diretrizes políticas
e organograma institucional pautados na lógica da integralidade, tendo substituído
a noção de programas pela de “níveis de atenção”.20

Em Belo Horizonte, a gestão da assistência social estrutura-se com base na


centralidade da família, organizando ações quer visam apoiar, orientar, encaminhar,
promover e proteger as famílias e seus integrantes das situações de risco e
vulnerabilidade. Os serviços estão organizados de acordo com quatro critérios:

20
Porto Alegre também conta com serviços de assistência social estruturados por níveis de atenção, mas, segundo
as declarações de membros dos órgãos municipais envolvidos na implementação do atendimento a crianças e
adolescentes, a gestão das ações ainda se dá de forma fragmentada, não havendo efetiva intersetorialidade. Em
Campinas, uma resolução do CMDCA estabelece que o município deverá reorganizar os programas para crianças
e adolescentes existentes de modo a incorporar todo o grupo familiar. Esta medida seria um dos passos
fundamentais para a estruturação de uma política de atendimento ao grupo familiar no município. A gestão da
assistência social que havia acabado de se iniciar no município do Rio de Janeiro quando da realização das
entrevistas (novembro/dezembro de 2003) vinha promovendo a remodelação do organograma da secretaria, de
modo a implantar uma visão mais integrada e processual dos trabalhos, havendo um forte compromisso com a
intersetorilidade na execução das ações. Também havia o compromisso do gestor local de alocar todos os recursos
orçamentários da secretaria no fundo municipal, de modo que a destinação dos recursos da área pudesse ser
integralmente submetida à aprovação do conselho.
(i) sua abrangência territorial - que pode ser local, regional ou municipal; (ii) sua
função – que pode ser de promoção, prevenção, inclusão ou proteção; (iii) sua
complexidade; e (iv) o número de pessoas que serão atendidas. Além disso, o
município conta com equipes de supervisão e monitoramento das ações, estando
prevista a implantação de um sistema municipal de informações sobre os serviços
de assistência social. Em Curitiba, as ações da Fundação de Assistência Social
(FAS) são pautadas nos princípios da interdisciplinaridade, da intersetorialidade,
do foco na família e na comunidade, e da participação social. Na atual estrutura
da fundação, as três diretorias técnicas existentes (Diretoria de Proteção e Defesa
de Direitos, Diretoria de Apoio à Família e Diretoria de Geração de Renda)
desenvolvem ações preventivas e de proteção aos direitos de crianças e
adolescentes. Também aqui ocorre monitoramento e avaliação dos serviços
prestados pela rede de atendimento social de forma regular e sistemática, com
metodologia definida para orientação dos trabalhos dos núcleos regionais
(freqüência semanal) e do órgão central (freqüência quinzenal).

12.3.3 O reordenamento dos abrigos e o direito à


convivência familiar e comunitária

Finalmente, nesta parte do texto busca-se refletir sobre o investimento das


redes de proteção local no reordenamento dos programas de abrigo, com a
preocupação especial de averiguar até que ponto as iniciativas locais neste sentido
têm privilegiado a reinserção social de crianças e adolescentes abrigados, de modo
a garantir a efetivação do seu direito à convivência familiar e comunitária.

Reordenar os programas de abrigo significa, em linhas gerais, promover a


355
adequação das instituições que trabalham na área às diretrizes do ECA, de modo
que se supere o assistencialismo institucionalizador e se promova o enfoque
voltado para o pleno desenvolvimento e a integração social das crianças e
adolescentes acolhdios em abrigos. No que se refere especificamente ao direito à
convivência familiar e comunitária, o reordenamento implica incorporação à prática
institucional das entidades de abrigo dos princípios enumerados no artigo 92 do
ECA: (i) preservação dos vínculos familiares; (ii) integração em família substituta,
quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem; (iii)
atendimento personalizado e em pequenos grupos; (iv) desenvolvimento de
atividades em regime de co-educação; (v) não-desmembramento de grupos de
irmãos; (vi) evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de
crianças e adolescentes abrigados; (vii) participação na vida da comunidade local;
(viii) preparação gradativa para o desligamento; e (ix) participação de pessoas da
comunidades no processo educativo.

A partir das entrevistas realizadas, é possível afirmar que o reordenamento


dos abrigos ainda não foi incorporado como diretriz fundamental da política de
atendimento a crianças e adolescentes, estando a discussão relativa ao direito à
convivência familiar e comunitária em fase inicial em muitos dos municípios
selecionados.

No caso dos órgãos gestores da política municipal, a situação institucional


do setor responsável pelos abrigos ainda é pouco priorizada em termos de
orçamento ou planejamento de ações. No que se refere especificamente aos abrigos

356 conveniados à Rede SAC, por exemplo, eles carecem de gerenciamento em muitos
dos municípios selecionados, tendo o gestor municipal atuado mais como
“transferidor” de recurso e contratador de serviços do que como coordenador
da política em nível local. Por outro lado, o monitoramento e a avaliação dos
serviços de abrigo são pouco sistematizados, não contando com periodicidade
estabelecida ou com indicadores precisos. É comum que sejam realizados de
maneira pontual ou a reboque das denúncias e movimentos desencadeados pelos
demais atores da rede de proteção integral.

A própria relação entre o órgão gestor e as entidades costuma se restringir


ao convênio na maioria dos casos, não havendo qualquer tipo de orientação
sistemática sobre o atendimento que deve ser prestado a crianças e adolescentes
sob medida de proteção especial e acolhidos em abrigos. Sendo assim, pode-se
afirmar que a formulação e implementação de diretrizes específicas para o
reordenamento dos programas de abrigo por parte dos gestores municipais ainda
é incipiente na maioria dos casos investigados. Verifica-se que mesmo as iniciativas
propostas pelos conselhos de políticas públicas nem sempre são efetivadas devido
à ausência de estratégias de implementação do órgão gestor. A declaração
reproduzida abaixo ilustra esta postura institucional:

“eu acho que esse assunto [os abrigos da cidade] não é prioridade na agenda de
nenhum desses atores que você falou, inclusive na minha (...) A gente vai construindo
as agendas à medida que aqueles temas estão nosocupando de problemas. A
questão dos abrigos na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, não está na agenda do
conselho tutelar, do conselho da assistência, do conselho da criança ou na minha
agenda como prioridade (...) A gente vai construindo outras prioridades, e é uma
coisa fundamental parar e rever como que a própria série histórica tem que ser
repensada e [também] de que abrigo você está falando, de que conceito de abrigamento
você está falando, de que acolhida você está tratando. E eu não vejo nenhum de nós
conversando isso juntos. A gente sempre está conversando outros assuntos importantes,
mas não esse”21 (Trecho da fala do membro da Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro)

Mais uma vez, os casos de Belo Horizonte e Curitiba destoam do quadro


geral descrito acima. Nesses municípios, o gerenciamento da rede de abrigos
ocorre de forma planejada, com diretrizes, instrumentos, metodologia e equipe
bem definidos. Há inclusive espaços e eventos para discussão regular da política
de atendimento a crianças e adolescentes em abrigos, em geral liderados pelos
CMDCAs e apoiados pelo órgão gestor. Em Belo Horizonte, por exemplo, já se
conta com uma definição conceitual clara sobre o que seja um abrigo, com
diretrizes e ações consoantes com o ECA22. Além disso, no momento da realização
das entrevistas, estavam sendo implementadas pelo gestor municipal as seguintes
iniciativas: re-estrututuração de todas as ações de abrigamento sob uma mesma
gerência administrativa; implantação de serviços inovadores de abrigamento na
modalidade “família acolhedora”; redistribuição do financiamento dos serviços
de abrigo segundo critérios mais amplos que as “metas de atendimento” preco-
nizadas pelo governo federal, com re-adequação dos diversos valores per capita
repassados ao município; e capacitação dos profissionais dos abrigos.

Também o órgão gestor da política municipal de assistência social de Porto


Alegre vem buscando definir diretrizes em relação aos abrigos da cidade, sendo
uma orientação essencial a de que os programas reproduzam com bastante 357
similaridade as relações familiares e não-institucionais, acolhendo cada vez menos
crianças e adolescentes por unidade (até 10 abrigados) e vinculando a rotina ao
cotidiano da vida das crianças e adolescentes, de modo que o espaço coletivo da
convivência seja sempre valorizado, sem separação de perfis e com respeito às
diferenças. Os gestores ressaltam, contudo, o desafio que a busca por alternativas
para o financiamento desta proposta de abrigamento representa, já que o custo

21
Embora admita que os abrigos não são prioridade em sua agenda, o entrevistado declara que a SMDS vem
buscando criar alternativas à institucionalização de crianças e adolescentes na forma das casas-lares e da utilização
de vagas em hotéis para famílias em situação de rua. Sobre os abrigos, diz que se trata de uma estratégia ultrapassada
e equivocada, que comprometeu muito a vida das pessoas que passaram por essa instituições.
22
Essa definição consta de um resolução do CMDCA local datada de 1997. A resolução estipula, entre outras
coisas, critérios de qualidade e de estruturação dos recursos humanos mínimos para as unidades de abrigo, ações
de capacitação para os trabalhadores e dirigentes das unidades e formas de financiamento do serviço, e vem
orientando a grande maioria das ações da política de atendimento em abrigos desde então.
financeiro dos abrigos menores e com atendimento personalizado, em termos de
infra-estrutura e de equipes de trabalho, é consideravelmente mais alto. Por outro
lado, enfatizam o argumento de que uma das principais dificuldades relativas ao
reordenamento dos abrigos é a precariedade da interlocução de todos os envolvidos
na implementação dos programas, sendo, portanto, da maior importância, a
iniciativa do órgão gestor no sentido de construir um fórum de debate sobre a
questão, fundado nos princípios da intersetorialidade e do trabalho em rede.

Fatores como a escassez de fiscalização das instituições que oferecem


programas de abrigo são determinantes da institucionalização prolongada de
crianças e adolescentes e da eventual perda de vínculo com suas famílias de
origem. Se é verdade que há muitas crianças e adolescentes abrigados sem medida
judicial porque as instituições de abrigo estão deixando de cumprir a determinação
358 legal de comunicar o acolhimento à autoridade judiciária em até 48 horas, também
é fato que a fiscalização dessas entidades não está acontecendo a contento, como
se viu anteriormente, e por isso os casos de abrigamento irregular não são
resolvidos.

No que se refere à fiscalização dos abrigos para regularização do atendimento


a crianças e adolescentes, o órgão gestor do município de Belo Horizonte também
implantou medidas inovadoras para sanar as deficiências da rede nesta área. Como
iniciativa pioneira, vem sendo implementada uma experiência de supervisão
integrada das entidades de abrigo, liderada pela prefeitura municipal com apoio
do CMDCA. A supervisão integrada consiste na reunião, em um mesmo espaço,
das equipes técnicas dos órgãos com atribuição de fiscalização, do órgão gestor
e dos conselhos para discutir as competências de cada um e deliberar sobre as
ações a serem adotadas23.

Também em Curitiba, o órgão gestor vem protagonizando a cooperação


para fiscalização de entidades de abrigo, sendo que a relação com seus parceiros
vem evoluindo da informalidade para a formalização. A fiscalização, que inclui o
cadastramento dos abrigados, inicialmente era feita pelo executivo municipal em
parceria com o Ministério Público, mas passou a contar também com a colaboração
do Judiciário. Há ainda um estreitamento de relações entre o órgão gestor da
assistência social, o Juizado e os Conselhos Tutelares, especialmente a partir da

23
Em seu depoimento, a conselheira do CMAS de Belo Horizonte ressalta que a iniciativa da supervisão integrada
foi especialmente motivada pelo fato de que ainda não há um controle de entrada de crianças e adolescentes nos
abrigos, já que o Judiciário, o Ministério Público e o Conselho Tutelar, na aplicação da medida, relacionam-se
diretamente com as entidades, ficando o gestor da política sem tomar conhecimento da situação de crianças e
adolescentes abrigados no município.
criação, em 2000, de uma comissão de direitos que tem por função analisar os
processos de adoção, de reintegração familiar e as metas de atendimento em
abrigos, entre outros assuntos.

No entanto, embora alguns executivos municipais venham investindo


esforços para implementar ações integradas de fiscalização dos abrigos de modo
a ampliar o seu poder de gestão sobre a rede existente em seus municípios, o
problema da falta de fiscalização remete para a insuficiência da rede de proteção
nesta área, em especial para a falha na atuação do Judiciário, do Ministério Público
e do Conselho Tutelar. Este, ao lado de fatores como a demora no julgamento
dos processos, o abrigamento fora do município de origem, a utilização
indiscriminada da medida de abrigo antes de avaliadas as demais possibilidades e
a falta de acompanhamento da situação familiar depois de abrigadas as crianças
e os adolescentes são obstáculos bastante concretos para a efetivação do direito
dos meninos e meninas abrigados à convivência familiar e comunitária, inserindo-
se todos sob o âmbito de atuação desses órgãos.

Dentre as iniciativas de apoio à desinstitucionalização e ao não-abrigamento


de crianças e adolescentes, alguns dos membros de Juizados da Infância e da
Juventude entrevistados destacaram a preocupação de seus órgãos em agilizar o
trâmite processual, e mesmo em buscar outras formas de lidar com os diferentes
casos que não pela via do processo judicial. Já os membros do Ministério Público
tendem a enfatizar seu trabalho de orientação às entidades de abrigo no sentido
da promoção dos vínculos familiares, destacando também as ações que resultaram
no fechamento de abrigos inadequados às diretrizes do ECA. No que se refere
especificamente à atuação dos Conselhos Tutelares, os conselheiros entrevistados 359
conferem maior destaque à parceria com o Ministério Público no fechamento de
abrigos irregulares e ao trabalho sempre difícil com as famílias para a reinserção
das crianças e adolescentes abrigados.

É importante observar, contudo, que os três órgãos guardam, em geral,


grande proximidade na maneira de conceber o atendimento a crianças e adoles-
centes em situação pessoal e social de risco. Em se tratando especificamente dos
programas de abrigo, embora haja o entendimento formal de que a desinstitu-
cionalização é a meta a se perseguir, seus membros tendem a defender com
firmeza o aumento da oferta de vagas nos municípios, dada a necessidade de se
prover proteção efetiva a crianças e adolescentes ameaçados ou violados em seus
direitos, chegando algumas vezes a utilizar o recurso judicial para garantir essas
vagas e entrando em choque aberto com as iniciativas de outros atores da rede24.
Exemplificam essa postura e os conflitos dela decorrentes as seguintes declarações:

“Todas as medidas de proteção do 101 são vangloriadas. Quando chega no abrigo, aí


fazem o maior horror em relação ao abrigo. Tudo bem que o abrigo tem que ser
evitado, não sei o quê... Mas (...) é colocado como se o abrigo não devesse existir ali
dentro do estatuto (...)”

“(...) na época que eu entrei, fazia 11 anos do ECA e não havia sido questionada
a questão da municipalização das entidades de abrigo. E eu ingressei com uma ação
civil pública para tentar obrigar o município de Porto Alegre a criar abrigos, com
dados, números. Essa ação foi julgada procedente e está em grau de recurso no
Tribunal de Justiça (...)”

360 “com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, foi muito
decepcionante ver que, quando se ingressou com a ação para criação de vagas em
Porto Alegre - porque aqui a situação é caótica -, a então presidente promoveu
inclusive debates na imprensa, dizendo que não se precisava de mais abrigos [na
cidade] e que estava tudo muito bem com a área da abrigagem (...) Eu achei muito
deprimente o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente não ter
sequer essa visão” (Trechos da fala do membro da Promotoria da Infância
e da Juventude de Porto Alegre entrevistado)

Quanto aos conselhos de direitos e de assistência social, embora esses órgãos


venham enfrentando dificuldades de diversas ordens para cumprir seu papel de
formuladores da política de atendimento a crianças e adolescentes, em geral são
eles, em especial o CMDCA, os atores de vanguarda na proposição de iniciativas
de reordenamento dos programas de abrigo implementados nos municípios
selecionados. Em um cenário em que os órgãos gestores da política não priorizam
os programas de abrigo, tem cabido aos conselhos assumir a responsabilidade de
tratar do tema e propor alternativas à institucionalização indiscriminada de crianças
e adolescentes em situação de risco pessoal ou social. Embora este movimento
não seja observável em absolutamente todos os municípios selecionadas, em
mais da metade deles pode-se identificar iniciativas importantes dos conselhos
neste sentido.

24
Embora exerçam influência diferenciada sobre a gestão da política municipal nos vários municípios selecionados,
esses três órgãos são os grandes responsáveis pelo encaminhamento aos abrigos de crianças e adolescentes que
necessitam de proteção especial, o que faz da postura individual do juiz, do promotor ou do conselheiro tutelar
um fator decisivo na opção pelo abrigamento em detrimento das demais medidas de proteção possíveis de serem
adotadas.
Assim, por exemplo, além dos municípios de Belo Horizonte e Curitiba,
onde os CMDCAs locais têm tido centralidade na proposição de medidas que
têm efetivamente orientado o órgão gestor, também em outros municípios esses
conselhos vêm atuando no sentido de liderar o processo de adequação dos abrigos
aos princípios legais das medidas de proteção estabelecidos no ECA. Em
Campinas, por exemplo, em resolução que havia sido publicada poucos meses
antes da realização das entrevistas, o CMDCA estabelece diretrizes para aperfeiçoar
a organização do atendimento no município, direcionadas tanto ao poder público
quanto aos próprios abrigos. Para o poder público, dispõe que o município deverá
contar com um serviço único de referenciamento para o atendimento de crianças
e adolescentes abrigados, bem como com um serviço de atendimento jurídico
paras as questões pertinentes a essas crianças e adolescentes; para as entidades
de abrigo, estabelece que deverão ser apresentados anualmente ao conselho seus
projetos pedagógicos e ainda concede um prazo para a apresentação de projetos
de reforma das instalações físicas a serem discutidos com o CMDCA. Uma
determinação crucial do ponto de vista da garantia do direito à convivência familiar
e comunitária é a de que as crianças de zero a seis anos sob proteção especial
sejam encaminhadas aos programas de “famílias acolhedoras”, de modo que,
num prazo de dois anos, não haja mais institucionalização nessa faixa etária no
município de Campinas.

Também no Rio de Janeiro, embora o órgão gestor da política de assistência


social afirme não conferir prioridade aos programas de abrigo, o mesmo não
pode ser dito do CMDCA local, que tem atuado sobre a questão do abrigamento,
tendo proposto no documento Política de abrigo para crianças e adolescentes do município
do Rio de Janeiro orientações importantes que foram inclusive encampadas pela
361
administração municipal. Em relação ao gerenciamento da rede de abrigos do
município, por exemplo, foram elaboradas diretrizes que prevêem, dentre outras,
as seguintes medidas: a alocação de uma equipe mínima de profissionais por
abrigo (dois assistentes sociais, um psicólogo, educadores e apoio), a realização
de encontros de capacitação e a implantação de programas de acompanhamento
do atendimento em abrigos por regional administrativa, contando com eixos de
observação definidos em torno das instalações físicas, do trabalho sociope-
dagógico, da ação para as famílias e das normas gerais de funcionamento das
entidades de abrigo. Além disso, o conselho vem estabelecendo prioridades para
a destinação dos recursos do fundo, dentre as quais destacam-se atualmente os
projetos de reinserção familiar de crianças e adolescentes abrigados, os programas
de famílias acolhedoras e os projetos voltados para a questão da violência
doméstica contra crianças e adolescentes.

No município de Porto Alegre, o CMDCA vem puxando a discussão sobre


o tema dos abrigos por meio do fórum de abrigos, uma comissão do Fórum
DCA local que reúne, uma vez por mês, representantes dos Conselhos Tutelares,
do Juizado, do Ministério Público, do órgão gestor, além do próprio CMDCA. O
fórum de abrigos tem trabalhado, nos últimos anos, no sentido de ultrapassar a
divisão institucional entre os abrigos da cidade (abrigos municipais, estaduais,
não-governamentais conveniados, não-governamentais não-conveniados),
abolindo o tratamento diferenciado entre eles. A principal proposta do fórum
destacada nas entrevistas diz respeito à montagem de uma central de ingressos
para os abrigos, de modo que se possa controlar a entrada, a saída e os processos
362 de crianças e adolescentes abrigados no município e, com isso, aprimorar a gestão
local da rede. Algumas propostas importantes do CMDCA envolvendo os
programas de abrigo foram acatadas pelo gestor municipal, tais como o
nivelamento dos recursos per capita repassados a todos os abrigos existentes no
município, independentemente da rede de que fazem parte, segundo duas faixas
diferenciadas (de 0 a 6, no valor de R$600,00 e de 7 a 18, no valor de R$450,00),
e a inclusão de uma 13ª parcela de repasse para facilitar o cumprimento das
despesas das entidades com encargos trabalhistas no fim do ano. Embora o
CMDCA local posicione-se radicalmente a favor da desinstitucionalização de
crianças e adolescentes que necessitam de proteção especial, a mobilização política
encabeçada pelo órgão conseguiu inserir ações dos programas de abrigo no
Orçamento Participativo da Juventude.

Como último exemplo da liderança do CMDCA no tema do reordenamento


dos abrigos, cabe mencionar que começavam a se esboçar, no momento em que
se realizavam as entrevistas, as primeiras iniciativas neste sentido no município
de Campo Grande. Desde 2002, está implantado um grupo de trabalho, conduzido
pelo conselho, para formular diretrizes para o ordenamento dos abrigos do
município25. A primeira medida tomada consistiu na realização de uma pesquisa
junto às entidades de abrigo, sendo que o principal problema detectado estava
relacionado à falta de capacitação das pessoas que trabalham nos abrigos em
relação aos princípios do ECA e ao seu papel no atendimento às crianças e aos
adolescentes abrigados. Os resultados do levantamento motivaram o conselho a

25
Interessante destacar que o próprio conselheiro admite que esta iniciativa do CMDCA foi provocada por um
chamamento do Juizado da Infância e da Juventude.
acompanhar mais de perto a política de abrigamento de crianças e adolescentes
no município e a formular uma proposta de capacitação de 200 horas para os
trabalhadores dos abrigos, a cargo do órgão gestor. Depois de realizada a
capacitação, o conselho promoveu uma avaliação de seus resultados, decidindo-
se por fechar algumas unidades devido à permanência de problemas no
atendimento.

12.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As redes de proteção integral a crianças e adolescentes que se articulam nos


vários municípios brasileiros materializam o sistema de garantia de direitos,
conectando atores, instrumentos e espaços institucionais que atuam na atenção
àquela parcela da população no nível local. Depende delas, portanto, o sucesso
do sistema e a efetiva garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes
brasileiros. Do ponto de vista do tema geral desta pesquisa, o pleno funcionamento
da rede é essencial, pois, se é preciso proteger e minimizar o sofrimento de quem
foi vítima de violação de seus direitos e está submetido à medida de abrigo,
também é necessário garantir, ao mesmo tempo, o seu retorno em condições de
segurança física e emocional ao convívio com suas famílias e suas comunidades.
E esta é uma tarefa complexa que requer a integração de esforços múltiplos.

Neste sentido, as dificuldades para prestar o atendimento adequado relatadas 363


pelo atores que compõem as redes de proteção nos municípios investigados pelo
“Levantamento” são preocupantes. Ainda que alguns municípios venham
conseguindo implementar medidas inovadoras e registrar avanços importantes
na área, na maior parte dos casos as redes não funcionam enquanto tal e o modelo
sistêmico proposto não vem tendo efetividade. Ora, a noção de sistema pressupõe
a integração entre os atores, instrumentos e espaços institucionais que podem ser
mobilizados para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Mas, se os
atores que conformam as redes locais de proteção integral não estão atuando de
maneira articulada e conscientes de suas atribuições e das várias dimensões dos
problemas que precisam solucionar, o sistema de garantia de direitos, como
previsto no estatuto, não se torna capaz de produzir efeito real. Afinal, é do
pleno funcionamento dessas redes que depende a concretude do sistema.
Dentre os principais problemas relacionados ao atendimento em abrigos e
apontados nas entrevistas realizadas no âmbito desta pesquisa, podem-se destacar:

• ausência de integração entre os atores que atuam nos vários âmbitos da


rede (promoção, defesa e controle), o que anula as potencialidades do
modelo sistêmico e gera ações concorrentes entre os atores;

• falta de complementaridade entre as medidas de proteção especial e a


rede de serviços sociais básicos, o que inviabiliza a garantia dos direitos
de crianças e adolescentes abrigados;

• atuação passiva dos órgãos de assistência social em relação as crianças e


adolescentes abrigados e a suas famílias;

• ausência de fiscalização freqüente e coordenada das entidades prestadoras


364 do serviço por parte das instâncias legalmente responsáveis, o que faz
com que o atendimento permaneça irregular em inúmeros casos;

• carência de apoio material, técnico e mesmo político aos Conselhos


Tutelares, que vêm dando uma atenção apenas emergencial às crianças e
aos adolescentes que atendem, sem conseqüências de médio e longo
prazo sobre a garantia de seus direitos; e

• não-consolidação em nível municipal de uma ampla estratégia de


reordenamento do atendimento em abrigos, o que faz com que crianças
e adolescentes submetidos à medida permaneçam institucionalizados e
sem direito à convivência familiar e comunitária.

No entanto, as entrevistas deixam claro que as iniciativas mais significativas


para a melhoria da política de atendimento a crianças e adolescentes têm sido
aquelas que contam com a participação ativa da sociedade civil, seja nos fóruns
de debates, seja nos conselhos de direitos. Nesses espaços, tem-se conseguido
formular diretrizes inovadoras para a política e, a despeito da falta de organicidade
da rede, algumas de suas propostas e decisões têm conseguido penetrar na esfera
da gestão da política. Isso confirma o fato de que os avanços no reordenamento
dos abrigos, na garantia do direito à convivência familiar e comunitária e na
própria política de atendimento a crianças e adolescentes dependem, em grande
medida, de uma interação efetivamente cooperativa ente o poder público e a
sociedade civil organizada.
12.5 BIBLIOGRAFIA

AMARAL E SILVA, A. F. Poder Judiciário e rede de atendimento. IN: KONZEN


et alii. Pela Justiça na Educação. Brasília: MEC, 2000.

BRANCHER, Leoberto N. Organização e gestão do Sistema de Garantia de Direitos


da Infância e da Juventude. IN: KONZEN et alii. Pela Justiça na Educação. Brasília:
MEC, 2000.

CABRAL, et alii. Sistema de Garantia de Direitos: um caminho para a proteção


integral. Recife: CENDHEC, 1999.

CYRINO, P. C. B. O papel articulador dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos de


Educação. IN: KONZEN et allii. Pela Justiça na Educação. Brasília: MEC, 2000.

DE PAULA, Paulo A. G. O Ministério Público. IN: KONZEN et alii. Pela


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VOLPI, Mário. Interfaces da educação com o sistema de proteção especial. IN:


KONZEN et alii. Pela Justiça na Educação. Brasília: MEC, 2000.

365
políticas sociais
acompanhamento e análise

16
Governo Federal políticas sociais
Ministro de Estado Extraordinário acompanhamento e análise
de Assuntos Estratégicos – Roberto Mangabeira Unger Diretoria de Estudos Sociais

Secretaria de Assuntos Estratégicos


Conselho Editorial
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Brancolina Ferreira
José Aparecido Ribeiro
Leonardo Alves Rangel
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Luciana Mendes Servo
Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Luseni Aquino (editora responsável)
Estratégicos, o Ipea fornece suporte técnico e institucional Maria Martha Cassiolato
às ações governamentais − possibilitando a formulação Natália de Oliveira Fontoura
de inúmeras políticas públicas e programas de Roberto Gonzalez
desenvolvimento brasileiro − e disponibiliza, Silvânia Carvalho (secretária executiva)
para a sociedade, pesquisas e estudos
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Liana Maria da Frota Carleial Educação Ana Luiza Codes
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Diretor de Estudos Setoriais José Valente Chaves
Márcio Wohlers de Almeida Marcello Cavalcanti Barra
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Diretor de Cooperação e Desenvolvimento Cultura Frederico Barbosa da Silva
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Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria Igualdade racial Luciana Jaccoud
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responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto Natália de Oliveira Fontoura
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a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas. Núcleo de Gestão André Luís Souza
de Informações Augusto de Araújo Maia
Sociais (Ninsoc) Fábio Monteiro Vaz
Herton Ellery Araújo
Joelmir Rodrigues da Silva
Jhonatan Ferreira
Maíra Bonna Lenzi
ISSN 1518-4285
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 7

POLÍTICA SOCIAL E DESENVOLVIMENTO – O PLANEJAMENTO FEDERAL NA ÁREA SOCIAL 9

ACOMPANHAMENTO DE POLÍTICAS E PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS 27

PREVIDÊNCIA SOCIAL 29

ASSISTÊNCIA SOCIAL E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL 55

SAÚDE 83

EDUCAÇÃO 107

CULTURA 129

TRABALHO E RENDA 155

DESENVOLVIMENTO RURAL 181

DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA 209

IGUALDADE RACIAL 235

JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA 257

IGUALDADE DE GÊNERO 283

GLOSSÁRIO DE SIGLAS 307


APRESENTAÇÃO

Esta edição de Políticas Sociais – acompanhamento e análise tem como principal objetivo
apresentar um balanço das ações do governo federal no ano de 2007, por meio do
exame da implementação da política e dos programas setoriais, bem como da execução
orçamentário-financeira dos órgãos competentes. Tal balanço pode ser encontrado na
seção Acompanhamento da política e dos programas de cada capítulo.
Tendo como mote o fato de o ano de 2007 ter correspondido ao último da vigência
do Plano Plurianual 2004-2007 e, ao mesmo tempo, ao momento de elaboração do
novo PPA e de anúncio das principais estratégias de governo para o período 2008-2011,
o texto Política Social e Desenvolvimento, a seguir, discute o tema do planejamento das
ações federais na área social. Em certo sentido, busca-se consolidar ali uma discussão
que esteve presente em momentos variados nas análises recentemente publicadas no
periódico, avançando o debate em alguns aspectos específicos.
Como de costume, a seção Fatos relevantes dos diferentes capítulos aborda as inova-
ções legislativas, as mudanças institucionais, as grandes conferências e fóruns, e outros
eventos de destaque no âmbito da dinâmica social das respectivas áreas, cobrindo o
período que vai de meados de 2007 ao final do primeiro semestre de 2008.
A seção Tema em destaque trata, em cada capítulo, de assuntos eleitos pelos pesqui-
sadores da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) do Ipea como merecedores de atenção
especial, dado o contexto das políticas a que estão referidos. Pode-se mencionar, a título
de exemplo: o tema Crise Alimentar e Agricultura no Brasil, constante do capítulo
Desenvolvimento Rural; o debate político em torno da intenção manifestada pelo Exe-
cutivo federal de aprovar a Convenção no 158 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), apresentado no capítulo Trabalho e Renda; os questionamentos enfrentados pela
Lei Maria da Penha e discutidos no capítulo Igualdade de Gênero; ou ainda a análise
da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma Tributária e seus impactos
sobre o financiamento da Seguridade Social, que compõem o capítulo Previdência Social.
Acreditamos que estes e os demais textos ora disponibilizados oferecem insumos insti-
gantes para a compreensão balizada do amplo quadro de questões que se apresentam para
as políticas sociais no Brasil hoje.

Boa leitura!
Conselho Editorial
POLÍTICA SOCIAL E DESENVOLVIMENTO – O PLANEJAMENTO
FEDERAL NA ÁREA SOCIAL

1 O processo de planejamento federal e o PPA 2008-2011


O ano de 2007 foi marcado pelo encerramento da vigência do Plano Plurianual (PPA)
2004-2007 e pela elaboração do novo PPA para o próximo período de governo.1 Enca-
minhado ao Congresso Nacional no final de agosto de 2007, o PPA 2008-2011 é apre-
sentado pelo Executivo federal como um plano que responde ao “desafio de acelerar o
crescimento econômico, promover a inclusão social e reduzir as desigualdades regionais”.2
Para consubstanciar tal estratégia de desenvolvimento, destaca-se a organização de
algumas ações em três grandes eixos: Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
Agenda Social, e Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).
No primeiro eixo, o PAC congrega um portfolio de obras públicas estratégicas para
superar gargalos do atual ritmo de crescimento da economia e promover o desenvol-
vimento do país. Por sua vez, a Agenda Social compreende um conjunto de iniciativas
prioritárias para ampliar oportunidades à parcela mais vulnerável da população, mediante
uma política garantidora de direitos, a ser efetivada com gestão integrada e pactuação
federativa entre União, estados e municípios. O PDE, que também integra a Agenda
Social, distinguiu-se de forma diferenciada, tendo sido lançado com anterioridade para
marcar o compromisso do governo com a melhoria da qualidade da educação.
Vale observar que, se aos três eixos descritos estão atribuídas as prioridades polí-
ticas da atual gestão na elaboração e execução do PPA 2008-2011, caracterizando em
certo sentido a seletividade que este deve apresentar como peça de planejamento, tal
proeminência não se explicita na organização das ações do plano. O PPA é composto
por programas que organizam todas as ações das diferentes instituições governamen-
tais: sejam aquelas que conferem materialidade à nova proposta política, sejam as de
caráter ordinário, decorrentes de conquistas sociais previamente consolidadas. Assim, a
opção estratégica de promover o “desenvolvimento com inclusão social e educação de
qualidade”3 permanece relativamente ofuscada no plano em meio ao amplo conjunto
das ações de governo.
O problema não é novo, e vem sendo enfrentado por meio de diferentes recursos
desde 1999, quando da implantação da nova metodologia de elaboração dos planos
plurianuais. No PPA 2000-2003, foram sublinhados os projetos estratégicos, ao passo
que no plano seguinte ganharam maior relevo as metas presidenciais, ambos merecedores
de tratamento diferenciado, tanto no que se refere ao monitoramento quanto ao poder de

1. Os diversos capítulos desta edição de Políticas Sociais: acompanhamento e análise abordam as realizações do governo
federal no último ano do PPA elaborado na gestão anterior, com especial relevo nos principais resultados alcançados.
2. MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Plano Plurianual 2008-2011, Mensagem Presidencial.
Brasília, 2007.
3. Título da Mensagem do Presidente da República ao Congresso Nacional, que encaminhou o PPA 2008-2011 em agosto
de 2008.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 9


barganha na negociação dos contingenciamentos orçamentários. Se tais distinções se
mostram necessárias ao processo de condução de governo, são evidências de fragilidades
no atual modelo de concepção do plano plurianual.
Para situar adequadamente a origem dessas fragilidades, faz-se necessário um bre-
ve retrospecto. Nos anos 1990, os dois primeiros PPAs elaborados após o advento da
Constituição de 1988 limitaram-se a cumprir com a formalidade legal, na medida em
que não dispuseram do embasamento teórico e metodológico apropriado para orientar
a formulação de um documento compatível com a idéia de planejamento de médio
prazo.4 Tendo em vista que o parágrafo 9o do artigo 165 do texto constitucional remete
para lei complementar a definição das normas para elaboração e organização dos planos
plurianuais, os primeiros PPAs do governo federal foram desenhados como algo não
muito diferente do Orçamento Plurianual de Investimento (OPI) – instrumento criado
pela Lei no 4.320/1964. Neste sentido, os PPAs da década de 1990 figuram mais como
OPIs ampliados em tempo e em tipos de despesa do que propriamente como planos
de governo.
Somente ao final de 1998, mediante a publicação do Decreto no 2.829, foram esta-
belecidas as normas para a elaboração e gestão do plano plurianual e dos orçamentos da
União. De acordo com estas normas, toda a ação finalística de governo deve ser estru-
turada em programas orientados para a consecução dos objetivos estratégicos definidos
para o período de vigência do plano. Desta forma, o programa passa a ser a unidade
básica de organização do PPA e o módulo de integração do plano com o orçamento.
Os respectivos programas devem ser concebidos para solucionar problemas precisamente
identificados e para alcançar resultados mensuráveis, com metas previstas para o período
contemplado pelo plano. As novas orientações conferem especial ênfase às dimensões
da gestão e da avaliação e, para tanto, cada programa do plano deve ser dotado de um
modelo de gerenciamento com unidade responsável, sistemas de informações gerenciais
e gerente de programa designado pelo ministro pertinente.
Estabelecidas essas orientações, determinou-se que a elaboração do PPA 2000-2003
e do orçamento do ano de 2000 seria precedida pela realização de um inventário de
todas as ações de governo em andamento e do recadastramento de todos os projetos e
atividades orçamentárias, como forma de constituir base para a reorganização das ações
em novos programas. Tal procedimento, por um lado, se necessário para evitar descon-
tinuidades nas ações em curso, revelou-se, por outro, um obstáculo para a incorporação
da inovação metodológica no desenho dos programas do PPA. Conforme expressa um
analista deste processo,
(...) ingressar em um mundo novo olhando para trás e guiado por mapas referentes a um
mundo velho pode não ser um bom começo. As ações em andamento não tinham sido dese-
nhadas sob o conceito de programa e nem para atacar problemas bem definidos. Resultaram
de uma visão convencional (setorial, incremental, sem base em análises acuradas da realidade
e sem preocupação com a gestão) que pouco podia oferecer para a implantação de inovações
metodológicas e organizacionais como as pretendidas. Pelo contrário, essas ações poderiam
contaminar a nova proposta com a força da tradição. (GARCIA, 2000).5

4. Para mais informações e análise aprofundada, ver GARCIA, Ronaldo. A Reorganização do Processo de Planeja-
mento do Governo Federal: o PPA 2000-2003. Brasília: Ipea, 2000 (Texto para Discussão, n. 726).
5. Cf. nota de rodapé anterior.

10 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Um aspecto decorrente do mesmo processo e que também comprometeu o desenho
dos planos plurianuais foi a opção pela completa integração plano/orçamento, implemen-
tada a partir do PPA 2000-2003. Esta implicou a não diferenciação entre o plano – que
deve ser seletivo nas ações que o integram, dado que expressa prioridades políticas – e
o orçamento – que é abrangente por abarcar o conjunto das ações de governo. Apesar
da necessária correspondência dos programas do primeiro no segundo, o mesmo não
deveria ocorrer no sentido inverso. Afora este aspecto, a integração plano/orçamento,
ao ser aplicada no nível mais desagregado das ações, resultou em prejuízo da transpa-
rência na alocação de recursos e do controle social. Isto porque a lógica da elaboração
orçamentária dominou a concepção das ações do PPA, muitas delas amplas e genéricas o
suficiente para abarcar várias das ações efetivas dos órgãos setoriais e, dessa forma, evitar
o engessamento orçamentário na sua execução – tal mecanismo ficou conhecido como
“ações guarda-chuva”. Com isto, os programas e ações do PPA deixam de ser a referência
ao processo de planejamento interno dos órgãos da administração pública, sendo en-
campados mais como uma extensão do processo orçamentário, e percebidos, em alguns
casos, como um entrave burocrático a um planejamento mais racional e flexível.
A seguir, a título de ilustração, são apresentadas evidências de problemas na relação
entre os processos de planejamento de alguns ministérios selecionados e os programas
formulados no PPA. Dois dos exemplos descritos dizem respeito a áreas com experiência
consolidada em processos de planejamento: saúde e trabalho. Para compor o quadro,
foi também incluída uma nova área de atuação do governo: a de promoção de políticas
para as mulheres.
Planejamento e priorização na área de saúde
O PPA 2008-2011 trouxe uma mudança significativa no número de programas da área
de saúde: 24 no período 2004-2007 para 13 no novo plano.6 Tal mudança mostrou-se
importante, uma vez que, no período de 2000 a 2007, verificou-se relativa estabilidade
na programação do Ministério da Saúde. As poucas alterações observadas então não
implicaram mudanças expressivas no plano, posto que, essencialmente, os recursos
financeiros permaneceram concentrados em dois ou três programas principais.
É curioso observar que, apesar de o conjunto de programas não ter se modificado
significativamente entre os PPAs 2000-2003 e 2004-2007, algumas ações orçamentárias
foram incluídas em programas específicos para expressar as priorizações de governo.
Entre estas ações sublinham-se aquelas relacionadas ao Farmácia Popular e às áreas de
saúde bucal e atenção às urgências e emergências. Em 2003, o governo lançou o Pro-
grama Farmácia Popular do Brasil, com o objetivo de ampliar o acesso da população a
medicamentos essenciais. Esta iniciativa nunca se conformou enquanto um programa
do PPA propriamente, tendo sido inserida no plano em ações do Programa Assistência
Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Também no caso do Brasil Sorridente – nome fantasia
utilizado pelo Ministério da Saúde (MS) para a Política Nacional de Saúde Bucal –, a
visualização orçamentária nunca foi trivial, envolvendo ações de vários programas, entre

6. São os seguintes os programas: Aperfeiçoamento do Trabalho e da Educação na Saúde; Assistência Ambulatorial e Hospitalar
Especializada; Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos; Atenção Básica em Saúde; Ciência, Tecnologia e Inovação
no Complexo da Saúde; Gestão da Política de Saúde; Implementação da Política de Promoção da Saúde; Promoção da Ca-
pacidade Resolutiva e da Humanização na Atenção à Saúde; Regulação e Fiscalização da Saúde Suplementar; Saneamento
Rural; Segurança Transfusional e Qualidade do Sangue e Hemoderivados; Vigilância e Prevenção de Riscos Decorrentes da
Produção e do Consumo de Bens e Serviços; e Vigilância, Prevenção e Controle de Doenças e Agravos.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 11


eles o Atenção Básica em Saúde, no qual constava uma ação que consistia no repasse de
recursos para implantação de equipes de saúde bucal nos municípios. Quanto à atenção
às urgências e emergências, a ação mais visível era então o SAMU 192, que consistia em
uma central de regulação da atenção às ocorrências, além do repasse de recursos para
os governos locais para compra de ambulâncias. Em termos concretos, esta forma de
incluir no PPA iniciativas, estratégias e programas considerados prioritários resultava
em dificuldade para contemplá-los no orçamento e no próprio plano. Para fazê-lo,
fazia-se necessário recorrer a informações internas do ministério sobre a execução de
suas ações.
Nesse contexto, o lançamento do Mais Saúde, em dezembro de 2007, representa
uma tentativa de reorganizar os planos de investimento e revelar as prioridades do MS.7
A iniciativa é composta por sete eixos: promoção da saúde, atenção à saúde, complexo
industrial da saúde, força de trabalho em saúde, qualificação da gestão, participação e
controle social, e cooperação internacional. Cabe destacar que esta foi concebida quando
o PPA 2008-2011 se encontrava então em processo de elaboração. É revelador o fato de
que o documento que apresenta o Mais Saúde mencione o PPA apenas no que se refere
às estimativas de recursos para a área.8
Outra questão relevante na área é o fato de terem sido mencionadas, para cada um dos
eixos que integram o Mais Saúde, medidas de política que ora são programas, ora ações do
PPA, e, não raro, iniciativas que parecem reordenar ações. Por exemplo: o PPA 2008-2011
inclui um programa denominado Implementação da Política de Promoção à Saúde. Por sua
vez, no eixo promoção da saúde do Mais Saúde verificam-se medidas como os Brasileirinhos
Saudáveis e a expansão das ações de planejamento familiar, entre outros, que mais parecem
ter relação orçamentária com outros programas do PPA, como o Promoção da Capacidade
Resolutiva e da Humanização na Atenção à Saúde e o Atenção Básica em Saúde.
Em meio a essas iniciativas, deve-se ressaltar ainda o Sistema de Planejamento do
Sistema Único de Saúde (PlanejaSus), cujo objetivo principal consiste em coordenar o
processo de planejamento do Sistema Único de Saúde (SUS) nas três esferas de governo.
Esta concepção afigura-se particularmente interessante para programas amplamente
descentralizados, como é o caso da maioria dos programas e ações na área da saúde.
O planejamento das políticas de trabalho e renda
Há dez programas sob a responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
no Plano Plurianual 2008-2011.9 Em relação ao PPA 2004-2007, percebe-se que a única
alteração de relevo residiu na exclusão do Programa Primeiro Emprego – suas ações
encontram-se hoje sob a guarida do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem),
sob responsabilidade da Secretaria-Geral da Presidência da República, por meio da
Secretaria Nacional da Juventude.

7. Para mas detalhes sobre essa iniciativa, ver o capítulo Saúde desta edição.
8. “O Programa, ora apresentado à sociedade brasileira, contempla 73 medidas e 165 metas num total de R$ 89,4 bilhões,
estando R$ 65,1 bilhões garantidos no Plano Plurianual (PPA) e R$ 24,3 bilhões destinados à expansão das ações. Esse
conjunto de iniciativas permite consolidar a percepção estratégica de que a Saúde constitui uma frente de expansão que
vincula o desenvolvimento econômico ao social. Insere-se, portanto, na perspectiva aberta pelo governo do Presidente Lula,
ao lançar uma estratégia nacional de desenvolvimento sinalizada pela formulação e pela apresentação do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) à sociedade brasileira.” (Ministério da Saúde, 2008, p.7).
9. Os programas do MTE são os seguintes: Democratização das Relações de Trabalho; Crédito Orientado ao Desenvolvimento
e Geração de Emprego e Renda; Economia Solidária em Desenvolvimento; Erradicação do Trabalho Escravo; Integração das
Políticas Públicas de Emprego, Trabalho e Renda; Microcrédito Produtivo Orientado; Qualificação Social e Profissional; Rede
de Proteção ao Trabalho; Segurança e Saúde no Trabalho; e Gestão da Política de Trabalho, Emprego e Renda.

12 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


De maneira geral, o conjunto dos programas do MTE tem-se mantido bastante
estável ao longo dos diversos planos. O PPA 2004-2007 na verdade limitara-se tão-
somente a incluir dois novos programas (Primeiro Emprego e Economia Solidária em
Desenvolvimento), acrescidos posteriormente de um terceiro (Microcrédito Produtivo
Orientado). Nos demais programas, deu-se apenas a reunião de ações existentes no plano
anterior. Desde então, o único programa que sofreu reajustes substanciais no seu conjunto
de ações foi o Economia Solidária. Isto provavelmente pelo fato de a maior parte dos
gastos do MTE estar pré-definida em seus programas, pois que se trata de transferências
e benefícios constitucionais (BNDES,10 seguro-desemprego e abono salarial), acordos
judiciais (complemento da atualização do FGTS)11 e custeio de sistemas já estruturados
(fiscalização, registro sindical, segurança e saúde do trabalhador).
Não obstante a estabilidade da estrutura de programas, há dois tipos de iniciativas
pouco transparentes nos planos plurianuais que comandam uma parcela importante dos
esforços do MTE. A primeira corresponde à definição de linhas de crédito, por meio da
alocação de depósitos especiais do Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT). Dado serem
recursos extra-orçamentários, fazem parte de programas do PPA – em geral o programa
de crédito, ex-Proger), mas não são objeto da discussão orçamentária. Porém, a definição
de depósitos especiais obedece a um trabalho de planejamento que leva em conta as
disponibilidades do FAT, a definição de critérios de acesso, a equalização da taxa de juros
etc. Este processo se dá no âmbito do Conselho Deliberativo do FAT (Codefat), sendo
hoje talvez o item predominante da pauta desta instância de participação social.
A atuação normativa é o outro aspecto da ação do MTE insuficientemente re-
presentada nos instrumentos de planejamento. Apenas o custeio do Fórum Nacional
do Trabalho figura nos planos – tanto no atual quanto no anterior. Contudo, mais do
que simplesmente sediar as discussões, boa parte da ação da Secretaria de Relações de
Trabalho consiste na elaboração de proposta de reforma das normas trabalhistas, na
intervenção sobre a tramitação de matérias no Congresso, e na articulação junto a mo-
vimentos sociais e operadores do direito, entre outros. E isto não surge enquanto uma
exclusividade do atual governo: a agenda dos ministros do Governo FHC era igualmente
dominada pelo tema.
Cabe apontar também outros compromissos que definem a ação do MTE. Em re-
lação às iniciativas transversais (PAC, Agenda Social, Programa Nacional de Juventude),
a participação do ministério se dá quase sempre via custeio de cursos de qualificação
profissional. Assim, observa-se um espaço importante de decisão que, embora limitado
do ponto de vista dos recursos, se constrói internamente às três principais ações orça-
mentárias do Programa Qualificação Social e Profissional.
O MTE não conta com um ciclo de conferências setoriais para o conjunto das
políticas de trabalho e renda, não obstante terem tido lugar dois congressos do sistema
público de emprego e uma conferência nacional de economia solidária. Ou seja, não há
um plano ou um conjunto de diretrizes pactuadas junto à representação da sociedade
civil. O que mais se assemelha a um plano global é a Agenda Nacional do Trabalho De-
cente, um compromisso pactuado junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A agenda deve ser implementada por meio de um programa nacional, incluído no PPA e

10. BNDES: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.


11. FGTS: Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 13


coordenado por um comitê executivo interministerial de 16 pastas. Na prática, o progra-
ma reúne aqueles preexistentes, tanto do âmbito do MTE quanto de outros ministérios,
em torno de três grandes prioridades: gerar mais e melhores empregos, com igualdade de
oportunidades de tratamento; erradicar o trabalho escravo e eliminar o trabalho infantil,
em especial suas piores formas; e fortalecer os atores tripartites e o diálogo social como
um instrumento de governabilidade democrática. Não há, contudo, mecanismos de
monitoramento e avaliação que estabeleçam conexões entre os resultados dos programas
e o alcance das prioridades, o que cria o risco de que o compromisso se torne vazio em
termos da responsabilização do governo.
Por fim, registre-se um movimento digno de nota ocorrido em 2007, que foi a apro-
vação de um PPA-Codefat. Este consiste em uma proposta, legitimada junto ao conselho,
que contém tanto a programação qualitativa quanto a previsão de recursos. Embora seu
objetivo precípuo tenha sido pressionar o Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão (MPOG) no tocante à alocação de recursos ao MTE, a iniciativa poderia evoluir
para um plano de ação socialmente pactuado para a política de emprego e renda.
O planejamento das políticas para as mulheres no nível federal
As políticas para as mulheres são implementadas por diferentes órgãos do governo federal.
Neste contexto, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) tem como
papel principal a articulação destas iniciativas, o fomento a ações inovadoras, a qualifi-
cação das ações existentes a partir da perspectiva da igualdade de gênero e, finalmente,
ainda que de maneira marginal, a execução de algumas ações sob a sua responsabilidade.
Com isto, a secretaria deveria, ao menos em princípio, coordenar, em alguma medida, o
planejamento das políticas para as mulheres no governo federal. São inúmeros os fatores
– de ordem administrativa, política, cultural, entre outros – que explicam a dificuldade
no exercício deste papel.
O principal instrumento utilizado até o momento foi o Plano Nacional de Políticas
para as Mulheres (PNPM). O I PNPM foi elaborado a partir das diretrizes aprovadas
na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em 2004. O plano
reunia ações de diferentes ministérios e foi implementado entre 2004 e 2007. Pode-se
avaliar que a maior parte das ações executadas já fazia parte do planejamento setorial dos
ministérios, que, ainda assim, encontram permanente dificuldade em “prestar contas” para
a SPM a respeito do que foi ou não realizado, do número de beneficiárias e, sobretudo,
dos valores alocados e gastos em determinada ação – lembre-se que a ação constante do
PNPM na imensa maioria dos casos não correspondia a uma ação no PPA.
O I PNPM foi avaliado na II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres,
realizada em agosto/2007, e, a partir de suas diretrizes, foi elaborado o II Plano Nacional
de Políticas para as Mulheres, ainda mais pontuado de ações, e com o envolvimento de um
número ainda maior de ministérios. O plano é acompanhado por um comitê composto por
representantes destes ministérios, o que permite algumas trocas de informações, e também
algum exercício de pressão por informações ou até pela implementação de determinada
ação. Não se pode dizer, entretanto, que se verifique de fato um papel de coordenação, e
muito menos que exista uma orientação ou um direcionamento único e homogêneo das
ações do governo federal voltadas para as mulheres. Neste sentido, dificilmente se pode
falar em uma política nacional para as mulheres propriamente dita.
O PPA não reflete nenhuma dessas questões, e os PNPMs são de fato instrumentos
alternativos que pouco organizam a atuação governamental. Na ausência de uma

14 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


política unificada e de um orçamento mulher, contudo, o PPA da SPM é considerado
para avaliar se os recursos para as políticas para as mulheres aumentaram ou diminuíram,
por exemplo. O plano engloba apenas algumas ações executadas pela secretaria, sendo
que a maior parte de sua atuação não se reflete no PPA. E isto não somente porque a
articulação e as parcerias não figuram ali, mas também porque importantes iniciativas –
como o chamado Programa Mulher e Ciência –12 desaparecem no âmbito de uma ação
mais genérica.
Se os instrumentos de planejamento de que o governo atualmente lança mão
apresentam sérias limitações para a grande maioria dos órgãos, no caso de uma secre-
taria especial esta questão se agrava sobremaneira. Afinal, a SPM tem curto histórico
institucional, tem a atribuição de trabalhar uma questão que perpassa todas as áreas
de atuação governamental, experimenta uma permanente necessidade de reafirmar sua
importância, e enfrenta a necessidade de se sustentar politicamente. Tudo isto se dá num
contexto em que “quanto mais recursos orçamentários, mais poder”. Daí que o papel
de articulação a ser desempenhado se conforma enquanto uma difícil missão, especial-
mente em virtude da estrutura da administração pública federal, na qual só se trabalha
setorialmente, e cujos integrantes, além de apresentarem resistência, simplesmente não
sabem atuar de maneira intersetorial. As iniciativas promovidas neste sentido – comitês,
conselhos, planos – mostram-se bastante infrutíferas em sua maioria. Acabam por se
configurar mais enquanto espaços nos quais cada representante informa o que seu órgão
vem fazendo do que enquanto fóruns articuladores e potencializadores da ação pública.
Certamente, guardam o mérito de reunir atores que normalmente não se reúnem, e
ainda o potencial de alavancar iniciativas inovadoras. Estas duas qualidades, contudo,
mereceriam ser mais bem exploradas.
2 A Agenda Social e seu significado na definição de prioridades de governo
A Agenda Social foi construída ao longo de 2007, em um processo coordenado pela
Casa Civil, e que contou com a participação de representantes do Ministério do Plane-
jamento, Orçamento e Gestão e de órgãos setoriais com iniciativas relacionadas à área
social. As reuniões e discussões sobre a proposta ocorreram em paralelo aos trabalhos
de elaboração do PPA 2008-2011. Assim, ao mesmo tempo em que os órgãos definiam
seus programas e ações para o novo PPA, a Casa Civil coordenava reuniões para a seleção
do que comporia a Agenda Social do governo federal.
A partir das discussões, foram selecionados os eixos organizadores da agenda, que
tem a Câmara de Políticas Sociais da Presidência da República como instância decisória,
mas cuja coordenação é descentralizada: cada eixo está sob responsabilidade de um órgão
específico. É importante salientar que tal opção contrasta com a que prevaleceu no caso
do PAC, que é tanto gerenciado quanto monitorado pela Casa Civil.
Em linhas gerais, os grandes objetivos da Agenda Social são: reduzir a desigualdade
social; consolidar uma política garantidora de direitos; buscar a gestão integrada das
políticas, promovendo oportunidades; e incentivar a pactuação federativa entre União,
estados e municípios. O box apresenta os eixos que integram a proposta.

12. Programa Mulher e Ciência corresponde a um nome de utilização corrente, mas não oficial.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 15


AGENDA SOCIAL
Ampliação dos benefícios do Bolsa Família
1. Redução das Desigualdades Geração de oportunidades às famílias pobres
Ampliação dos serviços socioassistenciais
2. Juventude Integração dos programas de juventude
Mulheres
Quilombolas
Povos indígenas
3. Direitos da Cidadania Criança e adolescente
Pessoas com deficiência
Documentação civil básica
Povos e comunidades tradicionais
Idosos
4. Cultura Ampliação das políticas de cultura
5. Educação Maior qualidade da educação
6. Saúde Ampliação das políticas de saúde
7. Segurança Segurança pública com cidadania
8. Territórios da Cidadania Superação da pobreza rural

Apesar de terem sido construídas em processo paralelo à elaboração do PPA, as inicia-


tivas da Agenda Social remetem a ações que integram o plano, sem haver necessariamente
uma correspondência direta entre elas – daí o tratamento alternativo de iniciativas em
vez de ações. Isto porque, por razões de execução orçamentária, algumas ações desenhadas
no PPA são mais genéricas, conhecidas como ações “guarda-chuva”, conforme referido
anteriormente. Neste sentido, cumpre salientar que a transparência na implementação das
iniciativas da agenda, cujo recursos estão alocados em diferentes programas e ações do PPA,
exigirá a montagem de um sistema de acompanhamento e monitoramento específico.
A seguir apresenta-se uma breve descrição e análise dos eixos integrantes da Agenda
Social.
Redução das desigualdades
O primeiro eixo da Agenda Social tem como objetivo principal ampliar o escopo e a
magnitude de atuação do governo federal no combate às desigualdades. Para tanto,
definiu-se como frentes a ampliação dos benefícios do Bolsa Família, a geração de opor-
tunidades às famílias pobres, e a ampliação dos serviços socioassistenciais. Tais iniciativas
estão majoritariamente sob responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS), mas envolvem ainda os ministérios da Educação, do Trabalho
e Emprego (MTE), e do Desenvolvimento Agrário.
Instituído em 2003 como estratégia de garantia de renda para as famílias em situação
de pobreza e extrema pobreza, o Programa Bolsa Família (PBF) atende atualmente cerca
de 10,8 milhões de famílias. O valor do benefício pode variar de R$ 20,00 a R$ 182,00,
a depender da composição e do perfil das famílias – em setembro de 2008, o valor médio
pago era de R$ 85,92. Como parte da política de ampliação dos benefícios do PBF, dois
reajustes foram concedidos recentemente. O benefício básico13 passou de R$ 50,00 para
R$ 58,00, em 2007, e depois para R$ 62,00, em 2008; o benefício variável14 passou,
no primeiro momento, de 15,00 por criança para R$ 18,00, e posteriormente para e
R$ 20,00. Outra importante mudança no Bolsa Família foi a inclusão de jovens com 16
e 17 anos, que, desde março de 2008, contam com o chamado benefício variável jovem
(BVJ), que possibilita o pagamento às famílias de até dois benefícios de R$ 30,00 por
adolescente nesta faixa etária.

13. O benefício básico é pago às famílias consideradas extremamente pobres, com renda mensal per capita de até
R$ 60,00 por pessoa.
14. O benefício variável é pago às famílias pobres (com renda mensal per capita de até R$ 120,00), desde que contem com
crianças e adolescentes até 15 anos, limitando-se a três o número máximo de benefícios por família.

16 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Com vistas ao fomento à geração de oportunidades às famílias beneficiárias do
PBF, o governo federal criou no MDS a Secretaria de Articulação Institucional e Parce-
rias, que tem como objetivo principal articular ações de promoção social. Uma de suas
frentes de atuação volta-se para a promoção da qualificação e da inserção profissional
dos beneficiários do programa. Em outra linha, o ministério vem desenvolvendo ações
de inclusão produtiva, microcrédito e economia solidária – esta última em parceria com
o Ministério do Trabalho e Emprego.
Paralelamente a essas ações, a geração de oportunidades para as famílias pobres
urbanas e rurais também é promovida por meio de iniciativas como: a alfabetização
de adultos; o apoio à comercialização da safra dos agricultores familiares via aquisição de
alimentos para doação às famílias em situação de insegurança alimentar; e a promoção
do acesso à água, por intermédio do apoio à construção de cisternas para armazenamento
de água da chuva no Semi-Árido.
A última iniciativa deste eixo trata da ampliação de serviços socioassistenciais.
Para cumprir o compromisso, o MDS assumiu dois desafios. Primeiramente, pretende
ampliar o Programa de Atenção Integral às Famílias (PAIF) – um serviço continuado
de proteção social básica dirigido ao atendimento de famílias em situação de vulnera-
bilidade social. Em segundo lugar, está prevista a expansão, ainda em 2008, da rede de
Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e de Centros de Referência Especia-
lizada em Assistência Social (Creas).
Juventude
Coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República, este eixo objetiva avançar
na integração dos programas voltados para os jovens, ampliando o número de benefi-
ciários. O novo ProJovem foi criado para estender e aprimorar a articulação entre os
programas de cunho emergencial (ProJovem, Escola de Fábrica, Consórcio Nacional de
Juventude e Saberes da Terra) e destes com ações mais estruturantes nas áreas de educação,
cultura, esporte e saúde. O novo ProJovem abriga as ações anteriores em um modelo
de gestão compartilhada entre a Secretaria Nacional de Juventude da Presidência da
República (SNJ/PR), o Ministério da Educação (MEC), o MDS, o MTE e o Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA).
O novo programa tem por objetivo a reintegração dos jovens ao processo educacio-
nal, a sua qualificação profissional e o acesso a ações de cidadania, esporte, cultura e lazer.
Divide-se em quatro modalidades: adolescente; trabalhador; campo; e urbano. Propõe
a unificação do valor do auxílio financeiro, bem como a harmonização dos currículos
e da carga horária. Com isso, é meta do governo federal obter ganhos de escala com o
novo desenho institucional.
O ProJovem Adolescente tem como público-alvo jovens de 15 a 17 anos cujas famílias
sejam participantes do Programa Bolsa Família ou que se encontrem em situação de risco
social, independentemente da renda familiar. As demais modalidades do programa aten-
dem jovens de 18 a 29 anos e, diferentemente do ProJovem Adolescente, ofertam bolsas de
R$ 100,00 por mês. O ProJovem Urbano visa elevar o grau de escolaridade, com a conclusão
do ensino fundamental e a qualificação profissional do público atendido, e busca fomentar o
desenvolvimento de ações comunitárias e de cidadania. O ProJovem Campo, que igualmente
objetiva a elevação da escolaridade e a qualificação profissional, é direcionado para jovens
trabalhadores da agricultura familiar. Utiliza uma metodologia de regime de alternância
entre atividades na sala de aula e atividades desenvolvidas na família e na comunidade,

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 17


com um calendário que respeita o ciclo agrícola. Por sua vez, o ProJovem Trabalhador visa
preparar jovens desempregados, cujas famílias tenham renda per capita de até ½ salário
mínimo, para o mercado de trabalho e ocupações alternativas geradoras de renda.15
Direitos de Cidadania
Este eixo envolve ações que buscam ampliar a escala de atendimento e o acesso a direitos
por parte dos seguintes grupos sociais: mulheres, crianças e adolescentes, pessoas com
deficiência, idosos, quilombolas, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais.
Objetivam também garantir o direito à documentação civil básica, de modo a erradicar
o sub-registro de nascimento e expandir o acesso ao registro civil.
Quando da discussão da inserção da temática dos direitos das mulheres na Agenda
Social, optou-se por limitar o tema ao enfrentamento da violência. Apesar de ser um pro-
grama do PPA e de responsabilidade da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
(SPM), a inserção do chamado Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra
as Mulheres na agenda traz dois importantes trunfos à iniciativa: um incremento signi-
ficativo de recursos e o aumento do potencial de articulação dos diferentes ministérios.
Os objetivos do pacto são reduzir os índices de violência contra as mulheres, promover
mudança cultural no sentido do respeito à diversidade de gênero e valorização da paz,
e garantir e proteger os direitos das mulheres em situação de violência. Para tanto,
organiza-se em quatro áreas estruturantes, que são: consolidação da Política Nacional
de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, aí incluída a implementação da Lei
Maria da Penha; combate à exploração sexual e ao tráfico de mulheres; promoção dos
direitos humanos das mulheres em situação de prisão; e promoção dos direitos sexuais
e reprodutivos e enfrentamento da feminização da Aids. Dado que o problema da vio-
lência doméstica contra as mulheres envolve questões variadas e deve ser enfrentado por
meio de políticas integradas, caso o pacto seja bem-sucedido em sua implementação,
as ações neste âmbito, pela primeira vez no nível federal, serão potencializadas por meio
da articulação entre diferentes ministérios. Com isso, o pacto apresenta a vantagem de
representar uma priorização temática, mas também a imensa dificuldade de requerer
coordenação intersetorial para alcançar êxito e se diferenciar de iniciativas anteriores.
Por sua vez, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) coordenou os grupos
que elaboraram as propostas para pessoas com deficiência e crianças e adolescentes, bem
como para a garantia de documentação civil básica, com o envolvimento de diversos
órgãos, numa lógica de complementaridade das ações em políticas específicas.16
O primeiro conjunto de iniciativas, lançado em setembro de 2007, foi o referente
às pessoas com deficiência, e seu objetivo é promover a inclusão social deste segmento,
equiparando oportunidades. Contempla diversas ações para garantir o acesso desta
população a necessidades básicas, como moradia e escolas acessíveis, além de transporte
adaptado e ampliação do atendimento da demanda reprimida de órteses e próteses na
área da saúde. Adicionalmente, a proposta é investir em campanhas educativas que
combatam o preconceito contra as pessoas com deficiência.
As iniciativas da Agenda Social voltadas para crianças e adolescentes foram lançadas em
outubro de 2007 e visam ao fortalecimento do núcleo familiar e à intervenção em territó-

15. Para mais detalhes sobre o novo ProJovem, ver o capítulo Direitos Humanos e Cidadania do número 15 deste periódico.
16. Até o momento ainda não foi elaborado um plano específico para o subeixo Idosos.

18 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


rios de alta vulnerabilidade para a redução da violência que atinge crianças e adolescentes.
Inclui ações de prevenção às situações de violência, centradas no fortalecimento e na arti-
culação das políticas existentes nos municípios-alvo do Programa Nacional de Segurança
Pública com Cidadania (Pronasci); a promoção do desenvolvimento infanto-juvenil por
meio de núcleos esportivos do Segundo Tempo; espaços culturais (Pontos de Cultura); e a
ampliação da oferta de vagas em creches. Estão previstas também ações para o retorno ao
âmbito familiar de adolescentes abrigados por pobreza, e a qualificação da rede de acolhi-
mento institucional. Para os adolescentes em conflito com a lei, as ações têm por meta a
instituição de centros de formação para os socioeducadores, a construção de unidades con-
forme padrão arquitetônico e pedagógico adequado à prática socioeducativa, e a ampliação
massiva das vagas oferecidas em liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade.
Por fim, está prevista ainda a instituição de um Observatório dos direitos da criança e do
adolescente, centrado na gestão e no monitoramento destas iniciativas.
Em dezembro de 2007, foram consolidadas as ações para a garantia de documen-
tação civil básica. Para tanto, a proposta articula campanhas de mídia, comitês locais de
mobilização coordenados pelos gestores do Programa Bolsa Família, e mutirões sistemá-
ticos nos 60 bolsões de sub-registro identificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) – além de avançar até junto a populações específicas (indígenas,
quilombolas, ribeirinhos e trabalhadores rurais, por exemplo). Será também ampliada
a rede de serviços de registro civil, com sua implantação em municípios não atendidos,
expansão do atendimento em municípios com cobertura deficiente, e criação de serviços
de registro civil itinerantes e nas maternidades. Está prevista a implantação de novos
pontos de emissão da carteira de trabalho, e expansão, com auxílio dos Cras, do serviço
de documentação nas áreas que compõem os territórios da cidadania. Para a população
de baixa renda será garantida a gratuidade do registro civil de nascimento, bem como
do CPF e do RG.17
Coordenadas pela Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir),
as iniciativas para as comunidades remanescentes de quilombos, em especial as titu-
ladas e certificadas nos Territórios da Cidadania, objetivam melhorar as condições de
vida dos quilombolas. Na Agenda Social estão incluídas as ações de acesso a terra, com
o respectivo reconhecimento, a demarcação, e sua titulação. As comunidades também
serão atendidas com ações de fomento à inclusão produtiva e para a melhoria de infra-
estrutura e da qualidade de vida.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) coordena as ações da agenda voltadas para
os povos indígenas, que compreendem a proteção das terras – com a regularização fun-
diária e proteção de índios isolados –, a articulação de ações setoriais para promover a
qualidade de vida nos territórios indígenas, e a documentação de línguas indígenas.
Cultura
Este eixo da Agenda Social parte do diagnóstico circunstanciado das dificuldades de
democratização da cultura no país. Organiza-se em torno de três diretrizes, quais sejam:
i) ampliar o acesso aos bens e serviços culturais e meios necessários para a expressão
simbólica, promovendo a auto-estima, o sentimento de pertencimento, a cidadania, o
protagonismo social e a diversidade cultural; ii) qualificar o ambiente social das cidades
e do meio rural, estendendo a oferta de equipamentos e dos meios de acesso à produ-

17. CPF: Cadastro de Pessoas Físicas/Ministério da Fazenda; RG: carteira de identidade.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 19


ção e à expressão cultural; e iii) gerar oportunidades de trabalho, emprego e renda para
trabalhadores, micro, pequenas e médias empresas e empreendimentos da economia
solidária do mercado cultural brasileiro.
Nesse eixo, a Agenda Social se organiza em torno de ações dos programas do Minis-
tério da Cultura, tendo sido definido como público focal jovens, crianças e adolescentes,
trabalhadores e famílias de baixa renda. A iniciativa apresenta um escopo territorial bem
definido, tendo como objetivo alcançar, prioritariamente, as áreas com índices signifi-
cativos de violência, baixa escolaridade e outros indicadores de baixo desenvolvimento,
situadas nos estados, no Distrito Federal e nos municípios. Dessa forma, centraliza-se em
favelas, periferias e áreas degradadas, centros históricos e metropolitanos, municípios com
maiores índices de violência, municípios com menores índices de educação básica, cidades
com até 20 mil habitantes, quilombos, territórios indígenas, comunidades artesanais, e
os “territórios de cidadania”.
Educação
Constituído por ações destacadas do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE),
este eixo da Agenda Social teve suas linhas gerais divulgadas em março de 2007.18
Abrange a educação básica – inclusive programas destinados a alfabetizar os adultos –,
a educação profissional técnica e tecnológica, e o ensino superior. Entre as inovações
trazidas encontra-se a estratégia de responsabilização das outras instâncias governa-
mentais em torno de compromissos com a melhoria da qualidade da educação básica,
mensurada pelo novo indicador criado pelo MEC, o Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (Ideb). Nova sistemática de apoio técnico e financeiro do ministério
a estados e municípios, foi instituída com a substituição das transferências voluntárias,
até então realizadas mediante convênios fragmentados, pela proposta de elaboração de
Planos de Ação Articulada (PAR). Dessa forma, as transferências voluntárias passam
a obedecer a um plano estratégico plurianual orientado em quatro dimensões: gestão;
relação com a comunidade; projeto pedagógico; e infra-estrutura. O MEC elegeu os
municípios com piores desempenhos no Ideb em 2005 como prioridade neste apoio,
tendo também incluído as grandes cidades, por concentrarem em suas periferias escolas
com insuficientes condições de oferta educacional. Das iniciativas do PDE integram
a Agenda Social:
• alfabetização de jovens e adultos, com prioridade para os municípios com taxas
mais elevadas de analfabetismo;
• expansão da formação e capacitação de professores, com a implantação do Sistema
Universidade Aberta do Brasil e de pólos de apoio presencial;
• apoio à construção, reforma e aquisição de equipamentos para creches e escolas
públicas de educação infantil (ProInfância);
• expansão da educação profissional e tecnológica;
• reestruturação e expansão das universidades federais, com prioridade para a inte-
riorização da rede de escolas federais e a garantia de vagas em universidades por
meio de bolsas do ProUni;
• eletrificação de escolas mediante o Programa Luz para Todos;

18. Para discussão sobre o Plano de Desenvolvimento da Educação (PED), ver o número 15 deste periódico, assim como o
capítulo Educação, adiante, neste volume.

20 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


• implantação de laboratórios de informática em todas as escolas públicas; e
• apoio à expansão do transporte escolar, com o Programa Caminho da Escola.
Justifica-se o destaque dessas ações como iniciativas da Agenda Social pelos impactos
que podem gerar sobre a redução de desigualdades de oportunidades educacionais, uma
vez que favorecem segmentos menos privilegiados. A inclusão da formação de profes-
sores na agenda, por seu turno, deve-se ao papel estratégico desempenhado por este
profissional e à insuficiência verificada na área. Do mesmo modo, eleger a implantação
de laboratórios de informática como iniciativa da agenda é reconhecer que a educação
pública deve garantir a todos a oportunidade de dominar os instrumentos e linguagens
essenciais à vida contemporânea. Considerando-se, entretanto, o objetivo da transver-
salidade proposto pela agenda, não basta eleger tais iniciativas se a articulação com os
demais eixos não for perseguida.
Saúde
Em relação à área de saúde, as prioridades da Agenda Social foram destacadas do Mais
Saúde, que apresenta um plano detalhado de investimento e atuação de caráter prioritário
do Ministério da Saúde para o período de 2008-2011. São pontos significativos desta
iniciativa a reiteração do elo existente entre saúde e desenvolvimento socioeconômico,
a necessidade de articulação da saúde com outras políticas públicas, e a percepção da
importância do setor sob o ponto de vista da geração de emprego, renda e produção.
A agenda mantém todas as iniciativas/ações do Mais Saúde, reagrupando-as em torno
de quatro eixos: i) promoção e atenção à saúde; ii) mais acesso e melhor qualidade;
iii) gestão e participação; e iv) produção, desenvolvimento e cooperação.
Em linhas gerais, a agenda contempla as prioridades que, nos últimos tempos, têm
sido definidas para a área da assistência à saúde: reforço da atenção básica por meio da
expansão do Saúde da Família, do Brasil Sorridente e do trabalho de Agentes Comunitá-
rios de Saúde, agora acrescida de atividades a serem desenvolvidas no âmbito das escolas.
A melhor qualificação dos profissionais de nível superior do Saúde da Família é também
iniciativa relevante no reforço à atenção básica.
Além dessas iniciativas do Mais Saúde que integram a Agenda Social, destacam-se
ainda:
• o Saúde na Escola (avaliação clinica, nutricional, saúde bucal e psicossocial);
• o tratamento da hipertensão e do diabetes;
• o planejamento familiar (contraceptivos, vasectomias, laqueaduras e reprodução
assistida); e
• a ampliação do acesso a serviços especializados (oncologia, hemodiálise, cardiolo-
gia, neurocirurgia, traumato-ortopedia, oftalmologia e saúde auditiva).
No eixo de acesso e qualidade estão agrupadas as ações de investimento em infra-
estrutura, duplicação da cobertura do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
(Samu), e ampliação de serviços especializados. Na gestão são destacadas a implantação
de complexos reguladores, com a finalidade de melhorar o acesso a internações em todos
os sistemas estaduais e em todos os municípios com mais de 100 mil habitantes. Fazem
parte deste eixo ainda a implantação de novas formas de compra de serviços (contratu-
alização com hospitais filantrópicos) e de gestão (fundação estatal).

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 21


Segurança
O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) integra a Agenda
Social para dar resposta às demandas em torno do controle da criminalidade e do aperfei-
çoamento da política de segurança. Seu objetivo é coordenar a implementação de ações
de segurança pública e políticas sociais em territórios com altos índices de violência,
localizados inicialmente em 12 áreas metropolitanas prioritárias. Neste sentido, este
eixo da agenda apresenta uma perspectiva inovadora de conjugação entre prevenção,
controle e repressão da criminalidade, com o enfrentamento das raízes socioculturais
do crime e da violência.
Para implementar tal proposta, o Pronasci prevê ações estruturais e programas
locais. As primeiras envolvem a modernização das instituições de segurança pública e
do sistema prisional, a valorização dos profissionais de segurança pública, e o enfrenta-
mento da corrupção policial e do crime organizado, por exemplo. Os programas locais
se traduzem em ações de caráter social, muitas delas já realizadas pelo governo federal e
que deverão ser especialmente direcionados ao público-alvo do programa (adolescentes
e jovens na faixa etária de 15 a 29 anos que se encontrem em situação de risco social,
sejam egressos do sistema prisional, estejam em conflito com a lei e/ou sejam membros
de famílias expostas à violência).
Um mérito do Pronasci é valorizar o princípio de integração entre diferentes ações
do Estado e da sociedade, uma vez que a prevenção da violência inclui a articulação
de atividades de caráter múltiplo, implementadas pelo poder público (União, estados
e municípios), mas também por organizações não governamentais (ONGs) e outros
agentes sociais. No entanto, é grande a dúvida sobre as possibilidades de se vencerem
as dificuldades de composição de interesses inerentes à reunião de tantas ações e atores.
A gestão do programa talvez seja o maior desafio a ser enfrentado, levando-se em conta
ainda que as próprias comunidades atendidas também devem participar dos processos
das decisões e das avaliações do programa.
Territórios da Cidadania
No âmbito do desenvolvimento rural, a Agenda Social está organizada em torno do
Territórios da Cidadania, um esforço de priorização e de integração de programas multis-
setoriais em determinados espaços rurais, que passam a ter uma dimensão microrregional
reconhecida pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. A iniciativa compreende um
amplo conjunto de ações que devem atuar de forma sinérgica de modo a garantir, apoiar
e incentivar o desenvolvimento sustentável nos territórios – ou áreas – selecionados.
Com base na programação dos órgãos da União que têm suas ações definidas no PPA,
foram selecionadas todas que pudessem contribuir direta e indiretamente para propiciar
a elevação das condições de vida da população, o crescimento econômico e a inclusão
social em dado espaço territorial. A partir de objetivos tão amplos, foi estabelecida a
necessidade de abranger as seguintes áreas: econômica, social, e de infra-estrutura, com
a identificação de 133 ações.
Tal esforço advém de uma nova visão sobre o conceito de ruralidade, o qual trans-
cende a simples delimitação zona rural/zona urbana, ao abranger as pequenas cidades
que estejam em estreita relação com as atividades agropecuárias. É também fruto da
constatação de que as ações governamentais definidas até recentemente com o objeti-
vo de promover o desenvolvimento rural eram insuficientes. Os fracassos em termos
de efetividade sobre as condições socioeconômicas nas áreas com maior concentração

22 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


de pobreza e desigualdade fez com que fossem buscadas formas de atuação que pudessem
produzir os resultados desejados.
A concepção do Territórios da Cidadania começou em 2007, quando foi definido
o início da atuação em 30 territórios rurais. Em 2008, deverá operar em cerca de mil
municípios, distribuídos por todas as regiões do país. Estes municípios compõem os
60 territórios selecionados para integrar a Agenda Social.19 A configuração de cada um
deles obedeceu a definições prévias de respeito a identidade e solidariedade microrregio-
nais, tendo como ponto central de referência os municípios com os menores índices de
desenvolvimento humano (IDHs) e baixo dinamismo econômico. Também a existência
de assentamentos rurais contribuiu para a definição e seleção dos territórios.
A implementação de um programa desse porte, que inclui ações de responsabili-
dade de diversos órgãos e que deve atuar em espaços geopolíticos com características e
necessidades específicas, torna imperativa a articulação dos agentes públicos e privados
envolvidos. Isto vale tanto no nível horizontal – o conjunto de instituições federais
comprometidas com as ações a serem desenvolvidas – como no nível vertical – o com-
prometimento e a participação dos poderes estaduais e municipais. Propostas anteriores
que visavam à convergência de ações de tantos atores políticos e sociais nunca chegaram
a cumprir todos os objetivos preestabelecidos. Assim, a tarefa de implementação do
Territórios da Cidadania exigirá uma inédita competência política e técnica para que
possa ter sucesso, não se limitando à enumeração das ações que tiverem sido executadas,
completa ou parcialmente.
3 Considerações sobre a Agenda Social e o planejamento federal
Tendo em vista o breve balanço apresentado, cumpre discutir em que medida o caráter
político da Agenda Social – enquanto rol de opções estratégicas de governo no campo
social – se coaduna com o planejamento dos diversos órgãos expresso no PPA e, em
especial, com as prioridades definidas setorialmente. A questão central aqui é se estas
várias iniciativas contribuem de fato para o planejamento da política social, ou se, da
forma como têm sido construídas, terminam por aumentar a dificuldade de se verificar
as reais priorizações ou mesmo as principais mudanças nas diferentes áreas.
Em relação ao PPA, afirmou-se aqui anteriormente que este instrumento tem sido
pouco efetivo como peça de planejamento, uma vez que incorpora indistintamente
todas as ações implementadas pelos diversos órgãos do governo federal – ou seja, tanto
aquelas que já estão inseridas na rotina da máquina pública, quanto as inovações e
prioridades que, para se concretizarem, exigiriam a definição e o planejamento de estra-
tégias de operação originais e/ou específicas. No limite, estas estratégias estão delineadas
nos planos setoriais. É curioso, entretanto, que não se façam refletir na principal peça
de planejamento de médio prazo do governo federal. E como não ganham o sentido de
conjunto que o PPA permitiria, o planejamento federal acaba se ressentindo da ausência
de direcionamento a partir de uma visão estratégica das prioridades governamentais.
É também relevante a dificuldade verificada de lidar, em um modelo geral de pla-
nejamento, com as diferenças entre as atuações mais centralizadas – como é o caso da
que caracteriza o Ministério da Previdência Social – e aquelas nas quais o ente federal

19. A proposta de desenvolvimento do Territórios da Cidadania prevê ampliar sua abrangência para mais territórios, perfa-
zendo um total de 1.808 municípios em 2009. Contudo, integram a Agenda Social apenas os 60 territórios mencionados
que possuem os menores índices de desenvolvimento humano (IDHs) e indicadores de dinamismo econômico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 23


descentraliza ou transfere grande parte dos recursos para estados e municípios – como
acontece nas pastas da Saúde, da Educação, do Desenvolvimento Social, e de tantas
outras da área social. O modelo do PPA prevê a gestão por resultados, com a construção
de indicadores por ação. Contudo, se 80% dos recursos de um ministério são executados
de forma descentralizada, isto é, são efetivamente executados por estados e municípios,
que também aportam recursos adicionais para aquela ação, não é possível separar a parte
do resultado que se deve à atuação do ente federal daquela devida aos entes federados.
Uma dificuldade adicional identificada no modelo de planejamento organizado por
meio do plano plurianual diz respeito à tendência de fragmentação das ações em progra-
mas setoriais em detrimento de sua articulação em programas multissetoriais, envolvendo
a articulação e coordenação de ações de órgãos variados que atuam sobre o problema
identificado. O mesmo pode-se dizer da falta de mecanismos eficazes para o tratamento
de temas transversais, que perpassam a agenda de diferentes instâncias de governo e cujo
enfrentamento requer a sua incorporação na rotina de planejamento das ações setoriais.
A construção da Agenda Social pode ser compreendida como uma forma de superar
algumas dessas dificuldades. A questão da multissetorialidade, por exemplo, está pre-
sente em vários dos eixos da Agenda Social (juventude, direitos de cidadania, Pronasci
e territórios da cidadania). Estas iniciativas são acompanhadas por câmaras técnicas
compostas por representantes de vários ministérios e secretarias, o que possibilita a troca
de informações e o estabelecimento de estratégias comuns para o alcance dos objetivos e
metas estipulados. No entanto, há que se ressaltar que os instrumentos de planejamento
e de gestão sofrem limitações para o acompanhamento acurado e a condução precisa de
iniciativas desta ordem, em especial diante do número de atores, da heterogeneidade
de perspectivas e da ausência de um sistema de informações adequadas para o monito-
ramento do desenvolvimento das ações.
A agenda também contempla temas transversais. Deve-se mencionar que a questão
da transversalidade das ações de governo passou a integrar a pauta política com claro
destaque quando foram criadas a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, a Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres, bem como a Secretaria Nacional de Juventude. A criação destas secre-
tarias visava, por meio de um trabalho de articulação governamental realizado por órgãos
ligados diretamente à Presidência da República, mobilizar os ministérios para que estes
inserissem nos seus planejamentos, bem como na execução de suas políticas, enfoques
voltados para os temas como direitos humanos, raça, gênero e juventude. As inúmeras
dificuldades experimentadas por estas secretarias para efetivar a articulação de ações a
partir de uma perspectiva transversal passam a ser agora objeto de enfrentamento no
âmbito da coordenação da Agenda Social.
Entretanto, a agenda é fundamentalmente um esforço no sentido de dar visibili-
dade a um plano político para a área social por meio da definição de objetivos e metas.
Conforme afirmado anteriormente, este processo é o mesmo que se observou quando o
governo federal destacou os projetos prioritários do PPA 2000-2003 e as metas presiden-
ciais do PPA 2004-2007. É algo que se impõe como uma necessidade. Fica evidente, no
entanto, que, em vez de se buscar construir o plano a partir das prioridades políticas,
tem-se optado por criar novas peças de planejamento com tal finalidade, o que, muitas
vezes, ocasiona sobreposições – casos do PDE ou do Mais Saúde, dos órgãos setoriais,
e dos eixos da Agenda Social, da Presidência da República.

24 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Uma das conseqüências da presença simultânea de instrumentos de planejamento
diversos é fazer com que os órgãos participem de forma diferenciada dos respectivos
processos de construção e negociação política. Assim, tendem a conferir prioridade
àqueles que apresentam significado mais concreto ou imediato do ponto de vista da
pauta setorial. A formulação e a condução do Territórios da Cidadania é uma evidência
da carência de vínculo entre os diferentes processos de planejamento em que se envolvem
os órgãos federais. Implementado a partir de 2007, o Territórios da Cidadania não está
previsto no PPA 2008-2011, até porque sua natureza e sua forma são incompatíveis com
o modelo de planejamento praticado atualmente. Porém, passou a integrar a Agenda
Social. Assim como outras, esta iniciativa também se sobrepõe à programação original
do PPA, o que pode contribuir para fragilizar o plano plurianual enquanto núcleo de
articulação do planejamento de médio prazo, passando a expressar somente o conjunto
de gastos orçamentários, que estão muito aquém da atuação real do governo.
Outro exemplo do mesmo fenômeno é a relação do Pronasci com o PPA do Mi-
nistério da Justiça. No PPA 2004-2007, as unidades deste ministério responsáveis pelas
questões de segurança pública – Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp),
Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Polícia Federal e Polícia Rodoviária
Federal – tinham cada qual um ou dois programas, por meio dos quais executavam
todas as suas ações. Esta organização, apesar de contrária ao planejamento orientado por
problemas, refletia uma divisão de competências e evitava que iniciativas fossem atra-
vancadas devido a dificuldades de cooperação entre os órgãos. Por seu turno, o desenho
do Pronasci no novo PPA 2008-2011 foi marcado pela presença de ações já executadas
pelo Depen e pela Senasp em seus programas. O que se evidencia, neste caso, é que o
desenho de uma política abrangente em seus objetivos e em suas articulações não pôde
ser devidamente conciliado com a metodologia de elaboração de programas do plano
plurianual, especialmente pelo fato de se ter optado por aglutinar todas as distintas
iniciativas em um único programa.
Nesse contexto de superposições – e até mesmo conflitos – entre os diversos instru-
mentos presentes no âmbito do planejamento das ações federais na área social, fica uma
indagação de fundo sobre as perspectivas de sucesso da Agenda Social. Embora as iniciativas
ali reunidas tenham sido majoritariamente selecionadas a partir do que está consubstanciado
no PPA e reproduzam algumas das prioridades políticas dos órgãos setoriais, elas refletem
as opções estratégicas da cúpula de governo. Neste sentido, é válido ponderar sobre o grau
de adesão à proposta por parte dos diferentes órgãos encarregados da implementação das
ações. A questão relevante a ser discutida aqui é até que ponto se trata efetivamente de
uma coincidência de estratégias, para o que haverá uma soma de esforços institucionais,
ou em que medida os diferentes órgãos vêem na agenda tão simplesmente a possibilidade
de proteger parte de sua pauta de intercorrências como contingenciamento de recursos e
negociações políticas, por exemplo.
Paralelamente, cabe refletir ainda sobre as questões ligadas à organização institucional
adequada ao funcionamento dessas iniciativas, boa parte delas de ampla magnitude e
complexidade. Colocar em prática tal agenda de prioridades requer gestão estratégica,
o que, além da clareza sobre quais são estas prioridades, implica dispor de instrumentos
de mobilização e coordenação política sofisticados, capazes de romper com a lógica
setorializada e burocratizada da execução do orçamento público. De aspectos como estes,
entre outros, dependem as chances de sucesso da Agenda Social e suas repercussões sobre
o aprimoramento do planejamento federal.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 25


ACOMPANHAMENTO DE POLÍTICAS
E PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS
PREVIDÊNCIA SOCIAL

1 Apresentação
Este capítulo traz como novidade, em relação aos anteriores sobre previdência social
deste periódico, uma breve análise sobre a Previdência Complementar Aberta.
De fato, seu crescimento monotônico, como será ilustrado adiante, corresponde a uma
trajetória que experimentou um aumento de patrimônio de 0,5% a 5,0% do Produto
Interno Bruto (PIB) entre 1996 e 2007, o que aponta para seu relevante papel no
sistema previdenciário.
A referida análise se dá ao longo do exame, na íntegra, da trajetória dos três com-
ponentes do sistema: o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), a Previdência dos
Servidores Públicos – ou Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) –, e a Previ-
dência Complementar. Aí chama especial atenção o bom desempenho das contas do
RGPS, que até mesmo prevê uma queda na necessidade de financiamento do sistema,
a par de um resultado superavitário nas contas da clientela urbana.
Esta seção é seguida pelo exame de alguns dos fatos que mais marcaram o perío-
do recente na área, entre os quais vale apontar desde já os desdobramentos da Lei no
11.718/2008, que trata da previdência rural, e amplia e atualiza o sistema, por meio
do estabelecimento de novos critérios tanto para aposentadoria, como para inscrição
na qualidade de segurado especial, e ainda para contratação de trabalhador rural por
curto período.
Em Tema em destaque, ao final do capítulo, privilegiam-se a descrição e a análise
da proposta de emenda constitucional do governo sobre reforma tributária. Esta altera
substancialmente o formato do financiamento da Seguridade Social e, de modo peculiar,
o da Previdência Social – neste particular, uma das únicas medidas de redução da carga
tributária está relacionada com a desoneração da contribuição patronal sobre a folha de
salários, conforme será ali verificado.
2 Fatos relevantes
2.1 Decreto no 6.122/2007: salário-maternidade para desempregadas
Em 13 de junho de 2007, foi publicado pelo Executivo o Decreto no 6.122, que dá nova
redação ao regulamento da Previdência Social, ao garantir que mulheres desempregadas
tenham direito ao benefício do salário-maternidade ainda em período de graça – período
em que o filiado à Previdência Social, ao ter interrompido suas contribuições, ainda tem
o direito a requerer determinado benefício. Antes do decreto, as mulheres só tinham
direito ao benefício se estivessem empregadas (com carteira) ou contribuindo ao Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS).
Com a publicação dessa norma, fica assegurada proteção previdenciária para as
gestantes ou mães desempregadas. Garante-se o pagamento de quatro parcelas mensais
do benefício, cujo valor equivale à média dos últimos doze salários de contribuição,
pagos em período não superior a 15 meses.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 29


Apesar do Decreto no 6.122/2007 apresentar evolução em termos de ampliação da
cobertura previdenciária, algumas lacunas ficaram ainda a ser preenchidas. Um exemplo
é o fato do direito ao salário-maternidade ser o parto (e não a gravidez): dado que via de
regra a gravidez dura nove meses, quem engravidar até três meses antes de ser demitida,
ou três meses após ser demitida não fará jus ao benefício, pois a duração ordinária do
período de graça é de doze meses. Ou seja, não são todas as desempregadas que terão
garantido o direito ao salário-maternidade.
2.2 Fator acidentário
Criado pela Lei no 10.666/2003 e posteriormente regulamentado pelo Decreto
no 6.042/2007, o Fator Acidentário de Prevenção (FAP) é um mecanismo que permitirá
à Previdência elevar ou reduzir as alíquotas de contribuição das empresas ao seguro de
acidente de trabalho.
O FAP funciona como um multiplicador aplicado às alíquotas de contribuição
para o seguro de acidente de trabalho (1, 2 e 3% incidentes sobre a folha de salários),
que tem valor relacionado ao risco de acidente nas empresas. Ele varia de 0,5 a 2, isto é,
a contribuição das empresas pode ser reduzida à metade ou dobrar, a depender de seu
histórico de acidentes de trabalho. Desta maneira, tal medida serve como estímulo ao
investimento em segurança e saúde do trabalho por parte das empresas.
Como forma de permitir uma melhor análise dos registros de acidentes pelas fir-
mas, o FAP teve sua entrada em vigor adiada de janeiro de 2008 para janeiro de 2009,
a partir do Decreto no 6.257/2007.
2.3 Prazo para desistência de aposentadoria
A partir do Decreto no 6.208 de setembro de 2007, o segurado do INSS passa a não ter
mais que observar o prazo de até 30 dias para desistência do pedido de aposentadoria.
Para tanto, basta que manifeste esta intenção e solicite o arquivamento de seu processo,
e que não efetue o saque do primeiro pagamento de benefício e dos montantes de
direito junto ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e ao Programa
de Integração Social (PIS).
A medida atende aos anseios dos segurados do INSS, principalmente daqueles que
se aposentam por tempo de contribuição, benefício de incidência obrigatória do fator
previdenciário. Muitos dos segurados, mesmo ao momento de solicitação da aposen-
tadoria, não sabem exatamente qual o valor do benefício ao qual terá direito, devido a
registros passados perdidos ou incompletos, dificuldade na compreensão dos fatores de
atualização monetária e pelo fator previdenciário. Este último tem um fator de incerteza
intrínseca à sua construção, dado que depende da expectativa de sobrevida ao momento
da aposentadoria.
Assim, após esse decreto, o segurado poderá analisar com mais parcimônia se o
benefício condiz com suas expectativas ou se será melhor permanecer por mais tempo
ativo no mercado de trabalho para ampliá-lo no futuro.
2.4 A Lei no 11.718: contrato de trabalho rural, aposentadoria do assalariado rural, e
elegibilidade do segurado especial
A figura do contrato de trabalho rural por pequeno prazo foi proposta na Medida
Provisória (MP) no 410 de dezembro de 2007, tendo sido convertida, após intenso debate,
na Lei no 11.1718, em 20 de junho de 2008. Os opositores da proposta sustentavam

30 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


ser essa medida um instrumento de precarização do trabalho, ao dispensar o registro
em carteira de trabalho e no livro de registro dos empregados daqueles trabalhadores
agrícolas contratados por produtor rural pessoa física por período inferior a dois meses.
Pela MP, em realidade, o contratante tinha a obrigação de contar com algum registro
documental do vínculo empregatício – notadamente um contrato, além de incluir os
dados do trabalhador na Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência
Social (GFIP), recolher o FGTS, e repassar a contribuição do empregado. Quando da
conversão da MP em lei, houve uma alteração que melhor delineou a forma alternativa
de formalização, que não a assinatura na carteira de trabalho. De fato, a medida inseriu
o artigo 14-A à Lei no 5.889/1973 ( Lei do Trabalhador Rural), no qual se normatizam
as condições de formalização do contrato de trabalho de curta duração. No quadro 1,
apresenta um cotejo das redações dadas ao parágrafo 3o do novo artigo da Lei do Tra-
balhador Rural pela MP e pela lei, por meio do qual fica evidente o cuidado que se
alcançou na regulamentação desta modalidade de contrato de trabalho.
QUADRO 1
Comparação entre redações do § 3o do artigo 14-A da Lei do Trabalhador Rural: da MP no 410 e da
Lei no 11.718
Medida Provisória no 410/2007 Lei no 11.718/2008

§ 3o O contrato de trabalho por pequeno prazo deverá ser formalizado mediante a inclusão do trabalha-
§ 3o O contrato de trabalhador rural por
dor na GFIP, na forma do disposto no § 2o deste artigo, e: 
pequeno prazo não necessita ser anotado na
I – mediante a anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social e em Livro ou Ficha de Registro
Carteira de Trabalho e Previdência Social ou
de Empregados; ou 
em Livro ou Ficha de Registro de Empregados,
II – mediante contrato escrito, em 2 (duas) vias, uma para cada parte, onde conste, no mínimo: 
mas, se não houver outro registro documental,
a) expressa autorização em acordo coletivo ou convenção coletiva; 
é obrigatória a
b) identificação do produtor rural e do imóvel rural onde o trabalho será
existência de contrato escrito com o fim
realizado e indicação da respectiva matrícula; 
específico de comprovação para a fiscalização
c) identificação do trabalhador, com indicação do respectivo Número de
trabalhista da situação do trabalhador.
Inscrição do Trabalhador – NIT. 

Outras duas importantes questões relativas à previdência social do trabalhador rural


foram objeto dessa lei. A primeira diz respeito ao beneficio concedido pela Constituição
Federal aos empregados rurais, ao garantir-lhes o acesso à aposentadoria por idade, reque-
rendo, para tanto, a comprovação de 15 anos de atividade. Tal benefício, que já havia sido
estendido em outras oportunidades, vigoraria até o final do corrente ano, sendo agora
prorrogado até 31 de dezembro de 2010. Posteriormente a esta data, para a concessão
de aposentadorias por idade, será exigido um número mínimo de meses comprovados
de emprego rural (contribuição) durante o ano necessário ao atendimento da carência
requerida. Em termos concretos: para o período de janeiro de 2011 a dezembro de 2015,
será preciso, para a contagem de um ano, a comprovação de quatro meses de emprego
rural, e, para o período de janeiro de 2016 a dezembro de 2020, passará a ser necessária
a comprovação de seis meses de emprego rural.
Mais uma alteração na legislação previdenciária decorrente da lei foi a delimitação
mais pormenorizada e, em grande medida, menos restritiva das pré-condições para a
filiação ao sistema na categoria de segurado especial. Anteriormente, tornava-se ine-
legível como segurado especial o agricultor que empregasse qualquer modalidade de
trabalho assalariado e percebesse recursos oriundos do trabalho não agrícola ou fora
da propriedade. Tampouco se discriminava entre as categorias de segurado especial
o assentado de reforma agrária e o seringueiro ou extrativista vegetal. Também não
se aplicava qualquer limite de área para a definição de produtor rural em regime de
economia familiar. Com a nova lei, foi permitida a contratação de trabalhadores tem-
porários – limitada a 120 dias (homem) por ano –, o desenvolvimento de atividades

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 31


turísticas e artesanais internas à propriedade – com limite de participação na renda
bruta –, e o exercício de trabalho remunerado fora da propriedade nos períodos de
entressafras – com limite similar ao que se permite contratar temporariamente na
propriedade. Além disso, ficou definido que o fato de receber benefícios assistenciais
ou previdenciários, inclusive os de previdência complementar, não descaracteriza a
condição de segurado especial. Estabeleceu-se, ademais, que os agricultores em regime
de economia familiar não podem ter área superior a quatro módulos fiscais, única das
medidas de caráter restritivo, buscando normatizar uma característica deste regime de
produção, que é a pequena posse ou propriedade de terra.
3. Acompanhamento da política e dos programas
3.1 Regime Geral da Previdência Social (RGPS)
A análise dos principais indicadores do RGPS em 2007 aponta para uma inflexão na
trajetória da necessidade de financiamento do sistema.1
Na comparação entre o acumulado de doze meses maio/2007-abril/2008 em re-
lação a idêntico período anterior, observa-se queda no volume de recursos necessário
para fazer frente às despesas do RGPS, descontada a arrecadação líquida. Isto decorre de
movimentos favoráveis de receita e despesa. No lado das receitas, seu desempenho foi
bastante positivo, notadamente no que diz respeito às contribuições recolhidas pelas
empresas e, em menor grau, às contribuições individuais. Quanto às despesas, verifica-
se a continuidade na trajetória de queda da taxa de expansão do estoque de benefícios
em paralelo ao menor patamar de reajuste do salário mínimo (SM) – indexador da
maioria dos benefícios permanentes do INSS –, o que se deu sem abandonar a política
de valorização do SM.
Cabe sublinhar que o bom comportamento das receitas se deve ao desempenho do
mercado de trabalho: queda na taxa de desemprego, aumento da formalização e recupe-
ração, ainda que tênue, dos rendimentos. Segundo outro periódico do Ipea, “o ano de
2007 teve como fato de maior relevância uma elevação expressiva no nível de ocupação
combinada com o menor índice de informalidade do trabalho desde a implantação da
nova metodologia da PME”.2 No que concerne às despesas, interessa notar a estabili-
dade nos dispêndios com benefícios temporários, especialmente o auxílio-doença, após
o expressivo crescimento ocorrido no período 2002-2004. Com efeito, os gastos com
estes benefícios temporários e com o auxílio-doença diminuíram respectivamente, entre
dezembro de 2005 a abril de 2008, 3,7% e 4,3% em valores reais. Este comportamento
foi diametralmente oposto ao observado entre agosto de 2002 e agosto de 2005, quando
o montante gasto apenas com o auxílio-doença cresceu cerca de 2,4 vezes.3
O gráfico 1 ilustra esse processo de inflexão na necessidade de financiamento do
RGPS. Ali apresenta-se a necessidade de financiamento anualizada, entre dezembro de

1. Note-se que, em fevereiro de 2008, foi registrado superávit nas contas da Previdência na área urbana, o que não ocorria desde
2003. Tal resultado é alcançado tanto na nova contabilidade – que considera a renúncia fiscal da filantropia, Simples* entre outros –
quanto na antiga. Isto vem reforçar os argumentos dos que defendem uma reforma de longo prazo para a Previdência Social, mas sem
solavancos e ansiedades que estariam presentes caso suas finanças apresentassem necessidade de financiamento irremediável.
*
Simples: Sistema Integrado de Imposto e Contribuições das MIcroempresas e das Empresas de Pequeno Porte.
2. IPEA, MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (MTE). Boletim de Mercado de Trabalho. Fevereiro de 2008, p.3.
3. As comparações aqui realizadas referem-se a médias geométricas anuais em cada um dos meses considerados, evitando,
assim, variações sazonais.

32 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


2004 a abril de 2008.4 Merece destaque o “déficit” acumulado de doze meses em março
e abril de 2008, que retorna aos patamares de junho-julho de 2006: algo como R$ 45,0
bilhões de abril do ano corrente.
GRÁFICO 1
Evolução da necessidade de financiamento anual do RGPS (dezembro de 2004 a abril de 2008)

Fontes: Base de Dados da Previdência Social <http://creme.dataprev.gov.br/infologo/inicio.htm> e Boletins Estatísticos da Previdência Social – MPS.
Obs.: Deflacionado pelo Índice Nacional de Preço ao Consumidor (INPC).

A tabela 1, que mostra as receitas e despesas efetuadas pelo INSS, traz o que se
chama “Fluxo de Caixa do RGPS”, e mostra o mesmo cenário apresentado anterior-
mente. Essa queda na necessidade de financiamento se deve ao fato de as receitas
correntes – que perfazem a quase totalidade dos recebimentos e que são, grosso modo,
as contribuições previdenciárias – estarem, a cada ano, apresentando um desempenho
superior às despesas com benefícios previdenciários – principal rubrica dos paga-
mentos. Cabe ressaltar, no caso dos recebimentos, a queda na rubrica Rendimentos
Financeiros, Antecipação de Créditos e Outros nos dois últimos anos – e, dado o
comportamento das receitas correntes frente aos pagamentos do RGPS, a queda nas
transferências da União de 2006 para 2007 e no acumulado de maio/2007-abril/2008
frente a período igual do ano anterior. Em relação às outras despesas, assisti-se, de
um lado, a incrementos expressivos nos gastos com benefícios não previdenciários,5
com aumentos anuais da ordem de 15%, e com a rubrica Transferências a Terceiros.
Por outro, assiste-se também à diminuição dos gastos com pessoal e custeio6 nos
últimos dois anos, ou seja, de 2006-2007 para 2007-2008. É o que pode ser ob-
servado ao se compararem os acumulados de doze meses abril/2008-maio/2007 e
abril/2007-maio/2006.

4. Aponta também uma linha de tendência poligonal de segunda ordem.


5. Vale sublinhar que a análise do comportamento dos benefícios assistenciais e de seu financiamento é realizada em
pormenor no capítulo Assistência Social e Segurança Alimentar e Nutricional deste volume, sendo aqui apontado pelo
fato da tabela abranger todos os recebimentos e pagamentos do INSS, entre os quais constam estes e sua contraparte
de financiamento.
6. Não é factível discriminar nessa rubrica de despesa as relativas ao gerenciamento dos benéficios previdenciários e os
de caráter assistencial.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 33


TABELA 1
Recebimentos e pagamentos do INSS (acumulados em doze meses)
(Valores em R$ 1 mil de abril de 2008 – deflator INPC)
maio/2006 – maio/2007 –
2004 2005 2006 2007
abril/2007 abril/2008
A – Recebimentos 190.033.353 194.060.058 219.389.495 223.113.763 223.019.194 235.283.551
A1 - Receitas correntes1 118.571.815 128.860.832 143.301.600 157.097.509 148.462.460 165.669.616
A2 – Recuperação de créditos2 1.902.131 1.742.113 1.608.803 1.519.792 1.625.655 1.373.255
A3 – Rend. finaceiros + antecipação
10.917.098 12.470.508 991.164 889.242 2.852.260 16.220.862
de receitas + outros3
A4 - Restituições de contribuição4 -218.896 -297.208 -314.916 -233.939 -338.330 -268.380
A5 - Transferências da União 58.861.204 51.283.813 73.802.845 63.841.158 70.417.150 52.288.198
B - Pagamentos (B1 + B2 + B3 + B4) 179.538.124 192.235.287 217.084.137 227.585.715 221.940.241 234.933.892
B1 – Pag. benef. INSS 159.179.956 175.278.173 193.459.834 206.296.183 199.662.503 212.487.458
B1a - Pag. benef. RGPS 5 149.461.130 164.034.543 180.047.231 190.823.335 185.493.043 196.177.535
B1b - Pag. benef. assistenciais 6 9.718.826 11.243.631 13.412.603 15.472.848 14.169.460 16.309.922
B2 – Benefícios devolvidos -775.908 -779.476 -953.924 -1.033.332 -1.081.915 -1.147.818
B3 - Despesa com pessoal e custeio do INSS 12.364.541 9.272.253 14.244.460 8.516.598 12.094.464 8.287.943
B4 - Transferências a terceiros 8.769.535 8.464.337 10.333.768 13.806.266 11.265.189 15.306.309
C – Arrecadação líquida (A1 + A2 +A4 - B4) 111.485.516 121.841.401 134.261.719 144.577.096 138.484.596 151.468.182
D - Necessidade de financiamento
-37.975.614 -42.193.142 -45.785.512 -46.246.239 -47.008.447 -44.709.354
(C - B1a)
Fontes: Base de Dados da Previdência Social <http://creme.dataprev.gov.br/infologo/inicio.htm> e Boletins Estatísticos da Previdência Social – MPS.
Fluxo de Caixa do INSS.
Elaboração: Disoc/Ipea.
Notas: 1 Arrecadação bancária, arrecadação Simples,* Arrecadação Fundo Nacional de Saúde (FNS) e Arrecadação Financiamento ao Estudante de
Ensino Superior (Fies).
* Simples: Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte.
2
Arrecadação Refis,** Arrecadação Certificados da Dívida Pública (CDP) e depósitos judiciais.
** Refis: Programa de Recuperação Fiscal.
3
Remuneração sobre arrecadação bancária, rendimentos de aplicações financeiras, antecipação de receitas (Tesouro Nacional) e outras receitas.
4
Ressarcimento de arrecadação e restituições de arrecadação.
5
Inclui despesas com sentenças judiciais.
6
Contempla os benefícios da Loas,*** as rendas mensais vitalícias (RMVs) e os encargos previdenciários da União.
*** Loas: Lei Orgânica da Assistência Social.

Com vistas a ilustrar melhor a inflexão, a tabela 2 traz o comportamento recente


das principais variáveis da receita e da despesa do sistema previdenciário: as contribui-
ções e os benefícios. Infelizmente, para a variável “contribuições”, só se conta com dados
atualizados do valor recolhido por empresas e os denominados contribuintes individuais,
não a quantidade de contribuições e/ou contribuintes. De toda sorte, nos últimos três
anos (2005, 2006 e 2007) o desempenho do montante de contribuições, especialmente
das oriundas das empresas, tem sido bastante positivo, equivalendo-se ou até mesmo
superando o gasto com benefícios. E, no que tange ao comportamento do estoque de
benefícios, sejam aposentadorias ou pensões, verifica-se uma queda na taxa de crescimen-
to, estabilizada ao redor de 3,0%, que é compatível com o comportamento recente do
mercado de trabalho – taxas de crescimento da atividade, da ocupação e da formalidade.
Interessante notar também é a queda expressiva, no presente ano, das contribuições dos
autônomos frente aos anos anteriores, que pode ter por causa o crescimento expressivo
que vem sendo observado no número de empregados com carteira, ou seja, na modali-
dade padrão de formalização do trabalho – hipótese esta a se confirmar.
TABELA 2
Variação anual1 das contribuições e dos benefícios do INSS (2004 – 2008)
(Em %)
Contribuições 2, 3 Benefícios

Período Valor 3 Quantidade


Contribuintes
Empresas
individuais Aposentadorias RGPS Total Aposentadorias RGPS Total
Dez. 2005-dez. 2004 8,9 6,1 4,3 5,4 6,1 3,4 4,2 4,7
Dez. 2006-dez. 2005 8,8 9,1 9,0 7,6 8,5 3,2 2,3 2,7
(continua)

34 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


(continuação)
Dez. 2007-dez. 2006 12,5 3,9 4,5 4,6 5,2 2,6 2,7 2,9
Abr. 2007-abr. 2006 10,8 10,4 8,9 7,8 8,6 2,9 2,2 2,6
Abr. 2008-abr. 2007 13,0 2,6 4,1 3,7 4,2 2,9 2,6 2,9
Fontes: Base de Dados da Previdência Social (<http://creme.dataprev.gov.br/infologo/inicio.htm>) e Boletins Estatísticos da Previdência Social – MPS.
Notas: 1 Refere-se à variação percentual entre as médias geométricas dos períodos janeiro-dezembro ou maio-abril de um ano, frente ao ime-
diatamente anterior.
2
Referem-se, respectivamente, ao montante recolhido pelas empresas de suas contribuições da parcela de seus empregados, e do total recolhido
por trabalhadores autônomos, empregados domésticos e segurados facultativos e segurados especiais.
3
Valores mensais deflacionados pelo INPC.

O crescimento mais expressivo dos gastos com benefícios decorre da política de


valorização do salário mínimo e, em menor grau, de reajuste dos benefícios com valores
superiores ao piso previdenciário. Todavia, no último ano, quando o salário mínimo
passou a ter seu reajuste associado à preservação de seu poder de compra e ao crescimento
do Produto Interno Bruto (PIB), verificou-se uma mudança. Com a aceleração da inflação
e o bom desempenho da economia em 2007, prevê-se um aumento da ordem de 14%
no salário mínimo de 2009, o que poderá implicar, a depender do comportamento do
mercado de trabalho no decorrer do ano, incremento na necessidade de financiamento
da Previdência Social. Na verdade, em virtude da compressão nas políticas monetária e
fiscal com vistas ao controle inflacionário, há no horizonte que, no próximo ano, ter-se-á
um arrefecimento do desempenho econômico e, conseqüentemente, no processo de
melhoria que o mercado de trabalho vem atravessando. De todo modo, parece claro que
o desempenho da economia e do mercado de trabalho, nos últimos dois anos, permitiu
uma melhora significativa nas contas previdenciárias.
3.1.1 Índice de proteção previdenciária estendido
Os números anteriores deste periódico têm apresentado, na seção de acompanhamento
da política previdenciária, o chamado índice de proteção previdenciária. Este índice
apresenta os segurados diretos (contribuintes ou potenciais segurados especiais) e os
não-segurados da Previdência Social na população economicamente ativa (PEA), com
base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE), visando acompanhar a taxa de inclusão da
população inserida no mercado de trabalho.
Observou-se que uma limitação desse índice consiste em considerar a população
coberta como necessariamente um subconjunto dos ocupados da PEA. Os desocupados,
por sua vez, são tratados todos como não-segurados pela Previdência Social. Este fato
negligencia a existência do chamado período de graça.
Conforme apontado aqui, o período de graça é definido como aquele em que
o filiado à previdência social, tendo interrompido suas contribuições, tem o direito a
requerer determinado benefício, dado que tinha cumprido a carência necessária para
a sua solicitação. Assim, o filiado que porventura deixou de fazer suas contribuições, mas
cumpriu as diversas carências para os diferentes tipos de benefícios previdenciários, per-
manece socialmente protegido, assim como seus dependentes, por um certo período.7,8

7. Neste capítulo serão considerados como cobertos pela Previdência apenas os segurados diretos. Os indiretos, isto é, os
dependentes legais do segurado direto não são tratados aqui. Para uma idéia da cobertura indireta, ver o Anexo Estatístico,
inserido ao final deste volume em CD ROM.
8. Após o período de graça, o trabalhador deixa de figurar na categoria de segurado da Previdência Social. Neste caso,
as contribuições anteriores somente serão computadas depois que o filiado voltar a contribuir com a Previdência e
contar com, no mínimo, um terço do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência do benefício
que ele vier a requerer.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 35


Este capitulo busca contabilizar os trabalhadores desempregados que ainda estejam
em período de graça, ou seja, os que ainda se caracterizam como segurados do INSS.
Para tal, empregou-se a base de dados da Pnad 2006.
A partir dos microdados dessa Pnad, são realizados alguns filtros, com vistas a aten-
der às regras do período de graça. O primeiro deles foi selecionar os homens e mulheres
com idades entre 16 e 60/55 anos que estavam desempregados por período inferior a
um ano na semana de referência da pesquisa.
No caso do trabalhador desocupado em que sua última ocupação foi no setor pri-
vado, foram selecionados apenas os que contribuíram para o INSS por no mínimo um
ano (com carteira assinada ou não). Para o caso de o último emprego ter sido no setor
público (militares ou civis, não necessariamente estatutários), selecionaram-se os que
tenham contribuído para instituto de previdência por pelo menos doze meses, no caso
de não terem sido estatutários; e os que tenham sido empregados por no mínimo um
ano, para o caso dos que eram estatutários. Por fim, foram excluídos os que recebiam
benefícios de aposentadoria ou pensão.
Tais filtros garantem que a pessoa não está desempregada há mais de doze meses e
que tenha cumprido a carência de 12 contribuições – critério necessário para solicitação
de benefícios transitórios enquanto no período de graça.
A partir desses procedimentos, a tabela 3 apresenta o denominado índice de pro-
teção previdenciária estendido. Como pode ser observado, o contingente de desempre-
gados em período de graça é relativamente pequeno, mas de forma alguma desprezível.
Com a inclusão deste grupo, apresenta-se um quadro mais condizente com a realidade
dos segurados do INSS: este contingente de aproximadamente 936 mil pessoas que
continua a deter direitos a diversos benefícios, a despeito de estarem desempregados e
não estarem contribuindo para o INSS. Ressalte-se que a estimativa mostra que aproxi-
madamente 12% dos desempregados encontram-se em período de graça.
TABELA 3
Participação de segurados – índice de proteção previdenciária estendida – e não-segurados da
Previdência na PEA 1 (2006)
Segurados Quantidade %
– Segurados contribuintes
Empregados com carteira (inclusive domésticos) 29,335,402 33.82
Empregados sem carteira (inclusive domésticos) 2,279,391 2.63
Autônomos contribuintes 2,635,034 3.04
Funcionários públicos (inclusive militares) 5,417,816 6.25
Empregadores - contribuintes 2,137,495 2.46
Subtotal 1 41,805,138 48.19
– Segurados especiais potenciais 2 7,550,410 8.70
Subtotal 2 49,355,548 56.90
– Desempregados em período de graça 936,763 1.08
Subtotal 3 50,292,311 57.98
Não-segurados    
Desempregados fora do período de graça 6,724,854 7.75
Autônomos não-contribuintes e não agrícolas 10,287,092 11.86
Empregados sem carteira e não-contribuintes 18,120,804 20.89
Empregadores - não-contribuintes 1,320,425 1.52
Subtotal 4 36,453,175 42.02
Fonte dos dados brutos: Pnad/IBGE.
Elaboração: Diretoria de Estudos Sociais do Ipea (Disoc/Ipea).
Notas: 1 A população economicamente ativa considerada corresponde a: homens com idade entre 16 e 60 anos e mulheres com idade entre 16 e 55
anos, que estavam ocupados e/ou procuraram ocupação na semana de referência.
2
Foram considerados segurados especiais potenciais os homens com idade entre 16 e 60 anos e as mulheres com idade entre 16 e 55 anos que,
na semana de referência, eram: i) autônomos não-contribuintes em atividades agrícolas; ii) trabalhadores não-remunerados, não-contribuintes,
em atividades agrícolas; e iii) produtores para o próprio consumo em atividades agrícolas não-contribuintes.

36 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


3.1.2 A questão do jovem revisitada: cobertura direta versus desemprego
O desemprego é um problema especialmente focalizado nos jovens de 16 a 29 anos de
idade.9 Dados extraídos da Pnad mostram que quase metade dos desempregados no país
é formada pelos jovens até a idade de 25 anos. Em um corte de desemprego por idade,
observa-se que a maior incidência (24%) se dá na idade de 18 anos. Por mais que se ques-
tione se é desejável ou não pessoas que ainda não completaram seu ciclo escolar adentrarem
o mercado de trabalho, os números levam a concluir que os jovens se lançam ao mundo
do trabalho e não encontram emprego.
Tais fatos têm reflexos diretos sobre a previdência social, principalmente no tocante
à cobertura previdenciária direta: dadas as altas taxas de desemprego entre jovens e –
como será mostrado adiante – e o baixo percentual de empregos com carteira assinada
nessa faixa etária, estes apresentam uma baixa cobertura previdenciária.
No gráfico 2 são apresentadas as distribuições acumuladas do total de desempregados, de
empregos com carteira assinada, e da PEA por idade. Ou seja, os dados do gráfico revelam qual
é a participação dos membros da PEA, por idade, entre os desempregados e os trabalhadores
com carteira assinada. As duas categorias (desempregados e empregados com carteira) foram
selecionadas por representarem os extremos no mercado de trabalho. O emprego com carteira
é o mais desejado entre os jovens – e também pelos trabalhadores das demais faixas etárias –,
pois garante direito a férias, décimo terceiro salário e FGTS, além da proteção oferecida pelo
sistema previdenciário.10 No outro extremo encontra-se o desemprego, este pior que o em-
prego sem carteira ou a atividade informal em geral, pois as necessidades financeiras passam
a depender de suporte familiar ou da ajuda de uma rede de apoio social.
GRÁFICO 2
Desemprego e empregos com carteira acumulados por idade (2006)

Fonte: Pnad 2006.


Elaboração: Disoc/Ipea.

Nos mesmos termos de divisão etária apresentados no capítulo Previdência Social do


número anterior deste periódico, nota-se que, até a idade de 25 anos, tem-se em 2006 mais
de 50% de todos os desempregados e menos de 30% do emprego com carteira assinada.
Comparados estes dados com a PEA, pode-se concluir que há uma sobre-representação do

9. Sobre as questões relacionadas com a juventude e as políticas sociais, ver especialmente o número 15 deste periódico.
10. Vale salientar que os diversos benefícios da Previdência Social requerem diferentes tempos de carência para seu acesso.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 37


desemprego entre os jovens. Ou seja, há alto desemprego e baixo percentual de contribuição
previdenciária pela via dos empregos com carteira assinada entre os jovens. Verifica-se
também que tais problemas estão ainda mais concentrados nas idades de 16 a 25 anos.11
Algumas das explicações para o alto desemprego entre jovens e seus poucos empregos
com carteira assinada residem no fato de que este grupo ainda não possui experiência,
apresenta baixa produtividade em relação aos mais velhos, incorrem em elevado custo
para seu treinamento, e estão submetidos a uma alta rotatividade no mercado de trabalho.
Basicamente, são problemas relacionados à relação entre custo e produtividade marginais
da mão-de-obra jovem, que é mais alta vis-à-vis a mão-de-obra mais experiente.
Uma política que poderia ser adotada com vistas à redução do desemprego e, por
conseguinte, à elevação da filiação previdenciária desse grupo é a desoneração da contri-
buição previdenciária patronal – e até mesmo dos empregados – focalizada nos jovens.
Ou seja: desoneração com limite de idade e/ou tempo de carteira assinada. Uma tal
medida garantiria que, durante algum tempo, o jovem que entra no mercado de trabalho
tivesse um custo menor para a firma que venha a contratá-lo. Dessa forma esta política
buscaria, ao mesmo tempo, atacar o problema do desemprego e dos poucos empregos
com carteira assinada. Contudo, uma proposta desta natureza deve ser analisada com
atenção devido a seus possíveis impactos nas contas previdenciárias.
3.2 Regimes Próprios de Previdência dos Servidores (RPPS)
A Constituição Federal de 1988 e a Lei no 8.112/1990 (Regime Jurídico Único) per-
mitiram que a União, estados, Distrito Federal e municípios instituíssem os chamados
Regimes Próprios de Previdência dos Servidores (RPPS). Estes regimes, no ano de 2006,
reuniam mais de oito milhões de servidores, entre ativos, inativos e pensionistas.
TABELA 4
Quantidade de servidores da União, estados e municípios filiados aos RPPS (2006)
Ente Ativos Inativos Pensionistas Total
União1 977.023 537.051 438.580 1.952.654
Estados2 2.805.115 1.182.229 479.230 4.466.574
Municípios3 1.542.267 303.830 106.919 1.953.016
Total 5.324.405 2.023.110 1.024.729 8.372.244
Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal da Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (SRH/MP).
Elaboração: Secretaria de Previdência Social/Ministério da Previdência Social (SPS/MPS).
Notas: 1 Posição em dez./2006. Foram excluídos os servidores de empresas públicas e de economia mista.
2
Todos os estados.
3
Referem-se a 2.126 municípios com RPPS que preencheram o demonstrativo previdenciário até 31/12/2006.

Com a Emenda Constitucional (EC) no 20 de 1998 e a Lei no 9.717/1998 criou-se a


sustentação legal para que os RPPS sejam analisados e acompanhados pela SPS/MPS. Com
o passar dos anos e do amadurecimento do aparato institucional/legal, novos critérios de
acompanhamento dos RPPS foram sendo estabelecidos, como a exigibilidade do Demons-
trativo de Receitas e Despesas do RPPS (Decreto no 4.992/1999), uso de questionários para
verificação dos critérios de concessão, convênio e utilização de recursos em 1999, entre outros.
Em 2001, a partir do Decreto no 3.778 e da Portaria no 2.346 – e posteriormente
pela Portaria no 172/2005 –, instituiu-se o Certificado de Regularidade Previdenciária
(CRP), documento que atesta a regularidade dos RPPS, emitido no âmbito da SPS/MPS.
Como forma de se demonstrar sua importância, o CRP é sempre exigido nas seguintes
situações, em busca do alcance do comportamento ótimo dos entes com RPPS:

11. Após os 25 anos de idade, observa-se até mesmo maior representação dos empregos com carteira assinada, mas o
problema da sobre-representação do desemprego persiste.

38 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


• realização de transferências voluntárias de recursos pela União;
• celebração de acordos, contratos, convênios ou ajustes;
• concessão de empréstimos, financiamentos, avais e subvenções em geral de órgãos
ou entidades da União;
• celebração de empréstimos e financiamentos por instituições financeiras federais; e
• repasse dos valores devidos em razão da compensação previdenciária.
Para obtenção do CRP, o ente federativo deve encaminhar para a SPS/MPS a legislação
específica que trata da previdência, regime jurídico dos servidores, Constituição Estadual ou
Lei Orgânica, mesmo quando ocorrer a extinção do RPPS. O ente que porventura não enviar
toda legislação que regulamenta ou extingue o RPPS não estará apto a receber o CRP.
A SPS, por sua vez, após o recebimento da legislação, procede à verificação dos
seguintes itens:
• caráter contributivo do regime próprio de previdência social – alíquotas de con-
tribuições dos entes federativos e de seus segurados, bem como o repasse integral
das respectivas contribuições ao órgão ou entidade gestora do RPPS;
• cobertura exclusiva a servidores públicos titulares de cargos efetivos e a militares,
o que exclui os servidores que ocupam unicamente os cargos em comissão e os
servidores temporários – que exercem mandatos eletivos e os contratados por
tempo determinado;
• utilização dos recursos vinculados ao RPPS tão-somente para o pagamento de bene-
fícios previdenciários – não para assistência médica e auxílio financeiro de qualquer
espécie, exceto despesas administrativas do regime de previdência social;
• o pagamento de benefícios não pode ser feito por meio de convênios, consórcios
ou outra forma de associação entre estados, entre estados e municípios, e entre
municípios;
• garantia do pleno acesso dos segurados às informações relativas à gestão do
RPPS;
• para o cálculo do valor dos benefícios, bem como para sua percepção, não é permitida
a inclusão de parcelas remuneratórias temporárias, como aquelas pagas em decor-
rência de função de confiança, de cargo em comissão ou do local de trabalho;
• a conta do RPPS deve ser distinta da conta do ente federativo;
• garantia da participação de representantes dos segurados nos colegiados e instâncias
de decisão, junto aos órgãos ou entidades responsáveis pela gestão do RPPS, nas
questões em que seus interesses sejam objeto de discussão e deliberação;
• disponibilização para os segurados dos registros individualizados das contribuições
do servidor, do militar e do ente federativo;
• os recursos do regime próprio devem ser aplicados conforme as regras fixadas pelo
Conselho Monetário Nacional;
• encaminhamento à SPS do demonstrativo das receitas e das despesas previdenciárias
(demonstrativo previdenciário), até 30 dias após o encerramento de cada bimestre;
os municípios com população inferior a 50 mil habitantes podem optar pelo enca-
minhamento em até trinta dias após o encerramento de cada semestre;

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 39


• os benefícios concedidos pelo regime próprio não podem ser distintos daqueles
concedidos pelo RGPS;
• não é permitida a concessão de benefícios com requisitos diversos daqueles pre-
vistos na Constituição Federal; e
• encaminhamento à SPS da avaliação atuarial inicial do RPPS e do Demonstrativo
de Resultado da Avaliação Atuarial (Draa), até 31 de julho de cada exercício.
Dessa forma, o CRP tornou-se um documento que atesta o mínimo de estrutura e
de capacidade gerencial dos RPPS, correspondendo, ademais, a uma forma de garantia
da sua capacidade de honrar os compromissos com milhões de servidores públicos.
Para os entes federados que possuem RPPS, por sua vez, sua emissão significa possibi-
lidades de recebimento de recursos.
3.3 Previdência complementar
Esta subseção se propõe a realizar um breve acompanhamento do pilar complementar
do sistema brasileiro de previdência.
No acompanhamento da previdência complementar fechada (os fundos de pensão),
dá-se destaque para a evolução dos seus ativos de investimento, e faz-se uma breve análise
do dispositivo da portabilidade, cujas atuais regras advêm da Lei Complementar (LC) no
109/2001. Quanto às Entidades Abertas de Previdência Complementar (Eapp), examina-
se em especial a evolução de seu patrimônio e das contribuições anuais ao sistema.
3.3.1 Previdência complementar fechada
Os números consolidados até o momento mostram que o pilar complementar do sistema
brasileiro de previdência social observou mais uma vez crescimento em seu patrimônio.
Os ativos de investimento, que vêm evoluindo em ritmo crescente desde 2002, alcan-
çaram o total de quase R$ 400 bilhões em agosto de 2007.
GRÁFICO 3
Ativos de investimento das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC) – 2000-2007
(Em R$ bilhões de dezembro de 2007 – IGP-DI/FGV) 1

Fonte: Informe Estatístico – Secretaria de Previdência Complementar do Ministério da Previdência Social (SPC/MPS).
Notas: 1 Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna – Fundação Getúlio Vargas.
2
O dado de 2007 é para o mês de agosto. Para os demais anos, os dados são de dezembro.

O crescimento observado pelo setor nos anos recentes advém da administração de


seus ativos financeiros, concentrados nos segmentos de renda fixa – favorecidos também

40 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


pela decrescente, mas ainda alta taxa básica de juros da economia – e renda variável, que
refletem os resultados favoráveis do mercado acionário brasileiro nos últimos anos.
Apesar de as entidades fechadas de previdência complementar, ou fundos de pensão,
acumularem patrimônio elevado, até pouco tempo ainda imperava o anacronismo em
suas regras. Tais atrasos foram superados apenas quando da entrada em vigor das Leis
Complementares nos 108 e 109, ambas em 2001, e das normas subseqüentes.
Entre os vários dispositivos previstos pela nova legislação,12 será focalizado aqui
aquele que permitiu a portabilidade de recursos entre entidades de previdência com-
plementar (abertas ou fechadas).
A Lei Complementar no 109/2001 introduziu um importante dispositivo no
tocante às entidades abertas e fechadas de previdência complementar, qual seja, a pos-
sibilidade da portabilidade13 de recursos. Tal medida, regulamentada pela Resolução no
06/2003 do Conselho Gestor da Previdência Complementar (CGPC/MPS), afirmava,
entre outros, sobre os requisitos, direitos acumulados e recursos financeiros para fins
de portabilidade.
A partir da resolução, estabeleceu-se que os participantes que não estejam recebendo
benefícios de algum fundo de pensão podem optar pela portabilidade de seus recursos
desde que: i) tenham terminado o vínculo empregatício com o patrocinador – em planos
instituídos por patrocinadores; e ii) seja cumprida carência de até três anos de vinculação
do participante ao plano de benefícios. Entretanto, o montante transferido de um fundo
para o outro não poderá ser resgatado a qualquer momento, mas tão-somente quando
da aposentadoria.14
Ressalta-se que essa nova legislação, ainda que tardiamente, representou grandes
avanços na regulamentação do setor. Pela regra anterior, era permitido ao participante
portar apenas a sua parte das contribuições, e após o desconto do imposto de renda.
As contribuições feitas pelo empregador não podiam ser levadas.
Para que a portabilidade começasse a ser exercida, os fundos de pensão precisariam
estar atuarialmente equilibrados e preparados para as eventuais saídas de recursos. Visando
a esses ajustes, foi estabelecida uma carência para a portabilidade desses montantes: não os
dez anos que se cogitavam à época das audiências públicas antes da LC no 109/2001, mas
um período de até três anos.
A edição da resolução que permitiu a portabilidade data de 30 de outubro de 2003.
Apesar disso, as primeiras portabilidades só ocorreram em fevereiro de 2004, provavel-
mente após a carência estabelecida pelos respectivos fundos de pensão. Os valores anuais
dos totais portados estão dispostos no gráfico 4.

12. Para mais detalhes, ver o número 13 deste periódico.


13. De acordo com a Resolução no 6 do Conselho de Gestão da Previdência Complementar (CGPC/MPS), portabilidade é
“o instituto que faculta ao participante transferir os recursos financeiros correspondentes ao seu direito acumulado para
outro plano de benefícios de caráter previdenciário (...)”.
14. A proibição visa coibir as portabilidades interessadas apenas nas baixas taxas de resgate cobradas por alguns fundos
de previdência abertos.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 41


GRÁFICO 4
Total de recursos portados pelos participantes de fundos de pensão (2004-2007)
(Em R$ milhões de dezembro de 2007 – IGP-DI/FGV)

Fonte: Informe Estatístico/SPC-MPS.


Nota.:1 O dado de 2007 refere-se até o mês de agosto.

Os dados contidos no gráfico, que em sua totalidade ultrapassam os R$ 9 bilhões,


evidenciam que a mudança na legislação foi acertada em vários aspectos. Em primei-
ro lugar, o alto valor para o ano de 2004 pode ser interpretado como uma demanda
reprimida pela portabilidade. Portanto, esta teria vindo para completar e tornar mais
funcional o mercado de previdência complementar, além de beneficiar amplamente os
participantes. Ressalte-se que as novas regras para portabilidade estimulam a manutenção
dos recursos em entidades de previdência complementar: anteriormente a portabilida-
de era permitida apenas para os recursos oriundos de contribuições dos participantes,
o que funcionava como um incentivo para o seu resgate ao término do vínculo entre
participante e patrocinador do plano de previdência.
3.3.2 Previdência complementar aberta
Assim como no caso das entidades de previdência complementar fechada, o patrimônio
administrado pelas Eapp vem crescendo monotonicamente, conforme pode ser observado
no gráfico 5. Cabe aclarar que, a par dos tradicionais planos de aposentadorias individuais,
dos Fundos de Aposentadoria Programadas Individuais (Fafi) e dos Planos Geradores
de Benefícios Livres (PGBL), foram incluídos os planos Vida Geradores de Benefícios
Livres (VGBL). Este último, ainda que a rigor faça parte do mercado de seguros de vida,
será aqui analisado como integrante do mercado de previdência privada aberta.
Em dezembro de 2007, o valor administrado pelas Eapp era de pouco mais de
R$ 127 bilhões. O crescimento se deu em valores reais, nominais e como proporção
do PIB. Se tomada como base a última medida, passou aproximadamente de 0,5%
em 1996 para 5% do PIB em 2007.

42 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


GRÁFICO 5
Patrimônio das entidades abertas de previdência complementar
(Em % do PIB)

Fontes: Superintendência de Seguros Privados do Ministério da Fazenda (Susep/MF), Ipeadata e IBGE.

Contudo, o aumento do volume de recursos administrados se deu, tal qual o ocor-


rido com as entidades fechadas, mais em função dos rendimentos das carteiras que da
alta das contribuições. Como se pode visualizar no gráfico 7, estas, enquanto proporção
do produto, atingiram um pico em 2001 (0,00049% do PIB), voltando a cair até 2006,
quando se estabilizou em 0,00031% do PIB, idêntico resultado de 2007. Em valores reais
(deflacionados pelo IGP-DI, da FGV), o total de contribuições apresentou comporta-
mento similar: no ano passado, totalizaram R$ 7,9 bilhões (gráfico 7). Assim, o cresci-
mento do patrimônio está fracamente correlacionado ao incremento das contribuições,
e fortemente aos retornos reais das carteiras – relativamente elevados no período recente
–, quer a composição dos ativos seja voltada para renda fixa, quer para a variável.
GRÁFICO 6
Contribuição aos planos de previdência aberta (1996-2007)
(Em R$ milhares de dezembro de 2007 – IGP-DI/FGV)

Fontes: Susep, Ipeadata e IBGE.

O número de contratos de previdência aberta (e VGBL) cresceu 91% entre 2002


e 2007, atingindo a marca dos 12, 7 milhões de contratos no último ano (gráfico 7).
Quanto à composição dos planos de previdência privada aberta, entre dezembro de 2002
e dezembro de 2007 o número de participantes de planos VGBL aumentou 928,1%,

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 43


de acordo com a Susep, versus 26,2% para os PGBL, indicando um forte movimento
de aumento da participação dos VGBL, que estão em vias de ultrapassar os PGBL neste
quesito (2.947.193, participantes contra 2.952.768, respectivamente, em 2007).
GRÁFICO 7
Evolução do número de participantes de planos de previdência privada aberta (2002-2007)

Fonte: Susep.

3.3.3 Conclusões
De acordo com o ressaltado na edição especial (número 13) deste periódico, a aprova-
ção da Lei Complementar no 109/2001, além das ações previstas na legislação pretérita
(Lei no 6.435/1977), introduziu uma série de importantes inovações no mercado de
previdência complementar aberto e fechado, entre as quais destacam-se a criação da
figura do instituidor, a portabilidade, e o vesting (ou benefício proporcional diferido).
Estas medidas certamente contribuíram para o aumento da credibilidade, transparência
e convergência com as regras mais avançadas da prática internacional.
4 Tema em destaque
Novas propostas de mudanças constitucionais no financiamento da Seguridade: A PEC
da Reforma Tributária
Em fevereiro de 2007, o governo federal enviou ao Congresso Nacional Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) que “altera o Sistema Tributário Nacional”, afetando
de maneira significativa o financiamento da Seguridade Social e, de modo particular, o da
Previdência Social. Em tramitação na Câmara dos Deputados, a PEC no 233/2008 vem
se associar a outras duas medidas de iniciativa de deputados federais, todas motivadas pela
solução de graves problemas do sistema tributário nacional, entre os quais a guerra fiscal e
a complexidade de tributos, grande parte deles de baixa eficiência econômica e alocativa.
A proposta de reforma apresentada pelo governo investe, a depender da regulamen-
tação, contra a elevada carga tributária do país. Nesse sentido, em seu artigo 11, propõe
a desoneração da folha de salários, ou seja, a redução das contribuições obrigatórias que
incidem sobre a folha de pagamento das empresas, e empregadas no financiamento
da Seguridade Social e da Previdência. Contudo, não define se haverá compensação
a esta perda de recursos. Caso não seja determinada uma compensação, as contas da
Previdência sofrerão uma perda muito expressiva. É fato que não estão definidos na
PEC o quanto e como se farão as reduções das contribuições sobre a folha. O texto da
proposta determina que estas serão graduais e remete a definição para lei complementar.

44 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Na Cartilha da Reforma Tributária se explica o processo de redução: “a principal medida
de desoneração proposta é a redução de 20% para 14% da contribuição dos emprega-
dores para a previdência, a qual seria implementada ao ritmo de um ponto percentual
por ano, a partir do segundo ano após a aprovação da Reforma”.
Concretamente, no artigo 11 do texto da PEC se lê que “lei definirá reduções
gradativas da alíquota da contribuição” (...) “do empregador, da empresa e da entidade
a ela equiparada (...) incidente (...) sobre a folha de salários”15 (...) “a serem efetuadas do
segundo ao sétimo ano subseqüente ao da promulgação desta Emenda”. A Cartilha da
Reforma Tributária aponta que “a principal medida de desoneração proposta é a redução
de 20% para 14% da contribuição dos empregadores para a previdência, a qual seria
implementada ao ritmo de um ponto percentual por ano, a partir do segundo ano após
a aprovação da Reforma”.16
Além das mudanças propostas no campo específico das contribuições sociais
obrigatórias dos empregadores, outros aspectos da PEC podem impactar o padrão de
financiamento da Previdência Social. Em termos gerais, a reforma proposta implica nas
seguintes mudanças: i) extinção de cinco tributos federais, a CSLL,17 cujos encargos serão
incorporados ao IRPJ,18 e a contribuição para o PIS, a Cofins, a Cide-Combustíveis19 e o
salário-educação; ii) criação de um imposto federal de valor agregado (IVA-F) em substi-
tuição às quatro contribuições extintas; iii) padronização da tributação do ICMS,20 com
o emprego do princípio de destino e a uniformização das alíquotas, tornando nacional a
política de desoneração da cesta básica e de outros produtos de primeira necessidade;21
iv) desoneração da folha, tanto pelo fim do salário-educação como pela citada desoneração
da contribuição patronal, determinada no artigo 11; e v) desoneração das exportações e
dos investimentos, no âmbito da criação do IVA e da uniformização do ICMS.
Essas medidas visam equacionar alguns dos problemas do arcabouço tributário nacio-
nal, destacando-se, além dos citados: a complexidade dos tributos em operação, incidindo
vários deles sobre a mesma base; distorções presentes em alguns tributos indiretos que
afetam a eficiência econômica, especificamente a incidência cumulativa, a desoneração
incompleta dos investimentos e das exportações; e, em menor medida, a regressividade
da tributação, uma vez que as desonerações sobre a cesta básica e produtos essenciais se
restringem a poucos estados e é limitada, no caso das contribuições federais.
Ademais, as medidas buscam melhorar a qualidade das relações federativas, pois pro-
põem a discussão sobre os critérios de repartição do ICMS entre municípios, alteram a base de
partilha federativa22 e ampliam os recursos destinados à política de desenvolvimento regional.

15. A redação editada aqui não altera o conteúdo da atual redação do artigo, ora correspondente ao artigo 195 da Cons-
tituição Federal (CF).
16. Na emenda, o governo teria 90 dias para apresentar projeto de lei.
17. CSLL: Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido.
18. IRPJ: Imposto de Renda – Pessoa Jurídica.
19. PIS: Programa de Integração Social; Cofins: Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social; Cide-Combustíveis:
Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico Incidente sobre as Operações Realizadas com Combustíveis.
20. ICMS: ������������������������������������������������������������������������������������������������������������������
Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual
e Intermunicipal e de Comunicação.
21. Serão preservadas alíquotas maiores para bebidas, fumo, luz e telefonia.
22. Apenas a contribuição previdenciária e os tributos de natureza regulatória (II/IE/IOF/ITR)* não compõem a base de partilha.
* II: Imposto de Importação; IE: Imposto de Exportação; IOF: Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguros e sobre
Operações relativas a Título de Valores Mobiliários: ITR; Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 45


Todas estas iniciativas, que não serão aqui analisadas em detalhe, serão implementadas de
modo gradual, preservando-se, no momento inicial, os montantes associados a estados
e municípios.
Não resta dúvida quanto aos efeitos positivos da simplificação da estrutura tributá-
ria sobre o desempenho da economia, e seus reflexos no nível dos preços deverão trazer
benefícios aos mais pobres. Um fato exemplar refere-se aos efeitos da uniformização
da tributação do ICMS, que, entre outros, implicará a “nacionalização” da política de
desoneração da chamada cesta básica. Com ela, ter-se-á uma redução significativa da
pobreza, como apontam os estudos sobre o tema.23 Este efeito será ainda estendido em
função da extensão das desonerações do novo IVA-F para um número maior de produtos
alimentares e de primeira necessidade, frente ao que hoje se pratica com o PIS/Cofins.
No que diz respeito à Previdência Social, além da desoneração da contribuição patro-
nal, a proposta do governo modifica substancialmente sua base de financiamento e, mais
amplamente, da Seguridade Social como um todo. Hoje, há na regra constitucional uma
separação entre os tributos federais: uns servem ao financiamento da Seguridade Social,
outros são destinados às políticas de crédito para investimentos, e alguns participam da
repartição federativa ou são carreados para as ações de desenvolvimento regional. Assim,
além das contribuições previdenciárias de empresas e trabalhadores, as contribuições
sociais incidentes sobre o faturamento e o lucro das empresas (CSLL e Cofins) se des-
tinavam ao financiamento da Previdência, da Saúde, da Assistência Social e ao seguro-
desemprego – à Seguridade Social. Ao mesmo tempo, IR e IPI são objetos de repartição
federativa: a União destina uma parcela para as políticas de desenvolvimento regional, e
transferências automáticas para estados e municípios. A contribuição para o PIS – outra
contribuição sobre o faturamento – e o salário-educação – outra contribuição incidente
sobre a folha – destinavam-se, o primeiro, ao abono salarial, ao seguro-desemprego e
ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – Fundo de
Amparo ao Trabalhador (FAT) –, e o segundo, à educação básica.
A proposta preserva o conceito de seguridade e de orçamento a ela específico contido
no artigo 195 da Constituição Federal, mas altera a sua base de financiamento. Isto em
decorrência da simplificação do sistema, pois, ao associar todos os tributos indiretos (PIS,
Cofins, Cide) em um imposto de valor agregado (denominado de IVA-F), incorporar a
CSLL ao IRPJ, compensar na alíquota do IVA-F o fim do salário-educação, e instituir
desonerações nos investimentos, nos bens de primeira necessidade e nas exportações,
aboliu, no caso das contribuições, parte das vinculações de tributos ao financiamento da
Seguridade Social. A Seguridade passaria a ser financiada, então, pela sua fonte clássica
(as contribuições sobre folha de patrões e trabalhadores) e por uma parcela dos principais
tributos federais (o IVA-F, o IPI e o IR), parcela esta que equivale, em valores de 2006,
aos montantes arrecadados com a Cofins e a CSLL.
Mas o que, enfim, gera esta mudança? Em primeiro lugar, e uma “estranha”
redação constitucional, ao vincular o financiamento da Seguridade a uma proporção
de um agregado de tributos, definido em outro parágrafo. O quadro 2 compara as duas
redações, com vistas a ilustrar a redação peculiar.

23. Ver MAGALHÃES, L. C. G. et al. Tributação, Distribuição de Renda e Pobreza: Uma Análise dos Impactos da Carga
Tributária Sobre Alimentação nas Grandes Regiões Urbanas Brasileiras. Brasília: Ipea, 2001 (Texto para Discussão n. 804).

46 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


QUADRO 2
Alterações propostas pela PEC no 233/2008 na redação do artigo 195 da CF
Redação atual Redação PEC
“A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma
direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos Igual
orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”
“(...) e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa “da destinação estabelecida no art. 159, I, ‘a’ e das seguintes con-
e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a tribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela
folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, equiparada na forma da lei, incidentes sobre a folha de salários e demais
a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa
vínculo empregatício;” física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;”
“b) a receita ou o faturamento; c) o lucro;” Excluídos
“II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não “II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não
incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo
regime geral de previdência social de que trata o art. 201; III - sobre a regime geral de previdência social de que trata o art. 201; III - sobre a
receita de concursos de prognósticos.” receita de concursos de prognósticos.”
“IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a
Excluído
ele equiparar.”
Elaboração: Disoc/Ipea.

Conforme apontado aqui, a destinação reportada no artigo 159 da PEC, inciso I,


alínea a, preserva o montante destinado à Seguridade, tendo por base o ano de 2006.
Efetivamente, propõe-se a agregação do IVA-F, do IR e do IPI, que juntos constituirão
base de financiamento para a Seguridade Social, a educação básica, o FAT – com a par-
cela destinada ao BNDES –, os investimentos em infra-estrutura de transportes, bem
como para a partilha federativa e a política regional. Estas destinações guardam relação
direta com os montantes alocados, em 2006, para cada uma destas políticas públicas e
intervenções governamentais.
Colocam-se outras sugestões para alterações no artigo 195, parágrafos 11, 12 e 13.
No primeiro e último parágrafo, as mudanças propostas são adequações para a nova
base de financiamento, assegurando-se o espírito de ambos, quais sejam: a vedação
de anistia para as contribuições previdenciárias de empregadores e empregados para
débitos superiores aos fixados em lei; e a possibilidade de desoneração da contribuição
patronal compensada por aumento de alíquota de tributo sobre consumo – hoje a
Cofins; na proposta, o IVA-F. O parágrafo 12, por sua vez, que tratava da possibili-
dade de tratamento diferenciado para as contribuições descritas no inciso I, alínea b,
e no inciso IV, ganha nova redação. Concede-se às agroindústrias, produtores rurais e
associações desportivas a possibilidade de contribuírem sobre a receita ou faturamento,
em vez de sobre a folha de salários.
Outro aspecto da proposta que pode vir a ter impactos negativos sobre o financia-
mento da Seguridade diz respeito à definição das alíquotas do IVA-F e, conseqüente-
mente, de sua arrecadação. O IVA-F virá substituir a contribuição para o PIS, a Cofins
e a Cide-Combustíveis, além de compensar a perda de arrecadação do salário-educação,
incorporando à sua mecânica, ademais a desoneração sobre investimentos, exportações e
produtos da cesta básica ou de primeira necessidade. Estima-se que a alíquota do IVA-F
ficará entre 12,50% e 14,00%, bastante superior aos 10,50% que resulta da soma
entre a alíquota conjunta de 9,25% do PIS e da Cofins sob o regime não cumulativo,
e a alíquota de 1,25% que se estima ser necessária para se compensar a arrecadação do
salário-educação e da Cide-Combustiveis.24 Esta estimativa tem por pressuposto o fato
de que as duas principais contribuições que o IVA-F substituirá contam com base de
incidência mais ampla, não permitem a recuperação total de créditos, e operam, para

24. Não considerado o aumento de alíquota necessária, caso ocorra, via IVA-F, a compensação da desoneração sobre a folha.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 47


determinados segmentos, com incidência cumulativa. Uma alíquota desta envergadura
frente à alíquota modal do ICMS da ordem de 17% certamente incorrerá em pressões
pela diminuição da tributação sobre o consumo. Esta pressão deverá ser canalizada, tendo
em vista a prevalência dos interesses estaduais na Câmara dos Deputados via desoneração
do novo IVA-F. Conclui-se, portanto, que potenciais diminuições na carga tributária
deverão ser efetivadas pela desoneração do tributo federal sobre o consumo, afetando,
assim, a nova base de financiamento da Seguridade Social.
Caso esse cenário não se concretize, a proposta apresenta ganhos, pois o financiamento
da Seguridade estará vinculado a uma base de financiamento com incidência mais progres-
siva e de menor volatilidade que a das contribuições sociais que hoje a financiam. A maior
progressividade se deve à incorporação do IR aos tributos que financiam a Seguridade,
sendo que, hoje, a maior parte dos tributos que a financiam ou são regressivos (Cofins) ou
neutros (contribuições sobre a folha e o salário). No que diz respeito à menor volatilidade,
o desempenho, entre 2004 e 2007, da CSLL e da Cofins juntas ficou aquém do cresci-
mento para o agregado de tributos que correspondem à nova base de financiamento – IR,
IPI, CSLL, Cofins, PIS, Salário-Educação e Cide-Combustíveis. Concretamente, segundo
dados do Ministério da Fazenda, a base ampla teve um aumento de sua arrecadação no
período 6,5% superior ao subconjunto Cofins e CSLL.
Na figura 1, apresentam-se de modo esquemático as contribuições e os tributos hoje
existentes, com seus montantes e respectivas vinculações e/ou destinos, e que, alterados,
transformados ou preservados comporão essa nova base de financiamento de programas
e políticas públicas e de repartição federativa. Em 2006, as participações neste conjunto
de tributos (CSLL, Cofins, PIS, Cide-Combustíveis, Salário-Educação, IR e IPI) ser-
viram de base para a determinação das parcelas, no novo agregado de tributos (IR, IPI
e IVA-F), a serem destinadas a cada uma das políticas e programas cujas contribuições
a elas vinculadas foram extintas De igual maneira, serviram ainda para a definição das
parcelas reservadas à partilha com estados e municípios.
FIGURA 1
Valor, destinação e participação percentual das contribuições a serem extintas, e dos tributos
(IR e IPI) objeto da repartição federativa (2006)
Tributos e contribuições Valor (R$ bilhões) Destino Valor (R$ bilhões) Participação percentual
CSLL 28,0
Seguridade 119,5 38,8
Cofins 91,5
PIS 20,6 FAT-BNDES 20,6 6,7
Cide 7,8 Infra-Estrutura de transportes1 7,8 2,5
Salário-Educação 6,9 Educação básica1 6,9 2,2

Subtotal 154,8 Subtotal 154,8 50,3

IR 125,8 FPE (21,5% IR+IPI) 32,9 10,7


FPM (23,5% IR+IPI) 36,0 11,7
IPI 27,4 Fundos constitucionais (3% IR+IPI) 4,6 1,5
FPEX (10% IPI) 2,7 0,9

Subtotal 153,2 Subtotal 76,3 24,8


Não partilhado 76,9 25,0
Total 308,0 Total 308,0 75,2
Fonte: Cartilha da Reforma Tributária – Ministério da Fazenda.
Nota: 1 Os recursos da Cide-Combustíveis e do Salário-Educação são, também, repartidos com estados e municípios, o que será preservado, segundo
a PEC no 233/2008.

Em realidade, o formato da distribuição buscou preservar os mesmos valores da


repartição percentual que, aplicados ao agregado IR e IPI, se destinam ao Fundo de

48 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Participação de Estados (FPE) e ao Fundo de Participação de Municípios (FPM). Com
isso, do agregado IR, IPI e IVA-F se destinam 38,8%, 6,7%, 2,5% e 2,3% à Seguridade
Social, ao FAT, à infra-estrutura de transportes e à educação básica, respectivamente. Em
uma segunda etapa, aplicar-se-á ao restante, ou seja, a 49,7% deste conjunto de tributos,
a seguinte repartição: 21,5% ao FPE, 23,5% ao FPM, 4,8% aos Fundos Constitucio-
nais e 1,8% ao Fundo de Equalização de Receitas. Os percentuais relativos ao FPE e ao
FPM são os mesmos hoje definidos para a soma IR com IPI.25 Se, ao mesmo tempo, um
aumento na destinação aos Fundos Constitucionais de 1,8 ponto percentual e verifica-a
substituição do Fundo de Promoção das Exportações (FPEX) pelo FER, cujo objetivo
é compensar as perdas de arrecadação que alguns estados terão com a instituição do
principio de destino no ICMS.
Esse processo de distribuição da soma do IR, IPI e do IVA-F, proposta na nova
redação dada ao artigo 159 da CF pela PEC, encontra-se ilustrado na figura 2, onde
se mostram, também, quais contribuições serão extintas e/ou compensadas pelo IVA-F
e a incorporação da CSLL ao IRPJ. Vale sublinhar que aos recursos não destinados à
Seguridade, ao FAT, à educação básica e à infra-estrutura de transportes somar-se-ão o
Imposto sobre Grandes Fortunas – dependendo de regulamentação – e as novas contri-
buições que poderão vir a ser criadas – a chamada competência residual – para, então,
ser efetuada a partilha federativa entre os diferentes fundos.
Há um intenso debate e muita divergência quanto aos efeitos dessa mudança: há
aqueles que preconizam que a não vinculação de contribuições específicas à Seguri-
dade Social enfraquece, ou melhor, fragiliza ainda mais a noção de Orçamento da
Seguridade e, por conseguinte, seu arcabouço normativo e institucional. Preocupação
semelhante de estudiosos da área educacional, ao sustentarem que o fim do salário-
educação acarreta a fragilização do financiamento à educação, pois esta contribuição
implicava, de um lado, clara fonte adicional de recursos e, de outro, no comprome-
timento das empresas com a educação.
Em documento de maio último, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da
Receita Federal do Brasil explicita seu temor, pois, ainda que “a proposta não [ponha] fim
ao Orçamento da Seguridade, (...) ele será financiado com os recursos do RGPS (Folha de
Salários e Concursos de Prognósticos) e ‘transferências de recursos fiscais’, determinados
constitucionalmente”, o que, “do ponto de vista do financiamento” significa torná-lo
“Orçamento da Previdência Social”. A associação considera a proposta bastante diversa
da “situação atual”, dado que “ao invés de contribuições sociais próprias da Seguridade,
recursos que não podem ser rivalizados com despesas fiscais (...), a nova fonte de financia-
mento do Orçamento da Seguridade Social será uma fração da arrecadação de impostos
(IVA-F). A partir de então, a carência de recursos para todas as despesas fiscais poderá
ser creditada às transferências realizadas para cobrir os déficits da Previdência Social ou
para o aumento dos gastos com saúde e assistência social”.
Há os que não vêem motivo de apreensão pela proposta de alteração no artigo
195, com a remoção de itens específicos que vinculavam as contribuições sociais sobre o
faturamento (Cofins) e o lucro (CSLL) ao financiamento da seguridade. Sustentam não
haver fundamento na preocupação, pois significa o mesmo que afirmar que a vinculação

25. Os percentuais são os mesmos, pois os 49,7% restantes remontam, em dados de 2006, à mesma receita do IR
somada ao IPI.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 49


determinada constitucionalmente de se aplicar 18% da receita do governo federal em
educação implica menor garantia do que a vinculação de determinado imposto a esta
mesma política pública.
FIGURA 2
Nova base de financiamento de programas sociais e de repartição federativa: as novas vinculações
propostas na PEC no 233

Fonte: PEC no 233/2008.

As fragilidades do Orçamento da Seguridade Social e os ataques ao seu formato


atual vêm de longa data e, em certa medida, refletem as ambigüidades da Carta consti-
tucional em relação à Seguridade. Um exemplo destas ambigüidades é a presença tanto
de um pilar universal como de um securitário. Resta, portanto, uma tensão entre o di-
reito individual – o recebimento de um benefício em contrapartida a uma contribuição
– e o direito coletivo – mais ligado à saúde e à parcela das ações da assistência social.
Assim, de um lado, têm-se os direitos previdenciários que, instituídos na Constituição e
regulamentados por leis específicas, são direitos individuais, o que implica, conseqüen-
temente, uma conta em aberto. Devem ser pagos independentemente da existência de
uma fonte de recursos especificamente vinculada para tal. De outra parte, há os direitos
relativos à atenção universal à saúde e aos riscos sociais em geral e, em particular, aos
desamparados, que são direitos coletivos. Não contam com mandato legal específico no
sentido de serem cumpridos naquele montante e naquela quantidade. Como são direitos
distintos e, dado que a conta da Previdência tem que ser paga, o resíduo é o que fica à
disposição do financiamento dos demais componentes abrangidos pela Seguridade Social.

Ademais, a disputa entre a Saúde e a Previdência por recursos é anterior à Cons-


tituição, a qual, por sua vez, não resolveu a controvérsia. A não-solução fica patente,
de imediato, pela inserção nas disposições transitórias – artigo 55 – de regra de repasse
para a Saúde de no mínimo 30% do Orçamento da Seguridade antes da aprovação da
Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A referida disputa pode ser notada, também,
pela insistência dos gestores das políticas de saúde em garantir novas fontes de recursos
ou de vinculações: a criação da CPMF e a promulgação da Emenda Constitucional no
29/2000. Da parte da Previdência, a busca de recursos específicos se expressa na decisão,

50 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


já em 1993, de reter os recursos provenientes da contribuição sobre a folha e os salários
para o pagamento dos benefícios, institucionalizada pela Emenda Constitucional no
20/1998. A figura 3, elaborada pelo MPS, ilustra esta divisão interna do financiamento
da Seguridade, ao considerar a Previdência como o braço contributivo daquela, cabendo
à Saúde e à Assistência Social o pilar não-contributivo, devendo, assim, ser financiada
por contribuições outras que não as vinculadas à folha de salários.
FIGURA 3
Financiamento da Seguridade Social e de seus três componentes, segundo o Ministério da
Previdência Social

Fonte: MPS.

Não resta dúvida de que as alterações propostas implicarão trazer para o centro
da arena a disputa por recursos entre Seguridade e recursos destinados à repartição
federativa, disputa esta que se encontra hoje, em certa medida, camuflada. Ou seja,
segundo a norma constitucional em vigor, as fontes de recursos vinculadas ao finan-
ciamento da Seguridade e ao FAT não são objetos de repartição com os outros entes
federativos, diferentemente do que ocorre com o IR e o IPI. Assim, a União tem lançado
mão destas contribuições para ampliar a sua arrecadação, dado que sobre elas se aplica
a Desvinculação de Receitas da União (DRU). E, ao mesmo tempo, as políticas de
incentivo, por meio da concessão de benefícios fiscais, notadamente as voltadas para
segmentos da indústria ou de serviços, têm sido aplicadas para estas contribuições.
Isto porque estados e municípios são contrários à desoneração dos tributos com eles
compartilhados. Com a proposta, a base de financiamento para as políticas sociais e
para a repartição federativa será a mesma.
Quanto à aplicação da DRU, os técnicos do Ministério da Fazenda afirmam que a
proposta preserva a situação atual. Entendem que a alteração no artigo 76 das Disposi-
ções Transitórias, que regulamenta a DRU, continua preservando dessa desvinculação
os recursos destinados à partilha federativa e à educação básica (Salário-Educação).
Considera-se aqui haver um problema na aplicação da DRU, dadas as diferentes interpre-
tações possíveis ao que regem os artigos 76 e 159. Estes juntos definem como será feita
a repartição da base ampliada de tributos, e quais das destinações estão salvaguardadas

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 51


da desvinculação. No parágrafo 1o do artigo 76 fica estabelecido que a desvinculação “não
alterará a base de cálculo a que se referem os arts. (...) e 159, I, ‘c’, 2, e II, da Constitui-
ção” – respectivamente, o financiamento da educação básica e a repartição federativa.
Ocorre, entretanto, que no artigo 159 a destinação da arrecadação conjunta do IR, do
IPI e do novo IVA-F é realizada, conforme aqui analisado, em duas etapas. Na primeira,
vinculam-se parcelas percentuais deste agregado ao financiamento da Seguridade, do FAT,
da infra-estrutura em transportes e da educação básica. Em uma segunda etapa, ou seja,
após serem descontados estes montantes e adicionada a competência residual, são definidas
as destinações para estados e municípios, para a Política de Desenvolvimento Regional, e
para o Fundo de Equalização de Receitas. Tal processo está explicitado no parágrafo 2o do
referido artigo, no qual se lê que “para efeito de cálculo das destinações a que se refere o
inciso II do caput deste artigo,26 excluir-se-ão da arrecadação dos impostos as destinações
de que trata o inciso I do caput deste artigo,”27 Cabe indagar como não alterar a base de
cálculo relativa ao que se destina à repartição federativa, se esta base resulta da diferença
entre o produto da arrecadação de três tributos e destinações que são afetadas pela DRU.
Em um extremo, pode-se supor que a DRU não incidirá sobre a base ampla, e, no
outro, que incidirá sobre ela como um todo, preservando-se os valores da repartição fe-
derativa e os destinados à educação básica, o que resultaria em uma desvinculação maior
que 20% para os recursos da Seguridade, do FAT, da infra-estrutura de transportes, e
do restante não partilhado ou vinculado. Entre uma opção e outra, a desvinculação se
restringiria aos recursos não salvaguardados, ou seja, a DRU seria inferior a 20% da
base ampla. A tabela 5 apresenta estas simulações, cabendo sublinhar que na aplicação
da DRU às vinculações não salvaguardadas, considerou-se, entre elas, os recursos não
partilhados. A aplicação da DRU implica queda de participação dos recursos para a
Seguridade Social na nova base de financiamento, entre 2,5 e 3,6 pontos percentuais.
TABELA 5
Simulações de aplicação da DRU – PEC no 233/2008
Valor (R$ bilhões) Participação percentual

Destino Com DRU Com DRU


Sem DRU Na base Sem DRU
Nos não salvaguardados Nos não salvaguardados Na base ampla
ampla
Seguridade 119,5 95,6 86,7 38,8 36,3 35,2
FAT-BNDES 20,6 16,5 15,0 6,7 6,3 6,1
I.E. transportes 7,8 6,2 5,7 2,5 2,4 2,3
Educação básica 6,9 6,9 6,9 2,2 2,6 2,8
Subtotal I 154,8 125,2 114,3 50,3 47,6 46,4
FPE 32,9 32,9 32,9 10,7 12,5 13,4
FPM 36,0 36,0 36,0 11,7 13,7 14,6
Fundos constitucionais1 4,6 4,6 4,6 1,5 1,7 1,9
FER 2,8 2,8 2,8 0,9 1,0 1,1
Subtotal II 76,3 76,3 76,3 24,8 29,0 31,0
Não partilhado 76,9 61,5 55,8 25,0 23,4 22,7
Total 308,0 263,1 246,4 100,0 100,0 100,0
Fonte: Disoc/Ipea, com base nos dados do MF.
Nota: 1 Considerou-se a destinação de 3,0% hoje aplicada, e não os 4,8% propostos.

A dificuldade de interpretação de qual deve ser a base de cálculo ou a base de inci-


dência na aplicação da DRU na nova realidade fica patente nos números apresentados
pelo Ministério da Fazenda na Cartilha da Reforma Tributária, em sua tabela 11, aqui
reproduzida (tabela 6).

26. Refere-se à repartição federativa.


27. Refere-se às destinações para a Seguridade, o FAT, a infra-estrutura em transportes e a educação básica.

52 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 6
Reprodução da tabela 11 da Cartilha da Reforma Tributaria do Ministério da Fazenda, com a nova
contabilidade, sem e com a DRU
(Em R$ bilhões)
Sem DRU Com DRU
A. Base I: IR + IPI + IVA-F1 308,0 246,4
B. Vinculações (% de A) 154,9 125,4
Seguridade Social (38,8%) 119,5 95,6
FAT/BNDES (6,7%) 20,6 16,5
I.E. de transportes etc. (2,5%)2 7,7 6,2
Educação básica (2,3%)2,3 7,1 7,1
C. Base II: (A) - (B)(3) 153,1 153,1
D. Partilha federativa (% de C)
FPE (21,5%) 32,9 32,9
FPM (22,5%) 36,0 36,0
FNDR (4,8%) 7,3 7,3
FER (1,8%) 2,8 2,8
Fonte: Ministério da Fazenda (MF).
Notas: 1 A arrecadação do novo IR corresponde à do IR atual + CSLL, e a do IVA-F, à soma das arrecadações do PIS,
Cofins, Cide e Salário-Educação.
2
São preservadas as atuais partilhas da Cide-Combustíveis e do Salário-Educação com estados e municípios.
3
A vinculação à educação básica e a base sobre a qual é calculada a partilha federativa não se alteram por força
do artigo 76, § 1o do ADCT.

Na coluna com DRU há uma incongruência aritmética, pois a diferença entre a


Base I (IR+IPI+IVA-F) – rubrica (A) – e as vinculações – rubrica (B) – é diferente dos
R$ 153,1 bilhões ali apontados – rubrica (C). Caso se queira preservar o montante de
recursos que serve de base da repartição federativa (R$ 153,1 bilhões)28 e o valor destinado
à educação básica,29 aplicando-se a DRU aos recursos vinculados à Seguridade, ao FAT
e à infra-estrutura em transportes, o valor desvinculado seria inferior ao apresentado na
tabela, que é a diferença entre R$ 308,0 e R$ 246,4 bilhões. Em realidade, a base ampla
somaria R$ 278,5 bilhões. Fica patente, portanto, a dificuldade de interpretação da DRU
sob o novo regime de financiamento proposto, dado que a própria memória de cálculo
apresentada pelo proponente é confusa ao misturar duas alternativas de aplicação da
DRU: à base ampla e aos recursos vinculados e não salvaguardados.
O debate sobre os efeitos da Reforma Tributária na Seguridade Social, em geral, e
na Previdência Social em particular, encontra-se circunscrito a algumas poucas arenas, no
Legislativo e nos fóruns especializados. Ademais, a discussão sobre a reforma tem estado
centrada nas questões relativas à simplificação do sistema e dos potenciais ganhos daí
advindos, assim como às dificuldades na concertação de interesses dos entes federados
para a concretização das mudanças propostas. É imprescindível que o tema aqui pro-
posto seja amplamente debatido, dados os impactos que as mudanças propostas podem
acarretar para os afiliados e os beneficiários da Previdência Social.
5 Considerações finais
A avaliação do comportamento das contas do RGPS mostra uma inflexão na trajetória
da necessidade de financiamento da Previdência, com a previsão de um “déficit”, em
2008, inferior em cerca da R$ 10 bilhões frente ao observado no ano passado. Este fato,
como apontado no número anterior deste periódico, se deve aos expressivos ganhos que
se vem se assistindo no mercado de trabalho, com crescimento do emprego formal e das
remunerações. Chamou-se atenção para dois aspectos da proteção previdenciária: o caso
dos desempregados em período de graça, e a situação da população jovem – aprofundando

28. Indica que os recursos não partilhados ficam salvaguardados da aplicação da DRU.
29. O valor destinado à educação básica estranhamente difere do apresentado na tabela 5, bem como dos valores apre-
sentados na própria cartilha em tabela anterior, mas isto não prejudica a interpretação aqui realizada.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 53


o tratamento dado a eles em números anteriores deste capítulo dedicado à área da pre-
vidência. Verificou-se que, em 2006, cerca de 1 milhão de trabalhadores desempregados
encontravam-se cobertos pelo sistema por estarem no chamado período de graça. Esta
população representa pouco mais de 1% da PEA aqui considerada – homens de 16 a 60
anos e mulheres de 16 a 55 anos. No caso dos jovens, nota-se que o principal problema
do menor grau de proteção se deve às expressivas taxas de desemprego observadas nesta
faixa populacional, notadamente entre 16 e 21 anos.
Em relação aos outros dois componentes do sistema previdenciário nacional,
destacou-se a importância da previdência complementar, cujos ativos financeiros re-
presentam cerca de 20% do PIB. Observou-se uma performance muito positiva de seu
patrimônio nos últimos anos, devido muito mais à valorização de suas carteiras do que
pelo desempenho das contribuições e pela entrada de novos participantes.
Na seção Tema em destaque, buscou-se analisar as implicações da PEC no 233/2008
da Reforma Tributária no financiamento da Seguridade Social, particularmente na Pre-
vidência Social. Ainda que a proposta preserve o volume de recursos destinados à Segu-
ridade, com base na arrecadação de 2006, existem sérias dúvidas quanto aos riscos que
a nova vinculação implica ao unificar a base de financiamento das políticas sociais e da
repartição federativa. Outra preocupação reside na desoneração da contribuição patronal
para a Previdência, visto não se contar, na PEC, com a normatização da compensação
desta perda de arrecadação pela transferência para o novo IVA-F ou outro tributo sobre
faturamento ou receita. Há que se ter presente, contudo, que o desempenho recente da
nova base de financiamento é superior aos das contribuições que serão substituídas, bem
como o fato de que o financiamento tornar-se-á menos regressivo.
A inquietude maior, no entanto, é que a PEC não tem sido objeto de debate em
fóruns onde se encontrem representados aqueles que serão mais diretamente afetados:
trabalhadores, aposentados e pensionistas.

54 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


ASSISTÊNCIA SOCIAL E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL

1 Apresentação
Este capítulo trata do acompanhamento das políticas federais de assistência social, trans-
ferência de renda e segurança alimentar e nutricional, cuja gestão se encontra a cargo do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Contudo, conforme
será apontado adiante, o planejamento e a execução da política de segurança alimentar e
nutricional reveste-se de cunho intersetorial, que inclui não apenas o envolvimento, mas
a participação efetiva e a interação com outras áreas (educação, saúde, direitos humanos
etc.), tanto em nível governamental como não governamental.
A par das informações resumidamente analisadas acerca do andamento físico e
financeiro dos programas, ações e demais iniciativas desenvolvidas em 2007 e começo
de 2008 no âmbito dessas políticas, elegeram-se aqui três fatos considerados de especial
relevância, os quais são objeto de descrição e discussão específicas na próxima seção, a
saber: i) a realização da VI Conferência Nacional de Assistência Social, cujos resulta-
dos foram marcados especialmente pela definição de metas que assegurem a proteção
social pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas), aí incluída a ampliação do co-
financiamento do sistema pelas três esferas de governo; ii) a criação e implementação do
Programa BPC na Escola, que tem como proposta a inserção no sistema educacional
do grupo etário de 0 a 18 anos beneficiários do Programa Benefício de Prestação Continu-
ada (BPC); e iii) a apresentação do Projeto de Lei (PL) no 3.021/2008, que dispõe sobre
a certificação das entidades beneficentes de assistência social e regula os procedimentos
de isenção de contribuições para a Seguridade Social.
A seção Tema em destaque, que constitui a última parte deste capítulo, trata do
Benefício de Prestação Continuada (BPC) propriamente dito – sua trajetória no que diz
respeito a regulamentação, abrangência, perfil dos beneficiários atendidos e evolução
dos gastos. Ali são também retomadas algumas das discussões suscitadas em virtude das
mudanças conceituais e de gestão observadas no decorrer dos anos, as quais impactaram
diretamente as condições de acesso e a cobertura do programa.
2 Fatos relevantes
O ano de 2007 foi marcado por uma série de acontecimentos relevantes, alguns deles
abordados na edição anterior deste periódico. Entre os temas ali tratados e que não serão
retomados nesta edição, vale lembrar a ampliação da faixa etária do público atendido
pelo Programa Bolsa Família por meio do Benefício Variável Jovem, a III Conferência de
Segurança Alimentar e Nutricional realizada em julho de 2007, e a assinatura dos Decre-
tos nos 6.272/2007 e 6.273/2007 – responsáveis, respectivamente, pela regulamentação
do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e pela criação
da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan). O Decreto
no 6.214, de 26 de setembro de 2007, que regulamentou o BPC, foi objeto de exame
do número anterior deste periódico, mas será novamente abordado na seção Tema em
destaque, que é dedicada a este benefício.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 55


Entre os episódios que serão aqui analisados, ressaltam-se a realização da VI Confe-
rência Nacional de Assistência Social e o lançamento do BPC na Escola – programa que
visa garantir a escolarização do público beneficiário atendido pelo Benefício de Prestação
Continuada no ensino regular. A seção não poderia deixar de tratar também de alguns
fatos ocorridos no início de 2008, decorrentes de fatos anteriores. São eles a apresenta-
ção do Projeto de Lei (PL) no 3.021/2008, que dispõe sobre a certificação das entidades
beneficentes de assistência social e regula os procedimentos de isenção de contribuições
para a Seguridade Social, e a crise desencadeada no Conselho Nacional de Assistência
Social (CNAS) após investigação da Polícia Federal.
2.1 A VI Conferência Nacional de Assistência Social
A VI Conferência Nacional de Assistência Social foi realizada no período de 14 a 17
de dezembro de 2007 em Brasília (DF), e reuniu cerca de 2 mil participantes, entre
eles: 1009 delegados, 145 convidados, 324 observadores e 207 pessoas envolvidas
nos painéis, oficinas, estandes, mobilização, imprensa e relatoria. Uma expressiva
estimulação antecedeu a conferência. A etapa preparatória foi marcada por 27 con-
ferências estaduais e do DF, além de 4.693 conferências municipais de assistência
social, realizadas entre julho e outubro do mesmo ano. Estes encontros envolveram,
segundo o CNAS, cerca de 500 mil pessoas. Entre os estados da Federação, dez
realizaram conferências municipais em todos os seus respectivos municípios, e sete o
fizeram em mais de 90%.
O principal objeto da conferência foram os compromissos e as responsabilidades
para assegurar proteção social pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas). Entre os
demais temas abordados, destacam-se os relativos ao Plano Decenal de Assistência Social,1
aos direitos socioassistenciais, ao controle social, e ao protagonismo dos usuários. O resul-
tado final foi a aprovação de um conjunto de deliberações, denominadas metas, a serem
incorporadas ao Plano Decenal, merecendo especial relevo as seguintes: i) regulamentar,
por meio do instrumento jurídico adequado, o artigo 28 da Lei Orgânica de Assistência
Social (Loas) que trata do co-financiamento das três esferas de governo; ii) garantir, por
intermédio de uma legislação específica, o modelo de gestão do Suas como sistema des-
centralizado e participativo da assistência social; iii) assegurar eqüidade no atendimento
entre áreas urbanas e rurais; e iv) municipalizar as ações de Proteção Social Básica realizadas
pelos estados.
A respeito do co-financiamento do Suas, além de uma proposta de legislação
específica, algumas das chamadas “metas” foram aprovadas neste campo, podendo ser
destacadas: a ampliação do co-financiamento e alocação de recursos próprios de estados
e municípios nos fundos de assistência social; a ampliação do valor dos pisos de proteção
social atualmente praticados na transferência de recursos federais; e o estabelecimento de
um percentual mínimo de participação das três esferas de governo no co-financiamento.
A conferência estabeleceu ainda um objetivo referente à equiparação das regras do BPC

1. A V Conferência de Assistência Social, realizada em 2005, teve como principal objetivo a consolidação de um plano
de metas para implementação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) em um prazo de dez anos, e deliberou,
juntamente com as conferências municipais, estaduais e do Distrito Federal, as estratégias necessárias para atingir este
objetivo. Após quase dois anos, o MDS – órgão incumbido da elaboração de uma proposta – apresentou ao CNAS uma
versão preliminar do chamado Plano Decenal Suas – Plano 10, que continha ações e metas previstas até 2015 para todos
os entes federativos (União, estados e municípios). Na mesma reunião plenária em que o plano foi apresentado, o CNAS
determinou a realização de uma consulta pública, cujo objetivo seria promover uma ampla discussão para que o texto final
pudesse ser aprovado na VI Conferência.

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para as pessoas com deficiência àquelas aplicadas ao idoso, no que diz respeito à não-
inclusão do valor do benefício já concedido no cálculo da renda per capita familiar para
fins de acesso de outro membro da família.
2.2 O BPC na Escola
Em abril de 2007, foi criado o Programa BPC na Escola, com o objetivo de garantir,
prioritariamente, o acesso e permanência no sistema educacional das crianças e jovens
com deficiência na faixa de 0 a 18 anos, contemplados pelo Benefício de Prestação Con-
tinuada (BPC). O programa, que é fruto da articulação entre o MDS, o Ministério
da Educação (MEC), o Ministério da Saúde (MS) e a Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), conta com gestão intersetorial
no âmbito federal composto por representantes dos respectivos ministérios. Visando
à garantia do direito constitucional à escolarização e ao atendimento educacional es-
pecializado na escola comum do ensino regular, o programa se organiza em torno de
quatro eixos: i) identificação, entre os beneficiários do BPC até 18 anos, daqueles que
estão na escola e daqueles que estão fora dela; ii) detecção das principais barreiras para
o acesso e permanência na escola das pessoas com deficiência beneficiárias do BPC;
iii) realização de estudos e desenvolvimento de estratégias conjuntas para superação
destas mesmas barreiras; e iv) acompanhamento sistemático das ações e programas dos
entes federados que aderirem ao programa.
Além das ações educacionais, o BPC na Escola prevê ainda diversas ações no âmbito
da assistência social, da saúde e dos direitos humanos. No caso da primeira, a articulação
de serviços, programas e benefícios entre si e com as demais políticas setoriais, a par
da garantia da convivência familiar e comunitária com qualidade; quanto à saúde, o
fortalecimento da implantação local da Política de Atenção à Saúde da Pessoa com De-
ficiência; e no que diz respeito aos direitos humanos, o apoio para ações de capacitação
em temas da acessibilidade.
Para que os estados, o Distrito Federal e os municípios participem do programa
é necessário que formalizem sua adesão e constituam grupo gestor local ou estadual
com representantes das áreas da educação, saúde, assistência social e direitos humanos.
No primeiro semestre de 2008, o MDS divulgou os primeiros dados sobre a participação
no programa. Ao todo, 2.651 municípios aderiram ao BPC na Escola, o que significa
o atendimento de 226.775 beneficiários. No Acre e no Amapá, quase 100% dos mu-
nicípios aderiram ao programa; Rio Grande do Sul e São Paulo foram os estados que
apresentaram menor índice de adesão, em torno de 30%. Esta baixa adesão pode estar
relacionada ao fato de que as regiões Sul e Sudeste contam com índices mais expressivos
de atendimentos de crianças e adolescentes com deficiência em escolas especializadas
mantidas por entidades sem fins lucrativos.
2.3 A Crise no Conselho Nacional de Assistência Social e o PL no 3.021/2008
No dia 13 de março de 2008, a Polícia Federal deu publicidade a uma investigação que
vinha realizando junto ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) há mais
de três anos,2 com base em denúncia de envolvimento de conselheiros e servidores
nos processos de concessões fraudulentas de Certificados de Entidade Beneficente de

2. Segundo nota publicada pela Polícia Federal, as investigações começaram em 2004, a partir de denúncia apresentada
por uma entidade à Superintendência Regional da Polícia Federal no Distrito Federal.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 57


Assistência Social (Cebas).3 Por meio de uma operação denominada Fariseu, que in-
vestigou cerca de 60 entidades beneficentes, a Polícia Federal anunciou a prisão de seis
pessoas envolvidas, além da expedição de 27 mandados de busca e apreensão em cinco
estados (Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) e no
DF. As principais acusações foram de corrupção ativa e passiva, advocacia administrativa
e tráfico de influência.
O escândalo, que culminou com o afastamento do presidente do CNAS, levou o
conselho a suspender o processo eleitoral da sociedade civil que se encontrava em curso
pelo prazo de 90 dias, bem como a interromper a concessão de Cebas até definição da
nova composição do colegiado e de novos procedimentos internos para certificação.
O MDS, em nota pública,4 condenou o que chamou de “atitudes contrárias aos princí-
pios da ética, da seriedade e da probidade”, e se colocou à disposição para colaborar no
que fosse necessário com as investigações.
Cabe lembrar que o processo de concessão do Cebas vinha sendo objeto de debates
e análise pelo CNAS e pelo MDS há cerca de dois anos. Ainda em 2006, visando en-
frentar dificuldades encontradas no procedimento de certificação,5 o governo instituiu
um grupo de trabalho que apresentou ao conselho, em agosto daquele ano, uma minuta
de decreto objetivando regulamentar a concessão, renovação e cancelamento do Cebas,
assim como alterar a instrução, análise e tramitação dos processos, conforme relatado em
edição anterior deste periódico. A proposta governamental foi objeto de amplos debates,
e deu origem ao Projeto de Lei no 3.021/2008, encaminhado ao Congresso Nacional
um dia antes do anúncio da operação Fariseu.
O PL no 3.021/2008 propõe importantes modificações quanto à certificação das
chamadas entidades beneficentes de assistência social e quanto à atuação do Conselho
Nacional de Assistência Social. Uma das principais alterações propostas prevê que os
ministérios da Educação e Saúde serão chamados a se manifestar sobre os requerimentos
de concessão do Cebas e sobre o cumprimento das regras que condicionam o direito ao
certificado, tais como o atendimento de 60% de leitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS)
ofertados pelas entidades de saúde, e o cumprimento das regras para concessão de bolsas
do Programa Universidade para Todos (ProUni)6 para as entidades de ensino superior.
Outra alteração especialmente relevante diz respeito ao reconhecimento das entidades
enquanto parceiras das políticas públicas de educação, saúde e assistência, devendo assim
seguir seus princípios e diretrizes e prestar-lhes serviços complementares. Se adotado, este
PL representará um importante avanço, não apenas garantindo uma maior proximidade
entre as entidades beneficentes – que recebem, por meio do Cebas, financiamento indireto
por parte do governo federal – e as políticas públicas, mas também o funcionamento das
instituições de participação social da Política Nacional de Assistência Social.

3. Esse certificado permite às organizações sem fins lucrativos de assistência social, educação e saúde – todas identificadas
pelo termo genérico de entidade beneficente de assistência social – acesso a benefícios tributários e fiscais. O tema foi
destaque no número 14 deste periódico.
4. Cf. Nota informativa do MDS publicada, na ocasião, no site do Ministério.
5. Entre as dificuldades então encontradas, destacam-se: i) inexistência de uma definição sobre o público a ser atendido
pelas entidades; ii) falta de uma caracterização mais exata dos serviços prestados que podem ser considerados de assistência
social; iii) ausência de padronização das demonstrações contábeis e planos de contas das entidades; e iv) dificuldades no
CNAS para montagem de uma estrutura própria para analisar contabilidade e os serviços prestados pelas entidades.Ver, a
respeito, o número 14 deste periódico.
6. Para informações atualizadas acerca do ProUni, ver subseção 3.1, item B, do capítulo Educação desta edição

58 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


3 Acompanhamento da política e dos programas
Nesta seção serão tratados os programas que atualmente compõem o conjunto de ações
federais de assistência social e programas de transferência de renda – sob responsabilidade
do MDS –, e as ações de segurança alimentar e nutricional (San) – inclusive aquelas
realizadas por outros ministérios. O objetivo deste bloco é apresentar os resultados al-
cançados pelos principais programas acompanhados no ano de 2007, assim como uma
breve análise sobre sua execução orçamentária.
3.1 Assistência social
Gerida pelo MDS desde 2004, a Política Nacional de Assistência Social pressupõe uma
proteção social hierarquizada entre básica e especial, que se organiza em oferta de serviços
e benefícios. A Proteção Social Básica (PSB) abrange ações educativas e sociais, de geração
de renda, de desenvolvimento de potencialidades e de socialização. É também dentro
da PSB que o Benefício de Prestação Continuada (BPC) é disponibilizado pelo governo
federal. A Proteção Social Especial (PSE), por sua vez, atua em situações que envolvem
média e alta complexidade. Entre as ações de média complexidade é possível destacar
serviços de cuidados domiciliares com idosos e pessoas com deficiência, bem como os
serviços dirigidos a jovens com liberdade assistida e a pessoas vítimas de violência e
outras situações de abuso, além de orientação e apoio sociofamiliar e plantão social.
Os equipamentos em que se realiza este tipo de atendimento são chamados Centros de
Referência Especializados de Assistência Social (Creas). No âmbito da proteção social
especial de alta complexidade estão contempladas as demandas de acolhimento realizadas
por instituições nas modalidades de abrigos, casas de passagem, albergues e instituições
de longa permanência.
Esta subseção se dedicará somente a análise dos serviços de assistência social, dado
que, conforme apontado anteriormente, o BPC está tratado no final do capítulo (Tema
em destaque).
O principal programa de assistência social coordenado pelo MDS é o Programa de
Atenção Integral à Família (Paif ), que faz parte da Proteção Social Básica. Trata-se de um
programa criado em 2004, cujo principal objetivo é oferecer, por meio dos Cras –,7 seu
instrumento primordial –, ações e serviços básicos para famílias em situação de vulnera-
bilidade social. Suas ações são voltadas à orientação das famílias, encaminhamento para
inserção no Cadastro Único, visitas domiciliares, grupos ou oficinas de convivência, além
de atividades socioeducativas, de capacitação e de inserção produtiva. Desde 2003, o go-
verno federal tem investido no financiamento dos Cras, de modo a garantir progressiva
ampliação dos serviços ali ofertados. O total de recursos transferidos pelo governo federal
para co-financiar estas ações em 2007 foi da ordem de R$ 262 milhões. Cabe informar
que nesse ano foram co-financiados8 3.248 Cras, distribuídos por 2.626 municípios
brasileiros. Em 2007, foram ainda selecionados 112 projetos de estruturação da rede de
proteção social básica, visando à construção e à modernização de unidades, tendo sido
empenhados os recursos necessários no mês de dezembro para a execução física em 2008.

7. Os Cras são tidos como a porta de acesso do usuário à política de assistência social, e devem ser instalados próximos
dos locais de maior concentração de famílias em situação de vulnerabilidade. Para mais informações, ver números 14 e
15 deste periódico.
8. Merece ser ressaltado que o co-financiamento dos Cras se refere aos recursos para execução dos serviços oferecidos nos
centros. Uma vez que nem todos os Cras existentes no país recebem recursos federais, o número de unidades co-financiadas
não corresponde necessariamente ao número de centros instalados.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 59


Devido à grande heterogeneidade de Centros de Referência em Assistência Social
(Cras) existentes no Brasil, o MDS deu início, em 2007, a um processo de monito-
ramento que teve como objetivo levantar dados sobre diversos aspectos, tais como:
infra-estrutura, tipos de serviços ofertados, perfil dos recursos humanos envolvidos,
e financiamento. Estas informações foram captadas por meio de uma ficha elaborada
pelo MDS e encaminhada aos municípios para preenchimento. A primeira etapa do
monitoramento – cujos principais resultados foram apresentados em maio de 2008 em
seminário organizado pelo MDS –9 apontou 3.947 Cras em funcionamento. Segundo
as primeiras tabulações divulgadas, foi possível a identificação de dados importantes.
Quanto às fontes de financiamento dos Cras, notou-se que estas se originam, princi-
palmente, dos governos municipais (85,7%) e do governo federal (82,3%). O financia-
mento estadual está presente em somente 12,6% do total de Cras em funcionamento,
com destaque para a região Sudeste, na qual 32,0% dos centros contam com recursos
oriundos da esfera estadual. Em relação às atividades realizadas nos centros, os dados
mostraram que visitas domésticas, acompanhamento de famílias, recepção/acolhida e
reuniões com a comunidade são ações realizadas em mais de 94% dos Cras. Os centros
também promovem iniciativas de encaminhamento de famílias ou indivíduos a outras
políticas (91,3%), além de orientação e acompanhamento de pessoas idosas e com de-
ficiência para inserção no BPC (88,6%). Outras atividades estão presentes em menor
número de centros, tais como ações de capacitação e de inserção produtiva (72,5%),
atividades socioeducativas com famílias (72,3%), busca ativa (52%), articulação e forta-
lecimento de grupos sociais locais (57,9%) etc. Sobre a formação dos profissionais que
trabalham nos Cras, os dados indicaram que 54,3% tinham curso superior, 6,4% eram
estagiários cursando a graduação, 28,1% concluíam o nível médio, e 11,3% possuíam
nível fundamental. Pelo levantamento, os assistentes sociais representavam 25,8% do
total de 25.106 funcionários que atuavam nestas unidades.
A par das ações desenvolvidas nos Cras no âmbito do Programa de Atenção Integral
à Família (Paif ), cabe lembrar ainda, no que diz respeito à Proteção Social Básica, o Pro-
grama Agente Jovem de Desenvolvimento Humano. Substituído, a partir de 2008, pelo
ProJovem Adolescente,10 o Programa Agente Jovem operou ainda no ano de 2007, quando
atendeu a 112.468 jovens em 1.711 municípios e no DF.11 Estes jovens se integravam
ao programa durante 12 meses, recebendo capacitação teórica e prática em temas que
estimulassem o protagonismo juvenil – em especial saúde, cidadania, esporte e turismo,
cultura e meio ambiente –, além do incentivo à permanência no sistema de ensino.
Os beneficiários recebiam uma bolsa de R$ 65,00 ao mês.
No tocante à Proteção Social Especial (PSE), suas unidades de atendimento, denomi-
nadas Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), continuaram se

9. O Encontro Nacional sobre o Monitoramento dos Cras foi realizado nos dias 28 e 29 em Brasília. As apresentações feitas
durante o encontro podem ser acessadas no site do Conselho Nacional dos Gestores Municipais de Assistência Social
(Congemas) <www.congemas.org.br>.
10. O ProJovem Adolescente é uma das quatro modalidades do Programa ProJovem e tem como público prioritário jovens
entre 15 e 17 anos que vivem em famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF), sem prejuízo do atendimento a
jovens em outras situações de vulnerabilidade. O programa manteve parte das características do Agente Jovem – tais como
as atividades socioeducativas –, entretanto não mais conta com o pagamento de uma bolsa ao participante. São as famílias
destes jovens, atendidas pelo PBF, que têm acesso a um Benefício Variável Vinculado ao Adolescente no valor de R$ 30,00.
Este benefício é pago a todas as famílias do PBF que tenham adolescentes de 16 e 17 anos freqüentando a escola. Sobre
a criação do Novo ProJovem, em dezembro de 2007, ver o número 15 deste periódico.
11. Fonte: <www.mds.gov.br/suas/guia_protecao/projovem/apresentacao-agente-jovem-2008-atualizada.pdf/download>.

60 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


expandindo no ano de 2007, estando em funcionamento 933 Creas no final desse ano.
O governo federal vem co-financiando os serviços prestados nestas unidades mediante
previsões de atendimento pactuadas. No último ano os recursos para realização destes
atendimentos alcançaram R$ 58,8 milhões. Também em 2007 foram selecionados 278
projetos para adequação da estrutura física dos Creas e da rede de serviços socioassis-
tenciais de acolhimento da alta complexidade, por meio de ampliação ou conclusão de
obra e aquisição de bens permanentes.
Entre os serviços ofertados nos Creas, pode-se citar o Serviço de Enfrentamento à
Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes, que assegura o
atendimento psicossocial e jurídico às vítimas, bem como a seus familiares. Para tanto,
oferece acompanhamento técnico especializado, em permanente articulação com a
rede de serviços assistenciais e demais políticas públicas, bem como com o Sistema de
Garantia de Direitos (Ministério Público, Conselho Tutelar dos Direitos da Criança e
do Adolescente, Vara da Infância e da Juventude, Defensoria Pública e outros). Este
serviço realizou mais de 65 mil atendimentos em 2007, encaminhando quase 15 mil
denúncias12 aos órgãos de defesa e responsabilização.13 Além do atendimento psicossocial
e jurídico, o serviço deve ofertar ações de prevenção e busca ativa que, por intermédio
de equipes de abordagem em locais públicos, realizem o mapeamento das situações de
risco e/ou violação de direitos que envolvam crianças e adolescentes.
Nesse mesmo sentido vem atuando o Serviço de Orientação e Apoio Especializado a
Indivíduos e Famílias Vítimas de Violência, prestando atendimento psicossocial voltado
principalmente para as situações de violência contra mulheres, idosos e pessoas com de-
ficiência. Tal atendimento se dá por meio da proteção à vítima e ao seu núcleo familiar,
prevenindo a continuidade da violação de direitos, bem como providências no tocante
à responsabilização. Os Creas oferecem ainda o Serviço de Orientação e Acompanhamento
a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida e de
Prestação de Serviços à Comunidade, que atuam no acompanhamento social a estes ado-
lescentes, garantindo que a medida socioeducativa, além do caráter de responsabilização,
tenha também cunho pedagógico e socializante. O acompanhamento ocorre mediante
a elaboração do Plano de Trabalho por uma equipe interdisciplinar, que deve direcionar
as atividades de acordo com a demanda de cada adolescente e de sua família.
Na Proteção Social Especial, cabe ainda citar o Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (Peti), integrado ao Programa Bolsa Família desde 2006. O Peti beneficiou 863
mil crianças e adolescentes em 2007, por meio de pagamento de um benefício mensal
às famílias comprometidas em retirar suas crianças da situação de trabalho e garantir
sua permanência na escola. A transferência às famílias é feita diretamente pelo governo
federal. Aos municípios, por sua vez, é repassado um valor para realização das chamadas
atividades socioeducativas e de convivência, chamada Jornada Ampliada.14 Em 2007,
o pagamento do benefício às famílias do Peti passou a ser feito com recursos do PBF.

12. Atendimentos são relatos que podem conter informações importantes para as investigações policiais, mas insuficientes
para abrir uma denúncia. Denúncias são relatos que contêm informações detalhadas e importantes para as investigações
policiais. Fonte: <http://www.disquedenuncia.org/grafico_chamadas_1_sem.html>.
13. Fonte: MDS. <http://www.mds.gov.br/suas/guia_creas/media-complexidade/servicos-de-enfrenatemento-as-criancas-e-
aos-adolescentes-vitimas-de-violencia-abuso-e-exploracao-sexual-e-a-suas-familias/servicos-de-enfretamento.doc/view>.
14. Trata-se de atividades como reforço escolar, artísticas e esportivas desenvolvidas no contraturno da escola. Para participar
destas atividades, as crianças beneficiárias do programa devem estar vinculadas a um núcleo que lhas ofereça. Este núcleo
pode ser governamental ou não, contanto que a entidade trabalhe em parceria com a prefeitura.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 61


Paralelamente, o MDS ampliou o repasse para os municípios para a realização destas
atividades. Entretanto, dados do Sistema de Controle e Acompanhamento das Ações
Ofertadas pelo Serviço Socioeducativo do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
(SisPETI) – ferramenta criada pelo MDS para verificar se as crianças retiradas de situações
de exploração de mão-de-obra estão freqüentando as chamadas ações socioeducativas e
de convivência – indicavam em janeiro de 200815 que mais de 321 mil crianças e ado-
lescentes poderiam não estar sendo atendidos para estas atividades.16 É possível que a
quantidade de crianças fora da jornada ampliada seja resultado da falta de estrutura dos
municípios que não estavam organizados para ofertar este tipo de atendimento quando
da adesão ao programa. Mas não se descarta, também, a possibilidade de haver crianças
e adolescentes vinculados a núcleos que não estejam identificados no sistema.
À guisa de conclusão, em que pese a assistência social estar caminhando em direção
à consolidação de um sistema único (Suas), os diferentes graus de comprometimento dos
municípios e estados somam-se às distintas realidades locais, provocando desafios difíceis
de serem resolvidos. Exemplo disso são os Pactos de Aprimoramento da Gestão – compro-
missos assinados em 2007 entre governo federal e estados, com o objetivo de aprimorar a
gestão dos programas da área, trabalhando de forma conjunta, e fortalecendo o Suas. No
primeiro semestre de 2008, a Secretaria Nacional de Assistência Social MDS divulgou um
conjunto de dados17 sobre a situação dos estados em relação aos pactos assinados no ano
anterior. Com exceção de Minas Gerais e Ceará, que haviam concluído respectivamente
70,1% e 50% de suas metas, todos as demais Unidades da Federação (UFs) estavam em
situações bem aquém do esperado, como, por exemplo, Rio Grande do Norte, Roraima e
Goiânia – onde mais da metade das ações ainda não haviam sido sequer iniciadas. No âm-
bito da Comissão Intergestores Tripartide (CIT), a questão dos pactos é um debate antigo
e tem sido considerado por muitos um gargalo para a concretização do Suas.
3.2 Segurança alimentar e nutricional
A formulação e implementação da Política de Segurança Alimentar e Nutricional é uma
ação conjunta realizada pelos três níveis de governo e por organizações da sociedade civil
que, de acordo com a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan),18
integram o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Em razão
de seu caráter intersetorial, as ações federais de segurança alimentar e nutricional vêm
sendo realizadas por um conjunto de ministérios, entre os quais podem ser destacados,
além do Ministério Desenvolvimento Social e Combate à Fome, os ministérios da Saúde,
da Educação, do Desenvolvimento Agrário, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e
do Meio Ambiente. O amplo conjunto de ações e programas desenvolvidos na área estão
atualmente concentrados em torno de três eixos principais, quais sejam: a produção e
abastecimento; o acesso à alimentação; e a promoção da saúde e nutrição.19

15. O sistema entrou em funcionamento em outubro de 2007. No início de 2008, 1.681 cidades, correspondentes a 50%
das 3.361 que oferecem o programa, alimentavam o SisPETI com dados de 590.791 crianças – ou seja, 68,43% dos
863.268 meninos e meninas registrados no Cadastro Único do Governo Federal como em situação de trabalho infantil.
Fonte: <www.interlegis.gov.br>.
16. Número este que, de acordo com o próprio ministério, talvez seja ainda maior, tendo em vista que à época cerca de 50%
dos municípios ainda não estavam abastecendo o sistema. Fonte: <http://www.andi.org.br/_pdfs/municipios_com_nucle-
os_cadastrados.pdf >.
17. Fonte: <http://www.congemas.org.br/pactoporuf.ppt>.
18. Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006.
19. Fonte: site do Conselho Nacional de Assistência Social (Consea).

62 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Por meio da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan),
o MDS desenvolve um importante programa, o Programa Acesso à Alimentação, que reúne
um conjunto de ações voltadas para populações em situação de insegurança alimentar,
visando garantir o acesso à alimentação digna, regular e adequada. Entre as diversas frentes
deste programa é possível mencionar a construção de cisternas para armazenamento de
água, cujo objetivo é a ampliação do acesso à água potável para as populações de baixa
renda do semi-árido. Em 2007 foram instaladas 43 mil cisternas, totalizando desde o iní-
cio do programa 194.071 construções com orçamento do ministério. Dentro do mesmo
programa encabeçado pela Sesan, é realizada uma ação de apoio à agricultura urbana, a
partir da qual são destinados recursos financeiros para parceiros – selecionados por meio
de editais – apoiarem os agricultores urbanos e periurbanos na produção de alimentos
saudáveis para o autoconsumo e para o abastecimento alimentar de consumidores.
Em 2007, esta ação beneficiou cerca de 27,3 mil famílias. O MDS também contribui, por
meio da publicação de editais públicos, para a instalação de bancos de alimentos, cozinhas
comunitárias e restaurantes populares públicos. Outras ações desenvolvidas pelo ministério,
ainda no escopo do Acesso à Alimentação, são: promoção de ações que visam à educação
alimentar e nutricional, apoio a organização, planejamento e gestão dos Consórcios de
Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (Consads), apoio a projetos de melhoria
das condições socioeconômicas das famílias, distribuição de alimentos a grupos tradicionais
específicos – como, por exemplo, comunidades indígenas e quilombolas – e, por fim, de
segurança alimentar e nutricional para povos e comunidades tradicionais.
Consolidando-se como um dos mais importantes programas no âmbito da segu-
rança alimentar e nutricional e de apoio ao desenvolvimento rural, e contando com um
aporte de R$ 458 milhões em 2007,20 o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é
operacionalizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), com recursos
do MDS21 e MDA.22 Trata-se de um programa de incentivo à agricultura familiar com
quatro modalidades (compra direta, compra com doação simultânea, formação de
estoque pela agricultura familiar, e incentivo à produção e ao consumo de leite), que
adquire alimentos de agricultores familiares e os destinam às famílias em situação de
insegurança alimentar. O preço dos alimentos adquiridos não pode passar de preços
de referências estabelecidos com base nos mercados regionais, atingindo o limite máximo
anual de R$ 3,5 mil reais por agricultor familiar que participa do Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf ). Entre os resultados obtidos pelo
programa em 2007, encontram-se o beneficiamento de aproximadamente 48 mil famí-
lias23 e a destinação de 108 mil toneladas de produtos tanto a pessoas em situação de
insegurança alimentar como aos programas de emergência do governo.
As ações de segurança alimentar e nutricional realizadas no âmbito da saúde são de-
senvolvidas em consonância com a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN)

20. Fonte: Cf. Consea. <https://www.planalto.gov.br/Consea/static/agenda/Plen%E1rias2008/080226/PPA%202008-11%20


-%20CONSEA.pdf>.
21. Desde 2003 são alocados recursos no orçamento do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que
desenvolve ações no âmbito do PAA por meio de parceiras com a Conab, com governos estaduais e municipais. Os recur-
sos do MDS são destinados à compra de alimentos para doação. Fonte: Secretaria de Agricultura Familiar/Ministério do
Desenvolvimento Agrário.
22. Em 2006, o Ministério do Desenvolvimento Agrário passou a ter dotação orçamentária própria para esse programa, que
é operacionalizada por intermédio da Conab no contexto de formação de estoques. Os recursos do MDA são destinados à
compra de alimentos para venda. Fonte: Secretaria de Agricultura Familiar/Ministério do Desenvolvimento Agrário.
23. Dados de outubro de 2007. Fonte: <http://www.conab.gov.br/conabweb/index.php?PAG=73&NSN=548>.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 63


do Ministério da Saúde (MS), e têm como órgão responsável a Coordenação-Geral da
Política de Alimentação e Nutrição (CGPAN/MS). Entre as ações desenvolvidas no
Programa Alimentação Saudável (PAS), que alocou cerca de R$ 50,5 milhões em 2007,
duas merecem destaque: i) monitoramento da situação nutricional da população brasileira,
e ii) prevenção e controle das carências nutricionais. Em 2007, estas ações foram respon-
sáveis pelo monitoramento em 4,1 mil municípios, beneficiando cerca de 5,1 milhões
de pessoas. Também por meio da CGPAN, o Ministério da Saúde atua no módulo
do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), voltado para o registro do
acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família. Com este sistema,
tem-se conseguido aumentar progressivamente o número de famílias acompanhadas.
De acordo com dados do MS, desde 2005 o acompanhamento da contrapartida das
ações de saúde, no que se refere às famílias beneficiadas pelo PBF, evoluiu de 362.410
para seis milhões de famílias24 que se enquadram no perfil saúde.
Por fim, cabe apontar com relevo ainda o Programa Nacional de Alimentação Escolar
(Pnae), desenvolvido pelo Ministério da Educação. Objetivando garantir a merenda
escolar a todos os alunos da educação fundamental e ensino infantil, o Pnae beneficiou
cerca de 35,4 milhões de alunos em 200725 com a merenda escolar, caracterizando-se
como o programa de maior alcance no âmbito da Política de Segurança Alimentar e
Nutricional no Brasil. Desde fevereiro de 2008, tramita no Congresso Nacional o Projeto
de Lei da Alimentação Escolar (PL no 2.877/2008), que amplia o atendimento do Pnae
para o ensino médio. Se aprovado, terão direito à merenda escolar mais de 8 milhões de
estudantes da rede pública. No PL, que apresenta ainda outras mudanças relacionadas à
educação, consta um artigo que estabelece a utilização de 30% dos recursos repassados
pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para aquisição de
alimentos da agricultura familiar para a merenda escolar.
Segundo o aqui observado com base no acompanhamento dos principais programas e
ações ligados à SAN, esta é uma política ainda em processo de consolidação. Chama atenção
a natureza fragmentária de suas ações e o excesso de iniciativas, muitas delas atendendo a um
número relativamente restrito de beneficiários. Ademais, apesar dos esforços em conceber
parcerias interministeriais para realização de algumas ações específicas, o fato é que a maior
parte dos programas não conta com uma integração maior entre os diferentes órgãos do
governo. A instituição da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional
(Caisan), que era aguardada ‑desde a aprovação da Losan, tornou-se finalmente realidade
em novembro de 2007, quando assinado o Decreto no 6.272 que tratava de sua criação.
Composta por 19 órgãos do governo, a Caisan está em funcionamento desde 10 de abril
de 2008 e tem como desafio promover a articulação e a integração dos órgãos e entidades
federais na área de segurança alimentar e nutricional.26
3.3 Programa Bolsa Família
Em 2007, o Programa Bolsa Família (PBF) teve o valor do benefício reajustado por meio
do Decreto no 6.157, que aumentou o piso básico – destinado às unidades familiares

24. Dados referentes ao primeiro semestre de 2008.


25. Fonte: Consea. <https://www.planalto.gov.br/Consea/static/agenda/Plen%E1rias2008/080226/PPA%202008-11%20
-%20CONSEA.pdf>.
26. Entre as atribuições da Caisan, devem ser destacadas: a elaboração, a partir de diretrizes definidas pelo Consea, da
Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; o acompanhamento da execução orçamentária das ações
e programas da política, seus resultados e impactos; e o acompanhamento das recomendações do Consea pelos órgãos do
governo por meio de relatórios periódicos.

64 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


que se encontram em situação de extrema pobreza, de R$ 50,00 para R$ 58,00, e o piso
variável,27 de R$ 15,00 para R$ 18,00 por criança. Em dezembro do mesmo ano, o PBF
também expandiu seu público-alvo. A Medida Provisória no 411 ampliou a faixa etária
para atendimento do programa por meio do Benefício Variável Jovem (BVJ), voltado para
as famílias beneficiárias com adolescentes entre 16 e 17 anos.28 Com isso, em março de
2008, quando o BVJ começou a ser pago, o valor total do benefício das famílias podia
chegar a R$ 172,00.29 No primeiro mês de pagamento deste novo benefício variável,
o MDS atendeu a 1,15 milhão de famílias, e a estimativa é que este número possa al-
cançar o total de 1,7 milhão.
Em junho de 2008, entretanto, os valores dos benefícios básico e variável foram
novamente reajustados – por meio do Decreto no 6.491 –, passando para R$ 62,00 e
R$ 20,00 por criança, respectivamente. Uma vez que o BVJ não sofreu reajuste, o valor
total do benefício pode atingir, a partir de então, a R$ 182,00.
O PBF, em dezembro de 2007, atendia a cerca de 11 milhões de famílias, exer-
cendo, ao lado do BPC, um importante papel para a diminuição ou amenização das
condições da pobreza no país. Somente nesse ano, o governo federal aportou recursos
da ordem de R$ 9,2 bilhões para pagamento dos benefícios às famílias que participam
do programa. Dados do Suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(Pnad),30 realizada em 2006 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
mostram que cerca de 14,9% do total de domicílios brasileiros recebem benefício do
Programa Bolsa Família.
Informações mais detalhadas sobre o PBF e seus impactos têm sido produzidas em
estudos e pesquisas recentes, como é o caso do estudo realizado pelo Instituto Brasilei-
ro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) sobre as repercussões do Programa Bolsa
Família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas.31 Analisando
a forma com que as famílias beneficiárias gastam os recursos recebidos pelo programa, a
pesquisa informa que alimentação (87%), material escolar (46%), vestuário (37%) e
remédios (22%) são os itens mais importantes na hora de se utilizar o dinheiro recebido.
Com 78% dos seus beneficiários concentrados em área urbana e 50% das famílias si-
tuadas na região Nordeste, o Bolsa Família tem contribuído para elevar o consumo de
alimentos para 74% da população participante do programa. Porém, merece destaque
o fato de que, apesar de se beneficiarem com o programa, 21% dos beneficiários, de
acordo com a pesquisa, ainda se encontram em situação de insegurança alimentar grave
– caracterizada por fome entre adultos e/ou crianças da família.
O estudo desenvolvido pelo Ibase abordou ainda outros aspectos do programa. Cha-
mam atenção as informações referentes à questão do trabalho e renda dos beneficiários.
Entre os 44% dos titulares que exerceram trabalho remunerado no mês anterior ao da
pesquisa, somente 16% trabalharam com carteira assinada. E, entre os que não trabalharam

27. O piso variável é destinado a unidades familiares que se encontram em situação de pobreza ou extrema pobreza e que
tenham em sua composição gestantes, nutrizes, crianças ou adolescentes entre 0 e 15 anos de idade.
28. Sobre o BVJ, ver o número 15 deste periódico.
29. Cabe lembrar que o máximo de benefícios que uma família pode acumular é o seguinte: 1 básico + 3 variáveis + 2 BVJ.
30. O Suplemento da Pnad 2006 foi dedicado à investigação de dois temas: i) acesso à transferência de renda de programas
sociais; e ii) aspectos complementares de educação, afazeres domésticos e trabalho infantil.
31. Para realização dessa pesquisa, foram entrevistados 5 mil titulares do Cartão Bolsa Família. Os resultados das
entrevistas passaram, em seguida, por um processo de ponderação estatística, a fim de “adequá-los à realidade do
cadastro do PBF”.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 65


no mês anterior ao da pesquisa, 68% se encontravam desempregados há pelo menos um
ano. O estudo revela ainda que, ao contrário do que temem os críticos do programa, o PBF
não está diminuindo o estímulo das pessoas para buscar um emprego. Quando questionados
se haviam deixado de realizar algum tipo de trabalho depois que passaram a receber o
benefício do programa, 95,5% dos titulares responderam que não.
3.4 Quadro geral e execução orçamentária dos programas
Como foi visto, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)
executa suas atividades em três frentes: é o responsável pelas políticas federais de assistência
social, pelas de transferência de renda e, no âmbito da segurança alimentar e nutricional
(SAN), suas ações se somam às de outros órgãos do governo federal, cada qual com atuações
distintas. Por essa razão, para se analisar a execução orçamentária dos programas relati-
vos às três políticas apresentadas neste capítulo, será necessário mostrar não somente o
desempenho do MDS no ano de 2007, como também a execução das principais ações
de SAN realizadas pelos demais ministérios, conforme será abordado adiante.
3.4.1 Execução orçamentária dos programas sob responsabilidade do MDS
A análise da distribuição dos recursos do MDS, com base na tabela 1, indica que as ações
de Proteção Social Básica (PSB) na assistência social consumiram cerca de R$ 14,2 bilhões
de uma soma de R$ 24,6 bilhões gastos pelo ministério para execução de seus programas
– quase 58% dos recursos totais. Cabe mencionar que 94% do aporte destinado às ações
de PSB foram para o pagamento do Benefício de Prestação Continuada e Renda Mensal
Vitalícia, que juntos ultrapassaram R$ 13,3 bilhões.32 O orçamento da Proteção Social
Básica em 2007 ainda cobriu, entre outras despesas, gastos do recém-extinto Agente Jovem
de Desenvolvimento Humano – aí incluído o pagamento das bolsas – e o co-financiamento
dos Centros de Referência em Assistência Social, por meio da transferência de recursos
aos municípios pelos pisos da PSB33 para execução dos serviços prestados.
Chama atenção o volume total de recursos federais utilizados para a Proteção Social
Especial (PSE), que, quando somado aos valores do Programa de Erradicação do Traba-
lho Infantil e do Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes – ambos parte da PSE –, mantém-se abaixo dos R$ 500 milhões (metade
do valor gasto para realização das ações de PSB, descontados os recursos referentes ao
pagamento do BPC e do RMV).
A tabela 1 permite observar, também, que o Programa Bolsa Família ocupa lugar de
destaque na distribuição dos recursos, tendo sido a segunda maior despesa do ministério,
com uma execução de R$ 9,2 bilhões em 2007. Incluído neste montante está ainda o
pagamento das bolsas às famílias com crianças inscritas no Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil, que em 2006 foi integrado ao PBF. O pagamento das ações socioe-
ducativas do Peti34 oferecidas pelos municípios foi realizado com os recursos da dotação
orçamentária individualizada do programa dentro do Plano Plurianual (PPA), conforme
pode ser examinado na tabela.

32. Fonte: Sistema de Informações Gerenciais e de Planejamento do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão -
Sigplan/MPOG).
33. De acordo com o Sigplan, os projetos de estruturação da rede foram caracterizados como aqueles que promovem apoio
à estruturação e modernização da rede de serviços e de suas unidades, destinados à construção ou reforma de Centros de
Referência de Assistência Social.
34. Merece lembrar que cerca de 13% dos recursos do Peti ainda são destinados ao pagamento de bolsas residuais a
famílias que não se enquadraram ao PBF.

66 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 1
Execução orçamentária dos programas sob responsabilidade do MDS em 2007
Recursos do FNAS Recursos do MDS Total
Descrição Total
R$ R$ (%)
Assistência social-proteção social básica 14.232.239.490 165.000 14.232.404.490 57,9
- BPC + RMV 13.382.032.270 13.382.032.270
- Demais ações e programas 850.207.220 165.000 850.372.220
Assistência social-proteção social especial 493.800.848 165.000 493.965.848 2,0
- Erradicação do Trabalho Infantil 272.246.637 272.246.637
- Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças
62.832.589 62.832.589
e Adolescentes
- Demais ações e programas 158.721.622 165.000 158.886.622
Programa Bolsa Família 9.207.821.873 9.207.821.873 37,4
Segurança Alimentar e Nutricional (Programa Acesso à
619.230.893 619.230.893 2,5
Alimentação)
Economia Solidária em Desenvolvimento 21.532.992 - 21.532.992 0,0
Total 14.747.573.330 9.827.382.766 24.574.956.096 100,0
Fonte: Dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal/Secretaria do Tesouro Nacional (Siafi/STN).
Elaboração: Diretoria de Estudos Sociais do Ipea (Disoc/Ipea).
Obs.: Além dos gastos com os programas finalísticos do ministério, há despesas com apoio administrativo, previdência de inativos e pensionistas da
União, gestão da política de desenvolvimento social e combate à fome, e operações especiais (cumprimento de sentenças judiciais).

No tocante ao único programa de segurança alimentar e nutricional (SAN) do MDS,


denominado Acesso à Alimentação e que reúne um conjunto de 9 ações, a tabela 1 indica que
ele representa 2,5% do total realizado pelo ministério, correspondendo a R$ 619 milhões.
Entre as ações de SAN executadas, merece especial relevo a de Aquisição de Alimentos pro-
venientes da Agricultura Familiar (PAA), que responde por 63% dos recursos alocados ao
Programa Acesso à Alimentação. O MDS atua ainda como parceiro no Economia Solidária
em Desenvolvimento, sob responsabilidade do Ministério do Trabalho, e em 2007 alocou
recursos da ordem de R$ 21,5 milhões, correspondentes a 40,2% dos R$ 53,4 milhões
investidos no programa.
A tabela 2 apresenta uma comparação entre a execução orçamentária dos programas
sob responsabilidade do MDS em 2006 e 2007. É possível observar uma variação positiva
em valores reais: 10,7% no total de gastos entre um ano e outro. Merece ser mencionado
que o nível de execução dos programas em 2007 foi, de modo geral, superior ao do ano
anterior, com exceção da Proteção Social Especial, que caiu de 79,9% de execução para
76,6%, e do Programa Economia Solidária em Desenvolvimento, que teve uma queda no
nível de execução de 87,1% para 72,9%.
TABELA 2
Execução orçamentária dos programas sob responsabilidade do MDS (2006 e 2007)
(Valores de 2006 corrigidos pelo IPCA médio de 2007)

Nível de Nível de Variação


Liquidado (R$) execução Liquidado (R$) execução entre os
(%) (%) anos
2006 2007
Subtotal assistência social 13.079.101.116 14.747.903.330 12,8
Proteção Social Básica 12.625.499.989 98,6 14.232.404.490 99,6
Proteção Social Especial 132.184.189 79,9 158.886.622 76,6
Erradicação do Trabalho Infantil 253.341.553 68,4 272.246.637 92,2
Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e
50.344.986 99,8 62.832.589 99,8
Adolescentes
Economia Solidária em Desenvolvimento 17.730.399 87,1 21.532.992 72,9
Subtotal segurança alimentar e nutricional 604.463.648 619.230.893 2,4
Acesso à Alimentação 604.463.648 94,3 619.230.893 98,9
Subtotal transferência de renda 8.524.540.092 9.207.821.873 8,0
Transferência de Renda com Condicionalidades – Bolsa Família 8.524.540.092 92,4 9.207.821.873 99,6
Total MDS 22.208.104.856 24.574.956.096 10,7
Fonte: Siafi/STN.
Elaboração: Disoc/Ipea.
IPCA: Índice de Preços ao Consumidor Amplo.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 67


A tabela 2 indica ainda uma importante melhora no nível de execução do Programa
de Erradicação do Trabalho Infantil, que em 2006 havia liquidado apenas 68,4% de seu
orçamento, e em 2007 chegou a 92,2%.35 Em ambos os anos, os recursos destinados a
este programa por meio de dotação orçamentária própria foram utilizados em sua maior
parte para realização das atividades socioeducativas, uma vez que o pagamento das bolsas
às famílias se fizera via PBF.
3.4.2. Execução orçamentária dos programas e ações de segurança alimentar e nutricional
Conforme mencionado ao longo deste capítulo, a política de segurança alimentar e nu-
tricional tem um formato intersetorial, contando com a participação de vários órgãos,
programas e ações do governo federal. Nesse sentido, a análise da sua execução orçamen-
tária foi realizada por meio da escolha das principais ações relacionadas à área.
Desde 2005, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)
possui um grupo de trabalho (GT) cujo objetivo é selecionar um conjunto de programas/
ações prioritários do Plano Plurianual (PPA) relacionados à SAN, buscando intervir
na elaboração da Lei Orçamentária e acompanhar a sua execução no ano seguinte.
Em relação ao orçamento de 2007, foram selecionados por este GT 172 ações de 47
programas, envolvendo 16 ministérios/órgãos,36 cujos recursos ultrapassam a ordem de
R$ 17 bilhões. Contudo, muitas das ações elencadas no chamado Orçamento da Segurança
Alimentar e Nutricional já são tratadas no acompanhamento da execução orçamentária
de outras áreas neste mesmo periódico e, por esta razão, optou-se por uma análise do
orçamento reduzida, inspirada em uma Nota Técnica elaborada pelo Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc) em 2006.37 A tabela 3 apresenta as mesmas ações selecionadas
pelo instituto, porém com duas modificações: i) inclusão do Programa Nacional de Ali-
mentação Escolar (Pnae); e ii) exclusão das ações referentes ao Programa Atenção à Saúde
de Populações Estratégicas e em Situações Especiais de Agravo, analisado na Nota Técnica
elaborada pelo Inesc.
A tabela permite observar uma participação significativa do Ministério da Educação
nessa área em virtude do Pnae, mais conhecido como Merenda Escolar. Em 2007 foram
gastos mais de R$ 1,5 bilhão para garantir o atendimento a 35,4 milhões de estudantes.
E no âmbito do MDS, por sua vez, os recursos para as quatro ações de segurança alimentar
e nutricional selecionadas representam 86,5% do total realizado pelo ministério neste
campo, sendo a Aquisição de Alimentos provenientes da Agricultura Familiar, de longe, a
ação que mais aloca recursos. Os outros dois ministérios supracitados possuem, contudo,
uma participação relativamente inferior em termos orçamentários, no que tange às prin-
cipais ações voltadas para a questão da segurança alimentar e nutricional. A participação
do MDA no Programa Aquisição de Alimentos é bastante discreta, se comparada à do
MDS. Porém, são as ações do Ministério da Saúde que empenharam menos recursos:
R$ 30 milhões parece ser um número comparativamente baixo perante a grande rele-
vância da área de prevenção, controle e monitoramente das carências nutricionais no
campo da segurança alimentar e nutricional.

35. A baixa execução orçamentária em 2006 foi, em boa parte, devida à dificuldade dos municípios localizarem as famílias
com crianças em situação de trabalho. Ver: RUA, Maria das Graças. Avaliação da Integração do Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) ao Programa Bolsa Família (PBF).In: Fórum Nacional de Prevenção e
Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), janeiro de 2007.
36. Fonte: Consea.
37. Cf. Nota Técnica no 115. PLOA 2007: Hora de Intervir. Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Outubro de 2006.

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TABELA 3
Execução orçamentária das principais ações de segurança alimentar e nutricional
por órgão responsável (2007)
Ação/órgão responsável Liquidado em 2007
MDS
Aquisição de alimentos provenientes da agricultura familiar 393.306.394
Apoio a projetos de melhoria das condições socioeconômicas das famílias 34.052.056
Construção de cisternas para armazenamento de água 65.847.177
Distribuição de alimentos a grupos populacionais específicos 42.818.352
Subtotal MDS 536.023.979
MDA
Aquisição de alimentos da agricultura familiar (ação operacionalizada pela Conab/
64.926.547
Ministério da Agricultura, Desenvolvimento e Abastecimento)

Subtotal MDA 64.926.547


MEC
Programa Nacional de Alimentação Escolar 1.520.679.676
Subtotal MEC 1.520.679.676
MS
Monitoramento da situação nutricional da população brasileira 4.895.472
Prevenção e controle das carências nutricionais 30.032.348
Subtotal MS 34.927.820
Total SAN 2.156.558.022
Fonte: Dados do Consea e do Sistema de Informações Gerenciais e de Planejamento do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (Sigplan/MPOG).
Elaboração: Disoc/Ipea.
Obs.: Tabela elaborada a partir da Nota Técnica no 115 do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), publicada em outubro de 2006.

4 Tema em Destaque
O Benefício de Prestação Continuada (BPC)
Direito constitucional estabelecido pela Carta Magna de 1988 e regulamentado pela Lei
Orgânica de Assistência Social (Loas) em 1993, o BPC começou a ser concedido em
1996. O benefício consiste em uma garantia de renda – de natureza incondicionada e
não-contributiva – destinada às pessoas com 65 anos ou mais e às pessoas com deficiência
(PcD) incapacitante para a vida independente e para o trabalho, cuja renda familiar
per capita seja inferior a um quarto de salário mínimo (R$ 103,75, em julho de 2008).
Trata-se de uma transferência de renda individual e intransferível, no valor de um salário
mínimo mensal. Atualmente, o BPC é gerenciado pelo Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS), por meio da Secretaria Nacional de Assistência Social
(SNAS), também responsável por seu acompanhamento e avaliação. Compete ao Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS) sua operacionalização. O financiamento é realizado
por meio dos recursos do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS).
O BPC é uma das mais significativas inovações da política social nas duas últimas
décadas. A partir do reconhecimento do princípio da solidariedade social, instituiu uma
renda mínima voltada às pessoas em situação de baixa renda reconhecidas como dispensadas
ou impossibilitadas de arcar com sua sobrevivência pelo próprio trabalho. Além de ser o
primeiro mínimo social brasileiro garantido constitucionalmente, o benefício se destina
a um público até então majoritariamente excluído de qualquer mecanismo público de
transferência de renda. Sua criação trouxe uma mudança no padrão de proteção social
brasileiro no campo da garantia de renda, tradicionalmente identificado com os seguros
sociais. Sua implementação tem significado a manutenção de níveis mínimos de bem-estar
para mais de 2,6 milhões de pessoas idosas e com deficiência severa em situação de extrema
pobreza. O impacto do BPC na melhoria das condições de vida das famílias beneficiárias
e na redução da pobreza dos grupos atendidos é expressivo,38 o que afirma a importância

38. Avaliações do BPC têm mostrado seu importante papel na redução da pobreza e da desigualdade social no país, assim
como na melhoria das condições de vida das famílias beneficiárias. Ver Texto para Discussão nos 1.184, 1.228 e 1.248, Ipea,
disponíveis para download no site <www.ipea.gov.br>.

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do benefício na garantia de um patamar civilizatório a um público significativamente
vulnerável e justifica a relevância de uma reflexão mais cuidadosa sobre o tema.
4.1 Trajetória de regulamentação
Previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988, e regulamentado pelos
artigos 2o, 20 e 21 da Loas (Lei no 8.742/1993), o BPC foi implementado em janeiro
de 1996 após a publicação do Decreto no 1.744/1995, e a criação, no mesmo ano, do
Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). Atualmente, o benefício é regido pelo
Decreto no 6.214/2007 e faz parte das ações de proteção social básica no âmbito do
Sistema Único de Assistência Social (Suas).
A regulamentação do BPC tem sido, há tempos, objeto de debate e controvérsias.
De fato, desde sua implantação até os dias de hoje, as regras e definições iniciais sofre-
ram alterações substantivas em pelo menos três aspectos importantes: idade mínima
de acesso ao benefício pelo idoso; o conceito de família utilizado no cálculo da renda
familiar per capita; e o arcabouço conceitual concernente à caracterização e avaliação da
deficiência para fins de acesso ao benefício. A análise aqui apresentada – que enfocará
as três questões – encontra-se dividida em cinco partes, relativas a marcos normativos
fundamentais para a regulação do benefício, a saber: i) Lei no 8.742/1993 (Loas),
ii) Decreto no 1.744/1995; iii) Lei no 9.720/1998; iv) Lei no 10.741/2003 (Estatuto do
Idoso); e, por fim, v) o recente Decreto no 6.214/2007, ao qual será dada maior ênfase
em função de sua atualidade e relevância.
4.1.1 Lei no 8.742/1993 (Loas)
A Constituição definiu o direito ao BPC, indicando de maneira genérica o beneficiário
como aquele idoso ou deficiente que não possui meios de prover a própria manutenção e
nem de tê-la provida por sua família, fixando o valor do benefício em um salário mínimo
mensal. Foi a Loas, em seu artigo 20, que definiu a idade de acesso para os idosos em
70 (setenta) anos. A lei determinou ainda a renda mensal familiar per capita inferior a
1/4 do salário mínimo como a que indicaria a incapacidade para prover a manutenção
da pessoa idosa ou com deficiência.
Além de definir dois parâmetros fundamentais de acesso ao benefício (o corte de
renda e a idade mínima de ingresso para o idoso), a Loas delineou o conceito de “pessoa
portadora de deficiência” como aquela incapacitada para vida independente e para o
trabalho. Fixou que a deficiência deveria ser comprovada por meio de avaliação realizada
por equipe multiprofissional do SUS ou do INSS. Também estabeleceu o conceito de
família a ser adotado, entendido como a unidade mononuclear vivendo sob o mesmo
teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes.
Contudo, apesar do reconhecimento jurídico do BPC desde a Constituição de
1988 e de sua primeira regulação pela Loas, o benefício foi efetivamente implemen-
tado somente em 1o de janeiro de 1996, após a vigência do Decreto no 1.744, de 8 de
dezembro de 1995.
4.1.2 Decreto no 1.744/1995
Voltado, sobretudo, para definir e organizar os processos de gestão do BPC, o Decreto
no 1.744/1995 trouxe uma alteração significativa no que se refere à definição de “pessoa
portadora de deficiência”. Com uma interpretação mais restritiva do que a contida na
Loas, introduziu que a incapacidade para vida independente e para o trabalho deveria

70 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


ser o resultado de anomalias ou lesões irreversíveis que impedissem o desempenho das
atividades da vida diária e do trabalho.39
A nova definição passou a ocasionar freqüentes divergências quanto ao entendi-
mento e à caracterização da incapacidade para a vida independente e para o trabalho,
gerando uma acentuada heterogeneidade nas avaliações das PcD pela perícia médica
responsável por atestar a incapacidade, uma vez que o Brasil não possui metodologia
unificada para a classificação de deficiências e avaliação de incapacidades com vistas ao
acesso a políticas públicas.
O decreto previa ainda, tal como já havia estabelecido a Loas, uma gradual redução
da idade mínima de acesso ao benefício pelo idoso. Uma primeira redução, de 70 para
67 anos, deveria ser operacionalizada a partir de 1o de janeiro de 1998, e uma segunda
alteração, de 67 para 65 anos, a partir de 1º de janeiro do ano 2000.
4.1.3 Lei no 9. 720/1998
Poucos anos após a regulamentação do BPC pelo decreto de 1995, nova legislação altera
as regras do programa. Com a Medida Provisória no 1.473, de 8 de agosto de 1997, trans-
formada na Lei no 9.720, de 30 de novembro de 1998,40 redefine-se o conceito de família
utilizado no cálculo da renda per capita para fins de concessão do benefício. A alteração
implicou que fosse adotada a mesma definição constante na lei que dispõe sobre os Planos
de Benefícios da Previdência Social (Lei no 8.213/1991). Assim, passaram a ser conside-
rados como membros da família no âmbito do BPC, desde que vivam sob o mesmo teto:
i) o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condi-
ção, menor de 21 anos ou inválido; ii) os pais; e iii) o irmão não emancipado, de qualquer
condição, menor de 21 anos ou inválido. Por um lado, se esta homogeneização conceitual
pode ser considerada como um importante passo no sentido de uma maior coordenação
entre as políticas de previdência e assistência social, de outro, instalou um debate intenso
sobre seu impacto na cobertura do programa. De fato, tal conceito de família, ao apresentar
uma listagem fechada de seus possíveis integrantes, desconsidera outros arranjos familiares,
deixando ainda de incorporar alguns membros potencialmente detentores de renda, como
os filhos e irmãos com mais de 21 anos e os emancipados. O quadro 1 apresenta a evolução
do conceito de família para fins de concessão do BPC.
QUADRO 1

Lei no 8.724/1993 (Loas) Lei no 9. 720/1998


O artigo 20, § 1 da Loas entendia por família a unidade mononuclear,
o
O artigo 1 da Lei n 9.720 alterou o artigo 20, § 1o da Loas, estabele-
o o

vivendo sobre o mesmo teto, cuja economia era mantida pela contribuição cendo como família o conjunto de pessoas elencadas no artigo 16 da Lei
de seus integrantes. Este artigo foi revogado pela Lei no 9.720/1998. no 8.213/1991,1 desde que vivam sob o mesmo teto.
Nota 1 São os seguintes os termos do artigo 16 da Lei no 8.213/1991: “São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de
dependentes do segurado: I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte
e um) anos ou inválido; II – os pais; III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido”.

Quanto à avaliação médico-pericial, do início da concessão do BPC até 11 de agosto


de 1997, todas as pessoas com deficiência que pleiteavam o benefício eram avaliadas

39. O decreto de 1995 operou significativa restrição do conceito de “pessoa com deficiência” ao inserir a irreversibilidade
da lesão ou anomalia e ao definir como sinônimo de incapacidade de vida independente o não desempenho das atividades
de vida diária. Deve-se ressaltar, ainda, que atos normativos internos do INSS substituíram a expressão vida diária para
vida autônoma. Ver: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Avaliação das pessoas com
deficiência para acesso ao Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social: um novo instru-
mento baseado na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. Brasília: MDS/
MPS, 2007.
40. Essa lei alterou diversos dispositivos da Loas.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 71


por equipe multiprofissional do SUS. A Medida Provisória no 1.473/1997, convertida
na Lei no 9.720/1998, passa a estabelecer que a avaliação médica é de responsabilidade
dos serviços de perícia médica do INSS. Nesse contexto, a partir de agosto de 1997 o
INSS passou a editar sistematicamente Orientações Internas (OIs) que estabeleciam
procedimentos a serem adotados pela área de benefícios nos processos de concessão,
manutenção e revisão do direito ao BPC. Foram ainda definidos parâmetros para ava-
liação da deficiência com a criação do instrumento denominado Avaliemos. Embora a
aplicação de tal instrumento tenha sido indicada no processo de avaliação da perícia
médica, sua utilização não se deu de maneira uniforme. Por conseguinte, muitas PcD
atendidas nos primeiros anos tiveram seus benefícios cessados em processos de revisão
médica pericial, ao mesmo tempo em que outras passaram a ter suas solicitações de
benefícios indeferidas, pois, embora incapazes para o trabalho, não eram consideradas
incapazes para a vida independente.41 A problemática provocou, nos anos seguintes, a
proposição de diversas ações civis públicas no sentido de garantir o direito de acesso
das PcD ao benefício.
Por fim, cabe observar que a primeira redução na idade mínima de concessão
do BPC para o idoso, de 70 para 67 anos, ocorreu apenas com a publicação da Lei
no 9.720/1998, dez meses após a data prevista no decreto de 1995.
4.1.4 Lei no 10.741/2003 (Estatuto do Idoso)
Outra importante modificação nas regras do BPC ocorreu em 2003, por força do Es-
tatuto do Idoso (Lei no 10.741, de 1º de outubro de 2003), que não apenas efetivou
a segunda redução na idade mínima de concessão do BPC, como estabeleceu que o
benefício anteriormente emitido a qualquer pessoa idosa da família não será compu-
tado para os fins do cálculo da renda familiar per capita para concessão de outro igual.
Esta conquista, entretanto, não se estendeu às pessoas com deficiência, uma vez que
qualquer outro benefício monetário recebido por esse segmento no âmbito da Seguri-
dade Social ou de outras políticas públicas, inclusive o BPC, são computados no cálculo
da renda familiar. Atualmente, tramitam no Congresso Nacional alguns projetos de lei
que visam garantir o mesmo direito às pessoas com deficiência. Caso sejam aprovados,
serão beneficiadas as famílias em que a deficiência afeta mais de uma pessoa, tais como
aquelas de origem genética.
4.1.5 Decreto no 6.214/2007
No decorrer dos anos, observou-se que aspectos operacionais, técnicos e conceituais re-
lacionados ao BPC demandavam tratamento mais cuidadoso, uma vez que haviam sido
contemplados de forma inadequada ou insuficiente pela legislação vigente. Um instru-
mento regulatório mais claro e uniforme torna-se objeto de reivindicação da sociedade
civil, culminando em deliberações das conferências nacionais de Assistência Social.
Visando debater os problemas conceituais e de gestão identificados no percurso de
implementação do BPC, foi organizado, em julho de 2004, o Encontro Nacional sobre
Gestão do Benefício Assistencial de Prestação Continuada. Ao abordar o tema da ava-
liação realizada pela perícia médica do INSS, o relatório final resultante daquele evento
apontou, entre outros, a necessidade de “critérios de avaliação médica mais detalhados” em

41. Fonte: LIRA, Franck Janes P. Benefício assistencial de prestação continuada (BPC): ferramenta de inclusão
ou de exclusão social? Disponível em <http://www.portalbioetica.com.br/artigos/Franck11.07.06.pdf>. Acesso em julho
de 2008.

72 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


relação à incapacidade para o trabalho e para a vida independente. Também recomendou
que fosse constituído um grupo de estudos e pesquisas sobre classificação de deficiências
e avaliação de incapacidade. O encontro rendeu frutos. Em 2005, o MDS e o MPS cria-
ram um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) composto por técnicos de ambas as
instituições, médicos e assistentes sociais, bem como por especialistas nas áreas de políti-
cas públicas e de atenção às pessoas com deficiência, cujo objetivo foi “(...) desenvolver
estudos e pesquisas sobre classificação de deficiências e avaliação de incapacidades, com
vistas à proposição de parâmetros, procedimentos e instrumentos de avaliação das pessoas
com deficiência para acesso ao BPC”. Dessa forma, foi num amplo contexto de debate
e movimentação social que, em 26 de setembro de 2007, entrou em vigor o Decreto
no 6.214, que passa a regulamentar o BPC. O instrumento traz importantes novidades,
apontadas a seguir.
Os conceitos de “família incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência
ou do idoso” e de “família para cálculo da renda per capita”, adotados pelo BPC, bem
como as diretrizes para o cálculo da renda mensal familiar para acesso ao benefício foram
textualmente incluídos no novo decreto, pois, até então, estavam dispersos na Loas, na
Lei no 9.720/1998, e em atos normativos do INSS, o que ensejava inúmeras dúvidas de
interpretação e de operacionalização.
Entre as inovações introduzidas pelo novo decreto está a substituição da ter-
minologia Pessoas Portadoras de Deficiência (PPD), para Pessoas com Deficiência
(PcD). Um relevante avanço também se deu quanto à conceituação da expressão: o
decreto de 2007 retoma a definição conferida pela Loas, com abordagem mais ampla
e menos reducionista.
Cabe ressaltar que, apesar de operar um conceito restrito de deficiência, o decreto de
1995 não havia definido o conceito de incapacidade, dando margem para que questões
relacionadas ao tema fossem decididas em âmbito judicial. É o caso da decretação da
interdição legal de pessoas com deficiência, sobretudo mental, para o reconhecimento
da incapacidade para a vida independente e para o trabalho. Embora a interdição deva
ser usada em casos de real necessidade, uma vez tratar-se de ato judicial que declara a
incapacidade de uma pessoa maior para a prática de certos atos da vida civil, era freqüente
sua solicitação visando acelerar o processo de concessão do BPC e evitar que o pedido
fosse negado pela perícia médica do INSS. Ao longo dos anos constatou-se um excesso
de interdições solicitadas nestes casos, o que motivou mobilizações da sociedade civil,
lideradas pelo Conselho Federal de Psicologia, e a intervenção do Ministério Público,
tendo como horizonte a limitação da interdição judicial no Brasil para fins de recebi-
mento do benefício. Se a necessidade da interdição é inquestionável em alguns casos,
sob o ponto de vista ético é injustificável que tal procedimento seja utilizado indiscrimi-
nadamente como recurso para acelerar a concessão do benefício pelo INSS. O Decreto
no 6.214/2007, em seu artigo 18, deixa claro que a concessão do BPC independe da
interdição judicial, tanto para pessoas com deficiência quanto para idosos. Também
estabelece ser dispensável a avaliação da incapacidade para o trabalho para crianças e
adolescentes até 16 anos, dado que esta incapacidade é presumida em função da idade,
bastando tão-somente verificar a existência da deficiência.
O referido decreto informa ainda a nova regra de que a incapacidade deve
ser entendida como um fenômeno multidimensional, composto pela limitação do
desempenho de atividade e restrição da participação, com redução efetiva da capacida-

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 73


de de inclusão social, em correspondência à interação entre a pessoa com deficiência
e seu ambiente físico e social. Tal definição, adequada à Classificação Internacional
de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) proposta pela Organização Mundial
de Saúde (OMS), reflete a idéia de que deficiência é o resultado de uma complexa
interação entre corpo, habilidades e meio ambiente. Este modelo incorpora uma
visão mais ampla do estado de saúde do indivíduo, segundo a qual são consideradas
diferentes dimensões de saúde.
Nesse sentido, vale destacar as alterações referentes ao processo de avaliação da
deficiência e do grau de incapacidade para fins de acesso ao benefício. A avaliação
prevista no Decreto no 1.744/1995 possuía um enfoque exclusivamente médico
que, além de privilegiar a análise do indivíduo, não considerava o meio no qual ele
está inserido. O novo formato, previsto pelo decreto de 2007, passa a ser composto
por uma avaliação médica e uma avaliação social, conjugando a análise das limita-
ções na estrutura e funções do corpo com o efeito dos fatores ambientais e sociais
na limitação do desempenho de atividades. Estas avaliações devem ser realizadas,
respectivamente, pela perícia médica e pelo serviço social do INSS. O decreto de
2007 prevê, ainda, o prazo até 31 de julho de 2008 para implantação, pelo MDS e
INSS, do novo modelo avaliativo.
A nova regulamentação busca também garantir o desenvolvimento das capacida-
des cognitivas, motoras ou educacionais dos beneficiários, ao mesmo tempo em que
afirma que a realização de atividades não-remuneradas de habilitação e reabilitação,
entre outras, não caracteriza motivo para suspensão ou cessação do benefício para
pessoas com deficiência. O Decreto no 6.214/2007 ainda possibilita nova concessão
do benefício PcD àqueles que tiveram o BPC interrompido para assumir trabalho
remunerado. Trata-se de uma importante conquista em direção ao estímulo para in-
serção dos beneficiários com deficiência no mercado de trabalho, uma vez assegurada
sua reinclusão no programa quando cessada ou impossibilitada a continuação de suas
atividades remuneradas.
Mais além, o decreto promove a intersetorialidade no atendimento à população
beneficiária, ao afirmar que o BPC é constitutivo da Pnas e integrado às demais polí-
ticas setoriais. Faz avançar, com isso, uma maior integração do beneficiário ao Suas e
seus serviços, em especial nos Centros de Referência em Assistência Social (Cras), a par
de garantir o seu acesso a outras políticas federais, em especial às de educação e saúde.
O Decreto no 6.214/2007 prevê, ainda, a implementação de um Sistema Nacional de
Monitoramento e Avaliação do BPC, mantido e coordenado pela SNAS/MDS, em
parceria com o INSS, estados, DF e municípios, o qual possibilitará a realização do
acompanhamento dos beneficiários e suas respectivas famílias.
Por último, registra-se como inovação do decreto a possibilidade da pessoa em
situação de rua requerer o benefício. Neste caso, deve ser adotado como referência o
endereço do serviço da rede socioassistencial pelo qual esteja sendo acompanhado, ou,
na falta deste, de pessoas com as quais mantém relação de proximidade.
4.2 Abrangência
Desde sua implementação em janeiro de 1996, houve um importante acréscimo no
número de beneficiários do BPC. Ao final do mesmo ano, o programa contava com
cerca de 346 mil beneficiários, entre os quais 304 mil eram pessoas com deficiência
e 42 mil, idosos. Em dezembro de 2007, foram 2.680.823 de pessoas atendidas.

74 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Cabe lembrar que, se forem somados ao BPC o estoque de beneficiários da Renda Mensal
Vitalícia (RMV),42 os benefícios sob responsabilidade da assistência social chegaram a
atender 3.080.821 pessoas naquele mês.
O gráfico 1 mostra a distribuição de benefícios entre os beneficiários idosos e pessoas
com deficiência, bem como a evolução dos benefícios emitidos no período compreendido
entre os anos de 1996 a 2007. Apenas neste último ano foram 1.385.107 benefícios
destinados para PcD, e 1.295.716 para pessoas idosas.
GRÁFICO 1
Evolução de benefícios emitidos pelo BPC (1996-2007)

Fonte: MDS.
Elaboração: Disoc/Ipea.

O baixo índice de cobertura aos idosos nos primeiros anos do BPC pode ser expli-
cado em razão de estar fixada em 70 anos a idade mínima para concessão do benefício.
Com a primeira redução da idade para 67 anos realizada em 1998 e, sobretudo, após
a segunda redução em 2003 para 65 anos, observou-se uma significativa expansão de
benefícios emitidos a este segmento.
O BPC contribuiu para o aumento no grau de proteção social dos idosos no país.
Ao lado do RGPS e do Programa da Previdência Social Rural, o benefício concorreu
para que a pobreza e a indigência entre esta população sejam hoje um fenômeno mar-
ginal – em 2006, cerca de 7% dos idosos com mais de 65 anos no Brasil viviam com
uma renda per capita inferior a ½ salário mínimo, e apenas 2% viviam com uma renda
per capita inferior a ¼ de salário mínimo.
Vale destacar a rápida ampliação da cobertura para as pessoas com deficiência
entre os anos de 1996 e 1997, quando diversos componentes pobres deste segmento

42. A RMV foi criada em 1974 e extinta em 1995. Consistia em um benefício vinculado à Previdência Social direcionado aos
inválidos ou pessoas a partir de 70 anos de idade que não eram capazes de prover o próprio sustento ou de serem sustentadas
por suas famílias. Os potenciais beneficiários deveriam ter feito no mínimo 12 contribuições à Previdência Social ao longo de sua
vida ativa. Isto significava que somente as pessoas que já houvessem trabalhado tinham direito ao benefício, fato que excluía
o acesso ao programa de grande parte das pessoas com deficiência grave e/ou daquelas que nunca ingressaram no mercado
de trabalho formal. Não há novas concessões da RMV desde 01/01/1996, sendo mantido apenas o pagamento do estoque de
beneficiários existentes naquela data, o que corresponde, até dezembro de 2007, a 399.998 benefícios.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 75


foram incluídos na proteção garantida pelo BPC. Espera-se outro movimento de rápido
crescimento deste público no ano de 2008, em razão das alterações promovidas pelo
Decreto no 6.214/2007.
Em que pese o BPC estar aumentando sua cobertura para o público com deficiência
a cada ano, são escassos os dados que permitem avaliar em que proporção esta população
vem sendo atendida. Presume-se ainda haver um número considerável de pessoas com
deficiência elegíveis, porém sem acesso ao BPC. Levantamento realizado pela SNAS em
janeiro de 200543 constatou que, do total de benefícios requeridos por estas pessoas, ape-
nas 37,16% foram concedidos. Verificou-se que, dos requerimentos negados (62,84%),
40,93% têm como fator causal o indeferimento pela perícia médica do INSS, em função
da não caracterização de existência de incapacidade do requerente para vida independente
e para o trabalho. Esta ocorrência reforçou a necessidade de homogeneizar parâmetros,
procedimentos e instrumentos de avaliação das PcD para acesso ao BPC de forma
equânime. Conforme aqui colocado anteriormente, espera-se que, com a aplicação do
novo modelo de avaliação previsto no decreto de 2007, as distorções identificadas sejam
substancialmente corrigidas.
4.3 Perfil dos beneficiários
Embora sejam escassos os dados atualmente disponíveis sobre o perfil dos beneficiários,
as informações existentes provêm de duas principais fontes. A primeira são os registros
administrativos obtidos no momento do cadastramento de novos beneficiários. A segunda
são os dados levantados ao longo do processo de revisão de benefícios. Contudo, levando-se
em conta as dificuldades de acesso às informações levantadas quando do cadastramento,
assim como o fato de que o último relatório sistematizado contendo informações nacionais
sobre o processo de revisão foi publicado no ano de 200244 pelo já extinto Ministério da
Previdência e Assistência Social, este texto privilegiará pesquisas mais recentes sobre o
perfil dos beneficiários.
Apesar de ainda serem poucos os estudos sobre o tema, pesquisa realizada em 2006
sobre as características da população beneficiária do BPC conduzida pela Universidade
Federal Fluminense (UFF)45 aporta dados interessantes sobre o público atendido, identi-
ficando especificidades relacionadas à moradia, sexo, escolaridade e história profissional,
entre outras. A pesquisa demonstrou que, quanto ao local de moradia, há a predomi-
nância de beneficiários das zonas urbanas – 93,2% contra apenas 6,8% de beneficiários
das zonas rurais. Aqui cabem duas hipóteses explicativas: tal dado pode tanto indicar a
existência de problemas na divulgação de informações sobre o programa nas áreas rurais,
quanto pode apontar para o sucesso da cobertura efetuada pela previdência rural.
No que tange à questão do gênero, o mesmo estudo observou uma maior proporção
de mulheres entre os beneficiários: 52,7% contra 47,3% de homens. Entre os idosos, as

43. Fonte: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Avaliação das pessoas com deficiência
para acesso ao Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social: um novo instrumento baseado
na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. Brasília: MDS/MPS, 2007, p. 20.
44. Ver: BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Secretaria de Estado de Assistência Social. Benefício Assis-
tencial de Prestação Continuada BPC-Loas: Relatório do Processo de Revisão (2002). Brasília: MPAS, junho
de 2002.
45. Ver: LOBATO, Lenaura; GÓIS, João Bosco; SENNA, Mônica; REIS, Míriam; VASCONCELLOS, Mauricio. “Avaliação do
Benefício de Prestação Continuada”. In: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Avaliação
de políticas e programas do MDS: resultados. Volume 2: Bolsa Família e Assistência Social. Brasília: Ministério do Desenvol-
vimento Social e Combate à Fome (MDS); Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI), 2007.

76 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


mulheres são a maioria, refletindo possivelmente a maior longevidade feminina apon-
tada em diferentes estudos. Entre as pessoas com deficiência física e mental, os homens
compõem o conjunto maior. Em relação à escolaridade da população beneficiária, por
sua vez, constatou-se que 54,4% não possuem sequer um ano de estudo. Apenas 18,4%
têm de 4 a 7 anos de instrução. Tais ocorrências são compatíveis com as encontradas na
Avaliação Social da Segunda Etapa do Processo de Revisão (2002). A partir da amostra
selecionada, verificou-se que 71% das pessoas com deficiência não foram alfabetizadas,
27% possuem ensino fundamental incompleto e apenas 2% possuem ensino médio
incompleto. O altíssimo índice de analfabetismo no segmento revela a urgência na
implementação de ações específicas de inclusão educacional, sobretudo voltadas para
o ensino regular. Em relação aos idosos, 59% não foram alfabetizados, 36% possuem
ensino fundamental incompleto e 5% detêm ensino médio incompleto. No caso da po-
pulação idosa, o indicador de alfabetização é considerado um termômetro das políticas
educacionais brasileiras do passado. Nas décadas de 1930 até, pelo menos, os anos 1950,
o ensino fundamental ainda era restrito a segmentos sociais específicos. Nessa medida,
o baixo saldo da escolaridade média desta população é um reflexo deste acesso desigual.
Sobre a história profissional dos beneficiários do BPC, o estudo da UFF agrega
informações esclarecedoras sobre relação do benefício assistencial com o mercado de
trabalho e a política previdenciária. Enquanto 85% das PcD mentais e 69,9% das PcD
físicas nunca trabalharam, a maioria dos idosos (75%) já trabalhou e não trabalha mais.
A pesquisa sugere que esta diferença pode estar relacionada ao momento do ciclo de
vida no qual a impossibilidade de trabalhar ocorreu – enquanto boa parte das PcDs
pode estar neste estado desde o nascimento, para os idosos, foi fruto do envelhecimento.
Uma compreensão dos modos como a população beneficiária se inseriu no mundo do
trabalho pode ser obtida quando se observa a sua filiação no sistema previdenciário. Como
mostra a pesquisa, apenas 19,7% do conjunto dos beneficiários contribuíram em algum
momento para a Previdência Social. O fato pode ser explicado pela precariedade de sua
colocação no mercado de trabalho, tanto do ponto de vista das condições de exercício
laboral, quanto das relações trabalhistas.
Por fim, chama atenção o número de benefícios mantidos entre crianças e jovens
com deficiência. Cerca de 46% dos aproximadamente 1,3 milhão de benefícios man-
tidos para PcD foram destinados a pessoas entre 0 e 29 anos. Este público totalizava,
em novembro de 2007, algo como 626 mil pessoas. Destas, aproximadamente 268 mil
tinham entre 0 a 14 anos; 168 mil, entre 15 e 21 anos; e cerca de 190 mil, entre 22 e
29 anos. Nesse sentido, cabe lembrar que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência promulgada pela ONU em 2006 define a deficiência como o resultado
da interação entre as pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais que
impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades
com as demais pessoas. Nesse contexto, o público de crianças e jovens beneficiados pelo
BPC experimenta uma superposição de barreiras econômicas e sociais que os torna ex-
tremamente vulneráveis e que, portanto, demandam um acompanhamento sistemático e
o desenvolvimento de políticas e programas específicos, capazes de favorecer o seu pleno
desenvolvimento e a efetiva participação e inclusão na sociedade.
4.4 Evolução recente dos gastos
Os benefícios relativos à concessão do BPC registram aumento crescente de recursos ao
longo dos últimos quatro anos, conforme pode ser verificado no gráfico 2.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 77


GRÁFICO 2
BPC - recursos gastos com pagamento de benefícios (2004-2007)
(Valores corrigidos pelo INPC)

Fonte: MDS.
Elaboração: Disoc/Ipea.

Apenas em 2007, o BPC aplicou um montante de aproximadamente R$ 11,5 bilhões


no pagamento de benefícios, contra cerca de R$ 1,88 bilhão da RMV. Juntos, estes progra-
mas absorveram, naquele ano, cerca de 90,4% dos recursos do FNAS, o que vem gerando
descontentamento em certos setores. Alguns especialistas criticam o fato de que grande parte
dos recursos do FNAS vem sendo destinada ao pagamento destes benefícios monetários.
Outros criticam a existência do programa por seu caráter não-contributivo. Certos analistas
afirmam ainda que há uma injustiça social no fato destes benefícios estarem vinculados ao
valor de um salário mínimo.
Contudo, o debate sobre essas questões demanda que se levem em consideração
aspectos mais amplos da ação pública no campo da assistência social, desde aqueles
relacionados à divisão federativa de responsabilidades até os que se referem aos padrões
de justiça que organizam e legitimam a manutenção dos benefícios não-contributivos.
Nesse sentido, cabe lembrar, em primeiro lugar, que a organização federativa da
política de assistência social se reflete em um padrão de financiamento distinto no
que diz respeito a serviços e benefícios. Enquanto compete ao governo federal a
responsabilidade pela implementação e financiamento dos programas que operam
a segurança de renda – o BPC, a RMV, e também o Bolsa Família os serviços, sejam
de proteção básica ou especial, estão sob responsabilidade das três esferas de governo
e dependem, para sua operacionalização, do estabelecimento de um efetivo padrão de
responsabilidades e de co-financiamento, cujo estabelecimento apenas recentemente
começa a ganhar corpo.46

46. No que se refere ao sistema de co-financiamento, seu caráter ainda incipiente evidencia-se, por exemplo, na falta efetiva
de dados que permitam conhecer os reais patamares de alocação de recursos com os quais vem operando a assistência
social nos diferentes estados e municípios brasileiros. Não restam dúvidas, contudo, que a inexistência de uma legislação
fixando os serviços mínimos a serem ofertados à população, assim como determinando a vinculação de parcelas do orça-
mento de estados e municípios para a política de assistência social tem dado margem a amplas desigualdades no que se
refere ao investimento na área.

78 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Ao mesmo tempo, cabe lembrar que a responsabilidade federal pelo financiamento
dos benefícios assistenciais acentua o debate e a disputa pelos fundos federais mobiliza-
dos pela assistência social e mantidos pelo orçamento público, disputa particularmente
acentuada devido à natureza não-contributiva da política. Assim, a crítica à existência de
programas não-contributivos de transferência de renda se volta, em especial, ao BPC e à
sua vinculação ao salário mínimo. É necessário lembrar, contudo, que o BPC se destina
à manutenção de uma população reconhecida como incapacitada para o trabalho ou
dispensada deste por motivos de idade. O valor do benefício não visa complementar
recursos oriundos do mercado de trabalho, mas garantir o acesso aos bens mínimos
necessários a quem não tem acesso a este mercado. A alocação de recursos públicos para
grupos vulneráveis como idosos e pessoas com deficiência em situação de indigência
responde, em última análise, a um debate sobre o patamar de proteção social que a so-
ciedade brasileira deve prestar a seus membros. É neste contexto que se cabe enfrentar
a discussão sobre possíveis reformas em torno deste benefício.
4.5 Os debates sobre o BPC no Fórum Nacional da Previdência Nacional: perspectivas
do debate
O Fórum Nacional da Previdência Social (FNPS) foi instituído em janeiro de 2007
pelo Decreto no 6.019. Seu objetivo era elaborar, a partir do diálogo entre trabalha-
dores, empregadores, aposentados e governo, propostas de aperfeiçoamento da Previ-
dência Social brasileira, com vistas a garantir sua sustentabilidade no futuro. Em suas
12 reuniões realizadas entre os meses de março a outubro de 2007, o BPC foi um dos
temas discutidos. Durante os encontros e nos debates que se instalaram, duas posições
destacaram-se. Estas são aqui apresentadas, uma vez que representam formas distintas
de compreensão do benefício, sua natureza e função no campo da proteção social, bem
como vêm pautando a discussão e a apresentação de propostas referentes ao BPC.
Uma primeira posição, sustentada pelos que defendem uma reforma substancial
nas regras do benefício, ancora-se no argumento de que a sua existência, desvinculada
da necessidade de qualquer contribuição à Previdência Social, geraria um desestímulo à
contribuição previdenciária, principalmente para os trabalhadores mais jovens e menos
qualificados, que ganham salários próximos ao mínimo. Quanto a este ponto, cabe
observar que não há qualquer indicativo de que uma pessoa passe um longo período de
sua vida produtiva ausentando-se do trabalho visando ao recebimento de um benefício
assistencial no futuro. Além disso, como foi salientado, o BPC cobre um público distinto
da Previdência Social. No caso dos idosos, busca garantir uma renda mensal aos indiví-
duos que, não sendo detentores de outros recursos – seja na forma de renda familiar ou
de acesso aos benefícios contributivos da Previdência Social –, não têm como manter sua
subsistência. Cumpre ainda assinalar que, diferentemente do BPC, a Previdência Social
garante a proteção contra um largo espectro de riscos, que operam inclusive durante a
vida economicamente ativa dos trabalhadores.
Uma segunda posição ressalta a importância do benefício para a efetivação do princí-
pio da segurança de renda no campo da proteção social. Nesse sentido, a implementação
dos benefícios monetários assistenciais às populações em situação de pobreza alinha o
Brasil a outros países de maior nível de bem-estar, garantindo um efetivo patamar de
proteção social aos segmentos vulneráveis por idade ou deficiência.
Entretanto, não apenas os dissensos caracterizaram os debates sobre o BPC durante
a realização do FNPS. Foram compartilhados entre os participantes alguns consensos

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 79


genéricos ali produzidos sobre determinados aspectos relativos ao benefício. O box 1
reproduz o teor dos pontos de concordância.47
BOX 1

Principais pontos de consenso do FNPS relativos ao BPC


“Uma vez que os benefícios assistencial e previdenciário, conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988,
são vinculados ao salário mínimo, e respeitando-se os direitos básicos de cidadania sem aumento da carga tribu-
tária, deve-se:
1. Reavaliar o conceito de família e composição de renda familiar aplicados na elegibilidade ao Benefício de Pres-
tação Continuada da Assistência Social, de modo a aperfeiçoar a focalização nas camadas mais pobres e garantir a
ampliação da cobertura e sua sustentabilidade;
2. Reavaliar, em longo prazo, os critérios de idade para acesso ao Benefício de Prestação Continuada da Assistên-
cia Social, em conformidade ao aumento da expectativa de vida e seu impacto na sustentabilidade da política de
Assistência Social;
3. Observar uma política de reajustes reais do salário mínimo de acordo com a capacidade de financiamento da
economia no longo prazo.”

Observa-se, assim, que no documento final do Fórum da Previdência, o BPC foi


tratado, sobretudo, como um problema financeiro. Sua relevância como garantia de prote-
ção social a grupos expostos a expressivas condições de vulnerabilidade não foi ressaltada.
Contudo, é principalmente neste campo que sua atuação deve ser compreendida. O BPC
garante a proteção social a segmentos sociais até então desprotegidos no país. Às pessoas
com deficiência em famílias em situação de indigência o benefício é objeto de garantia de
renda e de melhoria importante em sua situação social. A miséria é hoje um fenômeno
marginal entre os idosos no país e, para isso, contribui o BPC, que efetiva o acesso a
um benefício monetário para grupos em situação de indigência, caracterizados por uma
inserção passada no mercado de trabalho, marcada pela precariedade e pelos baixos ren-
dimentos. A cobertura irrisória do BPC entre idosos rurais mostra que o benefício vem
garantindo proteção social a grupos de trabalhadores cuja trajetória laboral os manteve
excluídos da cobertura previdenciária. Na verdade, é no espaço da seguridade social, e
não da previdência social, que o BPC efetiva sua proteção social. E é do fortalecimento
do debate sobre a seguridade social que depende a consolidação do BPC.
5 Considerações finais
O capítulo procurou apresentar os principais fatos e resultados obtidos em 2007 no âm-
bito das políticas de assistência social, segurança alimentar e nutricional, e transferência
de renda. As informações apresentadas são complementares às tratadas na edição anterior,
pois o ano em questão foi marcado por fatos importantes para as três áreas.
No âmbito da assistência social, a realização da VI Conferência Nacional de Assistência
Social, a aprovação do Plano Decenal e mudanças significativas no Benefício de Prestação
Continuada são indícios do amadurecimento dessa política, que se empenha também na
consolidação do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Contudo, os desafios colocam-
se tanto na afirmação da garantia de renda como papel da assistência social no contexto da
seguridade, como na ampliação da cobertura dos serviços – em especial os do PSE.
Buscou-se mostrar aqui ainda que, apesar dos esforços públicos para fazer da segu-
rança alimentar e nutricional uma política pautada na intersetorialidade, sua trajetória

47. Ver Fórum Nacional de Previdência Social. Síntese das Atividades Desenvolvidas, 2007, p. 4. Disponível em
<http://www.mpas.gov.br/docs/forum/ConclusoesForum_31out2007>.

80 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


recente sugere dificuldades de consolidação. Ações fragmentadas e baixa cobertura con-
tinuam a marcar grande parte dos programas e ações subordinados ao MDS, apontando
para um desafio de aumento de escopo e integração.
Por fim, a política federal de transferência de renda, representada de forma expressiva
pelo Programa Bolsa Família, tem dado sinais de que seus objetivos estão sendo alcança-
dos. Presente em praticamente 15% dos domicílios brasileiros, o PBF tem contribuído
para aumento da renda das famílias e para a redução de sua vulnerabilidade em face
da extrema pobreza. Os esforços do MDS no sentido do fortalecimento das ações de
inserção produtiva das famílias beneficiárias trarão elementos novos para o programa,
os quais certamente serão objeto de análise nas próximas edições deste periódico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 81


SAÚDE

1 Apresentação
O ano de 2007 foi marcado por mais uma mudança ministerial na área da saúde.
Conforme apontado na edição anterior deste periódico, o novo ministro colocou em
destaque alguns pontos da agenda de saúde e apresentou uma proposta de reorganização/
priorização das ações na área. Os pontos que receberam maior ênfase no debate foram
as questões do aborto, do alcoolismo e do tabagismo. A proposta apresentada recebeu,
inicialmente, a denominação de PAC-Saúde, e depois de Mais Saúde. Especial relevância
foi observada também na discussão em torno da proposta de um novo modelo de gestão
na área hospitalar, qual seja, o das fundações estatais.
Alguns desses pontos já foram analisados no número 15 deste periódico e não
apresentaram mudanças significativas desde então.1 Este capítulo ocupa-se mais especi-
ficamente do debate sobre o tabagismo, em particular acerca da tributação do tabaco.
A questão central aqui reside na diferença dos posicionamentos do Ministério da Saúde
(MS) e da Secretaria de Receita Federal (SRF): a preocupação do primeiro está mais
relacionada aos impactos do tabaco sobre a saúde, ao passo que a da SRF está mais
centrada nos aspectos econômicos do assunto. Os argumentos expostos na seção Fatos
relevantes adiante mostram que, em face da aparente contradição entre estes dois aspectos,
a visão de saúde pública parece ser mais consistente. A mesma seção aprofunda o Mais
Saúde, que até a última edição deste periódico encontrava-se ainda em fase de discussão.
O programa foi lançado no final de 2007, com ênfase na questão do complexo econô-
mico-industrial da saúde. A promoção e prevenção em saúde parecem também ganhar
maior relevância nesta programação. A seção Fatos relevantes discorre ainda sobre o fim
da CPMF2 e suas implicações para o financiamento da saúde.
Na seção Acompanhamento da política e dos programas analisaram-se programas e
estratégias relevantes, sejam direcionados para a estruturação do modelo assistencial,
sejam para a confrontação de problemas importantes do cotidiano do Sistema Único
de Saúde (SUS): i) o Saúde da Família, com especial atenção para a sua expansão;
ii) a vigilância e o controle de doenças, com ênfase no debate em torno da dengue e nas
questões de promoção e prevenção em saúde; e iii) a assistência farmacêutica, cuja ação
prioritária foi centrada no Farmácia Popular.
Por fim, a seção Tema em destaque nesta edição elegeu a análise da gestão de re-
cursos humanos do Ministério da Saúde, questão central para a área e que vinha sendo
relegada a segundo plano. Em 2007, a temática ganha novamente espaço no debate,
particularmente no âmbito interno do governo federal.

1. É o caso do novo modelo de gestão hospitalar, que pode ser considerado a grande novidade na área em 2007. A questão
do aborto teve desdobramentos importantes, e estes são tratados adiante, no capítulo Igualdade de Gênero desta edição.
2. CPMF: Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 83


2 Fatos relevantes
2.1 Combate ao tabagismo: aumento do preço dos cigarros
Em uma nova ofensiva para desestimular o tabagismo, o MS, além das medidas de proi-
bição dos fumódromos – destacada na edição no 15 deste periódico –, está propondo
um aumento substancial do preço dos cigarros, com a fixação até mesmo de um valor
mínimo por carteira.
A área de saúde argumenta que o aumento do preço é a forma mais eficaz de reduzir
o consumo. A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, estima que uma elevação de
10% no preço do cigarro provocaria uma queda de algo em torno de 8% no consumo
em países como o Brasil.3 Contudo, a proposta esbarra na oposição da área econômica.
A Secretaria da Receita Federal coloca que, em vez de reduzir o consumo total, o efeito
mais provável de um aumento substancial de preços será elevar ainda mais o comércio
ilegal de cigarros (cigarros contrabandeados e cigarros produzidos por empresas brasileiras
que não recolhem impostos), o que iria de encontro aos esforços envidados da secretaria
para redução do comércio ilegal.
Com efeito, a SRF vinha adotando uma política de redução de impostos sobre
cigarros nos últimos anos para diminuir a diferença de preços entre o produto regulari-
zado e o comercializado ilegalmente, reduzindo, assim, o incentivo ao comércio ilegal.4
O imposto sobre produtos industrializados (IPI) equivalia a 42,5% do preço do maço
de cigarros em junho de 1999, e foi reduzido para algo entre 20% e 25% em julho de
2007. Neste período a participação do contrabando no mercado caiu de 37% para cerca
de 25%.5 Contudo, apesar do decréscimo na participação de produtos contrabandeados
no mercado, observou-se, entre 1999 e 2007, um aumento da ilegalidade como um
todo. No último ano foram consumidos 150 bilhões de cigarros, e perto de 40% deste
montante não foram objeto de recolhimento de impostos.6 A perda de receita anual é
estimada em aproximadamente R$ 1,5 bilhão.7 Esta soma é bastante expressiva quando
se considera a arrecadação obtida com a fabricação de cigarros: o Brasil produz anual-
mente mais de 5,7 bilhões de maços de cigarros e a SRF arrecada quase R$ 4,2 bilhões
com a fabricação do produto.8
Para a área de saúde, os custos incorridos com o tratamento das doenças relaciona-
das ao tabagismo mais do que superam a arrecadação obtida com a indústria do tabaco.
Segundo estimativas do MS, para cada R$ 1 arrecadado com o setor, R$ 2 são gastos
com doenças relacionadas ao tabagismo.9 Estima-se que anualmente cerca de 200 mil
pessoas morram devido a estas doenças no Brasil.10 Entre 1989 e 2000, observou-se uma

3. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. WHO Report on the Global Tobacco Epidemic, 2008: the MPOWER Package.
Genebra, Organização Mundial da Saúde, 2008.
4. Vale lembrar que a própria SRF aumentou o imposto sobre produtos industrializados (IPI) que incide sobre os cigarros
em 30% em julho de 2007, o que resultou em um aumento do preço em torno de 15%. O objetivo declarado pelo órgão
foi reduzir o consumo do produto, o que parece contradizer o discurso adotado no debate recente.
5. <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1703200801.htm> (acesso em 09 de junho de 2008).
6. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u382552.shtml> (acesso em 09 de junho de 2008).
7. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u108611.shtml> (acesso em 09 de junho de 2008).
8. Disponível em <https://www.receita.fazenda.gov.br/DestinacaoMercadorias/ProgramaNacCombCigarroIlegal/Default.htm>.
9. Disponível em <http://web.infomoney.com.br/templates/news/view.asp?codigo=982607&path=/suasfinancas/>.
10. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. The World Health Report: Reducing Risks and Promoting Healthy Lifestyles.
Genebra, Organização Mundial da Saúde, 2002.

84 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


queda de 31% no consumo per capita de cigarros,11 mas há evidências de estabilização
deste consumo nos últimos anos. O percentual da população que declarou ter feito uso
de cigarro alguma vez na vida ou ser dependente do fumo oscilou de entre 41,1% e 44%
em 2001 para entre 9% e 10,1% em 2005.12
2.2 O Programa Mais Saúde
O Programa Mais Saúde: direito de todos, lançado pelo presidente da República em 5 de
dezembro de 2007, veio consubstanciar um plano detalhado de investimento e atuação
prioritária do Ministério da Saúde para o quadriênio 2008-2011, enquanto componen-
te da estratégia nacional de desenvolvimento associada ao Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC). Mais conhecido como PAC-Saúde, o programa antevê a aplicação
de cerca de R$ 90 bilhões no período,13 dos quais R$ 24,3 bilhões correspondem a
recursos adicionais.
No preâmbulo do documento que apresenta o programa, reitera-se a relevância do
elo entre saúde e desenvolvimento socioeconômico, ao se declarar que “um país somente
pode ser denominado desenvolvido se seus cidadãos forem saudáveis, o que depende
tanto da organização e do funcionamento do sistema de saúde quanto das condições
gerais de vida associadas ao modelo de desenvolvimento vigente”. Entretanto, verifica-se
um descompasso entre a evolução do modelo universal do SUS e o processo de desen-
volvimento, evidenciado por diversas lacunas, entre elas: i) reduzida articulação da saúde
com as demais políticas públicas; ii) presença de uma significativa iniqüidade de acesso
ao SUS; iii) distribuição territorial da oferta de bens e serviços fortemente desigual;
iv) descompasso entre a evolução da assistência e a base produtiva e de inovação em saúde;
v) predomínio de um modelo burocratizado de gestão do sistema e de suas unidades de
produção de serviços; e vi) subfinanciamento do SUS, que se faz nítido pelo baixo gasto
per capita quando comparado a outros países.
As medidas e metas anunciadas estão organizadas em torno de sete eixos que vi-
sam articular a dimensão econômica e a dimensão social da saúde: promoção da saúde;
atenção à saúde; complexo industrial da saúde; força de trabalho em saúde; qualificação
da gestão; participação e controle social; e cooperação internacional. Estes eixos buscam
garantir uma convergência “para a construção de um sistema de saúde universal que se
associa a um padrão de desenvolvimento nacional voltado para a qualidade de vida de
seus cidadãos” (quadro 1).

11. Disponível em <http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=programa&link=programa_de_tabagismo.pdf>.


12. CARLINI, E. A. et al. II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil: Estudo Envolvendo as
108 Maiores Cidades do País, 2005. São Paulo. Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas - Universidade
Federal de São Paulo, 2006.
13. Como será visto adiante na seção Acompanhamento da política e dos programas deste capítulo, a não aprovação da
CPMF gerou impacto sobre os recursos previstos para o Mais Saúde. O Ministério da Saúde está pressionando para que se
incluam recursos de outras fontes, mas não há garantias explícitas quanto a tais possíveis inclusões.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 85


QUADRO 1
Eixos e principais medidas do Programa Mais Saúde
Eixos Principais medidas
Propor à Câmara de Políticas Sociais, coordenada pela Casa Civil , a articulação de programas governamentais com
impacto sobre saúde e qualidade de vida; implementação, em 1 mil municípios, de ações de promoção e monitoramento
para gestantes e crianças a partir de 5 anos, a partir de critérios definidos pela Câmara de Políticas Sociais (Brasileirinhos
1. Promoção da saúde Saudáveis); expansão das ações de planejamento familiar; estímulo ao aleitamento materno; programa Saúde do Escolar;
educação e comunicação em relação à promoção de hábitos que reduzam riscos de doenças; medidas legais capazes de
reduzir o impacto dos riscos originados pelo consumo de produtos potencialmente nocivos à saúde; saúde do trabalhador;
saúde integral do idoso; redução de iniqüidades entre grupos.
Ampliação da rede de serviços de atenção básica; expansão do Serviço Móvel de Urgência (Samu); ampliação do acesso a
medicamentos; implementação da Política Nacional de Internação Domiciliar; implantação da Rede Nacional de Unidades
de Respostas Rápidas (URR) às emergências em saúde pública; envio de projeto de lei sobre portabilidade, ressarcimento e
fundo garantidor na área de saúde suplementar; implementação, em Territórios Integrados de Atenção à Saúde da Família
2. Atenção à saúde
(Teias), de unidades de apoio e referência em atenção básica, conformando a rede de atenção com os Núcleos de Apoio à
Saúde da Família (Nasfs), os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs), e
as Unidades de Pronto Atendimento e Apoio ao Diagnóstico (UPAs); ampliação do acesso à atenção especializada; otimiza-
ção do acolhimento e das práticas de humanização no SUS – entre outras.
Implementação de um programa nacional para produção estratégica do complexo industrial da saúde em parceria com Mi-
nistério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior/Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (MDIC/
BNDES), Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), e Unidades da Federação; investimentos na rede de laboratórios oficiais
3. Complexo industrial
de medicamentos e nos produtores públicos de vacinas; fomento à inovação; alteração da legislação para permitir o uso
da saúde
estratégico do poder de compra do Estado; consolidação da Rede Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde; promoção e
modernização do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária para garantir a qualidade e a eficiência do processo de produção
e inovação nacional – entre outras.
Estabelecimento de ação integrada com o Ministério da Defesa para suprir deficiência de médicos, odontólogos e outros
profissionais de saúde em áreas pouco desenvolvidas; qualificação e adequação da formação profissional em saúde, com
4. Força de trabalho colaboração de equipes de saúde da família selecionadas; promoção da especialização dos profissionais de nível superior
em saúde das equipes do Saúde da Família; capacitação de profissionais de nível médio em áreas técnicas estratégicas para a saúde;
implementação de Programa Nacional de Qualificação de Gestores e Gerentes do SUS; criação da Escola de Governo em
Saúde no Distrito Federal; recomposição da força de trabalho da saúde na esfera federal.
Desenvolvimento de sistema integrado de planejamento, informação, monitoramento, controle e avaliação das ações de
saúde, com foco nos repasses federais; fortalecimento do Sistema Nacional de Auditoria do SUS; implementação de complexos
5. Qualificação da
reguladores; modernização da gestão dos hospitais filantrópicos por meio de contratos de gestão; aprovação de projeto
gestão
de lei complementar e das leis ordinárias necessárias para implantar o modelo de fundação estatal de direito privado nos
hospitais públicos federais.
Dotação dos Conselhos de Saúde de Infra-Estrutura e Apoio Logístico para exercerem seu papel no controle social; apoio
6. Participação e à educação permanente de agentes e conselheiros para o controle social e a ação participativa; implantação do Sistema
controle social Nacional de Ouvidoria do SUS; expansão da divulgação e do uso pela população da Carta de Direitos do Usuário da Saúde;
implantação do Portal dos Direitos do Usuário dos Serviços de Saúde.
Contribuição para o desenvolvimento de estruturas e dos sistemas de saúde dos países da América do Sul e Central, da
7. Cooperação Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e outros países africanos; inserção do programa de saúde para a
internacional fronteira na perspectiva de fortalecimento da integração da América do Sul; apoio à constituição da Rede Pan-Amazônica
de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI).
Fonte: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Mais Saúde: direito de todos : 2008 – 2011. 2. ed. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008.

Essa estratégia se associa ainda à defesa de que a saúde não é apenas um fator
de gasto, mas é também um propulsor do desenvolvimento, em um modelo que
alia crescimento, inclusão social, inovação e eqüidade. Por isso, um novo eixo, antes
pouco explorado dentro da política federal na área, passa a ser o fomento ao com-
plexo industrial da saúde. Uma forte justificativa para tal seria a de que a indústria
farmacêutica brasileira perdeu espaço nos últimos anos e isto levou à ampliação do
déficit da balança comercial que, em relação aos medicamentos, chegou a quase
R$ 2 bilhões em 2007.14
Dada a necessidade plenamente reconhecida de uma ação intersetorial capaz de
articular o conjunto das políticas públicas para dar mais consistência e continuidade
ao eixo da promoção da saúde, está prevista uma atuação estratégica do MS junto à
Câmara de Políticas Sociais da Casa Civil da Presidência da República. Na imple-
mentação dos programas haverá associação do MS com outros órgãos ministeriais,

14. Informação apresentada no seminário Complexo Econômico-Industrial da Saúde, realizado entre 19 e 21 de maio
de 2008 e organizado pelo BNDES em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O pesquisador Carlos Gadelha
apresentou valores mais recentes desse déficit.  Na apresentação observa-se um crescimento significativo, com o déficit de
medicamentos e fármacos alcançando aproximadamente R$ 3,5 bilhões em 2007. (Disponível em < http://www.bndes.gov.
br/conhecimento/seminario/complexo_ind_saude_CarlosGadelha.pdf>. acesso em 09 de junho de 2008).

86 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


como o Ministério da Educação, que deverá se unir àquele na promoção de um amplo
programa de saúde nas escolas.15
Entre as metas de investimento na organização da atenção básica, merecem destaque
as seguintes:
• aumentar o número de Equipes de Saúde da Família de 27 mil para 40 mil, am-
pliando a cobertura de 47% para 70% da população;
• estender o Programa Brasil Sorridente, aumentando o número de Equipes de
Saúde Bucal de 16.500 para 24.000 até 2011, estendendo a cobertura de 41%
para 70% da população; e
• construir 7.655 módulos básicos de saúde com prioridade para regiões metropo-
litanas e vazios assistenciais (cidades com menos de uma unidade de saúde para
cada 20 mil habitantes), ao custo médio de R$ 200 mil.
Estão incorporadas ao programa tanto as metas de saneamento em pequenas loca-
lidades quanto as de atenção à saúde da população indígena, que haviam sido divulga-
das em separado pela Fundação Nacional de Saúde (PAC-Funasa) e que envolvem um
dispêndio de R$ 4 bilhões para o período.
Os recursos previstos para a efetivação do programa foram discriminados em duas
rubricas: assegurado e expansão. O total de R$ 65,1 bilhões está garantido como parte
do Plano Plurianual (PPA), enquanto R$ 24,3 bilhões dependem de recursos adicionais
para expansão das ações, que venham em substituição ao que anteriormente se previa
como destinado à saúde por intermédio do aumento de repasses da extinta CPMF.
QUADRO 2
Programa Mais Saúde – recursos totais consolidados por eixos (2008-2011)
Eixos Total Assegurado Expansão
Promoção da saúde 2.206.133.371 531.080.890 1.675.052.481
Atenção à saúde 80.393.886.456 60.098.608.401 20.295.278.055
Complexo industrial da saúde 2.013.908.652 1.159.213.000 854.695.652
Força de trabalho em saúde 2.559.044.343 1.734.180.000 824.864.343
Qualificação da gestão 1.942.984.813 1.339.350.000 603.634.813
Participação e controle social 296.450.870 267.000.000 29.450.870
Cooperação internacional 58.100.000 15.000.000 43.100.000
Total 89.470.508.505 65.144.432.291 24.326.076.214
Fonte: Ministério da Saúde.

Entre as iniciativas do Mais Saúde, o Ministério da Saúde publicou, em 24 de janeiro


de 2008, a Portaria no 154, que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasfs).
Estes núcleos contarão com profissionais de áreas co-relacionadas àquelas dos profissionais
das Equipes de Saúde da Família (ESFs) tradicionais (médicos, odontólogos, enfermeiros
e agentes comunitários de saúde), e não se constituirão em porta de entrada do sistema,
mas comporão um sistema integrado de atenção que atuará a partir das necessidades iden-
tificadas pelas ESFs. Os Nasfs serão introduzidos em duas modalidades: Nasf 1 e Nasf 2.
Para o primeiro estão previstos repasses no valor de R$ 20 mil e as equipes deverão
ser formadas por, no mínimo, cinco profissionais de ocupações não-coincidentes,

15. Ainda não está claro quais modalidades de saúde nas escolas serão utilizadas. Porém, algumas declarações do presidente
da República indicam que poderão ser feitos atendimentos até mesmo por meio de Equipes de Saúde da Família – os médicos
atenderiam diretamente nas escolas –, o que não significa necessariamente implementar Equipes de Saúde da Família em cada
escola. Disponível em <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/11/05/materia.2007-11-05.9566672317/view>.

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entre eles: médico acupunturista; assistente social; professor de educação física; farmacêuti-
co; fisioterapeuta; fonoaudiólogo; médico ginecologista; médico homeopata; nutricionis-
ta; médico pediatra; psicólogo; médico psiquiatra; e terapeuta ocupacional. A proporção
será de um Nasf 1 para oito a 20 ESFs, à exceção dos estados da região Norte e das cidades
com menos de 100 mil habitantes, em que a quantidade mínima será de cinco ESFs.
A modalidade 2 está prevista para ser implementada em municípios com densidade po-
pulacional abaixo de dez habitantes por quilômetro quadrado, com repasse de R$ 6 mil
mensais. Comporá a equipe Nasf 2 um mínimo de três profissionais de ocupações não-
coincidentes, entre elas: professor de educação física; farmacêutico; fisioterapeuta; fono-
audiólogo; nutricionista; psicólogo; e terapeuta ocupacional. Nas duas modalidades, a
recomendação é que pelo menos um dos profissionais incorporados seja da área de saúde
mental. A composição das equipes será definida pelos gestores locais, mas com carga
horária definida de 40 horas semanais que, em casos específicos, poderá ser substituída
por dois profissionais cumprindo 20 horas semanais cada. Os repasses serão feitos com
recursos do PAB-variável e comporão o bloco financeiro da Atenção Básica.16
2.3 O fim da CPMF e os desafios para o financiamento da saúde
Em dezembro de 2007, o financiamento da saúde enfrentou um problema adicional: foi
extinta a CPMF, uma das principais fontes de recursos do setor. Todavia, não obstante
o fim da contribuição, o total de recursos previsto no orçamento de 2008 não foi alte-
rado, até mesmo porque atendia ao montante mínimo de recursos constitucionalmente
definido pela Emenda Constitucional (EC) no 29/2000. A determinação constitucional
é a de que a União deve gastar o valor empenhado no ano anterior, aplicada a variação
nominal do Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, a determinação não explicita qual
fonte de recursos deve financiar estes aportes. Com isso o valor continua preservado,
ainda que com a não-aprovação da CPMF.
Na prática, houve uma redistribuição de recursos nas fontes de financiamento,
aumentando, principalmente, a fonte Recursos Ordinários (tabela 1). Esta fonte,
que no projeto de lei original não financiava a saúde, passou a representar 19,5%
dos recursos da área no autógrafo de 2008.17 Além desta fonte, a Contribuição para
o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) também sofreu alteração, aumentando
sua participação no financiamento em 9 pontos percentuais (passando de 23,4%
para 32,8%). As demais fontes de recursos permaneceram estáveis. Em suma, os
recursos que viriam da fonte CPMF foram reprogramados para virem basicamente dos
recursos ordinários e da Cofins.

16. A discussão sobre o PAB-variável e o bloco da Atenção Básica pode ser encontrada na edição no 14 deste periódico.
17. Autógrafo é uma denominação utilizada para a redação final de projeto de lei orçamentária aprovado em caráter
definitivo no Congresso Nacional.

88 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 1
Previsão orçamentária do MS por fonte de financiamento (2008)
Fonte de financiamento PL % Autógrafo %
Recursos ordinários 0,00 0,0% 10.236.686.824,00 19,5%
Contribuições sociais 49.440.920.626,00 95,4% 39.957.483.573,00 76,0%
- Contrib. Soc. Lucro PJ 19.608.130.379,00 37,8% 20.971.066.058,00 39,9%
- Cofins Contribuição Financeira Seg. Social 12.114.265.236,00 23,4% 17.233.372.866,00 32,8%
- CPMF Contribuição Movimentação Financeira 16.506.249.454,00 31,8% 540.769.092,00 1,0%
- Contribuição Plano Seg. Soc. Serv. 1.212.275.557,00 2,3% 1.212.275.557,00 2,3%
Recursos próprios1 1.809.420.245,00 3,5% 1.809.422.902,00 3,4%
Operações de crédito 87.262.049,00 0,2% 87.262.049,00 0,2%
Outros recursos2 487.637.283,00 0,9% 487.637.283,00 0,9%
Total 51.825.240.203,00 100,0% 52.578.492.631,00 100,0%
Fonte: Orçamento Brasil.
Notas: 1 Foram considerados os recursos próprios financeiros e não-financeiros.
2
Inluem os recursos provenientes da restituição de convênnios e das taxas e multas pelo poder de polícia.

A não-aprovação da CPMF prejudicou, no entanto, as pretensões da pasta da Saúde


em obter maior aporte de recursos com o objetivo de desenvolver, em sua plenitude, o
Mais Saúde. Todas as negociações para aprovação da regulamentação da EC no 29 estavam
conectadas à prorrogação da CPMF. Em contraposição à pretensão inicial da “bancada
sanitária” de vincular 10% da receita corrente bruta ao financiamento federal do SUS,
o governo propôs a destinação de percentual maior da CPMF para a Saúde, totalizando
recursos adicionais da ordem de R$ 24 bilhões no período de 2008 a 2011,18 os quais
seriam destinados ao financiamento do Programa Mais Saúde.
Com a extinção da CPMF, o governo e a bancada sanitária voltaram a discutir a
regulamentação da EC no 29. O projeto então em trâmite no Senado (Projeto de Lei
no 121/2007, de autoria do senador Tião Viana) acabou sendo aprovado no dia 9 de
abril de 2008 e remetido para apreciação pela Câmara. Fundamentalmente, este projeto
define quais as despesas com ações e serviços públicos de saúde podem ser consideradas
para fins de cumprimento da EC no 29. Para compensar a perda dos recursos adicionais
que viriam da extinta CPMF, o projeto de lei reincorpora o dispositivo de vinculação
de percentual da receita corrente bruta da União ao financiamento do SUS: 8,5% em
2008, 9,0% em 2009, 9,5% em 2010, e 10% a partir de 2011. Encaminhado para
votação na Câmara, o projeto teve como substitutivo o Projeto de Lei Complementar
(PLP) no 306 de 2008, que incorporou a proposta de criação da Contribuição Social
para a Saúde (CSS), com alíquota de 0,10% incidente sobre a movimentação financeira.
Aprovada pela Câmara, a nova contribuição social proporcionará recursos da ordem de
R$ 10 bilhões ao ano para a Saúde. Tais recursos são adicionais e não se acrescentam
ao valor do piso federal, que continuará sendo corrigido pela variação nominal do PIB.
O PLP no306/2008 ainda terá de ser votado pelo Senado. Se aprovado, partidos da opo-
sição prometem questionar, junto ao Supremo Tribunal Federal, a constitucionalidade
da criação de contribuição social por meio de lei complementar. Como se pode concluir,
a novela da regulamentação da EC no 29 ainda está longe de acabar.
3 Acompanhamento da política e dos programas
Faz-se nesta seção uma análise da execução física e financeira de programas desenvolvidos
pelo Ministério da Saúde em 2007. No que toca à execução física destes programas,
foram selecionados três blocos: a Atenção Básica em Saúde (especificamente o Saúde
da Família), o Farmácia Popular (que, entre outros, constitui uma parte do programa

18. Os recursos adicionais foram previstos da seguinte forma: em 2008, R$ 4 bilhões; em 2009, R$ 5 bilhões; em 2010,
R$ 6 bilhões; e em 2011, R$ 9 bilhões. Ver o número 15 deste periódico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 89


Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos), e as ações de Vigilância em Saúde.
Juntamente com o bloco de Atenção Hospitalar e Ambulatorial, tais programas respon-
dem por 80% dos recursos do MS. As principais ações do último bloco relacionam-se
a gestão, com destaque para o debate em torno da criação de fundações estatais, temá-
tica examinada e discutida na última edição deste periódico. Por isso, optou-se aqui
pela restrição da análise aos três primeiros blocos supracitados. Em seguida, discute-se
ainda a regulamentação da EC no 29, para então apresentar a execução financeira dos
principais programas do ministério.
3.1 A execução física dos programas do Ministério da Saúde em 2007
O programa Atenção Básica em Saúde tem como principal estratégia o Saúde da Família
que, conforme discutido em edições anteriores deste periódico, busca reorientar o modelo
de atenção à saúde, tendo a atenção básica como o local privilegiado para o desenvolvi-
mento de ações de promoção da saúde e prevenção de agravos, e porta de entrada para o
acesso aos serviços de maior complexidade. Em 2007, havia 27 mil Equipes de Saúde da
Família (ESFs) no país, com capacidade estimada para acompanhar 47% da população
nacional. Os desafios do Saúde da Família continuam sendo os mesmos apontados em
edições anteriores deste periódico,19 quais sejam: i) garantir recursos humanos capacita-
dos para atuar no segmento; ii) expandir o programa para os grandes centros urbanos; e
iii) integrar esta estratégia aos outros níveis de atenção à saúde, particularmente à média
e à alta complexidade. 20
As informações por Unidade da Federação analisadas indicam que, em 2007, as co-
berturas ainda estavam abaixo de 50% em vários estados, tendo ficado próximas de 30%
no Rio Grande do Sul, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo, com a menor cobertura estimada
registrada no Distrito Federal.21 Houve de fato uma ampliação da cobertura ao longo do
tempo, pois, em 2003, a estimativa no estado do Rio de Janeiro era de 19,5%, em São
Paulo de 18,5%, e no Rio Grande do Sul de 18,7%. Todavia, esta expansão de cobertura
tem sido considerada insuficiente e, em geral, verifica-se estar relacionada à dificuldade
para consolidação do programa nos grandes centros urbanos destes mesmos estados.
De fato, os municípios com mais de 500 mil habitantes (aproximadamente 40
em todo o território nacional), que concentram cerca de 30% da população brasileira,
têm coberturas estimadas abaixo de 30%, com raras exceções, como é o caso de Belo

19. Para detalhes, ver a edição no 11 deste periódico.


20. Em sua segunda participação na reunião do Conselho Nacional de Saúde, o ministro Temporão afirmou que um dos problemas
do sistema de saúde era que “nós temos uma política de atenção à saúde que está sempre focada na atenção, no hospital e
de preferência no viés da alta tecnologia (...) é que em um sistema de saúde centrado no hospital, voltado para o hospital, a
atenção básica não existe, Saúde da Família não existe e nós sabemos que esse modelo que coloca o hospital como centro do
processo de atenção não vai a lugar nenhum, é inviável, é insustentável e normalmente de má qualidade”. Continua “Então,
esse conteúdo de política de saúde é importante e fundamental, mas no campo da atenção, nós temos desafios gigantescos,
a própria expansão e qualificação do PSF é uma questão importante, existem muitos desafios relacionados à precarização do
trabalho, à qualidade.” (Conselho Nacional de Saúde. Ata da 173a Reunião Ordinária, 8 e 9 de maio de 2007).
21. Essa análise de cobertura apresenta problemas, pois não é feita com base na população efetivamente acompanha-
da, mas em uma estimativa de capacidade potencial de acompanhamento por cada ESF. Esta estimativa é feita com
um número fixo, 3.450 pessoas por equipe, limitadas à população total. Todavia, alguns analistas avaliam que, “em
especial a partir de 2000, o indicador passou a se constituir, cada vez mais, em uma boa estimativa da cobertura efetiva
do PSF, apresentando valores semelhantes aos referentes à população cadastrada, ao número de famílias acompanha-
das e ao número de nascidos vivos registrados, segundo as informações alimentadas pelas próprias equipes de saúde
da família no SIAB* em cada município.” AQUINO, Rosana e BARRETO, Maurício. Programa Saúde da Família: acerca
da adequação do uso do seu indicador de cobertura. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(4):905-914, abr, 2008.
*Siab: Sistema de Informação da Atenção Básica.

90 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Horizonte – superior a 70%. O município do Rio de Janeiro tinha, em dezembro de
2007, 143 Equipes de Saúde da Família, para uma população de 6 milhões de habi-
tantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – cobertura
estimada de 8,22%; São Paulo possuía 817 equipes para uma população de 11 milhões
(25,6%); Porto Alegre contava com 93 equipes para 1,4 milhão de habitantes (22,9%);
ao passo que Belo Horizonte estava com 483 ESFs para uma população de 2,4 milhões
de habitantes (69,4%).22
Entre 2003 e 2007, houve um esforço de implementação do Programa de
Expansão do Saúde da Família (Proesf ) para municípios com mais de 100 mil ha-
bitantes, analisado na edição número 12 deste periódico. Cabe relembrar aqui que
a implementação do Proesf compreende o período de 2002 a 2009, distribuído
em três fases: de 2002 a junho de 2005, de julho de 2005 a junho de 2007, e de
julho de 2007 a 2009. Em 2003, a cobertura média estimada para estes municípios
estava em 22%, e foram estabelecidas metas de cobertura diferenciadas por grupos,
segundo o porte populacional (tabela 2). Em dezembro de 2007, estes números
se alteraram, com avanços em quase todos os grupos, mas ainda muito distantes
das metas estipuladas no momento inicial do programa. Em 2006, o Ministério da
Saúde já avaliara não ser possível alcançar a meta estabelecida para 2007 (48%), e
a reviu para 35% de cobertura estimada.
TABELA 2
Distribuição dos municípios potenciais beneficiários do Proesf
Quantidade de População total Cobertura média pelo Meta de cobertura Cobertura estimada
Porte populacional
municípios (milhões) PSF (set./2003) Proesf (dez./2009) (dez./2007)
100 a 500 mil 198 41 25 70 38
500 mil a 2 milhões 27 23,4 23 50 32
2 a 5 milhões 4 9,2 22 40 31
Acima de 5 milhões 2 16,5 13 30 19
Total 231 90,1 22 60 32
Fonte: MS. CNES. Equipes de Saúde da Família. MS. DAB. Informe da Atenção Básica n. 17. Julho/Ago, 2003.

Pergunta-se então: por que a cobertura nos grandes centros urbanos continua baixa?
Hipóteses podem ser levantadas a respeito, algumas das quais relacionadas diretamente
à implementação do Proesf e outras derivadas de problemas adicionais. Com relação
ao Proesf, um relatório de dezembro de 2007 disponibilizado pelo Banco Mundial23
afirma que o programa previa atender, inicialmente, somente 40 municípios. Com a
mudança de governo em 2003, houve ampliação do número de municípios cobertos pelo
programa. Assim, a cobertura estimada alcançada estaria em 29 milhões de habitantes –
acima, portanto, da previsão original: 5 milhões. As metas de expansão para a segunda
fase ainda não foram avaliadas pelo banco.
Ainda assim, pode-se considerar que a cobertura continua baixa (menos de 35%). Esta
foi uma das razões apresentadas pelo atual ministro da Saúde para explicar a intensidade
da epidemia da dengue no Rio de Janeiro. Qual seria a relação alegada entre a ausência de
uma atenção básica no modelo do Saúde da Família e a epidemia de dengue?

22. Equipes de Saúde da Família constantes no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, em consulta realizada
no dia 25 de março de 2008. Estimativas de população realizadas pelo IBGE.
23. WORLD BANK. Implementation completion and result report on the loan in the amount of US$ 68.0 million to the Fede-
rative Republic of Brazil in Support of the First Phase of the Family Health Extension Adaptable Lending Program. Report No:
ICR0000693, December 21, 2007.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 91


Um argumento utilizado é que, no Saúde da Família, as equipes cumpririam um
papel não só de assistência à saúde, no sentido clássico de tratamento de doenças,
mas de acompanhamento e orientação das famílias em vários aspectos, aí incluídas as
condições sanitárias de moradia e a prevenção de várias doenças, entre elas as trans-
missíveis por vetores – caso da dengue. Embora seja inegável a importância do Saúde
da Família no seu trabalho de orientação junto às famílias, há fatores associados à
proliferação do mosquito transmissor ou ações de controle vetorial que não são objeto
de atuação das ESFs, além de outros que estão na esfera de políticas setoriais diversas
(saneamento ambiental, por exemplo), situando-se, portanto, fora da governabilidade
da política de saúde.
É importante considerar aqui que o governo federal colabora no combate à den-
gue também por meio da Vigilância em Saúde, ao transferir recursos para que estados e
municípios realizem as ações propostas pelo Programa Nacional de Prevenção e Controle
da Dengue. Além disso, a União é responsável, entre outras ações, por: executar ações de
vigilância epidemiológica complementares às ações estaduais e municipais; consolidar
e analisar os dados sobre a dengue provenientes dos estados; normatizar as ações de vi-
gilância e controle; prestar assistência técnica às outras esferas de governo; e coordenar
e executar ações de educação em saúde e mobilização social, assim como programas de
capacitação de recursos humanos.24
No caso de fatores relacionados à área de atuação de outros setores, pode-se citar, por
exemplo, o impacto negativo da interrupção de fornecimento de água em determinadas
localidades do Rio de Janeiro durante o verão, o que levaria as famílias a estocarem água,
criando um habitat propício para proliferação do mosquito transmissor (Aedes aegypti).
Outros elementos que contribuem para proliferação do mosquito estão vinculados aos
problemas de planejamento urbano, como acúmulo de lixo em espaços abertos, terrenos
baldios, grande aglomerações populacionais, e adensamento populacional em condições
de moradia precária.25
O combate à dengue envolve, portanto, a interação do setor saúde nas diferentes
esferas de governo, mas, também, a articulação deste com outros setores, particular-
mente com as políticas urbanas, além da necessidade de participação ativa da sociedade.
Esta articulação se faz fundamental para, no mínimo, controlar a doença.

24. Como lembram Teixeira, Barreto e Guerra, “a prevenção das infecções causadas pelos vírus do dengue ainda é um desafio
visto ser centrada na atuação sobre o único elo vulnerável da cadeia epidemiológica que é a eliminação do seu principal
transmissor, o Aedes aegypti. Esta envolve agressão ao meio ambiente pelo uso de inseticidas; investimentos substanciais
em saneamento ambiental; necessidade de participação das comunidades com indução de modificações comportamentais;
permissão da população para o tratamento químico de depósitos de água intra e peridomiciliares não elimináveis; atividades
programáticas contínuas até a completa eliminação desta espécie de mosquito; manutenção de vigilância entomológica; e
problemas inerentes à biologia do próprio vetor.” Teixeira, MG, Barreto, ML, Guerra, Z. Epidemiologia e medidas de prevenção
da Dengue. Informe Epidemiológico do SUS 1999, 8(4):5-33. Bahia: ISUS, UFBA.
25. O modo de vida de populações em grandes centros urbanos gera uma escala exponencial para a proliferação do Aedes
aegypti : “Nas áreas mais pobres, que correspondem àquelas deficientes em estrutura urbana, os criadouros potenciais mais
encontrados são vasilhames destinados ao armazenamento de água para consumo, devido à freqüente intermitência ou
mesmo inexistência dos sistemas de abastecimento, e recipientes que são descartados, mas permanecem expostos ao ar livre
no peridomicílio, por não se dispor de coleta de lixo adequada. Os hábitos culturais das populações de classe mais elevada
também mantêm no ambiente doméstico, ou próximo a este, muitos criadouros do Aedes aegypti, mas que têm diferentes
utilidades, pois, em geral, são destinados à ornamentação (vasos de plantas com água) ou tanques para armazenamento de
água tratada sem tampas. Por outro lado, o processo de apropriação do espaço destas metrópoles favorece a proximidade
espacial das populações de diferentes classes sociais, seja pela favelização de áreas situadas dentro de bairros nobres, seja
pela ocupação de prédios antigos onde se instalam moradias sob a forma de cortiços.” Idem ibidem.

92 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


No tocante às doenças e agravos não transmissíveis, houve um esforço em dar con-
tinuidade à pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção das Doenças Crônicas por
Inquérito Telefônico (Vigitel), com monitoramento de vários fatores de risco, entre eles o
uso do tabaco. Adicionalmente, o Ministério da Saúde participou do esforço do Ministério
da Justiça que culminou na publicação pelo da Medida Provisória no 415, de março de
2008, que prevê a restrição da venda de bebidas alcoólicas nos postos de gasolina situados
às margens de rodovias federais. Na negociação para conversão desta medida em projeto de
lei, a proibição ficou restrita aos postos de gasolina fora de perímetros urbanos. Convertida
na Lei no 11.705, de 19 de junho de 2008, a nova regulamentação alterou artigos da Lei
no 9.503, de 23 de setembro de 1997, que trata do Código Nacional de Trânsito. As alterações
estabeleceram a proibição de dirigir sob influência de álcool (alcoolemia zero) ou de qualquer
substância psicoativa, situação esta agora considerada infração gravíssima e que sujeita o
condutor a multa, suspensão do direito de dirigir por 12 meses, e retenção do veículo (artigo
165 da Lei no 9.503) – a fixação das margens de tolerância ficou a cargo do Poder Executivo
federal (Lei no 9.503, artigo 276, parágrafo único). A margem de segurança foi definida em até
2 decigramas por litro de sangue (Decreto no 6.488, de 19 de junho de 2008). Acima deste
limite o motorista está sujeito a multa e apreensão da habilitação. A lei também determina a
pena de detenção para aqueles que dirigirem em via pública com nível concentração de álcool
por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas (Lei no 9.503, artigo 306).26
Em relação à Assistência Farmacêutica, a estratégia governamental de maior visibilidade
reside no Farmácia Popular. Conforme descrito nas edições números 9 e 12 deste periódico,
seu principal objetivo é ampliar o acesso da população a medicamentos. Para isso foi adotada,
em 2004, a implantação de uma rede de farmácias populares, as quais venderiam medicamentos
ao preço de R$ 1 por receituário. Esta etapa da estratégia foi denominada internamente no
MS de Farmácia Popular I. Até o final de 2005, existiam somente 100 farmácias populares
em todo o Brasil. Em março de 2006, o governo optou por aproveitar a capilaridade da
rede de farmácias e drogarias comerciais e instituiu o Farmácia Popular II – ou o Aqui Tem
Farmácia Popular, seu nome fantasia mais conhecido. Nesta segunda fase do programa, uma
lista de medicamentos para hipertensão e diabetes era comercializada na rede privada a preços
subsidiados. Mais de mil farmácias e drogarias comerciais já estavam cadastradas logo no
início desta fase. Enquanto o número de farmácias populares na linha I aumentou de apro-
ximadamente 250 para 300 entre 2006 e 2007, os estabelecimentos comerciais cadastrados
no Farmácia Popular II chegaram a cerca de 5 mil em 2007.27
Além dos medicamentos previstos inicialmente, o governo aproveitou essa estratégia
para implementar parte das ações de Saúde Sexual e Reprodutiva, incluindo anticon-
cepcionais na lista de medicamentos a serem disponibilizados a preços subsidiados nas
farmácias e drogarias comerciais. Ainda não é possível avaliar qual o impacto da estra-
tégia em termos de acesso da população a tais medicamentos ou dos gastos das famílias,
principalmente as mais pobres.28

26. Tendo em vista o caráter recente da lei, as questões relativas ao debate público em torno das alterações que introduziu
e de seus respectivos impactos serão analisadas em outra edição deste periódico.
27. Dados apresentados na publicação Brasil. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria-Executiva. Mais Saúde: direito de todos :
2008 – 2011. 2. ed. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008.
28. De fato, quando as famílias dos primeiros décimos de renda gastam com saúde, este gasto é concentrado em medicamentos
– representam 70% dos gastos das famílias até o quinto décimo de renda com saúde. Para uma análise mais detalhada do
gasto das famílias com saúde ver, entre outros, MENEZES, T; CAMPOLINA, B; GAIGER, F.; SERVO, L. e PIOLA, S. (2006) Gasto
privado das famílias com saúde. O IBGE levará a campo uma nova pesquisa de orçamento familiar cujos resultados só deverão
estar disponíveis em 2010. Esta pesquisa poderá permitir, entre outras análises, examinar o impacto do Farmácia Popular.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 93


3.2 Execução orçamentário-financeira
3.2.1 Cumprimento da EC no 29
Para analisar o cumprimento da EC no 29 pelo governo federal, vale relembrar dois
dissensos em torno da questão: a definição das ações e serviços públicos em saúde e a
base de cálculo a ser utilizada para a previsão do patamar de recursos.
Em relação à primeira questão, foi resolvido um aspecto relevante em torno do
conflito que existia. A partir de 2006, a integralidade da execução do Programa Trans-
ferência Direta de Renda com Condicionalidades foi atribuída ao Ministério do Desen-
volvimento Social e Combate à Fome. Assim, acabou-se com o problema da exclusão
ou não deste programa para calcular a despesa com ações e serviços públicos em saúde,
posições defendidas, respectivamente, pelo Conselho Nacional de Saúde e pelo Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão – Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).29
Conforme se observa na tabela 3, desde 2006 as despesas com ações e serviços públicos
de saúde apresentam o mesmo valor (colunas a e b).
No tocante à base de cálculo, a depender do critério utilizado, os resultados são
distintos no que respeita ao cumprimento da EC no 29 por parte do governo federal.
Tomando-se o critério base fixa,30 no período de 2000 a 2007 o montante aplicado
pelo Ministério da Saúde em ações e serviços públicos de saúde foi superior ao mínimo
exigido em todos os anos, totalizando um saldo positivo acumulado de R$ 11 bilhões.
No entanto, se a metodologia aplicada for a da base móvel,31 o governo só cumpriu o
mínimo constitucional em 2000 e 2002, deixando de aplicar em ações e serviços públicos
de saúde um total acumulado de R$ 6,2 bilhões no mesmo período.
Em 2008, a dotação inicial reservada ao MS foi de R$ 51,8 bilhões, dos quais
R$ 47,8 bilhões destinados às ações e serviços públicos de saúde. Entretanto, após dis-
cussão no Congresso, a lei orçamentária aprovada autorizou o valor de R$ 52,6 bilhões
para o ministério, dos quais R$ 48,6 bilhões para ações e serviços públicos de saúde,
ou seja, R$ 753 milhões32 a mais que a dotação inicial. Embora a dotação autorizada
tenha aumentado em relação à dotação inicial, não foi ainda suficiente para ultrapassar o
recurso mínimo que deveria ser aplicado em ações e serviços públicos de saúde segundo
o critério da base móvel (R$ 49,2 bilhões), superando apenas o mínimo calculado pelo
critério da base fixa (R$ 46,4 bilhões).
Os programas beneficiados com o aumento de recursos foram Assistência Ambulatorial
e Hospitalar Especializada (R$ 1,6 bilhão), Atenção Básica em Saúde (R$ 181 milhões),
Drenagem Urbana e Controle de Erosão Marítima e Fluvial (R$ 26,8 milhões) e Saneamento
Rural (R$ 3,3 milhões). Todos os outros programas tiveram seus recursos reduzidos
ou inalterados.

29. Lei nº 11.514, de 13 de agosto de 2007.


30. O critério de base fixa é defendido pelo Ministério da Fazenda, Advocacia Geral da União (AGU) e pelo Ministério do Plane-
jamento, Orçamento e Gestão. Este último é importante, pois orienta os vetos presidenciais à LDO e à Lei Orçamentária.
31. O critério de base móvel é defendido pelo Ministério da Saúde, pelo Conselho Nacional de Saúde e pelo Tribunal de
Contas da União (TCU), entre outros.
32. Vale lembrar que esses recursos adicionais autorizados (R$ 753 milhões) correspondem a cerca de 20% do valor
adicional que havia sido negociado entre o governo e a bancada sanitária, antes da extinção da CPMF, e que renderia ao
MS, em 2008, cerca de R$ 4 bilhões a mais, provenientes do aumento do percentual da contribuição repassada ao Fundo
Nacional de Saúde.

94 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 3
Execução orçamentária do MS em Ações e Serviços
Públicos de Saúde (ASPS) - 2000 a 2007 e estimativa para 2008
(Em R$ bilhões correntes)
Despesas em Despesas em Base Base
Ano
ASPS - LDO (a)1 ASPS - CNS (b)2 fixa (c)3 móvel (d)4
2000 20,4 20,4 19,3 19,3
2001 22,5 22,5 21,4 22,6
2002 24,9 24,9 23,6 24,9
2003 27,2 26,8 26,8 28,3
2004 32,7 31,9 30,8 32,5
2005 36,5 34,4 35,2 37,3
2006 40,7 40,7 38,9 41,3
2007 44,3 44,3 42,3 44,9
2008 5
48,6 48,6 46,4 49,2
Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal/Sistema Intergrado de Dados Orçamentários (Siafi/Sidor).
Notas: 1 Segundo a definição das LDOs: gastos totais do Ministério da Saúde, excetuando-se as despesas com inativos e pensionistas, juros e amor-
tizações da dívida, bem como as despesas financiadas pelo Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.
2
Além das exclusões previstas na LDO, excluíram-se também as despesas com os programas de transferência direta de renda – de acordo com
a Resolução nº 322 do Conselho Nacional de Saúde. Estas exclusões deixaram de ocorrer a partir de 2006, quando a execução do Programa
Transferência Direta de Renda com Condicionalidades foi atribuída integralmente ao MDS.
3
Sob o enfoque da “base fixa”, o percentual de variação do PIB nominal é aplicado sobre o valor mínimo de recursos calculado para o ano
anterior.
4
Sob o enfoque da “base móvel”, o percentual de variação do PIB nominal é aplicado sobre o volume de recursos executado no ano anterior,
exceto quando este for inferior ao piso mínimo calculado.  
5
Em 2008, as despesas em ASPS correspondem à dotação inicial autorizada.

3.2.2 Execução orçamentária em 2007


A maior parte dos recursos executados no Ministério da Saúde em 2007 concentrou-se
em três programas: Atenção Hospitalar e Ambulatorial, que representou 45% do total de
recursos, Atenção Básica em Saúde, 15%, e Assistência Farmacêutica, 7%. Assim, em 2007
estes programas representaram 66% do total de recursos executados pelo ministério,
apontando uma trajetória ascendente em sua participação no total executado nos anos
anteriores (62% em 2005 e 64% em 2006). Apesar disso, o nível de execução apresentou
ligeira queda: passou de 97,8% em 2006 para 96,7% em 2007. Se o nível de execução
destes três programas tivessem permanecido constante, o nível total da execução do MS
Saúde teria sido 0,7 ponto percentual superior, ou seja, em vez de 93,4% seria 94,1%.
O Programa Atenção Especializada em Saúde continua apresentando baixa execu-
ção. Em análise anterior, este aspecto já tinha sido levantado como fator preocupante,
uma vez que, por ser um programa de investimento e de ampliação de capacidade
instalada,33possui caráter estratégico na rede de atenção à saúde.
TABELA 4
Execução orçamentária do Ministério da Saúde (2006-2007)
(Dados corrigidos pelo IPCA* médio para dez. 2007 – em R$ milhões correntes)
2006 2007

Programas de órgãos Nível de Nível de


Autorizado
selecionados Dotação Autorizado (lei Liquidado execução Dotação Liquidado execução
(lei + créditos)
inicial (A) + créditos) (B) (C) (%) inicial (E) (G) (%)
(F)
(D=C/B) (H=G/F)
Atenção Hospitalar e Ambulatorial 19.556,7 20.251,6 20.124,5 99,4% 20.199,9 22.658,5 22.166,3 97,8%
Atenção Básica em Saúde 6.831,3 6.917,9 6.457,3 93,3% 7.855,7 7.906,7 7.380,7 93,3%
Assistência Farmacêutica 2.718,1 2.723,6 2.653,2 97,4% 2.998,5 3.457,8 3.350,8 96,9%
Transferência de Renda com
- - - - - -
Condicionalidades
Vigilância Ambiental, Epidemiológica e
1.613,4 1.800,4 1.709,5 95,0% 1.551,7 1.601,2 1.494,2 93,3%
Sanitária1
Vigilância, Prevenção e Controle de
2.230,5 2.223,0 2.189,8 98,5% 2.255,3 1.979,4 1.862,8 94,1%
Doenças2
Outros3 2.196,3 2.172,8 1.995,0 91,8% 2.475,6 3.297,3 2.343,6 71,1%
Atenção Especializada em Saúde 915,8 909,9 389,1 42,8% 1.168,4 1.239,7 566,5 45,7%
(continua)

33. Ver a edição número 14 deste periódico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 95


(continuação)
2006 2007

Programas de órgãos Nível de Nível de


Autorizado
selecionados Dotação Autorizado (lei Liquidado execução Dotação Liquidado execução
(lei + créditos)
inicial (A) + créditos) (B) (C) (%) inicial (E) (G) (%)
(F)
(D=C/B) (H=G/F)
Programas de Atenção
645,3 726,3 543,9 74,9% 724,7 758,5 628,8 82,9%
a Grupos Específicos4
Gestão5 296,9 298,8 263,2 88,1% 349,9 336,3 234,3 69,7%
Formação e Gestão de Recursos Humanos6 392,2 387,9 369,3 95,2% 435,7 424,8 389,2 91,6%
Assistência Suplementar 113,7 110,3 106,2 96,3% 142,5 139,5 107,3 76,9%
Subtotal 1 37.510,1 38.522,4 36.801,0 95,5% 40.158,0 43.799,7 40.524,5 92,5%
Apoio Administrativo 4.390,3 5.235,7 5.182,8 99,0% 5.460,3 5.326,3 5.155,6 96,8%
Amortização da dívida e encargos
461,9 461,9 308,4 66,8% 350,9 215,4 175,7 81,6%
financeiros7
Outras operações especiais 222,6 220,2 215,3 97,8% 126,7 126,1 117,1 92,8%
Inativos e pensionistas 3.270,1 3.387,2 3.383,7 99,9% 3.603,3 3.524,8 3.510,2 99,6%
Subtotal 2 8.345,0 9.305,0 9.090,2 97,7% 9.541,3 9.192,6 8.958,6 97,5%
Execução do MS 45.855,0 47.827,4 45.891,2 96,0% 49.699,2 52.992,3 49.483,0 93,4%
Fonte: Siafi/Sidor.
Elaboração: Diretoria de Estudos Sociais do Ipea (Disoc/Ipea).
Notas: 1 Inclui os Programas Vigilância Epidemiológica e Controle de Doenças Transmissíveis, Vigilância Sanitária de Produtos, Serviços e Ambientes
e Vigilância Ambiental em Saúde.
2
Inclui os Programas Prevenção e Controle das Doenças Imunopreveníveis, Vigilância, Prevenção e Atenção em HIV/AIDS e outras Doenças Sexu-
almente Transmissíveis, Controle da Tuberculose e Eliminação da Hanseníase e Vigilância e Prevenção de Doenças e Agravos Não Transmissíveis.
3
Inclui os Programas Serviços Urbanos de Água e Esgoto, Integração de Bacias Hidrográficas, Drenagem Urbana Sustentável, Ciência,
Tecnologia e Inovação em Saúde, Alimentação Saudável, Doação, Captação e Transplante de Órgãos e Tecidos, Saneamento Rural,
Segurança Transfusional e Qualidade do Sangue, Investimento para Humanização e Ampliação do Acesso à Atenção à Saúde, Vigilância,
Prevenção e Controle da Malária e da Dengue, Participação Popular e Intersetorialidade na Reforma Sanitária e no Sistema Único de
Saúde e Resíduos Sólidos Urbanos.
4
Inclui os Programas Identidade Étnica e Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas, Atenção à Saúde da População em Situações de Urgências,
Violências e outras Causas Externas, Atenção à Saúde de Populações Estratégicas e em Situações Especiais de Agravos, Brasil Quilombola,
e Atenção Integral à Saúde da Mulher.
5
Inclui os Programas Gestão da Política de Saúde e Gestão da Participação em Organismos Internacionais.
6
Inclui os Programas Educação Permanente e Qualificação Profissional no Sistema Único de Saúde, e Gestão do Trabalho no Sistema Único
de Saúde.
7
Inclui os serviços da dívida interna e externa.
Obs.: A partir de 2006, a execução do programa Transferência de Renda com Condicionalidades foi transferida do Ministério da Saúde para
o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
*IPCA: Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo.

4 Tema em Destaque
A gestão de recursos humanos no Ministério da Saúde
No Ministério da Saúde a carência de pessoal em cargos de carreira constitui um sério
obstáculo enfrentado pelo gestor público para conferir eficiência e continuidade às funções
de planejamento, controle e avaliação das políticas atinentes à área. Sabe-se bem que
esta não é uma situação particular deste ministério. Na verdade, a deficiência quantita-
tiva e qualitativa de pessoal é referida como problema pela maioria dos gestores da área
federal. A falta de pessoal tem sido parcialmente suprida mediante formas diversas de
terceirização – com recurso até mesmo à contratação por meio de organismos internacio-
nais – e pela expansão dos quadros de confiança que são de livre nomeação pelo gestor.
Estas duas vias de expansão de pessoal encontram, entretanto, crescentes dificuldades de
concretização. O Ministério Público tem denunciado a ilegalidade das modalidades de
contração “terceirizadas”, adotadas desde os anos 1990, e estabeleceu termos de ajuste de
conduta com o Poder Executivo para a realização de concurso público. E pelo lado dos
cargos de confiança, os partidos de oposição no Poder Legislativo têm-se pronunciado
contrários às repetidas solicitações de autorização de aumento de seu número.
Há outro problema que merece ser destacado neste particular: o envelhecimento
progressivo dos integrantes dos quadros de carreira do Executivo federal, o que importa
em um considerável desfalque do pessoal ativo em virtude de aposentadoria. Por isso,

96 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


faz-se necessário realizar uma análise preliminar do conjunto da problemática, para que
se possa melhor avaliar o contexto particular e as necessidades do MS.
Tendências da gestão de pessoal do executivo federal
A premente necessidade de reposição de pessoal mediante concurso foi claramente
reconhecida pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde o início do
Governo Lula, que declarou ter duas metas principais para a gestão de pessoal do Poder
Executivo: i) a recomposição e regularização do vínculo de trabalho; e ii) o realinhamento
de salários, posições e condições gerenciais das diversas carreiras.
Essas medidas aparentemente se confrontam com a interpretação dada por correntes
do pensamento liberal, às vezes propagada também por órgãos de imprensa, de que os
gastos com o pessoal de Estado já são excessivos e de que o governo, melhorando seu
nível de eficiência, deveria funcionar com uma máquina administrativa “mais enxuta”.
Deve ser registrado que, em parte, os concursos públicos que têm sido abertos para diversas
áreas limitam-se a promover a substituição de trabalhadores informais e terceirizados que
já oneram a folha de pagamento. Além disso, a questão de pessoal do Executivo federal
não pode ser examinada apenas com base no aspecto quantitativo, mas deve ser avaliada
igualmente segundo os aspectos de distribuição, envelhecimento e competências dos
trabalhadores ocupados. Uma boa parte da força de trabalho do governo federal tem um
perfil educacional inadequado para os novos desafios que são colocados para a adminis-
tração pública, em termos de suas funções estratégicas nas áreas de planejamento, gestão,
avaliação e fiscalização. E para atrair pessoas com maior nível de qualificação, é preciso que
haja o atrativo de carreiras bem organizadas e com nível de remuneração diferenciado.
Como mostra o gráfico 1, o número de servidores civis ativos do Executivo federal,
incluída a força de trabalho das autarquias, fundações e empresas, caiu progressivamente
entre 1992 e 2002, tendo passado de 683.618 para 530.662 servidores ativos, por efeito
combinado do processo de aposentadoria e do baixo número de ingressados por con-
curso, sobretudo durante o segundo mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso
(FHC). Na atual gestão, o número de ativos voltou a crescer, tendo alcançado o total
de 578.680 servidores em 2007, sem ter conseguido superar, contudo, o contingente de
1992. Com efeito, de 1995 a 2002, portanto, durante todo o Governo FHC, o estoque
de servidores ativos cai continuamente.
A reversão da tendência de queda do número de servidores civis ativos foi obtida
mediante a retomada do concurso público para as diversas carreiras federais (gráfico 2).
Entre 2003 e 2007 entraram para o serviço público federal, via concurso público, cerca
de 70 mil trabalhadores.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 97


GRÁFICO 1
Evolução do número de servidores civis ativos do Poder Executivo federal (1991-2007)
700.000

600.000

500.000

400.000

300.000

200.000

100.000

1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007

Fonte: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

As carreiras que mais incorporaram servidores no período de 2003 a 2007 foram


aquelas ligadas ao Plano Geral de Cargos do Executivo (PGPE), às áreas jurídica, de
auditoria, diplomacia, docência e gestão, à Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal,
e às agências reguladoras. O quadro de pessoal do Ministério da Saúde não foi contem-
plado, salvo por intermédio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e das duas agências
reguladoras, entidades que mantêm carreiras específicas – Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) e Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
GRÁFICO 2
Serviço público federal: número de servidores ingressados por concurso público (1997-2007)

Fonte: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Paralelamente, deu-se ao longo desse período um efetivo realinhamento salarial dos


servidores. Contudo, este realinhamento obedeceu a uma seletividade que privilegia as
carreiras de órgãos que exercem funções estratégicas de Estado. Para vários setores foi

98 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


concedido um reajuste salarial que superou a inflação do período considerado. Com a
evolução quantitativa e a recomposição salarial, a despesa com pessoal do Poder Executivo
federal (ativos, aposentados e instituintes de pensão dos servidores civis e militares) passou
de R$ 66,6 bilhões para R$ 97 bilhões, entre 1997 e 2007, a preços de 2007. Nas mesas
de negociação com as entidades representativas dos servidores, o governo federal buscou
fazer valer a diretriz de reajustes diferenciados por categoria, sem desprezar, entretanto,
a proposta de diminuir a distância entre a maior e menor remuneração, tampouco a
garantia de reposição do valor dos salários para todas as categorias no mínimo de acordo
com os índices de inflação.
GRÁFICO 3
Evolução das despesas com pessoal do Poder Executivo federal (1997-2007)
(Valores reais a preços de 2007 – em R$ bilhões)

Fonte: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Dada a necessidade do Executivo de contar com servidores com adequado perfil


em funções de assessoria superior, o número de cargos de confiança experimentou con-
siderável crescimento, assim como aumento real de sua remuneração. Por exemplo, o
número de cargos de Direção de Assessoramento Superior (DAS) passou de 17.607, em
1997, para 20.187 em 2007. O maior crescimento ficou por conta dos cargos superiores
(DAS 4, 5 e 6), que evoluíram neste mesmo período de 2.256 para 4.098. O aumento
continuado do número de cargos de confiança tem sido alvo de críticas porque elevam
as despesas e são de livre nomeação pelos gestores. O governo, por sua vez, justifica ao
afirmar que tais cargos têm sido cada vez mais ocupados por servidores de carreira.
A tabela 5 permite que se visualize a posição do Ministério da Saúde em relação a
outros órgãos de direção do Executivo federal quanto a esse aspecto de gestão de pes-
soal. O MS tinha um contingente de 106.252 servidores em 2007, e ocupa o segundo
lugar entre os cinco órgãos ministeriais que mais absorvem servidores, perdendo apenas
para o Ministério da Educação. A despesa total com pessoal do Ministério da Saúde
foi da ordem de R$ 7,4 bilhões em 2007, representando 7,6% do total das despesas do
Executivo com esta rubrica.
No período aqui em foco, o MS perdeu 13,7% de sua força de trabalho, embora
perdas similares, e até mais drásticas, tenham ocorrido em outros órgãos, como as pastas
de Previdência Social e Defesa. O destaque positivo pertence ao Ministério da Fazenda,
cujo número de servidores aumentou em nada menos que 26,8%.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 99


TABELA 5
Força de trabalho do Poder Executivo federal por ministério (1997-2007)
Var.
Ministério/órgão 1997 1999 2001 2003 2005 2007
97-07
Educação 174.966 165.510 163.479 164.870 173.181 180.895 3,4
Saúde 123.159 110.804 104.948 105.238 106.079 106.259 -13,7
Previdência e Assistência Social 45.718 41.566 40.121 40.254 42.202 39.771 -13,0
Fazenda 26.207 26.958 26.098 25.622 26.404 33.233 26,8
Defesa 35.362 32.031 29.782 28.710 29.002 27.518 -22,2
Outros órgãos ministeriais 126.313 120.256 120.875 92.286 132.095 140.744 11,4
Total 531.725 497.125 485.303 456.980 508.963 528.420 -0,6
Fonte: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Situação e tendências do pessoal do Ministério da Saúde


A administração central (ou direta) do Ministério da Saúde abrange as funções de formula-
ção, coordenação e supervisão realizadas por sua sede em Brasília e por suas representações
nas Unidades federadas. A par disso, há as funções exercidas pelos órgãos da administração
indireta, que são as fundações (Funasa e Fiocruz), as duas agências (Anvisa e ANS), além
do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). Como apontado aqui, em anos recentes foram
realizados concursos para a Fiocruz e as duas agências, mas não para a administração direta.
Os últimos concursos para ocupação de cargos centrais do ministério foram realizados há
muito tempo, mais precisamente na primeira metade da década de 1980.
O quadro atual, de 106 mil servidores, é ainda bem expressivo. Mas é importante
considerar que 70% dos servidores deste quadro regular encontram-se cedidos às secre-
tarias estaduais e municipais de Saúde, que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS)
nas Unidades da Federação. A ampla descentralização das responsabilidades de gestão
e da prestação de serviços, que deu origem ao SUS, fez-se acompanhar da transferência
de um contingente significativo de servidores do Ministério da Saúde não só para as
unidades de Saúde mas também para a burocracia das secretarias estaduais e munici-
pais de Saúde. Nos anos 1990, aproximadamente 60 mil servidores federais passaram à
condição de “cedidos ao SUS”, uma denominação nitidamente imprópria, visto que o
próprio MS também compõe o SUS.
As mudanças das funções do ministério decorrentes do processo de expansão e
consolidação do SUS tiveram um impacto considerável sobre a força de trabalho efeti-
vamente disponível. No esforço de descentralização da gestão da saúde e de desconcen-
tração de recursos, o ministério repassou inúmeras unidades de Saúde aos governos dos
estados e municípios. Acompanhando este movimento, servidores públicos – lotados
tanto em unidades assistenciais quanto gerenciais de órgãos do antigo Instituto Nacional
de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e do próprio ministério – foram
cedidos a estes dois níveis de governos.
Os servidores centrais do MS integram duas carreiras: i) o recentemente criado Plano
Geral de Cargos do Poder Ejecutivo (PGPE – Lei no 11.357/2006), que corresponde ao
antigo Plano de Classificação de Cargos (PCC), de 1970;34 e ii) a carreira de Seguridade
Social e Trabalho, criada em 2002, com objetivo igualmente limitado, porque serviu
para classificar servidores da administração federal que ocupavam cargos isolados, ou
seja, que não faziam parte de qualquer tipo de carreira.

34. Inicialmente o PCC era apenas, como seu próprio nome sugere, uma forma de agrupar os servidores em classes, mas
veio gradualmente a receber algumas características de carreira.

100 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Dados de 2004 evidenciam que, na sede do ministério em Brasília, trabalhavam
3.182 servidores regulares, de nível médio e superior. Havia então, porém, um número
relativamente grande de trabalhadores sem vínculo legal com a administração públi-
ca. Nesse ano, 3.067 pessoas estavam contratadas por serviços prestados ou mediante
cooperativas e organismos internacionais. Portanto, para cada pessoa do quadro regular
existia outra do quadro que se chamava de “extra”. Neste contingente estão envolvidos
trabalhadores com funções administrativas (como secretárias e auxiliares diversos),
mas não inclui os chamados “serviços gerais” (segurança, limpeza etc.), que podem ser
legalmente terceirizados.
Por falta de renovação, a força de trabalho do MS é bastante envelhecida.
Prevê-se que cerca de 2 mil servidores que exercem suas funções na sede central e nas
representações estaduais se aposentarão nos próximos cinco anos. Ademais, os que
permanecerão por mais tempo não têm a escolaridade ou a qualificação técnica necessária
para duas importantes funções a serem exercidas em relação ao SUS: i) o planejamento
e a gestão de recursos em nível estratégico (competência gerencial); e ii) a avaliação e a
orientação técnica acerca da situação de saúde (competência epidemiológica). Pode-se
afirmar, em síntese, que a gestão central do MS não dispõe de uma referência moderna
de carreira que valorize de forma efetiva seus recursos humanos e confira um esteio na
continuidade de suas políticas e ações. Para estas e outras funções far-se-á necessário
contar com uma carreira específica, composta por pessoal de educação superior; para
exercício de outras funções, de caráter técnico auxiliar, é necessário pessoal com for-
mação técnica de nível médio.
Um problema à parte é o dos hospitais próprios. Dos hospitais administrados pelo
Ministério da Saúde, os de maior porte se localizam no Rio de Janeiro. Atualmente, são
cinco unidades: Instituto Nacional do Câncer (Hospital do Câncer), Hospital Geral de
Bonsucesso (HGB), Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia (Into), Instituto Nacional
de Cardiologia de Laranjeiras (INCL) e Hospital Geral do Servidor do Rio de Janeiro
(HSE). A Fiocruz mantém também no Rio de Janeiro dois hospitais especializados, o
Hospital Evandro Chagas (de doenças infecciosas) e o Instituto Fernandes Filgueiras (de
pediatria). Em outras Unidades da Federação, existem diversos estabelecimentos com
regime de internação. Alguns são de fato hospitais gerais e especializados, outros são
unidades mistas, cujos serviços consistem basicamente de atendimento ambulatorial,
mas contam apenas com um reduzido número de leitos de internação. Não se dispõe de
um retrato completo e atualizado do quadro de pessoal do conjunto destas instituições,
abrangendo os que trabalham em condições de vínculo irregular, na situação “informal”
de cooperados, os contratados especiais, os prestadores de serviços etc.
Contudo, a continuidade do exercício da função de assistência médico-hospitalar
pela administração federal constitui ponto particularmente polêmico na organização do
SUS. Em princípio, não há razão legal para que os hospitais especializados e, sobretudo,
os de atendimento geral continuem subordinados à administração federal. A perpetuação
deste vínculo administrativo, a partir da descentralização do SUS na década de 1990,
só se justifica pela falta de alternativas políticas e financeiras para sua transferência à
alçada estadual ou municipal. E isto esbarra em outra questão importante, que é a for-
ma de gestão dos hospitais, ainda com pouca autonomia financeira e administrativa.
Sua transformação gradual em fundações estatais – proposta ora em exame pelo Congresso
Nacional – é defendida pelo atual ministro, que considera ser este formato institucional
indispensável ao bom desempenho destas unidades assistenciais.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 101


No tocante às agências, convém observar que a Anvisa e a ANS são muito dis-
tintas entre si do ponto de vista da história institucional, embora estejam igualadas
na condição de autarquias especiais que regulam sistemas nacionais afetos ao campo
da saúde. A ANS, criada em 2000, veio a ocupar um perfil inédito de funções no
âmbito do Ministério da Saúde, dado que anteriormente a atribuição de regulação
do setor suplementar de saúde cabia ao Ministério da Fazenda, por intermédio da
Superintendência de Seguros Privados (Susep). A Anvisa, por sua vez, tem um antigo
precedente histórico no Ministério da Saúde e muitas de suas atribuições atuais já
eram exercidas por um departamento especial deste ministério, com ramificações que
se espalhavam por todo o território nacional. Por isso, parte dos atuais quadros de
pessoal da Anvisa é remanescente do ministério e foi lotado na nova agência quando
de sua criação em 1999. Em contrapartida, a ANS enfrentou desde o início o desafio de
encontrar pessoal qualificado para uma área de política pública em que praticamente
não havia acumulação de conhecimentos, pelo menos no âmbito do setor público
de saúde. As duas agências, em seu período inicial de organização, tiveram que re-
correr a contratos temporários e de mediação via organismos internacionais. Com a
criação do Plano de Carreiras das Agências em 2004, deu-se a efetivação de concurso
público para ambas.
A Fiocruz, por seu turno, compôs, até 2006, o Plano de Carreiras de Pesquisa em
Ciência e Tecnologia, junto com cerca de outros vinte órgãos da administração federal.
A partir de então constituiu carreira própria, sob a denominação de Plano de Carreiras
e Cargos de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública da Fiocruz.
A fundação vem se destacando entre os órgãos do ministério por promover concursos
públicos com bastante regularidade.
Observações finais
Tendo em conta essa situação, o Programa Mais Saúde, recentemente lançado, previu a
realização de concurso público para um total de 5 mil vagas a serem preenchidas entre
2008 e 2011. Com tal medida, surge a oportunidade de começar um novo ciclo de
modernização da gestão de pessoal do MS e de valorização dos seus servidores. Convém
destacar aqui os principais problemas de recursos humanos deste órgão que estão a de-
pender de adequadas diretrizes e decisões político-institucionais de grande envergadura.
Algumas possíveis diretrizes para a área são listadas e discutidas a seguir.
• Regularização dos quadros
A situação de irregularidade de alguns quadros de pessoal deverá ser sanada
gradualmente nos próximos anos, o que vai promover uma substituição dos quadros
“extras” (cooperados, terceirizados etc.) e refletir o alcance dos objetivos de legalidade
constitucional que têm sido enfatizados no termos de ajuste de conduta assinados com
o Ministério Público da União.
• Carreiras modernas para a administração do ministério
As carreiras que incorporam o pessoal da sede central do MS são nitidamente
antiquadas. O ministério precisa urgentemente contar com pessoal permanente de alta
qualificação, pertencente a estruturas de carreira modernas, de modo a garantir a con-
tinuidade de suas políticas e a efetividade de sua missão. É possível um cenário no qual
uma composição ideal de estruturação de cargos não necessariamente implique uma
carreira única do próprio ministério: tal estrutura deveria combinar adequadamente

102 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


cargos transversais à administração pública federal – como os integrantes da carreira de
gestão – com cargos específicos da administração do conhecimento em saúde.
• Composição adequada entre nível superior e nível técnico/intermediário
O bom desempenho do setor público de saúde e a qualidade dos serviços que presta
à população exigem uma adequada composição entre trabalhadores de nível superior e
os de nível técnico e intermediário. Verifica-se, por exemplo, que setores como os de
pesquisa laboratorial, a produção de medicamentos e de vacinas, bem como a prestação
de serviços de saúde em hospitais e ambulatórios apresentam uma demanda considerável
por trabalhadores de nível técnico e intermediário com qualificação diferenciada. Ou seja,
estes setores “produtivos” envolvem uma divisão técnica do trabalho de tipo hierárquico
que é vital para garantir a qualidade e a produtividade das ações. Este é o exemplo que
vem sendo dado pela Fiocruz, que apresenta uma composição relativamente alta destes
trabalhadores em seus quadros. Mas tal diretriz também se aplica a setores que usam
mecanismos de fiscalização direta de ambientes, bens e serviços, como os que são pecu-
liares às ações da Anvisa. O mesmo pode ser dito das ações de saúde pública com ampla
difusão territorial e desconcentração populacional, que são características da atuação da
Funasa em relação ao subsistema de saúde indígena.
• Reforço político-institucional da gestão de recursos humanos na Funasa
A gestão de recursos humanos da Funasa enfrenta dificuldades de “reconversão” e
adequação numérica de seus quadros. Aparentemente, esta função de saúde pública não
tem recebido, no âmbito do Ministério da Saúde, uma devida prioridade política em função
de seus objetivos no cenário federal. Isto tem se refletido na debilidade dos mecanismos
institucionais de gestão e de capacitação de pessoal da fundação. O desejável reforço
político-institucional da gestão de recursos humanos está, no momento atual, dependente
de planos e medidas de governo que confiram destaque político à função de saneamento
em pequenas localidades e à assistência à saúde dos povos indígenas.
• Recuperação da força de trabalho e da capacidade operacional dos hospitais
próprios
Os hospitais próprios do ministério igualmente carecem de uma definição político-
institucional acerca da sua pertinência à administração federal, no âmbito do SUS, e
assim o destino a lhes ser dado. Contudo, o desgaste da gestão de recursos humanos
nestes hospitais atingiu tal proporção que hoje se torna necessário recuperar sua efeti-
vidade operacional independentemente da solução a ser dada à questão da vinculação
institucional. Aqui também é prioritário ampliar a política de substituição de quadros
“extras” e repor o grande número dos que se aposentaram em anos recentes.
5 Considerações finais
Neste capítulo foram destacados três fatos relevantes ocorridos em 2007 para a política
de saúde. No âmbito do combate ao tabagismo, o MS procurou intensificar medidas
que, direta ou indiretamente, buscam coibir o consumo de cigarros, como, por exemplo,
a proibição dos fumódromos em repartições públicas. Proposta de aumento de preços
dos cigarros, com a elevação da carga de tributos, não foi aceita pela área econômica
do governo, sob a alegação de que aumentaria a sonegação fiscal, ainda que existam
indícios de que o aumento de preços reduza o consumo. A estabilização no consumo
a partir de 2000, após forte queda na década de 1990, está na base da preocupação da
área da saúde. O lançamento, tantas vezes postergado, do PAC-Saúde, rebatizado como

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 103


Mais Saúde: Direito de Todos, também foi comentado neste capítulo. Conformado em
grandes eixos de atuação, a iniciativa teve como uma de suas novidades a explicitação da
dimensão econômica da saúde e uma releitura da ação setorial, agora sob a ótica de um
setor produtivo. O Mais Saúde procura resgatar a preocupação de articular as dimensões
econômica e social da saúde por meio de seus sete eixos: promoção da saúde; atenção à
saúde; complexo industrial da saúde; força de trabalho em saúde; qualificação da gestão;
participação e controle social; e cooperação internacional. Finalmente, a não prorrogação
da CPMF, imprevista pelo governo, não somente frustou as negociações com o Legislativo
para aprovação da EC no29, como também enfraqueceu consideravelmente o impacto
do Mais Saúde, limitando a implementação de propostas de expansão de serviços, de
melhoria na remuneração dos atendimentos médico-hospitalares e de aperfeiçoamento
da gestão do SUS.
Na parte de acompanhamento de políticas e programas, mereceram destaque espe-
cificamente três programas: Saúde da Família, Farmácia Popular e Vigilância em Saúde.
Todos são emblemáticos para o enfrentamento de grandes desafios do SUS: reorde-
namento do modelo de atenção, reestruturação da assistência farmacêutica e resposta
adequada às especificidades do quadro sanitário brasileiro. Apesar dos avanços observados
nos últimos anos, a expansão do Saúde da Família para municípios com mais de 100
mil habitantes ainda permanece sendo um desafio. O dado leva a várias questões, entre
elas uma que mereceria análise mais aprofundada: será o Saúde da Família o modelo
adequado para a organização da atenção básica em municípios de grande porte? Esta
não é uma questão simples de ser respondida, pois o programa não pode ser considerado
somente como um modelo de estruturação da atenção básica, mas também como uma
estratégia de reorganização de toda a atenção à saúde. E a questão vai mais além: está
diretamente relacionada a outras, como, por exemplo, o modelo de vigilância e controle
de doenças. O debate em torno da dengue uma vez mais mostra o tamanho do desafio,
lembrando que a discussão transpõe as competências do setor saúde, envolvendo, entre
outras, a área de desenvolvimento urbano. Por fim, a ampliação do acesso a alguns me-
dicamentos via Farmácia Popular ainda está por ser avaliada, visto que as informações
existentes não permitem dizer se houve efetivamente um aumento de cobertura.
A questão de recursos humanos no Executivo federal, em particular no Ministério
da Saúde, relegada a um papel secundário por muito tempo, começa, nos últimos anos,
a ganhar maior importância. O MS conta com número expressivo de servidores (106
mil), colocando-se como o segundo em número de servidores na administração federal.
Deve-se lembrar, contudo, que cerca de 70% deste universo encontram-se cedidos para
estados e municípios, como decorrência da descentralização da execução das ações e
serviços do SUS por estas esferas de governo. Com o SUS, o ministério passou a ter
novo rol de funções (menos execução direta de serviços e mais ações de planejamento,
regulação, controle e cooperação técnica), embora mantenha alguns hospitais próprios.
É para o melhor desempenho destas novas funções que devem ser discutidas a estrutu-
ração do MS, e em particular suas novas necessidades de recursos humanos.

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ANEXO
QUADRO A.1
Órgãos do Ministério da Saúde e suas carreiras atuais
Órgão Carreiras peculiares
Plano Geral de Cargos do Poder Executivo – PGPE (Lei no 11.357/2006), antigo Plano de Classificação de
Fundação Nacional de Saúde (Funasa) Cargos (Lei no 5.645, de 10 de dezembro de 1970)
Carreira da Seguridade Social e do Trabalho (Lei no 10.483, de 3 de julho de 2002)
Plano de Carreiras de Ciência e Tecnologia (Lei no 8.691, de 28 de julho de 1993), até 2006;
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Plano de Carreiras e Cargos de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública da Fiocruz (Lei
no 11.355, de 19 de outubro de 2006)
Hospitais próprios Plano Geral de Cargos do Poder Executivo – PGPE (Lei no 11.357/2006)
Plano Geral de Cargos do Poder Executivo – PGPE (Lei no 11.357/2006)
Sede do MS e núcleos estaduais
Carreira da Seguridade Social e do Trabalho (Lei no 10.483, de 3 de julho de 2002)
Regulação e Fiscalização de Locais, Produtos e Serviços sob Vigilância Sanitária
Agência Nacional de Vigilância Sanitária Analista Administrativo
(Anvisa) Técnico Administrativo
(Lei no 10.871, de 20 de maio de 2004)
Regulação e Fiscalização de Saúde Suplementar
Agência Nacional de Saúde Analista Administrativo
Suplementar (ANS) Técnico Administrativo
(Lei no 10.871, de 20 de maio de 2004)

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 105


EDUCAÇÃO

1 Apresentação
O ano de 2007 trouxe algumas inovações à educação brasileira, especialmente nas áreas
de financiamento e gestão da educação básica. Nesse sentido, teve início a implantação
da Emenda Constitucional no 53/2006, que instituiu o Fundo de Desenvolvimento da
Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e estendeu
a aplicação do salário-educação a toda educação básica. Além disso, o Ministério da
Educação (MEC) lançou o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que tem
como estratégia privilegiada a articulação da União com os entes federados em torno de
compromissos de melhoria da qualidade da educação básica.
No período também foram ampliados os dispêndios da União com educação, assim
como foi reafirmada a orientação da política educacional implementada pela atual gestão
do MEC no que se refere ao reconhecimento do caráter sistêmico da educação – em
contraposição à falsa dicotomia estabelecida entre educação básica e educação superior
– e à sua provisão e regulação pelo poder público.
Além disso, destacam-se neste capítulo dois fatos relevantes que terão forte
impacto sobre a educação básica: i) mudanças no censo escolar, pelas quais o aluno
passa a ser a unidade de registro da coleta de dados; e ii) ampliação da missão da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) do Mi-
nistério da Educação. O primeiro permite acompanhar de perto – e melhor – a
trajetória do aluno, conforme será examinado na subseção 2.1, implicando resul-
tados robustos capazes de orientar de modo substantivo as formulações e ações das
políticas educacionais. A ampliação da missão da Capes, por sua vez, incorpora às
suas atribuições a formulação de políticas públicas para a formação de professores
da educação básica.
O resumido, mas cuidadoso acompanhamento dos principais programas
gerenciados pelo MEC apresentado neste capítulo, tanto sob as óticas física e fi-
nanceira como por nível ou modalidade de ensino, reflete a atual orientação das
políticas educacionais do país, segundo as quais; i) ao MEC cabe a gestão dos
diversos níveis de ensino, cuja oferta pública fica a cargo tanto da União quanto
dos entes federados, caso a caso em cada modalidade, como se verá adiante; e ii) o
ministério privilegia os recursos para a educação superior e para a educação básica,
ao tempo em que busca formar uma rede de programas e ações transversais a todas
as modalidades de ensino.
Elegeu-se como tema em destaque da área, nesta edição, a relação que se estabe-
lece entre melhoria da qualidade e aumento da eficácia da educação básica, à luz dos
instrumentos de política educacional adotados pelo MEC: Plano de Desenvolvimento
da Educação (PDE), Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, e Plano Plu-
rianual (PPA) 2008-2011.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 107


2 Fatos relevantes
2.1 Mudanças nos processos censitários da educação básica
Em 2007, houve uma mudança inédita na história brasileira do censo escolar. Após sete
décadas de coleta de dados por escola (1939-2006), o Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) passou a considerar o aluno como uni-
dade de análise. Até 2006, o censo era realizado por meio de formulário no qual eram
registrados agregados de matrícula por escola: total, por sexo, idade, série e, a partir de
2004, por cor/raça. A atual mudança de unidade de análise do censo escolar, que agora
passa a denominar-se EducaCenso, constituiu avanço significativo em todos os sentidos,
principalmente em níveis de precisão e fidedignidade dos dados coletados e coerência
com o restante do sistema de estatísticas educacionais.
Com tal modificação metodológica, torna-se possível monitorar cada aluno ao lon-
go de sua trajetória escolar. Ou seja: se foi transferido de escola, se sofreu aprovação ou
reprovação e, em última instância, se abandonou os estudos, temporária ou permanen-
temente. Desse modo, com as recentes alterações introduzidas no sistema brasileiro de
estatísticas educacionais, um amplo e rico banco de dados estará disponível aos gestores
educacionais. Isto poderá contribuir em muito para efeito de formulação, implemen-
tação e avaliação de políticas educacionais, assim como para a gestão e o planejamento
pedagógicos em nível local.
A nova unidade de análise do censo escolar – aluno em vez de escola – também
facilitará sobremaneira o cálculo das taxas de reprovação e repetência, na medida em que
este procedimento poderá ser feito de forma direta, sem a necessidade da aplicação de
complexos modelos estatísticos até então utilizados. Considerando-se que tais indicadores
educacionais brasileiros estão entre os mais elevados em todo o mundo, os benefícios
decorrentes da metodologia recém-implementada serão significativos.
O Censo Escolar 2007, por exemplo, evidenciou redução do número de alunos
matriculados nas escolas brasileiras, em comparação com os dados do ano anterior.
Neste caso, por mais que se tentasse estabelecer uma data única para a coleta de dados,
a dupla contagem de alunos era inevitável. Ademais, tornava-se bastante difícil controlar
pequenas fraudes, motivadas pela relação positiva entre número de alunos e recursos
para estados e municípios. Com o novo censo, ainda que a dupla contagem venha a
ocorrer, o cruzamento de dados por intermédio do Número de Identificação Social
(NIS)1 revelará esta duplicidade.
TABELA 1
Matrícula em 1.000 alunos e variação de matrícula (2005-2007)
Nível 2005 2006 2007 05-06 (%) 06-07 (%)
Educação infantil 7.205 7.016 6.510 -2,6 -7.2
Ensino fundamental 33.535 33.283 32.122 -0,8 -3.5
Ensino médio 9.031 8.907 8.369 -1,4 -6.0
Educação especial 378 375 348 -0,7 -7.2
Ed. de jovens e adultos 5.615 5.616 4.985 0,0 -11.2
Educação profissional 707 745 694 5,3 -6.9
Total 56.472 55.942 53.029 -0,9 -5.2
Fontes: Sinopse Estatística da Educação Básica (2005 /2006); INEP Comunicação Pessoal (2007).

1. O NIS corresponde ao número do PIS/Pasep* que consta do cartão Sistema Único de Saúde (SUS). No caso de a criança
chegar ao sistema escolar sem o NIS, atribui-se a ela um número de identificação.
*PIS: Programa de Integração Social; Pasep: Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público.

108 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


A tabela 1 mostra a redução das matrículas em todos os níveis entre 2006 e 2007, a
qual, em parte, pode estar relacionada a mudanças no perfil demográfico, com redução
do universo da população-alvo, e a melhorias na progressão dos alunos. No entanto,
a magnitude da queda, da ordem de 5,2%, mostrou-se bem maior que a verificada no
biênio 2005-2006, de apenas 0,9%, o que indica maior fidedignidade dos dados cole-
tados com a nova metodologia. Deve-se levar em conta ainda que, no caso específico
da educação infantil, parte da diminuição pode ser devida à matrícula de crianças de
seis anos no ensino fundamental, com a implantação da lei do ensino fundamental
de 9 anos (Lei no 11.274/2006).
2.2 Capes assume políticas de formação de professores da educação básica
Com a sanção da Lei no 11.502 em 11 de julho de 2007, a Capes teve incorporada à
sua missão a formulação de políticas públicas para a formação de professores da educa-
ção básica. Dessa forma, o MEC busca estruturar um sistema nacional de formação de
professores da educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, utilizando-se da
experiência da Capes em capacitação de docentes do ensino superior, mediante colabo-
ração entre estados, municípios e instituições de educação superior.
Para tanto, instituiu-se o Conselho Técnico Científico (CTC) da Educação
Básica, formado por dirigentes do MEC, especialistas em educação e representantes
de instituições de ensino superior e de pesquisa. Entre as atribuições do conselho,
incluem-se a discussão e o acompanhamento das novas políticas de formação inicial e
continuada, de desenvolvimento de metodologias educacionais inovadoras, perpassando
temas como a valorização da escola, do magistério, e o investimento no trabalho do
professor. O CTC pode também exercer função consultiva em decisões sobre descre-
denciamento de cursos.
A Capes passa agora a gerir a Universidade Aberta do Brasil (UAB), programa
criado na Secretaria de Educação a Distância do MEC em 2005. A UAB tem sob sua
responsabilidade programas de formação de professores da educação básica que não
possuem habilitação em nível superior, e deverá ainda integrar às suas atividades a for-
mação continuada de docentes.
3 Acompanhamento da política e dos programas
Sempre que se analisam os programas e o orçamento do MEC, é necessário ter em conta
que a União tem atribuições bastante diversas na educação básica (educação infantil,
ensino fundamental e ensino médio) e na educação superior, o que redunda em diferença
expressiva no volume de recursos federais destinados a cada uma delas. Além da função
de coordenação da política nacional de educação e das funções normativa, redistributiva
e supletiva em relação aos níveis e modalidades da educação básica, na educação superior
a União é responsável pelas instituições federais de ensino superior (Ifes) que, ao lado
das atividades de pesquisa e extensão, ofertam cursos de graduação e pós-graduação.
A par disso, há ainda a educação profissional e tecnológica, para a qual o MEC possui
rede federal de centros e institutos, ora em fase de expansão.
Na educação básica, o papel do ministério é supletivo, cabendo a oferta pública aos
estados e municípios. O ensino fundamental é atribuição compartilhada entre estes dois
entes. O ensino médio é responsabilidade dos estados, enquanto a educação infantil,
dos municípios.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 109


3.1 Os gastos do MEC
No exercício financeiro de 2007, o Ministério da Educação gastou R$ 28,7 bilhões, ou
seja, 97,4% do que lhe fora consignado. Comparados aos gastos do ministério em 2006
(atualizados pelo IPCA médio),2 houve variação nominal de aproximadamente 16%.
O montante de 2007 representou 3,40% do total de gastos do orçamento fiscal e da
seguridade social da União, aí excluído o refinanciamento da dívida pública mobiliária
federal. Tal participação supera a de 2006 (2,97%), do mesmo modo que observou-se
crescimento dos recursos do MEC em relação ao Produto Interno Bruto (PIB): de 1,03%
em 2006 para 1,12% em 2007.
Os gastos do MEC em 2007 (tabela 2) concentraram-se em três programas finalís-
ticos: Universidade do Século XXI (43,4% dos recursos executados), Brasil Escolarizado
(12,9%), e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (5,5%). Somados, perfazem 61,8%
dos gastos do exercício. O índice de execução do orçamento do ministério foi elevado
em razão dos percentuais atingidos nestes programas maiores, assim como naqueles
em que as despesas são praticamente automáticas, como previdência e outros gastos
com pessoal. Em alguns programas de menor monta, entretanto, observou-se execução
aquém de 90%.
O programa de maior expressão orçamentária, Universidade do Século XXI, teve
incremento real de mais de R$ 1,5 bilhão, ou seja, 13,9%, absorvendo cerca de 38,0%
do ganho auferido pelo MEC em 2007 em relação a 2006. O maior aumento relativo
foi verificado, em razão da implantação do Fundeb, no Programa Valorização e Formação
de Professores e Trabalhadores da Educação Básica: em torno de 287,0%. Na ação de
complementação para o Fundeb observou-se execução de R$ 2,0 bilhões, contra
R$ 462,0 milhões destinados em 2006 ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef ). O Brasil Escolarizado
também apresentou expressivo incremento (31,8%), não obstante ter havido redução nos
gastos dos programas Brasil Alfabetizado e Educação de Jovens e Adultos (EJA – montante
77,2% menor que o de 2006) e Educação para a Diversidade e Cidadania – 61,1% a
menos. Contudo, vale notar que recursos para EJA foram também executados no âmbito
do Programa Brasil Escolarizado, por meio do qual houve incrementos financeiros a várias
das ações incluídas no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).
TABELA 2
Execução orçamentária dos programas do MEC segundo níveis de execução (2006-2007)
(Corrigidos pelo IPCA - médio)
2006 2007
Autorizado
Programas Liquidado Liquidado Variação % Variação %
(lei + créditos)
(A) (B) (C) (D=C/B) (E=C/A)
Ministério da Educação 24.796.641.420 29.474.812.754 28.712.836.411 97,4 15,8
Programas finalísticos 18.739.919.058 23.255.783.977 22.619.413.342 97,3 20,7
Brasil Escolarizado 2.804.019.138 3.801.890.104 3.693.055.464 97,1 31,7
Desenvolvimento da Educação Infantil 19.346.623 82.270.000 54.170.424 65,8 180,0
Valorização e Formação de Professores e
540.923.820 2.123.178.924 2.094.549.894 98,7 287,2
Trabalhadores da Educação Básica
Desenvolvimento do Ensino Fundamental 1.413.498.101 1.625.861.786 1.578.478.611 97,1 11,7
Desenvolvimento do Ensino Médio 77.971.453 145.501.591 141.114.091 97,0 81,0
Desenvolvimento da Educação Especial 80.961.521 87.035.636 79.102.872 90,9 -2,3
Brasil Alfabetizado e Educação de Jovens e Adultos 626.843.546 174.685.424 143.040.758 81,9 -77,2
Educação para a Diversidade e Cidadania 61.255.477 29.324.466 23.816.984 81,2 -61,1
(continua)

2. IPCA: Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo.

110 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


(continuação)
2006 2007
Autorizado
Programas Liquidado Liquidado Variação % Variação %
(lei + créditos)
(A) (B) (C) (D=C/B) (E=C/A)
Desenvolvimento da Educação Profissional e Tecnológica 1.286.656.972 1.528.306.660 1.469.810.386 96,2 14,2
Universidade do Século XXI 10.947.476.248 12.724.595.207 12.461.005.274 97,9 13,8
Desenvolvimento do Ensino da Pós-Graduação e da
778.823.461 844.016.520 802.518.916 95,1 3,0
Pesquisa Científica
Gestão da Política de Educação 102.142.697 89.117.659 78.749.668 88,4 -22,9
Programas não finalísticos 6.041.945.141 6.207.764.785 6.083.438.004 98,0 0,7
Programas multissetoriais 14.777.221 11.263.992 9.985.065 88,6 -32,4
Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi/STN).
Elaboração: Diretoria de Estudos Sociais do Ipea (Disoc/Ipea).

A distribuição dos gastos segundo categorias de despesas3 reflete a diversidade das


funções do MEC na educação. A parcela mais significativa dos recursos (77,9%) foi
gasta em aplicações diretas, especialmente nas Ifes e nas instituições federais de educa-
ção tecnológica. Os restantes 22,1% representam transferências para outras esferas de
governo, ao exterior e a instituições privadas, que em seus destinos são aplicadas tanto
em despesas correntes como de capital. Nas transferências a estados e a municípios
observaram-se crescimentos de 25,0% e 50,0% em relação a 2006, respectivamente,
grande parte dos quais devidos ao aumento do montante da complementação da União
ao Fundeb. A comparação com os gastos do ano anterior, corrigidos pelo IPCA médio,
mostra expressivo crescimento em investimentos (156,0%, ou seja, de R$ 1,1 bilhão
para R$ 2,8 bilhões), aí incluídos tanto os das aplicações diretas quanto os investimen-
tos nas transferências. Mais de 90,0% deste crescimento foram gastos nos dois maiores
programas do MEC: Brasil Escolarizado e Universidade do Século XXI.
3.2 Educação básica
Os gastos do MEC na educação básica em 2007 foram executados em dois programas
que abrangem suas três etapas (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio),
além daqueles específicos para cada uma delas. No âmbito dos dois programas gerais,
o Brasil Escolarizado e o Programa de Valorização e Formação de Professores e Trabalha-
dores da Educação Básica, algumas ações são dirigidas a apenas uma etapa. A maioria,
entretanto, cobre todas elas, dificultando precisar o montante de dispêndios federais
para cada fase.
Brasil Escolarizado
O Programa Brasil Escolarizado, maior programa do ministério dirigido à educação básica,
é composto por mais de 20 ações orçamentárias. Visa assegurar eqüidade nas condições
de acesso e permanência das crianças e adolescentes matriculados na educação infantil,
ensino fundamental e médio. Em 2007, movimentou cerca de R$ 3,7 bilhões (97,1%
dos recursos autorizados), montante este 36,5% maior que o executado no ano anterior.
Mais de 96,0% do total ficaram sob a supervisão do Fundo Nacional de Desenvolvi-
mento da Educação (FNDE). Aproximadamente 75,0% dos dispêndios foram objeto de
transferências, quase que automáticas, aos estados, municípios, e ao Distrito Federal.
A mais importante ação em volume de recursos, Apoio ao Desenvolvimento da Educa-
ção Básica, destina-se à expansão física e à melhoria qualitativa do atendimento das redes
de ensino públicas, principalmente por meio de transferências voluntárias. Em 2007

3. Cf. Anexo Estatístico inserido neste volume sob forma de CD ROM.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 111


alcançou uma execução orçamentária de R$ 1,8 bilhão, quase o dobro do despendido
em 2006 (R$ 908,2 milhões). O aumento objetivou a implementação do PDE, seja via
novas iniciativas, como o ProInfância e o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação,
seja por meio da ampliação de outras, como o Programa Nacional do Livro Didático do
Ensino Médio (PNLEM).4 Observa-se, assim, que a opção encontrada para viabilização
físico-financeira do PDE foi alocar recursos adicionais em uma única ação do programa
mais abrangente, o Brasil Escolarizado, sob a gestão do FNDE. Se a execução pode ter
sido facilitada, a transparência nos gastos certamente fica comprometida, pelo menos
até que se divulguem relatórios que dêem visibilidade ao destino de tão significativo
montante de recursos em uma única ação.
No financiamento da primeira fase do Compromisso Todos pela Educação, foram
contemplados, por meio dos Planos de Ação Articulada (PAR), municípios com menores
índices de desenvolvimento da educação básica (Idebs) de 20 Unidades da Federação,
bem como 28 municípios brasileiros com mais de 200 mil habitantes. Os gastos com
os PAR superaram R$ 900,0 milhões. O objetivo do PDE de instituir a modalidade
de ensino médio integrado à formação profissional também foi contemplado na ação
Apoio à Educação Básica.
Outra ação de expressivo porte no programa é a de Apoio à Alimentação Escolar na
Educação Básica, no âmbito da qual são transferidos recursos para a aquisição da merenda
escolar. Destina-se aos alunos da educação infantil e ensino fundamental, do ensino
regular e especial, matriculados em escolas da rede pública e de entidades filantrópicas.
Em 2007, totalizando gastos superiores a R$ 1,5 bilhão, respondeu pelo atendimento a
35,4 milhões de alunos, número inferior ao previsto (36,2 milhões). A diferença deveu-se
à diminuição no número de alunos registrado no censo escolar. Os valores repassados por
aluno por dia letivo permaneceram os mesmos de 2006, ou seja, R$ 0,22 para aqueles
da educação infantil e do ensino fundamental, e R$ 0,44 para os das escolas indígenas e
de remanescentes de quilombolas. Os alunos do ensino médio permaneceram excluídos
da merenda escolar em 2007. Em 2008, o MEC encaminhou ao Congresso Nacional
projeto de lei visando estendê-la a estes estudantes.
No escopo do Brasil Escolarizado, destaca-se também a ação Distribuição de Acervos
Bibliográficos, que visa assegurar às redes de ensino dos estados, do DF e dos municípios o
acesso à cultura, informação e o incentivo à formação do hábito da leitura. O orçamento
liquidado na ação (R$ 52,6 milhões), somado àquele alocado na ação Apoio à Educação
Básica para a mesma finalidade, objetivando atender às novas metas postas pelo PDE,
totalizou R$ 65,2 milhões, o que possibilitou a aquisição e distribuição de 8,6 milhões de
exemplares. Na média, 56,8% dos acervos destinaram-se a atender o ensino fundamental,
34,4% a educação infantil e 8,7% o ensino médio, segundo dados do FNDE.
Por fim, cabe ainda ressaltar as ações destinadas à execução da Avaliação Nacional
de Competências, do Censo Escolar 2007 e do Sistema Nacional de Avaliação da Edu-
cação Básica (Saeb) pelo Inep, e outras de responsabilidade da Secretaria de Educação a
Distância, como a de Integração e Expansão do Uso de Tecnologias da Informação e Comu-
nicação na Educação Pública (Proinfo) e a de Funcionamento do TV Escola. A primeira
viabilizou a aquisição de 127,7 mil computadores instalados em 15,3 mil unidades
escolares, totalizando gastos de R$ 146,5 milhões.

4. Na estrutura do Plano Plurianual (PPA), o ProInfância e o PNLEM são ações dos programas específicos de desenvolvi-
mento de educação infantil e de desenvolvimento do ensino médio, respectivamente. Serão aqui, pois, tratados no âmbito
destes programas.

112 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Valorização e Formação de Professores e Trabalhadores da Educação Básica
Por intermédio desse programa foram despendidos cerca de R$ 2,1 bilhões, alocados em
nove ações. Destes, 96,1% corresponderam à Complementação da União ao Fundeb, ou
seja, recursos financeiros transferidos às Unidades federadas que apresentaram menores
gastos por aluno da educação básica. Em 2007, oito estados foram beneficiados por esta
modalidade de transferência, sete deles localizados no Nordeste e um na região Norte.5
Os restantes R$ 94 milhões do programa foram gastos em ações de formação de pro-
fessores e trabalhadores da educação básica, em suas três etapas, aí incluídos gastos para
concessão de bolsas a formadores e professores cursistas (R$ 19,9 milhões), o fomento
à Rede de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação Infantil e do Ensino Fundamental
(R$ 9,6 milhões), as ações conhecidas como ProLicenciatura e ProInfantil, destinadas
aos professores sem a habilitação exigida em lei, as capacitações para o ProInfo e para o
TV Escola, entre outras.
Por meio da educação a distância, foram capacitados 25.772 profissionais, e ini-
ciativas de formação continuada abrangeram 14.798 professores da educação infantil
e do ensino fundamental. Para professores não titulados, foram desenvolvidas ações de
formação em serviço e certificação: no âmbito do denominado ProLicenciatura, estas
contemplaram 5.291 docentes do ensino fundamental e do médio; do ProInfantil,
2.877 professores – neste caso, a formação fornecida é a de nível médio na modalidade
normal.6 Com vistas a expandir o ProInfantil e dar conta da formação dos professores
não habilitados com maior agilidade, ainda em 2007 o MEC iniciou negociações com
faculdades de educação de universidades federais para que assumissem a formação dos
formadores e tutores, recebendo para isto recursos do ministério. A iniciativa aponta para
a mudança da estratégia anterior, que exigia a contratação de consultores para a tarefa.
Desenvolvimento da Educação Infantil
Conforme referido anteriormente, essa etapa educacional comparece nas políticas do
MEC de 2007, e não apenas por intermédio desse programa: em ações específicas no
âmbito do Valorização e Formação de Professores e Trabalhadores da Educação Básica,
assim como em outras que não lhe são exclusivas, como no Programa Brasil Escolariza-
do, destacando-se ainda a alimentação escolar e a ação de Apoio à Educação Básica, que
abrigaram grande parte do aumento de recursos do MEC para fazer frente ao PDE.
O montante de recursos autorizados (lei mais créditos) destinados ao Desenvolvi-
mento da Educação Infantil no orçamento de 2007 (R$ 82,2 milhões) mostrou aumento
expressivo, tendo atingido aproximadamente o triplo do de 2006. Tal crescimento deu-se
na ação Apoio à Reestruturação da Rede Física Pública de Educação Infantil. Estes recursos,
com o acréscimo de cerca de R$ 306 milhões alocados no Programa Brasil Escolarizado
(ação Apoio à Educação Básica), financiaram a iniciativa que recebeu o nome de ProInfância
no âmbito do PDE, que por sua vez veio a se constituir na principal estratégia do MEC
para a expansão da educação infantil.
O ProInfância consiste na assistência financeira a municípios selecionados segundo
critérios populacionais, educacionais e de vulnerabilidade social para reestruturação e apa-
relhagem da rede pública de educação infantil. Em 2007, foi apoiada a construção de 507
escolas, uma em cada município, adotando-se modelo de projeto executivo padronizado,
com financiamento no valor de R$ 700 mil por escola. Os equipamentos adquiridos

5. Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco e Piauí.


6. Conforme consta no relatório de avaliação anual do programa, disponível em: <www.sigplan.gov.br>.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 113


também devem seguir especificações técnicas e quantitativas definidas pelo FNDE. O
grande número de prefeituras que enviaram declaração de interesse (4.296) evidencia
a relevância do ProInfância para atender demanda reprimida por creches e pré-escolas,
e impõe ao MEC o desafio de ampliar as metas e recursos para esta finalidade.
Desenvolvimento do Ensino Fundamental
O programa inclui três grandes ações executadas pelo MEC há vários anos, pertinentes
aos denominados Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), Dinheiro Direto na
Escola (PDDE) e Transporte Escolar (PNATE).
No âmbito do PNLD, em 2007 o FNDE adquiriu 110,2 milhões de livros para
reposição e complementação de matrículas para 2a a 4a séries (3o ao 5o anos) e a grade
completa para alunos de 1a e 5a a 8a séries (1o e 2o e 6o ao 9o anos) para beneficiar, no
ano letivo de 2008, 31,1 milhões de alunos de 139,8 mil escolas públicas.
O PDDE viabilizou o atendimento a 124,4 mil escolas e 28,2 milhões de alunos do
ensino fundamental público. Nesta ação também foram realizados repasses para desen-
volvimento de atividades educativas e recreativas nos fins de semana por escolas públicas
das redes municipais, distrital e estaduais localizadas em regiões metropolitanas com alto
índice de vulnerabilidade social (R$ 13 milhões). Recursos do PDDE (R$ 30,7 milhões)
foram ainda destinados a escolas situadas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que
em 2005-2006 foram atendidas pelo Projeto de Melhoria da Escola (PME) e que em 2007
obtiveram recursos para viabilizar o Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE Escola).
O PNATE, por sua vez, transferiu recursos para estados e municípios, visando apoiar
o custeio da oferta de transporte escolar a 3,5 milhões de alunos do ensino fundamental
público residentes em áreas rurais. Além das transferências monetárias diretamente aos
entes federados, cabe ressaltar que o MEC vem exercendo articulação junto ao Ministé-
rio da Fazenda no sentido de obter liberação de linha de crédito do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para financiar a aquisição de veículos
para o transporte de escolares.
O Programa Desenvolvimento do Ensino Fundamental inclui ainda a ação Forta-
lecimento da Escola, referente à terceira etapa do Fundescola, por meio da qual finan-
cia a construção e adequação de escolas, aquisição de equipamentos e iniciativas de
desenvolvimento institucional, em estados e municípios das regiões Nordeste, Norte e
Centro-Oeste.
Desenvolvimento do Ensino Médio
Por intermédio desse programa foram gastos R$ 141,6 milhões em 2007, dos quais
77% destinaram-se à distribuição de livros didáticos para estudantes de ensino médio
das redes públicas. Os dispêndios com o funcionamento e recuperação das institui-
ções federais que ofertam este nível de ensino somaram R$ 25,3 milhões (18% do
total). Portanto, as duas ações responderam por cerca de 95% dos gastos realizados
pelo programa. Ademais, a distribuição de livro didático para o ensino médio contou
com recursos adicionais (R$ 132,2 milhões) do Programa Brasil Escolarizado, razão
pela qual foi possível duplicar a quantidade de exemplares distribuídos em 2007 em
relação ao ano anterior (tabela 3).

114 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 3
Execução físico-financeira do Programa Nacional do Livro Didático do Ensino
Médio (PNLEM) – 2006 e 2007
Ano de Alunos Escolas
Ano letivo Livros Dispêndios
aquisição beneficiados beneficiadas
2006 2007 6.896.659 15.570 9.175.439 124.275.397
2007 2008 7.132.477 15.216 18.248.846 221.540.849
Fonte: FNDE/MEC.

Em 2007, foram distribuídos livros das disciplinas curriculares de história e química


para uso em 2008. Além disso, houve ainda complementação e reposição de exemplares
de biologia, língua portuguesa e matemática. A iniciativa, prevista para iniciar em 2009,
foi antecipada em virtude das diretrizes e metas estabelecidas pelo PDE.
Por fim, o estímulo à integração do ensino médio com a formação profissional
também desponta como outra prioridade da política educacional que vem sendo imple-
mentada pela gestão atual do MEC, com dispêndios de R$ 124,9 milhões em 2007, pro-
venientes da ação Apoio ao Desenvolvimento da Educação Básica, do Brasil Escolarizado.
Brasil alfabetizado e educação de jovens e adultos
O programa sofreu profundas mudanças a partir do Decreto no 6.093, de 24 de abril
de 2007. No que tange à alfabetização de jovens e adultos, foram priorizados estados
e municípios com maiores índices de analfabetismo, com base no Censo Demográfico
de 2000, e definiu-se que os alfabetizadores deveriam ser majoritariamente professores
das redes públicas de educação básica. Além disso, exigiu-se que os municípios e estados
apresentassem Plano Plurianual de Alfabetização. O redesenho do programa implicou
o início tardio da mobilização dos parceiros, da formalização da adesão ao programa e,
finalmente, da execução efetiva das ações.
Apesar desses percalços, o redesenho das ações possibilitou o cadastramento de
quase 1,3 milhão de alfabetizandos em 1.062 municípios, o que representa mais
de 96% da meta estabelecida. Outros resultados do programa foram a formação de 90 mil
alfabetizadores e coordenadores de turmas, concessão de 70 mil bolsas a alfabetizadores, e
criação de linhas específicas de financiamento que abarcam material pedagógico, material
didático, merenda para alfabetizandos, e transporte de alfabetizandos e alfabetizadores.
O mesmo redesenho viabilizou, também, em 2007, a estruturação do Plano Nacional
do Livro Didático para Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA).
No caso da ação Apoio à Ampliação da Oferta de Vagas do Ensino Fundamental a Jovens
e Adultos – Fazendo Escola, observou-se forte constrangimento em 2007 se comparado
ao ano anterior. Em 2006, foram alocados para esta ação R$ 412 milhões, enquanto
em 2007, apenas R$ 91 milhões. Tal fato decorreu da migração do financiamento de
EJA para o âmbito do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização
dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Desenvolvimento da educação especial
Em 2007 foram gastos, no escopo do programa, R$ 79,1 milhões destinados a assegurar
a alunos com necessidades educacionais especiais as condições de acesso e permanência
com qualidade na escola. Deste total, 45% foram alocados ao funcionamento e custeio
das duas instituições federais de ensino especial,7 18% a ações de formação de professores,

7. Instituto Benjamin Constant (IBC) e Instituto Nacional de Educação de Surdos.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 115


gestores e outros profissionais, 10% à distribuição de equipamentos às escolas de edu-
cação especial, e 8,2% à Complementação ao Atendimento Especializado às Pessoas com
Deficiência (Paed).
As ações de formação, presenciais e a distância, foram promovidas mediante parce-
rias do MEC com universidades, instituições privadas sem fins lucrativos de educação
especial, e secretarias estaduais e municipais de Educação. Envolveram 21,6 mil pro-
fessores na modalidade presencial e 32,1 mil na educação a distância, enquanto a meta
estabelecida era de tão-somente 5,3 mil professores. No caso específico dos gestores,
foram capacitados 14.695 profissionais de 5.225 municípios por meio da atuação de
141 municípios-pólo O foco da formação foi a inclusão de alunos com necessidades
especiais nas escolas regulares.
Os gastos com equipamentos específicos ao atendimento das necessidades edu-
cacionais centraram-se na implantação de salas de recursos multifuncionais em 402
municípios, perfazendo um total de 625 escolas beneficiadas.
Quanto ao Paed, que destina recursos financeiros a escolas privadas que oferecem
educação especial, mantidas por organizações não governamentais (ONGs) sem fins
lucrativos, a meta era atender cerca de 2,3 mil escolas. Contudo, 641 foram excluídas
do programa, por motivos de não-adesão e inadimplência na prestação de contas de
exercícios anteriores. As 1.662 escolas beneficiadas totalizaram quase 199 mil alunos
matriculados, ao custo per capita de R$ 33,50. Exclusões desta ordem explicam os fre-
qüentes saldos orçamentários da ação.
3.3 Educação superior
De acordo com a Constituição Federal de 1988, compete à União financiar o sistema
federal de ensino, o qual abrange as instituições federais de ensino superior (Ifes).
A educação superior, composta pelos níveis de graduação e pós-graduação, tem entre
suas funções precípuas a formação de professores para os demais níveis de ensino, de
pesquisadores, e a produção de conhecimentos. Para tanto, o MEC concentra suas
ações neste nível de ensino por intermédio de dois programas finalísticos: Universidade
do Século XXI e Desenvolvimento do Ensino da Pós-Graduação e da Pesquisa Científica.
Em 2007, os dois programas absorveram 46,2% do total de recursos orçamentários
executados pelo MEC.
3.3.1 Ensino de graduação
O Universidade do Século XXI corresponde ao Programa do MEC de maior vulto orça-
mentário. Bastante heterogêneo em relação à natureza de suas ações, o programa responde
por cerca de R$ 12,5 bilhões,8 o equivalente a 43,4% de todos os gastos realizados pelo
ministério em 2007.
Em relação ao ano anterior, os dispêndios realizados no Programa Universidade do
Século XXI foram majorados em 13,9%. Este aumento foi devido, em grande medida, aos
investimentos destinados à expansão das Ifes, que se elevaram de R$ 87,0 milhões para
R$ 333,0 milhões no biênio 2006-2007. Por intermédio desta ação, foram contemplados
mais de cinqüenta campi universitários, em todas as grandes regiões brasileiras.

8. Somam-se a este montante mais de R$ 970 milhões referentes a ações executadas sob a responsabilidade de outras
unidades orçamentárias que, em sua quase totalidade, se destinam à linha de ação Financiamento Estudantil (Fies), con-
forme se verá adiante.

116 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Por sua vez, o funcionamento dos cursos de graduação, que corresponde à ação de
maior volume de gasto, respondeu em 2007 pela execução de cerca de R$ 8,6 bilhões
(68,9% dos gastos do programa executados pelo MEC) – aumento de 8,5% em relação
ao ano anterior.
Outra ação com significativa ampliação dos dispêndios no mesmo biênio foi a
de Complementação para o Funcionamento das Instituições Federais de Ensino Superior.
Neste caso, o crescimento de 175,0% implicou aumento dos gastos, no mesmo período,
de R$ 239,0 milhões para R$ 657,0 milhões.
Ainda no âmbito do Universidade do Século XXI, também foi vultosa a elevação dos
dispêndios da ação de Modernização e Recuperação da Infra-Estrutura Física das Institui-
ções Federais de Ensino Superior e dos Hospitais de Ensino, por intermédio da qual foram
gastos R$ 431,0 milhões em 2007, contra apenas R$ 243,0 milhões no ano anterior
(aumento de 77,0%).
Por fim, cabe destacar que o nível de execução orçamentária do programa, aí in-
cluídas as ações executadas por outros órgãos, atingiu cerca de 98%.
O Programa Universidade para Todos (ProUni), embora não constitua ação orça-
mentária, tem importância de peso para a ampliação do acesso à educação superior por
estudantes em situação socioeconômica desfavorável, motivo pelo qual é aqui objeto
de análise acurada. Em 2007, foram ofertadas 97,6 mil bolsas integrais e 66,2 mil
bolsas parciais a estudantes matriculados em cursos de graduação e seqüenciais de for-
mação específica, em instituições privadas de educação superior. O total de 163,8 mil
bolsas superou em 18% as 138,7 mil bolsas disponibilizadas no ano anterior, ainda
que tenha havido diminuição do número de bolsas integrais e aumento da quantidade
de bolsas parciais.
Até dezembro de 2007, haviam sido beneficiados pelo ProUni cerca de 310,0 mil
estudantes, o equivalente a 75% de um total aproximado de 415,0 mil bolsas ofertadas
em seus três primeiros anos de existência. O programa contemplou algo como 73%
dos potenciais beneficiários com bolsas integrais, tendo encerrado o exercício de 2007
com a adesão de mais de 1,4 mil instituições.
Em relação à composição étnica dos beneficiários do ProUni, constata-se que 47,2%
dos bolsistas são brancos, enquanto pretos e pardos correspondem a 44,6% do total.9
Portanto, estas proporções de distribuição de bolsas guardam certa equivalência com a
composição da população brasileira.10
Quando se comparam demanda e oferta de bolsas de estudos ao longo dos cinco
processos seletivos realizados até 2007, verifica-se, à exceção do primeiro semestre de
2006, certa estabilidade da proporção de candidatos inscritos por vaga ofertada. A maior
afluência de candidatos ao processo seletivo daquele semestre deveu-se à não-exigência,
até então, de nota mínima de 45 pontos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
A tabela 4 apresenta dados de execução física do ProUni relativos ao período.

9. Cerca de 6,0% dos bolsistas não informaram a cor/raça, e outros 2,2% correspondem a amarelos e indígenas.
10. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada em 2006 pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), os brancos correspondiam a 49,7% da população, enquanto os negros representavam
49,5%.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 117


TABELA 4
Candidatos e bolsas ofertadas pelo ProUni (2005 a 2007)
2005 2006 2007
Total
1º sem. 2º sem. 1º sem. 2º sem.
Candidatos ( a ) 422.531 793.436 200.969 483.266 185.295 2.085.497
Bolsas ofertadas ( b ) 112.275 91.609 47.059 108.642 55.212 414.797
a/b 3,76 8,66 4,27 4,45 3,36 5,03
Bolsas concedidas ( c ) 95.518 73.852 35.151 72.419 33.123 310.063
b/c 85,1 80,6 74,7 66,7 60,0 74,8
Fonte: MEC.
Elaboração: Disoc/Ipea.

A taxa de utilização das bolsas ofertadas vem mostrando, contudo, tendência decli-
nante. Se, no primeiro ano do ProUni, 85,1% das bolsas ofertadas foram efetivamente
usufruídas, nos dois anos subseqüentes as taxas foram de, respectivamente, 78,6% e 64,4%.
Com isso, o total de bolsas concedidas em 2007 foi 3,2% menor que o do ano anterior.
Em relação à distribuição regional da oferta de bolsas, observa-se que o Sudeste,
apesar de concentrar 56,3% das matrículas nas instituições de ensino privadas, foi con-
templado com apenas 52,7% do total ofertado. De outro modo, as regiões Sul, Nordeste
e Norte tiveram participação maior quando comparada à proporção de matrículas nas
instituições privadas.
Uma das críticas dirigidas ao ProUni, por ocasião de seu lançamento, dizia respeito
à transferência de recursos públicos ao setor privado, sob forma de renúncia fiscal, e argu-
mentava a favor da utilização destes recursos para a expansão da rede federal de instituições
de ensino superior. No entanto, quando se confrontam os montantes que deixaram de ser
arrecadados nos últimos anos e o universo de beneficiários do programa, constata-se que
o custo por aluno se situa em nível bastante baixo, conforme mostra a tabela 5.
TABELA 5
Renúncia fiscal, bolsas concedidas e custo/aluno no ProUni 2005 a 2007
2005 2006 2007²
Renúncia fiscal¹ (a) 106.737.984 264.637.566 390.688.273
Bolsas concedidas (b) 95.518 204.521 310.063
a/b 1.117 1.294 1.260
Fonte: Secretaria de Ensino Superiro (SESu/MEC).
Elaboração: Disoc/Ipea
Notas:¹ Em R$ correntes.
² Renúncia fiscal estimada.

Além de o custo-aluno ser baixo, é pouco factível que aportes adicionais de recursos
dessa monta às Ifes pudessem ampliar a oferta de vagas na mesma proporção que aquela
viabilizada pelo ProUni. Isto pode ser evidenciado por intermédio da ação Funciona-
mento de Cursos de Graduação, responsável pela manutenção das Ifes, e que movimentou
R$ 7,9 bilhões em 2006. Por intermédio destes dispêndios, foi possível atender a
cerca de 590 mil estudantes matriculados nestas instituições. Portanto, o acréscimo de
R$ 265 milhões ao orçamento destas, equivalente à renúncia fiscal do ProUni naquele
ano, elevaria em apenas 3,3% o dispêndio do MEC com a principal ação de manutenção
das Ifes, o que alteraria em muito pouco suas capacidades de atendimento. Por sua vez,
este mesmo montante de renúncia fiscal viabilizou o ingresso e permanência de quase
205 mil estudantes na educação superior.
Outra linha de ação voltada à ampliação do acesso à educação superior consiste no
Financiamento Estudantil (Fies). Ao final de 2007, o número de contratos ativos superava
467 mil beneficiários. Somados aos bolsistas do ProUni, mais de 770 mil estudantes

118 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


estavam sendo beneficiados naquele ano com algum tipo de bolsa ou financiamento
público. Este contingente correspondia a cerca de 1/5 do universo de matriculados nas
instituições de ensino privadas.
3.3.2 Pós-Graduação e pesquisa científica
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) é o órgão
do MEC que gerencia o Programa de Desenvolvimento do Ensino da Pós-Graduação e da
Pesquisa Científica, que tem por objetivo suprir carências de docentes capacitados para
atender às necessidades das instituições de ensino superior e dos demais setores educa-
cionais, de profissionais e técnicos para o mercado de trabalho, e de pesquisadores de
alto nível para empresas públicas e privadas.
Por intermédio desse programa foram gastos R$ 802,5 milhões em 2007, valor que
superou em cerca de 7,0% o dispêndio realizado no ano anterior. A principal ação
que integra é Concessão e Manutenção de Bolsas de Estudos no País, a qual respondeu por
gastos em torno de 59,1% do total do programa. Juntamente com as ações Concessão e
Manutenção de Bolsas de Estudos no Exterior e Concessão de Bolsas de Estudos para o Aten-
dimento das Diretrizes da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior, foram
gastos R$ 625,2 milhões, ou 77,9% de todo o montante de dispêndios do programa.
Os dados da execução físico-financeira estão dispostos na tabela 6.
TABELA 6
Gastos e metas físicas sob as principais ações do Programa Desenvolvimento do Ensino
da Pós-Graduação e da Pesquisa Científica (2006 e 2007)
(Em R$ correntes)

Ações 2006 2007


a1/a2 b1/b2
Gastos¹ Meta física Gastos¹ Meta física (%) (%)
(a1) (b1) (a2) (b2)
Concessão e Manutenção de Bolsas de Estudos
452.345.069 25.248 474.406.201 30.189 4,9
no País² 19,6
Concessão e Manutenção de Bolsas de Estudos
110.353.646 2.005 107.430.692 2.229 -2,6 11,2
no Exterior²
Bolsas de Estudos para o Atendimento das
Diretrizes da Política Industrial, Tecnológica e de 33.704.732 2.997 43.333.857 3.052 28,6 1,8
Comércio Exterior²
Acesso à Informação Científica e Tecnológica 74.514.712 47.000 67.350.836 56.597 -9,6 20,4
Fomento à Pós-Graduação 27.242.572 1.233 36.987.880 839 35,8 -32,0
Funcionamento de Programas de Pós-Graduação 25.663.770 32.043.847 24,9
Demais ações 27.638.202 40.965.602 48,2
Total 751.462.703 802.518.915 6,8
Fonte: Capes/MEC.
Elaboração: Disoc/Ipea.
Notas:¹ Em R$ correntes.
² Média aritmética das concessões mensais.

Cabe ressaltar a importância de outra ação integrante desse programa que, a des-
peito da reduzida dimensão de seus gastos, tem impacto significativo sobre a qualidade
da pós-graduação brasileira. Trata-se da Avaliação e Acompanhamento de Programas
de Pós-Graduação e de Fomento, por intermédio da qual foram despendidos cerca de
R$ 5,7 milhões em 2007, com vistas à realização da Avaliação Trienal dos Programas
de Pós-Graduação Stricto Sensu referente ao período 2004-2006. Desse modo, foram
avaliados os programas que integravam o Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG)
em 31/12/2006 e que tinham enviado informações sobre atividades desenvolvidas em
pelo menos um dos anos do triênio em exame. A tabela 7 apresenta os resultados do
referido processo de avaliação.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 119


TABELA 7
Resultados da Avaliação Trienal da Pós-Graduação Stricto Sensu do triênio
2004-2006
Conceitos
Programas Total
1 2 3 4 5 6 7
Mestrado 3 57 541 312 14 - - 927
Mestrado e doutorado1 1 15 51 429 432 140 75 1.143
Doutorado - 1 3 16 15 4 - 39
Mestrado profissional 3 11 82 44 17 - - 157
Total 7 84 677 801 478 144 75 2.266
Fonte: Capes/MEC.
Elaboração: Disoc/Ipea.
Nota: ¹ Esses programas respondiam pela oferta de 2.286 cursos.

Os resultados da avaliação trienal mostram que apenas 3% dos cursos avaliados


foram reprovados, ou seja, os que obtiveram conceito menor que 3. Do total de cursos
avaliados, prevaleceram os que lograram conceito 4 (36%), seguidos daqueles avaliados
com grau 5 (27%). Desde o momento em que foi realizada a avaliação trienal, outros
450 cursos foram submetidos à avaliação da Capes e obtiveram seu reconhecimento
oficial, de modo que, em abril de 2008, o número de cursos de pós-graduação stricto
sensu reconhecidos aproximava-se de 3,9 mil.
Um dos efeitos imediatos da ampliação e consolidação da pós-graduação no Brasil
consiste na contínua melhoria da posição do Brasil no ranking mundial da produção
científica. Com base nos dados do Institute for Scientific Information (ISI), o Brasil
passou a ocupar o 15o lugar, com 2,0% dos artigos publicados em periódicos catalogados
por esta instituição. Em 2002, o país ocupava a 17ª posição, com 1,8% da produção
mundial. Destaca-se também a posição do país no contexto latino-americano, onde a
segunda posição é ocupada pelo México, com 0,8% da produção mundial. De acordo com
a Capes, enquanto a produção científica mundial dobrou entre 1981 e 2006, no Brasil
o aumento foi de nove vezes no mesmo período. Portanto, é em virtude deste crescimento
mais acelerado que o país tem melhorado sua posição no cenário mundial.
3.4 Educação profissional e tecnológica
O Programa Desenvolvimento da Educação Profissional e Tecnológica despendeu em 2007
quase R$ 1,5 bilhão – 64,5% deste total destinaram-se a assegurar o funcionamento da
educação profissional, e outros 12,6% a ações de fomento. À expansão, modernização e
recuperação da rede de escolas de educação profissional e tecnológica coube o montante
de R$ 153,4 milhões, correspondentes a 10,4% dos dispêndios do programa.
Com o término da Primeira Fase do Plano de Expansão da Rede Federal de Educação
Profissional e Tecnológica, prevista para 2007, deveriam ter sido implantadas 64 unida-
des de ensino. No entanto, apenas 39 unidades foram entregues – 30 delas no último
ano. Conforme mostra a tabela 8, as unidades de ensino implantadas na primeira fase
distribuem-se por dezoito estados da Federação.
TABELA 8
Total de escolas, por Unidade federada, entregues na I Fase do Plano de Expansão da Rede Federal
de Educação Profissional e Tecnológica
Unidades federadas No de escolas
SP 5
RJ 4
BA, MG, PR, RN, RS e SC 3
MA e PI 2
CE, ES, GO, MT, PB, PE, RR e TO 1
Fonte: Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec)/MEC.
Elaboração: Disoc/Ipea.

120 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


A incorporação dessas novas unidades de ensino elevou a 179 o número de escolas
da rede federal de educação profissional e tecnológica. Desse modo, viabilizou-se em
2007 a matrícula de 82,5 mil estudantes de nível técnico e outros 31,4 mil em cursos
tecnológicos. No caso do ensino técnico de nível médio, houve crescimento de 3,3% em
relação ao ano anterior, enquanto nas redes de ensino com maior número de estudantes,
privada e estadual, verificou-se redução de pelo menos 8,0%, no mesmo período.
Das 25 unidades de ensino remanescentes da primeira fase de expansão, 16 já es-
tão com obras em andamento, e nove delas encontram-se funcionando em instalações
provisórias. Na segunda fase de expansão, anunciada em 2007 e que compreende o
período 2008-2010, deverão ser construídas mais 150 unidades de ensino. Para fazer
face a tal expansão, estão previstos no escopo do PPA 2008-2011 investimentos em infra-
estrutura da ordem de R$ 2,8 bilhões, além de R$ 6,5 bilhões destinados à manutenção
e funcionamento das escolas.
Para efeito da distribuição das novas unidades de ensino, têm sido priorizados mu-
nicípios situados em regiões interioranas e os de periferias dos grandes centros urbanos.
Definiu-se também que os cursos deverão atender às demandas locais e regionais, assim
como às de arranjos produtivos locais. Das novas vagas ofertadas, 30 mil deverão ser
direcionadas para a modalidade de Educação de Jovens e Adultos, no âmbito do Progra-
ma de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação
de Jovens e Adultos (Proeja), criado pelo Decreto no 5.478/2005, e voltado ao público
de jovens e adultos com mais de 17 anos que não tenham concluído o ensino médio.
Portanto, o programa tem um duplo objetivo: oferecer formação profissional de nível
técnico e assegurar a conclusão da educação básica.
Com a vigência da Lei no 9.649/1998, a União passou a incumbir-se apenas da
responsabilidade pela construção e aparelhamento das escolas de educação profissional
e tecnológica, cabendo aos entes subnacionais e às instituições convenentes os encargos
relativos ao funcionamento e à manutenção das unidades de ensino. No entanto, diversas
instituições de educação profissional, criadas sob a égide daquela lei, encerraram suas
atividades pouco tempo após sua inauguração. A principal razão para tal é que as despesas
de maior vulto incidiam justamente na manutenção do quadro funcional (professores
e técnicos), atualização tecnológica de laboratórios, realização de estágios e visitas téc-
nicas e intercâmbios, entre outras – enfim, encargos considerados desproporcionais em
relação à fragilidade financeira de estados e, principalmente, de municípios e ONGs.
Desse modo, a federalização de 18 escolas, ora já em andamento, consiste em uma
tentativa de reverter esta situação e, assim, fortalecer a necessária expansão da oferta de
vagas por instituições de ensino profissional e tecnológico públicas.
3.5 Educação para a diversidade e cidadania
As discriminações e desigualdades da sociedade brasileira tendem a se reproduzir tam-
bém no campo educacional, cerceando o desenvolvimento das potencialidades dos
pertencentes aos grupos discriminados. Com a intenção de mitigar a situação, o MEC
desenvolve o Programa Educação para a Diversidade e Cidadania, que visa à redução,
nas escolas, das desigualdades étnico-raciais, de gênero, de orientação sexual, geracional,
regional e cultural.
Em 2007 o programa teve pequeno significado orçamentário (R$ 23,8 milhões),
ainda que outros recursos de igual monta tenham sido executados, no âmbito do Brasil
Escolarizado, com destinação semelhante. Incluiu, em suas ações, a produção de materiais

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 121


didáticos, capacitação de profissionais da educação, apoio à criação de redes e ao convívio
dos diversos grupos por meio de atividades culturais, de esporte e de lazer no espaço
escolar, etc. Entre os resultados obtidos, verificou-se a qualificação em educação para
a diversidade e cidadania de 1.760 profissionais da educação básica atuantes nas redes
públicas de ensino, assim como o apoio a 250 projetos de inclusão social e étnico-racial
na educação superior.
Dadas a relevância e dimensão dos desafios a que se propõe a enfrentar, uma análise
mais aprofundada do formato do programa e de suas possibilidades e limites poderá vir a
ser desenvolvida em outra edição deste periódico – uma análise de tal ordem extrapolaria
o escopo desta seção.11
4 Tema em destaque
Melhoria da qualidade e aumento de eficácia da educação básica
O aumento da eficácia da educação básica está diretamente relacionado à melhoria da
qualidade do ensino. Esta, por sua vez, depende de um conjunto de fatores internos
e externos à escola. No intuito de melhorar significativamente as condições de ensino
nas escolas públicas brasileiras, o Ministério da Educação elaborou o Plano de Desen-
volvimento da Educação (PDE), que abrange um amplo rol de ações e medidas com
foco neste objetivo. No entanto, para que tais intervenções tenham eficácia, faz-se
necessário o engajamento de todos os envolvidos, direta e indiretamente, na práxis edu-
cativa: União e demais entes federados, trabalhadores em educação, alunos e famílias.
Nesse sentido, o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação foi a estratégia
adotada pelo MEC para aglutinar esforços e compartilhar responsabilidades entre todos
estes segmentos. Por fim, a implementação das respectivas ações demandará necessa-
riamente ampliação de recursos orçamentários que, em nível federal, está prevista no
escopo do Plano Plurianual (PPA) 2008-2011.
4.1 Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE)
A formulação do PDE foi orientada por um conjunto de razões e princípios. Entre as
primeiras citam-se os objetivos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal
de 1988, em seu artigo 3o: i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; ii) garantir
o desenvolvimento nacional; iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; e iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A consecução desses objetivos constitucionais confere à educação escolar, enquanto
um dos mais poderosos instrumentos de socialização nas sociedades contemporâneas,
responsabilidades nada triviais. De acordo com o documento que apresenta o PDE:
(...) não há como construir uma sociedade livre, justa e solidária sem uma educação republi-
cana, pautada pela construção da autonomia, pela inclusão e pelo respeito à diversidade. Só
é possível garantir o desenvolvimento nacional se a educação for alçada à condição de eixo
estruturante da ação do Estado de forma a potencializar seus efeitos. Reduzir desigualdades
sociais e regionais se traduz na equalização das oportunidades de acesso à educação de quali-
dade (...) (HADDAD, 2008).12

11. Essas possibilidades dizem respeito tanto aos aspectos orçamentários quanto aos gerenciais, decorrentes de uma estru-
tura organizacional – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) – separada das responsáveis
pelas políticas e programas relativos aos níveis de ensino.
12. HADDAD, Fernando. O Plano de Desenvolvimento da Educação: razões, princípios e programas. Brasília:
Inep, 2008, p. 5.

122 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Ainda que o tema qualidade na educação tenha sido historicamente associado a
uma série de indicadores de rendimento e desempenho, está intimamente relacionado
a processos por intermédio dos quais são logrados determinados resultados. Nesse senti-
do, não se deve confundir taxas de aprovação ou notas médias de proficiência com nível
de qualidade do ensino, uma vez que tais indicadores sofrem influências de variáveis
extrínsecas à escola, tais como: i) bagagens/legados culturais dos alunos; ii) condições
socioeconômicas das famílias; e iii) tempo dedicado aos estudos; entre outras.
Contudo, padrões mínimos de insumos e das instalações escolares podem influen-
ciar significativamente resultados e desempenhos dos estudantes. Portanto, insumos e
condições adequadas de acesso e permanência constituem condições necessárias, ainda
que insuficientes, para assegurar a qualidade da educação escolar. Esta, por sua vez,
também depende de fatores menos tangíveis ou mensuráveis, como a motivação dos
atores, a cobrança dos beneficiários, ou seja, fatores passíveis de mudança em nível local
– municipal, na unidade escolar, ou até na própria sala de aula.
Tratar a educação em sua natureza sistêmica é, em grande medida, uma tentativa de
interferir nos processos educacionais, de modo a melhorar a qualidade do ensino e, con-
seqüentemente, seus resultados (proficiência e progressão). Assim, o PDE busca romper
com a concepção fragmentada de educação até então prevalecente como orientação da
política educacional brasileira que, conforme afirmam os gestores atuais do MEC, seria
tributária de conjunturas econômicas adversas e arranjos administrativos precários.
Assegurar o rendimento e fluxo escolares adequados em um determinado nível de
ensino não pode prescindir do que o antecede e tampouco do que o sucede. Tomando-
se como exemplo o ensino fundamental, que corresponde à escolaridade obrigatória no
país, verifica-se que muitos de seus resultados são, em grande medida, definidos pela
condição em que se encontram os alunos ao ingressar na 1a série deste nível de ensino.
Via de regra, os que tiveram oportunidade de freqüentar a pré-escola tendem a apre-
sentar maior rendimento. Por sua vez, os níveis de ensino subseqüentes (médio e supe-
rior) também exercem influência sobre a escolarização obrigatória, na medida em que
constituem os espaços de formação dos professores que atuam naquele nível de ensino.
Assim, uma concepção sistêmica de educação implica perceber o caráter complementar
entre os níveis de ensino, mediante eliminação de falsas dicotomias que acabam por
anuviar as inter-relações entre os mesmos, positivas e negativas.
A qualidade e eficácia da educação também dependem do grau de integração entre
as unidades escolares e os contextos sociais nos quais se inserem. Sob esta ótica, a escola
deixa de ser concebida como envolta por uma redoma de vidro, alheia à sociedade da
qual é parte constitutiva. Desse modo, a qualidade do ensino e os resultados daí advindos
expressam, em alguma medida, o tipo de mediação que a escola realiza ao desempenhar
suas funções precípuas, entre as quais a transmissão do conhecimento socialmente acu-
mulado e a preparação do indivíduo para a vida adulta. Identificar os condicionantes
sociais que interferem no desempenho de seus alunos é o primeiro passo para minimizar
seus efeitos perversos e potencializar seus benefícios.
O exercício dessa mediação consiste num dos principais desafios postos à escola
brasileira nos dias atuais, sobretudo pelo fato de o tecido social ter se deteriorado ao
longo das últimas décadas, conforme evidencia a escalada dos índices de violência.
Entretanto, para que este desafio seja vencido, a instituição escolar deverá dotar-se
de meios e, principalmente, de capacidades indispensáveis a este exercício. Além de
infra-estrutura, equipamentos e recursos pedagógicos adequados, tornar-se-á decisivo

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 123


o comprometimento e a participação de diretores e servidores técnico-administrativos,
professores, pais e alunos.
O efetivo envolvimento desses atores sociais pressupõe a implementação de ações
de mobilização, sensibilização e capacitação, com vistas a torná-los co-responsáveis
pelo desempenho da instituição escolar. A instituição pelo MEC do Plano de Metas
Compromisso Todos pela Educação13 consiste em iniciativa que vem ao encontro
deste objetivo.
4.2 Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação
O Compromisso Todos pela Educação não constitui, de fato, um plano de metas pro-
priamente, mas um conjunto de 28 diretrizes14 que tanto têm como foco a melhoria da
qualidade da educação básica pública quanto como parâmetro a elevação dos índices de
proficiência e progressão neste nível de formação, sintetizados pelo Índice de Desenvol-
vimento da Educação Básica (Ideb).
Essas diretrizes resultaram de duas pesquisas realizadas pelo MEC, mediante par-
cerias firmadas com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef ) e o Banco
Mundial, a partir dos resultados da Prova Brasil, realizada em 2005. No primeiro caso,
foram investigadas escolas que, a despeito de estarem submetidas a condições desfavorá-
veis, obtiveram bons resultados nesta avaliação. A outra pesquisa teve como unidades de
análise sistemas municipais de ensino com características socioeconômicas semelhantes,
mas que tiveram desempenhos diferenciados. Portanto, a questão comum a ambas as
pesquisas era a de saber o que determinadas escolas/redes de ensino realizavam, em termos
de boas práticas, que lhes permitia superar limitações de ordem infra-estrutural e/ou
socioeconômica. Tais diretrizes podem ser classificadas em pelo menos nove categorias,
conforme disposto na tabela 9.
TABELA 9
Classificação das diretrizes que integram o Compromisso Todos pela Educação
Categoria Nº de diretrizes
Resultados 2
Condições de acesso e permanência 7
Ampliação da escolaridade 2
Formação, valorização e avaliação dos profissionais da educação 4
Divulgação dos resultados 1
Planejamento e gestão 8
Integração da política educacional 1
Integração escola-comunidade 2
Monitoramento do compromisso 1
Fonte: MEC.
Elaboração: Disoc/Ipea.

A tabela 9 mostra que três categorias reúnem 19 das 28 proposições que integram
o Compromisso Todos pela Educação, a saber: i) condições de acesso e permanência;
ii) formação, valorização e avaliação dos profissionais de educação; e iii) planejamento
e gestão. Em que pese a relevância das demais categorias, serão analisadas a seguir as que
abrangem maior incidência de proposições.

13. A denominação do plano foi emprestada de organização civil preexistente.


14. As diretrizes que integram o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação estão disponíveis em: <http://sceweb.
mec.gov.br/termo/action/livreto.pdf >

124 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


QUADRO 1
Diretrizes relativas às condições de acesso e permanência
• Acompanhar cada aluno da rede individualmente, mediante registro da sua freqüência e do seu desempenho em
avaliações que devem ser realizadas periodicamente.
• Combater a repetência, dadas as especificidades de cada rede, pela adoção de práticas como aulas de reforço no
contraturno, estudos de recuperação e progressão parcial.
• Combater a evasão pelo acompanhamento individual das razões da não-freqüência do educando e sua superação.
• Matricular o aluno na escola mais próxima da sua residência.
• Ampliar as possibilidades de permanência do educando sob responsabilidade da escola para além da jornada regular.
• Valorizar a formação ética, artística e a educação física.
• Garantir o acesso e permanência das pessoas com necessidades educacionais especiais nas classes comuns do
ensino regular, fortalecendo a inclusão educacional nas escolas públicas.

As sete diretrizes que integram a primeira categoria guardam estreita relação entre
si, na medida em que, implementadas em conjunto, podem melhorar as condições de
acesso e permanência do educando na escola. Nesse sentido, assegurar a matrícula do
aluno em escola próxima à sua residência pode contribuir para reduzir os índices de
absenteísmo e até de evasão definitiva, sobretudo se houver insuficiência de meios e/ou
recursos financeiros para a locomoção até a unidade escolar.
Do mesmo modo, monitorar a freqüência dos alunos e os resultados nos exames
de proficiência pode implicar a oferta de reforço escolar, de recuperação em processo,
para aqueles alunos que se encontrem defasados e, em última instância, estejam em vias
de abandonar os estudos.
A ampliação da permanência do aluno na escola, seja para reforço ou acesso a
outros conteúdos culturais como as artes e atividades físico-desportivas, também pode
representar uma oportunidade de compensação das carências devidas à situação socio-
econômica das famílias dos educandos. Dessa maneira, a progressiva implantação da
escola de tempo integral vem se adequar à necessidade de se ampliarem os horizontes
culturais de crianças e jovens pertencentes a estratos populacionais marginalizados.
QUADRO 2
Diretrizes relativas à formação, valorização e avaliação dos profissionais de educação
• Instituir programa próprio ou em regime de colaboração para formação inicial e continuada de profissionais da educação.
• Implantar plano de carreira, cargos e salários para os profissionais da educação, privilegiando o mérito, a formação
e a avaliação do desempenho.
• Valorizar o mérito do trabalhador da educação, representado pelo desempenho eficiente no trabalho, dedicação,
assiduidade, pontualidade, responsabilidade, realização de projetos e trabalhos especializados, cursos de atualização
e desenvolvimento profissional.
• Dar conseqüência ao período probatório, tornando o professor efetivo estável após avaliação, de preferência externa
ao sistema educacional local.

As quatro diretrizes que integram a categoria de diretrizes relativas à formação, va-


lorização e avaliação dos profissionais de educação cobrem grande parte das dificuldades
vivenciadas pela escola pública: carência de profissionais, sobretudo de professores, em
número e com qualificação. Em ambos os casos, esta carência se deve à pouca atrativi-
dade da carreira docente: baixos salários, condições de ensino precárias, dificuldade de
acesso às escolas rurais e das periferias urbanas, violência crescente, entre outros fatores.
Acredita-se que parcela significativa dos professores com melhor qualificação acaba por
abandonar a atividade docente.
A qualidade e eficácia do ensino também são afetadas pela capacidade do docente
de lidar com as diferenças, sobretudo as relativas a grupos socialmente desfavorecidos.
Por razões desta natureza se torna imprescindível ampla reestruturação dos cursos
de licenciatura ofertados pelas instituições de ensino superior, não apenas do ponto

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 125


de vista da função social que cabe ao professor exercer, mas também em relação à sua
capacidade de (re)significar e relacionar os conteúdos de ensino com a vida concreta
do educando.
Além dessa adequada formação acadêmica prévia, faz-se igualmente imprescindível
a institucionalização da formação continuada enquanto demanda natural da boa práxis
educativa. E a valorização da ampliação das competências adquiridas por intermédio
dessa modalidade de formação deve se constituir em um dos elementos centrais de um
plano de carreira, cargos e salários.
Forte aliada na luta pela melhoria da qualidade e eficácia da educação pública poderá
ser também a implementação de mecanismos de avaliação conseqüentes, com foco nos
processos geradores dos resultados nos exames de proficiência e do fluxo escolar.
QUADRO 3
Diretrizes relativas ao planejamento e à gestão
• Envolver todos os professores na discussão e elaboração do projeto político-pedagógico, respeitadas as
especificidades de cada escola.
• Incorporar ao núcleo gestor da escola coordenadores pedagógicos que acompanhem as dificuldades enfrentadas
pelo professor.
• Fixar regras claras, considerados mérito e desempenho, para nomeação e exoneração de diretor de escola.
• Acompanhar e avaliar, com participação da comunidade e do conselho de educação, as políticas públicas na área de
educação, e garantir condições, sobretudo institucionais, de continuidade das ações efetivas, preservando a memória
daquelas realizadas.
• Zelar pela transparência da gestão pública na área da educação, garantindo o funcionamento efetivo, autônomo e
articulado dos conselhos de controle social.
• Promover a gestão participativa na rede de ensino.
• Elaborar plano de educação e instalar conselho de educação, quando inexistentes.
• Fomentar e apoiar os conselhos escolares, envolvendo as famílias dos educandos, com as atribuições, entre outras,
de zelar pela manutenção da escola e pelo monitoramento das ações e consecução das metas do compromisso.

As diretrizes relativas ao planejamento e à gestão apontam para a importância de


ambos, sobretudo no que se refere à formulação de projetos político-pedagógicos para a
escola que envolvam todo o corpo docente, e da gestão participativa ampliada mediante
mobilização de pais e responsáveis pelos alunos – além de incidirem sobre as instâncias
de coordenação e direção escolares. Ressalte-se, no primeiro caso, a necessidade de acom-
panhamento e supervisão da atividade docente por meio de coordenadores pedagógicos.
A estes cabe o auxílio na superação das dificuldades cotidianas da prática pedagógica,
mas também podem exercer função de interlocução entre corpo docente e direção no
planejamento escolar. Adicionalmente, a constituição e o efetivo funcionamento de con-
selhos escolares – compostos por representantes de todos os segmentos envolvidos com
o cotidiano escolar – podem vir a reforçar o sentido da responsabilização compartilhada
entre os mesmos.
No intuito de induzir os entes federados a adotar essas diretrizes e a comprometer-se
a atingir as metas estabelecidas no âmbito do Ideb, o MEC definiu critérios para a
distribuição de recursos financeiros voluntários. Assim, para a celebração do convênio ou
termo de cooperação com o MEC, e com isto viabilizar aportes adicionais de recursos,
o ente federado deverá cumprir os seguintes requisitos: i) formalizar termo de adesão ao
compromisso; ii) realizar a Prova Brasil nas escolas integrantes de sua rede; iii) enviar os
dados de execução financeira por meio do Sistema de Informações sobre Orçamentos
Públicos em Educação (Siope); e iv) enviar regularmente informações sobre freqüência
escolar dos alunos beneficiários do Bolsa Família.
Equipes técnicas do MEC farão visitas aos entes municipais e estaduais que tiverem

126 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


aderido ao compromisso, no intuito de finalizar diagnóstico da situação educacional
local, o qual subsidiará a formulação do Plano de Ações Articuladas (PAR). Por fim,
a concessão de recursos adicionais aos entes federados levará em conta o diagnóstico e
sua capacidade financeira.
4.3 Plano Plurianual 2008-2011
O Plano Plurianual (PPA) 2008-2011 reafirma a orientação da política educacional do
MEC de ampliar significativamente os investimentos em prol da melhoria da qualidade
da educação básica. Nesse sentido, o Programa Qualidade na Escola guarda estreita re-
lação com os propósitos do PDE, no que se refere à ampliação e melhoria dos insumos
demandados para se atingirem as metas fixadas no âmbito do Índice de Desenvolvi-
mento da Educação Básica (Ideb). Os recursos financeiros previstos para o primeiro
ano do plano somam R$ 652,0 milhões, mas, ao final do período, a previsão é de que
sejam despendidos cerca de R$ 3,5 bilhões. Portanto, aumento de 443% no quadriênio.
No total, o Programa Qualidade na Escola desembolsará cerca de R$ 9,7 bilhões, dos
quais 2/3 destinados a investimentos em capital.
São dez as ações finalísticas que integram o programa, mas duas delas respondem
por 2/3 dos recursos orçamentários: i) Apoio à Reestruturação da Rede Física Pública
da Educação Básica, por meio da qual serão beneficiadas 5,4 mil escolas ao longo do
quadriênio; e ii) Apoio ao Desenvolvimento da Educação Básica, que contemplará 14,7
mil projetos. Ações de apoio à aquisição de equipamentos para a educação infantil e
aos níveis de ensino fundamental e médio, assim como de disseminação de tecnologias
educacionais representarão gastos superiores a R$ 1,3 bilhão, ou 15% do orçamento
do programa. Por sua vez, os recursos a serem alocados à formação e capacitação de
professores corresponderão a R$ 891,0 milhões, equivalentes a 10% do total.
4.4 Conclusões
Depois de o país ter praticamente universalizado o acesso ao ensino fundamental, urge
assegurar a sua conclusão a todos os que nele ingressam. Em grande medida, a superação
deste desafio dependerá do nível de qualidade do ensino ofertado pelas escolas públicas,
pois é aí que se concentra grande incidência de insucessos, devidos às elevadas taxas
de reprovação que, de forma recorrente, acabam por promover a evasão definitiva dos
sistemas de ensino.
Ao tomar para si a responsabilidade de coordenar a implementação de uma política
educacional que articula esforços das três esferas do Poder Executivo e, ao mesmo tem-
po, busca ampliar e qualificar o envolvimento da sociedade civil, o MEC deu um passo
importante no sentido de romper o círculo vicioso que se estabelece entre pobreza e
desempenho escolar. Para fazer face às metas de desempenho escolar fixadas, o ministério
também criou ações de apoio, definiu prioridades e instituiu mecanismos de indução
para que os entes federados passem a atuar sob orientação das diretrizes que integram o
Compromisso Todos pela Educação, de modo a atingir metas de desempenho no âmbito
de seus sistemas de ensino.
5 Considerações finais
A reorientação conferida à política educacional implementada pela atual gestão ministe-
rial se fez sentir sobretudo pelo reconhecimento do caráter sistêmico da educação, assim
como na reafirmação de suas funções relativas à oferta e regulação deste bem público.
De acordo com este entendimento, foram implementadas ações e tomadas iniciativas

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 127


voltadas ao fortalecimento de cada nível/modalidade de ensino em particular, e também
de suas interfaces, com vistas a melhorar a qualidade da oferta e elevar o desempenho
escolar dos estudantes.
A principal iniciativa consoante com o objetivo de melhorar substancialmente a
qualidade da educação básica foi instituir o Plano de Desenvolvimento da Educação
(PDE). Mas o MEC também tem empreendido esforços no sentido de ampliar o acesso
e monitorar a qualidade da formação em nível superior, pois é neste nível de ensino que
se dá a formação dos quadros docentes da educação básica. Além do atendimento às
demandas dos níveis de ensino precedentes, cabe à educação superior promover o de-
senvolvimento científico-tecnológico, sem o qual fica comprometido o desenvolvimento
das forças produtivas de qualquer sociedade.
Portanto, ao atribuir à educação a condição de bem público, sua provisão e regula-
ção deixam de ser feitas segundo as leis de mercado, razão pela qual o Estado é chamado
a assumir maiores responsabilidades quanto ao desempenho de tais funções. De fato,
em 2007 MEC reiterou esta disposição ao implementar ações e medidas de política
com abrangência sobre todos os níveis e modalidades de ensino, no intuito de ampliar
a oferta de vagas, melhorar as condições de permanência e desempenho dos estudantes,
bem como de monitorar a qualidade dos serviços educacionais ofertados.

128 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


CULTURA

1 Apresentação
O atual governo estabeleceu um complexo conjunto de ações para a consolidação de
políticas culturais com ampla base territorial, capaz de que proporcionar a universalização
dos direitos culturais, tanto no que diz respeito ao acesso a bens quanto à valorização
da diversidade. Esta premissa se traduziu, entre outras iniciativas, na apresentação de
emendas constitucionais que instituem mecanismos para a consolidação de políticas
públicas abrangentes e coordenadas entre União, estados, municípios e sociedade civil.
Na mesma direção, o governo federal ainda lançou mão de outras estratégias, como a
criação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), do Plano Nacional de Cultura (PNC),
e de uma base de financiamento estável para o desenvolvimento cultural. O Ministério
da Cultura (MinC) vem dando continuidade a mudanças substanciais na sua trajetória
de atuação, configurando e articulando as ações federais entre si, mas, sobretudo, esta-
belecendo o uso de editais públicos que visam direcionar recursos para áreas prioritárias
e conferir a necessária transparência ao processo. Este conjunto de iniciativas encon-
tra desafios significativos para sua implementação plena, embora marcas distintivas à
atuação federal na área já sejam perceptíveis, em especial com relação a outros períodos
históricos – e a outros governos.
Este capítulo destaca fatos relevantes decorrentes de um acúmulo de decisões
processadas desde o início deste governo e que ganharam contornos institucionais
concretos por meio da instalação e das primeiras reuniões do Conselho Nacional de
Política Cultural (CNPC). Também se destacam os debates sobre a Lei Rouanet (Lei
no 8.313/1991 e demais atos legais que a regulamentaram), ressurgidos em virtude
de denúncias de malversação de recursos e das dificuldades para o funcionamento da
Comissão Nacional de Incentivos Culturais (CNIC). Outro ponto em foco adiante é a
criação da TV pública, projeto que se institucionalizou com a constituição da Empresa
Brasil de Comunicação (EBC).
Na seqüência, o acompanhamento da política e de programas implementados pelo
Ministério da Cultura em 2007 aponta questões como, por exemplo, suficiência e quali-
dade dos recursos financeiros e humanos da área, recorrentemente referidas pelos gerentes
do órgão como condicionantes do desempenho e do funcionamento dos programas.
Por fim, propõe-se uma reflexão preliminar sobre a evolução histórica das polí-
ticas culturais e suas relações com as diretrizes constitucionais estabelecidas em 1988.
O texto sustenta que as políticas culturais brasileiras têm uma longa tradição e apre-
sentam limites que se relacionam com os diversos conteúdos que as concepções de
cultura foram ganhando ao longo da história. A Constituição de 1988 seria um marco
fundamental no processo, pois imprimiu uma clivagem aos significados correntes das
políticas culturais ao delimitar a cultura como direito e ao relacioná-la com princípios
de justiça. No mesmo movimento, a Constituição reconheceu aos domínios de ação
tradicionais das políticas culturais uma legitimidade que condiciona suas possibilidades

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 129


de desenvolvimento futuro. A proposta interpretativa é repensar as políticas culturais
brasileiras à luz dos ideais constitucionais, dos ideais contemporâneos de desenvolvi-
mento cultural e à sombra dos princípios da eqüidade, destacando desafios, alternativas
de aplicação e interpretação das premissas constitucionais.
2 Fatos relevantes
2.1 A instalação do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC)
Um dos três fatos mais relevantes de 2007 foi a instalação do Conselho Nacional de
Política Cultural (CNPC), em dezembro, e a realização seqüenciada de suas primeiras
reuniões. Articulado com a Comissão Nacional de Incentivos Culturais (CNIC) e
com a Comissão do Fundo Nacional de Cultura (FNC), o conselho passa a compor os
dispositivos institucionais de co-gestão de recursos, aprovação de projetos e definição
de diretrizes para as políticas culturais federais. O colegiado tem competência para:
i) acompanhar e fiscalizar a execução do Plano Nacional de Cultura (PNC); ii) esta-
belecer as diretrizes gerais para aplicação dos recursos do FNC; iii) apoiar os acordos
para a implantação do Sistema Federal de Cultura; e iv) aprovar o regimento interno
da Conferência Nacional de Cultura.
O CPNC foi instalado após mais de dois anos de espera, demora muito criticada,
decorrente das dificuldades do processo de escolha dos representantes do campo cultural.
O órgão é composto por 46 titulares com direito a voz e voto e por seis convidados com
direito a voz. São 21 representantes do poder público federal, estadual e municipal, e
25 da sociedade civil, assim distribuídos: 17 ligados a segmentos artístico-culturais di-
versos, cinco a entidades acadêmicas, empresariais, e a fundações e institutos que atuam
na área, e três a entidades de notório saber da área cultural, indicados pelo Ministro
da Cultura.1 Ainda integram o CNPC, na condição de conselheiros convidados – sem
direito a voto –, um representante da Academia Brasileira de Letras (ABL), um do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), e um da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC).
A representação do CNPC foi construída com a preocupação de ampla represen-
tatividade de segmentos e instituições, com o objetivo de estabelecer articulação de um
extenso leque de atores culturais. Daí também a participação multissetorial do governo
federal, que reuniu a Casa Civil, o Ministério das Cidades, o Ministério da Educação
(MEC) e a pasta do Turismo, denotando assim uma visão de que as políticas setoriais
podem e devem dialogar entre si, com ganhos para cada uma delas ao recepcionarem a
cultura como uma dimensão importante no desenho de suas políticas.
A bancada dos municípios e de seus representantes no CNPC também é bastan-
te significativa, o mesmo valendo para os estados. Aqui se revelam potenciais para a

1. Pelo poder público, os representantes estão distribuídos da seguinte maneira: MinC (6), Casa Civil (1), Secretaria Geral da
Presidência da República (1), Ministério da Ciência e Tecnologia (1), Ministério das Cidades (1), Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (1), Ministério da Educação (1), Ministério do Meio Ambiente (1), Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão (1), Ministério do Turismo (1), Fórum Nacional de Secretários Estaduais (3), Associação Brasileira de
Municípios (1), Confederação Nacional de Municípios (1), e Frente Nacional de Prefeitos (1). Quanto à sociedade civil, o
CNPC conta com representantes das seguintes entidades: Sistema S, entidades de pesquisas, Grupo de Institutos Fundação
e Empresas (Gife), Associação Nacional de Entidades Culturais (Anec), e Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (Andifes); quanto aos segmentos culturais, estão representados no conselho: arquivos, artes
digitais, artes visuais, audiovisual, circo, culturas afro-brasileiras, culturas dos povos indígenas, culturas populares, dança,
inclusão social por intermédio da cultura, literatura, livro e leitura, museus, música erudita, música popular, patrimônio
imaterial, patrimônio material, e teatro.

130 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


construção de estratégias de articulação das políticas federais com as das outras esferas
de governo, aí incluídas possibilidades de que o conselho se constitua na arena para
delimitação de pactos de maior ou menor abrangência para a construção do Sistema
Nacional de Cultura (SNC).2 O mesmo cuidado pode ser verificado na composição
da bancada da sociedade civil, na qual se observa representação de amplo arco de
atores relevantes.
Em resumo, a discussão política dos critérios e diretrizes das políticas culturais
veio efetivamente a conquistar espaço institucional e desenho participativo mais claros
apenas no fim de 2007, e pode-se dizer que a instituição do CNPC é ponto culminante
de um processo de mobilização social e de certa insatisfação com a direção conferida às
políticas culturais. Tal insatisfação encontrou a sensibilidade do Governo Lula, e desta
afinidade foram se desenhando ações de articulação com a sociedade, a exemplo das
câmaras setoriais, da própria conferência supracitada, e da construção do SNC a partir
da assinatura de protocolos de intenções entre as diversas esferas de governo. O CNPC
ainda terá pela frente desafios significativos para encontrar e cristalizar procedimentos,
táticas discursivas e focos estratégicos para sua atuação.
2.2 A lei de incentivos em questão
A Lei Rouanet (Lei no 8.313/1991) voltou ao campo de debates. Depois de longo
período de arrefecimento, voltaram as discussões características de meados da década
de 1990. O principal móvel para o aquecimento destas discussões reside nas acusações de
mal uso de recursos e nas críticas à baixa capacidade operacional e política da Comissão
Nacional de Incentivos Culturais (CNIC).
Os incentivos fiscais fazem parte do Programa Nacional de Apoio à Cultura
(Pronac). Segundo a Lei Rouanet, os produtores ou realizadores culturais podem
propor ao Ministério da Cultura projetos, ações ou programas; caso recebam recur-
sos do incentivador, passam a ser beneficiários. O incentivador é o contribuinte do
imposto de renda e proventos de qualquer natureza (pessoa física ou jurídica) que
efetua doação ou patrocínio em favor do proponente com base nos artigos nos 18 ou
26 da Lei no 8.313/1991. O primeiro permite dedução de 100% do valor de incen-
tivo até o limite de 6% do imposto devido; o segundo tem alíquotas específicas para
pessoas físicas (80% no caso das doações e 60% no dos patrocínios) e jurídicas (40%
para as doações e 30% para os patrocínios), até 4% do imposto devido. A renúncia
fiscal é montante de recursos que deixaram de ser arrecadados pelo governo federal:
o “dinheiro novo” corresponde a recursos próprios do incentivador não deduzidos
do imposto devido. A possibilidade de dedução de 100% significa que é permitida
ao incentivador a opção de não dispor de recursos próprios (“dinheiro novo”) para
o projeto incentivado.
Destaque-se aqui que as críticas mais habituais ao uso dos incentivos fiscais se
referem exatamente ao uso das alíquotas de 100%, uma vez que a possibilidade de
dedução integral não estimula a destinação de novos recursos além da soma já devida
ao Estado – e que deixa de ser arrecadada pelo governo federal. Além disso, muitos
interpretam que a lei implicaria a desresponsabilização política do Estado na destinação

2. Edições anteriores deste periódico acompanharam a consolidação do SNC, especialmente quanto à criação de conselhos
e à assinatura de protocolos com municípios. Uma das questões então assinaladas dizia respeito à variedade de formatos
de funcionamento destes órgãos participativos. Com a instalação do CNPC, abrem-se possibilidades de redesenho destas
instituições, que deverão ser paritárias e atuar como peças de controle social.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 131


dos recursos, dado que sua decisão final ficaria, em última análise, a cargo das empresas
ou de pessoas físicas.3
A atuação da CNIC constitui outro ponto de descontentamento de parte da classe
artística. Na verdade, a questão se resume às dificuldades de se estabelecer ou explicitar
de forma clara quais são os critérios utilizados para a aprovação das propostas apresen-
tadas. Não se dispõe, por exemplo, de planilha de custos padronizada para avaliação dos
projetos; exigem-se planos de acessibilidade, inclusive com redução de preços de ingresso
ou de sua distribuição gratuita, mas inexistem protocolos definidos estabelecendo parâ-
metros; não há acompanhamento da inflação de custos de modo a se poder determinar
valores razoáveis para cada projeto etc. De fato, encontram-se em discussão mecanismos
de acompanhamento rigoroso da inflação na área cultural, bem como a elaboração de
planilhas de custos que serviriam de parâmetros para a aprovação de projetos apresentados
ao mecenato; e existem pré-condições na lei de incentivos que vinculam o financiamento
a critérios de democratização do acesso. Contudo, enquanto tais mecanismos e planilhas
não são concluídos, a ausência de esclarecimento dos critérios e parâmetros efetivamente
utilizados deixa a CNIC vulnerável à critica de que aprova projetos com certa dose de
discricionariedade ou a partir de critérios políticos.
A questão da falta de transparência dos critérios utilizados para a aprovação dos
projetos surgiu há dois anos, em 2006, com a aprovação da captação de R$ 9,4 milhões
para o Cirque Du Soleil: de fato, enquanto os preços dos ingressos tornavam o show
inacessível a grande parte do público brasileiro, os resultados de bilheteria do evento
tornavam-no capaz de financiamento independentemente de incentivos. O ponto voltou
à agenda no início de 2008, quando, no projeto de show de Maria Bethânia e Omara
Portuondo, solicitava-se autorização para captar R$ 1,8 milhão, valor equivalente à previ-
são de arrecadação da bilheteria –, portanto, com desnecessária utilização dos incentivos
fiscais. Embora a CNIC tenha rejeitado o projeto, o MinC usou de suas prerrogativas
– previstas nas Leis nos 9.874/1999 e 5.761/2006 – para permitir a captação pleiteada.
Em ambos os casos ficaram dúvidas a respeito dos critérios adotados.
Para culminar, a chamada Operação Mecenas, desencadeada pela Polícia Federal
(PF), levou a cultura mais uma vez às páginas policiais e retomou a discussão sobre
o funcionamento dos mecanismos operacionais da lei de incentivos. Segundo a PF,
houve fraude em processos da CNIC que começaram em 2004. Integrantes do apoio
administrativo do MinC à comissão e produtores culturais supostamente atuavam para
facilitar o andamento dos processos, cobrando uma propina para que os projetos fossem

3. A reforma promovida pelo Decreto no 5.761/2006 respondeu a algumas dessas críticas. Conforme descrito em edição
anterior deste periódico, o decreto dotou a Lei Rouanet de um conceito ampliado de cultura e criou mecanismos de “demo-
cratização” do setor. Antes eram apoiados projetos; agora podem ser apoiados programas e ações culturais, e até mesmo
iniciativas de fortalecimento de cadeias produtivas e arranjos produtivos locais de escopo cultural. Ademais, foram adotadas
medidas para conferir maior transparência ao Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac): sua execução deverá obede-
cer a um plano anual coerente com o Plano Plurianual (PPA), com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e com a Lei de
Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar no 101/2000). Também houve a preocupação de aproximar o Pronac do Plano
Nacional de Cultura (PNC) e dos objetivos ministeriais, tendo sido instituída a Comissão do Fundo Nacional de Cultura (FNC)
para analisar projetos culturais com apoio orçamentário do FNC – como o faz a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura
(CNIC) no caso dos projetos de incentivos fiscais –, além de ter sido atribuída à nova comissão a responsabilidade pela
elaboração do plano anual do FNC. O decreto também mudou algumas regras relativas às condições de usos dos incentivos
fiscais, a exemplo da determinação de que as instituições criadas pelos próprios patrocinadores deverão submeter-se às
mesmas regras dos demais proponentes, em especial no que se refere à fixação do limite das despesas administrativas em
até 15% do total de valor captado, quando antes era de 100% – ou seja, as despesas administrativas não mais poderão
ser custeadas com recursos incentivados.

132 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


incluídos rapidamente na pauta das reuniões de avaliação da comissão. A PF aponta
também que uma servidora da área de avaliação de projetos do ministério teria ainda o
papel de identificar propostas tecnicamente viáveis e repassar as informações aos produ-
tores culturais, que se encarregariam da intermediação. O grupo então cobrava, segundo
o delegado da PF que conduziu as operações, entre 2% a 5% do valor dos projetos.
Embora o caso não envolva a CNIC propriamente e o acontecimento seja até o momento
limitado a um suposto esquema de dimensões limitadas, expôs as dificuldades que a
comissão enfrenta com a terceirização administrativa, recursos humanos e operacionais
insuficientes, e um número muito grande de projetos submetidos à aprovação todos os
anos, fatos que abrem espaços para distorções.
2.3 A Empresa Brasileira de Comunicações (EBC)
A criação da televisão pública mereceu especial destaque no período. As discussões sobre
o tema tiveram importante protagonismo do MinC, que participou do amadurecimento
da idéia ao argumentar pela necessidade de fomento e de criação de condições de difusão
da produção audiovisual alternativa e independente.
A operacionalização da idéia, entretanto, teve na ida de Franklin Martins para a
Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom/PR) seu impulso
decisivo. O jornalista coordenou desde o início de 2007 um grupo de trabalho formado
por representantes dos Ministérios da Cultura, do MEC e do Ministério das Comuni-
cações, que discutiram os modelos de financiamento, de gestão e de operação em rede.
A Lei no 11.652, de abril de 2008, instituiu os princípios e objetivos dos serviços de
radiodifusão pública, assim como a Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Formada pela fusão da Empresa Brasileira de Comunicações (Radiobrás) e da Associa-
ção Educativa Roquete Pinto (Acerp), ficará na órbita da Secom/PR, tendo como presidente
a jornalista Tereza Cruvinel, e como diretor-geral Orlando Senna, ex-secretário do audio-
visual no MinC. Mesmo com esta vinculação governamental, a empresa terá autonomia
na definição da programação e na distribuição de conteúdos. Terá sua sede em Brasília e
um escritório regional no Rio de Janeiro, onde se darão a produção e o gerenciamento
audiovisuais. A EBC abrigará uma rede de rádios e a Agência Brasil, com quadro de pessoal
composto também por funcionários da Radiobrás e por outros cedidos pela Acerp.
A EBC deve seguir os princípios da complementaridade entre sistemas privado,
público e estatal: da promoção do pluralismo de fontes de produção e distribuição de
conteúdos, da não-discriminação, da autonomia em relação ao governo, e da participação
da sociedade civil. A empresa obedece aos seguintes principais objetivos, entre outros:
oferecer mecanismos para o debate público sobre temas relevantes; desenvolver a cons-
ciência crítica; garantir o direito à informação, à expressão do pensamento, à criação e
à comunicação; cooperar com processos educacionais; expandir a produção audiovisual
nacional; e promover a inclusão e a exibição de produções regionais, independentes.
O orçamento anual de R$ 350 milhões, provenientes do Orçamento Geral da
União, poderá ser suplementado por outras fontes, como venda de programas, licencia-
mento de marcas, doações, publicidade institucional, prestação de serviços e recursos dos
mecanismos de incentivos fiscais culturais vigentes. A lei de criação também instituiu,
em seu artigo 32, a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, devida por
prestadoras de serviços de radiodifusão (serviço móvel celular, serviço móvel especializa-
do, fibras óticas, TV por assinatura, repetição e retransmissão de televisão, radiodifusão
sonora em ondas médias, curtas e freqüência modulada, entre inúmeros outros).

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 133


A empresa contará com duas grandes estruturas: o Conselho de Administração e
a Diretoria Executiva – esta última é formada por um Conselho Fiscal e um Conselho
Curador. O Conselho de Administração será formado por cinco membros – indica-
dos respectivamente pela Secom/PR, pelo Ministério do Planejamento, Orçamento
e Gestão, pelo Ministério das Comunicações, pelos funcionários da empresa, e pelo
diretor-presidente da Diretoria Executiva. O Conselho Curador tem natureza consultiva
e deliberativa e é composto por 22 integrantes: quatro ministros de Estado, um repre-
sentante da Câmara e outro do Senado, um representante dos funcionários da EBC e
15 representantes da sociedade civil.
A nova estrutura passou a ser peça de política cultural de fundamental importância.
O desenho do conjunto de ações ainda está em processo de gradativa consolidação e
envolve a difícil construção de uma rede de emissoras associadas. No quadro da grande
heterogeneidade jurídica e política que caracteriza o setor, a proposta é oferecer um
canal para transmissão da produção audiovisual independente e regional, com conteú-
dos educativos, culturais e formativos. Por ora, a emissora funciona basicamente com
produções e programação da Radiobrás, da TVE e da TV Cultura, mas o objetivo é
estabelecer programação própria e formar a Rede Nacional de Comunicação Pública,
com cooperação e colaboração de entidades públicas e privadas.
Essa configuração assegura o caráter público da televisão. Entretanto, vale registrar
que a indicação de “notáveis” para o Conselho Curador tem sido criticada por entidades
do setor, que apontam a necessidade de aperfeiçoamento dos mecanismos de escolha e
representação no colegiado. De igual maneira, levantam-se dúvidas sobre o funciona-
mento de canais de interlocução com a sociedade e com o público.
3 Acompanhamento da política e dos programas
Comparações com experiências de outros países permitem afirmar que as políticas cul-
turais buscam cumprir diferentes finalidades. Em primeiro lugar, orientar o conjunto
da sociedade para que seja capaz de apreciar obras consagradas e legítimas, por meio de
estratégias para o aumento de tais práticas. Em segundo lugar, desenvolver a expressão
das culturas populares autônomas como um sistema de legitimidades alternativas, ou
estabelecer, nas instituições culturais, dispositivos que promovam a diversidade e esti-
mulem produções, estilos e consumos periféricos – ou mais relacionados ao popular.
Em terceiro lugar, estimular o diálogo e a constante interação entre a criação artísti-
ca e as demais produções culturais. As fronteiras não são estabelecidas a priori, mas
importa abolir as segmentações das práticas e dos gostos em “elitistas” e “populares”.
Finalmente, registre-se aqui ainda uma quarta finalidade, que é tratar a cultura como
um recurso que absorve outras dimensões, por participar da promoção da qualidade
de vida, da geração de bens e renda, e também da possível – e desejável – reconfigução
de sociabilidades.
A avaliação de cada um desses objetivos é demasiado complexa, em especial por
exigir a explicitação clara de seus limites e das relações entre eles. Ademais, esses mesmos
objetivos são, em geral, enunciados de forma confusa pelos gestores públicos: a síntese
teórica e política, dada sua diversidade, nem sempre é possível no quadro das ações con-
cretas, nas quais os atores envolvidos conferem diferentes pesos aos diferentes problemas.
Com base neste cenário, vale primeiramente descrever aqui algumas das características
gerais da área cultural no Brasil, para que se possa ter a dimensão do seu dinamismo e
de sua importância nos processos econômicos e sociais.

134 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


O setor cultural brasileiro é caracterizado por um intenso dinamismo e, ao mesmo
tempo, por profundas iniqüidades de acesso a bens e a recursos de produção simbólica.
Inúmeras estatísticas e indicadores demonstram à exaustão os dois aspectos. O setor
respondia em 2002 por 3,6% dos empregos no mercado de trabalho, sendo que 2,1%
das ocupações eram estritamente culturais. Em 2006 esta participação subiu para 4% e
2,2%, representando 3,3 milhões e 1,9 milhão de pessoas, respectivamente. O salário
médio no setor é cerca de 22% maior do que a média geral, e a massa salarial chega a
atingir 7% do total medido em 2006 pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-
lios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE). Estes números são
próximos aos de outros países de grande tradição cultural, o mesmo valendo para o
consumo cultural, que no Brasil representa 3% do consumo das famílias – índice simi-
lar ao observado na França e nos Estados Unidos, embora os itens considerados variem
ligeiramente nas metodologias locais, assim como os números absolutos sejam muito
díspares em função das características destas economias.
O caso brasileiro apresenta peculiaridades. As regiões e municípios convivem com
profundas desigualdades no que se refere ao acesso a bens e serviços culturais, tanto
entre si quanto internamente. O mesmo cenário de desigualdades de acesso a tais bens
entre famílias e indivíduos, que têm probabilidades muito reduzidas de desfrutar ou
até de produzir bens culturalmente relevantes. O número de municípios acima de 100
mil habitantes chega a pouco mais de 200 (ou 4% do total), e concentra 74% do con-
sumo cultural. E, embora 67% dos domicílios brasileiros tenham realizado algum tipo
de consumo cultural em 2000, apenas 8,4% o fizeram para promoção de espetáculos.
O consumo de bens culturais relacionados à produção audiovisual é o carro-chefe do
consumo cultural – note-se que o setor envolve recursos e apoio públicos, mas sua
dinâmica deriva fundamentalmente, até o momento, das empresas privadas.
É possível colocar aqui que os esforços das políticas culturais (MinC, secretarias
estaduais e municipais de Cultura) são efetivamente desfrutados por poucos. São voltados
especialmente para as artes, com iniciativas importantes, mas pontuais relativamente
às culturas populares, tradicionais e comunitárias. Tais esforços contam com poucos
mecanismos que estabeleçam diálogos entre as diversas formas de expressão e produção
simbólica, assim como com poucos resultados em áreas de baixo desenvolvimento social.
De qualquer maneira, há que se considerar as iniciativas que se desenvolvem em cada
um destes pontos. Por isso ocupa-se esta seção de descrever, de forma sintética, algumas
das características e resultados das ações federais em 2007.
As ações do MinC são organizadas em programas, com um responsável institucional,
que podem ser implementados mediante parcerias. Todos têm enunciados que apontam
os problemas a serem resolvidos ou minimizados ou que indicam oportunidades de ação.
O denominador comum entre estes enunciados é dinamizar a cultura como dimensão
da cidadania, ou seja, de democratização de capacidades de produção e fruição cultural,
e de reconhecimento da diversidade.
O MinC incentiva a produção artística em suas diversas modalidades por intermédio
do Programa Engenho das Artes. O ministério também conduz programas patrimoniais
(Monumenta, Brasil Patrimônio Cultural, Museu, Memória e Cidadania e Livro Aberto),
um programa para valorização da diversidade cultural (Programa Identidade e Diversidade
Cultural – Brasil Plural) e outro para dinamizar a economia da cultura (Desenvolvimento
da Economia da Cultura – Prodec). Desenvolve ainda o Programa Cultura, Educação

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 135


e Cidadania, que apóia, valoriza e dinamiza as culturas tradicionais e comunitárias,
paralelamente à promoção da sua articulação com meios modernos e tecnológicos de
produção e difusão cultural.
Outros ministérios e órgãos também consagram recursos ao domínio cultural. São
exemplos o Ministério da Justiça, ao qual está vinculada a Fundação Nacional do Índio
(Funai), responsável pelo Museu do Índio e pelos Pontos de Cultura4 instalados em
comunidades indígenas; o Ministério da Educação, com a Fundação Joaquim Nabuco;
e a Presidência da República, com o Arquivo Nacional – e, agora, a Empresa Brasil de
Comunicação (EBC).
Os programas organizam as ações do governo. O quadro 1 sintetiza as características
dos programas do MinC, assim como os problemas que enfrentam.
QUADRO 1
Programas do MinC – problemas e instrumentos de gestão (PPA 2004-2007)
Nome do
Objetivos Problemas
programa
Ausência do hábito de leitura
Estimular o hábito da leitura, facilitan- Escassez de bibliotecas públicas em áreas carentes
do o acesso às bibliotecas públicas, e Bibliotecas em número insuficiente e mal distribuídas
Livro Aberto propiciar a produção e a difusão do Necessidade de treinamento de pessoal no que se refere a pessoal capacitado na área
conhecimento científico, acadêmico Necessidade de modernização de serviços e atualização de acervos
e literário. Insuficiência das ações de formação e capacitação para a leitura e para a valorização
da multiplicidade e complexidade das práticas de leitura
Ausência de regulação do mercado nacional
Ampliar a produção, a difusão, e a Pequena abrangência do parque exibidor
exibição, a preservação e o acesso Número reduzido de cópias dos filmes nacionais
Brasil, Som e
às obras audiovisuais brasileiras, e Pequeno acesso do público a filmes nacionais
Imagem
promover a auto-sustentabilidade da Número reduzido de freqüentadores potenciais de cinema
indústria cinematográfica. Número de cinemas insuficiente e distribuição realizada por grandes empresas1
Freqüência reduzida ao cinema e inexistência de ações específicas que facilitem o acesso
Ausência de estratégias de organização e potencialização do financiamento aos museus
Revitalizar os museus brasileiros e
Espaços museológicos em situação precária de conservação
fomentar a criação de novos institutos
Museu, Memória Necessidade de revitalização e modernização dos museus brasileiros
de memória, aumentando o acesso da
e Cidadania Baixa valorização das coleções que são representativas das várias experiências cultu-
população a esses produtos culturais
rais vividas pelas sociedades e comunidades em território brasileiro
nas diversas regiões do país.
Hábito muito reduzido de freqüentar museus
Ampliar e garantir o acesso das comu- Ausência de espaços culturais comunitários que permitam o desenvolvimento de
nidades mais excluídas do usufruto de capacidades e habilidades no manuseio de diferentes linguagens artísticas
Cultura, Educa-
bens culturais aos meios de fruição, Ausência de espaços culturais que permitam o acesso da população à criação de
ção e Cidadania
produção e difusão das artes e do produtos, à elaboração de processos relacionados à cultura, e ao desenvolvimento de
patrimônio cultural. habilidades em linguagens artísticas
Ausência de ações sistemáticas de valorização das artes e da cultura brasileira, bem
Engenho das Aumentar a produção, a difusão e o como de formação do gosto para apreciação destas manifestações artísticas
Artes acesso da população às artes. Reduzida preocupação com a formação profissional para as artes
Reduzida freqüência da população ao espetáculo ao vivo
Ausência de ações amplas de valorização da cultura afro-brasileira e invisibilidade
Cultura Preservar e promover a cultura e o
desta cultura nas instâncias formadoras da educação nacional e da opinião pública
Afro-Brasileira patrimônio afro-brasileiros.
Forte preconceito e pronunciadas desigualdades étnicas
Garantir que grupos e redes de
produtores culturais, responsáveis por
manifestações características da diver- Ausência de ações sistemáticas de valorização e promoção do direito de expressão das
Identidade e sidade, tenham acesso a mecanismos diferenças culturais e das identidades
Diversidade de apoio, promoção e intercâmbio Forte preconceito no que se refere à orientação sexual, ao gênero e á origem étnica
Cultural cultural entre regiões e grupos, Grandes desigualdades étnicas, de gênero e culturais2
considerando identidades de gênero,
orientação sexual, grupos etários,
étnicos e da cultura popular.
Revitalizar o patrimônio cultural em Insuficiência das ações setoriais para promover a sustentabilidade dos centros urbanos
Monumenta centros urbanos, criando condições Limitação das ações e instrumentos do poder público na intervenção no cenário urbano
para sua sustentabilidade. Limitação da atuação do programa a 26 centros históricos3
(continua)

4. Os Pontos de Cultura, conforme será visto mais adiante nesta seção, são unidades de recepção e disseminação de bens
culturais em comunidades que se encontram à margem dos circuitos culturais e artísticos convencionais.

136 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


(continuação)
Nome do
Objetivos Problemas
programa
Preservar e revitalizar o patrimônio Exigência de ampliação de recursos e redesenho das estratégias institucionais para
Brasil Patrimônio brasileiro, tanto o edificado quanto enfrentamento dos problemas de abrangência nacional do programa
Cultural o imaterial, abrangendo os sítios Insuficiência dos recursos institucionais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
arqueológicos. Nacional (Iphan)
Desenvolvimento Fortalecer as cadeias produtivas da cul-
Baixo aproveitamento do potencial das cadeias produtivas como geradoras de bem-
da Economia da tura (audiovisual, música, artes cênicas,
estar, oportunidades, renda e desenvolvimento
Cultura festas populares etc.).

Fontes: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP) e Ministério da Cultura (MinC).


Elaboração: Diretoria de Estudos Sociais do Ipea (Disoc/Ipea).
Notas: 1 Algumas dessas empresas investem no filme e depois o distribuem com recursos da renúncia fiscal.
2
Esse é um programa de viés intersetorial, e as ações orçamentárias são nitidamente insuficientes para fazer frente aos problemas apontados.
3
Além disso, segundo a gerência do programa, apenas 20,6% das metas de obras estavam concluídas ou em fase de execução.

Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva


Entre os programas desenvolvidos pelo MinC, destaca-se o Cultura, Educação e
Cidadania – Cultura Viva. O programa objetiva contribuir tanto para o enfrentamento
de problemas relativos às carências de instrumentos e estímulos para produção e circu-
lação da expressão da cultura local, como do isolamento das comunidades em relação
às novas tecnologias e aos instrumentos de produção e educação artístico-culturais.
Implantado em 2004, envolve um conjunto de ações distribuídas em cinco eixos:
Pontos de Cultura, Cultura Digital, Agentes Cultura Viva, Griôs – Mestres dos Saberes, e
Escola Viva. Os Pontos de Cultura, eixo central do programa, são, conforme adiantado
aqui, unidades de recepção e disseminação de bens culturais em comunidades que se
encontram à margem dos circuitos culturais e artísticos convencionais. A proposta visa
estimular iniciativas preexistentes, por meio de transferência de recursos e da doação
de kits de cultura digital (equipamentos de informática, câmeras, kit multimídia e uma
pequena ilha de edição) que permitem que cada Ponto de Cultura esteja apto a realizar
sua própria produção audiovisual. Além disso, estes kits farão interligação em rede, via
internet banda larga, contribuindo para abrir um canal de comunicação direta entre as
ações do poder público e as ações da comunidade, e destas entre si.
Os Pontos de Cultura, Pontões e Redes estão localizados em 270 municípios dis-
tribuídos em todas as Unidades da Federação. Em 2007 foram apoiados 742 espaços
culturais, entre os quais 195 Pontos de Cultura implantados nas 28 redes conveniadas
entre o MinC, estados e municípios. Encontram-se em vigência 504 convênios com
entidades sem fins lucrativos. Também foram instalados 43 Pontões de Cultura, alcan-
çando 17 estados. A implementação da ação Griô - Mestres dos Saberes ofereceu apoio a
250 pessoas de 50 Pontos de Cultura, enquanto a ação Cultura Digital abrangeu 1.390
pessoas por meio da realização de 37 oficinas ocorridas em 117 Pontos de Cultura.
Apesar do êxito do programa, sua gerência assinala diversos problemas referentes à
inexistência de estruturas formais adequadas. Em primeiro lugar, destaca o fato de que
apenas 38% do quadro de pessoal envolvido diretamente com a gestão do programa
é composto por servidores. Enfatiza que a alta rotatividade dos quadros terceirizados
dificulta a criação de uma rotina que domine os procedimentos de forma qualificada.
Também aponta dificuldades na celebração de convênios, em especial pelas interpretações
divergentes de normas, inadimplência dos proponentes ou não atendimento de docu-
mentação obrigatória. Por fim, uma das questões levantadas pela gerência é a inexistência
de norma legal que fundamente especificamente o relacionamento do Estado brasileiro
com entidades da sociedade civil com baixo nível de organização/institucionalização.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 137


Brasil Som e Imagem
A política do audiovisual, mediante o Programa Brasil Som e Imagem, tem por
meta aumentar a participação do cinema nacional no mercado interno – ampliando a
produção, a difusão, a exibição, a preservação e o acesso às obras audiovisuais brasileiras
– e promover a auto-sustentabilidade da indústria cinematográfica. A abertura de novas
frentes resultou no fomento a projetos de curtas-metragens, roteiros e documentários
orientados para públicos estratégicos – como o infanto-juvenil – e para regiões do país
sem tradição de expressão audiovisual. Em 2007 o programa deu continuidade ao DOC
TV, à Programadora Brasil e ao lançamento de editais, cujos recursos começam a ser
disponibilizados em 2008. Além de problemas resultantes do fluxo de recursos que pre-
judicam a programação e a articulação de parcerias, os gestores apontaram que a falta de
pessoal técnico compromete a instauração de processos de acompanhamento qualificado
do programa e sobrecarrega o exíguo quadro disponível.5 Outro problema recorrente
em alguns programas do MinC e no do audiovisual em particular são as dificuldades
dos processos licitatórios e da celebração de contratos. Contudo, segundo a gerência
do programa, estes foram superados por meio do desenvolvimento do Projeto Setorial
Integrado de Promoção de Exportação da Indústria Brasileira de Audiovisual, realizado
em parceria com a Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), que
teve um desempenho positivo e foi capaz de realizar articulações e parcerias efetivas.
O Livro Aberto
Um dos objetivos centrais do Programa Livro Aberto é estimular o hábito da leitura,
facilitando o acesso das pessoas às bibliotecas públicas e propiciando a produção e a
difusão do conhecimento científico, acadêmico e literário. Suas principais iniciativas são
na direção de zerar os municípios sem biblioteca e modernizar as existentes. Embora a
criação de bibliotecas seja necessária para configurar condições de acesso, não é em si
suficiente para estimular o hábito da leitura, e nesse sentido o programa carece de outras
estratégias para alcançar seus objetivos. Pesquisas recentes mostram que mesmo com a
presença de bibliotecas em um universo significativo de municípios, apenas 66% dos
brasileiros sabem da sua existência, e somente 10% as freqüentam assiduamente.6
As ações de instalação de bibliotecas, pelo MinC e por demais instituições públicas
estaduais e municipais ou privadas, implicaram melhoria do índice de cobertura de biblio-
tecas, que em 2000 era de uma biblioteca de acesso público para 34 mil habitantes, e em
2007 é de uma biblioteca para cada 26 mil habitantes. Com relação à ação de instalação
de bibliotecas públicas nos municípios, em 2007 foram adquiridos kits compostos de
acervo bibliográfico contendo 1.828 títulos, mobiliários, equipamentos de informática
e equipamentos de imagem e som para o estabelecimento de 300 bibliotecas. No final
de 2007, 94,1% dos municípios brasileiros já tinham pelo menos uma biblioteca. Para
2008, estão previstos recursos para a instalação de 328 bibliotecas públicas, zerando,
assim, o déficit de municípios brasileiros sem biblioteca pública.
O patrimônio histórico material e imaterial
As iniciativas referentes ao patrimônio histórico material e imaterial distribuem-se por
três Programas: Brasil Patrimônio Cultural, Monumenta, e Museu, Memória e Cidadania.

5. Como a disponibilidade de cargos (DAS) não atende às demandas, o MinC solicitou ao Ministério do Planejamento, Orça-
mento e Gestão, em 2007, uma reestruturação dos quadros para suprir carências tanto nas equipes executoras quanto nas
de gerência.
6. Ver: Retratos da Leitura no Brasil, Instituto Pró-livro, 2008.

138 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Este conjunto de programas e suas ações está focado na preservação e recuperação
do patrimônio histórico e artístico brasileiro e na manutenção das estruturas físicas e
operacionais dos museus do país. O Programa Museu, Memória e Cidadania objetiva
revitalizar os museus brasileiros e fomentar a criação de novos institutos de memória,
aumentando o acesso da população a estes produtos culturais nas diversas regiões do
Brasil. No âmbito das ações do programa realizou-se em 2007 a 5a Semana Nacional
de Museus, com o tema Museus e patrimônio universal, quando se promoveram mais
de 1.400 eventos culturais em todo o país com envolvimento de mais 460 instituições.
Outro destaque na área foi a realização do 1o Encontro Ibero-Americano de Museus,
que contou com a presença de responsáveis pelas políticas museológicas de 22 países e
resultou na instituição de 2008 como o Ano Ibero-Americano de Museus e na proposta
de criação da Rede Ibero-Americana de Museus e do Programa Ibermuseus (articulação
das instituições museológicas dos países ibero-americanos).
Entre as iniciativas do Estado brasileiro para a valorização do seu patrimônio his-
tórico urbano, sobresssai o Programa Monumenta. Tem como objetivos preservar áreas
prioritárias do patrimônio histórico, arquitetônico e artístico urbano sob proteção fe-
deral, promover a conscientização da população brasileira acerca deste patrimônio, bem
como aperfeiçoar a sua gestão, estabelecer critérios para implementação de prioridades
de conservação e aumentar a utilização econômica, cultural e social das áreas de projeto.
Constituem seu objeto 26 municípios brasileiros, com a classificação de 892 imóveis
considerados patrimônio histórico, artístico ou arquitetônico. O programa tem inves-
tido desde seu início em processos de municipalização da gestão dos bens patrimoniais,
mediante ações em parceria, de modo que os patrimônios urbanos, artísticos e históricos
de diversas cidades brasileiras sejam revitalizados e em seguida passem à supervisão das
municipalidades, com a participação e responsabilidade do poder federal, por intermé-
dio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em 2007, foi
concedido apoio financeiro a municípios com sítios históricos para desenvolverem coor-
denadamente instrumentos de política urbana e diretrizes de preservação do patrimônio
cultural, tendo sido contemplados 15 municípios que elaboraram seus Planos Diretores
Municipais. Segundo a gerência do programa, foram bons os resultados alcançados,
apesar do enfrentamento de problemas referentes à situação de inadimplência de estados
e municípios, um dos maiores empecilhos para o desenvolvimento das ações.
Para aumentar e eficácia desse conjunto de ações, foi implementada nova estrutura
administrativa do Iphan, tendo sido criados departamentos especializados em temáticas
como planejamento em museus, patrimônio material e imaterial, e instalados seis novas
superintendências regionais e sete escritórios técnicos. Isto permitiu ampliar o alcance
das ações do instituto e fortalecer sua atuação no território nacional, sedimentando os
pilares de uma política pública de longo prazo para o setor. Também prosseguiram as
movimentações para a consolidação do Sistema Brasileiro de Museus (SBM), tendo sido
obtida a aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei no 7.568/2006, que institui
o Estatuto dos Museus e prevê normas de preservação, conservação, restauração e segurança
dos bens artísticos. O projeto ainda passará por discussões no Senado Federal.
Programa de Desenvolvimento Econômico da Cultura (Prodec)
Em 2007 também teve início a implementação do Programa de Desenvolvimento
Econômico da Cultura (Prodec), uma importante iniciativa do MinC no sentido de
incentivar e regulamentar as cadeias produtivas dos setores culturais. O programa tem
como estratégia o estabelecimento de convênios com iniciativas sociais que estimulem

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 139


cadeias produtivas carentes de organização e orientação empresarial. As ações empreen-
didas buscam capacitar e qualificar os projetos para que valorizem o desenvolvimento
sustentável e protejam os sistemas simbólicos implicados nas cadeias econômicas e
arranjos produtivos na área cultural. Foram selecionadas para ser objeto de fomento
e participação nas ações do programa instituições com histórico reconhecido na
realização de feiras de negócios e de festivais e na promoção do artesanato tradicional.
Em 2007, o Prodec capacitou 70 comunidades representativas de pólos de produção
de artesanato, envolvendo 1.400 artesãos, 80 agentes locais e 27 servidores estaduais.
Realizou a Feira de Música do Brasil, apoiando 72 empreendimentos, 450 reuniões e
movimentando negócios da ordem de R$ 8 milhões.
O Engenho das Artes
O Programa Engenho das Artes representa o principal instrumento das políticas de
ampliação do acesso da população aos benefícios da arte e cultura. Por acolher diversos
segmentos culturais simultaneamente, suas ações apóiam as expressões da música, do
teatro, da dança, do circo e das artes visuais, e visam atender ao amplo universo da
diversidade brasileira. As iniciativas do programa contam com parcerias de governos
estaduais, prefeituras, organizações do setor cultural, empresas estatais e empresas
privadas. O programa consolida o apoio a projetos ou realiza estratégias de circulação
de espetáculos pelas cidades brasileiras. São políticas de oferta que procuram organizar
as inúmeras iniciativas artísticas dos vários segmentos em linhas de ação que ofereçam
oportunidades de fruição a um grande número de pessoas e de reconhecimento público
aos produtores. O principal problema aqui é que muitos artistas que não têm apoio
da mídia e dos meios de comunicação de massa encontram dificuldade de inserção
nos circuitos de fruição e difusão cultural. Esta também é dificultada pelos custos de
deslocamento, infra-estrutura inadequada e falta de mão-de-obra local especializada.
Dessa forma, as artes encontram um contexto pouco receptivo e informado sobre sua
natureza e características, o que dificulta a sua compreensão e causa estranhamento,
sobretudo quanto às artes visuais, à música erudita e à ópera, quando não até reduz a
diversidade e riqueza culturais.
Execução financeira e orçamentária dos programas
Como já se anunciou na apresentação, os gestores culturais do governo federal
apontam duas dificuldades críticas para o desenvolvimento dos programas e, por ex-
tensão, das políticas culturais. A primeira delas é a questão do financiamento, e a outra,
a dos recursos humanos. Por isso será descrito nesta seção o aspecto orçamentário do
financiamento federal desde 2005, e depois qualificada, em linhas gerais, a questão dos
recursos humanos no MinC.
A tabela 1 apresenta o desempenho e a evolução financeira dos programas do MinC.
O orçamento do órgão correspondeu a aproximadamente R$ 824 milhões em 2007.
Este valor é 40% maior em termos reais com relação a 2005. O aumento se deu em
todos os programas, à exceção do Livro Aberto, cujo orçamento foi reduzido em 22%.
Entretanto, o nível de execução financeira global apresenta oscilações: era de 80,9% em
2005, de 83,9% em 2006, e caiu para 76,4% em 2007.
O comportamento da execução dos programas finalísticos é variável. Destaquem-se
negativamente aqueles que tiveram execução inferior à média do ministério. Nos três
anos analisados, isto ocorreu com os Programas Identidade e Diversidade Cultural – Brasil
Plural e Livro Aberto, e em dois destes três anos, com os Programas Brasil Patrimônio

140 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Cultural, Cultura Afro-Brasileira e Monumenta. O Programa Desenvolvimento da Eco-
nomia da Cultura, criado em 2007, despendeu R$ 9,5 milhões, com nível de execução
de 89,7%. Note-se também a importância que ganhou o Programa Cultura, Educação e
Cidadania, que representou 28,7% dos dispêndios finalísticos do MinC em 2007.
TABELA 1
Execução financeira dos programas do MinC e outros itens selecionados (2005, 2006 e 2007)
(Em R$ milhões)
2005 2006 2007
Ministério Nível de Nível de Nível de
da Cultura % % %
Liquidado execução Liquidado execução Liquidado execução
do total do total do total
(%) (%) (%)
Total 585,5 100,0 80,9 684,7 100,0 83,9 823,9 100,0 76,4
Brasil Patrimônio Cultural 30,6 5,2 63,0 36,7 5,4 71,2 42,0 5,1 81,1
Livro Aberto 35,4 6,1 76,3 11,7 1,7 62,6 27,6 3,4 68,6
Brasil, Som e Imagem 56,0 9,6 91,7 60,8 8,9 85,8 95,6 11,6 69,3
Museu Memória e Cidadania 21,9 3,7 96,1 27,9 4,1 90,1 28,8 3,5 96,0
Cultura Afro-Brasileira 10,1 1,7 58,5 11,1 1,6 80,2 20,4 2,5 93,4
Monumenta 40,9 7,0 80,2 58,3 8,5 79,3 69,4 8,4 91,3
Cultura, Educação e Cidadania 58,1 9,9 79,3 47,2 6,9 89,5 126,6 15,4 79,8
Engenho das Artes 80,5 13,7 63,3 111,2 16,2 71,9 81,7 9,9 42,5
Identidade e Diversidade Cultural-Brasil
4,8 0,8 89,3 4,5 0,7 78,5 6,0 0,7 85,8
Plural
Desenvolvimento da Economia da Cultura
- - - - - - 9,5 1,2 89,7
(Prodec)
Subtotal despesas finalísticas 338,4 57,8 74,7 369,5 54,0 78,2 507,7 61,6 69,9
Apoio administrativo 135,7 23,2 88,9 192,9 28,2 97,9 209,2 25,4 92,2
Op. esp.: cumprimento de sentenças
1,6 0,3 100,0 9,8 1,4 93,3 1,8 0,2 100,0
judiciais
Op. esp.: serv. da dívida externa (juros e
2,5 0,4 76,4 3,3 0,5 99,9 4,5 0,5 94,9
amort.)
Gestão da política de cultura 57,8 9,9 92,3 37,8 5,5 84,0 28,9 3,5 83,5
Gestão da participação em organismos
0,5 0,1 63,2 0,6 0,1 71,1 0,5 0,1 63,9
internacionais
Previdência de inativos e pensionistas da
49,1 8,4 98,1 70,9 10,3 98,7 71,3 8,7 94,8
União
Subtotal despesas não- finalísticas 247,1 42,2 91,2 315,2 46,0 91,9 316,2 38,4 90,0
Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal/Secretaria do Tesouro Nacional (Siafi/STN).
Elaboração: Disoc/Ipea.

A organização atual dos programas do PPA permite que algumas despesas não finalís-
ticas sejam alocadas nos vários programas do MinC, mas a disposição da tabela 1 possibilita
a visualização da estrutura geral de despesas do ministério classificadas como despesas
finalísticas e despesas não-finalísticas. Como se constata, os programas tomam mais da
metade das despesas e chegam em 2007 a 61,6% do total, um aumento real de 50% em
relação a 2005, enquanto as despesas não-finalísticas aumentaram menos (28%).
A tabela 2 apresenta a execução do MinC por natureza de despesa e modalidade de
aplicação. Destaque-se o aumento significativo de gastos com pessoal e encargos (61%) e
das transferências (66%). Entre estas, chama atenção o comportamento das transferências
para outras esferas de governo: as detinadas a estados e Distrito Federal sobem de R$ 17,9
milhões em 2005 para R$ 84 milhões em 2007 (quase 4 vezes maior) e as transferências
para os municípios começam com quase R$ 35 milhões em 2005 para atingir em 2007
o montante de R$ 73,7 milhões. As transferências para instituições privadas, por sua
vez, são as mais significativas, tendo chegado em 2007 a R$ 117,6 milhões.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 141


TABELA 2
Execução orçamentária do MINC, segundo os grupos de natureza da despesa e modalidades de
aplicação (2005, 2006 e 2007)
2005 2006 2007
Nível de Nível de Nível de Variação
Órgãos selecionados Liquidado % do Liquidado % do Liquidado % do
execução execução execução 2007/2005
(c) total (g) total (K) total
(%) (d=c/b) (%) (h=g/f) (%) (L=K/J)
Ministério da Cultura 585.498 100,0 80,9 684.743 100,0 83,9 823.885 100,0 76,4 40,7
Aplicações diretas 400.688 68,4 89,7 472.452 69,0 87,3 516.700 62,7 85,2 29,0
Pessoal e encargos sociais
148.302 25,3 88,8 228.805 33,4 97,7 238.724 29,0 92,0 61,0
(ativos, inativos e pensionistas)
Outras despesas 252.386 43,1 90,2 243.647 35,6 79,4 277.976 33,7 80,2 10,1
Juros e encargos da dívida 1.139 0,2 71,5 1.302 0,2 100,0 1.568 0,2 95,9 37,7
Outras despesas correntes 236.900 40,5 91,3 217.156 31,7 79,5 235.629 28,6 81,7 -0,5
Investimentos 12.912 2,2 76,1 22.204 3,2 76,0 22.318 2,7 58,7 72,9
Inversões financeiras 52 0,0 74,8 983 0,1 74,6 15.521 1,9 99,9 29498,7
Amortização da dívida 1.382 0,2 81,0 2.001 0,3 99,9 2.940 0,4 94,4 112,7
Transferências 184.810 31,6 71,9 212.291 31,0 83,1 307.185 37,3 71,0 66,2
Transferências à União - - - - - - - - - 0,0
Transferências a estados e ao
17.980 3,1 44,8 31.883 4,7 84,4 84.014 10,2 50,4 367,3
Distrito Federal
Transferências a municípios 34.966 6,0 55,2 65.522 9,6 76,5 73.717 8,9 70,3 110,8
Transferências a instituições
90.382 15,4 86,1 88.361 12,9 88,4 117.637 14,3 92,1 30,2
privadas
Transferências a instituições
11.996 2,0 98,7 9.764 1,4 71,5 13.098 1,6 95,3 9,2
privadas com fins lucrativos
Transferências ao exterior 29.487 5,0 81,0 16.761 2,4 91,2 18.719 2,3 96,1 -36,5
A definir - - - - - - - - - -
Fonte: Siafi/STN.
Elaboração: Disoc/Ipea.

Mesmo com esse amplo rol de programas e ações e com o aumento significativo
de recursos financeiros, há muitas dificuldades, por exemplo, para que as intervenções
públicas incluam atores institucionais de diferentes áreas e especialidades, a exemplo
daqueles encarregados da reorganização dos espaços urbanos e que podem prever os
lugares adequados para os equipamentos culturais de convívio; ou dos agentes da edu-
cação, que podem formar demandantes e produtores simbólicos competentes a partir
do ensino/aprendizagem das diversas tradições das artes; e também de outros, como
os produtores de imagem e som, capazes de realizações que enriqueçam o repertório
simbólico e informativo da população.
Para a efetividade desses processos de construção política são necessários, além de
mecanismos de planejamento intersetorial e de marcos regulatórios claros, instrumentos
de participação consolidados para decidir a respeito de diretrizes, prioridades e aloca-
ção estratégica de recursos. Pode-se dizer que o ministério repousa suas ações nos três
primeiros objetivos citados no início desta seção, quais sejam: i) orientar o conjunto da
sociedade para que seja capaz de apreciar obras consagradas e legítimas, ii) desenvolver
as expressões das culturas populares autônomas, promovendo-as e estabelecendo-as
como um sistema de legitimidades alternativas; e iii) estimular a criação artística para
o enriquecimento das demais produções culturais em diálogo e interação constante.
Embora se toque discursivamente em um quarto objetivo, relacionando a cultura com
questões do desenvolvimento e como recurso para aumento da qualidade de vida, não
se dispõe de mecanismos claros para uma atuação efetiva em relação a este objetivo.
No entanto, a referência no discurso oferece um horizonte interessante para diálogos
com parceiros e atores que desenvolvam crenças na mesma direção. Por sua vez, os pro-
gramas existentes já contribuem de alguma forma para o enriquecimento do repertório
cultural no Brasil.
Em termos da construção de políticas culturais abrangentes, deve-se ressaltar que
um dos esforços centrais do atual governo foi a realização de concursos e o fortalecimento

142 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


institucional pela reposição de pessoal. Este objetivo foi claramente reconhecido
pelo MinC. No entanto, a realização de concurso pelo órgão gerou certas surpresas.
Antes de comentá-las, assinalem-se algumas das tendências gerais do MinC no que se
refere aos seus recursos humanos.
Depois de uma linha constante de perda de força de trabalho entre 1997 e 2003,
experimentou-se um esforço de reposição de pessoal a partir de 2004. A realização de
concursos e o aumento do quadro de recursos humanos denotava e denota a preocupa-
ção com o fortalecimento institucional do MinC. A comparação entre 2003, quando o
número de servidores foi o menor do período (2.391), e 2007, quando chega a 2.976,
mostra o aumento de 585 novos servidores, significativo para a pasta.
Ainda assim deve-se considerar que esse número é apenas 4% superior ao de 1997
(132 pessoas a mais), em um contexto de ampliação significativa dos objetivos políticos
do MinC e de redefinição de suas estratégias, cada vez mais exigentes em termos de
qualificação e capacidades de recursos humanos. Os gestores públicos da área referem-se a
estas deficiências como uma das questões centrais. Para corroborar esta idéia é necessário
registrar que todas as avaliações internas do Plano Plurianual do MinC, realizadas pelos
próprios gestores, apontam invariavelmente para a insuficiência de recursos humanos,
tanto em quantidade como em qualidade.
As soluções que vêm sendo dadas para a carência de pessoal são, de certa forma,
paliativas. Recorre-se à terceirização, à contratação de consultorias, ao uso de cargos de
confiança e, ainda, de estagiários. Nos últimos anos foi possível a realização de concursos
para a expansão do quadro de servidores do MinC. Todavia, parte dos empossados não
permaneceu no órgão, sobretudo, devido ao desestímulo conseqüente dos baixos salários.
Das 51 vagas oferecidas e distribuídas por cargos (técnicos em assuntos culturais, educa-
cionais, comunicação social, arquivologia, biblioteconomia etc.), 43 foram preenchidas,
ou seja, restaram 8 vagas não preenchidas. Ressalte-se também que 45 pessoas desistiram
das suas vagas para ocuparem cargos em outras instituições, demonstrando que a questão
dos recursos humanos envolve outras variáveis, como a existência de carreiras e salários
que ofereçam atrativos, o que não ocorre na área cultural.
A expansão de pessoal se deu por outros mecanismos. A força de trabalho do
Ministério da Cultura é composta, segundo dados da sua Diretoria de Gestão Estraté-
gica (DGE), por apenas 57% de pessoal permanente. Os demais se distribuem entre
terceirizados (18,8%), consultores (1,4%) e estagiários (14,3%), sendo o restante com-
posto por diversos vínculos. Outra parte é formada por Cargos em Comissão (DAS).
Estas vias de expansão de quadros têm sido criticadas pelo Ministério Público por ile-
galidade, e este órgão estabeleceu termos de ajuste para realização de concursos. Abre-se
aí então uma oportunidade de modernização da gestão e valorização dos servidores da
cultura. Convém salientar, entretanto, que tais questões exigem o estabelecimento de
diretrizes adequadas e de decisões que dependem não somente do Ministério da Cultura,
mas também do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
4 Tema em destaque
Cultura como integridade
A existência de políticas culturais não depende necessariamente da presença de um centro
unificado e especializado de decisão e coordenação políticas, mas principalmente da ca-
pacidade de agenciamento da produção simbólica para preencher espaços e necessidades

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 143


políticas ou sociais. Mesmo em contextos de grande fragmentação, as políticas culturais
respondem e reagem de forma coerente com o conjunto de valores das comunidades
em que se inserem – às vezes com divergências com relação a premissas, conceitos e
objetivos, outras vezes com forte convergência. Assim, as políticas se articulam prática
e interpretativamente com crenças, princípios, direitos etc., desenvolvendo resultados
que implicam a reação (positiva ou negativa) às idéias e valores culturais vigentes.
Essa articulação acontece em diferentes âmbitos: na distribuição de recursos de
produção e fruição cultural; na delimitação de objetivos e prioridades governamentais;
nas formas de organização política – mais Estado ou instituições privadas; ou ainda
nos estilos de integração simbólica, via desenvolvimento de burocracias nacionais ou
regionais, no consumo cultural ou no desenvolvimento da autonomia das comunidades
de cultura.
Não há nenhuma regra analítica ou formal que fixe ou delimite prática e definitiva-
mente os âmbitos onde se desenrolam e articulam as crenças comunitárias e os diversos
interesses a elas relacionados. Ao contrário, historicamente o que se vê é a mobilidade
dos atores entre estes espaços significativos. Na verdade, a idéia de cultura ou de polí-
tica cultural é mais geral e abstrata, e permite unificar o que no conjunto das práticas e
objetivos políticos parece impossível. Por exemplo, a tradição de autonomia do campo
artístico é defendida contra o Estado e o mercado, mas a estas instituições são atribuídas
inúmeras exigências, entre deveres e responsabilidades no desenvolvimento das artes.
Há aparentemente algo de ilógico nesta relação, mas, de fato, há acordo sobre conceitos
gerais e contradição em questões específicas. Portanto, o jogo de movimentos é múltiplo
– muitas vezes, contraditório – e os envolvidos reconhecem os espaços e a comunidade
de regras que lhe dão certa coesão.
Dessa maneira, deve-se lembrar que há muita controvérsia na interpretação do
sentido do conjunto das ações relacionadas às políticas culturais, assim como de cada
governo no que se refere aos objetivos de suas políticas. As políticas culturais são um
campo de controvérsias e de problemas móveis. A delimitação e fixação de sentidos
decorrem sobretudo do jogo político e ideológico, que por sua vez exige a fixação dos
atores e de posições para efeitos de composição e identificação políticas.
A Constituição de 1988, aqui tomada enquanto ponto de referência para a análise
dos contornos das políticas culturais,7 propõe que os direitos culturais se constituam em
parte dos direitos sociais e, por isso, devam se referir de forma coerente aos princípios
de igualdade, eqüidade e participação social. Ao mesmo tempo, os direitos culturais
estão ali inscritos como direitos fundamentais, que incluem os direitos à liberdade de
pensamento, expressão, crença, atividade intelectual e criativa etc.
Portanto, a cultura está presente com pelo menos dois importantes registros no
texto constitucional: i) entre os direitos sociais, para os quais devem ser desenvolvidas
instituições com formato adequado, situadas entre o Estado, a sociedade, os mercados
e as comunidades, integradas pela idéia de igualdade e eqüidade no acesso a recursos
sociais, assim como de desenvolvimento destes mesmos recursos; e ii) nos princípios da
liberdade individual de criação e expressão, para os quais se pressupõem políticas para

7. Além dos artigos 215 e 216 do texto constitucional, referências à cultura podem ser encontradas em: Título I - Dos princípios
fundamentais; no Título II – Dos direitos e garantias fundamentais; e no Título VIII – Da Ordem Social; nos Capítulos III, Seção
I - Da Educação; V – Da Comunicação Social; VII – Da Família, da Criança, do Adolescente e Idoso; e VIII – Dos Índios.

144 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


democratizar os processos de produção e circulação de informações, assim como de
discussão pública de temas relevantes.
Deve-se enfatizar ainda que a cultura fica assim definida em termos de um cam-
po bastante amplo, pois abrange as comunicações, ao tempo em que é também uma
dimensão importante de outras políticas, como a educação, as políticas para crianças e
adolescentes, indígenas e juventude. Além disso, envolve diferentes dimensões, como a
patrimonialista (material e imaterial), a artística e a antropológica, e pode ser sintetizada
como um recurso social gerador de oportunidades, bem-estar e capacidades.
Essa múltipla inserção da cultura no texto constitucional consubstancia a sua com-
preensão a partir da noção de integridade. Dado que o sistema de direito vigente em
uma comunidade guarda coerência com os seus valores básicos e, nesse sentido, pode ser
compreendido com base na referida noção de integridade,8 é igualmente possível tratar
a cultura sob este prisma, assumindo-se que ela também é, simultaneamente, núcleo e
referência de um leque de direitos reconhecidos pela comunidade. Daí as controvérsias
e disputas no campo da política cultural são visivelmente coerentes com a dinâmica
própria das interpretações a respeito do direito à cultura. Ademais, a cultura faz parte
do desenvolvimento e do bem-estar social, tanto pela sua natureza, ao enriquecer o
cotidiano das pessoas, quanto pelo seu caráter instrumental, ao gerar riqueza e assala-
riamento. A este conjunto de relações que a cultura estabelece com a comunidade, em
termos tanto das noções valorativas quanto das práticas sociais, é que aqui se denomina
cultura como integridade.
4.1 Integridade e história
A validade desse núcleo de idéias pressupõe linhas de coesão entre cultura, direito e po-
líticas. O núcleo semântico que configura a idéia de cultura como integridade permite
reinterpretar a história das políticas culturais em seus princípios e valores fundamentais.
É o que se fará brevemente no início desta subseção por meio da delimitação dos períodos
do desenvolvimento das políticas culturais.
Aqui a história é importante não no sentido de que há uma continuidade de prin-
cípios e concepções do passado no presente, mas no sentido de uma coerência entre
concepções atuais em vigor que resultaram, em parte, de decisões passadas. Estas, por sua
vez, contêm um número limitado de conteúdos explícitos e necessários para justificar as
decisões atuais. Dessa maneira, a idéia de integridade começa no presente e só se volta
ao passado à medida que o enfoque contemporâneo o exige. Pode-se voltar ao passado,
e é um pouco do que se apresenta a seguir, inclusive para narrar uma história geral do
que foi dito e feito, para afirmar algo complexo sobre a prática atual e, sobretudo, para
oferecer e justificar novos princípios de ação no futuro.
Aqui, as possibilidades interpretativas serão apresentadas de forma demasiado sin-
tética, o que pode impor um trabalho posterior de textualização e interpretação. Para a
síntese dos períodos segundo as crenças e objetivos mais importantes que articulam as
políticas culturais, vale consulta ao quadro 2.

8. A respeito do direito como integridade, ver: DWORKIN, R. O Império do Direito. Ed. M. Fontes, São Paulo, 2003 e Uma
questão de princípio. Ed. M. Fontes, SP, 2005.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 145


QUADRO 2

Período Características Princípio de totalização


Construção da idéia de nação a partir da influência das três
“raças”; demonstração da continuidade da colonização
1) Período iberista Civilização portuguesa
portuguesa e de seu papel heróico enquanto elite construtora
do Estado Nacional
Discussão da viabilidade de nação miscigenada; ideologia da
2) Período racista Racismo e “culturalismo”
democracia cultural; construção de sociedade branca nos trópicos
i) Criação de um imaginário nacional a partir da idéia de mo- i) Criação do homem novo brasileiro;
3) Período de expansão dernização e da valorização do trabalho; integração simbólica modernismo;
fragmentada da sociedade a partir da ação voluntarista do Estado; ii) Idéia de integração e modernização
ii) Construção de nova engenharia institucional na área federal da cultura brasileira
Construção de sistema público de financiamento e de
4) Período de integra- pactuação política: Igualdade e eqüidade: entre dois
ção sistêmica i) financiamento via mecenato – incentivos fiscais; liberalismos
ii) constitucionalização da cultura
Elaboração Disoc/Ipea.

Os três períodos primeiros se caracterizam pela invenção de uma tradição brasileira


e trazem consigo uma noção de hierarquização envolvida: civilização portuguesa, “raça”
ou modernidade são princípios interpretativos que se articulam, mas o mais importante
é que hierarquizam e oferecem critérios de inclusão e exclusão das diversas linhas de
atuação. O último período distingue-se pela idéia de igualdade das culturas e pelo reco-
nhecimento da diversidade, o que permite dizer que organiza e pressupõe a presença do
poder público, mas não propõe o estabelecimento de um princípio de hierarquização.
É um período em que se integram os ideais liberais e os democráticos.
Alguns fatos históricos estilizados denotam que a idéia de construção de uma iden-
tidade nacional foi uma constante no imaginário político e social. Como esta idéia se
constrói a partir de um princípio de oposição, ou seja, uma comunidade acredita que
é algo em contraste com o que acredita serem ou dizerem ser as outras comunidades,
é possível afirmar que a construção de uma alteridade objetivada é uma condição para
a construção da identidade. Por isso, enfatiza-se na escolha dos fatos a presença de um
outro (portugueses, franceses, europeus etc., mais modernos e civilizados, ou africanos,
indígenas etc.). Apenas no último período, mesmo que com reminiscências presentes,
as políticas se deslocam para um outro agrupamento e arranjo de crenças e valores.
Este último período será retomado brevemente na próxima subseção. Deve-se ler a des-
crição a seguir com as ressalvas de que são demasiado sintéticas e de que os períodos se
interpenetram, mantendo continuidades e se reinterpretando uns aos outros em torno
de algo a que se poderia denominar “tradição brasileira”.
O Império se caracterizou por uma ampla política de construção de referenciais
legitimadores da participação portuguesa no Brasil. Naquele momento começavam a ser
articulados os ideais do iberismo e do tropicalismo português. Com a vinda da família
real, em 1808, veio a biblioteca que se transformaria na Biblioteca Nacional e que separava
os cultos e os incultos, a cultura legítima da popular. Em seguida, em 1816, chegava a
missão artística francesa, que delineou uma relação de celebração da família real e do
Império, registrando tanto o cotidiano quanto os atos mais importantes a constituírem
a memória nacional, em especial os feitos cristãos e das lideranças políticas portuguesas.
Estes artistas criaram símbolos da Independência, deixaram registros da vinda da família
real para o Brasil e, mais além, elogios ao processo civilizador português.
Outro marco do mesmo período é o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), criado em 1838 sob uma perspectiva de estudos da história natural e de cons-
trução da imagem de continuidade da civilização portuguesa nos trópicos. Sua reflexão
foi sistemática e se deteve em problemas da nação, do Estado e de sua unidade, inclusive

146 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


cultural. Contribuiu para a configuração do imaginário das três “raças” constitutivas,
fortalecendo a tese da importância maior da cultura européia e ibérica no perfil da cul-
tura brasileira. As outras “raças” contribuíam com suas festas, culinária, arte, nomes etc.;
nenhum conteúdo científico ou filosófico, entretanto. O Museu Histórico, por sua vez,
foi criado em 1818 e se debruçou sobre discussões “racialistas”, apostando no embran-
quecimento da população brasileira e nos potenciais da miscigenação para a conformação
de uma civilização local. Entrou em pauta, a partir de modelos analíticos e doutrinários
europeus, a discussão sobre a monogenia, a poligenia, e a respeito da viabilidade de
uma civilização miscigenada. A discussão e as imagens propostas gravitavam em torno
das idéias evolucionistas próprias do período e da legitimação do ativismo político e
administrativo europeu nas colônias. No primeiro período republicano, o tropicalismo se
rearticula em torno do “racialismo”, isto é, discutiam-se os destinos da nação em função
da composição racial, ora vista como nação improvável, ora como uma possibilidade,
dada a adaptação das “raças” miscigenadas à situação tropical.
Durante o Estado Novo articulou-se um projeto de integração simbólica e social,
de composição do imaginário da democracia racial e de desenvolvimento de uma ampla
estratégia de consolidação da radiodifusão e do audiovisual para a integração nacional.
À época as políticas se desenvolviam com conflitos a respeito do lugar institucional de
cada uma delas. Não havia uma linha de coesão institucional, mas uma idéia de nação
moderna e conciliadora na sua moralidade básica que conferia unidade às contradições.
As políticas culturais passavam a ser agenciadas em diferentes instituições, a exemplo
do audiovisual, que poderia ter ações nas áreas educativa, industrial ou de propaganda
governamental. Neste período a política patrimonialista veio preservar o barroco bra-
sileiro, com exemplares de igrejas e fortes militares em uma linha de continuidade, ao
mesmo tempo crítica com relação ao tropicalismo. Este primeiro momento conservou
os registros arquitetônicos europeus e reconstruiu o barroco como elemento central da
cultura artística nacional, enquanto as manifestações e outras expressões apresentaram-se
de forma quase estilizada.
O período seguinte, de 1945 até 1964, caracteriza-se por intenso dinamismo no
âmbito privado e por poucas iniciativas do poder público, embora a tradição implique
sempre a aposta no desenvolvimento privado com apoios públicos. Em 1953, o Ministério
da Educação, Saúde e Cultura foi dividido em dois, criando-se assim o MEC. Nesta época
iam se consolidar os meios de comunicação de massa. As movimentações estudantis também
viriam marcar a década de 1960, cunhada por uma intensa dinâmica cultural em grande
parte independente do Estado, e em parte até mesmo reprimida por ele. Em meados de
1960 e na década seguinte, os militares propuseram uma construção institucional densa,
marcada pelas primeiras iniciativas de criação de um Conselho Nacional de Cultura, em
1961, para discutir a política nacional e elaborar planos nacionais de cultura (em 1968, 1969
e 1973). Em 1966, criou-se o Conselho Federal de Cultura (CFC); em 1973, no Governo
Médici, foi elaborado o Plano de Ação Cultural (PAC). O período ainda caracterizou-se
também por forte reengenharia da política patrimonial: criação da Fundação Nacional de
Artes (Funarte), que absorveu parte do dinamismo cultural, financiando o estabelecimento
de espaços de fruição ou circulação de eventos; da Empresa Brasileira de Filmes S.A. (Em-
brafilme); do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA); do Conselho Nacional de
Cinema; e da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro.
A década de 1980 experimentou um processo de democratização política, o que
motivou a discussão de políticas de cultura nos estados e a articulação dos secretários em

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 147


fóruns que passaram a demandar a criação de um ministério, o qual veio a ser instituído
em 1985. A Constituição Federal de 1988 abrigou princípios amplos de democratização
cultural, embora o setor tenha herdado toda a fragmentação e contradições das políticas
federais e ficado sem mecanismos de financiamento e pactuação de políticas de amplo
escopo territorial. O período de 1990, por sua vez, sofreu um início tormentoso, mas
depois aliviado por anos de ajuste fiscal, assim como pela reconstrução do Ministério
da Cultura e de suas instituições vinculadas. O mais importante é que as leis de incen-
tivo ganharam fôlego e se consolidaram. Os anos 2000 se distinguem pela inventiva da
constitucionalização da cultura e da criação de um sistema nacional, pactuado, integrado
e participativo. Estes dois últimos períodos, que são exatamente o foco da análise, são
tratados a seguir.
4.2 Os signos liberais e democráticos da integridade: liberalismo e eqüidade
Desde os seus primeiros momentos, as políticas culturais se fundaram no discurso de en-
riquecimento e desenvolvimento das sociedades. Nada mais atual, ainda que se considere
a necessidade de reinvenção e atualização dos termos dos discursos, os quais tomaram
as formas mais variadas ao longo da história, estabelecendo pesos diferenciados para os
problemas, objetivos e conceitos utilizados para formatar as políticas. De alguma forma,
os diversos formatos das políticas culturais brasileiras refletiram relações com a política
mais ampla e com seus estilos, assim como com a cultura e a moralidade comuns.
Nesse sentido, a trajetória das políticas culturais delimita um dos aspectos mais
relevantes e inovadores da Constituição de 1988, que é a valorização da diversidade cul-
tural, princípio em grande parte opacificado pelas idéias ainda correntes sobre o nosso
hibridismo miscigenado. O texto de 1988 é um marco também por reservar à cultura
um papel sistêmico, ao tratá-la como direito e, mais ainda, ao relacioná-la no rol dos
direitos sociais, além de estabelecer o princípio de valorização da diversidade como um
dos seus núcleos.
Na década de 1980 havia divergências a respeito da propriedade da criação de um
Ministério da Cultura separado do MEC, com avaliações diferentes a respeito das pos-
sibilidades que esta cisão traria no tocante ao aumento dos recursos financeiros para a
área. No entanto, a idéia tomou forma e o MinC foi criado em 1985, fato seguido pela
cristalização de enunciados que ganharam forma na Constituição.
Os primeiros anos do MinC e do texto constitucional não implicaram estabilidade
e aumento de recursos institucionais e financeiros. A Lei Sarney, criada em 1987,9 teve
pouca duração e recebeu muitas críticas. O início dos anos 1990, por sua vez, resultou
em ruptura institucional, dadas as diretrizes políticas do Governo Collor, que eliminou
o ministério para em seguida recriá-lo e propor a Lei Rouanet.10 Pouco depois, em 1993,
também seria criada a Lei do Audiovisual, a primeira baseada na renúncia fiscal.
Com o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o MinC ganhou
estabilidade institucional, embora o período não tenha se caracterizado por um
incremento significativo de recursos financeiros ou humanos. Os dois mandatos de
Francisco Weffort à frente do órgão foram caracterizados pela consolidação das leis
de incentivo, e as reformas administrativas se alinharam às proposições do PPA, no

9. Lei no 7.505, de 2 de julho de 1986.


10. Lei no 8.313/1991, cujos termos encontram-se descritos na subseção 2.2 deste capítulo.

148 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


que se refere à construção de programas finalísticos com unidades de gestão com
correspondência na organização administrativa. Esta racionalização, no entanto, não
gerou a construção de maiores capacidades institucionais ou de possibilidades de
desenvolver as políticas a partir do princípio da eqüidade. As leis de incentivos e as
instituições a elas relacionadas (como a CNIC) não se desenvolveram para funcionar
a partir de critérios de eqüidade, e muito menos foi possível que os recursos orça-
mentários o fizessem, dados os limites da abrangência das instituições federais e os
montantes ainda muito reduzidos. Ainda hoje no Governo Lula apenas o Iphan tem
capilaridade nacional, enquanto as demais estruturas do ministério se concentram
em Brasília e no Rio de Janeiro, com algumas representações em São Paulo, Belo
Horizonte, Recife, Belém e Porto Alegre.
Há que se ressaltar que ação do MinC no período FHC/Weffort se desenvolveu
em um dos sentidos do liberalismo, isto é, estimulando o enriquecimento cultural
sem impor critérios substantivos em uma ou outra direção.11 Os períodos seguintes, se
também são marcados pelo viés liberal, agregam forte preocupação com a eqüidade e
com a participação. Nos dois Governos Lula, o MinC se estruturou para ser um órgão
de planejamento, coordenação e avaliação das políticas, mas também de execução de
programas. Tendo em conta esta situação, é preciso dizer que os graus de sucesso na
consolidação de cada função são variáveis.
Ressalte-se que as iniciativas dos dois mandatos do Governo Lula, mesmo com
as limitações estruturais aqui apontadas, levaram a uma releitura do texto constitu-
cional. Foram propostas emendas para vincular os governos descentralizados ao Plano
Nacional de Cultura, assim como para garantir recursos orçamentários para o setor.
Também foram criadas estruturas participativas de abrangência nacional, a saber, a
Conferência Nacional e o Conselho Nacional de Política Cultural.
A plenária da 1a Conferência Nacional de Cultura, realizada em Brasília em de-
zembro do ano 2005, contou com aproximadamente 1.300 participantes, vindos de
processos de discussão nos estados e municípios. Na conferência, discutiu-se ampla-
mente o Sistema Nacional de Cultura (SNC), a Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) no 150/2000 – que propõe a vinculação de recursos da União, de estados e dos
municípios para o setor – e o Plano Nacional de Cultura, já aprovado pela Emenda
Constitucional no 48/2005. Além disso, indicou-se a necessidade de democratização
dos meios de comunicação.
De fato, muitos são os problemas para a efetiva implementação desses dispositivos,
que poderão configurar uma Política Nacional de Cultura. Entre eles está o funcionamento
cada vez mais efetivo do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Entretanto,
em meio às diversas dificuldades, a estratégia do MinC tem sido uma espécie de consti-
tucionalização da questão cultural, o que redimensiona e ressignifica a cultura e o seu o
papel no conjunto das políticas, enquanto valor e recurso para o desenvolvimento social.
Mesmo com essas iniciativas – inéditas pelos padrões históricos de atuação das ins-
tituições culturais brasileiras –, vale registrar que os recursos limitados ainda impedem

11. O liberalismo não se constitui em uma teoria política única e muito menos se resume ao liberalismo econômico, em geral
apresentado em formulações menos complexas que seus congêneres da filosofia política. Aqui se distinguirá, sob inspiração
de Ronald Dworkin, dois gêneros de liberalismo: um baseado na idéia de que o governo não deve tomar partido em questões
morais, devendo ser neutro, e o outro baseado na igualdade e na afirmação de que é fundamental que o governo trate seus
cidadãos como iguais, sendo que a defesa da neutralidade só se dá quando a igualdade exige. A respeito, ver Dworkin, R.,
Uma questão de princípios, Ed. Martins Fontes, SP, 2005.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 149


a ampliação da abrangência territorial da atuação do MinC, assim como a precariedade
dos instrumentos de gestão pública também dificulta a coordenação e a articulação tanto
entre as instituições federais quanto entre as esferas de governo e com a sociedade, assim
como entre as políticas setoriais.
O quadro 3 apresenta as proposições de emenda à Constituição que ilustram o
contexto abordado. São três, tendo sido uma delas já aprovada (EC no 48/2005), outra
conta com terreno fértil de vários anos de construção efetiva do SNC (PEC no 416/2005)
e, finalmente, uma terceira vincula recursos das receitas das esferas de governo à cultura
(PEC no 150/2000).
QUADRO 3
Objetivos e desafios das emendas à Constituição na área cultural
Artigo da CF/88 Objetivos gerais Descrição dos conteúdos Desafios
Estabelece Plano Nacional de Cultura para defesa e
Integração das ações
valorização do patrimônio cultural brasileiro; produção, Definição de metas, valores e conceitos
EC no 48/2005 do poder público e
promoção e difusão de bens culturais; formação de substantivos a serem trabalhados es-
(emenda ao artigo definição de compro-
pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas tratégica e prioritariamente, no âmbito
215) missos para a gestão
múltiplas dimensões; democratização do acesso aos bens dos diversos entes federados.
cultural pública
de cultura; valorização da diversidade étnica e regional.
Resistência às vinculações por parte
das áreas econômicas do Executivo;
indefinição dos itens de dispêndios
Vinculação de recursos da União (2%), estados e DF considerados como culturais para
(1,5%) e municípios (1%) referente à receita resultante efeito da aplicação da PEC.
PEC n 150/2000
o
Construção de de impostos, compreendidas as transferências. A União A definição dos critérios de rateio
(emenda ao artigo Sistema Público de destinará 25% aos estados e ao Distrito Federal, e 25% deverá enfrentar o fato de que os
216) Financiamento aos municípios, sendo que os critérios de rateio serão recursos da União serão insuficientes
definidos em lei complementar, observada a contrapartida para atender à demanda e uma grande
de cada ente. parte dos municípios menores e dos
estados, e que deverá enfrentar dificul-
dades para aportar recursos conforme
exigido pela PEC.
Participam do SNC: MinC, Conselho Nacional de Cultura,
Integração de institui-
sistemas de cultura dos entes federativos, instituições
ções culturais públicas
públicas e privadas culturais, subsistemas complementa- Estabelecimento de mecanismos efe-
PEC no 416/2005 e privadas em regime
res ao SNC (museus, bibliotecas, arquivos, informações tivos de articulação da gestão política
(emenda ao artigo de colaboração, de
culturais, fomento e incentivo à cultura), que deverão ser e administrativa dos diversos sistemas
216) forma horizontal,
articulados com outras políticas setoriais como educação, e entre eles.
aberta, descentraliza-
esporte, turismo, meio ambiente, comunicação, direitos
da e participativa
humanos etc.

Como se conclui a partir do quadro 3, as estratégias para aprovação das normas


de nível constitucional, além de gerarem fatos políticos importantes no que se refere à
criação de marcos e regras para a atuação do setor público cultural, recolocam e redimen-
sionam os desafios a serem enfrentados. Todas as propostas convergem para a criação de
um sistema articulado de ação entre os entes federados e destes com a sociedade, mas a
instauração de mecanismos e ações que viabilizariam a criação de tal institucionalidade
é complexa e envolve um grandioso esforço de concertação no estabelecimento de prio-
ridades e estratégias claras e factíveis. Os recursos para a consolidação destes mecanismos
também não são triviais.
No que se refere ao Plano Nacional de Cultura (PNC), para o qual já se tem diretrizes
definidas, é importante considerar que este será objeto de discussão pelo CNPC, que
definirá prioridades e aprovará o texto-base. Seu financiamento, por sua vez, compõe o
principal problema e, por esta razão, ganhou especial atenção na 1a Conferência Nacional,
quando se firmou a prioridade e o compromisso pela mobilização a favor da aprovação
da PEC no 150/2000. Discutiram-se outros temas também ao longo da conferência,
como, por exemplo, a necessidade de se estabelecer uma discussão ampliada sobre a lei
de comunicações, e a importância da democratização da mídia para a democratização
da cultura – aliás, em conformidade com o artigo 221 da Constituição Federal. Como

150 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


se observou anteriormente neste capítulo, contudo, a primeira proposta não foi viabi-
lizada, e se criou uma possibilidade para encaminhar a segunda questão, com a criação
da televisão pública.
4.3 Dois liberalismos e a cultura como integridade
Conforme vem sendo exposto ao longo do capitulo, a Constituição de 1988 estabele-
ceu um amplo leque de dispositivos referentes à cultura e aos direitos culturais. Entre
os mais diretamente relacionados com a matéria estão os artigos 215 e 216, ora objeto
de propostas de emenda. Neles está explicitado que o Estado garantirá a todos o ple-
no exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. O texto ainda indica
que a proteção das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos do
processo civilizatório nacional é objetivo a ser perseguido. Também se deve considerar
que os diversos pactos internacionais, todos recepcionados e internalizados no ordena-
mento jurídico brasileiro, aludem aos direitos econômicos, sociais e culturais, que são
abreviadamente tratados aqui como direitos sociais.
O que há em comum a esse conjunto de direitos declarados é o desenvolvimento
da cultura e a proteção de classes e grupos desfavorecidos contra a dominação socioe-
conômica e as suas conseqüências no âmbito da democratização da cultura. As ações
públicas, então, segundo estes valores, devem oferecer as garantias institucionais e os
instrumentos para democratizar o acesso às facilidades de fomento, direcionando recursos
para produtores independentes ou excluídos dos dinamismos dominantes, bem como
abrir espaços participativos aos grupos envolvidos com a produção e difusão simbólica,
valorizando os produtos culturais por eles gerados.
Esses valores podem oferecer elementos para articular a interpretação dos governos
pré e pós-Constituição. A ênfase anterior nos distintos períodos das políticas culturais
brasileiras procurou marcar três pontos. O primeiro, que as políticas culturais têm uma
longa história e que algumas das suas características atuais são heranças da expansão
fragmentada. Em segundo lugar, que os períodos anteriores à Constituição de 1988
foram marcados pela idéia de convívio tenso entre ideais liberais e práticas hierárqui-
cas e autoritárias, ao tempo em que no período pós-Constituição também estiveram
presentes os princípios do liberalismo. Por último, que as capacidades institucionais da
área cultural estão em processo de construção e demandam continuidade nos próximos
governos para sua consolidação.
A tese que se defende afirma que o período de Weffort foi caracterizado pela idéia de
que os recursos de fomento deveriam ser ampliados para o enriquecimento da cultura, e
que o poder público teria pouco a dizer a respeito dos critérios de eqüidade. O período
Gilberto Gil preconizou que o Estado deveria construir capacidades para funcionar a par-
tir de critérios relacionados ao desenvolvimento cultural, seguindo, sempre que possível,
os ideais de eqüidade. Nenhum dos dois períodos conseguiu desenvolver ações amplas
relacionadas à reestruturação dos mercados simbólicos a partir de critérios de eqüidade,
tampouco voltadas para internalizar nas diversas políticas a idéia de cultura como recurso
ou dimensão do desenvolvimento. Estiveram presentes, sem dúvida, ações pontuais para
imprimir às políticas algum critério de eqüidade, e o tema da cultura como dimensão
de desenvolvimento freqüenta cada vez mais o imaginário e os discursos institucionais.
Contudo, os consensos não se avolumaram ou densificaram em torno destes temas a
ponto de causar mudanças decisivas no cotidiano político.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 151


De fato, no período Weffort as capacidades do ministério e de suas instituições
vinculadas não foram ampliadas significativamente – o Estado não se fortaleceu, apesar
da estabilidade política do ministro –, e as leis de incentivo se constituíram em um
dos seus elementos mais importantes. A criação das leis de incentivos fiscais na área foi
inicialmente apontada por críticos e aliados como simplesmente uma diversificação de
fontes. Depois, no decorrer do processo de consolidação das leis de incentivos, foram
sendo articuladas críticas a respeito de problemas pontuais que se relacionavam à ad-
ministração da lei12 e aos critérios de alocação de recursos, isto é, se deveria continuar
a ser deixado às empresas o poder de decidir onde, quando e quanto alocar, ou se seria
razoável estabelecer critérios e diretrizes para uso dos recursos incentivados. Outro
ponto discutido foi o de saber como estas diretrizes seriam pactuadas e decididas, i.e.,
se seriam decididas pelo MinC, se seria aberto um espaço público como um conselho,
se a discussão se daria entre governo e empresas estatais etc.; e, finalmente, se valeria
transformar recursos incentivados em recursos orçamentários. Circulou até mesmo uma
tese no início do Governo Lula segundo a qual haveria extinção das leis de incentivo.
Elas foram mantidas, com um rendimento simbólico e político importante, pois os
recursos foram se avolumando ano a ano, atendendo a um número cada vez maior de
artistas e produtores culturais.
Na análise da composição geral dos recursos, também não há indicativos de uma
desresponsabilização do Estado ou da intenção de deixar aos “mercados” todas as inicia-
tivas de política cultural, nem nos governos de meados da década de 1990, tampouco
nos dois Governos Lula. Também não há nada que indique que o uso dos incentivos
fiscais e as decisões das empresas no período contenham tal distorção na aplicação de
recursos que façam que as leis devam ser totalmente reformadas. As distorções e mau
uso eventual dos recursos, ao contrário, são tratados com contemporização.
No que se refere às estruturas institucionais, muitos dos problemas estruturais
do Ministério da Cultura e da fragmentação de suas ações permanecem. Apesar disso,
deve-se dizer que o contexto econômico de fins da década de 2000 e o comportamento
dos seus agregados favoreceram um aumento relativo dos dispêndios orçamentários do
ministério, entre os finalísticos e com pessoal, o que pode facilitar o processo de cons-
titucionalização da cultura.
Assim, significados novos estão sendo construídos sobre os ombros da década de
1990. Portanto, se se deve aceitar decidir por algum diacrítico que marque diferenças
entre as duas últimas décadas, parece não ser este o princípio dicotômico da presença do
Estado ou do mercado, mas sim de dois tipos de liberalismo: um que procura ampliar
e estimular a produção cultural em sentido amplo, e outro focado no enriquecimento
cultural a partir de preocupações com a eqüidade, o que exige uma ação orientada do
Estado em certas direções.
Pode-se acrescentar que, nessa década, as políticas foram pouco permeáveis à so-
ciedade, o Estado estava pouco poroso às diferentes e contraditórias demandas sociais.
Pode-se dizer que se viveu um razoável e justificado insulamento burocrático, tendo
em vista as necessidades de re-construção institucional, a consolidação de mecanismo
de financiamento alternativo aos recursos fiscais, e as características organizacionais

12. Por exemplo, políticas de alíquotas – seletivas ou não –, adoção de critérios políticos ou do princípio de eqüidade,
direcionamento de recursos das empresas estatais, baixo estímulo à entrada de dinheiro próprio dos empresários etc.

152 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


e políticas do Ministério da Cultura. Atualmente, em que pese a construção de um
cinturão protetor e de filtros com relação às demandas culturais e artísticas, natural
no processo de gestão de demandas, quando se conseguiu que estas fossem vocalizadas
no aparato público, desencadearam-se políticas antagônicas, em termos de seus princípios
organizadores, mas também profundamente dinamizadoras dos processos políticos e
institucionais. Ao mesmo tempo, se construíram marcos para o princípio da participação
social, com a 1a Conferência Nacional de Cultura, com o SNC e o CNPC, instituições
que já foram capazes de vitalizar a atuação federal na área cultural, legitimando-a aos
olhos dos produtores culturais de todo o território nacional.
Dessa maneira, o princípio da eqüidade se tornou central, relacionando-se à de-
mocratização, à ampliação do acesso a bens e serviços culturais e à valorização da diver-
sidade. Estes objetivos perpassam praticamente todos os programas do MinC, mesmo
quando não enunciados de forma explícita. À guisa de exemplo, o PPA 2004-2007
traduz esta concepção no seu Desafio 24, que abriga os programas do MinC e tem o
seguinte enunciado:“valorizar a diversidade das expressões culturais nacionais e regionais”.
Talvez este enunciado não expresse da maneira mais clara, por ser demasiado sintético, o
conjunto de valores de referência. Entretanto, a interpretação dos diversos documentos
e debates produzidos no campo das políticas públicas culturais permite divisar a centra-
lidade do papel do poder público na dinamização da cultura, na promoção da eqüidade
no acesso a recursos disponíveis, e na valorização da diversidade e da democratização.
Mesmo que as políticas não dêem conta dos desafios constitucionais, é de se registrar
que estes estão colocados e são de certa maneira demarcados pelo texto legal.
4. 4 Últimas questões
Tal como se afirmou anteriormente, depreende-se da leitura da Constituição de 1988
que a cultura é reconhecidamente relevante, ao ser qualificada enquanto parte dos di-
reitos que devem ser garantidos pelo Estado, como conceito que deve permear as ações
públicas nas mais diversas áreas. Portanto, ao ser inscrita na Constituição como direito,
a cultura deve ser tratada de maneira coerente com os princípios estruturadores do tex-
to constitucional, decorrendo daí que a gestão das políticas culturais também se refere
aos valores políticos protegidos e consubstanciados nas instituições e no conjunto de
ações do poder público, sendo-lhe devidos recursos e instrumentos para sua realização
na qualidade de direito, inclusive para que lhe sejam conferidos dimensão e recurso de
outras políticas relevantes.
Como desdobramento interpretativo dos princípios envolvidos na organização da
ação do poder público, pode-se apontar ainda conteúdos democráticos pertinentes à
política cultural, como o respeito pela opinião diferente e as possibilidades de partici-
pação nos fóruns de decisão, além de conteúdos republicanos, como a transparência na
gestão de recursos.
É possível associar esse conjunto de valores ao funcionamento dos mercados sim-
bólicos (indústria do livro, televisão, rádio, audiovisual etc.), desde que dotados de es-
truturas institucionais que democratizem e promovam o acesso efetivo a bens e recursos
de produção, e que, além disso, sejam capazes de estimular a diversidade cultural. Nesse
sentido específico, são rarefeitas as iniciativas do poder público.
No entanto, também é necessário perguntar se os recursos utilizados na cultura
são objeto de minuciosa discussão política, se a aplicação destes recursos se faz de forma
transparente, se responde efetivamente a critérios que impactam na eqüidade, e ainda se

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 153


as discussões a respeito desta dimensão se estendem a outros âmbitos de ação do poder
público, tal qual preconizado pela Constituição. O tratamento coerente da cultura a
partir dos princípios constitucionais é exigente do ponto de vista interpretativo e no
desdobramento concreto no mundo da vida institucional.
5 Considerações finais
A seção Fatos relevantes acentuou a criação do Conselho Nacional de Políticas Culturais.
Desde o início do governo se discute o desenho de um órgão participativo e paritário e a
necessidade de oferecer à área cultural instrumentos de discussão de políticas, diretrizes
e critérios para a alocação de recursos. Finalmente, no final de 2007, este órgão passou
a realizar reuniões e rapidamente passou a se constituir em referência para o debate de
questões importantes das políticas culturais.
Outro ponto destacado foi o da necessidade de discutir e conferir transparência aos
critérios utilizados pela Comissão Nacional de Incentivos Fiscais (CNIC). A operação
mecenas e a crítica a decisões de financiamento a projetos sem explicitação de quais
critérios efetivamente estavam sendo utilizados suscitaram algum debate a respeito do
alcance e dos limites da atuação da comissão. É razoável tanto que a CNIC receba certa
atenção e cuidados especiais quanto às suas capacidades de funcionamento no quadro
de busca de transparência e eqüidade na definição da alocação de recursos, quanto é
importante que seus critérios de decisão sejam esclarecidos e submetidos ao conheci-
mento e debate públicos.
A criação da EBC foi apresentada como um avanço para o processo de democrati-
zação da informação e como uma possibilidade de “promover o pluralismo de fontes de
produção e distribuição de conteúdos, da não discriminação, da autonomia em relação
ao governo e da participação da sociedade civil, oferecendo mecanismos para o debate
público de temas relevantes”. Ainda assim, deve-se assinalar que os objetivos da EBC
são abrangentes e que a empresa enfrentará importantes desafios para consolidar seus
valores em práticas institucionais, em especial pela presença de diferentes concepções a
respeito de quais objetivos deverão ser prioritários.
A seção Acompanhamento da políticas e dos programas descreveu as ações do MinC
em suas linhas gerais, demonstrando a grande heterogeneidade das políticas culturais e
os diferentes objetivos aos quais fazem referência.
Finalmente, a seção Tema em destaque tratou da cultura como integridade, explo-
rando algumas possibilidades interpretativas a respeito da história das políticas culturais
brasileiras vi-à-vis a Constituição de 1988. Em termos analíticos, pode-se afirmar que
há uma relação histórica coerente entre concepções de cultura, princípios (de justiça,
morais, políticos etc.) e políticas culturais, e que o entendimento de como estas relações
se deram em outros momentos permite interpretar os significados da Constituição de
1988 no campo cultural e os desafios que se abriram logo após sua promulgação – e que
se recolocam agora em relação ao seu futuro. Em outras palavras, mesmo em contextos de
grandes e profundas heterogeneidades no que se refere a campos de ação e objetivos, as
políticas culturais podem ser interpretadas à luz de princípios e características históricas
gerais. A carta de 1988 indica o “desenvolvimento cultural”, a “eqüidade” e a valorização
da “diversidade” como eixos estruturadores, embora se mantenham como pano de fundo
elementos de uma longa tradição cujos temas mais candentes (civilização, raça e nação)
não desapareceram, e convivem com aqueles inscritos no novo texto constitucional.

154 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TRABALHO E RENDA

1 Apresentação
Este capítulo abre com os fatos de maior relevância em 2007 na área de trabalho e
renda no país, a começar pelo bom desempenho observado em termos de crescimen-
to quantitativo das ocupações e dos salários, que retoma os parâmetros de 2004 e
2005 – embora preocupem ainda a predominância dos empregos de curta duração
e o baixo patamar médio dos salários. Destacam-se aqui também os resultados da ne-
gociação coletiva no período, o reconhecimento das Centrais Sindicais, a dispensa de
registro em carteira do trabalhador rural temporário, e a ratificação das Convenções
nos 151 e 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dada a relevância
desta Convenção no 158 para a disciplina do mercado e das relações trabalhistas no
Brasil, optou-se por analisar o debate com mais acuidade em seção específica (Tema
em destaque), ao final do capítulo.
Durante o ano de 2007, chamaram especial atenção ainda as dificuldades de financia-
mento dos programas de trabalho e renda com base no Fundo de Amparo ao Trabalhador
(FAT). De fato, números anteriores deste periódico já apontaram e analisaram fatores
que, em conjunto, compõem o problema do financiamento das políticas públicas de
emprego. A seção 2 deste capítulo (Acompanhamento da política e dos programas) apresenta
com pormenores o problema do modelo de financiamento adotado desde a criação do
FAT, e o constrangimento daí gerado sobre os programas de trabalho.
2 Fatos relevantes
2.1 Evolução do mercado de trabalho
Após ligeiro arrefecimento no ritmo de absorção de mão-de-obra no ano anterior, prin-
cipalmente em razão do baixo dinamismo verificado no primeiro semestre, o mercado
de trabalho voltou a apresentar em 2007, considerados os dados da Pesquisa Mensal
de Emprego do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PME/IBGE),1 um au-
mento da ocupação da ordem de 3% – semelhante ao observado em 2004 e 2005.
Este desempenho compara-se positivamente com a variação observada na população
economicamente ativa (PEA), de cerca de 2,2%, o que levou a uma queda expressiva
da taxa de desemprego2 no ano. Isto difere do ocorrido em 2006, quando, em face da
redução de ritmo apontada, e em conjunto com uma expansão maior da PEA (2,4%),
a desocupação cresceu em termos absolutos enquanto a taxa de desemprego média no
ano ficou praticamente inalterada.
Não obstante, com a retomada de uma maior expansão em 2007, os resultados
dos últimos quatro anos vêm consolidando uma perspectiva muito distinta daquela

1. Mesmo restrita às regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador,
a PME cobre cerca de 25% da população economicamente ativa (PEA) do país, e seus resultados conformam uma boa
aproximação aos movimentos havidos no conjunto do mercado de trabalho.
2. Embora tecnicamente a denominação correta desse indicador seja “taxa de desocupação”, com o objetivo de facilitar a
comunicação toma-se aqui a liberdade de utilizar a expressão “taxa de desemprego”.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 155


configurada na década passada, tendo havido neste período recente um crescimento acu-
mulado de 11,9% na ocupação e uma queda correspondente de 2,9 pontos percentuais
(p.p.) na taxa de desemprego média anual. Os gráficos 1 e 2 permitem a verificação dos
bons resultados – a partir de 2004 – destes indicadores, os quais podem ser considerados
os principais do mercado de trabalho.
GRÁFICO 1
PME/IBGE – ocupados (2003-2007)
(Em mil)

Fonte: PME/IBGE.
Elaboração: Diretoria de Estudos Sociais do Ipea (Disoc/Ipea).

GRÁFICO 2
PME/IBGE – taxa de desemprego (2003-2007)
(Em %)

Fonte: PME/IBGE.
Elaboração: Disoc/Ipea.

156 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Também a natureza das ocupações mostra-se diferente daquela da década de 1990:
agora observa-se maior dinamismo dos empregos com carteira de trabalho assinada,
relativamente aos empregos sem carteira e às ocupações por conta própria. O gráfico 3,
com base nas categorias “formal” e “informal”, procura mostrar de forma sintética a
extensão deste fenômeno no período 2003-2007.3
GRÁFICO 3
PME/IBGE-evolução dos vínculos de trabalho (2003-2007)
(Em %)

Fonte: PME/IBGE.
Elaboração: Disoc/Ipea.

Como se pode observar, a partir de meados de 2004 o volume de ocupações “for-


mais” começa a crescer, afastando-se da linha de 10,5 mil, até ultrapassar a marca de
12,5 mil em meados de 2007. Por sua vez, as ocupações de natureza informal perma-
necem oscilando desde 2004, em torno da linha de 8,5 mil. Com isso, aquilo que pode
– com alguma licença conceitual – ser chamado de grau de formalidade (razão entre a
quantidade de “vínculos formais”, como aqui definido, e o número total de ocupados)
cresceu 2,9 pontos, sem interrupções, ao longo do período, chegando ao patamar de
59,2 em 2007.4
Os rendimentos médios reais, mantendo a tendência de alta que passaram a mos-
trar a partir de 2005, também cresceram em 2007. Neste último ano, a variação real
observada nos rendimentos médios habitualmente recebidos foi de 3,2 %, enquanto
o cômputo do efetivamente recebido mostrou uma variação um pouco superior, da
ordem de 3,6%. Este aumento real dos rendimentos médios, combinado com o cres-
cimento do nível de ocupação (3%), resultou em uma variação expressiva da massa
de rendimentos (da ordem de 6,7%), constituindo-se em um fator fundamental na

3. Esse agrupamento inclui na categoria “formal” os empregos com carteira, militares, servidores públicos estatutários e
empregadores, na “informal” os empregos sem carteira, conta própria e trabalhadores sem remuneração. Apesar de facilitar
a análise, esta categorização, embora usual, não é a única forma de agrupamento possível para mostrar as segmentações
no mercado de trabalho. Se considerada exclusivamente a contribuição à Previdência Social, os números apresentam-se
distintos: o nível de “formalização” é inferior, mas seu ritmo de crescimento é mais acelerado, com uma variação positiva de
3,5 p.p. nos últimos quatro anos. Para uma discussão mais detalhada, ver CARDOSO Jr., J.C.; FERNANDES, S. A informalidade
revisitada: evolução nos últimos vinte anos e mais uma hipótese para pesquisa: Boletim Mercado de Trabalho, Conjuntura
e Análise no 14. Ipea, outubro de 2000.
4. Quantidade de “vínculos formais”, dividido pelo número total de ocupados e multiplicado por 100.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 157


sustentação da demanda interna e no ulterior crescimento do nível de atividades e da
própria ocupação.
A virtuosidade da atual fase do mercado de trabalho se expressa também em um movi-
mento em direção a uma menor desigualdade na distribuição dos rendimentos, processo de
suma importância em virtude do elevado grau de concentração ainda prevalecente no país.
O gráfico 4 mostra alguns números desta dinâmica, conforme verificado em 2007.
GRÁFICO 4
PME/IBGE – variação percentual, por décimo da distribuição, dos rendimentos habitualmente recebidos
(todos os trabalhos) – 2006-2007
(Em %)

Fonte: PME/IBGE.
Elaboração: Disoc/Ipea.

Não obstante todos os segmentos terem obtido ganhos expressivos, é nítida a diferença
entre as variações dos dois primeiros décimos e aquelas verificadas nos demais, devendo-se
ressaltar que os três décimos do extremo superior da distribuição situaram-se abaixo da
média (3,2%, assinalada no gráfico com uma linha tracejada). Como conseqüência, o ín-
dice de Gini relativo a esta distribuição mostrou em 2007 uma queda significativa quando
comparado a 2006, passando de 0,5215 para 0,5148. Embora tais resultados caminhem
no sentido da diminuição da desigualdade entre os rendimentos do trabalho, cabe salientar
que também é fundamental uma reversão na trajetória da chamada distribuição funcional
da renda, na busca de um crescimento maior dos rendimentos do trabalho em relação ao
conjunto de rendimentos derivados da propriedade (juros, lucros e aluguéis).
Esses resultados dos principais indicadores do mercado de trabalho em 2007
constituem-se, sem dúvida, em uma conquista significativa da sociedade brasileira,5
mas não devem ser tomados como sinal de que tudo está bem. Em primeiro lugar, os
níveis em que se encontram os diversos indicadores ainda estão muito distantes do que
pode ser considerado satisfatório: taxa de desemprego, informalidade, rendimentos,
desigualdade ainda demandam longo percurso para que se possa considerar o mercado
de trabalho brasileiro como merecedor de elogios.
Em segundo lugar, cumpre lembrar que esses indicadores não mostram a qualidade
dos postos e vínculos de trabalho que estão sendo gerados. Estabilidade, proteção social,

5. Outros resultados também podem ser considerados nesse conjunto, como, por exemplo, o crescimento persistente da
participação feminina na população ocupada (0,3 p.p. em 2007, e 1,3 p.p. nos últimos quatro anos).

158 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


higiene e segurança do trabalho, qualificação e crescimento profissional são dimensões
fundamentais na conformação de um mercado de trabalho capaz de sustentar a melhoria
das condições de trabalho e de vida da população. Nesse sentido, a seção Tema em desta-
que deste capítulo traz adiante a discussão de uma das principais questões aí implicadas,
que é a relativa à proibição da dispensa imotivada.
2.2 Resultados da negociação coletiva em 2007
Durante o ano de 2007, 88% das negociações de reajuste salarial acompanhadas pelo Depar-
tamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) obtiveram ganhos
reais, isto é, aumentos superiores à inflação – medida segundo o Índice Nacional de Preços
ao Consumidor (INPC). Apenas 4% dos reajustes negociados foram inferiores à inflação.
Este é o melhor resultado desde o início do levantamento, em 1996. A título de comparação,
em 2003 a parcela de negociações que resultaram em perda de salário real foi de 58%.
Deve ser ressaltado que praticamente todos os aumentos (94% do total) se situaram
na faixa de até 6,9% (três pontos percentuais acima do INPC). Isto significa que não
chegaram a igualar o crescimento da produtividade, se tomada como aproximação a
variação real do PIB do ano anterior (2006), que foi de 3,8%. Considerando-se que o
crescimento em 2007 foi ainda maior (5,4%), é possível que as campanhas salariais de
2008 busquem índices de reajuste mais altos. Desde 2004, porém, apenas uma minoria
reduzida das negociações (menos de 10%) tem alcançado ganhos reais comparáveis à
variação do PIB. Isto sugere que os ganhos nas negociações coletivas estão mais ligados
às condições gerais da economia e, particularmente, à alta lucratividade das empresas
do que ao fortalecimento do poder de barganha dos trabalhadores.
2.3 Ratificação das Convenções nos 151 e 158 da Organização Internacional
do Trabalho
Por ocasião da IV Marcha Nacional da Classe Trabalhadora, que teve lugar em 5 de de-
zembro de 2007, as organizações sindicais encaminharam ao governo federal uma série
de reivindicações relacionadas com redução de jornada de trabalho, geração de mais e
melhores empregos, e fortalecimento da seguridade social e das políticas públicas. Em
resposta a esta mobilização, a Presidência da República subscreveu, em 14 de fevereiro
de 2008, as Convenções nos 151 (Relações de Trabalho na Função Pública) e 158 (De-
missão Imotivada) da Organização Internacional do Trabalho (OIT), encaminhando-as
ao Congresso para ratificação.
A Convenção no 151, aprovada pela Assembléia Geral da OIT em 1978, garante
ampla liberdade de organização e negociação coletiva no setor público, ao mesmo tempo
em que veda o controle das organizações de trabalhadores do setor público pela autori-
dade pública. A sua ratificação já havia sido proposta pelo Fórum Nacional do Trabalho.
Em grande medida, o acolhimento da convenção reafirma direitos reconhecidos dos
servidores públicos a partir da Constituição de 1988, que rompeu com a tradição de que
as condições de trabalho destes fossem definidas unilateralmente pelo poder público.
Não obstante, ratificar a Convenção no 151 significaria fortalecer a noção de negociação
coletiva no setor público, que nunca foi explicitamente reconhecida. A Convenção
no 158, de 1982, determina por sua vez que nenhum trabalhador deve ser demitido sem
uma razão válida que seja relacionada à capacidade ou comportamento do mesmo, ou
então às necessidades operacionais do estabelecimento ou serviço que o emprega.6

6. As implicações da Convenção no 158 para as relações de trabalho no Brasil são discutidas com mais detalhes na seção 3
(Tema em destaque) deste capítulo.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 159


A ratificação das convenções aponta no sentido de regular as relações de trabalho tanto
no setor público quanto no privado, fortalecendo o poder das instâncias de representação
dos trabalhadores no local de trabalho. Porém, outros elementos da pauta apresentada
na referida marcha continuam sendo reivindicados pelos sindicatos de trabalhadores, em
particular a redução da jornada máxima de trabalho de 44 para 40 horas, com limitação
das horas extras e do banco de horas.
2.4 Reconhecimento das Centrais Sindicais
O Executivo federal encaminhou ao Congresso Nacional, em 5 de setembro de 2007,
o Projeto de Lei no 1990/2007, que incorpora formalmente as Centrais Sindicais à estrutura
sindical, assim como regulamenta as condições em que podem ser reconhecidas. O projeto
especifica que as centrais passam a fazer jus a uma parte da contribuição sindical compulsória
dos trabalhadores – diminuindo-se a parte transferida ao Fundo de Amparo ao Trabalhador
(FAT) –, assim como estipula o mínimo de filiação requerido para que uma central possa
exercer a representação das organizações sindicais a ela associadas, participando também
de fóruns tripartites.7
Elementos desse projeto já constavam da proposta mais ampla de reforma sindical
apresentada em 2005. Ao contrário da anterior, contudo, o projeto não faz qualquer
referência à pluralidade sindical e à extinção da contribuição sindical. Além disso, é
omisso em relação à capacidade das centrais sindicais participarem de negociações co-
letivas e firmarem acordos. Trata-se, portanto, de uma adaptação da estrutura sindical
existente, e não de uma retomada da proposta original, a qual pretendia se aproximar
dos princípios constantes da Convenção no 87 da OIT (Liberdade Sindical).8
Apesar dos sindicatos serem fortes defensores do reconhecimento das Centrais
Sindicais, o projeto de lei enfrenta algumas críticas, especialmente porque atribui
ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) a prerrogativa de aferir a representa-
tividade das centrais, o que é interpretado por setores do movimento sindical como
tutela estatal. Ademais, as entidades dividem-se quanto ao fato do projeto não trazer
mudanças no tocante à pluralidade e à obrigatoriedade da contribuição sindical:
enquanto a fração majoritária da Central Única dos Trabalhadores (CUT) critica
o fato, as centrais e correntes sindicais contrárias à ratificação da Convenção no 87
defendem o projeto.
2.5 Dispensa de registro em carteira do trabalhador rural temporário
Em 28 de dezembro de 2007, o Executivo editou a Medida Provisória (MP) no 410,
que cria a figura do contrato de trabalhador rural por pequeno prazo.9 Este contrato
é limitado à duração máxima de dois meses e dispensa o registro na carteira de trabalho
e no livro de registro de empregados, embora o empregador seja obrigado a incluir os
dados do trabalhador na Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço e Informações à Previdência Social (GFIP), bem como recolher a contribuição

7. No projeto, requer-se que sejam filiados à central no mínimo 100 sindicatos distribuídos por todas as macrorregiões do
Brasil, sendo que três delas deverão ter no mínimo 20 sindicatos filiados. Adicionalmente, os sindicatos filiados deverão
pertencer a pelo menos cinco setores de atividade diferentes, e o total de trabalhadores a eles filiados deverá alcançar pelo
menos 7% do total de trabalhadores sindicalizados no país.
8. Para mais detalhes sobre o projeto original, ver o número 10 deste periódico, p. 115-117.
9. Na mesma medida provisória foram incluídos dispositivos relacionados à previdência dos empregados rurais e ao financiamento
agrícola, que serão discutidos, respectivamente, nas seções Previdência Social e Desenvolvimento Rural desta edição.

160 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS – 8%, não descontáveis do salário
nominal) e repassar a contribuição previdenciária do empregado (8% descontados do
salário-de-contribuição). Os contratantes só podem ser pessoas físicas: empresas rurais
não podem utilizar esta modalidade de contrato.
A reivindicação de tal medida partiu da Confederação Nacional dos Trabalha-
dores na Agricultura (Contag), a partir do entendimento de que as contratações
temporárias informais são uma realidade e que uma regulamentação mínima seria
melhor do que a ausência de qualquer contrato registrado. Soma-se a isto ainda
que muitos trabalhadores rurais de fato prefeririam que não fosse anotada sua
contratação temporária como safrista, porque entendem que isso “suja” sua carteira
de trabalho, isto é, prejudica sua contratação para empregos melhores no futuro.
Tanto entidades sindicais rurais quanto a Associação Nacional dos Procuradores do
Trabalho (ANPT) têm criticado a medida provisória, alertando para o impulso à
precarização do trabalho rural. Também questionam o argumento de que a anotação
do contrato de curto prazo é prejudicial ao trabalhador, dado que os contratos de
safra são comuns na agricultura; o registro em carteira, por sua vez, é um símbolo
do acesso aos direitos do trabalho. Por fim, apontam que a fiscalização mais abran-
gente do trabalho rural seria uma iniciativa muito mais decisiva para combater a
informalidade no segmento.
A par das razões explicitadas pela Contag, é possível que também haja interesse
em facilitar a contratação e aumentar as garantias jurídicas dos pequenos proprietários
rurais, que são a base da entidade, frente a seus empregados. Como em outras expe-
riências desta natureza, é improvável que a informalidade nas relações de trabalho no
campo seja significativamente reduzida apenas pela dispensa do registro em carteira.
Além disso, a legislação já permitia o contrato por tempo determinado no meio rural
(“contrato de safra”), com características muito semelhantes ao contrato por peque-
no prazo, mas que não exime do registro. Em síntese, a medida parece estar voltada
muito mais para sancionar a situação atual do trabalho rural do que para favorecer
sua regulação pública.
No Congresso Nacional, a medida provisória sofreu modificações, retirando-se
o parágrafo que dispensava explicitamente o registro em carteira. Na Lei no 11.718
(resultante da conversão da MP no 410), sancionada em 20 de junho de 2008, abre-se a
possibilidade do vínculo empregatício ser registrado diretamente na carteira de trabalho
ou em um contrato por escrito. Mas esta redação não deve encerrar a polêmica, pois cabe
ainda ver como tal mecanismo será regulamentado e como funcionará na prática.
3 Acompanhamento da política e dos programas
No ano de 2007 acentuaram-se as dificuldades para o financiamento dos programas de
emprego e de crédito via Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Conforme já men-
cionado nas edições nos 12, 13 e 14 deste periódico, o problema do financiamento das
políticas públicas de emprego deriva de uma combinação de alguns processos.
Do lado das despesas do fundo, os gastos com o seguro-desemprego e com o
abono salarial têm apresentado um aumento significativo nos últimos anos. Dado que
o pagamento destes benefícios constitucionais é a finalidade primeira do FAT, ficam
comprometidas as receitas que seriam investidas nos outros programas (intermediação de
mão-de-obra, qualificação profissional etc.). Paralelamente, o crescimento dos benefícios

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 161


implica expansão da Reserva Mínima de Liquidez (RML),10 diminuindo por isso a dis-
ponibilidade de recursos para lastrear os programas de geração de emprego e renda.
Do lado das receitas do fundo, a arrecadação do PIS/Pasep (PIS: Programa de Integração
Social; Pasep: Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) que é a principal
receita, não tem crescido no mesmo ritmo das despesas. Como uma parte desta receita é
retirada pela Desvinculação de Recursos da União (DRU), torna-se necessário recorrer às
receitas oriundas das aplicações financeiras do FAT para custear despesas correntes e obter
créditos. Porém, as mesmas receitas dependem fundamentalmente, por sua vez, das taxas
de juros – especialmente da taxa de juros de longo prazo (TJLP) –, as quais estiveram em
queda no período recente. Portanto, também estas receitas enfrentam constrangimentos.
TABELA 1
Nível de execução orçamentário-financeira do MTE em 2006 e 2007, segundo programas e ações
selecionados do PPA 2004-2007
2006 2007
Programas e ações selecionados Nível de Nível de Principais fontes de
– PPA 2004-2007 (MTE) Liquidado1 Liquidado1 financiamento em 20072
execução execução
(em mil) (em mil)
(em %) (em %)
Total do Ministério do Trabalho e Emprego3 28.891.335 79,6 30.823.807 84,9  
Integração das Políticas Públicas de Emprego,
15.542.930 99,4 17.893.907 99,8  
Trabalho e Renda
PIS/Pasep (67,5%) e recursos
Pagamento do benefício abono salarial 4.098.307 99,3 5.096.312 100,0
próprios financeiros (28,1%)
PIS/Pasep (54,9%) e recursos
Pagamento do seguro-desemprego 10.979.043 100,0 12.353.032 100,0
próprios financeiros (41,3%)
Pagamento do seguro-desemprego ao trabalhador PIS/Pasep (73,5%) e recursos
10.827 98,3 12.588 93,1
doméstico próprios financeiros (26,5%)
Outras contribuições sociais
Orientação profissional e intermediação
92.581 93,0 92.666 93,8 (51,5%) e recursos próprios
de mão-de-obra
financeiros (47,7%)
Qualificação social e profissional 88.529 86,1 86.155 71,4  
Qualificação de trabalhadores para Recursos próprios nâo-financeiros
manutenção do 19.739 72,7 31.034 53,8 (70,7%) e recursos próprios
emprego e incremento da renda financeiros (28,31%)
Qualificação de trabalhadores beneficiários de ações Recursos próprios não--financeiros
do sistema público.de emprego (SPE) e de economia 41.371 88,3 39.921 96,6 (44,2%) e restituição de
solidária convênios e congêneres (42,65%)
Recursos próprios não-financeiros
Qualificação de trabalhadores beneficiários de políticas
19.785 95,3 8.988 99,9 (77%) e outras contribuicoes
de inclusão social
sociais (20,28%)
Primeiro Emprego 95.798 62,5 99.516 83,1  
Estímulo financeiro ao empregador para geração do
4.181 59,7 2.735 28,9 Recursos ordinários (100%)
primeiro emprego destinado a jovens
Qualificação de jovens com vistas à inserção no mundo
61.128 67,6 76.294 95,5 Recursos ordinários (100%)
do trabalho
Concessão de auxílio financeiro a jovens habilitados
ao primeiro emprego atendidos pelas linhas da ação 29.553 54,1 19.858 69,0 Recursos ordinários (100%)
de qualificação
Economia Solidária em Desenvolvimento 14.527 97,8 31.963 94,1  
Fomento à geração de trabalho e renda em atividades
9.008 98,6 19.227 91,9 Recursos ordinários (99,2%)
de ecomomia solidária
Rede de proteção ao trabalho 20.542 88,7 19.365 76,3  
Fiscalização de obrigações trabalhistas e da
12.469 90,0 12.336 68,8 Recursos ordinários (100%)
arrecadação do FGTS
Fiscalização do trabalho no campo 1.776 91,0 1.578 94,1 Recursos ordinários (100%)
Erradicação do Trabalho Escravo 7.754 89,3 9.383 87,0  
(continua)

10. A Reserva Mínima de Liquidez (RML) destina-se a garantir, em tempo hábil, os recursos necessários ao pagamento das
despesas referentes ao seguro-desemprego e ao abono salarial (Lei no 8.352/1991). Apenas o montante das disponibilidades
financeiras do FAT que excede o valor da RML pode ser aplicado em depósitos especiais remunerados, que viabilizam os
programas de geração de emprego e renda. O montante da Reserva Mínima de Liquidez é determinado, essencialmente,
pelos gastos com os benefícios constitucionais, pois não pode ser inferior ao maior entre os seguintes valores: i) a soma dos
valores pagos em benefícios do Seguro-Desemprego nos seis meses anteriores e de cinqüenta por cento dos valores pagos
em benefícios do Abono Salarial nos doze meses anteriores; e ii) a diferença positiva, no exercício financeiro em curso, entre
o produto da arrecadação das contribuições de PIS/Pasep* e o montante global dos pagamentos efetuados para atender
as despesas com o Seguro-Desemprego, com o Abono Salarial e com o financiamento de programas de desenvolvimento
econômico a cargo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

162 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


(continuação)
2006 2007
Programas e ações selecionados Nível de Nível de Principais fontes de
– PPA 2004-2007 (MTE) Liquidado 1
Liquidado1 financiamento em 20072
execução execução
(em mil) (em mil)
(em %) (em %)
Pagamento do seguro-desemprego ao trabalhador PIS/Pasep (47,3%) e recursos
4.299 100,0 5.045 100,0
resgatado de condição análoga à de escravo próprios financeiros (34,46%)
Fiscalização para erradicação do trabalho escravo 3.411 80,8 3.964 76,5 Recursos ordinários (100%)
Recursos Pesqueiros Sustentáveis 342.924 100,0 484.409 88,7  
Pagamento do seguro-desemprego ao pescador
342.924 100,0 484.409 88,7 PIS/Pasep (84,7%)
artesanal
Segurança e Saúde no Trabalho 44.202 94,6 43.629 96,0  
Inspeção em segurança e saúde no trabalho 2.542 80,7 2.072 98,2 Recursos ordinários (100%)

Fonte: Execução Orçamentária e Financeira da União/Câmara dos Deputados.


Notas: 1 Valores em reais de dezembro de 2007, corrigidos pelo INPC médio do ano.
2
Para mais detalhes sobre o significado de cada uma das fontes de financiamentos, ver: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
(2007). Manual Técnico de Orçamento. Brasília: Imprensa Nacional, 2006. Disponível em: https://www.portalsof.planejamento.gov.br/mto/
edicoesanteriores (acesso em 31/07/2008 às 16h36min).
3
A diferença entre o montante desses programas e o total liquidado diz respeito sobretudo aos recursos transferidos ao BNDES por determinação
constitucional (R$ 8,3 bilhões) e ao complemento da atualização monetária dos recursos do FGTS (R$ 2 bilhões), além de outros programas
e ações não inclusos na tabela. O complemento destina-se a ressarcir os trabalhadores por uma parte da correção monetária que não foi
aplicada ao saldo das suas contas do FGTS por conta do Plano Verão (dezembro de 1988 a fevereiro de 1989) e do Plano Collor I (abril de
1990), conforme sentença do Supremo Tribunal Federal (STF), de agosto de 2000.

Como conseqüência, diminuiu a participação da contribuição do PIS/Pasep no


financiamento dos programas do MTE, e cresceu significativamente a participação
das receitas financeiras do FAT no financiamento final dos principais programas do
ministério. Enquanto a participação das contribuições do PIS/Pasep nas fontes de
receitas dos programas do MTE diminuiu de 72% para 62,3%, a contribuição dos
recursos financeiros próprios subiu de 8,6% para 22,4% do total das fontes de receitas.
O preocupante é que a quase totalidade deste incremento das receitas financeiras
próprias no financiamento das políticas do MTE, ocorrido entre 2006 e 2007 e em
torno de R$ 4,5 bilhões, foi destinado ao Programa Integração das Políticas Públicas de
Emprego, Trabalho e Renda, em especial ao pagamento dos benefícios constitucionais
do seguro-desemprego e do abono salarial.
O significado desse movimento geral é que a principal fonte de financiamento das
políticas de emprego está rapidamente se tornando insuficiente, e o uso das receitas
financeiras do FAT para financiar os próprios benefícios constitucionais do seguro-
desemprego e do abono salarial está impondo um limite à expansão das demais políticas
de emprego e renda do MTE e isto sem se levar em consideração aqui a possibilidade de
redução do patrimônio do FAT.11 Tal como alertado na edição número 14 deste periódi-
co, o ajuste “por dentro” do gasto do MTE, cortando despesas de outros programas do
ministério para poder lidar com o crescimento das despesas obrigatórias definidas pela
Constituição, corre o sério risco de desmontar alguns programas atualmente existentes
caso o problema do financiamento não seja equacionado.
3.1 Programas de garantia de renda: Seguro-Desemprego e Abono Salarial
O Fundo de Amparo ao Trabalhador, como se sabe, foi criado em 1990 com a finalidade
primeira de financiar o pagamento do seguro-desemprego e do abono salarial. Em outras
palavras, antes de investir nos outros programas – intermediação de mão-de-obra, quali-
ficação profissional e programas de geração de emprego e renda –, o fundo deve garantir
o pagamento dos daqueles dois benefícios. No entanto, os gastos com o os Programas

11. As atuais regras de financiamento das políticas públicas de emprego exigem que todos os componentes do patrimônio
do FAT preservem seus valores originais e sejam remunerados. Por isso, apenas as receitas financeiras de cada período podem
ser usadas para financiar gastos correntes, o que tem permitido um crescimento contínuo do patrimônio do fundo – que
em 31/12/2007 era de R$139,4 bilhões (cf. número 13 deste periódico).

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 163


Seguro-Desemprego e Abono Salarial têm apresentado um crescimento significativo nos
últimos anos. No caso do primeiro, por exemplo, houve um aumento em termos reais
de 25% no valor dos benefícios pagos entre 2006, enquanto em 2007 este percentual
foi de 15% – portanto, ainda bastante elevado. No segundo caso, os gastos com o Abono
Salarial aumentaram em 14% em 2006 e em 25% em 2007. Uma vez que as receitas do
FAT não têm crescido na mesma proporção, este fenômeno tem sido causa de preocupação
para os gestores do fundo. Este capítulo esboça algumas conjecturas sobre o que tem
levado a este aumento dos gastos com estes dois programas.
O mercado de trabalho brasileiro tem se comportado de uma forma mais
favorável em termos de geração de ocupação nos últimos quatro anos. No entanto,
tem-se observado também um aumento do número de pessoas que recebem o seguro-
desemprego, o que causou muita surpresa para várias pessoas. Os dados do Sistema de
Acompanhamento Estatístico-Gerencial do Seguro-Desemprego (Saeg/MTE) mostram
que, depois de uma queda em 2004, o número de segurados teve grande crescimento
em 2005 (11,3%) e continuou aumentando em 2006 e 2007 às taxas de 7% e 7,5%,
respectivamente (tabela 2).
É fácil notar que a trajetória do número de segurados não está diretamente vinculada
ao mercado do trabalho em geral, uma vez que o Seguro-Desemprego é destinado apenas
aos trabalhadores do setor formal, e, mesmo dentro dele, o programa atende somente
àqueles demitidos sem justa causa. Portanto, para formular conjecturas sobre as causas do
aumento do número de segurados, há que se analisar o mercado de trabalho formal.
Observa-se pela tabela 2 que, em 2004, o número de admitidos no setor formal
cresceu à impressionante taxa de 15%. Em 2005, entretanto, foram os grupos de desli-
gados e de demitidos sem justa causa que tiveram um grande aumento – cerca de 11%
de crescimento para ambos. O número de segurados, por sua vez, cresceu a uma taxa
de 12%, próxima a dos dois grupos anteriores. Estes resultados são condizentes com
uma hipótese corrente: o crescimento da ocupação formal, mantido o atual alto nível
de rotatividade e dada a estabilidade da cobertura do seguro entre os demitidos sem
justa causa, pode estar contribuindo para aumentar o número de segurados. Diante do
aumento de quase 12% do número de admitidos em 2007 é possível que em 2008
também haja um crescimento muito significativo do número de segurados.
TABELA 2
Taxa de crescimento dos admitidos, desligados e demitidos de empregos formais, e de segurados e
beneficiários do Programa Seguro-Desemprego1
Demitidos s/justa
Período Admitidos Desligados Segurados Beneficiários
causa
2001 1,98 7,74 8,86 11,29 10,80
2002 (1,10) (1,23) (1,23) 2,50 2,57
2003 (0,00) 1,27 2,66 3,44 3,69
2004 15,06 6,58 3,71 (2,68) (2,77)
2005 7,81 11,79 11,52 12,02 12,13
2006 5,35 6,20 6,24 5,57 5,17
2007 11,77 9,67 7,21 6,42 5,89
Fontes: Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged/MTE) e Saeg/MTE.
Nota: 1 Os desligados incluem, além dos demitidos sem justa causa, as demissões por justa causa, as demissões voluntárias, os términos de contratos
temporários, as aposentadorias, e os casos de falecimento.

Outro aspecto que deve ser analisado é o valor médio do benefício. Como se sabe,
o valor da parcela do seguro-desemprego situa-se entre 1 e 2,5 salários mínimos (SM),
isto é, a variação do valor do benefício é bastante ligada às elevações do SM. Os dados
do Saeg mostram que o valor médio do benefício tem crescido consistentemente entre

164 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


2001 e 2007, passando de cerca de R$ 250,00 para cerca de R$ 480,00 – o ritmo deste
crescimento só foi inferior a 10% em 2007. Comparativamente ao salário mínimo, o
valor do benefício cresceu a um ritmo inferior durante todo o período. Ao mesmo tempo,
o valor do benefício em salários mínimos tem apresentado uma queda ao longo dos
últimos anos. Provavelmente, o crescimento do valor médio do benefício foi impulsio-
nado pelo crescimento dos menores benefícios, principalmente daqueles iguais ao salário
mínimo. Portanto, a elevação do salário mínimo deve ser considerada um dos fatores
do aumento dos gastos com o Seguro-Desemprego.
Por fim, uma outra fonte de aumento dos gastos com esse programa nos últimos anos
foi o grande crescimento da quantidade de segurados na modalidade Pescador Artesanal.
Isto tem muito a ver com a promulgação da Lei no 10.779/2003, que, entre outras coisas,
diminuiu, de três anos para um ano, a exigência de tempo de registro do pescador na Se-
cretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (Seap). Isto resultou num crescimento do número
de segurados desta modalidade, entre 2000 e 2007, de 58 mil para 352 mil, enquanto os
gastos com o benefício aumentaram de R$ 27 milhões para R$ 458 milhões.
O Abono Salarial, por sua vez, também tem apresentado um crescimento signifi-
cativo nos seus gastos, passando de cerca de R$ 4 bilhões em 2006 para R$ 5 bilhões
em 2007 (tabela 1). Este crescimento não está ligado apenas à trajetória ascendente
do salário mínimo, mas também ao aumento tanto do número de pessoas que tem
direito ao benefício quanto do número daquelas que o recebem. De 2002 a 2007,
observou-se um aumento constante destes dois grupos, e mais especificamente em
2007 verificou-se um crescimento recorde no período, de mais de 20%. É certo
também que os gastos com o Abono Salarial foram influenciados pelo aumento da
ocupação formal verificado nos últimos anos.
Nota-se que o crescimento dos gastos com os dois benefícios advém de fenômenos
a princípio positivos no mercado de trabalho: aumento do emprego formal e elevação
do salário mínimo. Na verdade, são processos que precisam ser mantidos por um longo
tempo para que se melhore a qualidade do emprego e a distribuição de rendimentos
no Brasil. Contudo, não se pode deixar de lado a questão da rotatividade, que é muito
alta devido à grande flexibilidade do mercado de trabalho no Brasil,12 e que contribui
para que o crescimento do número de admitidos no mercado formal se converta em
uma fonte de aumento de gastos com o Programa Seguro-Desemprego. Também deve
ser rediscutida a forma de financiamento do FAT, cujos gastos estão, como se verificou
na subseção anterior, cada vez mais dependentes das suas fontes financeiras, que, por
sua vez, têm seu aumento propiciado pela elevação da taxa de juros – um fator que traz
prejuízo ao comportamento do mercado de trabalho.
3.2 Programas que ofertam serviços: Intermediação, Qualificação Profissional e
Primeiro Emprego
Não obstante as despesas reais com o serviço de orientação profissional e intermediação
de mão-de-obra terem permanecido praticamente iguais às de 2006 (tabela 1), observou-
se um crescimento intenso no número de vagas captadas e trabalhadores colocados
no mercado de trabalho: em comparação ao ano anterior, o número de vagas captadas pelo
sistema em 2007 cresceu 16,4%, e o número de trabalhadores colocados nas empresas

12. Para mais detalhes, ver seção Tema em destaque ao fim deste capítulo.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 165


aumentou 11,7%. Em termos de magnitude, este desempenho do sistema de interme-
diação de mão-de-obra só foi comparável ao experimentado em 2002 (tabela 3).
Na verdade, porém, pode-se dizer que essa performance não foi determinada por
uma melhoria da eficácia e/ou efetividade do sistema, mas principalmente pela con-
juntura favorável do mercado de trabalho formal em 2007: quando se observam alguns
indicadores de desempenho da ação de Orientação Profissional e Intermediação de Mão-de-
Obra, nota-se não ter havido grandes avanços, e, no caso da taxa de aderência, observa-se
até mesmo uma deterioração do indicador. Enquanto a taxa de efetividade e a taxa de
admissão permaneceram relativamente estáveis, a taxa de aderência – que representa a
razão entre o número de trabalhadores colocados e o número de vagas captadas – apre-
sentou uma queda de cerca de 2 p.p. A tendência de queda deste indicador sinaliza que,
embora o número de vagas disponibilizadas pelas empresas esteja crescendo rapidamente,
o sistema de intermediação tem enfrentado dificuldades crescentes para aproveitá-las. Isto
pode estar vinculado tanto a um maior descasamento entre os requerimentos das empresas
e as características dos inscritos no sistema,13 quanto a uma menor competitividade do
sistema público de intermediação em relação às demais agências de colocação.14
TABELA 3
Evolução do Programa Intermediação de Mão-de-Obra (2000-2007)
Ano Inscritos Vagas Colocados
Taxa de efetividade1 Taxa de aderência2 Taxa de admissão3
Var. Var. Var. (%) (%) (%)
  No No No
(%) (%) (%)
2000 4.805.433 27,70 1.281.220 22,70 581.618 37,70 12,10 45,40 6,00
2001 4.687.001 -2,50 1.435.173 12,00 742.880 27,70 15,80 51,80 7,20
2002 5.118.563 9,20 1.648.542 14,90 869.585 17,10 17,00 52,70 8,90
2003 5.444.219 6,40 1.560.767 -5,30 844.693 -2,90 15,50 54,10 8,60
2004 4.872.769 -10,50 1.670.751 7,00 886.483 4,90 18,20 53,10 7,80
2005 4.977.550 2,20 1.718.736 2,90 893.728 0,80 18,00 52,00 7,30
2006 5.148.720 3,40 1.772.282 3,10 878.394 -1,70 17,10 49,60 6,80
2007 5.593.203 8,60 2.063.663 16,40 980.829 11,70 17,50 47,50 6,80
Fonte: MTE.
Notas: 1 Razão entre o número de trabalhadores colocados e o número de trabalhadores inscritos.
2
Razão entre o número de trabalhadores colocados e o número de vagas captadas.
3
Razão entre o número de trabalhadores colocados e o número de trabalhadores admitidos segundo o Caged.

O desempenho do sistema também foi muito desigual entre as regiões do país.


No Sudeste, região que obteve o melhor desempenho, o número de vagas captadas
aumentou 18,1% e o número de colocados teve um crescimento de quase 30%.
Nas regiões Nordeste e Centro-Oeste, contudo, o contingente de trabalhadores colocados
diminuiu em relação ao ano anterior, apesar do crescimento expressivo no número de
vagas captadas pelo sistema nestas regiões.
O Programa Qualificação Social e Profissional, a exemplo do que ocorreu em 2006,
apresentou uma redução real de 2,7% no volume de recursos liquidados. Esta redução
nas despesas deveu-se inteiramente ao seu menor nível de execução, tendo em vista
que o volume de recursos autorizado para o programa cresceu de R$ 99,3 milhões para
R$ 120,6 milhões no período.
Apesar dos dados de 2007 não estarem ainda consolidados até o fechamento desta
edição (tabela 4), a tendência de aumento da carga horária média dos cursos e do custo

13. Por exemplo, nos casos em que as empresas exigem um profissional com determinado período de experiência em um ramo
em que está se tornando cada vez mais difícil ser encontrado, dada a expansão do mercado de trabalho dos últimos anos.
14. As empresas, ao disponibilizarem uma vaga de emprego, procuram captá-la por meio de várias agências: públicas
e privadas.

166 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


por educando/hora verificada nos últimos anos converge para as mudanças propostas
em 200315 quanto à prioridade tanto dos cursos de longa duração quanto da melhoria
da qualidade dos cursos. Ao mesmo tempo, entretanto, a diminuição do volume de
recursos liquidados aponta para uma limitação do alcance do programa, a exemplo do
que vem sendo observado desde 2005.
TABELA 4
Evolução do Programa Qualificação Social e Profissional (2003-2007)
Carga horária média - Custo educando/hora
Ano Educandos inscritos Educandos concluintes Taxa de evasão
concluintes concluintes (R$)1
2003 144.557 139.433 110,88 2,35 3,5%
2004 155.145 147.352 176,70 2,47 5,0%
2005 124.518 117.430 184,34 2,54 5,7%
2006 119.332 112.650 195,20 2,54 5,6%
20072
528.421 319.781 197,141 2,691 -
Fonte: MTE. Base de Gestão da Qualificação – em 15 de abril de 2008.
Notas: 1 Valores Correntes.
2
Os dados de 2007 são parciais, tendo em vista que a execução dar-se-á até 30 de abril de 2008, e as prestações de contas, até maio de 2008.

O Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego (PNPE) teve um cresci-


mento real nas despesas liquidadas de quase 4% em 2007. Com isso, observou-se um
aumento tanto no número de jovens qualificados quanto no número de jovens inseridos
no mundo do trabalho por meio do programa.
No que se refere à sua composição interna, o programa sofreu uma diminuição
de mais de 30% dos recursos destinados à ação Concessão de Auxílio Financeiro a Jovens
Habilitados ao Primeiro Emprego Atendidos pelas Linhas da Ação de Qualificação, ao tem-
po em que experimentou um crescimento substancial dos recursos destinados à ação
Qualificação de Jovens com vistas à Inserção no Mundo do Trabalho.
A maior parte da inserção dos jovens no mercado de trabalho se deu pela fiscali-
zação do trabalho, ao impor às empresas o cumprimento da lei de aprendizagem, que
determina a contratação obrigatória de certo número de aprendizes.16
No número 14 deste periódico, sinalizou-se a tendência de o PNPE tornar-se pre-
dominantemente um programa de qualificação voltado para jovens, e a nova política
nacional de juventude, anunciada em setembro de 2007, previu a unificação de todos os
programas com estas características. As modalidades dos Consórcios Sociais da Juventude
e do Juventude Cidadã, juntamente com o Programa Escola de Fábrica do Ministério da
Educação, comporiam o Projovem Trabalhador.17 Porém, a operação destas modalidades
continua a cargo dos respectivos ministérios, e até o momento não há clareza quanto ao
desenho futuro de uma ação unificada.
3.3 Programas de geração de trabalho e renda: Proger, PNMPO, Ecosol
Programas de crédito
Nos últimos números deste periódico, tem-se ressaltado que os programas de geração
de emprego e renda, operacionalizados a partir de depósitos especiais remunerados do
FAT nas instituições financeiras oficiais federais, seguem uma trajetória de acentuado
crescimento do volume de operações e do valor total dos empréstimos, especialmen-
te a partir de 2002. A cada ano, inúmeras linhas de crédito foram incorporadas ao

15. Para mais detalhes sobre essas mudanças, ver o número no 13 deste periódico.
16. A subseção 3.4 deste capítulo, adiante, discorre sobre os programas que fiscalizam condições e relações de trabalho.
17. Uma descrição mais pormenorizada dessa transição pode ser encontrada no número 15 deste periódico, capítulo Direitos
Humanos e Cidadania.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 167


programa, que deixou de privilegiar sua função precípua (conceder empréstimos a pe-
quenos empreendedores formais e informais com pouco ou nenhum acesso ao sistema
financeiro tradicional) para suprir a escassez de crédito de diferentes setores da economia.
Atualmente, conforme apresenta a tabela 5, existem 20 linhas de crédito no âmbito do
programa, das quais grande parte não se destina a pequenos empreendimentos popula-
res – tendo até mesmo, algumas vezes, questionável compromisso com os objetivos de
geração de trabalho e renda.
Este periódico também tem indicado recorrentemente para os sinais de esgotamento
que vêm sendo dados pelo atual esquema de financiamento do sistema público de
emprego. De fato, no que diz respeito ao financiamento dos programas de geração
de emprego e renda, nota-se que a acelerada elevação do montante de recursos aplicados
em depósitos especiais nos últimos anos acarretou uma sensível redução dos excedentes à
RML – e sabe-se que a RML deve crescer de maneira a acompanhar a elevação dos gastos
com os benefícios constitucionais. Em um tal cenário, se a fonte de recursos dos depósi-
tos especiais é parte do excedente da RML e este excedente está escasseando, mesmo as
perspectivas mais otimistas já admitiam que novos aportes de recursos aos programas de
geração de emprego e renda – via PDEs aprovadas pelo Codefat – 18 não conseguiriam
manter, em um futuro próximo, os níveis que recentemente vinham atingindo.
Em 2007, parece ter ocorrido esta esperada inflexão na evolução dos programas de gera-
ção de emprego e renda. Conforme pode ser observado na tabela 5, o número de operações
de crédito no ano caiu 25% em relação ao verificado em 2006, e o valor total das operações
teve uma queda de 18,2%, o que, em valores absolutos, representou quase R$ 5 bilhões.
TABELA 5

Evolução dos programas de geração de emprego e renda com recursos do FAT (2006 e 2007)
2006 2007 Variação
Programas
Qtd. operações Valor em R$ Qtd. operações Valor em R$ Qtd. operações Valor em R$
Proger Urbano 2.227.654 7.232.268.351 1.784.846 6.754.693.023 -19,88% -6,60%
FAT- Empreendedor Popular 6.648 36.757.961 5.687 25.936.655 -14,46% -29,44%
Proger Turismo 2.017 74.285.803 2.290 104.650.190 13,53% 40,88%
Proger Exportação 242 9.071.523 232 30.021.607 -4,13% 230,94%
Jovem Empreendedor 179 2.181.604 63 922.763 -64,80% -57,70%
Proger Rural 2.610 68.719.994 997 27.980.433 -61,80% -59,28%
Pronaf 386.301 2.243.415.327 169.811 1.637.801.739 -56,04% -27,00%
Proemprego 1.186 503.337.212 1.204 378.164.969 1,52% -24,87%
FAT-HABITAÇÃO 24 1.741.562 - - -100,00% -100,00%
FAT-Material de Construção 114.802 245.944.853 89.317 222.551.477 -22,20% -9,51%
FAT-FOMENTAR 7.079 2.120.213.716 13.692 3.326.829.718 93,42% 56,91%
FAT-INTEGRAR 2 2.069.690 - - 100,00% -100,00%
FAR-GIRO Rural 6.399 2.081.901.617 3.946 716.344.391 -38,83% -65,59%
FAT-GIRO Setorial 7.566 1.824.542.606 7.077 1.063.264.128 -6,46% -41,72%
FAT-GIRO Coop. Agropecuário 27 33.764.522 11 6.550.000 -59,26% -80,60%
FAT Inclusão Digital 10.013 11.600.028 1.866 2.074.854 -81,36% -82,11%
IE Econômica 2.956 4.993.096.926 947 4.023.704.590 -67,96% -19,41
IE Insumos Básicos 607 1.489.712.456 203 510.940.957 -66,56% -65,70%
FAT-EXPORTA1 196 1.729.575.481 123 1.430.222.876 -37,24% -17,31%
Finep 50 349.975.958 55 232.911.940 10,00% -33,45%
Total 2.776.558 25.054.177.190 2.082367 20.495.566.311 -25,00% -18,20%
Valor total/orçamento MTE - 86,72% - 66,49%
Fonte: Departamento de Emprego e Salário/MTE.
Elaboração: Disoc/Ipea.
Nota: 1 Não incluem os programas financiados com os depósitos constitucionais no BNDES.
Obs.: Dados preliminares. Posição em 17 de março de 2008.
Valores correntes.

Certamente, uma redução no número e no valor total das contratações não evi-
dencia per se que os programas de geração de emprego e renda começam a enfrentar

18. PDEs: Programações de Depósitos Especiais; Codefat: Conselho Deliberativo do FAT.

168 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


limites ao seu crescimento. A verificada retração poderia advir, por exemplo, de uma
reorientação das diretrizes dos programas, tornando-os mais focados nos seus objetivos
originais de conceder crédito à população excluída do sistema financeiro, em projetos
que priorizem a geração de emprego e renda. Poderia, também, ser resultado de entraves
administrativos e/ou políticos para a aprovação da alocação de depósitos especiais por
parte do Codefat. Ou, ainda, poderia representar que recursos alocados em depósitos
especiais ficaram represados nas instituições financeiras oficiais, sem que tivessem sido
emprestados aos tomadores finais.
Entretanto, das hipóteses levantadas, a que parece mais factível remete à questão
do financiamento. Por um lado, as informações analisadas não permitem dizer que
ocorreu uma reorientação dos programas de geração de emprego e renda. As quedas no
número e no valor total das contratações foram generalizadas, tendo impactado prati-
camente todas as linhas de crédito. Além disso, nota-se um crescimento do valor médio
das operações contratadas (9,07%), resultado bastante improvável caso os empréstimos
tivessem priorizado o acesso aos pequenos empreendedores formais ou informais.
Por outro lado, uma análise mais atenta a respeito da evolução das alocações em depó-
sitos especiais e dos excedentes à RML parece dar evidências suficientes de que o atual
esquema de financiamento do sistema público de emprego tem causado constrangimentos
às políticas de geração de trabalho e renda, em conformidade com o que vem sendo
sinalizado neste periódico.
Verifica-se na tabela 6 que o valor total de novos recursos aplicados na forma de
depósitos especiais caiu sobremaneira. Em 2006, as alocações destes depósitos totalizaram
R$ 16,2 bilhões, enquanto em 2007 a quantia foi de apenas R$ 9 bilhões – uma redução
de 44%. Isto significa que os recursos disponibilizados para os programas de geração
de emprego e renda, de fato, diminuíram. Aliás, os novos aportes de depósitos especiais
em 2007 reduziram-se mais do que a queda observada no valor total emprestado pelas
instituições financeiras (18,2%), o que põe em xeque também a hipótese dos recursos
terem ficados represados nas instituições financeiras.
TABELA 6
Evolução dos depósitos especiais, do Saldo Extramercado e das Reservas Mínimas de Liquidez do
FAT (2000-2007)
(Em R$ milhões correntes)
Depósitos especiais
Saldo Extramercado RML Excedente à RML
Ano Saldo
Alocações (31/12) (em 31/12) (em 31/12)
(em 31/12)
2000 15.782 2.131 6.673 2.812 3.861
2001 15.192 2.232 8.885 3.645 5.240
2002 19.972 5.481 8.707 2.567 6.140
2003 22.083 5.673 13.830 4.957 8.873
2004 27.350 6.902 15.541 5.006 10.535
2005 37.692 13.920 11.621 6.822 4.799
2006 48.482 16.202 8.157 7.552 605
2007 49.242 9.533 9.875 9.489 486
Fonte: Coordenação-Geral de Recursos do FAT/MTE.

Atendo-se à trajetória dos excedentes à RML, nota-se que a queda é realmente


acentuada. Na verdade, o resultado de 2007 expressa o patamar mínimo já verificado
no histórico do FAT. Assim, não seria razoável considerar que a retração nas alocações
de depósitos especiais foi uma medida deliberada, ou resultado de algum entrave admi-
nistrativo: é, sem dúvida, conseqüência da escassez de recursos disponíveis para financiar
os programas de geração de emprego e renda.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 169


Nesse contexto, algumas considerações se fazem pertinentes. Aceitas as regras de
gestão financeira do FAT, as atuais restrições de recursos para as alocações em depósitos
especiais colocam em primeiro plano a necessidade de se racionalizarem os programas
de geração de emprego e renda, por meio da redução da pulverização de recursos entre
linhas de crédito de impactos duvidosos sobre a geração de trabalho, e da promoção de
uma democratização mais efetiva do acesso ao crédito. Nesta direção, parece oportuno
rediscutir o desenho institucional dos programas de geração de emprego e renda, uma
vez que a trajetória de 13 anos destes programas evidenciou resultados muito tímidos
quanto à democratização e à difusão do acesso ao crédito.
Na atual arquitetura institucional, quem define a alocação dos recursos do FAT, em
última instância, são as instituições financeiras oficiais federais. Estas, por sua vez, em geral
operam segundo uma lógica de mercado, revelando profundo desinteresse em atingir as
camadas mais vulneráveis, percebidas como o segmento de maior risco. Assim, entre
as questões centrais que merecem ser reconsideradas, estão: a obrigatoriedade de remu-
neração mínima do FAT vinculada à TJLP; as formas de participação e os mecanismos
de controle social; a articulação dos programas de geração de emprego e renda com as
demais políticas de trabalho e renda; e a exclusividade das instituições financeiras oficiais
federais em receber os repasses diretos do FAT.
Ao mesmo tempo, há que se avaliar a pertinência de se alterarem as atuais regras de
gestão financeira do FAT: tais alterações não podem comprometer o patrimônio do fundo
e, muito menos, o pagamento dos benefícios constitucionais. Por alguns anos, os recursos
do FAT, na forma dos programas de geração de emprego e renda, supriram a escassez de
crédito de diferentes setores econômicos, o que representou uma expressiva injeção de crédi-
to na economia. Dessa maneira, conclui-se ser importante estudar se a reorientação dos
programas de geração de emprego e renda e, conseqüentemente, a extinção de algumas
linhas provocariam gargalos à produção nacional, ou se esta demanda de crédito poderia
ser perfeitamente suprida pelos bancos de desenvolvimento, agências de fomento e
bancos comerciais.
Por fim, vale registrar que o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado
(PNMPO), instituído em 2004, apresentou continuidade na sua trajetória de crescimen-
to em 2007, ainda que a taxas mais baixas que a obtida no ano anterior. O volume de
operações de microcrédito em 2007 foi de R$ 963,5 mil, representando um crescimento
de 16,24% em relação a 2006. O total de recursos liberados foi da ordem de R$ 1,1
bilhão, cabendo ressaltar que grande parte deste valor refere-se à atuação do CrediAmigo,
vinculado ao Banco do Nordeste, que já opera com microcrédito há 10 anos.
TABELA 7

Evolução do Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO) – 2005 e 2007


Qtde de operações de Crescimento no ano Valor condedido Crescimento no ano
Ano
Microcrédito concedidas em (%) (em R$ 1,00)1 (em %)
2005 632.106 - 602.340.000,00 -
2006 828.847 31,12% 831.815.600,94 38,10%
2007 963.459 16,24% 1.100.375.829,94 32,29%
Total 2.424.412 2.534.531.430,72
Fonte: Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado/MTE.
Nota:1 Valores correntes.

Além de concentrado em uma única instituição, destaca-se que o volume de recur-


sos emprestado ainda está bastante abaixo do potencial existente, uma vez que os agentes
financeiros podem usar para financiamento desse programa os recursos da exigibilidade

170 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


bancária, que, caso não sejam aplicados, são recolhidos pelo Banco Central sem qualquer
remuneração. Para se ter uma idéia deste potencial, a exigibilidade bancária em dezembro de
2007 era de R$ 2,98 bilhões. Entretanto, tudo indica que o programa ainda não conseguiu
criar incentivos suficientes para que as operações de microcrédito tornem-se atrativas aos
interesses privados dos bancos e difundam-se conforme socialmente desejável.
Economia Solidária
Outras ações de geração de trabalho e renda, também sob a responsabilidade do MTE,
dizem respeito à proposta do atual governo de buscar a consolidação de um segmento
de economia solidária no conjunto do aparelho produtivo.
Porém, essa proposta vem tendo grandes dificuldades para avançar mais rápido,
principalmente em decorrência da discrepância entre o volume dos desafios com que
se defronta e os recursos disponibilizados para o financiamento das suas ações. Tal
disparidade faz que os escassos recursos alocados, tanto financeiros como de pessoal,
sejam distribuídos entre diversas frentes de intervenção, colocando em questão a própria
capacidade das ações virem a ter a efetividade pretendida.
Em 2007 os desafios foram enfrentados dentro do Programa Economia Solidária
em Desenvolvimento, com a implementação de ações voltadas para:
a) a ampliação da base de dados do Sistema Nacional de Informações em Economia
Solidária, que teve como principal iniciativa no ano uma nova rodada de mape-
amento dos empreendimentos solidários existentes, com um acréscimo de mais
6.905 empreendimentos sobre o levantamento realizado em 2005/2006, totalizando
21.859 unidades econômicas com informações registradas;
b) a capacitação de gestores, por intermédio de uma parceria com a Fundação Banco
do Brasil, para a dinamização da participação das superintendências regionais do
Trabalho (antigas delegacias regionais) nas ações do programa, e o apoio ao fun-
cionamento do Conselho Nacional de Economia Solidária;
c) o fortalecimento de empreendimentos econômicos solidários, concretizado por
meio de quatro ações em 2007: Capacitação de Agentes de Desenvolvimento Solidá-
rio, Fomento à Geração de Trabalho e Renda em Atividades de Economia Solidária,
Recuperação de Empresas por Trabalhadores Organizados em Autogestão, e Fomento
a Redes de Produção e Comercialização de Bens e Serviços Produzidos pela Economia
Solidária.
Embora o conjunto dessas ações represente um avanço em direção aos objetivos de
consolidação de um segmento de economia solidária no interior do desenvolvimento
capitalista brasileiro, a limitação de recursos faz com que a velocidade dos resultados
alcançados esteja bastante aquém do desejado – debilidade esta que deve ser vista, no
atual contexto da economia, com bastante preocupação.
Contrariamente à situação de crise na década passada, quando o mercado de tra-
balho não oferecia perspectivas de absorção da mão-de-obra necessitada de ocupação,
a realidade atual é distinta – e as perspectivas para o futuro próximo não sugerem uma
alteração significativa do quadro –, com o assalariamento formal crescendo a taxas três
a quatro vezes superiores às da população economicamente ativa.
Assim, a manutenção das bandeiras da economia solidária, sintetizadas na sua ca-
pacidade de contribuir para um modelo de desenvolvimento econômico que seja ética,

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 171


social e ambientalmente superior, terá que estar cada vez mais ancorada no desempenho
que chegar a ter no campo estritamente econômico. Para tanto, evidencia-se fundamental
o fortalecimento das políticas públicas de apoio ao setor.
Daí a preocupação: como esse fortalecimento pode, politicamente, vir a acontecer,
se a conjuntura do mercado de trabalho já não confere à economia solidária a mesma
relevância de antes no que diz respeito à sua função de “empregadora dos excluídos”,
que, para muitos, é a sua principal justificativa? Para além desta estreita concepção, a
economia solidária deve mostrar o papel que tem a desempenhar em um cenário de
ampla mobilização da capacidade produtiva do país, no qual a questão do emprego não
se coloca da mesma forma como há poucos anos atrás.
O novo cenário, portanto, coloca os desafios da economia solidária em uma pers-
pectiva ainda mais exigente, tornando-a, de forma crescente, uma alternativa verdadei-
ramente consistente de trabalho digno, bem remunerado e estável.
3.4 Programas que fiscalizam condições e relações de trabalho
O Ministério do Trabalho e Emprego implementa o Programa Segurança e Saúde no Tra-
balho, que tem por finalidade a proteção da vida, da segurança e da saúde do trabalhador,
por meio da prevenção da ocorrência de doenças ocupacionais, acidentes do trabalho e
mortes. O programa também produz e difunde conhecimento sobre segurança e saúde
no ambiente de trabalho, e contempla a prevenção da violência no trabalho contra
crianças e adolescentes por intermédio da inspeção do trabalho. As ações integrantes
do programa compreendem: i) inspeção em segurança e saúde no trabalho; ii) avaliação
de sistemas, métodos e equipamentos de proteção individual e coletiva do trabalhador;
iii) alimentação do trabalhador; iv) normatização em segurança e saúde no trabalho; e
v) difusão do conhecimento e capacitação.
BOX 1
Marco legal da política de saúde e segurança do trabalhador

A segurança e saúde do trabalhador está amparada por fundamentação legal prevista na Constituição Federal de 1988, que
estabelece a competência da União na matéria, por meio das ações desenvolvidas pelos ministérios do Trabalho e
Emprego, da Previdência Social e da Saúde. O artigo 1o tem como um dos princípios fundamentais o valor social
do trabalho; o artigo 6o considera como direitos sociais, entre outros, a saúde, o trabalho, a previdência social e a
segurança; o artigo 196 estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado, com garantias de redução do
risco de doença e de outros agravos e ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. As atribuições
estatais estão regulamentadas: na Consolidação das Leis do Trabalho (Capítulo V, do Título II, Lei no 6.229/1975),
nas Leis nos 8.212/1991 e 8.213/1991, que dispõem sobre a organização da seguridade social e instituem planos
de custeio e planos de benefícios da Previdência Social, e na Lei Orgânica da Saúde (Lei no 8.080/1990).

Os recursos financeiros do programa são provenientes do Orçamento da Seguridade


Social, fonte Tesouro Nacional, com dotação inicial na Lei Orçamentária Anual (LOA)
2007 de R$ 43,839 milhões, tendo sido realizado o montante de R$ 43,640 milhões. Esta
execução corresponde a 96% dos recursos inicialmente autorizados de R$ 45,457 milhões,
e a 1,4% dos recursos liquidados do ministério (tabela 1, ao início desta seção).
O Segurança e Saúde no Trabalho conta com cinco indicadores de acompanhamento
que avaliam os acidentes, as doenças e a mortalidade decorrentes do trabalho, os trabalha-
dores alcançados pela inspeção de segurança e saúde, e a taxa de acidentes fatais investiga-
dos. Os resultados de 2007 mostram, em relação a 2002 (ano base para o estabelecimento
das metas dos planos plurianuais), aumento nos acidentes do trabalho, nas doenças do
trabalho, no número de acidentes fatais investigados, embora diminuição da mortalidade
por acidentes de trabalho. Estes resultados podem ser decorrência do crescimento do

172 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


número de trabalhadores alcançados pela ação fiscal em segurança e saúde no trabalho
em 2007, em relação aos anos anteriores. Podem também decorrer da implantação
do Nexo Técnico Epidemiológico (NTEP), em abril de 2007, pela Previdência Social.
Este sistema estabelece um nexo entre as atividades econômicas (Classificação Nacional
de Atividades Econômicas – CNAE) e os agravos descritos no Código Internacional
de Doenças (CID-10), e permite ao perito médico estabelecer relação entre a doença
apresentada pelo segurado e a atividade exercida – se doença de origem ocupacional, a
conseqüência será a concessão do auxílio-doença acidentário, independentemente de
a empresa notificar a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT).
BOX 2
Estrutura de fiscalização e promoção da saúde e segurança do trabalhador

A institucionalização da segurança e saúde do trabalhador teve início pouco depois da criação do Ministério do
Trabalho, em 1930, sob a denominação de Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Em 1932 foram criadas as
inspetorias regionais, que foram transformadas, em 1940, em delegacias regionais do trabalho. Em 1966, foi criada
a Fundação Centro Nacional de Segurança, Higiene e Medicina do Trabalho (Fundacentro), que teve mudada sua
denominação em 1978 para Fundação Jorge Duprat Figueiredo, de Segurança e Medicina do Trabalho, após o
ministério passar a denominar-se Ministério do Trabalho, o que ocorreu em 1974. Em 1990 foram criados alguns
órgãos, entre os quais o Conselho de Gestão da Proteção ao Trabalhador – extinto em 1992, quando o ministério
passou a se chamar Ministério do Trabalho e da Administração Federal. Em 1999, sob a designação de Ministério
do Trabalho e Emprego, sua estrutura organizacional passou a constituir a Secretaria de Inspeção do Trabalho e a
Fundação Jorge Duprat Figueiredo, de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro). Em 2008, o Decreto
no 6.341, de 3 de janeiro, alterou a nomenclatura das delegacias regionais do Trabalho para superintendências
regionais do Trabalho e Emprego; das subdelegacias do Trabalho para gerências regionais do Trabalho e Emprego;
e das agências de atendimento para agências regionais. As superintendências regionais do Trabalho e Emprego
tornaram-se responsáveis pela execução, supervisão e monitoramento de todas as ações relacionadas às políticas
públicas afetas ao Ministério do Trabalho e Emprego.

Os setores de fiscalização e de saúde e segurança do trabalho atuam em colaboração


com o programa, e a fiscalização propiciou ainda outros resultados: alcançou 357.788
empresas e locais de trabalho, tendo sido autuadas 60.677 empresas. Os desdobramen-
tos desta ação, relacionadas ao trabalho decente, indicam que foram encontradas 7.999
crianças (não-aprendizes) trabalhando, libertos 5.963 trabalhadores, registrados sob ação
fiscal 746.245 trabalhadores, e contratados 52.676 trabalhadores aprendizes.
Não âmbito da previdência, foram concedidos 1.825.508 auxílios-doença, dos
quais 274.946 de ordem acidentária, com o predomínio de dorsalgia (41.490), fraturas
do punho e da mão (27.560), sinovite e tenossinovite19 (19.272).
4 Tema em Destaque
Convenção no 158 da OIT: objeto, efeitos e importância para a disciplina do mercado
e das relações de trabalho no Brasil
Em 14 de fevereiro de 2008, o Poder Executivo remeteu ao Congresso a Mensagem
no 59, requerendo a aprovação da Convenção no 158 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT). A convenção regula o exercício do poder de dispensa do empregador
e proíbe a demissão imotivada. O anúncio de sua assinatura e envio ao Congresso
suscitou a imediata reação de entidades patronais, de seus intelectuais orgânicos e de
parlamentares a elas vinculados.
Em 2 de julho, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara
aprovou, em caráter terminativo, parecer do deputado federal Júlio Delgado (PSB-
MG) pela rejeição da Mensagem no 59/2008 O relator alegou que a medida geraria um

19. Dorsalgia: dor na região dorsal; sinovite: inflamação da membrana que lubrifica as articulações; tenossinovite inflamação
nas articulações e tendões.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 173


“engessamento” da economia, inibiria a geração de empregos e não resolveria o problema
da rotatividade, dado que esta decorreria da natureza das atividades e da própria iniciativa
do empregado em “provocar” sua demissão. O relatório aprovado determinou, ainda, o
arquivamento da mensagem presidencial.
O debate sobre a Convenção no 158, porém, ainda está longe de terminar. Dentro da
Câmara, a decisão da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional é objeto de questio-
namentos quanto à sua regularidade. Com base no regimento da Casa, alguns parlamentares
sustentam que aquela comissão não tem poder para arquivar proposições. Assim, mesmo
com parecer contrário, a Mensagem no 59/2008 deveria seguir seu trâmite.
Outra tese manejada pelos defensores da convenção é a de que a decisão daquela
comissão, bem como a própria Mensagem no 59/2008, seria inócua, vez que ela já estaria
em vigor. A tese se fundamenta no entendimento de que o Decreto no 2.100/1996, que
extirpou-a da ordem jurídica brasileira, seria inconstitucional – o que é, aliás, objeto
da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no 1.625, em tramitação no Supremo
Tribunal Federal (STF) e tratada adiante nesta seção.
Para além do componente formal da discussão, faz-se necessária à compreensão do
que está em causa a análise de questões como o alcance das alterações que a Convenção
no 158 – se e quando efetivamente incorporada ao direito interno, ou reconhecida sua
incorporação20 produzirá na disciplina das relações de trabalho, e de seus efeitos sobre
a dinâmica do mercado brasileiro de mão-de-obra.
A alta rotatividade da força de trabalho é um dos aspectos centrais do regime de
acumulação do capital instituído no Brasil a partir de 1964. Ao eliminar, na prática,21
a estabilidade e as indenizações por demissão a que tinham direito os trabalhadores do
setor privado, a administração Castelo Branco tornou mais fácil e menos dispendiosa
para as empresas a demissão de empregados, possibilitando a formação e o recurso a
imensas reservas flutuantes de mão-de-obra, às quais recorrem para rebaixar o nível sa-
larial. Tornou-se corrente, por exemplo, a prática de dispensar trabalhadores em véspera
de negociação coletiva para contratar outros com salários mais baixos, de modo a anular
o efeito dos reajustes.
A própria estrutura de custos da mão-de-obra foi redesenhada de modo a incentivar
a rotatividade. Ao substituir a indenização paga no ato da dispensa por um depósito
mensal de 8% do valor do salário do empregado em uma conta vinculada, elevou-
se o custo fixo da mão-de-obra e praticamente eliminou-se o ônus de sua dispensa,
uma vez que, primeiro, o empregador tem que arcar com o encargo relativo ao FGTS

20. No Brasil, o rito de incorporação dos acordos internacionais ao ordenamento jurídico interno compõe-se de: i) assinatura
pelo presidente da República; ii) envio ao Congresso para deliberação; iii) rejeição e arquivamento ou aprovação e remessa
ao presidente da República; iv) ratificação, pelo Executivo, junto ao organismo em cujo âmbito se celebrou o acordo; e
v) promulgação pelo presidente da República, por meio de decreto. Após a conclusão deste procedimento, o acordo passa
a gerar efeitos no direito interno.
21. O sistema de indenização e estabilidade previsto nos artigos 477 e 492 do Decreto-Lei no 5.452/1943 (Consolidação das
Leis do Trabalho – CLT) jamais sofreu revogação expressa, mas foi esvaziado a partir da Lei no 5.107/1966, que criou o Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Embora se assegurasse ao trabalhador, em tese, o direito de escolha entre os dois
regimes, as empresas demitiram em massa os empregados contratados por aquele regime e ainda não estáveis, condicionando,
ato contínuo, a admissão de qualquer novo empregado à opção deste pelo FGTS; a partir do advento da Lei no 5.958/1973,
esta “opção” foi imposta em caráter retroativo aos abrangidos pelo sistema da CLT que ainda restavam. O controle do governo
sobre a ação sindical bloqueou o exercício do direito de greve e a possibilidade de defesa coletiva do regime de indenização e
estabilidade. A Justiça do Trabalho, por sua vez, convalidou as renúncias a este regime e, já em democracia, declarou os artigos
477 e 492 da CLT não-recepcionados pela Constituição de 1988, por suposta contrariedade a seu artigo 7o, III.

174 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


independentemente de demitir o empregado ou não; e, segundo, que este encargo torna-
se tanto mais alto quanto maior for a permanência do trabalhador no emprego, devido
ao acúmulo de reajustes. O FGTS constitui para as empresas, assim, um incentivo à
demissão de empregados e um seguro contra seu impacto econômico. É verdade que a
dispensa imotivada enseja o pagamento de uma multa – fixada, de início, em 10% do
valor dos depósitos devidos pela empresa durante o vínculo, e elevada para 40% pelo
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988.22 Entretanto, como o valor
da multa é vinculado ao dos depósitos e este cresce em função do tempo de permanência
do empregado na empresa, a própria multa acaba por tornar-se um incentivo adicional
à rotatividade, dado que algumas empresas optam por diluir e reduzir este custo pela
prática da contratação e demissão em intervalos pequenos. Tais incentivos econômicos à
demissão, aliados às facilidades legais para que ocorra, fizeram que o Brasil se notabilizasse
internacionalmente por altas taxas de rotatividade e de trabalho precário.23
A partir da década de 1990, todas as características perversas desse regime de acu-
mulação foram exacerbadas, enquanto parte da estratégia das empresas de transferirem
para a população trabalhadora os crescentes ônus decorrentes da combinação de juros
elevados, câmbio desfavorável e abertura comercial predatória. Esta transferência foi
possibilitada por outro fator verificado a partir do Plano Real: o significativo aumento
do desemprego – conseqüência, em grande dose, da mesma combinação de determi-
nantes. A expansão da oferta – e, conseqüentemente, da reserva – de força de trabalho
num contexto de redução do emprego teve, sobre a capacidade de mobilização sindical
e a possibilidade de ação coletiva dos trabalhadores, o mesmo efeito que haviam tido,
no passado, as restrições impostas à organização sindical pela ditadura de 1964, agora
não mais vigentes.24
O dimensionamento preciso da rotatividade não é tarefa fácil, mesmo porque a
atenção que lhe foi conferida durante as últimas duas décadas é inversamente propor-
cional à sua importância para a compreensão da dinâmica das relações de trabalho no
Brasil. Alguns números demonstram, porém, sua magnitude, pelo menos no que tange
ao setor formal.
O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) registrou ao longo de
2007 o total de 14,3 milhões de admissões e 12,7 milhões de desligamentos. Uma vez
que o contingente de trabalhadores formais cobertos pelo Caged em janeiro de 2007
era de 27,8 milhões de trabalhadores, observa-se que cerca de 45% dos trabalhadores
empregados com carteira assinada mudaram de emprego durante o ano. Além disso, 7,6
milhões de desligamentos foram ocasionados por demissões sem justa causa – quase
60% do total; e mais de 2/3 dos demitidos tinham menos de dois anos no emprego.

22. Compõe o custo da demissão, ainda, a contribuição social, de 10% do valor dos depósitos devidos pela empresa durante
o vínculo empregatício (Lei Complementar no 110/2001).
23. Mesmo nos países em desenvolvimento que não ratificaram a Convenção no 158 e permitem a demissão imotivada, a
rotatividade é menor, porque as indenizações seguem atreladas ao ato da demissão e seu valor é determinado em função
da causa da dispensa. No Chile, por exemplo, o trabalhador demitido por razões técnicas ou econômicas tem direito a uma
indenização equivalente a tantas vezes o valor de seu salário quantos forem seus anos de trabalho na empresa; se esta não
consegue comprovar a existência da causa alegada, a indenização é acrescida de 20%; e se a demissão for considerada
vexatória, de 50%.
24. Para além do medo do desemprego, já em si um poderoso elemento dissuasivo de qualquer reivindicação trabalhista, o aumento
da reserva de mão-de-obra e a elevada rotatividade prejudicam a organização dos trabalhadores, na medida em que a redução
do tempo médio de permanência na empresa torna o convívio entre eles mais fugaz, o que dificulta a formação de vínculos de
solidariedade. Em um ciclo vicioso, o enfraquecimento da ação coletiva favorece, por sua vez, a rotatividade da mão-de-obra.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 175


Estes números são eloqüentes em apontar a facilidade com que as empresas lançam
mão do instrumento da demissão imotivada, e como isso promove o alto nível de
rotatividade no trabalho.
A Relação Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério do Trabalho e Emprego
permite uma visão mais detalhada do fenômeno.25 A partir da Rais, o Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), órgão de assessoria
técnica dos sindicatos, constatou que, entre os bancários,26 durante o primeiro semestre
(janeiro-julho) de 2006, admissões e demissões apresentam curvas semelhantes – isto é,
“quando o número de admissões apresenta comportamento ascendente, as demissões
também exibem trajetória de expansão e vice-versa”. Isto indica que as empresas do setor
fazem da rotatividade uma estratégia, conclusão que se reforça pelo fato de que, em todos
os meses do intervalo janeiro/2005-julho/2006, o salário médio dos contratados é menor
que o dos demitidos.
Mesmo para os eletricitários,27 uma das categorias menos atingidas pela rotatividade
(55,2% dos vínculos com mais de dez anos em 2004), verificou-se sua ampliação em níveis
consideráveis. Entre 1998 e 2004, o número de trabalhadores do setor cujo vínculo tinha
duração igual ou superior a dez anos caiu 21,6%, e o daqueles que estavam no mesmo
emprego há mais de cinco e menos de dez anos caiu 31% – respectivamente o dobro
e o triplo da redução total de vagas no ramo (10,9%). A quantidade de vínculos com
duração inferior a seis meses, em contrapartida, cresceu 78,3%. Para os metalúrgicos,28
a situação não é diversa. Em 2006, para uma média de 1.689.262 trabalhadores empre-
gados, houve 409.716 demissões e 483.108 recontratações.29 O resultado, constatam
o Dieese e a Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM), é que, mesmo com o
aumento da demanda por mão-de-obra, o salário médio real da categoria era, em 2007,
19% menor que em 1995. O estudo realizado pelas duas entidades apontou também
que o custo desta elevada rotatividade acaba sendo repassado à sociedade, pressionando
os gastos com o Seguro-Desemprego.30
Foi principalmente esse estudo que embasou a retomada, pelo movimento sin-
dical, da demanda – formulada já em sua conclusão e encabeçada pela CNM – pela
assinatura da Convenção no 158. O cerne da convenção e do debate em torno dela
está em seu artigo 4o, que determina que “não se porá termo à relação de trabalho de
um trabalhador, a menos que exista para tanto uma causa justificada, relacionada a sua

25. A aferição da rotatividade com base na Rais também está sujeita a alguma margem de erro, dado que seus regis-
tros são compostos por informações fornecidas pelo empregador, sendo praxe algumas omissões ou preenchimento
incorreto. Para mais informações sobre as potencialidades de uso e limitações da Rais, ver <http://www.mte.gov.br/rais/
potencialidades_2006.pdf>.
26. DIEESE. Admissões e demissões no setor bancário. Nota Técnica nº 38. Outubro de 2006. Disponível em: <www.dieese.
org.br/notatecnica/notatec38SetorBancario.pdf>..
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. DIEESE e Rede Eletricitários. Perfil ocupacional dos empregados do setor de energia elétrica no Brasil: 1998/2004.
Dezembro/2006. Disponível em <www.dieese.org.br/esp/pesquisasindical/estpesq28_eletricitarios.pdf>
28. Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT e DIEESE. Indicadores Econômicos e Sociais na Indústria Metalúrgica
– 1º Semestre de 2007. Disponível em: <www.cutsp.org.br/2007/noticias/2007/Indicadores1sem.pdf> .
29. O número de recontratados é maior que o de demitidos porque abrange trabalhadores que haviam sido dispensados
em anos anteriores.
30. Conforme destacado neste capítulo, a elevação das despesas com o Seguro-Desemprego tem comprometido o custeio de
outros programas de interesse das próprias empresas (programas de crédito, de qualificação ou de intermediação da força de
trabalho) ou a ampliação da cobertura do próprio Seguro-Desemprego, hoje insuficiente para garantir a sobrevivência do tra-
balhador durante o tempo médio de procura de outra vaga – ver capítulo Trabalho e Renda do número 14 deste periódico.

176 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


capacidade ou a sua conduta, ou baseada nas necessidades de funcionamento da em-
presa, estabelecimento ou serviço.” Simultaneamente, a convenção regula a demissão
motivada, ao: assegurar o direito do trabalhador à defesa prévia no âmbito da empresa
(artigo 7o);31 ao estabelecer um rol mínimo de situações que não podem ser invocadas
como justificativa de dispensa (artigos 5o e 6o);32 e ao determinar o pagamento de inde-
nização aos trabalhadores demitidos (artigo 12).33 Os casos de demissão em massa por
motivos “econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos” exigem notificação prévia
à autoridade competente e ao sindicato (artigos 13 e 14), bem como a realização de
consultas a este com o fito de minorar o número ou as conseqüências das demissões.
Por fim, a convenção garante a apreciação judicial34 da existência e idoneidade da causa
apontada pela empresa para a cessação do vínculo (artigo 8o), impede a transferência ao
trabalhador do ônus da prova, e assegura a reintegração ou indenização caso se verifique
que a dispensa não teve causa justificada (artigo 9o).
Esse conjunto de regras é o que suscita a contrariedade patronal à convenção.
Alegadamente, a convenção introduziria uma excessiva rigidez no mercado de trabalho e,
no limite, atentaria contra a liberdade individual do empregador ao obrigá-lo a manter
um empregado em sua empresa e em seu âmbito de relações contra sua vontade.
Ambas as objeções revelam-se inconsistentes sob o ponto de vista técnico. A primeira,
porque a Convenção no 158 permite a demissão por insuficiência técnica ou má conduta
do empregado, e cortes de pessoal por necessidade da empresa. A “causa justificada”35
imposta como requisito para a dispensa não se confunde com a “justa causa” de que trata
o artigo 482 da CLT – isto é, a demissão precisa ser motivada, mas o leque de motivos
aceitos é amplo, e não se resume às faltas graves. O que a convenção coíbe é o uso da
demissão em massa como mecanismo de represália, rebaixamento salarial ou pressão
em negociações coletivas.
Cabe lembrar que, apesar do grande número de demissões sem justa causa aqui
mencionado, este não é o único mecanismo que permite às empresas modificar ou adaptar
seu quadro de empregados. Além das demissões voluntárias, às vezes incentivadas pelas
próprias empresas, uma boa parte dos desligamentos se dá pelo término do contrato de
trabalho, em geral após o período de experiência de três meses previsto na CLT. Assim,
embora a convenção possa reduzir os altos níveis de rotatividade, dificilmente tornará o
mercado de trabalho mais rígido.
A segunda objeção supracitada também não procede, posto que a convenção esta-
belece, de modo expresso, a possibilidade de converter-se a reintegração em indenização
em face das circunstâncias do caso. As situações de incompatibilidade entre empregador

31. A convenção ressalva as situações em que “não se possa pedir razoavelmente ao empregador que lhe conceda esta
possibilidade.”
32. São estas: filiação ou atividade sindical, candidatura ou atuação como representante dos trabalhadores em qualquer
âmbito, litígio administrativo ou judicial com o empregador, estado civil, sexo, cor, gravidez, situação familiar, origem social,
religião, posicionamento político, origem nacional, ausência do serviço durante a licença-maternidade e faltas por motivo
de doença ou lesão. São causas cuja invocação para dispensa já é vedada pela legislação brasileira – ver, especialmente,
Lei no 9.029/1995). O que a Convenção no 158 traria de novo seria uma maior efetividade, dado que atualmente a empresa
pode, na prática, demitir por qualquer destas razões – à exceção da gravidez e do exercício de mandato sindical, situações
que ensejam estabilidade, desde que não a invoque. A proibição da dispensa imotivada fecharia esta possibilidade.
33. Ressalvada a hipótese de demissão por falta grave.
34. Condicionada à iniciativa processual do trabalhador ou de quem possa atuar como seu substituto processual.
35. Expressão constante do texto em espanhol, um dos três idiomas em que são redigidas as versões originais das convenções
da OIT. No texto em inglês versa valid reason; na versão em francês, motif valable.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 177


– especialmente pessoa física – e empregado sempre foram, aliás, objeto de previsão neste
sentido.36 A par disso, apenas nas micro e em algumas pequenas empresas há, de fato,
relação pessoal entre empregador e empregado. Nas demais, o que se verifica é o problema
inverso: para além de seu uso estratégico como mecanismo de rebaixamento de salários,
a demissão banalizou-se a tal ponto no Brasil que uma das queixas mais freqüentes entre
os trabalhadores é que, muitas vezes, o desapreço de um mero supervisor ou encarregado
é suficiente para que o mecanismo seja acionado. Ao coibir isto, a Convenção no 158
introduz parâmetros mais civilizados no relacionamento intra-empresa, mostrando-se,
assim, um instrumento adequado para restringir, de forma equilibrada e respeitadas as
necessidades dos empregadores, a trivialização das demissões e a rotatividade. Em síntese,
a convenção traz as alterações dispostas no quadro.37
QUADRO 1
Legislação atual e Convenção no 158
Possibilidade de
Modalidade de demissão1 Status legal Indenização Defesa prévia
reintegração
Atual Conv. 158 Atual Conv. 158 Atual Conv. 158 Atual Conv. 158
Justa causa Permitida Permitida Nenhuma Nenhuma Sim Sim Não Sim
Motivada (sem Sem previsão (equipara-se
Permitida 40% do FGTS 40% do FGTS Não Sim Não Sim
justa causa) à imotivada)
> 40% do FGTS, ou
Imotivada Permitida Proibida 40% do FGTS Não - Não Sim
reintegração
Nota: A Convenção n 158 não modifica o arcabouço existente quanto à possibilidade de demissão voluntária e à proibição de demissão
1 o

discriminatória.

A Convenção no 158 havia sido aprovada anteriormente pelo Legislativo por


meio do Decreto Legislativo no 68/1992, e promulgada pelo Executivo pelo Decreto
no 1.855/1996. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal subtraiu-lhe toda a eficácia ao
deferir parcialmente a liminar pleiteada pelas confederações nacionais da Indústria (CNIs)
e dos Transportes (CNTs)38 na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no 1.480.39
O STF declarou que a convenção tinha caráter meramente programático, condicio-
nando sua eficácia à edição de lei complementar regulamentadora de seus dispositivos,
e declarando, de antemão e em caráter vinculante, a inconstitucionalidade de qualquer
outra interpretação que viesse a ser adotada por outros órgãos do Judiciário.
O mérito da Adin no 1480 não chegou a ser julgado porque, meses depois,
o Governo FHC, mediante o Decreto no 2.100/1996, denunciou a convenção, ensejan-
do a extinção do processo pelo tribunal por perda de objeto. Todavia, em julgamento

36. Ver artigo 496 da CLT.


37. Esse quadro baseia-se no texto da Convenção no 158 e na interpretação adotada pelo Tribunal Regional do Trabalho
da 15a Região (TRT-15) nos processos 00140-2002-004-15-00-1/RO (6a Turma, relator Jorge Luiz Souto Maior, Doesp de
25/06/2004), 01512-2001-042-15-00-2/RO (6 a Turma, relator Jorge Luiz Souto Maior, Doesp de 12/03/2004), e 00935-
2002-088-15-00-3/RO (6a Turma, relator Jorge Luiz Souto Maior, Doesp de 07/05/2004).
38. A questão levada a juízo dizia respeito à reserva da regulamentação da proteção contra a despedida arbitrária à lei
complementar pelo artigo 7o, I, da Constituição. Para a CNI e a CNT, a Convenção no 158 seria formalmente inconstitucional
por terem os acordos internacionais – no entendimento abraçado na época pelo STF – status de lei ordinária. Embora im-
pecável do ponto de vista formal, o acolhimento desta tese não deixou de surpreender, pois que, em ocasiões anteriores, o
mesmo STF havia validado a regulamentação de matéria de lei complementar por lei ordinária e até mesmo por decreto-lei.
O tribunal considerou vigentes, por exemplo, a Lei no 4.595/1964 (que rege o sistema financeiro) e o Decreto-Lei no 406/1968
(que disciplina o Imposto sobre Serviços), declarando sua recepção pela Constituição de 1988 como “leis complementares
em sentido material” – isto é, entendeu, tautologicamente, que teriam sido recepcionadas como leis complementares pelo
fato de versarem sobre matéria reservada a esta espécie normativa.
39. STF, Adin no 1.480 – MC, relator Celso de Mello, julgada em 04/09/1997.

178 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


recente,40 o STF reviu sua histórica posição sobre a hierarquia normativa dos tratados
e convenções internacionais em matéria de direitos humanos, que servira de base à
cautelar deferida à CNI e à CNT em 1997. De acordo com o novo entendimento da-
quela corte, estes tratados e convenções, quando não aprovados pelo rito das emendas
constitucionais, não equiparam-se a leis ordinárias – como entendia-se anteriormente
–, mas revestem-se de caráter “supralegal”, sendo hierarquicamente superiores às leis
complementares. Dessa maneira, e considerando que a proteção contra a despedida
injustificada está abrangida pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos,41
estaria eliminado o óbice formal à eficácia da Convenção no 158.
A denúncia é, por sua vez, objeto da Adin no 1.625, proposta em 1997 pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e pela Central Única dos
Trabalhadores, e ainda pendente de julgamento tanto quanto ao mérito como ao
pedido de liminar. Estas entidades questionam, também sob o prisma formal, o Decreto
no 2.100/1996, alegando que, se a incorporação de acordos internacionais ao orde-
namento jurídico nacional depende de aprovação pelo Legislativo, sua eliminação do
âmbito dele não poderia prescindir de igual trâmite – tanto mais porque os tratados
equiparam-se, no mínimo, a leis ordinárias – quando não a emendas constitucionais ou
normas de caráter supralegal –, e leis não podem ser revogadas por decreto. O deslinde
da questão é de vital importância para se determinar que grau de efetividade terão as
garantias da Convenção no 158. Primeiro porque a declaração da inconstitucionalidade
da denúncia equivaleria à afirmação de sua vigência, tornando desnecessária uma nova
aprovação pelo Congresso e, por conseguinte, inócua a decisão da Comissão de Rela-
ções Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara. Segundo, porque o reconhecimento
da necessidade de um rito de denúncia mais complexo, envolvendo a discussão com o
Legislativo, evitaria que a convenção, no futuro, voltasse a ser sumária e repentinamente
extirpada do direito interno tão-somente pela vontade do Executivo.
À parte a interpretação esterilizadora conferida à convenção STF nos autos da Adin
n 1.480, essa integração é objeto de dissenso entre os órgãos da Justiça do Trabalho.
o

As poucas decisões judiciais que reconhecem a vigência e a normatividade da Convenção


no 158 dividem-se entre duas linhas de interpretação quanto a seus efeitos. Em alguns
processos,42 o TRT-15 reconheceu as possibilidades de reintegração do trabalhador demi-
tido sem causa justificada, e de fixação judicial de indenização – quando a reintegração
não se mostrar possível ou não for a melhor solução para o conflito – em montante
superior aos 40% do saldo da conta do FGTS, que continuariam valendo para a dispensa
motivada sem justa causa. Em outros processos,43 no entanto, o mesmo tribunal, com
base no artigo 10 da convenção,44 entendeu que a reintegração é incompatível com a

40. Julgamento dos recursos extraordinários nos 349.703 e 466.343, e o Habeas Corpus no 87.585 em 12 de março de 2008.
41. Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – incorporado ao direito brasileiro pelo
Decreto no 3.321/1999.
42. Tais como nos já mencionados processos nos 00140-2002-004-15-00-1, 01512-2001-042-15-00-2 e 00935-2002-
088-15-00.
43. TRT 15, Processo no 00652-2005-056-15-00-0/RO, 4ª Turma, relatora Regiane Cecília Lizi, Doesp de 06/07/2007) e
TRT 15, Processo no 00871-2004-039-15-00-2/RO, 3ª Turma, relator Marcelo Magalhães Rufino, Doesp de 21/07/2006),
por exemplo.
44. Esse artigo determina que “se os organismos mencionados no artigo 8o da presente Convenção chegam à conclusão
de que o término da relação de trabalho é injustificado, e se, em virtude da legislação e da prática nacionais, não estiverem
autorizados ou não considerarem possível, dadas as circunstâncias, anular a demissão e eventualmente ordenar ou propor
a readmissão do trabalhador, terão a faculdade de determinar o pagamento de uma indenização adequada ou outra repa-
ração que se considere apropriada”.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 179


legislação e a prática nacionais, e que a indenização devida pela demissão imotivada é
a de 40% do saldo da conta do FGTS. Independentemente da discussão hermenêutica
sobre a melhor maneira de se integrar a Convenção no 158 ao ordenamento jurídico
vigente, esta segunda linha de interpretação esvazia-a de todo seu significado político ao
manter a indiferenciação entre as reações estatais à dispensa motivada (sem justa causa)
e à imotivada.
A aprovação ou reconhecimento da vigência da Convenção no 158 revela-se, assim,
um passo importante em direção, de um lado, à mudança do perfil da acumulação de
capital existente no país, uma vez que a adoção de suas prescrições contribuiria para
assegurar o efetivo repasse dos ganhos de produtividade aos salários; e, de outro, em dire-
ção à introdução de parâmetros regulatórios civilizados nas relações de trabalho vigentes
no Brasil, dadas as alterações que produziria na dinâmica das relações intra-empresa.
A efetivação de suas garantias, no entanto, dependerá, sobretudo, do comportamento
dos diversos atores políticos e sociais interessados, assim como dos arranjos entre eles.
A ratificação por parte do Congresso Nacional promete ser apenas uma das várias dis-
putas em torno da sua efetivação.
5 Considerações finais
Durante o ano de 2007 observou-se a aceleração do crescimento econômico e da ge-
ração de empregos com carteira assinada, com conseqüente redução do desemprego.
Entretanto, predominam os empregos de curta duração e, embora os salários estejam
crescendo, seu patamar médio ainda é inferior ao de 2002. Tal quadro torna necessário
levar em conta na avaliação da situação do mercado de trabalho não apenas a quanti-
dade de postos de trabalho criados, mas também a qualidade destes postos.
No referente às políticas de trabalho e renda, a mesma questão se coloca. Se até o
início da presente década a preocupação dominante eram as altas taxas de desemprego
e de informalidade, na conjuntura atual cabe dar atenção maior às políticas que atuam
sobre as condições de trabalho: remuneração, jornada, saúde e segurança no trabalho
etc. A retomada das mobilizações dos trabalhadores em torno da redução da jornada e
contra a demissão imotivada aponta nesta direção.
Nesse contexto também se amplia a demanda por políticas de emprego, tanto dos
benefícios quanto dos serviços. E isto ocorre não somente porque continua havendo
grande número de empregos precários, mas também por causa das mudanças no perfil
das ocupações criadas. A par disso, continua havendo necessidade de ampliar as políticas
voltadas para o trabalho autônomo, uma vez que não se pode esperar que o crescimento
do emprego esvazie o peso do setor. O sistema público de emprego é colocado sob pressão
para responder a esta demanda, o que implica por vezes repensar seus instrumentos, ao
mesmo tempo em que enfrenta limitações quanto ao financiamento.
A expansão econômica, além de abrir espaço para a melhoria das condições de
trabalho, pois a lucratividade das empresas e a produtividade do trabalho aumentam,
também pode fortalecer as organizações de trabalhadores, via diminuição do desemprego.
Assim, é possível esperar que demandas mais amplas sejam apresentadas tanto no campo
das negociações coletivas como na esfera das políticas públicas.

180 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


DESENVOLVIMENTO RURAL

1 Apresentação
Sobretudo a partir dos anos 1990, a agricultura brasileira foi gradativamente integrada
à lógica das grandes companhias transnacionais que dominam as principais cadeias do
agronegócio global. Foram abertas as portas da agropecuária nacional ao capital inter-
nacional, consolidando-se o processo de concentração, centralização e desnacionalização
do capital. São estes os parâmetros que na atualidade configuram a questão agrária no
país e os rumos do desenvolvimento rural. Estas opções da política agrícola têm provo-
cado recrudescimento da concentração fundiária, perda da biodiversidade, redução das
áreas de policultura, avanço da pecuária e da cana-de-açúcar na Amazônia, e aumento
da poluição das águas e da atmosfera. Não são estes, porém, os únicos complicadores.
A exploração da mão-de-obra, as condições precárias de trabalho – sobretudo no setor
sucroalcooleiro – e a redução do emprego agrícola têm trazido prejuízos para a segurança
alimentar e reduzido os possíveis impactos de várias políticas sociais.
Mas são as questões relativas à fixação de novos limites institucionais e legais para
regerem as relações sociais no campo, principalmente com os sem-terra e seus movimentos,
que ganharam diversidade e celeridade nos últimos meses. Conforme será resumidamente
descrito na subseção Fatos relevantes deste capítulo, vários são os sintomas do esgotamento
da agenda em defesa da reforma agrária: os encaminhamentos tanto para fixação de
novos parâmetros legais para a contratação de trabalhadores rurais temporários quanto
para ampliar a possibilidade de legalização de terras públicas na Amazônia, e ainda para
diminuir a governança do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
sobre os possíveis beneficiários da reforma agrária – além das propostas no sentido de
criminalizar e mesmo extinguir o Movimento dos Trabalhadores Rurais.
De uma parte, a política agrária que vem sendo executada se afastou das promessas
pré-eleitorais, ficando distante das metas de assentamento estabelecidas, aí incluídas
aquelas que foram sendo reduzidas ao longo dos anos. A estruturação dos assentamen-
tos ainda está longínqua, como se evidencia na seção Acompanhamento da política e
dos programas, e acumula impasses em torno da falta de licenciamento ambiental para
novos e antigos projetos. De outra parte, quanto ao apoio à agricultura familiar, sobres-
sai o crescimento dos recursos disponibilizados, a cada ano, para o Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar Crédito (Pronaf Crédito), mas que ainda
não conseguiu equacionar algumas questões básicas, tais como atender plenamente os
assentados pela reforma agrária e estabelecer uma estratégia eficiente para alavancar o
desenvolvimento dos agricultores mais pobres.
Contudo, a questão mais preocupante no momento é o aumento dos preços dos
alimentos, que afeta as condições de vida de todos, especialmente dos mais pobres,
dado o peso alto do custo da cesta básica no orçamento destas famílias. A esta questão
entremeiam-se outras igualmente delicadas: crise do petróleo, produção de etanol, expan-
são de áreas com plantio de cana-de-açúcar, uso competitivo da terra (alimentos versus

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 181


agroenergia). Por isso estes pontos são o objeto de discussão específica adiante na seção
Tema em destaque deste capítulo, intitulada crise alimentar e agricultura no Brasil.
2 Fatos relevantes
2.1 Ofensiva contra os movimentos sociais rurais
Ata de reunião realizada em 3 de dezembro de 2007 pelo Conselho Superior do Minis-
tério Público do Rio Grande do Sul registra a aprovação de uma série de sanções contra
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tendo como objetivo final
sua dissolução e o fechamento de suas escolas, bem como a recomendação de investi-
gação da atuação do Incra, da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e da
Via Campesina no estado. O documento de três páginas recomenda várias medidas,
tais como: o impedimento de marchas e deslocamentos dos agricultores; a desativa-
ção de acampamentos; a investigação dos acampados e de dirigentes quanto ao uso
de verbas públicas; a intervenção nas escolas do MST; o impedimento à presença de
crianças e adolescentes nos acampamentos; e a comprovação de desvios de finalidade
da terra nos assentamentos. Também sugere o cancelamento do alistamento eleitoral
dos agricultores sem terra nas regiões em conflito e a formulação de uma política oficial
do Ministério Público (MP) com a finalidade de “proteção da legalidade no campo”.
Para o cumprimento destas deliberações propõe a criação de uma força-tarefa para
“promover uma ação civil pública com vistas à dissolução do MST e à declaração de
sua ilegalidade”. Tais recomendações vêm sendo executadas de forma articulada entre
a Justiça e a Brigada Militar.
Essa “estratégia” deveria ficar sob sigilo por dez anos, mas incidentalmente acabou
vindo a público ao ser anexada como prova de uma denúncia feita à Justiça contra
acampados do MST que se encontravam em duas áreas cedidas por proprietários na
proximidade da Fazenda Coqueiros – a inicial da ação esclarece que os promotores agiram
baseados na diretriz do conselho. Com base na denúncia do MP, a Brigada Militar do
Rio Grande do Sul procedeu ao despejo de centenas de famílias dos acampamentos de
Coqueiros do Sul. Barracos, plantações, criações de animais, e até o posto de saúde e a
escola montada pelos sem-terra foram destruídos. As famílias foram jogadas à beira da
estrada em Sarandi, expostas ao frio e sem qualquer proteção. Em resumo, a ofensiva
do Ministério Público, a rápida anuência de juízes e a célere mobilização de efetivos
da Brigada Militar montaram um cenário de guerra: o MP aciona a Justiça usando um
discurso ideológico; o juiz decide em favor da preleção dos promotores; a Brigada Militar
responde prontamente às ordens judiciais.
Nota da direção do MST expressa um profundo sentimento de revolta, ao afirmar
que “nosso movimento está sofrendo uma verdadeira ofensiva das forças conservadoras
do Rio Grande do Sul, que não só não querem ver a terra dividida, como manda a
Constituição, mas querem criminalizar os que lutam pela reforma agrária e impedir
a continuidade do MST.”1 O MST apresentou denúncia formal junto à Comissão de
Direitos Humanos do Senado Federal no sentido de tornar público esse desrespeito aos
direitos humanos consagrados na Constituição e em convenções internacionais subs-
critas pelo governo brasileiro. Recentemente, o relatório foi desautorizado pelo mesmo
conselho. Mas, segundo os trabalhadores sem terra, as hostilidades contra o movimento
naquele estado continuam agindo.

1. Denúncia encaminhada pelo MST à Comissão de Direitos Humanos do Senado. Brasília, 25 de junho de 2008.

182 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Paralelamente, no Congresso Nacional, deputados ligados à bancada ruralista vêm
insistindo para a aplicação das penalidades prevista na Lei de Segurança Nacional,2 contra
as manifestações de movimentos sociais, inclusive o MST. A ofensiva ruralista contra
trabalhadores rurais no Congresso é antiga. Em 2005, o relatório final da Comissão
Parlamentar de Inquérito da Terra (CPI da Terra), elaborado pelo então deputado federal
João Alfredo (PSOL-CE), foi rejeitado e substituído por um relatório paralelo de autoria
de Abelardo Lupion (DEM-PR). No texto, o parlamentar pede que as ocupações de terra
fossem consideradas crime hediondo e ato terrorista. Os tratos contra a reforma agrária e
a democratização do acesso à terra seguem agora os caminhos transversos de proposições
de leis que vão de encontro aos interesses não só dos trabalhadores rurais e agricultores
familiares, mas também dos que almejam uma sociedade mais justa e igualitária.
2.2 A MP no 422/2008 e a privatização de terras públicas da União
A Medida Provisória (MP) no 422, emitida pelo atual governo em março de 2008 e
aprovada em julho, permite ao Incra titular diretamente, sem licitação, propriedades
na Amazônia Legal com até 15 módulos rurais ou 1.500 hectares.3 Com a nova lei, os
ocupantes de áreas até o limite estabelecido ficarão automaticamente “legalizados”. Se
proceder o argumento de que a lei reconhecerá e dará amparo legal a situações de fato,
fica o exemplo de que novas situações ilegais poderão ser também legalizadas no futuro,
o que tende a estimular novas grilagens de terras e pode contribuir para o aumento do
desmatamento na Amazônia. Nem mesmo uma emenda foi acolhida – por exemplo,
de autoria da senadora Marina Silva, propondo que fossem excluídas da MP as áreas
registradas no Cadastro Nacional de Florestas Públicas.4
A nova lei vem sendo criticada pelos movimentos sociais rurais e por pesquisado-
res da área agrária por viabilizar a legalização da grilagem de terras públicas, até então
protegidas por dispositivos constitucionais. A Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 188, determina que se compatibilize a destinação das terras públicas com o plano
nacional de reforma agrária, o que vedaria outra destinação para aquelas. Ainda assim,
contudo, em momentos diferentes abriram-se diversas possibilidades de intervenções
para legalizar a posse de terras públicas no país.
Uma dessas possibilidades foi viabilizada com a promulgação da Lei no 11.196/2005
(advinda da chamada “MP do Bem”), que, em seu artigo 118, passa a permitir a re-
gularização, via processo direto de venda, aos que ocupassem terras públicas do Incra
na Amazônia Legal, até o limite de 500 hectares. Ou seja, em desacordo com a norma
constitucional, expressa no seu artigo 191, que autoriza a posse apenas até o limite de
50 hectares.5

2. A Lei de Segurança Nacional (Lei no 7.170/1983) define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e
social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. A hipótese de vir a ser utilizada contra integrantes
do movimento social parece anódina, mesmo porque estabelece a competência da Justiça Militar para processar e julgar
os crimes ali previstos. Os ruralistas defendem que os integrantes do MST deveriam ser responsabilizados por atentados
contra a ordem política e social.
3. O referido projeto de lei de conversão altera a Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, que institui normas para licitações
e contratos da administração pública (Lei de Licitações).
4. Lei no 11.284, 2006.
5. “Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos,
sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de
sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe à propriedade. Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos
por usucapião” (Constituição Federal, 1988).

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 183


Desde 2006 o Incra, por meio de diferentes instruções normativas (INs), já tinha
fixado os procedimentos para a legalização de terras públicas para além do limite esta-
belecido constitucionalmente. A IN-31 viabilizou a legitimação de posse em áreas de
até 100 hectares, localizadas em terras públicas rurais da União. A IN-32 versou sobre
a regularização fundiária de posses em áreas de até 500 hectares, localizadas em terras
públicas rurais de propriedade da União na Amazônia Legal. A produção de “soluções
jurídicas” para legalizar a ocupação de terras públicas na Amazônia Legal foi adiante,
com a emissão da IN-41, de 11/06/2007, que estabeleceu “critérios e procedimentos
administrativos referentes à alienação de terras públicas em áreas acima de 500 hectares
limitadas a 15 (quinze) módulos fiscais mediante concorrência pública”. A licitação
destas áreas não deveria levar em consideração, preliminarmente, o fato de a mesma
estar sendo ocupada. Mas seu ocupante, caso não vencesse a licitação, poderia exercer
o direito de preferência em dez dias a partir do encerramento do processo licitatório,
desde que pagasse o valor vencedor da licitação.
Para substituir este dispositivo, que ia de encontro ao estabelecido legalmente, foi
elaborada a MP no 422/2008, que foi mais adiante, acabando com a obrigatoriedade do
processo de licitação para alienar os imóveis públicos da União até 15 módulos fiscais.
Dado que cerca de 40% da área dos municípios da Amazônia Legal têm módulos fiscais de
100 hectares, esta dispensa de licitação atingirá áreas de até 1,5 mil hectares. Estes muni-
cípios situam-se principalmente nos estados do Amazonas, Acre, Roraima, Mato Grosso
e Pará, todos repletos de situações de grilagem de terras do Incra. Para outros 40% da
área dos municípios que têm módulos entre 75 e 90 hectares, a dispensa de licitação
vai alcançar áreas griladas entre 1.125 e 1.350 hectares dos estados do Tocantins e do
Maranhão. Ou seja, poderão ser regularizadas terras com área acima de mil hectares.
Na defesa desta proposta pode-se identificar, entre outros, os interesses dos posseiros
instalados em Roraima, estado no qual todas as terras encontram-se em nome da União
e onde a disputa pela terra envolvendo a reserva indígena Raposa Terra do Sol aguarda
decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
A operação deflagrada pelo Incra para recadastramento dos imóveis rurais na
Amazônia Legal, por conta do aumento do desmatamento na região, funcionou como
mecanismo de legitimação de posses irregulares: possibilitou aos que ainda não tinham
se cadastrado até o prazo limite anteriormente fixado (dezembro de 2004) que se ha-
bilitassem para “comprar” as terras griladas sem licitação. Caberá às superintendências
regionais do Incra a fiscalização das condições necessárias para a legitimação das posses
de terra em lotes de até 1,5 mil hectares. Não deverão ser regularizados os incursos
nas seguintes situações: posses maiores que quinze módulos fiscais; posses de qualquer
tamanho com ilícitos ambientais, como retirada ilegal de madeira; grilagem; posses
mantidas por meio do uso de violência; ocorrência de trabalho análogo ao escravo e/ou
de trabalho infantil; posses improdutivas; posses dentro de parques e reservas ambientais
e indígenas; e lotes irregulares dentro de projetos de assentamento.
Uma questão em aberto é como diferenciar o posseiro do grileiro, ou como definir
quem tem e quem não tem direito a se beneficiar das atuais disposições legais para le-
galização das terras ocupadas. As dificuldades operacionais para uma atuação criteriosa
do Incra de acordo com essas definições não são poucas, nem irrelevantes. Contenciosos
serão criados e irão alimentar o processo de judicialização das políticas do país.
Para os ruralistas vinculados à Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a venda
direta a quem já ocupa as áreas de até 15 módulos fiscais na Amazônia Legal se impõe com

184 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


base no disposto no Código Florestal,6 que obriga a reserva de 80% de floresta em cada imóvel
rural. Os limites anteriores (50, 100 e mesmo de 500 hectares) restringiam demasiadamente
as possibilidades do empreendimento rural se tornar economicamente viável.7
Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a aplicação dos dispositi-
vos da MP no 422/2008 permitirá ampliar o número de propriedades regularizadas na
Amazônia e coibirá a grilagem de terras públicas, estimando-se que, potencialmente,
poderão ser beneficiados cerca de 90% dos posseiros da Amazônia. Entretanto, os
ambientalistas argumentam que, de fato, a medida deve estimular a grilagem de terras
na Amazônia e a repartição entre “laranjas” das áreas que excedam 15 módulos fiscais,
possibilitando assim a regularização de vastas áreas.
2.3 A polêmica sobre dispensa de obrigatoriedade de registro em carteira de trabalho
dos trabalhadores rurais temporários de curta duração8
A Medida Provisória no 410, de 28 de dezembro de 2007, tratava, entre outras matérias,9
da dispensa de obrigatoriedade de registro em carteira de trabalho de trabalhadores ru-
rais que executem trabalhos temporários. Segundo seus termos, para a contratação de
trabalhadores rurais por até dois meses, bastaria a formulação de um contrato escrito.
Caso o prazo de dois meses fosse ultrapassado no mesmo ano, o contrato de trabalho
seria considerado contrato de trabalho por prazo indeterminado.
Essa proposição se apoiava em argumentos polêmicos, como a assertiva de que
não houve “mudança do comportamento dos empregadores da área rural quanto à
formalização das relações do trabalho”,10 prevalecendo relações informais de trabalho,
pois as regras de transição estabelecidas em legislações anteriores não foram cumpridas.
Ou seja, a inobservância da lei passa a ser motivo para sua derrogação. Também seria
um mecanismo adequado para acelerar o processo de contratação destes trabalhadores
e, mais importante, sua inclusão na relação de beneficiários da Previdência Social.
A medida foi fortemente contestada por representantes de movimentos sociais ru-
rais, destacando-se os da Via Campesina, Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (Contag) e os da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado
de São Paulo (Feraesp), que alertavam sobre a possibilidade de se agravar ainda mais a
precarização das relações de trabalho no campo e dificultar a fiscalização do trabalho
escravo no Brasil. Também alguns juristas11 indicaram que o dispositivo poderia dificultar
o trabalho da fiscalização, com a proliferação de situações ambíguas, e defenderam a
continuidade da obrigatoriedade de registro em carteira de trabalho.

6. Lei no 4.771/1965.
7. O aumento do limite da margem de titulação de terras públicas é antiga reivindicação da CNA. Desde 2003, a entidade
vem debatendo o tema com o governo. Em reunião na sede da CNA em 2 de dezembro de 2003, o ex-ministro do Desen-
volvimento Agrário, Miguel Rosseto, e o presidente do Incra, Rolf Hackbart, garantiram ao então presidente da entidade,
Antônio Ernesto de Salvo, e à senadora Kátia Abreu que seria dada uma solução para a demanda dos produtores. 
8. Outros aspectos dessa medida estão contemplados nos capítulos Trabalho e Renda e Previdência Social desta edição.
9. Dois outros temas também foram incluídos na MP no 410/2007: um propõe a prorrogação do artigo 143 da Lei no 8.213,
de 24 de julho de 1991, relativamente ao trabalhador enquadrado como segurado contribuinte individual, que presta serviço
de natureza rural, em caráter eventual, sem relação de emprego, a produtores rurais; outro, que visa dilatar o prazo de con-
tratação de financiamentos rurais de que trata o parágrafo 6o do artigo 1o da Lei no 11.524, de 24 de setembro de 2007.
10. Conforme expressa a Exposição de Motivos (EM – EMI 00040 MF – MPS – MTE) da Presidência da República. Casa Civil.
Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, 18 de dezembro de 2007, a qual encaminhou a MP no 420/2007.
11. Conforme entrevista do juiz do Trabalho e integrante da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho, Zéu Palmeira,
concedida à Agência NP, em 15 de março de 2008.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 185


A MP no 410/2007 foi convertida na Lei no 11.718/2008, que amenizou a dis-
pensa de carteira assinada para trabalhadores rurais, embora tenha criado o contrato de
trabalhador rural por pequeno prazo. Também estabeleceu normas transitórias sobre
a aposentadoria do trabalhador rural e prorrogou o prazo de contratação de financia-
mentos rurais. A lei acabou por reconhecer como segurado especial diversas categorias de
produtores familiares, “seja proprietário, usufrutuário, possuidor, assentado, parceiro ou
meeiro outorgados, comodatário ou arrendatário rurais”.12
2.4 Criação do Gesinpra
O Projeto de Lei (PL) no 346/2007, de autoria do deputado Eduardo Sciarra (DEM-PR),
versa sobre a criação de um colegiado denominado Conselho Deliberativo de Gestão do
Sistema Nacional de Cadastro para o Programa Nacional de Reforma Agrária (Gesinpra),
destinado a gerir o referido sistema (Sinpra), o qual tem como finalidade servir de base
para a seleção dos candidatos à reforma agrária. O PL foi aprovado em 7 de maio de
2008 na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da
Câmara dos Deputados e, em seguida, encaminhado para a Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania (CCJ), com caráter terminativo. Se aprovado na CCJ, não precisará
passar por votação em plenário.
Seu ponto mais delicado é o que prevê a exclusão do processo de reforma agrária
de quem invadir terras ou prédios públicos, pois assim se poderia, segundo seu autor,
deputado Eduardo Sciarra (DEM/PR), “privilegiar as pessoas que tenham alguma voca-
ção e experiência com terra ou formação para cultivá-la”. Embora a administração do
sistema caiba ao Gesinpra,13 fica a cargo do Incra sua execução, manutenção e divulgação,
estando as prefeituras municipais credenciadas entre as entidades que poderão realizar
as inscrições no Sinpra.
Em linhas gerais, avalia-se que o projeto representa uma intervenção direta nas
atribuições do Incra, ao mesmo tempo em que constrange os movimentos sociais que
lutam pelo acesso à terra.
2.5 Conflitos e impunidade no campo
Além da violência que atinge os trabalhadores rurais e suas lideranças, por meio da inti-
midação física e emocional, com mortes, despejos, espancamentos e destruição de bens
de uso doméstico e de instrumentos de trabalho, outra forma de intimidação ainda mais
assustadora paira sobre muitos trabalhadores e trabalhadoras rurais: o fato de os crimes
contra eles raramente serem punidos. Exemplo disto foi o que aconteceu recentemente,
com a absolvição, em segundo julgamento, de um dos mandantes do assassinato da freira
Doroth Stang, que havia sido condenado a 30 anos de prisão em julgamento anterior.
Os mandantes – em geral, grandes proprietários ou, mais freqüentemente, grileiros de
terras – usam seu poder de influência financeira e política para permanecerem livres e
impunes dos crimes, juntamente com os executores e intermediários contratados.
Segundo os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), nas última quatro décadas
foram assassinados mais de 800 trabalhadores rurais, lideranças sindicais e sem-terra,

12. O capítulo Previdência Social desta edição apresenta outras informações sobre o assunto.
13. O conselho deliberativo de gestão será formado por representantes de oito órgãos: Ministério do Desenvolvimento
Agrário, que o presidirá; Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra); Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento; Ministério da Justiça; Comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados;
Confederação Nacional da Agricultura (CNA); Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Contag);
e Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

186 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


religiosos e ativistas dos direitos humanos – somente no estado do Pará, uma média de
20 casos por ano. A maior parte destes crimes foi cometida por pistoleiros a mando de
fazendeiros e madeireiros. No período, apenas seis mandantes foram julgados e conde-
nados pela justiça paraense; no entanto, nenhum permanece preso.
Os procedimentos policiais e no Judiciário são extremamente lentos e tão eiva-
dos de imperfeições que raramente chegam a penalizar algum acusado, mesmo se réu
confesso. No Pará, onde se concentram os maiores índices de violência no campo nos
últimos anos, segundo monitoramento feito pela CPT, 73,2% dos casos de assassinatos
não foram apurados e somente 18,7% dos crimes transformam-se em processo judicial.
Outro fator gerador da violência está no tempo de médio de tramitação destes processos,
acima dos dez anos, provocando a prescrição da maioria dos casos.
Nos últimos cinco anos o número de conflitos, assassinatos e de pessoas envolvidas
em conflitos apresenta tendência decrescente (tabela 1). É de se notar, contudo, que o
envolvimento de quase 800 mil pessoas em 1,5 mil conflitos em 2007 ou a morte de 28
trabalhadores rurais por conta de disputas por terra – disputas que no total envolveram
mais de 8 milhões de hectares – não são algo banal a ser minimizado.
TABELA 1
Conflitos no campo (2003-2007)
  2003 2004 2005 2006 2007
No de conflitos1 1.690 1.801 1.881 1.657 1.538
Assassinatos 73 39 38 39 28
Pessoas envolvidas 1.190.578 975.987 1.021.355 783.801 795.341
Hectares 3.831.405 5.069.399 11.487.072 5.051.348 8.420.083
Fonte: Setor de Documentação da Secretaria Nacional da CPT, 15/03/2008.
Nota: 1 Ocorrências de conflitos: número de famílias despejadas, expulsas, com pertences destruídos, que sofreram ação de milícia privada.

3 Acompanhamento da política e dos programas


3.1 Reforma agrária
Em 2007, foram assentadas 67 mil famílias, das quais 25,7 mil (38% do total) em
projetos criados no ano; foi investido R$ 1,4 bilhão na obtenção de terras e destinados
6,4 milhões de hectares à criação de assentamentos. Embora no período de 2003 a
2007 tenham sido destinados quase 39 milhões de hectares para o estabelecimento de
projetos de reforma agrária,14 estes dados ainda estão distantes dos almejados por parte
do movimento social rural, que reivindica aceleração nos assentamentos, especialmente
em benefício das famílias que permanecem acampadas ao longo de rodovias e estradas
secundárias, enfrentando precárias condições de vida.
3.1.1 Balanço: projetos em execução em 2007
Em 31 de dezembro de 2007, o Incra tinha sob sua responsabilidade 7.998 projetos
de assentamentos, que ocupam uma área de 77,8 milhões de hectares, com 701.679
famílias assentadas (Anexo Estatístico, tabela 7.1). Cerca de 40% destas famílias estão
em projetos criados a partir de 2003; as demais estão em projetos criados em anos
anteriores, que remontam ao início do século passado. A maior parte das famílias
assentadas ainda está longe das condições necessárias para ser emancipada – ou seja,
poucas estão aptas a seguir em frente, tornar-se independentes da tutela do Incra, e
começar a ressarcir o Estado dos custos da terra recebida. Apenas 15% das famílias
assentadas estariam nesta condição e somente 8% em situação tida como consolidada

14. Cf. Anexo Estatístico inserido ao final deste volume em CD ROM.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 187


(Anexo Estatístico, tabelas 7.3 e 7.4). Ou seja, 77% estão em projetos ainda em fase
de estruturação com um longo caminho a percorrer, o que depende da tempestividade
e eficácia das ações governamentais.
De 2003 a 2007, a maior parte das terras para criação de novos projetos foi obtida
por meio de ações de reconhecimento, discriminação e arrecadação. Assim, como mostra
a tabela 2, tem havido constante decréscimo das áreas desapropriadas. Até 1998, estas
constituíam mais da metade das áreas dos projetos; desde então diminuíram considera-
velmente: entre 2003 e 2006 apenas 5% das terras utilizadas em novos projetos foram
desapropriadas, e, em 2007, pouco menos de 10%.
Do ponto de vista da quantidade de projetos, estes perfazem um total de 4.989
instalados em áreas desapropriadas, quase 63% do total. As discrepâncias entre o número
de projetos e as áreas por eles abrangidas revelam algo que há tempos é de conhecimen-
to geral: nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, as desapropriações têm incidido sobre
imóveis relativamente pequenos; no Norte e Centro-Oeste, são menos freqüentes as
desapropriações, e os projetos criados em terras obtidas de outras formas (arrecadação,
discriminação e reconhecimento) têm possibilitado a criação de maior quantidade de
projetos de assentamento (Anexo Estatístico, tabelas 7.1 a 7.5c).
TABELA 2
Participação percentual das terras obtidas por desapropriação no total dos projetos em execução1
e da área destinada a assentamentos rurais, segundo o período de criação (1900-2007)
Período % projetos % área
De 1900 a 1994 68,48% 50,71%
De 1995 a 1998 75,47% 63,72%
De 1999 a 2002 65,97% 39,77%
De 2003 a 2006 44,19% 5,15%
2007 61,52% 9,62%
De 1900 a 2007 62,38% 29,10%
Fonte: Coordenação-Geral de Monitoração e Controle/ Sistema Sipra/Incra – SDM / Relatório: Rel_0227 / Data: 29/04/2008.
Nota: 1 Em execução em 31 de dezembro de 2007.

A tabela 3 coloca em relevo a concentração de assentamentos na região Norte:


75% da área total, embora abrigue apenas 42% das famílias. Esta situação é parte da
herança da política fundiária dos governos militares. A partir dos anos 1970, a polí-
tica governamental destinada a promover a ocupação da região onde então se situava
nossa fronteira agrícola, de um lado, privilegiou a constituição de grandes projetos
(propriedades) agropastoris e, de outro, com vistas ao ordenamento demográfico,
estabeleceu grandes perímetros identificados como “Projetos Fundiários”, que teriam
parte da terra dividida em parcelas de 100 hectares e dirigida a agricultores (parcelei-
ros) pobres, sobretudo vindos do Nordeste. Em volta deles, estariam lotes com 500
hectares dirigidos à implantação de projetos agropecuários, além de um terceiro anel,
com imóveis com áreas maiores de 500 hectares. A ocupação dos lotes/parcelas de 100
hectares ainda hoje não foi completada, sendo freqüentes as desistências, por venda
ou simples abandono. Boa parte das terras circundantes foi ocupada indevidamente
e tramitam na Justiça inúmeras ações de reintegração de posse, agora com grandes
possibilidades de legalização se aprovada a MP no 422/2008 nos termos propostos.
A emergência da questão ambiental trouxe para a região novos embates, seja por conta
da ação ilegal de madeireiros em áreas griladas, seja pelos problemas enfrentados nos
próprios assentamentos – sobretudo, entre tantos outros, pela ausência de assistência
técnica e extensão rural (Ater) com capacidade para redefinir os padrões de manejo
agrícola mais adequados à região.

188 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 3
Projetos de reforma agrária em execução1 – Brasil e grandes regiões (1900-2007)
No de famílias No de famílias % de famílias
Regiões No de projetos Área (ha) % área
(capacidade) assentadas assentadas
Norte 1.751 58.225.219,4580 474.892 291.969 74,9% 41,6%
Nordeste 3.653 9.603.489,5551 321.681 236.796 12,3% 33,7%
Sudeste 648 1.333.711,0951 46.361 32.178 1,7% 4,6%
Sul 765 759.688,7041 37.261 27.248 1,0% 3,9%
Centro-Oeste 1.181 7.841.679,6163 162.294 113.488 10,1% 16,2%
Brasil 7.998 77.763.788,4286 1.042.489 701.679 100,0% 100,0%
Fonte: Sistema Sipra/Incra – SDM / Relatório: Rel_0227 / Data: 29/04/2008.
Nota: 1 Em execução em 31 de dezembro de 2007.

Se até 1994 a região Norte abrigava mais da metade das famílias assentadas – em
grande medida por conta dos projetos de colonização aí criados em décadas anteriores –
e, no período entre 1995 e 2002, os assentamentos no Nordeste predominaram, a partir
de 2003 a região Norte volta a concentrar, em termos relativos e absolutos, a maior parte
dos assentamentos (tabela 4).
Além de a estruturação produtiva dos projetos de assentamento vir sendo sempre
difícil, essa maior concentração de famílias nas regiões Norte e Nordeste (75% do total)
inclui problemas adicionais. No Norte, pelas dificuldades na definição e na implementa-
ção de práticas produtivas sustentáveis, pela baixa conformidade do tradicional modelo
produtivista às áreas de floresta, e pela baixa capacitação dos assentados para assumirem
novas práticas. As denúncias sobre desmatamentos indevidos e o desconhecimento das
leis ambientais fazem dos assentamentos áreas críticas, fortalecendo os argumentos dos
setores que sempre se opuseram à reforma agrária. No Nordeste, os projetos de assen-
tamento também enfrentam grandes dificuldades de consolidação, seja por causa dos
baixos níveis de escolaridade dos assentados, seja pelas dificuldades de se aportarem
tempestivamente os recursos técnicos e financeiros necessários.
TABELA 4
Distribuição percentual das famílias assentadas nos projetos de reforma agrária em execução,1 por
grandes regiões e períodos de referência (1900-2007)
Regiões 1900 a 1994 1995 a 1998 1999 a 2002 2003 a 2007 Total
Norte 52,2% 30,7% 28,3% 51,83% 41,6%
Nordeste 26,2% 41,3% 38,4% 28,93% 33,7%
Sudeste 4,1% 4,2% 6,7% 4,13% 4,6%
Sul 4,7% 4,7% 6,1% 1,88% 3,9%
Centro-Oeste 12,8% 19,2% 20,5% 13,23% 16,2%
Brasil 100,0% 100,0% 100,0% 100,00% 100,0%
Fonte: Sistema Sipra/Incra – SDM / Relatório: Rel_0227 / Data: 29/04/2008.
Nota: 1 Em execução em 31 de dezembro de 2007.

O volume de projetos inconclusos aumenta a cada ano. A tabela 5 mostra as fases


dos projetos em execução em 31 de dezembro de 2007. Em primeiro lugar, sobressai
o fato de que quase 80% deles ainda necessitam de muito apoio para atingir a con-
dição próxima à de consolidados; e, mais: que, em termos relativos, a região Sudeste
é a que possui o maior estoque de projetos nas etapas iniciais de implantação. O Sul
tem os melhores – mas ainda baixos – índices de projetos já consolidados ou perto
de atingir este estágio.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 189


TABELA 5
Distribuição percentual dos projetos de assentamento em execução,1 segundo as fases em que se
encontram, por grandes regiões (1900-2007)
Fases Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil
Assentamento criado 27,8% 21,8% 27,5% 8,1% 25,2% 22,8%
Assentamento em instalação 29,8% 18,2% 34,0% 14,6% 34,0% 24,0%
Assentamento em estruturação 20,8% 37,8% 25,0% 45,4% 21,8% 31,4%
Subtotal 1 78,3% 77,8% 86,4% 68,1% 81,1% 78,2%
Assentamento em consolidação 11,9% 16,9% 7,7% 19,5% 12,1% 14,6%
Assentamento consolidado 9,8% 5,3% 5,9% 12,4% 6,8% 7,2%
Subtotal 2 21,7% 22,2% 13,6% 31,9% 18,9% 21,8%
Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Fonte: Sistema Sipra/Incra – SDM / Relatório: Rel_0227 / Data: 29/04/2008.
Notas: 1 Em execução em 31 de dezembro de 2007.

Apesar das dificuldades, presentes em todas as regiões, inúmeras pesquisas desenvol-


vidas pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead) do Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA)15 mostram que a maior parte dos assentados con-
sidera que houve melhorias concretas da qualidade de vida e, mais, que tem esperança
em um futuro mais promissor.
3.1.2 Evolução recente: os assentamentos em 2007
Foram assentadas 66.983 famílias em 2007, desempenho que ficou distante não
só da nova meta estabelecida pelo MDA (assentamento de 100 mil famílias), mas,
principalmente, daquela inscrita no II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA –
150 mil famílias). Este resultado, considerado insuficiente e tímido, frustrou ainda mais
as expectativas dos trabalhadores rurais sem terra em relação à reforma agrária.
Nos três primeiros trimestres do ano, foram assentadas 23.446 famílias, represen-
tando 35% do total realizado; os 65% restantes concentraram-se no último trimestre,
reproduzindo, mais uma vez, o processo de paradas e saltos que marca a reforma agrária
no país, pelo menos desde 1985. Ademais, a greve dos funcionários do Incra, entre
maio e início de julho, deve ter tido conseqüências no baixo desempenho do órgão no
primeiro semestre de 2007.
TABELA 6
Famílias assentadas em projetos de reforma agrária em 2007, por trimestres – Brasil e grandes regiões
Número de famílias por trimestre Total de famílias
Região 1o+2o+3o assentadas em
1 trimestre
o
2 trimestre
o
3 trimestre
o
4 trimestre
o
2007
trimestres
Brasil 6.863 8.402 8.181 23.446 43.537 66.983
% 10,20% 12,50% 12,20% 35,00% 65,00% 100,00%
Norte 2.119 2.676 2.606 7.401 16.036 23.437
Nordeste 3.454 3.905 3.295 10.654 9.739 20.393
Sudeste 383 325 495 1.203 2.080 3.283
Sul 158 206 444 808 893 1.701
Centro-Oeste 749 1.290 1.341 3.380 14.789 18.169
Fonte: MDA//Incra/ DT - Diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento/DTI – Coordenação-Geral de Implantação – Sipra:
Rel_0229 / Data: 29/04/2008.

As regiões Norte e Nordeste continuam a concentrar a maior parte dos assenta-


mentos: 65% do total. As regiões Sul e Sudeste, onde os movimentos sociais já foram
mais ativos, ficaram, juntas, com 7,4% das famílias assentadas em 2007. Houve
aumento significativo de famílias assentadas na região Centro-Oeste, sobretudo nos
últimos meses do ano.

15. Consultar o site do Nead: www.nead.gov.br.

190 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Os estados do Pará, Mato Grosso, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Amazonas
e Pernambuco concentraram 62% dos assentamentos; aos demais estados (21)
couberam 38%. Em anos anteriores esta proporção foi semelhante. Estados como;
Rio Grande do Sul, Paraíba, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Ser-
gipe tiveram os menores índices de assentamentos: em 2007, menos de 1% em
cada um deles.
TABELA 7
Distribuição dos assentamentos realizados em 2007, por Unidades da Federação (UF)
Unidades da Federação Total %
Pará 10.444 15,59%
Mato Grosso 9.636 14,39%
Maranhão 8.930 13,33%
Mato Grosso do Sul 4.871 7,27%
Amazonas 4.328 6,46%
Pernambuco 3.040 4,54%
Subtotal 41.249 61,58%
Demais 21 UFs 25.734 38,42%
Total 66.983 100,00%
Fonte: MDA/Incra/DT – Diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento/DTI – Coordenação-Geral de Implantação – Sipra:
Rel_0229/Data: 29/04/2008.

Projetos criados entre 1900 e 2003 continuaram a receber novas famílias em 2007.
Uma informação que não está disponível é quanto ao real significado desses assenta-
mentos. Ou seja, quantos se referem a substituições de famílias que deixaram o lote?
Quantas famílias estão ocupando pela primeira vez lotes desocupados? Houve alteração
nos perímetros dos projetos e a conseqüente criação de parcelas suplementares? Quais
as outras possíveis razões para tal fato? Apenas 38% dos assentamentos ocorreram em
projetos criados em 2007, ao passo que 31% se deram em projetos criados antes de
2003. Os demais (30%) ocorreram em projetos criados durante o primeiro mandato
do presidente Lula (tabela 8).
Outro ponto a destacar reside na baixa quantidade de assentamentos em pro-
jetos criados em 2007. Entre 1o de janeiro e 31 de dezembro de 2007 foram criados
395 projetos com parcelas, das quais foram ocupadas 25.530 (76% do total). Este
resultado ficou muito aquém daqueles obtidos em anos anteriores, tendo sido maior
apenas do que o de 2002, considerados os assentamentos anuais desde 1995 (Anexo
Estatístico, tabela 7.1).
TABELA 8
Famílias assentadas em 2007, segundo o período/ano de criação dos projetos
que as receberam (2007)
Período/ano No famílias assentadas %
Até 13/12/1994 5.302 7,92%
De 1995 a 2002 15.193 22,68%
De 2003 a 2006 20.316 30,33%
2007 25.530 38,11%
Total 66.983 100,00%
Fonte: MDA/Incra/DT – Diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento/DTI – Coordenação-Geral de Implantação – Sipra:
Rel_0229/Data: 29/04/2008.

Mas o que chama mais atenção é, de um lado, a prevalência de projetos de assenta-


mento, e, de outro, a maior parcela das novas áreas destinadas a projetos voltados para
a preservação de florestas, conforme expresso na tabela 9.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 191


TABELA 9
Projetos criados, segundo o tipo e respectiva capacidade de assentamento (no de lotes), no de
famílias assentadas e no de lotes vagos a serem ocupados (2007)
Nº projetos criados % novos
Tipo dos projetos Área (ha) % área
em 2007 projetos
Total 395 6.397.899,6931 100,00% 100,00%
PA Projeto de Assentamento 324 749.273,0566 82,03% 11,71%
PCA Projeto Casulo 5 1.578,6110 1,27% 0,02%
PE Projetos Estaduais 11 25.236,9028 2,78% 0,39%
PFP Projeto Fundo de Pasto 8 17.653,0644 2,03% 0,28%
PRB Projeto Reassentamento de Barragem 12 4.322,4329 3,04% 0,07%
TRQ Território Remanescente de Quilombos 1 890,0000 0,25% 0,01%
Subtotal 1 361 798.954,0677 91,39% 12,49%
PAE Agroextrativista 16 1.405.406,3970 4,05% 21,97%
PAF Assentamento Florestal 1 137.087,0000 0,25% 2,14%
PDS Desenvolv. Sustentável 10 192.877,7262 2,53% 3,01%
RDS Reserva Desenv. Sustentável 4 3.281.865,2929 1,01% 51,30%
RESEX Reserva Extrativista 3 581.709,2093 0,76% 9,09%
Subtotal 2 34 5.598.945,6254 8,61% 87,51%
Fonte: MDA/Incra/DT – Diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento/DTI – Coordenação-Geral de Implantação – Sipra:
Rel_0229/Data: 29/04/2008.

Outros pontos a destacar sobre a evolução recente dos assentamentos são: i) a retomada
de projetos do tipo casulo; ii) a incorporação dos projetos estaduais de assentamento,
inclusive os direcionados para os agricultores desalojados por conta da construção de
barragens; e iii) o fato de se ter criado apenas um projeto de reconhecimento de território
remanescente de quilombo – no estado de São Paulo.
3.2 Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf)
Em edições anteriores, este periódico adiantou que um diagnóstico atualizado da efeti-
vidade e dos impactos do Pronaf ainda depende da realização de uma série de estudos
e pesquisas, o que em parte deverá ser possibilitado com a análise dos dados do Censo
Agropecuário de 2006.
Em 2007, o relatório de acompanhamento anual elaborado pela Secretaria da Agri-
cultura Familiar (SAF)16 destaca avanços importantes em algumas frentes, tais como:
i) na ampliação das ações relacionadas com Assistência Técnica e Extensão Rural aos Agri-
cultores Familiares, graças à suplementação orçamentária aprovada em lei; ii) no Programa
de Garantia de Preços da Agricultura Familiar (PGPAF),17 que, no ano de 2007, cobriu
cerca de 550 mil contratos; iii) na qualificação de técnicos da rede de extensão rural por
meio de cursos de especialização, com ênfase nos temas relativos a agroecologia, metodo-
logias participativas e sistemas agroflorestais; iv) no desenvolvimento de redes temáticas
nos convênios de Ater, que privilegiaram os temas agroecologia, crédito rural, agroin-
dústria, produtos diferenciados para agricultura familiar (orgânicos, plantas medicinais
e fitoterápicos, e sociobiodiversidade) e atividades não-agrícolas; v) na concessão de selo
combustível social18 a 18 empreendimentos, e na implementação de pólos de produção

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. Cf. <www.sigplan.gov.br>.
17. O agricultor familiar que contratar uma operação de custeio do Pronaf, a partir da safra 2006/2007, terá automatica-
mente seu financiamento vinculado ao preço de garantia do PGPAF. O preço de garantia é o custo de produção médio da
região, levantado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e estabelecido pelo Comitê Gestor do Programa.
Este preço é definido de forma a ser suficiente para cobrir os custos de produção dos produtos financiados em determinada
safra e região. O preço de garantia não poderá ser inferior ao preço mínimo e poderá ser até 10% maior – ou menor – do
que o custo de produção, com a finalidade de estimular ou desestimular a produção de determinado produto, em função
dos estoques reguladores e das condições socioeconômicas das famílias agricultoras.
18. Conforme o número 14 deste periódico, “Para incentivar a incorporação da agricultura familiar no programa de biodiesel
o governo federal lançou o Selo Combustível Social, que desde maio de 2005 é um componente de identificação concedido
pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário aos produtores de biodiesel que tiverem seus projetos aprovados pelo MDA”.

192 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


de oleaginosas, visando à ampliação da participação da agricultura familiar na cadeia do
biocombustível; e iv) na implementação do Programa Aquisição de Alimentos.
Não obstante o reconhecimento da importância da qualificação dos agricultores,
assim como do quanto é imprescindível a prestação de serviços adequados de assistência
técnica, a quantidade de agricultores contemplados é ainda baixa, seja pela escassez de
recursos orçamentários e financeiros, seja pela insuficiência de recursos técnicos e ad-
ministrativos no âmbito do MDA, que impossibilitam o monitoramento das ações de
Ater desempenhadas pelas entidades contratadas. As mesmas dificuldades operacionais
restringem o alcance das ações de Fomento a Projetos de Diversificação Econômica e Agre-
gação de Valor. Os recursos a serem aplicados nestas áreas – embora tenham aumentado
bastante no último biênio, e esteja previsto um crescimento ainda mais robusto para a
próxima safra agrícola – ainda são insuficientes para atender às necessidades existentes.
Os grupos de agricultores que mais precisam de orientação e suporte técnico para o desen-
volvimento de seus projetos de desenvolvimento e para a maximização dos empréstimos
obtidos junto ao Pronaf recebem pouca ou nenhuma assistência técnica – sobretudo os
economicamente mais vulneráveis (grupos B e C).19
Entre as novidades incentivadas pelo Pronaf, conforme o Plano-Safra da Agricul-
tura Familiar 2007/2008, está o Pronaf Eco, que disponibiliza linhas de financiamento
para projetos agroflorestais de agricultores familiares e de assentados da reforma agrária.
O crédito, com juros de 2% ao ano e prazo de carência de oito anos, está disponível
também para o plantio de eucalipto.20 Estes beneficiários já dispunham do Pronaf
Floresta, destinado à criação de projetos de sistemas agroflorestais e à exploração ex-
trativista ecologicamente sustentável – anteriormente também usado para o plantio
de eucalipto.
As percepções dos agricultores familiares e dos assentados em relação ao plantio
de eucalipto não são unívocas. Vários têm acessado esta linha de crédito. As maiores
resistências advêm do confronto presente em algumas regiões – como no Rio Grande do
Sul – entre os pequenos agricultores com e sem terra e as grandes empresas. Estas têm
adotado práticas agressivas no intuito de ampliar o cultivo de eucalipto para a fabricação
de celulose, e estão atuando fortemente junto ao Congresso Nacional para a alteração
da legislação que atualmente dificulta sua expansão. É o que propõe, por exemplo, a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 49/2006, de autoria do senador Sérgio
Zambiasi (PTB/RS), que versa sobre a redução da faixa de fronteira de 150 km para
50 km, para que estas terras possam ser adquiridas para a o plantio de eucalipto, em
benefício das grandes empresas papeleiras ora em processo de instalação na região Sul
do país e no Uruguai.
Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Pronaf Eco tem como objetivo
fortalecer o trabalho com a biodiversidade no campo. Na defesa desta política, citam-se
áreas do interior de São Paulo, na quais os eucaliptos estão presentes, sobretudo em assen-
tamentos das regiões de Itapeva, Iaras e Pontal do Paranapanema. Em Iaras, os eucaliptais
cobrem grande parte dos 2,4 mil hectares do Assentamento Zumbi dos Palmares.

19. Cf. <www.sigplan.gov.br>: Avaliação do PPA-2007.


20. O cultivo do eucalipto vem sendo criticado pelo movimento de trabalhadores rurais Via Campesina, que vê este tipo de mo-
nocultura como especialmente danoso para o meio ambiente e contrário à lógica de reprodução da agricultura familiar.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 193


3.2.1 Novas regras para o Pronaf-Crédito
O Plano Safra da Agricultura Familiar 2007/2008 encerra uma fase do Pronaf em que
prevalecia uma definição de beneficiários em uso basicamente desde 1999. A partir de
1o de julho de 2008, os grupos ou linhas C, D e E21 deixarão de existir, ficando todos
compreendidos como “agricultores familiares”.22
O Pronaf foi criado em 1996 em resposta às demandas das organizações de trabalha-
dores rurais por uma política agrícola específica para o setor da agricultura familiar, até
à época pouco ou nada era contemplado com linhas de crédito adequadas e necessárias
ao seu desenvolvimento, o que impossibilitava o acesso aos recursos financeiros e aos
próprios mercados de produtos agropecuários. Desde então passou por diversas alterações
de natureza normativa e institucional, visando ao aprimoramento de suas ações.
A cada ano o programa foi sendo ampliado, seja em termos dos montantes de
recursos disponibilizados, seja por meio de sua expansão para todo o país. Fortemente
concentrado na região Sul nos primeiros anos, foi-se estendendo e, sobretudo a partir de
2003, se fez presente em praticamente todos os municípios. Se em 1996 foram firmados
contratos no montante de R$ 1,5 bilhão, em 2007 foram estabelecidos contratos no
valor total de R$ 8,1 bilhões.
Em uma primeira etapa (entre 1996 e 1999) o sistema de financiamento do progra-
ma passou por mudanças pontuais nas regras de funcionamento, com redução progres-
siva das taxas de juros (de 12% ao ano na safra de 1996 para 6,75% ao ano em 1999),
mas mantendo elevada concentração dos empréstimos para os agricultores da região
Sul, especialmente os do Rio Grande do Sul. As regras para designação de beneficiários
não faziam distinções entre os níveis de renda auferidos; os primeiros grupos ou linhas
foram estabelecidos em 1999: grupos C e D e mais a incorporação dos beneficiários da
reforma agrária que passaram a compor o grupo A. Entre 2000 e 2008, o Pronaf passou
por contínuas mudanças em seu formato, com a introdução de novos grupos de benefi-
ciários estratificados de acordo com o nível da renda bruta familiar anual.23 O objetivo
destas medidas era tornar o Pronaf mais adequado à realidade dos diferentes estratos de
agricultores familiares – distribuídos nos grupos A, B, A/C, C, D e E.
Mas eis que se volta, em certa medida, ao ponto de origem: extinguem-se os grupos
C, D e E, e mantêm-se, por suas especificidades, os grupos A, A/C e B: não se trata
mais de privilegiar possíveis diferenças, mas de estender o programa de forma a torná-lo
mais ágil e de mais fácil operacionalidade por parte dos agentes financeiros. Não é mais
o programa que define seu beneficiário, mas o beneficiário que se encaixa no programa
de acordo com o montante de crédito requerido. As taxas de juros serão definidas pelo
valor financiado. Para os financiamentos de custeio, as taxas ficarão entre 1,5% e 5,5%
ao ano (hoje, variam entre 3% e 5,5% para os grupos que foram extintos). As operações
de investimento, por sua vez, terão juros entre 1% e 5% anuais, enquanto atualmente
variam entre 2% e 5,5% ao ano.

21. No Anexo Estatístico, disposto ao final deste volume em CD ROM, estão descritas a conformação e as características
de cada um desses grupos.
22. Reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN) do Banco Central (Bacen), realizada no dia 28 de março de 2008,
alterou as regras de financiamento da agricultura familiar por meio da Resolução no 3.559, publicada no Diário Oficial da
União de 1o de abril de 2008, e com vigência a partir de 1o de julho de 2008.
23. Resolução no 2.629/1999, por meio da qual o Conselho Monetário Nacional alterou o capítulo 10 do Manual de Crédito
Rural do país.

194 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Os grupos A (crédito para a reforma agrária) e B (microcrédito rural) não sofrerão
alterações, permanecendo como funcionam atualmente. As linhas especiais (como Pronaf
Floresta e Pronaf Jovem, entre outras) permanecem, conservando os enfoques sociais
e ambientais do programa, assim como as mesmas taxas de juros e limites de financia-
mento das linhas ordinárias. Para as linhas especiais, passa a valer a queda nas taxas de
juros prevista a partir de 1o de julho. Alguns exemplos desta queda nas linhas especiais
podem ser observados no Pronaf Agroecologia, no Pronaf Mulher, no Pronaf Floresta
e no Pronaf Agroindústria, que passarão a ter taxas entre 1% e 2% ao ano, enquanto
hoje variam entre 2% e 5,5%.
Para o MDA, esta nova orientação vai conferir maior agilidade ao programa , tor-
nando o acesso ao Pronaf mais fácil. Também se prevê que os juros dos finaciamentos
serão menores, uma vez que serão definidos pelos montantes financiados. Contudo, o
programa não tem sido pensado para contrapor-se à lógica dominante da produção
agropecuária do país, cada vez mais pautada na especialização produtiva com base no
uso de insumos modernos. Alguns estudos24 apontam que o Pronaf tem estimulado a
reprodução e a consolidação de um modelo produtivo de feição tradicional, provocando
aumento da dependência de insumos externos e aumentando os riscos de perda de sus-
tentabilidade das atividades agropecuárias. Por isso, a mera extinção das categorias que
diferenciavam socialmente os agricultores familiares para fins de financiamento não é
suficiente para alterar a trajetória histórica do programa, colocando-se como necessidade
premente a retomada dos debates sobre o papel do Pronaf na construção de um novo
projeto de desenvolvimento.
3.2.2 Desempenho do Pronaf-Crédito em 2007
A tabela 10 apresenta a evolução dos financiamentos do Pronaf no período 1995-2007,
discriminados segundo a finalidade (custeio ou investimento). Nota-se um crescimento
expressivo tanto do número de contratos como do volume real de recursos, os quais
passam de R$ 268,8 milhões, em 1995, para quase R$ 8,0 bilhões em 2008. Este dife-
rencial deve ser visto com cautela, pois, de um lado, as normas de financiamento foram
estabelecidas em agosto de 1995 e, de outro, os empréstimos de investimento tiveram
início, de fato, em 1997. Além disso, entre 2006 e 2007 houve uma queda de 20% no
número de contratos firmados e de 6% no total de recursos aplicados.

24. Entre outros, FERREIRA; GARCIA, R. C. Avanços e Problemas: o PRONAF visto de baixo. REDE IPEA DE PESQUISA
- PESQUISA BRA 97/13. Ipea, Brasília, 2002; FERREIRA, B.; SILVEIRA, F.G. Financiamento da agricultura brasileira:
avaliação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura (Pronaf): Público, Alcance e Limites. PROGRAMA REDE
DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. Projeto BRA 97/013: Financiamento da Agricultura Brasileira.
Ipea, Brasília, 2002; MATTEI, L. PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR (PRONAF):
CONCEPÇÃO, ABRANGÊNCIA E LIMITES OBSERVADOS. Texto apresentado no IV Encontro da Sociedade Brasileira de
Sistemas de Produção, realizado em Belém (PA), em 19 a 23/03/01.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 195


TABELA 10
Contratos e montante do crédito rural do Pronaf por modalidade e ano fiscal (1995-2007)
(IGP-DI/FGV 2007)
Custeio Investimento Total
Anos Valor Valor Valor
No contratos No contratos No contratos
(em R$ milhão) (em R$ milhão) (em R$ milhão)
1995 30.306 266,85 187 1,96 30.493 268,82
1996 306.562 1.478,36 4.844 29,10 311.406 1.507,46
1997 415.667 2.490,81 70.795 1.040,40 486.462 3.531,21
1998 558.833 2.809,21 87.411 468,43 646.244 3.277,64
1999 671.239 2.696,78 131.610 1.271,34 802.849 3.968,12
2000 757.536 2.653,91 212.191 1.518,44 969.727 4.172,35
2001 723.754 2.495,51 186.712 1.224,01 910.466 3.719,52
2002 677.730 2.160,51 275.517 1.499,08 953.247 3.659,59
2003 860.730 2.930,94 277.382 1.787,15 1.138.112 4.718,10
2004 1.049.840 4.041,51 561.623 2.485,57 1.611.463 6.527,08
2005 983.377 3.850,44 687.806 2.996,24 1.671.183 6.846,67
2006 1.024.678 4.807,45 833.370 3.706,54 1.858.048 8.513,99
2007 950.690 5.192,15 597.240 2.867,99 1.547.930 8.060,15
Soma 9.010.942 37.874,44 3.926.688 20.896,26 12.937.630 58.770,70
Fontes: Bacen (somente exigibilidade bancária); Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob); Banco Cooperativo Sicredi S/A (Bansicredi); Banco da Ama-
zônia S/A (Basa); Banco do Brasil (BB); Banco do Nordeste (BN); e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Dados
atualizados: Bacen, até 06/2007; Bacoob, até 02/2008; Bansicredi, até 01/2008; Basa, até 12/2007; BB, até 02/2008; BN, até 01/2008; e
BNDES, até 07/2006 – últimos três meses sujeitos a alterações. Em: <www.pronaf.gov.br> – acessado em 27/03/2008.

Paralelamente, é importante considerar outras iniciativas no âmbito do crédito


agrícola, em especial aquelas relativas à reestruturação da dívida rural acumulada desde
a década de 1980. Nesse sentido foi emitida a MP no 423, de 23 de maio de 2008,
que abrange débitos da ordem de R$ 76,0 bilhões, dos quais apenas R$ 3,0 bilhões são
relativos aos débitos de pequenos agricultores.25 Observe-se que os R$ 73 bilhões rela-
tivos à dívida do setor rural – e que não contemplam todos os créditos não pagos por
agricultores de médio e grande porte – são cerca de 25% superiores à soma do total de
empréstimos concedidos pelo Pronaf desde o início de suas operações em 1995 – em
valores atualizados até dezembro de 2007.
Os esforços de expansão e desconcentração regional das aplicações do Pronaf têm
tido constantes resultados positivos, mas o Sul ainda concentra 1/3 dos contratos e
mais de 40% do montante dos financiamentos concedidos, o que se justifica pela maior
presença na região de unidades agrícolas familiares mais consolidadas. No Sudeste, en-
tre 2004 e 2006, observa-se uma diminuição nos contratos, tendência que se reverteu
em 2007. Porém, a alocação de recursos vem aumentando, em termos relativos, desde
2004. O avanço do Pronaf nas regiões Norte e Centro-Oeste ainda tem um longo
caminho a percorrer. A região Norte, em 2007, ficou com 6% dos contratos e 8% dos
recursos aplicados; e o Centro-Oeste, com menos de 4% dos contratos e menos de
7% dos recursos.
O Nordeste, sobretudo devido ao peso do grupo de agricultores do Grupo B,
ampliou a quantidade de contratos do Pronaf, especialmente até 2006 – em 2007 sua
participação no total de contratos firmados foi menor que no ano anterior. Embora tenha
sido registrada na região a maior quantidade de contratos (cerca de 40% do total), tal
fato não se traduziu em igual peso na alocação dos recursos, como mostra a tabela 11.

25. O argumento central que a medida utiliza para justificar-se – para além das pressões dos ruralistas e do agronegócio
– está em garantir a recuperação da renda agrícola nacional e o retorno de recursos públicos que estavam comprometidos
pelas dívidas dos produtores, promovendo a recomposição da renda agrícola, o que, supõe-se, poderá ter impactos positivos
para o aumento da produção.

196 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 11
Contratos e montantes concedidos pelo Pronaf-Crédito, por região (2004-2007)
(em %)
2004 2005 2006 2007
Estado
Contratos Montante Contratos Montante Contratos Montante Contratos Montante
Brasil 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
Norte 7,50% 11,93% 4,82% 9,10% 5,56% 9,49% 6,11% 8,04%
Nordeste 36,13% 18,19% 41,93% 24,80% 43,55% 25,98% 39,34% 22,63%
Sudeste 14,29% 17,00% 14,57% 18,09% 15,97% 19,74% 17,03% 21,66%
Sul 38,61% 46,64% 35,28% 41,15% 31,69% 38,48% 33,74% 40,96%
Centro-Oeste 3,47% 6,23% 3,40% 6,86% 3,23% 6,30% 3,78% 6,71%
Fontes: Bacen (somente exigibilidade bancária); Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob); Banco Cooperativo Sicredi S/A (Bansicredi); Banco da Ama-
zônia S/A (Basa); Banco do Brasil (BB); Banco do Nordeste (BN); e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Dados
atualizados: Bacen, até 06/2007; Bacoob, até 02/2008; Bansicredi, até 01/2008; Basa, até 12/2007; BB, até 02/2008; BN, até 01/2008; e
BNDES, até 07/2006 – últimos três meses sujeitos a alterações. Em: <www.pronaf.gov.br> – acessado em 25/03/2008.

A tabela 12 revela de modo claro o quanto as novas regras do Pronaf poderão obscure-
cer ainda mais o conhecimento da cobertura dos diferentes estratos da agricultura familiar.
Da mesma forma que se defende a necessidade de tratamento diferenciado na formulação
de política agrícola para grandes produtores e para produtores familiares, o mesmo cuidado
deveria continuar a ser observado no trato das diferenças constitutivas da agricultura familiar.
Os grupos C, D e E, em 2007, responderam por mais de 70% dos contratos e mais de 85%
dos recursos – o Grupo E (os de maiores rendimentos anuais) foi responsável por 7,7% dos
contratos e ficou com 23% dos recursos; aos agricultores do Grupo C, de menor renda anual,
couberam 32% dos contratos, mas somente 18% do volume dos empréstimos concedidos.
Outra questão a ser levada em consideração é o valor médio dos contratos auferidos
pelos diferentes grupos. Para empreendimentos de agroindústria familiar, os contratos e
valores firmados em 2007 são preocupantemente pequenos. Foram contabilizados apenas
16 contratos, a maioria em Pernambuco, com valores médios baixos: R$6,2mil cada.
Outros cinco contratos também ficaram na região Nordeste (Bahia com quatro e Ceará
com um), e apenas um em Minas Gerais (Anexo Estatístico, tabela 7.13).
Os Grupos A e B recebem recursos do Pronaf basicamente para investimentos.
Enquanto o Grupo A é composto por assentados da reforma agrária que devem dire-
cionar os recursos para a estruturação produtiva dos lotes, o público a ser beneficiado
com recursos da linha B situa-se entre os agricultores mais pobres, os quais, segundo
os dados disponíveis, englobavam mais de 54% das unidades familiares de produção,
majoritariamente concentrados na região Nordeste (74% do total).26
TABELA 12
Valor médio dos contratos e distribuição de contratos e do montante do crédito rural do Pronaf
por enquadramento (2007)
Valor médio
Enquadramento % contratos % montante
(R$ 1,00)
Agroindústria familiar 6.261,83 0,001% 0,001%
Exigibilidade bancária (sem enquadramento) 18.238,23 0,42% 1,48%
Grupo A 14.123,05 1,58% 4,30%
Grupo A/C 2.689,41 0,76% 0,39%
Grupo B 1.406,83 26,54% 7,17%
Grupo C 2.906,24 31,39% 17,52%
Grupo D 7.594,28 31,50% 45,95%
Grupo E 15.493,36 7,75% 23,06%
Identificado/Não registrado 14.335,64 0,05% 0,13%
Total 5.207,05 100,00% 100,00%
Fontes: Bacen (somente exigibilidade bancária); Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob); Banco Cooperativo Sicredi S/A (Bansicredi); Banco da Ama-
zônia S/A (Basa); Banco do Brasil (BB); Banco do Nordeste (BN); e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Dados
atualizados: Bacen, até 06/2007; Bacoob, até 02/2008; Bansicredi, até 01/2008; Basa, até 12/2007; BB, até 02/2008; BN, até 01/2008; e
BNDES, até 07/2006 – últimos três meses sujeitos a alterações. Em: <www.pronaf.gov.br> – acessado em 25/03/2008.

26. Ver SABBATO, Alberto Di. O público-alvo do crédito rural do PRONAF: estimativa a partir dos dados do Censo
Agropecuário do IBGE de 1995-1996. Projeto INCRA/FAO. Setembro de 2000.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 197


Em 2004, os recursos oriundos do Orçamento Geral da União (OGU) tiveram o maior
peso relativo no financiamento dos empréstimos do programa: 1/3 do total. Esta participação
diminuiu aceleradamente nos anos subseqüentes. Em 2005 e 2006 o Fundo de Amparo ao
Trabalhador (FAT) e o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) passaram
a responder por cerca der 37% e 17% dos financiamentos, respectivamente, sendo que desde
2005 os recursos procedentes das exigibilidades bancárias passaram também a ser significativos.
Possivelmente esta nova composição de fontes do Pronaf foi um fator determinante para a
introdução das novas regras de financiamento.
TABELA 13
Contratos e montantes do crédito rural do Pronaf por fonte de recursos e ano fiscal (2004–2007)
(em %)
2004 2005 2006 2007
Fontes de recursos Montante Montante Montante Montante
Contratos Contratos Contratos Contratos
(R$ 1,00) (R$ 1,00) (R$ 1,00) (R$ 1,00)
Exigibilidade bancária 17,08% 24,54% 12,84% 18,91% 22,36% 32,80% 51,42% 57,77%
Fundos constitucionais
14,83% 18,94% 34,80% 25,61% 34,36% 25,43% 24,62% 18,95%
(FNE, FCO e FNO) 1

FAT 12,72% 18,18% 36,63% 37,38% 34,47% 36,45% 11,73% 17,36%


OGU 51,54% 33,28% 12,83% 13,32% 7,64% 4,52% 12,02% 4,67%
BNDES 0,71% 0,95% 0,69% 1,09% 0,14% 0,17% 0,19% 1,04%
Outros (RPE, DIR e
3,12% 4,11% 2,23% 3,71% 1,02% 0,63% 0,02% 0,23%
Funcafé)2
Fontes: Bacen (somente exigibilidade bancária); Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob); Banco Cooperativo Sicredi S/A (Bansicredi); Banco da Ama-
zônia S/A (Basa); Banco do Brasil (BB); Banco do Nordeste (BN); e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Dados
atualizados: Bacen, até 06/2007; Bacoob, até 02/2008; Bansicredi, até 01/2008; Basa, até 12/2007; BB, até 02/2008; BN, até 01/2008; e
BNDES, até 07/2006 – últimos três meses sujeitos a alterações. Em: <www.pronaf.gov.br> – acessado em 25/03/2008.
Notas: 1 FNE: Fundo Constitucional do Nordeste; FCO: Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste; FNO: Fundo Constitucional de
Financiamento da Região Norte.
2
RPE: O Pronaf faz parte do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) e utiliza as seguintes fontes de recursos: o FAT; fundos constitucionais
(FNE, FCO e FNO); recursos próprios dos bancos cooperativos (RPE); recursos de operações oficiais de crédito do Orçamento Geral da União
(OGU); e os recursos obrigatórios (MCR 6.2) – entre estas fontes de recursos, apenas o FAT e os RPE demandam equalização das taxas
de juros, spread, taxas bancárias e rebates concedidos em algumas modalidades de financiamento; DIR: Depósito Interfinaceiro, vinculado
ao crédito rural, foi instituído pela Resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) no 1702/1990 como instrumento de aplicações do
setor rural, e agora está regulamentado no Manual de Crédito Rural – MCR 6 – 1 Crédito Rural – Recursos – Disposições Gerais. Mais
recentemente foi instituída uma nova modalidade de depósito interfinaceiro vinculado ao Crédito Rural, denominada DIR-Pronaf, para apoiar
financeiramente atividades agropecuárias e não-agropecuárias exploradas mediante o uso direto da força de trabalho; Funcafé: Fundo de
Defesa da Economia Cafeeira.

3.3 Execução orçamentária dos principais programas do MDA


Dos recursos orçamentários autorizados para aplicação pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário em 2007, correspondentes a R$ 4,1 bilhões, foram utilizados R$ 3,8 bilhões (92%),
além de R$ 376,6 milhões – de um montante de R$ 491,3 milhões – inscritos em Restos
a Pagar relativos ao exercício de 2006. Em 2006, o orçamento executado do MDA foi
de quase R$ 3,4 bilhões; ou seja, houve aumento de 11%, entre 2006 e 2007, percentual
bem acima da inflação acumulada no período.
Dos programas finalísticos sob responsabilidade do MDA, destacam-se os rela-
tivos à reforma agrária e que são executados pelo Incra: Assentamento Sustentável para
Trabalhadores Rurais e Desenvolvimento Sustentável na Reforma Agrária. Estes progra-
mas foram formatados a partir do lançamento, em 1999, dos princípios e diretrizes do
“Novo Mundo Rural”27 e, desde então, balizam a política de reforma agrária. Embora
tenham passado por alterações e ajustes nos anos seguintes, sua integridade básica não
foi substancialmente alterada.
Ao Programa Assentamento Sustentável para Trabalhadores Rurais cabem a formação
de novos assentamentos, a seleção e a distribuição de lotes às famílias beneficiadas –
tanto em projetos novos, como em lotes vagos de projetos antigos –, e todas as fases

27. O número 2 deste periódico apresenta os elementos constituintes dessa política.

198 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


do processo de estruturação dos assentamentos. Por isso, consome a maior parcela de
recursos do MDA: em 2007, foi cerca de R$ 1,7 bilhão o montante autorizado, tendo
sido liquidado R$ 1,66 bilhão, ou seja, 42% dos recursos totais sob responsabilidade
do MDA (Anexo Estatístico, tabela 1.1). Contudo, em relação ao disponibilizado em
2005, este montante é cerca de 6% menor.
O Programa Desenvolvimento Sustentável na Reforma Agrária, que deve direcionar
suas ações para a estruturação dos assentados, deveria estar tendo um aporte mais signi-
ficativo de recursos, para poder cumprir com a promessa do MDA de apressar e concluir
a estruturação produtiva dos assentamentos realizados antes de 2002. Em 2007, foram
consignados para este programa R$ 272 milhões e aplicados R$ 264 milhões (97%). Além
de recursos financeiros limitados em face da tarefa a ser enfrentada, o programa também
se ressente de dificuldades operacionais e de insuficiência de recursos técnicos.
O Pronaf – para além de suas atribuições na disponibilização de crédito – conta,
especificamente, no âmbito do MDA, com recursos para desenvolver um conjunto de
ações de apoio à agricultura familiar centrado basicamente na prestação de serviços
de assistência técnica. Entre 2005 e 2007, este montante cresceu significativamente,
multiplicando-se por 2,5: passou de R$ 166 milhões para R$ 423 milhões. Neste total
não estão incluídos os recursos destinados para a equalização de juros,28 os quais chega-
ram em 2007 a R$ 934,9 milhões.
O Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais vem ampliando sua atuação,
tendo inspirado a elaboração do Programa Territórios Rurais da Cidadania, o qual, em
2008, deverá apoiar o desenvolvimento integrado de 60 territórios, por meio da imple-
mentação de 133 ações nas áreas econômica, social e de infra-estrutura. Para a composição
destas ações foi feita uma seleção daquelas com intercessões ou impactos sobre as áreas
pré-definidas, tomando-se como referência o PPA 2008-2011. Em 2008, o programa
deve atuar em cerca de mil municípios brasileiros, que compõem os 60 territórios se-
lecionados, distribuídos por todas as regiões do país. A configuração de cada território
obedece a definições prévias relativas à identidade e solidariedade microrregionais,
a partir dos municípios com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) e
baixo dinamismo econômico. O investimento previsto para este ano é de R$ 11,3 bilhões.
A novidade da proposta está em combinar “diferentes ações para reduzir as desigualdades
sociais e promover um desenvolvimento harmonioso e sustentável”.
Em 2007, o Programa Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais apoiou o
processo de elaboração e ajustes nos Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sus-
tentável (PTDRS) em 120 territórios rurais, sendo 8 novos. No período 2004 a 2007,
104 territórios rurais já concluíram seus PTDRS. Dos recursos previstos de R$ 422,8
milhões, foram liquidados R$392,8 milhões.
O Território da Cidadania – basicamente um conceito de gerência de programas
sociais – compreende a ação integrada, em bolsões de pobreza localizados na área rural,
de programas já existentes, a serem desenvolvidos sob a coordenação do Ministério
do Desenvolvimento Agrário, com o envolvimento de mais 17 outros ministérios e
secretarias, em conexão com o planejamento local feito por colegiados, nos quais estão
representados as comunidades e os poderes estaduais e municipais. Com este enfoque,
os resultados de cada ação poderão interagir e se multiplicar. Uma região atendida pelo

28. Equalização de Juros para a Agricultura Familiar – Ponaf (Lei no 8.427/1992).

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 199


Pronaf sem que a agricultura familiar tenha assistência técnica, infra-estrutura para
escoamento da produção, ou mesmo educação para poder acessar novos manejos agrí-
colas e novas tecnologias é desperdício de dinheiro, assim como conceder o benefício
do Bolsa Família sem tornar a agricultura familiar uma atividade produtiva é jogar com
sua eternalização. Incentivar o beneficiamento da produção em cooperativas sem que a
região tenha luz elétrica é desperdiçar a produção.
Como pode ser verificado na tabela 14, para as ações de Garantia de Direitos e De-
senvolvimento Social foram assinalados cerca de R$ 4,7 bilhões, ou 41,5% dos recursos
orçados. Este montante justifica-se por terem sido incluídos os programas federais de
transferência de renda, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada.
TABELA 14
Recursos previstos para as ações do governo federal nos 60 territórios da cidadania, por área
de atuação (2008)
No programas/ações Áreas de atuação Gasto previsto (R$) %
9 Direitos e desenvolvimento social 4.669.591.210,62 41,5%
63 Organização sustentável da produção 2.349.583.777,09 20,9%
18 Saúde, saneamento e acesso à água 596.641.189,06 5,3%
18 Educação e cultura 576.695.244,46 5,1%
8 Infra-Estrutura 2.456.125.944,00 21,8%
10 Apoio à gestão territorial 22.454.000,00 0,2%
7 Ações fundiárias 584.762.566,00 5,2%
Total = 133 11.255.853.931,23 100,0%
Fonte: <www.mda.gov.br>.

Especificamente voltados para a organização sustentável da produção, que inclui o


maior número de ações, foram atribuídos R$ 2,3 bilhões, a serem aplicados sobretudo
por meio dos programas do MDA direcionados para a reforma agrária e para o fortale-
cimento da agricultura familiar.
As ações elencadas que têm como foco o desenvolvimento econômico irão centrar-
se no apoio às atividades produtivas agrícolas e pecuárias (assistência técnica, crédito
agrícola), na comercialização dos produtos agropecuários (por intermédio do Programa
de Aquisição de Alimentos ou mediante ações de apoio ao cooperativismo, às unidades
de comercialização e à agroindústria), na produção de biodiesel (assistência técnica,
capacitação, pesquisa e desenvolvimento, organização da produção, gestão do selo
combustível social), e na regularização fundiária (identificação e delimitação de terras
em quilombolas, reassentamento de famílias de áreas indígenas).
Os projetos de infra-estrutura devem aplicar R$ 2,5 bilhões, sobretudo no Programa
Luz para Todos e PAC/Urbanização de Favelas.
A melhoria da qualidade de vida da população desses 60 territórios também
poderá contar com cerca de R$ 1,2 milhão para o desenvolvimento de ações em
saúde e educação.

200 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


4 Tema em destaque
Crise alimentar e agricultura no Brasil29
4.1 Quadro geral
Estima-se que mais de 850 milhões de pessoas no mundo todo estejam enfrentando
grandes dificuldades para ter acesso a produtos alimentícios. Outros 2 bilhões sofreriam
de desnutrição, problema que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pode
gerar males permanentes nas crianças.
Recentemente, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
(FAO), no encerramento de seu 30o Congresso,30 expressou grande preocupação com
o aumento da carestia e com a falta de alimentos básicos em diversos países. O órgão
alerta para as dificuldades vivenciadas por inúmeras sociedades por conta do aumento
nos preços dos alimentos, especialmente onde os preços dos alimentos subiram muito.
Além de todas as conseqüências advindas da falta de alimentos, que afetam sobremaneira
os mais pobres, especialmente as crianças, os aumentos dos preços do trigo, arroz, mi-
lho, óleos comestíveis e outros alimentos básicos têm provocado revoltas populares em
cidades da Ásia e da África, com confrontos com forças policiais e, conseqüentemente,
mortes e prisões. Tais dificuldades, segundo a FAO, derivam de causas metereológicas,
como secas em algumas regiões e inundações em outras, ambas provocadas pelo aque-
cimento global.
Contudo, condições climáticas adversas em diferentes países do mundo não consti-
tuem as únicas responsáveis pela falta e encarecimento dos alimentos. Outras ordens de
fatores estariam atuando, principalmente aqueles relacionados com o aquecimento da
demanda mundial por alimentos, insumos e energia, provocado, sobretudo, pelos altos
índices de crescimento na última década de alguns países superpopulosos, com destaque
para a China e a Índia. Para muitos analistas a simultaneidade destes processos está ge-
rando uma supervalorização no mercado das commodities (produtos minerais, pecuários
e agrícolas com preços mundialmente negociados), um processo ainda em expansão,
como mostram os aumentos correntes do petróleo, do ouro e dos alimentos.31
Dessa forma, fatores estruturais e conjunturais estariam se combinando para defla-
grar a crise mundial de alimentos. Independentemente do que possa ser tomado como
causa central, o fenômeno estaria revelando uma crise estrutural no interior do sistema
produtivo capitalista, aprofundada por conta de restrições que, embora conjunturais,
tendem a transformar-se em estruturais. Neste caso enquadram-se os aumentos no preço
do petróleo, com impactos na cadeia produtiva de alimentos, uma vez que toda a pro-
dução do agronegócio pós-revolução verde, e mais recentemente, no ciclo de políticas

29. Os dados e argumentos que compõem este texto foram baseados em artigos publicados em jornais, revistas e sites em
meses recentes. Parte significativa do material foi obtida em artigos publicados pelo Correio da Cidadania (<www.correio-
cidadania.com.br>), especialmente alguns elaborados pelos seguintes colaboradores: Guilherme da Costa Delgado, Roberto
Malvezzi, Valéria Nader e Ariovaldo Umbelino, entre outros. Também o site da RadioagenciaNP (<www.radioagenciaNP.
com.br>) constituiu fonte importante de informações.
30. A 30a Conferência Regional da FAO para América Latina e Caribe aconteceu em Brasília, de 14 a 18 de abril deste ano,
com a participação de delegações dos 33 países-membros da região, agências das Nações Unidas, organismos intergo-
vernamentais, organismos não governamentais, e observadores. A conferência regional da FAO se realiza a cada dois anos
e representa o fórum máximo da organização na região, no qual são revisadas todas as atividades desenvolvidas e são
formuladas recomendações, sugestões e desafios, tanto para a FAO como para os governos.
31. O desastre dos títulos imobiliários norte-americanos tem propiciado o redirecionamento de investimentos para projetos
de agroenergia.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 201


neoliberais, está assentada no setor agroquímico, que é comandado pela lógica do preço
do petróleo. Daí decorrem outros desdobramentos; de uma parte, alguns países centram
esforços no sentido de substituir a energia fóssil pela renovável; de outra, atribui-se a
crise na oferta de alimentos à produção de agroenergia.
Em reunião realizada em maio de 2008, os diretores de agências das Nações Unidas,
do Banco Mundial (Bird) e da Organização Mundial do Comércio (OMC) também
discutiram a crise de alimentos, com ênfase na necessidade de se identificarem todas as
suas causas, para além da culpabilização do avanço dos agrocombustíveis em geral e do
etanol em particular. Concluíram que a redução da oferta de alimentos também deve
ser debitada tanto às más condições climatológicas e à degradação ambiental, quanto à
falta de investimentos no setor agrícola e aos subsídios da União Européia e dos Estados
Unidos, os quais distorcem o comércio internacional.
4.2 Crise de alimentos e produção agrícola no Brasil
Trabalho recente publicado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)32
revela que os principais produtos agrícolas projetam uma renda de R$ 143,03 bilhões
em 2008, a maior estimativa feita até hoje no Brasil. E ainda: que mais da metade desta
renda (57,3%) virá das lavouras de cana-de-açúcar, milho e soja. Os preços internacionais
favoráveis, os baixos estoques mundiais de alguns produtos, o aumento da demanda mun-
dial de alimentos e a pressão dos agrocombustíveis são responsáveis pela elevação do preço
dos grãos e das carnes, o que é positivo para os produtores e exportadores, mas ruim para os
consumidores internos e externos.
Projeções sobre o desempenho dos principais produtos agrícolas até 2010 revelam
um panorama preocupante quanto à oferta futura de determinados produtos. O trigo
continuará a ser obtido basicamente via importação, e o arroz tem uma previsão de
produção abaixo do consumo estimado, mas sem previsão de importações – mesmo
porque os principais países ofertantes no mercado internacional estão tomando medidas
restritivas quanto ao comércio do produto. A produção estimada de feijão ficará próxima
ao consumo; contudo, também poderá vir a faltar caso ocorram imprevistos climáticos
ou se as áreas que ocupa forem diminuídas pela expansão da cana-de-açúcar. Segundo
denunciam os sindicatos de trabalhadores rurais da Bahia, a cana vem ocupando áreas
até então utilizadas para o plantio de feijão, na região de Irecê.33
Em compensação, cresce a produção de milho e de soja, que terá no período
excedentes exportáveis, ainda segundo as previsões do Mapa. Neste curto período as
exportações de milho poderão dobrar de volume e as de soja continuarão a absorver
mais de 44% da produção total. Além da soja em grão, o óleo de soja destinará mais de
40% de sua produção para o exterior (tabela 15).

32. GASQUES, José Garcia. Estudo comparativo do acompanhamento mensal da renda, a partir de dados
do Levantamento Sistemático da Produção agrícola (LSPA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e dos
Preços Recebidos pelos Produtores, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2008.
33. O governo da Bahia lançou em um de seus sítios o programa Bahiabio, que objetiva o plantio de 870 mil hectares de
cana para produção de etanol e 868 mil hectares de oleaginosas para produzir biodiesel, deixando claro que “não é para
produzir alimentos”. No vale do São Francisco deverão ser plantados 510 mil hectares de cana, ou seja, cana irrigada. No
Oeste Baiano, outros 300 mil hectares, 20 mil no projeto Salitre, 60 mil no Canal do Sertão, 40 mil no Baixio do Irecê, 60 mil
no Médio São Francisco, 30 mil no rio Corrente. O restante será implantado nas regiões Sul (300 mil hectares) e Sudoeste
(60 mil hectares), com regularidade de chuvas, dispensando a irrigação.

202 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 15
Projeções para as principais lavouras: produção, área plantada, produtividade média, importação,
exportação e consumo interno de arroz, feijão, milho, trigo e soja (2006-2007 a 2009-2010)
Produção Área plantada Produtividade Importação Exportação Consumo Diferença:
Produtos e anos
(milhões de t) (milhões de ha) (t/ha) (milhões t) (milhões t) (milhões t) prod.-consumo
Arroz              
2006/07 12,48 2,62 4,77 - - 13,11 -0,63
2007/08 11,98 3,28 3,66 - - 13,2 -1,22
2008/09 12,1 3,24 3,74 - - 13,35 -1,26
2009/10 12,21 2,96 4,12 - - 13,5 -1,29
Feijão              
2006/07 3,19 4,12 0,78 0,08 - 3,31 -0,12
2007/08 3,32 4,17 0,8 0,07 - 3,33 -0,01
2008/09 3,55 4,13 0,86 0,07 - 3,39 0,16
2009/10 3,6 4,09 0,88 0,08 - 3,43 0,18
Milho              
2006/07 42,24 12,63 3,34 - 3,82 39,02 3,21
2007/08 48,32 13,33 3,63 - 6,27 40,38 7,94
2008/09 49,9 13,72 3,64 - 6,85 40,88 9,02
2009/10 51,48 13,74 3,75 - 7,43 41,96 9,52
Trigo              
2006/07 2,68 2,64 1,01 6,13 - 10,75 -8,07
2007/08 4,15 2,21 1,88 7,2 - 9,73 -5,58
2008/09 4,21 2,23 1,89 7,35 - 10,07 -5,86
2009/10 4,31 2,25 1,91 7,5 - 10,25 -5,95
Soja              
2006/07 55,03 23,21 2,37 - 25,87 31,04 23,99
2007/08 59,17 21,1 2,8 - 26,11 32,36 26,81
2008/09 60,79 21,56 2,82 - 27,03 33,02 27,77
2009/10 62,4 22,02 2,83 - 27,94 33,67 28,73
Fonte: Elaboração da Assessoria de Gestão Estratégica (Age/Mapa), com dados da Conab.

Os diversos tipos de carnes (frango, bovina e suína) devem manter a atual posição
de mercado, com exportação de boa parte da produção (de 20 a 30% do total). O café
continuará sendo item importante da nossa pauta de exportação, que remeterá para o
exterior, a cada ano aqui considerado, mais de 70% da produção nacional.
Esse cenário relativamente positivo sobre as perspectivas sobre a produção e oferta
imediata de alimentos encontra respaldo em alguns dados do recém-concluído Censo
Agropecuário de 2006. Em tabulações ainda preliminares, os dados do Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram um notável crescimento das áreas com
lavouras entre 1995/1996 e 2006, correspondente a 35 milhões de hectares. Ou seja,
um aumento maior que o total da área com lavouras existente em 1970, recuperando e
ultrapassando as áreas perdidas entre 1985 e 1995, como mostra a tabela 16.
TABELA 16
Número de estabelecimentos e áreas ocupadas por tipo de ocupação (1970-2006)
Censos Variação
Dados estruturais
1970 1975 1980 1985 1995 2006 2006-1995
Estabelecimentos 4 924 019 4 993 252 5 159 851 5 801 809 4 859 865 5 204 130 344 265
Área total (ha) 294 145 466 323 896 082 364 854 421 374 924 929 353 611 246 354 865 534 1 254 288
Utilização das terras (ha)
Lavouras1 33 983 796 40 001 358 49 104 263 52 147 708 41 794 455 76 697 324 34 902 869
Pastagens2 154 138 529 165 652 250 174 499 641 179 188 431 177 700 472 172 333 073 -5 367 399
Matas e florestas3 57 881 182 70 721 929 88 167 703 88 983 599 94 293 598 99 887 620 5 594 022
Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 1970/2006. Dados Preliminares.
Notas: 1 Lavouras permanentes, temporárias e cultivo de flores, inclusive hidroponia e plasticultura, viveiros de mudas, estufas de plantas e casas de
vegetação e forrageiras para corte.
2
Pastagens naturais, plantadas (degradadas e em boas condições).
3
Matas e/ou florestas naturais destinadas à preservação permanente ou reserva legal, matas e/ou florestas naturais, florestas com essências
florestais e áreas florestais também usadas para lavouras e pastoreio de animais.

A despeito do cenário traçado pelos números, alguns analistas apontam dificuldades


para o enfrentamento da crise alimentar no país a médio e longo prazos:
(...) de fato há um choque mundial de commodities e para o resto do mundo a situação poderia
ser caracterizada como conjuntural, ou seja, seria revertida nas próximas safras agrícolas mediante

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 203


movimentos do próprio sistema de preços de mercado. Mas para o Brasil a situação é diferente.
O ponto crucial da diferença específica é o formato que vem se estruturando, há vários anos, da in-
serção do setor agrícola brasileiro no chamado setor externo da economia (DELGADO, 2008).34

Há que se considerar aqui que a formação de preços não depende exclusivamente de


decisões políticas nacionais. Nesse sentido, em artigo recente, lembra outro analista:
Nossos preços internos passaram a depender muito pouco da oferta e demanda internas. Os pre-
ços da soja, do milho, do trigo, do arroz, por exemplo, são ’formados’ no mercado internacional
desses produtos em função das demandas e ofertas “lobais” e são internalizados através da nossa
taxa cambial. Por outro lado, a livre movimentação dos produtos exportáveis e importáveis e seus
preços internacionais (que são dados) são fatores importantes na determinação da própria taxa de
câmbio, o que consagra a integração da economia brasileira à economia internacional (DELFIM
NETO, 2008).35

Paralelamente, dado que o aumento nos preços dos alimentos tem feito sentir
seus efeitos no custo da cesta básica, assumem relevância as discussões sobre o papel
dos agrocombustíveis na política agrícola do país. Segundo o MDA, já são 100 mil os
agricultores familiares que participam do Programa de Biodiesel, para tanto recebendo
financiamentos e assistência técnica, além de terem um mercado garantido. Esta pro-
dução está basicamente centrada na mamona e deve preservar o consórcio ou rotação
com culturas de alimentos. Mas é a produção do etanol, a partir da cana-de-açúcar,
que atualmente gera maiores controvérsias: seja pela expansão da área de plantio, seja
por estar provocando desmatamentos no Centro-Oeste e na Amazônia ou, ainda, por
apresentar situações de exacerbada exploração da mão-de-obra.36
De fato, ainda é uma questão sem resposta consensuada o impacto da produção de
agrocombustíveis sobre o preço dos alimentos. Porém, se eles não explicam por completo
a crise alimentar, não há como inocentá-los na cota que lhes cabe, inclusive no Brasil.
E aqui se têm outros tipos de questionamentos. Afinal, o etanol nacional é produzido
pela cana; o biodiesel, basicamente, da mamona. Mas em alguma escala, ainda a ser
dimensionada, a soja também vem sendo utilizada. A vantagem comparativa do Brasil
estaria na grandeza de sua área agricultável e nas possibilidades de conciliar a produção
de alimentos com a de agrocombustíveis.
Assim, a retomada de outras políticas agrícolas poderia contribuir positivamente para
a segurança alimentar do país. A ampliação de estoques reguladores governamentais – que
atualmente estão muito baixos, segundo a Conab – poderia servir como um eficiente
contraponto para a contenção dos preços de alguns produtos alimentares, á medida
que garantisse um melhor equilíbrio entre a oferta e a demanda no mercado interno.
Os atuais estoques, públicos e privados, somariam apenas 1,353 milhão de toneladas
de grãos, o que aponta para um imenso descompasso entre a capacidade estática do

34. Ver artigo de Delgado, Guilherme da Costa, publicado no site Correio da Cidadania, em 23 de maio de 2008.
<www.correiocidadania.com.br>.
35. NETO, Delfim. A safra e os preços, artigo publicado em 15/07/2008, na Folha de São Paulo, pág.2.
36. “Expandiu a soja, expandiu a cana. A cana, sobretudo no Sudeste. A soja, sobretudo no Norte. A cana empurrou a
soja, essa empurrou o boi, que já ia no rastro das madeireiras. Portanto, o agronegócio brasileiro precisa ser considerado
no seu conjunto, na sua correlação íntima com todas as commodities. Não pode ser analisado de forma estanque, como
se cada setor fosse independente do outro (...). A pecuária não aumentou sua área, mas pode ter mudado de lugar. O fato
é que novas áreas foram incorporadas às custas de desmatamento, seja da Amazônia, seja do Cerrado, seja do Pantanal”.
MALVEZZI, Roberto. Arroz com Feijão - Os números do Censo Agropecuário - 07/05/2008. Publicado no site do
MMC_Movimento das Mulheres Camponesas.

204 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


país (125,3 milhões de toneladas) e a que está sendo utilizada. A redução dos estoques
seria uma conseqüência da falta de organização de políticas de regulação de preços das
commodities no mundo inteiro, o que se agrava com as práticas especulativas. Cabe res-
saltar, contudo, que a produção do etanol a base de grãos também afeta a quantidade
de estoques de alimentos. Além disso, são necessárias medidas urgentes para contornar
os problemas enfrentados pelos produtores rurais no acesso aos insumos agrícolas, hoje
fortemente dependente do mercado internacional.
É importante considerar também perspectivas alternativas para uma política ade-
quada de segurança alimentar no país. Os dados preliminares do censo agropecuário
revelam um crescimento expressivo das áreas de lavoura e uma pequena diminuição
das de pecuária – junto com uma significativa participação de pessoal ocupado com
laços de parentescos com o produtor: dos 16,4 milhões de ocupados, 78% estão nesta
condição, o que indica uma participação expressiva da agricultura familiar na produção
agrícola nacional.
Vários estudos têm destacado o papel da agricultura familiar na produção de
alimentos básicos. Estudo elaborado pelo Ipea em 200237 atesta a importância da agri-
cultura familiar que, a despeito de sua heterogeneidade e das dificuldades que enfrenta,
tem dado uma significativa contribuição para a produção agropecuária nacional. Em
1996 foi responsável por quase 40% de todo o Valor Bruto da Produção Agropecuária
(VBP agropecuário), apesar de ocupar 31% da área e absorver somente 25% do finan-
ciamento destinado ao setor. A conclusão da apuração dos dados do censo agropecuá-
rio permitirá que se conheça o real peso dos estabelecimentos familiares na produção
agrícola nacional.
Não obstante a crescente disponibilização de crédito para os agricultores familiares
via Pronaf desde 1996, a explosão do agronegócio não permite – antes da apuração
dos dados – que se aprofundem as elucubrações sobre a atual relevância da agricultura
familiar. Contudo, o ponto a ser destacado diz respeito a seu enorme potencial na pro-
dução de alimentos predominantemente direcionados para o consumo interno, situação
comprovada por pesquisas anteriores e que devem ser confirmadas pelo censo.
5 Considerações finais
A elevação dos preços dos alimentos em escala mundial, a ampliação da fome entre a
população mais pobre, e os conseqüentes riscos para a estabilidade social e política de
muitos países trouxeram para a agenda internacional o debate sobre quais devem ser as
prioridades de agricultura de cada país, a par da necessidade de revisão de suas respectivas
matrizes energéticas.
De fato, o aumento da produção de agroenergia tem sido com freqüência identi-
ficado, nas reuniões internacionais sobre o assunto, como causa principal, entre as pro-
váveis, dessa alta de preços, assim como da fragilidade vivenciada por dezenas de países
em relação à sua soberania alimentar e nutricional. Exemplo sempre referendado está no
notável crescimento da produção de etanol, a partir do milho, nos Estados Unidos, com
impactos diretos na elevação dos custos de produção de toda a cadeia produtiva deste
cereal, influenciando seus preços internacionais. Mas outros fatores também têm sido
apontados como relevantes, tais como as más condições climatológicas, a degradação

37. FERREIRA, B; SILVEIRA, F.G; GARCIA, R.C. A Agricultura Familiar e o Pronaf: Contexto e Perspectivas. In:
Transformações da Agricultura e Políticas Públicas. GASQUES, J.G; CONCEIÇÃO, J.C.P.R da. (Orgs.) Ipea. Brasília, 2002.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 205


ambiental, a crescente demanda por energia e alimentos decorrente da forte expansão
econômica dos países em desenvolvimento, a falta de investimentos no setor agrícola,
e as distorções provocadas pelos subsídios agrícolas praticados pela União Européia e
Estados Unidos.
No caso brasileiro, estudos recentes têm revelado um cenário relativamente positivo
para as perspectivas sobre a produção e oferta imediata de alimentos. Ao mesmo tempo,
ainda não se conhece o impacto da matriz agroenergética adotada – que tem sua base
no etanol produzido da cana e no biodiesel da mamona, não obstante a soja também já
começar a ser utilizada para produção de energia – sobre a oferta de alimentos. Ainda
assim, alguns analistas chamam atenção para as prováveis conseqüências negativas de
médio e longo prazos advindas tanto da produção de agroenergia, quanto da inserção
do setor agrícola brasileiro no setor externo da economia. Em outras palavras, a opção
de direcionar as políticas agrícolas na exportação de commodities e na produção de agro-
combustíveis pode levar a uma maior dependência e vulnerabilidade do país diante de
uma tendência de elevação mundial dos preços dos produtos alimentares.
Ainda do ponto de vista interno, permanece a questão da estagnação no processo
de reforma agrária no país. Segundo relatório recente do MST denominado “Por que
estamos em Luta”,38 a reforma agrária está paralisada e os problemas agrários estão se
aprofundando. Mais de 150 mil famílias permanecem em acampamentos precários e não
se encaminham soluções para os problemas já identificados em anos anteriores: aumento
da concentração fundiária; insuficiência de apoio aos assentados; recrudescimento da
violência contra os sem-terra; impunidade dos latifundiários e dos empresários do agro-
negócio envolvidos com práticas criminosas. Grande parte destes impasses poderia ser
superada pela retomada das desapropriações e aceleração dos mecanismos de obtenção de
terras para novos assentamentos; pelo cumprimento do compromisso de assentamento
preferencial dos acampados; pela promulgação da portaria que atualiza os índices de
produtividade da terra; e pela aprovação do projeto que determina que as fazendas que
exploram trabalho escravo sejam destinadas à reforma agrária. Os movimentos sociais
rurais também reivindicam a destinação das áreas hipotecadas no Banco do Brasil e na
Caixa Econômica Federal para a reforma agrária, assim como a criação de uma linha de
crédito específica para assentamentos que viabilizem a produção de alimentos.
Essas demandas não serão facilmente atendidas. Muitas delas dependem de decisões
políticas que extrapolam o âmbito governamental. Envolvem os grupos de interesse
contrários à reforma agrária, as bancadas ruralistas na Câmara e no Senado, além de
fortíssimo lobby dos grandes proprietários, grandes grileiros e do agronegócio.
Os dados mostram uma desaceleração nos assentamentos, dificuldades para a estru-
turação produtiva dos assentados e aumento progressivo das carências a serem cobertas.
Ou seja, em suas vertentes basilares a reforma agrária vem apresentando resultados
modestos, e mesmo insatisfatórios, como evidencia um levantamento recentemente
concluído pelo próprio Incra sobre o passivo dos assentamentos da reforma agrária.
Tão-somente para resolver todas as pendências relativas à infra-estrutura dos projetos
criados entre 1985 e 2006, seriam necessários R$ 8 bilhões. Do total de famílias assenta-
das, 85% não contam com licenciamento ambiental, uma co-responsabilidade da União
e dos estados. Sem este documento o assentado fica impossibilitado de acessar créditos

38. O documento “Por que estamos em Luta”, do MST, pode ser consultado em <www.mst.org.br>.

206 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


bancários. Também persistem carências na prestação de serviços de assistência técnica e
extensão rural para 83% das famílias assentadas. Os problemas cotidianamente viven-
ciados pelos assentados vão além: 47% não dispõem de abastecimento de água potável;
mais da metade (52%) não tem energia elétrica; 47% enfrentam dificuldades com a
falta de estradas trafegáveis. E a solução de tantas deficiências não parece próxima, por
conta do descompasso entre a criação de um projeto de assentamento e sua estruturação
produtiva, em primeiro lugar dependente da elaboração – e aprovação – do respectivo
Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA), iniciativa ainda ausente em 21%
dos assentamentos em execução pelo Incra.
Para o Incra, os ajustes e complementações demandados pelos assentamentos devem
compor a pauta de ação não apenas do governo federal, mas devem ser partilhadas com
os demais níveis de governo. A maior parte dos assentamentos ainda sem implementação
completa está situada nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, principalmente em
municípios novos, no quais é generalizada a precariedade da infra-estrutura.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 207


DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA

1 Apresentação
O presente capítulo tem início com uma análise sintética de três fatos de relevo direta-
mente relacionados com a área de direitos humanos e cidadania no Brasil. O primeiro
diz respeito à controvérsia em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol (TIRSS), em Roraima. O cenário do conflito tem como pano de fundo portaria
presidencial que prevê sua demarcação contínua, decisão contestada pelos produtores
rurais da região. De um lado do conflito encontra-se, além dos produtores rurais, o
governo estadual – ambos argumentando pelo desenvolvimento econômico, o qual fi-
caria comprometido com esta determinação. Também contra a demarcação colocam-se
setores das Forças Armadas, que julgam a demarcação das terras nocivas à segurança das
fronteiras e mesmo à soberania nacional. Do outro lado, as cinco etnias indígenas do
local, indigenistas e organismos internacionais, os quais, a favor da portaria, reclamam
a garantia dos direitos constitucionais dos povos indígenas.
O segundo fato é o lançamento pelo governo federal, dentro do âmbito da sua Agenda
Social, de planos específicos na área dos direitos de cidadania. A Agenda Social prevê que
a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) coordene ações de diversos órgãos
para a promoção da cidadania de crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, e aqueles
que não possuem registro civil de nascimento, conforme se verá adiante. O terceiro fato
destacado é a realização, em 2007 e 2008, respectivamente, da VII Conferência Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente e da Conferência Nacional de Juventude, eventos
que geraram importantes subsídios para a formulação e reformulação das políticas públicas
para crianças, adolescentes e jovens no Brasil.
Fechando o capítulo, a seção Tema em destaque realiza uma avaliação dos direitos
humanos no Brasil com base no recém-criado Mecanismo de Revisão Periódica Universal,
instrumento de monitoramento da situação dos direitos humanos no mundo criado no
âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH/ONU). Menos que
uma revisão exaustiva do tema, o texto analisa, a partir dos relatórios apresentados pelo
Estado brasileiro, pela sociedade civil organizada e pelos organismos do sistema ONU à
CDH/ONU, como estes três atores-chave interpretam a trajetória dos direitos humanos
no país, identificando os avanços, as dificuldades e os desafios neste campo.
O capítulo apresenta ainda um acompanhamento da política e dos programas
desenvolvidos em 2007 na área. No início da seção, o texto comenta as ações voltadas
para grupos especialmente vulneráveis: testemunhas ameaçadas, crianças e adolescentes,
pessoas com deficiência e trabalhadores escravos. Em seguida, são abordadas estratégias
gerais da política de direitos humanos, como educação em direitos humanos, tráfico
de pessoas e desaparecidos políticos. Por fim, analisa-se a execução orçamentária dos
programas da SEDH em 2007. Este último item evidencia não somente a maior prio-
ridade conferida pelo governo à área no período, refletida no aumento dos recursos
alocados, mas igualmente, não obstante a também melhora significativa da execução

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 209


orçamentária da SEDH, a insuficiência deste montante em relação às demandas
nacionais neste campo.
2 Fatos relevantes
2.1 O caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
No final de março de 2008, o país acompanhou um novo recrudescimento das tensões
que envolvem, há mais de 20 anos, a polêmica demarcação da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol (TIRSS), em Roraima. O atual dissenso entre rizicultores, governo estadual
e povos indígenas diz respeito ao formato contínuo da demarcação, previsto na Portaria
no 534/2005, homologada há três anos pelo presidente da República.1 O 1,743 milhão
de hectares correspondente à TIRSS, destinado a cerca de 19 mil indígenas de cinco
diferentes etnias (Macuxi, Wapichana, Taurepang, Ingaricó e Patamona) que estão dis-
tribuídos em 194 aldeias, engloba três municípios (Normandia, Uiramutã e parte de
Pacaraima) e fazendas de arroz e soja.
Os produtores rurais instalados na região, associados ao governo estadual e a políti-
cos locais, reivindicam a demarcação descontínua, ou em “ilhas”, a fim de conseguirem
manter a si e suas atividades no local. A nova onda de violência e de ataques surgiu a
partir do início da Operação Upakaton 3, empreendida pela Polícia Federal (PF), para a
retirada dos últimos ocupantes ilegais não indígenas. Frente às ações da PF, o governo de
Roraima solicitou liminar ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob o argumento de que
a demarcação abalaria a economia do estado, o que levou à suspensão da operação.
Em meio ao conflito há diferentes argumentos e interesses em jogo. O governo esta-
dual, políticos e rizicultores defendem o desenvolvimento econômico do estado e a criação
de empregos por meio do agronegócio na região da TIRSS. As Forças Armadas, por sua
vez, salientam que a demarcação contínua impediria a sua presença nesta área de fronteira,
o que ameaçaria a soberania nacional, expondo o país a riscos de invasão do narcotráfico,
da biopirataria e da garimpagem predatória.2 Há, ainda, argumentos que deslegitimam a
demarcação em função de uma suposta aculturação dos povos indígenas.
Por seu turno, os povos indígenas, especialistas e organismos internacionais – como
a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos
(OEA) – salientam que o que está em jogo é a garantia dos direitos constitucionais dos
povos indígenas, em uma conjuntura política na qual tramitam no Congresso Nacional
em torno de 70 propostas legislativas com vistas à restrição destes direitos conquista-
dos, sobretudo no que tange às garantias do direito à terra. Estes elementos apontam
que o pano de fundo da questão, de fato, é uma acirrada disputa fundiária, em que o
usufruto da terra pelos povos indígenas conflita com o interesse de propriedade das
terras pelos produtores.
Tais ondas ascendentes de conflito e violência não são uma novidade. Eles vêm
acontecendo desde de 2004, quando do anúncio da assinatura da homologação da terra
indígena em área contínua – e não em ilhas, como queriam rizicultores e o governo
estadual. Compromisso de campanha do presidente Lula, a finalização do processo de
demarcação das terras indígenas de Raposa Serra do Sol só dependia da assinatura da

1. Ver o capítulo Direitos Humanos, Justiça e Cidadania do número 11 deste periódico.


2. Vale apontar que a Constituição Federal (CF) prevê, em seu artigo 20, parágrafo 2o, que as faixas de fronteira (de até 150 km
de largura) são fundamentais para a defesa do território nacional, de forma que a demarcação de uma terra indígena não
impede a presença do Estado nas áreas de fronteira.

210 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Portaria no 820/1998, que define a homologação em área contínua pelo presidente da
República. Com o anúncio feito pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos,
o aprofundamento dos conflitos redundou em disputas judiciais, e à condenação do Brasil,
pela OEA, à garantir a segurança na região. O processo inconcluso se arrastou até abril
de 2005, quando foi assinada uma nova portaria (Portaria no 534/2005), que revogou a
Portaria no 820/1998, e quando foram extintos todos os processos e liminares pelo STF.
Na ocasião foi finalmente homologada a portaria da demarcação, e abriu-se uma nova
etapa no processo: a retirada dos ocupantes não indígenas, no prazo de um ano, e o pa-
gamento de indenização pelas benfeitorias realizadas nas terras. Contudo, alguns poucos
grandes produtores de arroz e soja se recusaram a sair, não obstante terem recebido as
indenizações. Em junho de 2007, nova onda de violência explodiu na região, o que levou
o Comitê para Eliminação da Discriminação Racial (Cerd) da ONU a se manifestar, e
recomendar ao Estado brasileiro a retirada urgente dos ocupantes ilegais da TIRSS.
O impasse ainda está na expectativa da decisão do STF. Em 27 de agosto, o relator
ministro Carlos Ayres Britto defendeu a demarcação da área de forma contínua, conforme
homologado em 2005. Porém, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito pediu vista
do processo, e não há previsão de quando o caso voltará a ser julgado.
2.2 Agenda Social: gênese de uma política intersetorial de direitos humanos
Em 2007, após os lançamentos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PED), o governo federal lançou sua Agenda
Social, também chamada de “PAC social” ou Plano Social. Em conformidade com a
lógica de atuação dupla da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, uma de inter-
venção direta na garantia dos direitos de grupos vulneráveis e outra de incorporação da
política de direitos humanos dentro da atuação governamental como um todo, um dos
eixos da agenda, intitulado direitos de cidadania, contou com a participação expressiva
da SEDH na sua formulação.
Afora a presença nos grupos de trabalho voltados para a questão indígena, racial, de
gênero, da juventude, entre outros temas, a SEDH coordenou os grupos que elaboraram
as propostas para as áreas da criança e do adolescente, das pessoas com deficiência e do
registro civil de nascimento. Isto significou o envolvimento de programas e ações de
diversos órgãos, numa lógica de complementaridade das políticas específicas com foco
geográfico, populacional e temporal bem definido. Para ilustrar o escopo do trabalho
em comparação com a rubrica orçamentária da própria SEDH, basta notar que estas
três iniciativas têm um orçamento de mais de R$ 4,6 bilhões – valor 20,6 vezes superior
ao orçado pela SEDH nas três áreas entre 2005 e 2007.
A primeira agenda a ser lançada foi referente às pessoas com deficiência, em setembro
de 2007. Contando com a participação de onze órgãos federais3 e com um orçamento
inicialmente previsto de R$ 2,4 bilhões até 2010 – dos quais R$ 473,5 milhões em fi-
nanciamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) –,4
a agenda prevê diversas ações para garantir o acesso desta população a necessidades

3. Além da SEDH, participam: Ministério da Educação (MEC), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério do De-
senvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), Ministério da
Saúde (MS), Ministério das Cidades e Casa Civil, BNDES, Caixa Econômica Federal (CEF) e Banco do Brasil.
4. É forçoso apontar que o orçamento previsto para a Agenda Social como um todo se encontra em processo de revisão
devido ao contingenciamento dos gastos do governo federal. A área social, e especificamente os projetos sociais cujos
gastos são discricionários, deve ser uma das mais atingidas.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 211


básicas, como moradia acessível e transporte adaptado. Na área de transporte, projeta-se
um gasto de R$ 689 milhões para adaptar a infra-estrutura urbana nos caminhos até
paradas de ônibus, terminais rodoviários e metroferroviários, bem como no financiamento
da compra de ônibus acessíveis. Na área da saúde, a concessão de órteses e próteses visa
atender a uma demanda reprimida estimada de 1,04 milhão de pessoas até 2010, com
um investimento de R$ 849 milhões. Com relação à educação, devem ser investidos
cerca de R$ 136 milhões na acessibilidade da escola, capacitação dos funcionários e corpo
docente, bem como na disponibilização de salas com equipamentos e material didático
adequados à aprendizagem dos alunos com deficiência. Pretende-se investir também
R$ 30 milhões em campanhas educativas que combatam o preconceito contra as pes-
soas com deficiência. Os projetos incluem ainda a criação de linha de financiamento
no valor de R$ 65 milhões para a adaptação de residências a pessoas com deficiência e
mobilidade reduzida, priorizando a população de baixa renda.
A agenda social criança e adolescente, por sua vez, foi lançada em 11 de outubro de
2007, e objetiva aportar até R$ 2,1 bilhões em ações com foco nas crianças e adolescentes
em situação de violência. A iniciativa, que busca dar coerência à ação do governo federal
na área e que conta com a participação de 13 órgãos setoriais,5 foca quatro temáticas:
a) prevenção às situações de violência, centrada em ações de articulação das políticas
existentes – Centros de Referência de Assistência Social (Cras), Centros de Refe-
rência Especializada de Assistência Social (Creas), Centros de Atenção Psicossocial
(Caps), proteção a ameaçados de morte – em regiões de grave vulnerabilidade,6
na prevenção e no desenvolvimento infanto-juvenil (núcleos esportivos e cultu-
rais, ampliação das creches), e na qualificação e regulamentação das atividades
de conselheiros tutelares e de direitos, com orçamento de R$ 1,4 bilhão;
b) garantia do direito à convivência familiar, voltada para o retorno ao âmbito
familiar de adolescentes abrigados por pobreza, e a qualificação da rede de aco-
lhimento institucional, orçada em R$ 133,7 milhões;
c) reordenamento do sistema de atendimento socioeducativo ao adolescente em con-
flito com a lei, com a instituição de centros de formação para os socioeducadores,
a construção de novas unidades conforme padrão arquitetônico e pedagógico bem
definido, a qualificação dos atendimentos nas unidades no que se refere à saúde,
educação, profissionalização, cultura e esporte, e a ampliação massiva das vagas ofe-
recidas em medidas socioeducativas de meio aberto (liberdade assistida e prestação
de serviços à comunidade), com uma previsão de gastos de R$ 533,8 milhões; e
d) gestão da agenda, que passa pela instituição de um observatório da criança e do
adolescente, com o intuito de acompanhar os seus projetos, bem como monitorar
violações de direitos de crianças e adolescentes, e que prêve um orçamento de
R$ 21,6 milhões.
A terceira agenda foi lançada em dezembro na cidade de Breves, na Ilha de Ma-
rajó, e contempla recursos de até R$124,5 milhões entre 2007 e 2010. Conta com a

5. Além da SEDH, participam MDS, MEC, Ministério da Cultura (MinC), Ministério da Justiça (MJ), MPOG, MTE, ministérios
do Esporte e das Cidades, Casa Civil, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da
República (Seppir/PR), e Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR).
6. As 11 regiões metropolitanas definidas como prioritárias são as mesmas do Programa Nacional de Segurança Pública
com Cidadania (Pronasci).

212 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


participação de onze órgãos federais,7 e seus objetivos são erradicar o sub-registro de
nascimento e expandir o acesso à documentação civil básica. Para tanto, a proposta se
articula em três eixos:
a) mobilização nacional, com campanhas de mídia, comitês locais de mobilização
coordenados pelos gestores do Programa Bolsa Família (PBF), e mutirões sis-
temáticos nos 60 bolsões de sub-registro identificados pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) e junto a populações específicas (indígenas,
quilombolas, ribeirinhos, trabalhadores rurais etc.);
b) ampliação da rede de serviços de registro civil, com a implantação de serventias
em municípios sem cobertura, expansão do atendimento em municípios com
cobertura deficiente, criação de serviços de registro civil itinerantes e nas materni-
dades, implantação de mil pontos de emissão da carteira de trabalho, e expansão,
com auxílio dos Cras, do serviço de documentação nas áreas que compõem os
territórios da cidadania; e
c) estabelecimento de condições estruturantes, que visam aperfeiçoar o sistema
brasileiro de registro, com a criação de um sistema informatizado e de um banco
de dados nacional, linhas de financiamento para modernização das serventias,
padronização dos documentos e regulamentação da gratuidade do registro civil
de nascimento, bem como do cadastro de pessoas físicas (CPF) e do registro geral
ou carteira de identidade (RG) para a população de baixa renda.
2.3 Conferências nacionais
Políticas públicas voltadas para crianças, adolescentes e jovens foram debatidas em duas
recentes conferências nacionais. As conferências são mecanismos institucionais de escuta
da sociedade, promovendo um espaço de democracia participativa e de definição de
prioridades para as políticas setoriais. Em geral, elas ocorrem em um modelo de “pirâ-
mide”, começando por conferências municipais, que elegem propostas e delegados para
conferências estaduais, que por sua vez seguem a mesma lógica na definição de propostas
e prioridades que devem ser debatidas na conferência nacional.
2.3.1 A VII Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
Entre 3 e 6 de dezembro de 2007 teve lugar, pela primeira vez em caráter deliberativo,
a Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, em sua sexta edição.
Contou com cerca de 1.500 participantes,8 e teve como tema Concretizar Direitos Hu-
manos de Crianças e Adolescentes: investimento obrigatório. Em conformidade com o
tema, um dos três eixos estratégicos abordados na conferência foi o orçamento destinado
à área, dentro do entendimento de que a “prioridade absoluta” atribuída pelo artigo
227 da Constituição Federal à infância na garantia dos seus direitos somente poderá ser
concretizada se houver um orçamento público adequado, com mecanismos de transpa-
rência nas contas que permitam o controle social. Os outros eixos estratégicos definidos
foram a implementação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária
como marco regulatório da política de proteção, e o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (Sinase) como marco regulatório do atendimento socioeducativo.

7. Além da SEDH, participam MJ, MDS, MPOG, Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Ministério da Fazenda (MF),
MTE, MS, MEC, Ministério da Previdência Social (MPS), Seppir, SPM, Casa Civil, CEF e Banco do Brasil.
8. A conferência foi precedida por 27 conferências estaduais – das quais participaram 13.606 pessoas –, 2.754 conferências
municipais, e 405 conferências regionais, alcançando assim 49,5% dos municípios brasileiros.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 213


Esses três eixos da conferência também mereceram destaque na Agenda Social
que o governo federal elaborou para a área, lançado em outubro.9 Assim, o evento se
viu fortalecido pela existência de uma política mais clara do governo para as temáticas
priorizadas, o que levou o debate do que poderia ser uma simples pauta de reivindicações
para uma discussão sobre a implantação de políticas públicas concretas já planejadas.
Entre as deliberações da conferência, destacam-se: a recomendação da elaboração de
planos municipais e estaduais de convivência familiar e comunitária, com prazos, metas
e garantia de recursos do orçamento público; a priorização de abrigos que preservem proxi-
midade com a família e a comunidade de origem da criança e do adolescente, bem como a
implementação de programas de famílias acolhedoras; a implementação do cadastro único de
adoção, acompanhado de medidas de desburocratização dos processos e de campanhas
de sensibilização para adoções tardias, de soropositivos, de negros, de grupos de irmãos e de
neurolesionados; a priorização e municipalização das medidas socioeducativas em meio aber-
to, a serem co-financiadas pelas três esferas de governo; a construção de unidades de privação
de liberdade conforme parâmetros arquitetônicos do Sinase, regionalizadas e co-financiadas
pelo governo federal; a aprovação de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que vede
o contingenciamento de recursos do orçamento criança e adolescente, a ser criado como
anexo obrigatório da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) nas três esferas do Executivo;
e a definição de porcentagem do orçamento federal, estadual e municipal a ser alocada nos
Fundos da Infância e da Adolescência, por meio de lei.10
2.3.2 A Conferência Nacional de Juventude
O ano de 2008 foi marcado pela primeira conferência de caráter nacional destinada
ao debate sobre as políticas para a juventude, ocorrida entre os dias 27 e 30 de abril.
Contando com a participação de mais de 380 mil pessoas – em mais de 1.250 confe-
rências municipais, estaduais e livres, e uma consulta pública aos povos e comunidades
tradicionais –, a Conferência Nacional de Juventude discutiu 480 propostas em 23
grupos de trabalho, e chegou ao final com um número de 22 prioridades da política
e 69 resoluções votadas pelos delegados. A área com o maior número de propostas
foi educação, com mais do dobro do número de propostas da segunda colocada,
trabalho. Campo e comunidades tradicionais foram as áreas com o menor núme-
ro de propostas. Se por um lado estas posições revelam as principais preocupações
dos jovens brasileiros, é importante ter em mente também os limites deste formato
de democracia participativa; no caso, é provável imaginar uma sobre-representação de
organizações estudantis bastante ativas e mobilizadas nas conferências preparatórias,
o que explicaria, em parte, a grande diferença com relação à temática do trabalho. Quanto
às duas últimas áreas, uma chave explicativa do baixo número de propostas está no fato
de as conferências serem realizadas principalmente em grandes centros urbanos, o que
dificulta a participação da população rural.
Sobre as prioridades, estas incluem: a aprovação no Congresso do Estatuto dos Di-
reitos da Juventude; o acesso à terra ao jovem rural por meio da reforma agrária; a criação
de um Sistema Nacional de Juventude com conselhos e fundos setoriais; a criação de polí-
ticas culturais permanentes e específicas para a juventude; a manutenção da atual idade de
maioridade penal; a instituição de uma política de Estado de ampliação e democratização
do acesso ao esporte; cota mínima de 15% para jovens nas coligações partidárias com vistas

9. Ver seção 2.2 deste capítulo.


10. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/.arquivos/.spdca/deliberacoes.pdf>.

214 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


às eleições; o fim do serviço militar obrigatório e criação de programas de serviços sociais
não-obrigatórios; investimento de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação; e
garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, aí incluída a legalização do aborto.11
3 Acompanhamento da política e dos programas
À Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República cabe um
duplo papel: por um lado, executar diretamente ações ligadas à garantia dos direitos
humanos de grupos especialmente vulneráveis, como as crianças, os idosos, os defi-
cientes e a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros
(LGBT); por outro, atuar dentro do próprio governo federal e junto aos demais níveis
da Federação, assegurando que as políticas públicas em áreas muito diversas como tra-
balho, saúde, transportes, educação, planejamento urbano, turismo e assistência social
incorporem a questão dos direitos humanos tanto no desenho das políticas quanto
na sua implementação. Para tanto, além dos esforços de articulação interministerial,
a SEDH tem atuação mais direta, inclusive com previsão orçamentária, em algumas
estratégias gerais de disseminação dos direitos humanos, como, por exemplo, educação
em direitos humanos e erradicação do trabalho escravo.
3.1 Grupos Vulneráveis
3.1.1 Crianças e adolescentes
O ano de 2007 foi marcado, no âmbito da promoção e defesa dos direitos das crianças e
dos adolescentes, pela elaboração da Agenda Social da área. A formulação desta agenda,
em conjunto com o início do novo mandato presidencial, as mudanças na constituição
da equipe e as dificuldades advindas do atraso na análise de projetos resultaram em atraso
na execução dos recursos disponibilizados. Entretanto, nos últimos meses do ano, não
só a maior parte dos recursos previstos foram gastos, como novos recursos foram dis-
ponibilizados e gastos, em especial no que se refere à construção e reforma de unidades
de privação de liberdade.
Ainda que a execução de obras de unidades de privação de liberdade para ado-
lescentes em conflito com a lei não seja intuitivamente conectada às prioridades de
uma política de direitos humanos, as condições degradantes a que são submetidos
os adolescentes em muitos centros de internação – condições estas diversas vezes
denunciadas por especialistas e pela imprensa, sendo alvo inclusive de medidas
cautelares impostas pela OEA em casos como o do complexo de Tatuapé em São
Paulo e do Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) no Distrito Fede-
ral – motivaram a percepção da reforma e da construção de unidades adequadas
à prática socioeducativa como uma política de garantia dos direitos humanos. De for-
ma congruente, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) dedica
todo um capítulo às especificações arquitetônicas que devem constar de uma unidade
de privação de liberdade. No ano de 2007, a Lei Orçamentária Anual (LOA) previa
R$ 4,73 milhões para a construção e a reforma de unidades. Entretanto, com a apro-
vação da Agenda Social Criança e Adolescente e a previsão de um investimento de
R$ 199,1 milhões até 2010 em obras do sistema socioeducativo,12 um crédito suplementar

11. Disponível em: <http://www.juventude.gov.br/efato/PRIORIDADES22.doc>.


12. O objetivo é construir 26 unidades e reformar outras 23, o que garantiria, projetando a construção de unidades para 90
adolescentes e a reforma de unidades de, em média, 40 adolescentes, até 3.260 vagas adequadas – entre as quais 2.340
novas – ao padrão arquitetônico preconizado no Sinase.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 215


de quase R$ 24 milhões foi aprovado, garantindo o início da construção e a reforma de
unidades dentro dos novos padrões.
Embora esses recursos suplementados sejam relativamente elevados, dado o orça-
mento da SEDH, devem ser compreendidos no sistema como um todo, o qual é financiado
em sua imensa maioria pelos estados. Dessa forma, os R$ 47,8 milhões executados pelo
Programa de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei – aí incluídos
os R$ 19,7 milhões gastos na ação de Apoio a Serviços de Atendimento – são pequenos
quando comparados ao mais de R$ 1 bilhão gasto pelos estados a cada ano. Mesmo no que
se refere às obras, por exemplo, o estado de São Paulo sozinho investiu mais que o governo
federal em 2007. As novas unidades paulistas, embora atendam a algumas das exigências
mais importantes do padrão Sinase, como redução do número de vagas por unidade e
descentralização,13 deixam de fazê-lo em outros quesitos estabelecidos. Assim, tendo em vista
o ritmo dos investimentos e o padrão das novas construções, a desativação de grandes uni-
dades em São Paulo, o déficit nacional de 3.396 vagas no sistema de privação de liberdade
como um todo, e a taxa de crescimento anual de 12,7% desta população observada entre
2002 e 2006,14 projeta-se que a política proposta para os próximos anos não será suficiente
para garantir uma melhora significativa das condições de internação dos adolescentes.
No que se refere à gestão da política, a Subsecretaria de Promoção e Defesa dos
Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA) novamente realizou um edital público
para seleção de projetos, em conjunto com o Conselho dos Direitos da Criança e do
Adolescente. Este edital trouxe um avanço ao estabelecer quais as linhas de financiamento
passíveis de serem contempladas com recursos da SEDH e do Fundo Nacional da Criança
e do Adolescente (FNCA), relacionando assim as prioridades da política nacional e o
orçamento disponibilizado. Tal avanço mostra-se especialmente relevante por tratar-se de
uma área tradicionalmente marcada pela infinidade de pequenas iniciativas dissociadas
entre si, caracterizadas pela pequena escala, baixa comunicação com demais projetos
sociais voltados ao público – alvo e elevado voluntarismo de seus participantes. Estas
características são herdadas da histórica relação entre o cuidado com as crianças neces-
sitadas e a prática da filantropia – especialmente a de origem religiosa – por instituições
que buscavam atender internamente a todas as necessidades das crianças.
Em contraponto a essa concepção, a atuação da SEDH tem sido marcada pela busca
de articulações entre as diversas políticas setoriais e atores sociais que possam constituir
uma rede sólida de proteção social às crianças e aos adolescentes.15 Observa-se esta postura

13. A redução do número de vagas viabiliza uma proposta sociopedagógica mais eficaz e reduz os riscos associados aos motins
e rebeliões. Já a descentralização das unidades permite uma maior proximidade do adolescente com sua família e comunidade,
o que, além de ser direito garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é vital para reintegração e inclusão social do
adolescente egresso dos centros de internação. Esta concepção de garantia da convivência familiar e comunitária como meio
eficaz de ressocialização marca não apenas a construção de pequenas unidades no interior, mas também, e principalmente,
a implantação e ampliação de serviços municipais de atendimento socioeducativo em meio aberto. Esta diretriz do Sinase foi
contemplada na previsão de recursos do orçamento de 2007 para projetos com este fim em todos as capitais.
14. Projeção baseada no Levantamento Nacional do Sistema de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito
com a Lei. SEDH, 2006.
15. Essa mesma perspectiva consta também nas deliberações da VII Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente, que reivindicam uma política setorial articulada entre Assistência Social, Saúde, Educação, Segurança Pública
e outras Pastas, os três níveis de governo, os três poderes e a sociedade civil. Isto indica que, mais do que uma política de
governo, esta evolução de paradigma é apoiada pelos principais atores da sociedade civil organizada, e representa, assim,
uma evolução em curso na política social para a área como um todo. De fato, tal mudança teve início nos anos 1980, se
embasou legalmente em 1990 com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas até agora vinha
avançando lentamente na sua implementação.

216 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


tanto na constituição de comissões intersetoriais temáticas, com participação de di-
versos ministérios e conselhos, como na seleção dos projetos a serem apoiados e nas
políticas diretamente executadas pela secretaria. Na área do combate à violência sexual,
por exemplo, a principal linha de financiamento visa à implantação do Programa de
Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil no
Território Brasileiro (Pair) em áreas de elevada incidência desta prática. O programa
caracteriza-se por focar a identificação, mobilização e capacitação dos atores sociais
relevantes – órgãos governamentais do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e
do Adolescente, organizações não governamentais (ONGs) e mídia, principalmente
– para tratar do problema de forma integrada, no que se refere aos seguintes aspectos:
sensibilização da sociedade, prevenção, e responsabilização dos autores da violência,
além de encaminhamento adequado das vítimas de violência sexual para os serviços de
proteção social pertinentes. Em 2007, o programa expandiu-se para mais 29 municípios
em quatro estados.
Igualmente, verificou-se um aumento expressivo no número de denúncias
encaminhadas pelo Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual Con-
tra Crianças e Adolescentes. O serviço recebeu 24.931 denúncias em 2007, contra
13.830 em 2006 – aumento de 80,3%. Estas denúncias, recebidas 24 horas por dia
por um serviço de teleoperadores, são codificadas e enviadas para as Promotorias
Estaduais da Infância e Juventude e para demais entidades relevantes, tais como
delegacias e conselhos tutelares, novamente dentro de uma concepção de articulação
e cooperação institucional.
No que diz respeito à proteção de crianças e adolescentes ameaçados de morte, o
ano de 2007 terminou com programas implantados em cinco estados e em processo de
implantação em outros quatro, observadas como critério de seleção as taxas de homicídio
de jovens. Assim, entre estes nove estados encontram-se todos os da região Sudeste, além
de Bahia, Distrito Federal Pará, Paraná e Pernambuco.
Outra linha de financiamento que avançou em 2007 foi a de capacitação de conse-
lheiros tutelares e de direitos, tanto no que se refere ao quantitativo (aproximadamente
9 mil conselheiros) quanto à definição de conteúdos, metodologias e temáticas a serem
abordadas. Para tanto, contribuiu a aprovação, ainda em 2006, de resolução que dispõe
sobre os parâmetros para a formação continuada destes conselheiros16 e a utilização desta
mesma resolução como critério de seleção dos projetos a serem financiados pela SEDH.
Note-se que este documento enquadra-se também na perspectiva da “incompletude
institucional”, isto é, parte da visão de que a política de garantia dos direitos da infância
deve se constituir por meio de ações complementares de diversos órgãos públicos e com
a participação da sociedade civil.
Entretanto, a política da SEDH de promover a intersetorialidade e a constituição de
redes como forma de garantia dos direitos das populações vulneráveis, embora acertada,
revela também seus limites para a realidade nacional. No caso do disque denúncia, por
exemplo, é notório o baixo grau de responsabilização criminal dos autores de violência
sexual, e o aumento do número de denúncias não parecer ter tido um efeito global de
melhoria do quadro. Da mesma forma, o Pair e os programas de municipalização das

16. Resolução no 112/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda): “Parâmetros para
a formação continuada dos operadores do sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente”.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 217


medidas socioeducativas em meio aberto apresentam resultados bastante diferenciados
de acordo com a localidade. Isto se dá porque a política de articulação dos diversos
órgãos responsáveis pela proteção social destas populações vulneráveis, ao demandar do
Estado o cumprimento de suas obrigações, revela o quão díspar e insuficiente pode ser
a qualidade das políticas sociais ou do sistema de justiça. Tal disparidade e insuficiência
são agravadas quando a população atendida é marcada por algum tipo de estigma, ou
quando a situação apresenta alguma dificuldade especial, resultando, por exemplo, na
evasão escolar de adolescentes cumprindo liberdade assistida devido ao preconceito
de colegas, professores e funcionários. Entretanto, uma vez descartada a hipótese de
políticas centradas na criação de instituições especialmente preparadas para lidar com
populações “problemáticas” no modelo assistencial-repressivo que permeava o antigo
código de menores, cabe ao poder público trilhar o caminho difícil de inclusão dos gru-
pos vulneráveis dentro de políticas sociais universalistas, que devem assim se abrir para
a diversidade, sem perder de vista a necessidade de políticas específicas que promovam
os direitos destes grupos, levando em conta suas diferenças e dificuldades.
3.1.2 Vítimas e testemunhas ameaçadas
Atualmente, estão em tramitação no Congresso Nacional dois projetos de lei importantes
para a proteção de vítimas e testemunhas ameaçadas. O primeiro estabelece a criação
de uma política, um sistema e um conselho nacional de assistência e proteção a víti-
mas e colaboradores da justiça. O segundo acresce o artigo 19-A à Lei no 9.807/1999,
garantindo “prioridade na tramitação, o inquérito e o processo criminal em que figure
indiciado, acusado, vítima ou réu colaboradores, vítima ou testemunha protegidas pelos
programas de que trata esta lei”.
No nível operacional, o programa de proteção a vítimas e testemunhas, sob
coordenação nacional da SEDH, abrange conselhos em instância decisória superior, um
órgão executor – em âmbito estadual ou municipal –, equipe técnica encarregada do
acompanhamento jurídico e psicossocial dos beneficiários, e a rede solidária de proteção
(sociedade civil), comprometida em inseri-los na sociedade (apoio, serviços e proteção).
No nível estadual, diferentes secretarias (Segurança, Educação, Saúde, Trabalho e Ação
Social) participam de uma coordenação interinstitucional, que por sua vez se desdobra
nos municípios parceiros do programa.
Os resultados apresentados na evolução do número de usuários de 2003 a 2007 em
16 estados e no Distrito Federal e sob a alçada específica da Polícia Federal variaram de
448 protegidos em 2003 para 3.128 em 2007.17 Outra informação relevante é que o tem-
po médio de permanência do usuário no programa nacional foi de 22 meses. No mesmo
período, os números de usuários relacionados a casos de execuções sumárias, arbitrárias
ou extrajudiciais em 13 estados no período 2003-2007 atingiram um total de 20 vítimas
sobreviventes, 118 testemunhas e 217 familiares.
Existem 17 programas estaduais18 em andamento e dois em implantação (RN
e AL), que compreendem oficinas, seminários e curso de especialização em direitos
humanos (programa federal), em cooperação internacional com a Oficina das Nações
Unidas Contra as Drogas e o Delito (Onudd), responsável pela realização de encontros

17. Cf. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA/SEDH - Sistema Nacional de Assistência a Vítimas e a Testemunhas – Programa de
Proteção a Testemunhas, abril 2008.
18. AC, AM, BA, CE, DF, ES, GO, MA, MG, MS, PA, PE, PR, RJ, RS, SC e SP.

218 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


nacionais, além de participação em outros encontros latino-americanos. O programa
federal necessita ser mantido financeiramente dentro da sua perspectiva progressiva
existente até agora, de modo que possa se desdobrar para todos os estados da Federação
e os municípios mais atingidos por crimes violentos.
Além das restrições orçamentárias, o programa enfrenta outros desafios: criação
e qualificação de unidades especializadas nos órgãos de segurança; estabelecimento
de medidas de segurança para réus colaboradores; aprovação dos projetos de lei
que permitam aprimorar o programa; criação do Conselho Nacional de Proteção
a Testemunhas; implementação de mecanismos capazes de agilizar os procedimentos
policiais e judiciais; e, ainda, promoção da articulação das políticas públicas com-
plementares, capacitação dos operadores do Sistema Nacional de Proteção a Vítimas
e Testemunhas Ameaçadas, e aperfeiçoamento do sistema de monitoramento e su-
pervisão do programa. A adoção destas medidas a curto e médio prazos possibilitará
a correção das lacunas presentes e permitirá ao programa potencializar seus resul-
tados de modo satisfatório.
3.1.3 Pessoas submetidas ao trabalho escravo
Em 2007, as entidades governamentais e não governamentais envolvidas no combate
ao trabalho escravo enfrentaram dificuldades, mas observaram alguns avanços impor-
tantes. O Grupo Especial Móvel de Fiscalização do Trabalho Escravo realizou a maior
ação dos últimos anos de libertação de trabalhadores em condições de escravidão: foram
libertados 1.064 trabalhadores rurais na fazenda e usina Pagrisa. Esta autuação gerou
a mobilização de lideranças empresariais e políticas que saíram em defesa da empresa,
com o fim de desqualificar o trabalho de fiscalização do governo. Toda esta pressão
acarretou a suspensão das ações por mais de 20 dias, entre setembro e outubro, quando
as equipes do grupo móvel de fiscalização retomaram suas atividades após a assinatura
de um termo de cooperação técnica entre o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
e a Advocacia Geral da União (AGU).
Segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi registrada a
libertação de 5.467 trabalhadores de escravidão no mesmo ano, contra 3.666 res-
gatados em 2006. Dados da Oganização Internacional do Trabalho (OIT) mostram
que, entre 2003 – quando o I Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo
foi lançado – e 2007, foram libertados 19.927 trabalhadores em condições análogas
à escravidão. Comparativamente, entre 1995 e 2002 foram libertadas 5.893 pessoas.
Ao final de 2007, a fim de reforçar as iniciativas de combate ao trabalho escravo, a
Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), coordenada pela
SEDH, reviu o Plano Nacional e responsabilizou-se por definir novas metas para a
área no início de 2008. Seus resultados foram efetivados por meio do lançamento,
em 10 de setembro, do II Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, que
atualiza o primeiro plano.
No que se refere à legislação, tem sido defendida pela SEDH, por movimentos
sociais do campo e por organizações de direitos humanos, a Proposta de Emenda à Cons-
tituição (PEC) no 438/2001, que prevê o confisco e a destinação para reforma agrária
de terras onde houver flagrante de trabalho escravo, como ferramenta fundamental para
coibir esta prática. Entretanto, apesar de aprovada pelo Senado e em primeiro turno na
Câmara dos Deputados, a bancada ruralista impõe dificuldades para que a referida PEC
seja aprovada em segundo turno.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 219


3.1.4 Pessoas com deficiência
A promoção dos direitos de cidadania das pessoas com deficiência conta com dois
programas coordenados pela SEDH: i) o Programa Nacional de Acessibilidade, que
objetiva promover o acesso aos bens e serviços da comunidade às pessoas com deficiência
e/ou com mobilidade reduzida, como idosos e grávidas; e ii) o Programa de Promoção
e Defesa dos Direitos de Pessoas com Deficiência, que, ao contribuir para sua inclusão
ativa no processo de desenvolvimento do país, tem como finalidade assegurar os direitos
e combater a discriminação contra pessoas com deficiência.
No caso do Programa Nacional de Acessibilidade, sua estratégia de implementação
se dá por ações de: i) capacitação de técnicos e agentes sociais em acessibilidade – em
2007, foram capacitadas 1.600 pessoas; e ii) adequação de instalações urbanas e prédios
públicos à acessibilidade, no que se destaca em 2007 a edição de norma que regulamenta
a acessibilidade de passageiros nos transportes aquaviários. O Programa de Promoção
e Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência, por sua vez, atua por meio de: i) reali-
zação e divulgação de estudos e pesquisas na área – em 2007 foram distribuídos 50 mil
exemplares de diversas publicações sobre o tema; ii) capacitação de recursos humanos
para a defesa dos direitos desta população (13.288 pessoas capacitadas em 2007); e
iii) apoio à implantação de conselhos estaduais e municipais de direitos das pessoas com
deficiência. No caso desta última ação, destaca-se a realização em 2007 do III Encontro
Nacional de Conselhos de Direitos da Pessoa com Deficiência.
Em 2007 foi encaminhada ao Congresso Nacional a proposta de ratificação da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela ONU em
13 de dezembro de 2006. A convenção, que tem como princípios o respeito pela dife-
rença, a não-discriminação e a acessibilidade, foi promulgada em 9 de julho de 2008,
tornando-se o primeiro tratado internacional promulgado com status constitucional
pelo Brasil. Assim como ocorreu com as crianças e os adolescentes ainda no início
dos anos 1990, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência representa
um marco importante na superação de certa visão assistencialista (ou mesmo piedosa)
sobre os deficientes, que marcou as políticas públicas e a ação da sociedade civil na
área, promovendo em contraponto a visão da pessoa com deficiência como sujeito de
direitos, para os quais cabem políticas de promoção da igualdade de oportunidades
e de inclusão social.
3.2 Estratégias gerais
3.2.1 Tráfico de pessoas: as iniciativas do Brasil
O Decreto no 5.948, de 26 de outubro de 2006, representou um marco significativo
na área de direitos humanos, ao estabelecer a Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas.19 Discutida amplamente em seminário nacional, o decreto contém
diretrizes, princípios e ações norteadoras da atuação do poder público nesta esfera,
a partir de três eixos centrais: prevenção e repressão ao tráfico,20 responsabilização de seus
autores, e atenção às vitimas. Esta política definiu uma ação conjunta dos três níveis da
esfera governamental, além de estabelecer uma articulação entre organismos não gover-
namentais nacionais de pesquisa e capacitação de profissionais. A proposta de reinserção

19. A política nacional adota a definição de tráfico de pessoas estabelecidas na Convenção de Palermo (2000).
20. Para fins de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares, servidão e remoção de
órgãos, entre outros.

220 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


social, proteção da intimidade e da identidade das vítimas, assim como de estruturação
de uma rede de retaguarda constituída pelo governo e a sociedade civil, configura um
desenho de política pautado na colaboração das diferentes áreas governamentais: justi-
ça e segurança pública, relações exteriores, saúde, assistência social, educação, direitos
humanos, igualdade racial, mulheres, desenvolvimento agrário, trabalho e emprego,
turismo e cultura.
O decreto instituiu também um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), com-
posto por representantes de diversos organismos públicos federais – além de convidados
como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público Federal (MPF) –,
da sociedade civil (12 instituições) e organismos internacionais, com a finalidade de
elaborar o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNEPT), com ênfase
na questão de gênero, infanto-juvenil, e combate ao trabalho escravo, sob coordenação
tripartite do MJ, SEDH e SPM.
Entre maio e dezembro de 2007 o GTI se encarregou da elaboração do plano,
lançado oficialmente em janeiro de 2008. O PNEPT pretende contribuir para o decrés-
cimo da vulnerabilidade de determinados grupos sociais, o tratamento justo das vítimas,
e para sua inserção na sociedade, a par de implementar ações de investigação, controle e
fiscalização. Orientado para as prioridades definidas em seus eixos estratégicos de preven-
ção e repressão ao tráfico e de atenção às vitimas, o plano estabelece ainda ações, metas
específicas, parcerias (nacionais e internacionais) e prazos de execução.
Contudo, alguns desafios permanecem em aberto: a adesão dos parceiros estaduais
e municipais; a capacitação dos atores responsáveis por sua implementação; e recursos
suficientes para viabilizar o alcance das atividades e metas planejadas.
3.2.2 Desaparecidos políticos
Instituída pela Lei no 9.140/1995 e instalada no Ministério da Justiça por meio do De-
creto no 18 do mesmo ano, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos
passou a desenvolver três atividades principais: i) reconhecimento formal de cada caso
analisado; ii) aprovação de reparação indenizatória; e iii) localização dos restos mortais
não entregues para sepultamento. Em seu artigo 1o, permitiu o posterior reconhecimento
da morte de 136 desaparecidos políticos, listados no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos
Políticos, resultado do trabalho de mais de vinte e cinco anos de buscas.
Em 2002, a Lei no 10.536/2002 imprimiu mudanças nos dispositivos da lei anterior,
ao ampliar o prazo da admissão da responsabilidade do Estado por mortes e desapare-
cimentos de pessoas entre 2 de setembro de 1961 e 5 de outubro de 1988, tendo sido
também reabertos novos prazos para pedidos de processos. Em 2004, a Medida Provisória
no 176/2004, transformada em Lei no 10.875/2004, estendeu sua abrangência para os
casos de mortes resultantes de repressão policial (manifestações e conflitos armados) e
suicídios praticados na iminência de prisão ou seqüelas psicológicas resultantes de atos
de tortura realizados por agentes do poder público.
Composta por representantes do Ministério Público Federal, Poder Executivo e
Legislativo, Forças Armadas e sociedade civil, a comissão realizou levantamentos por
intermédio de advogados e familiares, pesquisando e julgando 339 casos, dos quais 221
receberam reparação indenizatória e 118 foram indeferidos.
Merece destaque o lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade: Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em 29 de agosto de 2007, no qual

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 221


o Estado brasileiro assume a responsabilidade pela prisão, tortura, morte ou desapareci-
mento de aproximadamente 400 militantes políticos, o que constitui um marco positivo
na trajetória democrática e cidadã do país.
Em 2007, a Comissão Interministerial (AGU, SEDH, MJ, Casa Civil e Minis-
tério da Defesa), com a atribuição de localizar os desaparecidos políticos do Araguaia,
apresentou relatório contendo a identificação de três mortos, e a recomendação dirigida
ao presidente da República para desclassificar como sigilosos os documentos civis e mi-
litares não acessíveis à sociedade. Ainda em 2007 a comissão deu continuidade à tarefa
de localização dos restos mortais de vítimas da repressão, encaminhando-os a laboratório
para extração do DNA.
Outra atividade que vem sendo implementada na esfera do direito à memória e à
verdade corresponde às exposições itinerantes, que estão sendo apresentadas nas capitais
brasileiras e irão percorrer algumas cidades da América Latina. Também está prevista a
inauguração de memoriais em homenagem às vítimas das violações do período autori-
tário em diversos locais do país.
3.2.3 Educação em direitos humanos no Mercosul
O Brasil tem se colocado com certo destaque na América Latina na área da educação
em direitos humanos, desde o lançamento preliminar do Plano Nacional de Educação
em Direitos Humanos (PNEDH) em 2003, seguido por amplo debate com a socie-
dade civil que resultou na sua versão definitiva em 2006. No segundo semestre do
último ano, o Brasil exerceu a Presidência Pro Tempore e, conseqüentemente, sediou a
V Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos e Chancelarias do Mercosul e
Estados Associados (V RAADDHH), ocasião do surgimento do GT Educação e Cultura
em Direitos Humanos.21
Em 2007, o GT Educação e Cultura teve como principais pontos de pauta dois
aspectos importantes: situação da educação em direitos humanos na região, e avanços
na implementação dos planos nacionais de direitos humanos. Cada país participante22
relatou as atividades implementadas durante o período, com ênfase nas ações de ca-
pacitação de funcionários públicos civis e militares e de agentes de direitos humanos,
elaboração de material didático-pedagógico, publicações conjuntas, inclusão do tema
dos direitos humanos no currículo da educação básica e superior, proposta de encontro
entre os jovens da região, além da criação de um banco de dados e a implementação de
uma biblioteca virtual.
Por sua vez, o Grupo de Trabalho sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do
Mercosul, formado por representantes de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e
Venezuela, tratou da elaboração de um marco conceitual específico e debateu a respeito
da compilação de indicadores de direitos econômicos, sociais e culturais (Desc) em outras
esferas do Mercosul. Tal marco visa à proposição de uma metodologia capaz de incorporar
indicadores quantitativos e qualitativos, para que possam ser aferidas a discriminação e
desigualdade existentes na região, além de conhecer o cumprimento das obrigações dos
Estados em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais. A primeira etapa inclui

21. O I Congresso Interamericano de Direitos Humanos foi organizado pelo Comitê Nacional de Educação em Direitos Hu-
manos (CNEDH) com apoio da SEDH/PR em Brasília, DF, entre 30 de agosto e 2 de setembro de 2006, e teve a participação
de pesquisadores e gestores nacionais e internacionais.
22. Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai.

222 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


a apresentação de relatório de cada país referente ao direito ao trabalho, à educação e
à saúde, tendo como referência a construção de um sistema de indicadores vinculados
ao exercício do direito ao trabalho, às normas internacionais, regionais e nacionais, e às
políticas públicas implementadas para efetivá-los.
Esses dois grupos de trabalho, juntamente com os GTs sobre promoção dos
direitos de crianças e adolescentes; discriminação, racismo e xenofobia, deficiência, e o
do Instituto de Políticas Públicas do Mercosul têm contribuído para fazer avançar as
estratégias e procedimentos adotados para a proteção, promoção e defesa dos direitos
humanos na região.
3.2.4 Outras ações
Além das políticas e estratégias gerais acima elencadas, a SEDH promove ainda ou-
tras ações de promoção dos direitos humanos. Em 2007, destaca-se a ampliação dos
atendimentos pelos Balcões de Direitos, que prestam diversos serviços de promoção da
cidadania, como orientação e assistência jurídica, mediação de conflitos, e emissão de
documentação civil. Em 2007, foram realizados 138.301 atendimentos em 270 municí-
pios, número muito superior à meta prevista. O resultado se deve à realização de balcões
itinerantes em municípios do interior, em parceria com diversas instituições – como
associações comunitárias, cartórios, Defensorias Públicas, Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS) e Receita Federal –, estratégia esta que se mostrou bastante eficaz. Vale
notar aqui que a parceria com entidades emissoras de documentos resultou em uma
maior participação deste tipo de serviço frente a ações de assistência jurídica e mediação
de conflitos, por exemplo.
O período foi marcado também pela criação de uma área específica na SEDH,
direcionada à implantação de um sistema de informações em direitos humanos. O
primeiro passo para a constituição do sistema se deu com a realização do Seminário
Nacional de Indicadores em Direitos Humanos, em 5 de dezembro de 2007, na sede
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ocasião na qual o ministro da
SEDH, Paulo Vannuchi, o presidente do Ipea, Marcio Pochmann, e o presidente do
IBGE, Eduardo Nunes, indicaram a disposição destas instituições em trabalhar de forma
coordenada para a implantação do projeto, em parceria com a sociedade civil e contando
com a cooperação da ONU. A iniciativa, à qual se somam projetos específicos nas áreas
de pessoas com deficiência e da infância e adolescência, é uma antiga reivindicação da
sociedade civil, que identifica acertadamente a falta de informações fidedignas como
um dos principais obstáculos à avaliação e ao controle social sobre as políticas governa-
mentais no setor – tanto em termos dos resultados pontuais das políticas quanto dos
seus impactos no conjunto da população brasileira.
3.3 Análise da execução orçamentária
O ano de 2007 representou o último exercício abarcado pelo Plano Plurianual (PPA)
2004-2007, no qual, pela primeira vez, o governo federal contou com um órgão com
status ministerial exclusivamente voltado para a política de direitos humanos.23
O intenso trabalho de articulação interministerial realizado pela SEDH para a ela-
boração da Agenda Social no âmbito específico de suas ações para crianças e adolescentes,

23. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos foi criada pela Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, em substituição à
Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 223


pessoas com deficiência e registro civil de nascimento foi apontado como a causa para
a baixa execução financeira no primeiro semestre do ano. Porém, ainda que em 2007 a
baixa execução no primeiro semestre guarde relação com a priorização por parte da
SEDH no planejamento de suas contribuições para a Agenda Social, é importante
ressaltar que em anos anteriores se verificava a mesma prática de gasto no final do ano,
em especial no mês de dezembro. A justificativa então se pautava na liberação tardia de
recursos contingenciados, o que não ocorreu em 2007. Independentemente das razões
desta prática, a mesma implica dificuldades para a implementação dos projetos apoiados
pela SEDH, dado que estes são freqüentemente obrigados a readequar seus cronogra-
mas de execução – o que, não raro, acarreta prejuízos para a gestão e para os resultados
alcançados pelas políticas.
O segundo semestre do mesmo ano observou aumento tanto da execução quanto
do próprio orçamento autorizado à secretaria. Assim, no que se refere à execução orça-
mentária da SEDH como um todo, em 2007 houve um aumento de 25% no orçamento
aprovado, e de 60,5% no crédito liquidado, quando comparado a 2006. Isto significou
a execução financeira de R$ 132,2 milhões (tabela 1). Além do aumento expressivo no
orçamento da SEDH para 2007 em relação aos dos dois anos anteriores, houve tam-
bém elevação na proporção do orçamento efetivamente gasto, que saltou de 59% em
2005 para 64,7% em 2006, e para 82,9% em 2007. Tal crescimento na proporção do
orçamento gasto se deve, como pode ser observado na tabela 1, ao aumento na execução
financeira do Fundo Nacional da Criança e do Adolescente (FNCA).
TABELA 1
Execução orçamentária da SEDH e do FNCA1
(Em R$ constantes)2
2006 2007
Fonte Execução Execução
Autorizado Liquidado Autorizado Liquidado
(%) (%)
Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente 52.651.310 24.426.981 46,39% 60.231.649 55.502.533 92,15%
Secretaria Especial dos Direitos Humanos 74.712.147 57.958.891 77,58% 99.181.625 76.733.176 77,37%
Total 127.363.457 82.385.873 64,69% 159.413.274 132.235.709 82,95%
Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal/Secretaria do Tesouro Nacional (Siafi/STN).
Notas: 1 Os valores referentes à Secretaria Especial dos Direitos Humanos incluem recursos orçamentários provenientes de doação da União Européia,
cujo orçamento em 2007 foi de R$ 5.576.000,00.
2
Os valores de 2006 foram corrigidos para 2007 pela média anual do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA/IBGE).

Em consonância com a lógica de atuação preferencial da SEDH sobre os chamados


grupos vulneráveis, tradicionalmente sujeitos a violações dos seus direitos humanos,
a maior parcela de seu orçamento (76,7%) é alocada em programas e ações que pro-
movem os direitos de crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, vítimas
e testemunhas ameaçadas, defensores de direitos humanos, grupos LGBT e pessoas
submetidas ao trabalho escravo. Outra parcela (6,2%) é alocada em ações mais gerais
de promoção dos direitos humanos, como capacitações em direitos humanos e apoio a
balcões de direitos. A tabela 2 detalha o orçamento e a execução financeira da SEDH
nos programas e ações de cunho mais “finalístico”.

224 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 2
Execução orçamentária da SEDH por agrupamento de programas segundo públicos específicos
(Em R$ constantes)1
2006 2007
Programas e ações
(Separados por público-alvo) Execução Execução
Autorizado Liquidado Autorizado Liquidado
(%) (%)
Crianças 52.043.199 31.714.591 60,94 78.582.574 74.277.354 94,52
Erradicação do Trabalho Infantil 67.966 67.307 99,0 60.000 - 0,0
Prot. da Adoção e Comb. ao Seq. Internacional 170.405 170.405 100,0 200.000 - 0,0
Atend. Socioed. do Adol. em Conflito com a Lei 13.278.202 13.247.848 99,8 48.226.462 47.837.789 99,2
Promoção e Defesa dos Dir. da Criança e do Adol. 33.124.492 13.629.329 41,1 24.154.351 22.528.804 93,3
Comb. ao Abuso e à Expl. Sexual de Crianças e Adol. 5.402.133 4.599.702 85,1 5.941.761 3.910.761 65,8
Pessoas com deficiência 6.529.790 5.886.132 90,14% 9.550.000 6.236.675 65,31
Nacional de Acessibilidade 892.740 555.447 62,2 1.730.000 1.663.983 96,2
Promoção e Def. dos Dir. de Pessoas com Deficiência 5.637.050 5.330.685 94,6 7.820.000 4.572.692 58,5
Idosos 207.132 134.636 65,00 9.250.000 4.229.181 45,72
Vítimas e testemunhas 12.600.870 12.437.472 98,70 15.572.000 15.085.054 96,87
Trabalho escravo 207.132 207.132 100,00 430.000 257.137 59,80
Grupos GLBTT 7.274.677 6.447.810 88,63 6.400.000 4.205.316 65,71
Defensores de direitos humanos 518.207 518.131 99,99 2.500.000 2.218.962 88,76
Promoção de direitos 8.717.119 7.234.897 83,00 9.930.837 8.173.235 82,30
Apoio a Centros de Referência em Direitos Humanos 906.862 466.386 51,43 1.560.000 960.000 61,54
Apoio à Capacitação em Direitos Humanos 1.568.487 1.491.960 95,12 2.290.000 2.209.649 96,49
Disque Direitos Humanos 725.489 - 0,00 1.000.000 1.000.000 100,00
Publicidade de Utilidade Pública 2.884.339 2.813.545 97,55 220.000 220.000 100,00
Apoio a Conselhos Est. e Mun. de Direitos Humanos - - 340.000 65.000 19,12
Balcões de Direitos 2.225.824 2.056.888 92,41 3.300.000 2.497.923 75,69
Mobilização Registro Civil Nascimento 259.103 259.103 100,00 499.998 499.824 99,97
Capacitação de Ag. Públicos em Temas Transversais 135.782 135.782 100,00 110.000 110.000 100,00
Sistema Nacional de Informações em Direitos Humanos 11.234 11.234 100,00 610.839 610.839 100,00
Total 88.098.126 64.580.800 73,3 132.215.411 114.682.914 86,7
Fonte: Siafi/STN.
Nota: 1 Os valores de 2005 e 2006 foram corrigidos para 2007 pela média anual do IPCA/IBGE.

Os programas e ações com menor percentual de execução do orçamento autori-


zado foram aqueles direcionados aos idosos, aos trabalhadores submetidos a situações
análogas à escravidão, às pessoas com deficiência e aos grupos LGBT, nesta ordem.
As crianças e os adolescentes, por sua vez, continuaram a ser beneficiários da maior
parte dos recursos disponibilizados para a SEDH, sempre superior à dos demais grupos
somados.24 Entre 2006 e 2007 os montantes liquidados para este público mais que
dobrou, refletindo tanto o crescimento dos recursos disponibilizados (51%) quanto a
maior eficiência na aplicação, que de 61% passou para 95% no cômputo dos montantes
liquidados em 2006 e 2007, respectivamente. Assim, o grupo crianças e adolescentes,
que representou 49% da execução financeira da SEDH em 2006, aumenta esta parti-
cipação para 67% em 2007.25
Outro grupo com participação importante tanto nos recursos disponibilizados
quanto nos gastos em si foram as vítimas e testemunhas ameaçadas. Entretanto, o in-
cremento dos recursos para este segmento foi proporcionalmente menor que para os
outros públicos da SEDH, diminuindo sua participação relativa nos gastos da secre-
taria. Ao mesmo, a própria visão da política na área passa por uma alteração: no PPA
2008-2011, um novo programa inclui todas as ações de proteção à vida de pessoas que
sofram ameaças, sejam crianças e adolescentes, testemunhas ou defensores dos direitos
humanos. Projetando-se retrospectivamente esta nova concepção para o ano de 2007,

24. Essa tendência se verifica desde o lançamento do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH) em 1996. Entre o
lançamento do PNDH e o fim do Governo Fernando Henrique Cardoso em 2002, 56,9% dos recursos destinados à celebra-
ção de convênios foram para a área de criança e adolescente – cf. SEDH. Políticas Públicas de Promoção e Proteção.
SEDH, 2002.
25. Deve-se levar em conta que essa elevação se explica pelo aumento da execução do Fundo Nacional da Criança e do Ado-
lescente, de 46,4% do orçamento em 2006 para 92,1% em 2007, e porque boa parte dos recursos do fundo (todos aqueles
provenientes de doação) não é devolvida ao Tesouro no fim do exercício financeiro, passando para o exercício seguinte.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 225


o público “pessoas ameaçadas” contaria com uma execução financeira de R$23,3 milhões,
ou 21,8% do total dos recursos gastos com os grupos vulneráveis.
4 Tema em destaque
Direitos humanos no Brasil: uma avaliação internacional
A promulgação da Constituição Federal de 1988 representou um marco histórico para
o reconhecimento dos direitos humanos como princípio norteador do Estado brasileiro.
Concebida dentro do processo de redemocratização nacional, após mais de 20 anos de
um regime militar que sistematicamente violava os direitos de cidadania por supostas
razões de Estado e de segurança nacional, a Carta Magna, logo em seu artigo primeiro,
define como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da
pessoa humana. De forma congruente, o artigo 4o define como princípio regente das
relações internacionais do Brasil a prevalência dos direitos humanos.
Ainda no início do texto constitucional, por meio do Título II – Dos direitos e
Garantias Fundamentais, foram definidos os direitos humanos e suas garantias, entre
eles os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, à associação
para fins lícitos (inclusos partidos e sindicatos), ao livre pensamento e expressão, à de-
fesa legal, à não-discriminação, à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança,
à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, e à assistência aos desam-
parados. Tal concepção marca uma descontinuidade radical para com o paradigma
jurídico e político anterior, e instaura um processo de progressivo reconhecimento,
promoção, garantia e defesa de direitos. Porém, vinte anos após a instituição deste
novo momento histórico, os avanços do Estado e da sociedade brasileira na imple-
mentação de políticas públicas que promovam o novo marco legal ainda não foram
devidamente descritos e analisados.
Uma das dificuldades para a realização desse empreendimento reside na transver-
salidade inerente dos direitos humanos, que faz com que a temática se encontre imbri-
cada em diversas áreas setoriais, como justiça, educação, trabalho, saúde e assistência.
Com isso, separações entre “políticas de direitos humanos” e “políticas setoriais” tornam-
se amiúde arbitrárias e demasiado dependentes do autor da análise. Nesse sentido, a
recente apresentação perante o Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU do
mecanismo de Revisão Periódica Universal (RPU) por parte do governo brasileiro
permite avançar para uma conceituação mais objetiva, ao avaliar a situação dos direitos
humanos no país baseado na posição do próprio Estado brasileiro sobre quais são os
temas centrais, os avanços, retrocessos, desafios e prioridades para uma política de direi-
tos humanos no país. Esta posição encontra-se substanciada no relatório entregue pelo
Estado ao referido conselho, que também recebeu mais dois relatórios: um elaborado
a partir de informações da sociedade civil, e outro com informações prestadas pelas
diversas agências da ONU.
Com isso, não apenas a atual posição oficial pode ser analisada, como também con-
trastada com a posição de organizações não governamentais e da burocracia das Nações
Unidas. Baseado nestas três perspectivas, possivelmente as mais relevantes historicamente
na construção da política nacional de direitos humanos, os países representados no
Conselho de Direitos Humanos argüiram os representantes governamentais brasileiros
em audiência realizada em Genebra. Da sessão resultou um relatório final com reco-
mendações a serem internalizadas pelo Brasil.

226 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Assim, os quatro documentos elaborados (do Estado, da sociedade civil, do sis-
tema ONU e do Conselho de Direitos Humanos)26 constituem, quando analisados e
confrontados, um corpus sintético das concepções atuais sobre os direitos humanos no
país, tanto no que se refere à atual situação quanto no que tange aos avanços passados
e aos desafios futuros.
É importante destacar que a criação do Conselho de Direitos Humanos da ONU
em junho de 2006, em substituição à antiga Comissão de Direitos Humanos, constitui
um marco para a consolidação do status dos direitos humanos nas Nações Unidas, como
um dos grandes temas da organização, em conjunto com paz e segurança – representado
no Conselho de Segurança –, e desenvolvimento (representado no Conselho Econômico
e Social. Quando da instituição do conselho, a Assembléia Geral da ONU decidiu que
este deveria realizar revisões periódicas, baseadas em informações objetivas e fidedignas,
de fontes governamentais e não governamentais de todos os Estados-Membros, sobre o
cumprimento das obrigações e compromissos de direitos humanos em nível nacional.
Com base nessa decisão da Assembléia Geral, o conselho normatizou um meca-
nismo de Revisão Periódica Universal (RPU), estabelecendo um calendário para que os
países apresentassem relatórios governamentais e não governamentais sobre a situação
dos direitos humanos de forma geral, apontando os avanços obtidos, as dificuldades e
o cumprimento dos tratados e compromissos internacionais assumidos pelo Estado.
Para muitos analistas, este mecanismo representa o mais importante avanço do CDH
em relação à antiga comissão. Isto porque, ao contrário do órgão anterior, no qual
apenas um grupo seleto de Estados era avaliado – seleção esta motivada mais por in-
tricadas relações políticas internacionais do que por critérios significativos – no RPU
todos os Estados, inclusive os membros permanentes do Conselho de Segurança, devem
submeter-se à avaliação a cada quatro anos. Em princípio, a própria lógica comunicativa
do mecanismo, que inclui além dos relatórios uma sessão de três horas de perguntas
(a qual precede o relatório final com recomendações), deve constranger os Estados a evitar
táticas de evasão de temas sensíveis ou sobre os quais, por algum motivo, prefeririam
não se pronunciar. Acredita-se que este mecanismo possa empoderar grupos de direitos
humanos locais e subsidiar decisões de ajuda humanitária e cooperação internacional,
possivelmente influenciando nas relações diplomáticas entre os países em alguns casos.
O relatório brasileiro também aponta para a necessidade de o mecanismo fomentar a
disseminação de boas práticas e o diálogo internacional.
Em atendimento ao calendário estabelecido, o Brasil entregou seu relatório governa-
mental em fevereiro de 2008, após um debate com diversos órgãos setoriais, Legislativo
e organizações não governamentais. O documento, por sua necessária concisão (máximo
de 20 páginas) permite uma análise dupla: por um lado, possibilita uma compreensão
sintética do atual estado da defesa dos direitos humanos no país e do esforço governa-
mental e societário para a sua promoção nos últimos anos; por outro, permite captar de
forma indireta quais temas, no vasto universo dos direitos humanos, são considerados
mais relevantes pelos tomadores de decisão.
4.1 O relatório do Estado brasileiro: temas, avanços e desafios
Sinteticamente, observa-se no relatório estatal uma maior ênfase nos avanços, nas políticas
públicas hoje em execução, nos planos recém-lançados e nos direitos econômicos, sociais

26. Os documentos encontram-se disponíveis em: <http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/UPR/PAGES/BRSession1.aspx>.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 227


e culturais. Direito à alimentação, redução da pobreza e da desigualdade, universalização
do ensino básico e do sistema de saúde pública são temas destacados.
Além desses temas, os direitos das mulheres, igualdade racial, terra, trabalho, tor-
tura e execuções extrajudiciais, segurança, mortos e desaparecidos políticos, orientação
sexual, povos indígenas, crianças e adolescentes, e pessoas com deficiência foram tópi-
cos abordados. Em conjunto, estes assuntos formam aquilo que o Estado considera no
presente as prioridades para uma política de direitos humanos. Cabe notar que, dos 15
assuntos, apenas cinco são coordenados pela SEDH. Entre os temas tradicionalmente
ligados à questão dos direitos humanos que não foram priorizados sobressaem direitos
civis e políticos, como a liberdade de expressão e religiosa, a administração e o acesso
à justiça, e a participação política.27 A menor ênfase nos direitos civis e políticos não
é surpreendente, visto que os mesmos são costumeiramente considerados pelos países
em desenvolvimento menos relevantes que os econômicos, sociais e culturais. Contudo,
a seleção é congruente com a opção do Estado por enfatizar os avanços e as políticas
públicas recentes, o que significa, numa análise dos últimos anos, dar maior espaço às
conquistas sociais.
Os avanços legais e institucionais observados desde 1988 são também destaques.
De fato, a partir da Constituição de 1988, que em si já marca a retomada de uma ordem
jurídica de respeito aos direitos humanos, uma série de tratados internacionais foram ratifi-
cados, planos foram adotados – entre os quais se destaca o Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH) – e órgãos públicos de promoção e defesa de direitos foram instituídos
– como a própria Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), a Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres (SPM). No campo internacional destaca-se o “convite permanente” aos
relatores da ONU e a participação brasileira no sistema interamericano de direitos huma-
nos e no Mercosul. A isto se somam o fortalecimento do Ministério Público e uma maior
participação social nas decisões governamentais, por meio da proliferação de conselhos e
conferências em todos os níveis da Federação. Legislações específicas como a Lei Maria
da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente são ainda ressaltados como marcos da
garantia dos direitos das mulheres e de crianças e adolescentes.
No que se refere às políticas públicas, o Fome Zero, e em especial o Bolsa Família é
considerado o principal instrumento de combate à desnutrição, à pobreza e à desigual-
dade, temas nos quais o país mais avançou nos últimos anos. Outras políticas apontadas
como fundamentais para a promoção dos direitos humanos incluem:
a) saúde: a institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), o Programa Saúde
da Família e o programa para DST/AIDS;
b) desenvolvimento agrário: o Plano Nacional de Reforma Agrária e o Programa
Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf );
c) segurança pública: o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e o Programa
Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci);
d) educação: o Programa Brasil Alfabetizado e Educação de Jovens e Adultos, o
Programa Universidade para Todos (ProUni) e o Plano de Desenvolvimento da
Educação (PDE); e

27. Outros temas dignos de nota que não foram destacados são a cultura e o meio ambiente.

228 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


e) grupos específicos: o grupo móvel de combate ao trabalho escravo; a pensão vita-
lícia para os hansenianos que foram confinados em hospitais-colônia; o Programa
Brasil Sem Homofobia; o Programa Brasil Quilombola; a Agenda Social Criança
e Adolescente; e o Programa de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de
Crianças e Adolescentes.
É interessante que, com notáveis exceções como o SUS, a reforma agrária, o Pronaf
e o Susp, as demais políticas citadas tiveram início a partir de 2003. Algumas, como
o Pronasci e o PDE, são de implementação recente, constituindo-se em planos cujos
resultados ainda não podem ser devidamente avaliados. Por um lado, é passível de crítica
esta seletividade, que coloca em dúvidas se o relatório possui um caráter “de Estado” ou
“de governo”.28 Por outro lado, o fato reflete o quão recente é a preocupação do Estado
com a problemática dos direitos humanos.
É possível afirmar que entre a promulgação da Constituição em 1988 e o lançamen-
to do PNDH em 1996, os avanços foram mais circunscritos à legislação – Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), ratificação de tratados internacionais etc. Só a partir
de então, lentamente, o país começa a observar a proliferação de políticas públicas de
âmbito federal voltadas para a promoção dos direitos humanos – em especial os direitos
econômicos, sociais e culturais.
Se a listagem das políticas públicas reflete avanços em andamento, indicando um
processo de transformação em curso, o relatório não se furta de indicar alguns dados e
indicadores de resultados já obtidos. Destacam-se no documento: a queda de 58,54% na
extrema pobreza entre 1992 e 2006, que faz atingir a meta do milênio muito antes do
prazo; a redução do desemprego, de 9,6% para 7,4% entre 2004 e 2007; a diminuição
do número de mortes por arma de fogo, em 16,6%, devido ao Estatuto do Desarmamen-
to; a queda da mortalidade infantil; a redução da desigualdade de renda; a diminuição
do diferencial de renda entre homens e mulheres no mesmo segmento de trabalho e com
características similares, de 66,3% em 1995 para 56,1% em 2005; o alcance de uma
taxa de freqüência escolar de 97,4% para a população entre 7 e 14 anos; a identificação
de 3.562 comunidades quilombolas; o registro de 448.944 famílias beneficiadas pelo II
Plano Nacional de Reforma Agrária; a existência de 615 terras indígenas reconhecidas;
a libertação de 27.645 trabalhadores escravos pelo grupo móvel de fiscalização; e o jul-
gamento de 339 casos de mortos e desaparecidos políticos.
Apesar disso, o país reconheceu as suas deficiências com relação à coleta e à sistema-
tização dos dados e informações necessários para a avaliação dos direitos humanos em
território nacional. Para sanar esta deficiência, o governo propôs em 2007 a implantação
de um sistema nacional de indicadores em direitos humanos. Enquanto o sistema não
se concretiza, entretanto, muitas áreas, em especial as relacionadas com a criminalidade
e o sistema de justiça, permanecem carentes de informações abrangentes e fidedignas,
baseando-se os gestores públicos e a sociedade civil em dados e pesquisas assistemáticas
e pontuais.
E é exatamente nessas áreas menos abastecidas de dados que se colocam os prin-
cipais desafios para a política dos direitos humanos no Brasil. Embora tais lacunas de
dados sobre direitos civis, em comparação com informações sociais, sejam um fenômeno

28. Além da seletividade temporal, é questionável o fato da grande maioria de informações estar centrada em iniciativas do
governo federal, em contraponto a avanços de outras esferas de governo ou mesmo da sociedade como um todo.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 229


internacional,29 revelam a precariedade do sistema de coleta de dados administrativos no
país por instituições como a polícia, o Judiciário e o sistema prisional. E esta dificuldade
se torna ainda maior no caso de violações como a tortura, o estupro e a violência do-
méstica. Apesar disso, sabe-se que apenas nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo
8.520 pessoas foram mortas pela polícia nos últimos cinco anos, e que a violência é a
causa da morte de 68,2% dos jovens entre 15 e 24 anos. Não surpreendentemente, o
Estado brasileiro reconhece que a violência, as organizações criminosas, a prática da tor-
tura por agentes estatais e a superlotação nas prisões estão entre os principais problemas
enfrentados pelos direitos humanos no país. Outras dificuldades reconhecidas são: a
discriminação racial e para com os deficientes; a cultura patriarcal; a elevada desigualdade;
a concentração fundiária; a baixa escolaridade; a qualidade dos empregos; a não abertura
de arquivos da ditadura militar; e a homofobia. No campo dos desafios, para além da
melhora do sistema de estatísticas públicas, verifica-se a necessidade de se aperfeiçoar
a legislação relativa à proteção dos direitos da mulher e dos grupos LGBT; o fortaleci-
mento da agricultura familiar e do agroextrativismo; o alcance das populações excluídas
por parte das políticas públicas; a melhora da qualidade de ensino; o fortalecimento do
diálogo social; e a promoção da cidadania plena aos povos indígenas.
4.2 A visão da sociedade civil e da ONU sobre os direitos humanos no Brasil
De forma geral, observa-se nos relatórios do sistema ONU e da sociedade civil uma maior
ênfase nos problemas e desafios, nos casos recentes de violação dos direitos humanos
e nos direitos civis. O relatório da sociedade civil é mais “plural”, no sentido de que há
um grande número de organizações que contribuíram para sua elaboração, como Anis-
tia Internacional, Human Rights Watch e Repórteres sem Fronteira; mas o do sistema
ONU também apresenta alguma pluralidade, advinda do grande número de órgãos
que enviaram relatórios parciais.30 Observam-se em ambos os relatórios similitudes de
temas observados, avanços reconhecidos e problemas apontados. Tortura, impunidade,
violência policial, violência urbana e morte de defensores dos direitos humanos são
temas específicos recorrentes.
É interessante notar que a própria nomeação dos temas mais gerais abordados
revela por si só uma visão algo diferente do relatório brasileiro: há trechos denomina-
dos “vida, liberdade e segurança da pessoa”, “administração da justiça e domínio da
lei”, “direito à privacidade, ao casamento e à vida familiar” e “liberdade de opinião e
expressão”. Os direitos econômicos e sociais como um todo são tratados em apenas
dois trechos, que se referem à “seguridade social e a um padrão de vida adequado” e
“educação e cultura” – este último não consta do relatório da sociedade civil. Por um
lado, a própria lógica de se centrar nos problemas e desafios é condizente com o maior
número de linhas dedicadas aos direitos civis e às questões relacionadas à segurança e
ao direito à vida, que são reconhecidas pelo próprio país como as áreas mais sensíveis.
Por outro, novamente se revela a disparidade entre a concepção dos direitos humanos
dos países em desenvolvimento, que dá maior importância aos direitos sociais, e aquela
adotada pelos países “centrais”. No caso, tanto o relatório do sistema ONU como o da
sociedade civil têm seus discursos pautados nesta última perspectiva.

29. Ver CLAUDE, Richard P.; JABINE, Thomas B.: Exame dos Problemas dos Direitos Humanos por Meio da Estatís-
tica. In: Direitos Humanos e Estatística: O arquivo posto a nu. São Paulo : Edusp, 2007.
30. Ambos os relatórios foram elaborados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e repre-
sentam uma compilação das informações enviadas pelas instituições e organismos internacionais.

230 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Sobre os avanços, os dois relatórios reconhecem que, ao menos no âmbito legal
e institucional, verificou-se uma melhora significativa, com destaque para o reconhe-
cimento constitucional dos direitos humanos e do direito à terra, a igualdade jurídica
entre homens e mulheres, a legislação de combate à tortura e ao racismo e de proteção
à criança e ao adolescente, bem como a elaboração do PNDH e a criação de órgãos
tais como a SEDH. O relatório da sociedade civil ressalta ainda outros avanços neste
campo, distinguindo a criação do Pronasci, o Estatuto do Desarmamento e o Programa
Brasil Sem Homofobia. O relatório do sistema ONU enfatiza avanços na área de justiça
(compensação de vítimas da ditadura, esforços de reforma do Judiciário e criação de
cortes judiciais juvenis) e na área social (redução da mortalidade infantil, luta contra a
pobreza, reconhecimento de comunidades quilombolas e o programa de HIV/AIDS).
Quanto aos problemas, entre o vasto rol de observações e sugestões, é recorrente a
questão da distância entre a letra da lei e as práticas sociais. Ou, como coloca a Anistia
Internacional, há um enorme gap entre o espírito das leis de proteção de direitos huma-
nos – as quais, na sua avaliação, estão entre as mais progressistas na América Latina – e
sua implementação. Nesse sentido, são criticados: a não incorporação desta legislação à
prática do Judiciário, bem como a existência de legislação anterior em desacordo com os
tratados assinados pelo país; a falta de senso de dever cívico e a corrupção que prejudicam
toda a política de segurança; a impunidade e o apoio velado de autoridades à violência
e à tortura policial; as execuções extrajudiciais; a violência (difundida e subnotificada)
contra as mulheres; a existência de trabalho forçado na área rural; a impunidade genera-
lizada de perpetradores de crimes contra os direitos humanos, hoje e durante a ditadura
militar; os despejos forçados e violentos de populações urbanas e rurais; a insegurança
e a violência provocadas por organizações criminosas; a superlotação e as condições
insalubres nas prisões; a desigualdade de renda; a desigualdade de fato entre homens
e mulheres; e a discriminação étnica. Por último, merece especial relevo a crítica feita
pela sociedade civil, sob o título de “prioridade nacional chave”, à posição do Estado
brasileiro que indicou a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol como um
exemplo positivo de atuação no campo de direitos indígenas, quando, na opinião das
instituições que se manifestaram,31 a atuação estatal nesta matéria não tem sido efetiva
na proteção da vida e da integridade física dos povos indígenas da área.
4.3 O relatório do Conselho de Direitos Humanos (CDH)
O relatório do conselho é basicamente uma ata do processo de revisão do Brasil, ocor-
rida no 9o Encontro do Conselho de Direitos Humanos. Está estruturado em uma
apresentação por parte do país, seguida pelo diálogo entre os membros do conselho e as
respostas brasileiras, e finaliza com as conclusões, recomendações e compromissos volun-
tariamente assumidos pelo Estado. De uma forma geral, destaca-se o aprovo por parte
dos Estados-Membros do conselho no que se refere ao relatório brasileiro, ressaltando
a maneira franca e aberta com que o país apontou seus problemas. É importante subli-
nhar também o grande número de pedidos, por parte de países em desenvolvimento, de
informações adicionais sobre programas e políticas específicas considerados como boas
práticas, entre os quais: o Sistema Único de Saúde; o Fome Zero e o Bolsa Família; o Plano
de Desenvolvimento da Educação e a virtual universalização do ensino fundamental; o
programa de HIV/AIDS; a criação da SEDH, da Seppir e da SPM; a iniciativa de criar

31. Enviaram um relatório conjunto o Conselho Indígena de Roraima, a Rainforest Foundation – US, o Forest Peoples
Programme, e o Indigenous Peoples Law and Policy Program, da Universidade do Arizona.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 231


um sistema de indicadores em direitos humanos; e a Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos Políticos. Este interesse expressa na prática o alcance de um dos objetivos
do recente mecanismo de RPU, a saber, a troca de informações entre os países sobre suas
experiências exitosas na promoção dos direitos fundamentais.
Quanto ao objetivo de influenciar os tomadores de decisão com base nas críticas e
observações, obviamente o momento atual do mecanismo não permite uma avaliação.
Entretanto, o Brasil assumiu perante o conselho a concordância com relação a uma série
de recomendações, entre elas:
a) continuidade dos esforços para a redução da pobreza e da desigualdade;
b) intensificação das ações destinadas à resolução de questões sensíveis como as
condições prisionais, a violência policial, a prática da tortura, a proteção dos
defensores dos direitos humanos, a violência contra a mulher, os conflitos agrários
e a impunidade para os envolvidos com a corrupção;
c) estímulo ao estabelecimento de uma instituição de acordo com os princípios de
Paris;32
d) ampliação do acesso à justiça e a melhoria do sistema judiciário como um
todo;
e) empenho na aprovação de projeto de lei (PL) que garanta o acesso dos cidadãos
a informações públicas; e
f ) ampliação da escala da experiência na área de biocombustíveis baseados em
produtos agrícolas não comestíveis e preservação do direito à alimentação.
Nas recomendações, bem como nas falas dos países-membros do conselho, observou-se
novamente a distinção entre os focos de grupos de países ali representados. De um lado, países
desenvolvidos – e.g. Holanda, Reino Unido, Estados Unidos, França, Noruega e Canadá –,
cujas observações se centravam em questões como corrupção, tortura, sistema prisional e de
justiça criminal, proteção de testemunhas, liberdade de expressão, participação política e
execuções extrajudiciais; de outro, países em desenvolvimento – como China, Malásia, Gana,
Venezuela, Argélia, Guatemala e Síria –, cuja fala e recomendações trataram mais freqüente-
mente de questões sociais como educação, saúde, pobreza, desigualdade, reforma agrária e,
principalmente, direito à alimentação. Além disso, o discurso do primeiro grupo de países, via
de regra, centrava-se mais em problemas, na citação de casos dramáticos de violação de direitos,33
e apresentava maior volume de recomendações. O do segundo grupo tinha maior tendência
ao elogio dos esforços empreendidos, à preocupação com violações de direitos de grandes

32. Os princípios de Paris foram adotados pela Resolução no 48/134 da Assembléia Geral da ONU de 20 de dezembro de
1993. Referem-se basicamente à necessidade da criação, em cada Estado, de uma instituição independente, de caráter
pluralista, formada por membros da sociedade civil, com mandato para submeter ao governo, ao Parlamento e à sociedade
em geral opiniões, recomendações, propostas e relatórios relacionados à promoção dos direitos humanos, bem como chamar
a atenção para casos de violação destes direitos.
33. Nessa questão particular, o discurso dos países ricos se aproxima das preocupações das ONGs internacionais contidas
no respectivo relatório. Estas organizações tradicionalmente exercem um papel de monitoramento de casos específicos de
violações e, não surpreendentemente, seus relatos sobre o Brasil para o CDH eram ricos em denúncias de ocorridos recentes,
como o conflito entre indígenas e arrozeiros na reserva Raposa Serra do Sol e a morte de 19 pessoas em ação encabeçada
pela Polícia Militar do Rio de Janeiro no Complexo do Alemão, em 27 de junho de 2007. Cabe notar que não é possível
fazer com rigor o mesmo tipo de distinção entre ONGs de países desenvolvidos e de países em desenvolvimento , pois as
primeiras representam a maioria absoluta das contribuições enviadas, sendo poucas as observações de ONGs nacionais ou
latino-amercianas. Ainda assim, de forma geral, observa-se o mesmo fenômeno: maior preocupação com grandes coletivi-
dades e direitos sociais e maior reconhecimento dos avanços observados por políticas recentes.

232 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


contingentes populacionais – com destaque para a preocupação dos países africanos com a
questão dos brasileiros afrodescendentes – e ao questionamento interessado sobre políticas
recentemente implementadas.
Ao fim, verifica-se um consenso entre as diversas vozes presentes nos relatórios
no que se refere aos avanços legais e institucionais observados pelo Brasil desde a pro-
mulgação da Constituição cidadã em 1988. Mas igual consenso verificou-se também
quanto ao grande desafio de fazer tal legislação materializar-se nas práticas: tanto na-
quelas cujos agentes são funcionários do Estado, quanto as que se dão nas interações
humanas cotidianas. Embora dito de forma geral este enunciado seja elementar, suas
implicações para uma agenda brasileira de promoção dos direitos humanos é ampla:
significa, sem menosprezar os avanços legais ainda a serem alcançados em algumas
áreas, priorizar a implementação de políticas públicas que efetivamente solucionem os
problemas diagnosticados.
Os problemas, assim como os desafios e os avanços, que são normalmente identi-
ficados de forma dispersa em cada política setorial, encontraram no processo da RPU
uma sistematização coerente. Isto foi resultado do diálogo entre a secretaria responsável,
em última instância, pela política de direitos humanos (SEDH), e os órgãos setoriais
que implementam as políticas, em um contexto no qual o Estado se viu instigado, pela
própria lógica da avaliação externa, a conceber uma visão mais abrangente e franca dos
direitos humanos no país. Esta visão abandona uma conceituação negativa da política
de direitos humanos – isto é, a política que cobre aqueles setores mais vulneráveis ou
emergenciais que não são cobertos pelas políticas de saúde, educação, assistência etc. –
por uma conceituação positiva – que engloba todas as políticas que concorrem para a
promoção dos direitos humanos, devidamente elencadas e avaliadas com base naquilo que
se considera serem os principais problemas e desafios que o país enfrenta nesta área.
5 Considerações finais
No período em análise, distinguem-se o aumento na execução do orçamento da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos em 2007, a consolidação de iniciativas sociais abrangen-
tes para a promoção das políticas coordenadas pela SEDH, e a avaliação por parte do
Conselho de Direitos Humanos da ONU da situação brasileira na área.
O aumento do orçamento liquidado pela SEDH deve ser inserido em uma conjun-
tura mais ampla de incremento do orçamento de outras áreas sociais num ano marcado
por poucos problemas de contingenciamento de recursos. Porém, é fato que tal elevação
no montante dos recursos aprovados entre 2006 e 2007 (60,5%) e a ampliação na relação
orçamento disponível/orçamento executado aponta para o crescimento de importância
da SEDH – e de suas políticas – nas prioridades governamentais, e revela uma maior
eficácia na execução financeira dos programas. Este último ponto é fundamental para
uma área relativamente nova da burocracia pública. Apesar disso, cabe ressaltar que o
volume de recursos federais disponibilizados para a área é ainda insuficiente frente aos
desafios que se impõem ao país.
Nesse contexto, parece mais significativa a coordenação da SEDH na elaboração
das propostas que integram a Agenda Social, no tocante à defesa de direitos de crianças
e adolescentes, das pessoas com deficiência, e de registro civil de nascimento. Primeira-
mente, esta articulação resultou na previsão de recursos cerca de 20 vezes superiores aos
disponibilizados para a secretaria nas três áreas entre 2005 e 2007, o que minimiza o

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 233


ainda baixo orçamento que lhe é diretamente destinado. Segundo, amplia-se a atuação
dos direitos humanos na estrutura federal como um todo, por meio do envolvimento de
diversos órgãos em cada uma das iniciativas mencionadas. Isto atende à necessidade da
SEDH atuar mais fortemente na articulação intersetorial, de forma a inserir a proble-
mática dos grupos vulneráveis no desenho de todas as políticas públicas relevantes para
estas populações, e não apenas naquelas cuja execução é de sua responsabilidade.
Por fim, o processo do mecanismo de revisão periódica do CDH/ONU, que teve
início este ano, propiciou ao governo brasileiro a oportunidade de elaborar uma visão de
Estado abrangente da sua política de direitos humanos, desprendida das “caixas” setoriais,
apontando quais são, na ótica atual, os problemas, avanços e prioridades desta política.
Para além da avaliação realizada pelos organismos internacionais, pela sociedade civil
internacional e pelo CDH/ONU, espera-se que este processo sirva como um subsídio
importante para a avaliação que necessariamente será feita na esfera pública nacional da
política de direitos humanos, dentro da agenda das conferências de direitos humanos –
cuja conferência nacional deverá se realizar em dezembro de 2008 – e da elaboração de
um novo Plano Nacional de Direitos Humanos, previsto para 2009.

234 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


IGUALDADE RACIAL

1 Apresentação
A progressiva preocupação com a questão das desigualdades raciais no âmbito das
políticas públicas brasileiras ficou ainda mais evidenciada em 2007: um trio de eventos
cujas temáticas não se identificavam propriamente com a questão da discriminação
racial – saúde, políticas para as mulheres, e segurança alimentar e nutricional – trouxe
esta matéria para os seus debates no contexto de suas conferências nacionais.
Este capítulo, entre outros objetivos, busca mostrar que, ao lado da continuidade
dos esforços no sentido de se evoluir na área das políticas universalizantes, cujo público
alvo inclui a maior parte dos negros no Brasil, há que se implementar, alocar recursos,
coordenar e monitorar iniciativas específicas para este segmento, por meio de planos,
programas e ações bem-estruturados. Do contrário, o Estado estará longe de cumprir
os preceitos antidiscriminatórios estabelecidos na Constituição de 1988.
E no bojo dos 20 anos da promulgação dessa Carta, analisam-se aqui também os
movimentos que efetivamente contribuíram para o enfrentamento de um dos mais graves
problemas de justiça social no país, consubstanciado na questão racial. A esta abordagem
o capítulo dedica a seção Tema em destaque, na qual são ainda apontados indicadores
comparativos entre negros e brancos, nas áreas de acesso à educação e de renda, antes e
depois da Constituição em vigor.
Na seção fatos relevantes destaca-se a assinatura do Decreto no 6.261, referente à
Agenda Social Quilombola, destinada à conformação do Programa Brasil Quilombola,
que envolve as áreas da saúde e da educação, investimentos em moradias e luz elétrica,
entre outros, com a participação crescente de representantes quilombolas em todo o
processo.
O acompanhamento apresentado adiante sobre o desenvolvimento dos programas
em prol da igualdade racial revela, por um lado, que houve avanços nada desprezíveis
neste campo, mas também o quanto há que se percorrer para o alcance de relações
equânimes de raça no Brasil.
2 Fatos relevantes
2.1 Agenda Social Quilombola
No dia 20 de novembro de 2007, data em que se comemorou o dia nacional da consci-
ência negra naquele ano, o governo federal lançou, por meio do Decreto no 6.261/2007,
a Agenda Social Quilombola. Visando à consolidação do Programa Brasil Quilombola, a
agenda prevê ações voltadas para quatro eixos: acesso à terra; infra-estrutura e qualidade de
vida; inclusão produtiva e desenvolvimento local; e direitos de cidadania. A implementação
das ações será realizada de forma integrada pelos diversos órgãos do governo federal, tendo
sido criado para tanto o Comitê Gestor da Agenda Social Quilombola, sob a coordenação
da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), e que conta
com a presença de nove ministérios, além da Casa Civil da Presidência da República.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 235


Durante o lançamento, foi ainda anunciado o investimento de R$ 2 bilhões para
o período 2008-2011. A iniciativa pretende atender 1.739 comunidades quilombolas,
localizadas em 330 municípios de 22 estados, e objetiva alcançar, em uma primeira
etapa, as comunidades com índices mais expressivos de vulnerabilidade social. A Agenda
Social Quilombola pretende desenvolver programas de promoção da saúde, da educação,
construção e melhoramento de unidades habitacionais, ampliação do acesso à luz elétrica,
recuperação e preservação do meio ambiente, promoção do desenvolvimento sustentável,
e fomento da participação dos representantes quilombolas na formulação, negociação
e proposição de políticas públicas. No campo da assistência social e da transferência de
renda, a meta é ampliar a cobertura do Programa Bolsa Família para 33.500 famílias
quilombolas atendidas, e construir unidades do Centro de Referência em Assistência
Social (Cras) em 850 municípios que possuam comunidades quilombolas. No que se
refere à titulação das terras, a proposta é que sejam concluídos 713 relatórios técnicos
necessários à regularização fundiária destas comunidades.
2.2 Conferências
O ano de 2007 destacou-se ainda pelo conjunto de conferências nacionais realizadas
no âmbito das políticas sociais no país, abrangendo temas de grande relevância, aí in-
cluído o da desigualdade racial. Tanto a II Conferência Nacional de Políticas para as
Mulheres, como a III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e
ainda a XIII Conferência Nacional de Saúde deram ênfase à questão racial, conforme
será examinado a seguir.
A II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres teve lugar em Brasília,
em agosto de 2007.1 Na oportunidade, definiu-se que o Plano Nacional de Políticas
para as Mulheres teria seis novos eixos prioritários de ação,2 entre os quais o que prevê
o enfrentamento a todas as formas de discriminação, como o racismo, o sexismo e a
lesbofobia. Em sua primeira versão, o plano apenas citava a desigualdade racial, não evi-
denciando o combate ao racismo enquanto meio de promoção dos direitos das mulheres
brasileiras. Com a incorporação deste novo eixo, prevê-se a elaboração de programas de
enfretamento do racismo nas instituições públicas governamentais, não governamentais
e privadas, medidas de ação afirmativa na formulação de execução de políticas públicas,
além de investimento em uma educação anti-racista. Contudo, até o momento as ações
da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) não contam com iniciativas
voltadas especificamente para as mulheres negras. Para exemplificar a complexidade das
questões que envolvem o tema, cabe lembrar que a mortalidade materna das mulheres
negras continua sendo maior que a média nacional, assim como é mais elevado o índice
de mulheres negras que nunca fizeram exame clínico de mamas: o de mulheres bran-
cas de 25 anos ou mais que nunca fizeram este exame é de 28,7%, ao passo que para
as mulheres negras é de 46,3%. Referente ao exame de colo de útero, para o mesmo
segmento etário, a proporção de mulheres negras que nunca realizaram tal exame é de
25,5%, contra 17,3% para mulheres brancas.3 Os dados são preocupantes para ambos

1. Das 2,5 mil mulheres participantes, 45% se autodeclararam pretas ou pardas. Embora nem todas as representações
tivessem um quantitativo específico de mulheres negras, o Rio de Janeiro adotou um sistema de cotas de 40% de mulheres
negras para sua representação na conferência.
2. A respeito da II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, ver o capítulo Igualdade de Gênero no número 15
deste periódico.
3. Dados referentes à Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/
IBGE) 2003, e disponíveis em IPEA; UNIFEM. Retrato das Desigualdades. 2ª ed.: Unifem / Ipea, 2006.

236 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


os grupos de mulheres, mas os piores indicadores para as mulheres negras lançam como
desafio a necessidade da incorporação do combate às iniqüidades raciais no acesso aos
serviços de saúde da mulher.
A III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em
julho de 2007, elegeu o seguinte tema central: “Por um Desenvolvimento Sustentável
com Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional”. O objetivo da conferência foi a
construção do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), além da
elaboração das propostas de diretrizes e orientações para que o Estado brasileiro promova
sua soberania alimentar, contribuindo para o alcance do direito humano à alimentação.
No debate dos três eixos temáticos definidos para a conferência,4 o tema da promoção
da igualdade racial esteve invariavelmente presente.
Tendo como referência a concretização do direito humano à alimentação adequada,
defendeu-se no evento a prioridade dos segmentos mais vulneráveis da população e, para
tanto, o reconhecimento das diversidades de gênero, geracional, étnica, racial e cultural
que caracterizam a população brasileira. Nesse sentido, desde a etapa de sua organização
foi adotado um sistema de representação proporcional nas delegações estaduais, garan-
tindo a participação na conferência de segmentos da sociedade que se encontrassem
em pior situação de insegurança alimentar e nutricional.5 Participaram como delegados
estaduais os seguintes representantes: 49 indígenas, 63 quilombolas, 40 de comunidades
de terreiros e 103 representantes da população negra, em um total de 1.333 delegados.
No que diz respeito à temática da desigualdade racial, a Conferência Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional também destacou a gravidade e as características da
exclusão da população negra, evidenciadas pelos indicadores nacionais de insegurança
alimentar e nutricional deste grupo. Propôs o maior reconhecimento das desigualdades
por razões de gênero e étnico-raciais, e a construção de programas e ações voltadas para a
segurança alimentar e nutricional destas populações que apresentam maior vulnerabilidade.6
Além disso, a conferência concluiu, entre outros, pela necessidade de: i) promover uma ali-
mentação adequada e saudável nos estabelecimentos que atendem a estes segmentos, como
escolas e hospitais, respeitando suas especificidades; ii) implementar e incorporar estratégias
diferenciadas de segurança alimentar e nutricional nas políticas públicas, reconhecendo
suas formas específicas de organização social e territorial; iii) garantir e assegurar o acesso
às políticas públicas sociais, bem como a participação de seus representantes nas instâncias
de controle social; iv) formular programas dirigidos à reparação histórica da insegurança
alimentar e nutricional destes grupos; e v) garantir recursos para a realização de censos e
pesquisas com recorte destas populações, entre elas o censo quilombola.7

4. Os três eixos temáticos da conferência foram: i) segurança alimentar e nutricional nas estratégias de desenvolvimento;
ii) a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; e iii) o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Ver, a respeito, o capítulo Assistência Social e Segurança Alimentar no número 15 deste periódico.
5. Com base em dados estatísticos e informações dos órgãos responsáveis, foram definidos quantitativos de cotas para
delegados dos povos indígenas, comunidades quilombolas, comunidades de terreiro e para a população negra.
6. Na conferência foram indicadas como populações que apresentam maior vulnerabilidade: povos indígenas, população
negra, comunidades quilombolas, comunidades de terreiro, extrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais, caboclos, e
demais povos e comunidades tradicionais.
7. Ainda relacionado ao tema, foi divulgado na conferência um documento intitulado: “Carta Aberta às Autoridades do Brasil
e do Mundo”. Consignado pelos povos indígenas, população negra, comunidades quilombolas, comunidades de terreiro,
extrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais, caboclos e demais povos e comunidades tradicionais, o documento conclama
a uma reflexão a respeito da situação destes povos, exigindo reparação em face dos danos históricos sofridos, assim como
o pleno exercício do direitos civis e coletivos.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 237


Ainda em 2007 foi realizada da XIII Conferência Nacional de Saúde, ocorrida
em novembro, em Brasília, que teve como tema central Saúde e Qualidade de Vida:
políticas de Estado e desenvolvimento. Nos três eixos temáticos em torno dos quais
se organizaram os debates,8 foram apresentadas propostas de políticas públicas para a
população negra e para as comunidades quilombolas. A par de propostas que visam à
erradicação da discriminação racial, étnica e social, consideradas como determinantes das
condições de saúde e qualidade de vida, a conferência afirmou o direito à saúde como
direito humano essencial que deve levar em consideração as necessidades e características
sociais e culturais específicos dos grupos populacionais.
A Conferência Nacional de Saúde previu, entre outros, a efetivação no SUS de
ações preventivas e campanhas de sensibilização voltadas ao combate às discriminações.
Apontou ainda para a necessidade de: i) identificar e superar as atitudes discriminatórias,
considerando o preconceito como atitude que contribui para o agravamento do processo
saúde-doença; ii) garantir e ampliar recursos financeiros na realização de pesquisas com
vistas a superar o racismo institucional no SUS; iii) garantir que o Ministério da Saúde e as
secretarias de Saúde cumpram com o direito à saúde como direito de cidadania da população
negra a partir das diretrizes do SUS e da Política Nacional da População Negra, em todos
os níveis e nos agravos mais prevalecentes nesta população; iv) promover a formação para
o trabalho das parteiras quilombolas, garantida a remuneração pelo SUS; v) reconhecer as
necessidades especiais de grupos populacionais específicos, bem como criar e implementar
uma política nacional que contemple o mapeamento dos portadores de anemia falciforme
e o atendimento de suas necessidades; e vi) garantir que seja implantada a comissão de
defesa da saúde integral da população negra, por intermédio do Conselho de Saúde.
Por fim, cabe destacar que no ano de 2007 também se realizou a VI Conferência
Nacional de Assistência Social, a qual, ao contrário das demais, limitou-se a tratar da
questão do Sistema Único de Assistência Social de forma universal: as propostas apresen-
tadas e deliberações aprovadas não incluem estratégias de enfrentamento à desigualdade
e discriminação racial.9
Conclui-se, assim, que o reconhecimento da necessidade do enfrentamento das
desigualdades raciais nas políticas setoriais, nas conferências nacionais representa mais
um avanço no caminho da promoção da igualdade racial. Entretanto, as demandas neste
campo exigem intervenções firmes em cada uma das políticas com vistas à redução das
desigualdades raciais. É importante que esta pauta continue a ser debatida nas próximas
conferências, tanto no sentido do aprofundamento das estratégias como de monitora-
mento e avaliação das iniqüidades raciais.
3 Acompanhamento da política e dos programas
Nesta seção serão abordadas algumas iniciativas de enfrentamento ao racismo e de
redução das iniqüidades raciais no ano de 2007, nos campos da saúde, da educação e
da economia solidária. Por fim será apresentada, para o mesmo período, a análise da
execução orçamentária do Programa Brasil Quilombola.

8. Os três eixos temáticos da conferência foram: i) desafios para a efetivação do direito humano à saúde no século XXI:
Estado, sociedade e padrões de desenvolvimento; ii) políticas públicas para a saúde e qualidade de vida: o SUS na Seguridade
Social e o Pacto pela Saúde; e iii) a participação da sociedade na efetivação do direito humano à saúde. Ver a respeito o
capítulo Saúde deste periódico.
9. A Conferência Nacional de Assistência Social contou com um painel sobre o tema Assistência Social: superando a into-
lerância e promovendo a inclusão.

238 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


3.1 Política Nacional de Saúde Integral da População Negra
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra foi aprovada pelo Conselho
Nacional de Saúde em novembro de 2006. Sua formulação ficou a cargo da Secretaria
de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) do Ministério da Saúde (MS), que con-
tou com o apoio do Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN). Edições
anteriores deste periódico já se incumbiram de afirmar que o texto da Política Nacional
de Saúde Integral da População Negra representa um avanço qualitativo no que se
refere à compreensão da promoção da eqüidade racial no atendimento prestado pelo
Sistema Único de Saúde (SUS).10 Ao inserir a preocupação do combate ao racismo e a
discriminação como um princípio transversal ao SUS, o referido documento acaba por
se constituir em uma importante inovação no plano da proposição de políticas públicas
no país, incluindo a temática racial no bojo das preocupações para a implementação de
uma política universal. No entanto, durante o ano de 2007, a política seguiu sem im-
plementação, por não ter sido pactuada no âmbito da Comissão Intergestora Tripartite
(CIT). É neste espaço institucional que os gestores das três esferas de governo – União,
estados e municípios – debatem e definem os termos de implementação dos programas
adotados em escala nacional, mas cuja execução é de responsabilidade local. A ausência
de pactuação representa, dessa forma, um efetivo entrave à implementação da Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra.
3.2 Educação: a Lei no 10.639/2003 e o Programa Brasil AfroAtitude
3.2.1 A implementação da Lei no 10.639/2003
Uma das mais importantes iniciativas ocorridas nos últimos anos no campo do combate às
desigualdades raciais na área da educação diz respeito à aprovação da Lei no 10.639/2003,
que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira
no ensino fundamental e médio de todo o país. Entretanto, diversos obstáculos têm se
apresentado à sua implementação. Entre eles, destaca-se a ausência de uma normatiza-
ção sobre os critérios e conteúdos necessários à implementação, resultando em diversas
experiências que muitas vezes não correspondem à vocação do projeto, que é a de pro-
mover a construção de uma cultura anti-racista e pró-diversidade no sistema de ensino.11
A ausência destes critérios e conteúdos não somente tem dificultado a construção dos
projetos educacionais, mas também reflete-se na dificuldade do Ministério Público em
fiscalizar a implementação da lei.
Buscando dar uma resposta a esses problemas, a Secretaria de Educação Continuada
e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC) vem desenvolvendo, desde 2007,
uma tentativa de padronização das experiências em curso. Como resultado deste processo
foi instituído, em dezembro daquele ano, o Grupo de Trabalho Interministerial para a
constituição de um Plano Nacional de Implementação da Lei no 10.639/2003. O plano
será fruto dos debates a serem realizados no primeiro semestre de 2008 em seis encontros
regionais sobre as experiências, avanços e dificuldades observados na implementação da lei.
Foram convidados a participar do encontro gestores estaduais e municipais de educação,
entidades dos movimentos sociais, Ministério Público, entidades do movimento negro
e órgãos da administração pública.

10. Ver, especialmente, o número 14 deste periódico.


11. Sobre as diretrizes de construção de uma cultura anti-racista e pró-diversidade da Lei no 10.639/03, ver Parecer CNE/
CP. 003/2004.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 239


As experiências, de fato, têm sido amplas e diversificadas. No âmbito do Minis-
tério da Educação (MEC), desde a promulgação da Lei no 10.639/03, vêm sendo
desenvolvidas ações voltadas à capacitação dos professores neste conteúdo. Entre as
diversas iniciativas adotadas, pode-se distinguir o curso Educação-Africanidades-Brasil,
promovido pela Secad em parceria com a Universidade de Brasília (UnB). O curso foi
estruturado em quatro unidades programáticas12 que abordaram a história e cultura
africana e afro-brasileira em seus aspectos geográficos, históricos, sociais e estéticos,
além de propor uma reflexão sobre o currículo escolar à luz do enfrentamento à dis-
criminação racial.
Oferecido na modalidade de extensão universitária a distância, o curso teve lugar
entre junho e outubro de 2006, com a carga horária de 120 horas/aula. Sua meta inicial
era capacitar 25 mil professores das escolas públicas. No entanto, devido a problemas
de ordem pedagógica e tecnológica, observou-se um alto índice de desistência, tendo
sido capacitados apenas 6.800 professores. Diante da baixa efetividade do Educação-
Africanidades-Brasil em relação aos objetivos propostos, a Secad realizou, ainda no
final de 2006, uma primeira avaliação do programa e evitou abrir novas turmas no ano
de 2007. Nos resultados desta primeira avaliação13 constataram-se duas dificuldades
principais: a de acesso dos professores cursistas e dos tutores aos mecanismos de infor-
matização necessários à realização do curso, e a de sua própria operacionalização por
propor metas de formação muito ambiciosas. O cálculo inicial no curso é que cada tutor
seria responsável pelo acompanhamento de 144 professores cursistas. Mais um proble-
ma observado foi, ao se fazer o desenho do curso, não ter sido considerada a realidade
da rede pública de ensino – marcada por problemas de escassez de recursos físicos e
humanos nas escolas. Até o início de 2008 não se tinha certeza sobre a continuidade
da experiência, uma vez que os primeiros resultados do processo avaliativo apontavam
para uma baixa eficácia da iniciativa.
Outra ação do MEC no âmbito da implementação da Lei no 10.639/2003 foi
a constituição, no ano de 2006, do Programa de Ações Afirmativas para a População
Negra nas Instituições Públicas de Educação Superior (UniAfro). O programa tem como
objetivos principais apoiar e incentivar a criação e o fortalecimento dos Núcleos de
Estudos Afro-Brasileiros (Neabs) em instituições de ensino superior públicas, com
a finalidade de promover a produção e difusão de conhecimento sobre a cultura
afro-brasileira, e subsidiar projetos de acesso e permanência de afro-brasileiros nas
universidades. O UniAfro opera via estabelecimento de protocolos de cooperação
entre o MEC e os Neabs, ou órgãos similares. Os protocolos firmados em 2006
têm validade de dois anos, podendo ser prorrogados a depender de acordo entre o
MEC e o núcleo.
No primeiro edital do programa, foram estabelecidos três eixos de ação aos quais
deveriam se adequar os projetos propostos. O primeiro era direcionado à publicação de

12. Essas unidades foram assim distribuídas: i) África: seus aspectos históricos e geográficos; ii) História do Brasil: escravismo,
as formas de resistência dos negros nos quilombos e mocambos e a religiosidade afro-brasileira; iii) Brasil Representações:
a presença negra no Brasil, as marcas de africanidade na cultura brasileira, a representação do corpo afrodescendente;
e iv) Currículo, Escola e Identidade: educação pré-escolar, imagens afro-brasileiras nos livros escolares, práticas pedagógicas
e a construção da identidade.
13. As informações da primeira avaliação do Programa Educação-Africanidades-Brasil foram divulgadas no livro SECAD;
MEC. Diversidade na Educação: experiências de formação continuada de professores. Coleção “Educação para Todos”.
Secad/MEC.

240 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


obras, materiais didático-pedagógicos e paradidáticos que contemplassem a lei, o Parecer
do CNE/CP no 003/2004, e a Resolução CNE/01/2004, que tratam sobre o conteúdo
e a metodologia de ensino da cultura e história africana e afro-brasileira. O segundo eixo
visava a projetos de formação de profissionais em educação, fossem em cursos presenciais
ou a distância, de extensão universitária ou de aperfeiçoamento, que contemplassem,
prioritariamente, as áreas de história do negro no Brasil e nas Américas, literatura afro-
brasileira e africana, história da África e educação e relações étnico-raciais. O terceiro eixo
focava a promoção do acesso e da permanência no ensino superior de estudantes negros
e o fortalecimento institucional da temática étnico-racial, além do apoio a projetos de
pesquisa nas áreas de relações étnico-raciais, ações afirmativas, história e cultura afro-
brasileira e africana. Nesta primeira edição do programa foram aprovados 22 projetos,
dos quais dez eram direcionados à capacitação de profissionais para a educação em
relações étnico-raciais.
No ano de 2007, os projetos aprovados no ano anterior continuavam operando,
destacando-se as ações de formação continuada de professores, especialmente em uni-
versidades estaduais. Nestas, a maioria dos projetos tinha como meta a capacitação de
professores, a publicação das experiências do programa e/ou material didático, assim
como o auxilio a alunos negros em sua permanência no ensino superior. Foi capacitado,
nos 10 projetos aprovados que previam ações neste campo, um total de 2.800 professores,
e há previsão de publicação de mais de 15 livros.
Cabe destacar que, ainda em 2006, tais ações, antes de responsabilidade da Secad,
migraram para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que
passou a responder pela execução financeira dos projetos. Neste novo contexto, a partir
de 2007 as ações prioritárias na implementação da lei em pauta sofrem um redireciona-
mento para a formação continuada de professores e para a produção de material didá-
tico. Nova resolução do FNDE lançada no início de 2008 define apenas duas linhas de
ações para a nova seleção de projetos para o UniAfro: i) a formação inicial e continuada
de professores e graduados em licenciatura em cursos de pedagogia; e ii) a elaboração
de material didático para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Dessa
forma, o UniAfro parece se retirar das ações de promoção do acesso e da permanência
no ensino superior de estudantes negros, e do fortalecimento institucional da temática
étnico-racial nas instituições de ensino.
Pode-se concluir, assim, que a Lei no 10.639/2003 vem enfrentando diversos pro-
blemas na sua implementação, que vão desde a definição dos conteúdos que devem ser
inseridos nos programas disciplinares até os critérios avaliativos sobre sua efetivação.
As ações desenvolvidas pelo Ministério da Educação na tentativa de constituição de
uma padronização da experiência ainda não permitem uma avaliação sobre sua eficácia
na solução destes problemas. Dada a relevância da matéria, espera-se que durante o ano
de 2008 as dificuldades sejam superadas, bem como ampliadas as metas de formação
dos projetos apoiados.
3.2.2 O Programa Brasil AfroAtitude
O Programa Integrado de Ações Afirmativas para Negros, ou Brasil AfroAtitude, foi lançado
oficialmente em dezembro de 2004 como uma parceria entre o Ministério da Educação,
por intermédio da Secretaria de Ensino Superior (SeSu), o Ministério da Saúde, por
meio do Programa Nacional de DST/AIDS (PN-DST/AIDS), a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), e a Secretaria Especial dos Direitos

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 241


Humanos (SEDH). Posteriormente, com a constituição do Programa Estratégico de Ações
Afirmativas: População Negra e AIDS, o AfroAtitude passou a compor uma de suas ações.14
O programa teve como objetivo principal o preenchimento de duas lacunas.
A primeira se refere à inexistência e/ou incipiência de apoio logístico e financeiro aos
alunos negros que entravam pelos sistemas de cotas que passaram a ser instituídos em
universidades federais e estaduais em todo o país a partir de 2001.15 A segunda, à peque-
na produção de conhecimento no campo das relações entre AIDS e população negra e
racismo. O programa teve início por meio de uma parceria entre o PN-DST/AIDS, a
SeSu/MEC, e a reitoria de dez universidades que integraram o programa,16 e sua validade
seria para o ano de 2006. Apesar de terem término previsto para o final de 2006, três
universidades permaneceram com atividades durante o ano de 2007 devido ao fato de
os termos de cooperação terem sido assinados em meados de 2006.
O AfroAtitude operava pela oferta de bolsa de estudos para alunos negros cotistas
das universidades públicas que firmaram acordo de cooperação com a SeSu e o PN-
DST/Aids. Foram oferecidas 50 bolsas para alunos em cada uma das universidades que
faziam parte de programa, o que totalizou 500 alunos atendidos. Estes eram inseridos
em atividades de pesquisa, extensão e monitoria. As bolsas eram equivalentes às do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica do Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tecnológico (Pibic/CNPq),17 com a peculiaridade de que o
projeto desenvolvido deveria se relacionar com os temas de racismo, epidemia de DST/
AIDS, direitos humanos, gênero e sexualidade. O objetivo era inserir os alunos bolsistas
na experiência acadêmica de pesquisa e extensão, e assim fomentar o ingresso de alunos
negros na produção de conhecimento nas universidades brasileiras.
Apesar do programa ter sido avaliado como bem-sucedido em praticamente todos
os seus objetivos, não existe perspectiva para a sua manutenção. Até o final de 2007,

14. O Programa Estratégico de Ações Afirmativas: População Negra e AIDS é executado pelo Ministério da Educação, por
intermédio da SeSu; Ministério da Saúde, por meio do PN- DST/AIDS; da Seppir; e da SEDH. O programa executa suas
ações com prioridade em quatro componentes principais: i) Implementação de políticas: formulação, fortalecimento ou
implementação de políticas de âmbito nacional que garantam a eqüidade nos serviços de saúde; ii) Promoção de Parcerias:
que visa à articulação e ao fortalecimento, entre organizações da sociedade civil e governamentais, de redes de apoio
à implementação de políticas públicas de promoção da igualdade racial; iii) Produção de Conhecimento: organização e
produção de novos conhecimentos, de modo a preencher as lacunas e servir de subsídio a tomada de decisões do poder
público no campo da prevenção, assistência e direitos humanos referentes à saúde da população negra; e iv) Capacitação e
Comunicação: treinamento e formação adequada para lidar como a diversidade da sociedade brasileira e com as peculiari-
dades do processo saúde/doença da população negra. O Programa Brasil AfroAtitude é uma das sete ações do componente
Promoção de Parceria. Informações contidas no Programa Estratégico de Ações Afirmativas: população negra e AIDS, março
de 2006. Disponível no site: <http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMISA787E311PTBRIE.htm>. Acesso em 25/05/2008.
15. Em 2008 identificaram-se 48 universidades públicas operando sistemas de cotas ou bonificações. Sobre o assunto, ver
o capítulo Igualdade Racial no número 15 deste periódico.
16. Foram dez universidades que fizeram parte do programa: a Universidade de Brasília, Universidade de Montes Claros
(MG), Universidade Estadual da Bahia, Universidade Estadual de Londrina (PR), Universidade Estadual de Minas Gerais,
Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade Federal da Bahia,
Universidade Federal de Alagoas e Universidade Federal do Paraná.
17. O Pibic/CNPq é um programa voltado à iniciação científica e à formação de novos talentos científicos. Direcionado para
o aluno de graduação, serve de incentivo à formação, privilegia a participação ativa de bons alunos em projetos de pesquisa
com qualidade acadêmica, mérito científico e orientação adequada, individual e continuada, e objetiva ainda fomentar os
alunos a continuar em sua formação na pós-graduação. O programa oferece bolsas de pesquisa para alunos de todo o Brasil,
conforme critérios definidos pela Resolução Normativa (RN) do CNPq no 006/1996. Cabe ressaltar que, diferentemente do
funcionamento do AfroAtitude, a RN que orienta a concessão de bolsas do Pibic não define percentuais, ou mecanismo
de acesso diferenciado para alunos cotistas ou beneficiárias de programas de ações afirmativas, e atende a alunos tanto
do sistema público de ensino quanto do privado.

242 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


sua implementação como projeto piloto não encontrou acolhida em uma instituição do
governo federal que garanta a sua continuidade.18 Com o final do termo de cooperação
que deu origem ao programa, algumas universidades buscaram manter as atividades
por meio de outras fontes de financiamento. No caso da Universidade de Brasília, as
bolsas de estudos passam a ser financiadas pela própria instituição. Entre os principais
pontos positivos do programa, pode-se indicar o caráter inovador como programa
federal de enfrentamento das desigualdades raciais, assim como de fomento da produção
de conhecimento sobre saúde e o racismo, a partir de um olhar sobre em que medida
a discriminação racial é um elemento de vulnerabilidade da população negra diante de
uma epidemia como a Aids. Outro importante elemento positivo foi o de que, além
de ser uma ação de apoio à permanência dos estudantes cotistas, o programa propicia
a criação de um espaço institucional de estudo e pesquisa envolvendo estes estudantes,
o que representa uma marca necessária à consolidação das políticas de ações afirmativas
nas universidades brasileiras.
3.3 Economia Solidária
Desde a criação da Seppir, o país vem assistindo a um expressivo crescimento nas ações
voltadas para as comunidades remanescentes de quilombos. A maior parte destas ini-
ciativas vêm sendo organizadas no âmbito do Programa Brasil Quilombola, que tem
como objetivo promover o desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais
remanescentes de quilombos. Apesar de menos conhecida, o Ministério do Trabalho
e Emprego (MTE) também vem desenvolvendo uma ação voltada para as populações
quilombolas. O programa foi criado em 2003 com o nome de Projeto de Etnodesenvol-
vimento Econômico Solidário das Comunidades Quilombolas. Em 2004 o programa foi
ampliado para cobrir outros segmentos e passa a ser denominado Programa Brasil Local:
Desenvolvimento e Economia Solidária.
O programa funciona sob a responsabilidade do Departamento de Fomento da
Secretaria Nacional de Economia Solidária do MTE e está presente em todas as Unidades
da Federação. Seu objetivo é apoiar organizações coletivas de trabalhadores em empre-
endimentos econômicos solidários, visando à geração de emprego e renda e à promoção
do desenvolvimento local sustentável. A estratégia do programa é fomentar as atividades
econômicas em desenvolvimento pelas comunidades. Para tanto, são oferecidas oficinas
e cursos de gestão e de empreendedorismo, assim como a instalação de rádios comuni-
tárias. As principais atividades produtivas fortalecidas se referem à produção agrícola de
produtos como a mandioca, seu beneficiamento na produção de farinha, a produção de
hortaliças, de café e de pimenta, entre outros produtos. A piscicultura e a produção de
artesanato também estão inseridas no principal grupo de atividades identificadas pelo
programa. Outra iniciativa a ser registrada é a construção de bancos comunitários para
facilitar o acesso dos produtores quilombolas ao microcrédito.
Em 2007, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e o
Ministério do Meio Ambiente (MMA) tornaram-se parceiros do programa, o que permi-
tiu ampliar as suas ações, atingindo um total de 510 agentes de promoção do desenvol-
vimento local e economia solidária. Destes, 12% (ou seja, 60 agentes) são agentes de et-
nodesenvolvimento quilombolas. No segundo semestre de 2007 o Programa Brasil Local

18. Sobre a questão do Programa AfroAtitude não ter encontrado acolhida em outros ministérios, ver o capítulo Igualdade
Racial do número 15 deste periódico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 243


realizou oficinas em diversos estados brasileiro, com a finalidade de capacitar comuni-
dades quilombolas para o empreendedorismo solidário e para a autogestão de recursos
econômicos. A perspectiva é que, para o período de 2008 a 2011, sejam qualificados
300 agentes de etnodesenvolvimento, que se intensifiquem e se fortaleçam as redes e
cadeias produtivas, e que se efetive a constituição de 20 bancos comunitários quilom-
bolas. O orçamento destinado para este período para o Programa Brasil Local é de cerca
de R$ 45,5 milhões.
Não há dúvida de que esse pode ser o começo de uma nova linha de ação, po-
tencialmente promissora, visando à promoção e ao desenvolvimento das comunidades
quilombolas. Contudo, em que pesem os projetos de sucesso, as experiências na linha
da geração de emprego e ocupação, do desenvolvimento local, ou do desenvolvimento
regional voltado a populações vulneráveis ou a territórios carentes e/ou economicamente
deprimidos detêm uma longa tradição de insucessos acumulados nas últimas três décadas.
Os desafios colocados neste campo são expressivos, e ainda mais significativos em função
das especificidades sociais e culturais e da diversidade que caracterizam as comunidades
quilombolas no país. O sucesso da experiência dependerá, assim, em larga medida, do
resgate dos esforços realizados até agora por experiências similares, a par da escuta atenta
das expectativas e ansiedades da população envolvida.
3.4 Combate ao racismo institucional
O tema do racismo institucional emerge no Brasil como objeto de políticas públicas em
2001, a partir dos preparativos para a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Desde então, o tema vem se
consolidando e gerando várias experiências em órgãos federais, estaduais e municipais.
Na esfera federal, destacou-se o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI),
criado em 2005 por meio de uma parceria entre Seppir, Ministério Público Federal
(MPF), Ministério da Saúde (MS), Organização Pan-Americana de Saúde (Opas),
Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional e Redução da Pobreza
(DFID) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O programa
contou ainda com ações na esfera municipal, tendo sido implementado nas cidades de
Recife e Salvador, e pelo Ministério Público do Estado de Pernambuco (MPPE). Con-
tudo, o programa tinha duração determinada, e foi concluído ao final de 2006.19
Com o fim do PCRI, muitas das atividades foram assumidas pelos parceiros.
Em Salvador, passaram a ser desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Reparação
(Semur). No primeiro semestre de 2007, a Semur realizou a II Oficina de Sistematização
dos Resultados do Programa, que, além dos representantes das prefeituras de Recife e
Salvador, contou com a participação do Ministério Público do Estado de Pernambuco
(MPPE). Entre as ações realizadas pode-se ainda citar a de sensibilização de funcionários
e gestores de políticas públicas para a identificação e combate ao racismo institucional, e
a formação de bancos de dados com recorte racial nos diversos setores da administração
pública. Nesse sentido, em maio de 2007 a Secretaria realizou uma oficina com gestores
e funcionários do Serviço Municipal de Intermediação de Mão-de-obra (Simm), visando
sensibilizar aqueles que trabalham no atendimento ao público sobre a importância do
preenchimento do quesito cor nos formulários de cadastro, assim como a forma correta

19. Sobre o histórico do Programa de Combate ao Racismo Institucional, seus objetivos e ações, ver o capítulo Igualdade
Racial no número 14 deste periódico.

244 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


de abordar a questão junto aos candidatos. Atualmente as atividades de combate ao
racismo institucional na prefeitura contam com a participação das secretarias de Edu-
cação, Saúde, Administração, Habitação, Relações Internacionais e Desenvolvimento
Social, além das superintendências de Políticas para a Mulher e Conservação do Solo.
No que se refere à saúde da população negra, pode-se destacar a realização, em Salvador,
do Seminário de Formação de Ouvidorias para Atendimento às denúncias de Racismo
Institucional na Saúde, que teve por objetivos: capacitar técnicos da ouvidoria para acolher
e encaminhar as queixas relativas às vítimas de racismo e racismo institucional; discutir
o estabelecimento de um fluxo para as denúncias de racismo no atendimento da saúde;
e sensibilizar a ouvidoria para identificar as denúncias na perspectiva do racismo.20
O MPPE também vem dando continuidade às ações de combate ao racismo insti-
tucional. Em novembro de 2007 foi lançada campanha para a divulgação da existência
do problema e da forma como o racismo limita as oportunidades sociais da população
negra. A campanha foi desenvolvida pelo GT Racismo e pela Assessoria de Comunicação
do MPPE, e contou com banners, cartazes, panfletos, bottons e adesivos que foram dis-
tribuídos entre os promotores e procuradores de justiça, assim como a entidades ligadas
à defesa dos direitos da população negra – e ainda a demais órgãos públicos. Também
foi produzido um spot de vídeo, veiculado na TV Universitária.21
No Ministério da Saúde (MS), o PCRI foi substituído pela campanha Combate
ao Racismo Institucional. A nova ação visa atuar de modo abrangente no SUS e, neste
sentido, o fomento à participação social nas instâncias estaduais e municipais de gestão
da política de saúde torna-se uma estratégia necessária ao enfrentamento do racismo
institucional. Esta necessidade deriva da descentralização que caracteriza o SUS, cuja
responsabilidade de gestão se encontra partilhada entre os governos federal, estaduais
e municipais . No ano de 2006, teve início o Projeto Participação e Controle Social da
População Negra em Saúde, resultante de uma parceria entre o MS, por meio da Secre-
taria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) e a Organização de Mulheres Negras
Criolas – sediada na cidade do Rio de Janeiro. O projeto tinha como meta a realização
de capacitações em todo o país, com o objetivo de ampliar a participação de organizações
negras nos processos de delineamento, negociação, implementação e monitoramento
de políticas públicas voltadas para  saúde da população negra nas diferentes esferas de
governo. No ano de 2007, o projeto capacitou um total de 150 lideranças de orga-
nizações negras de todo o território nacional. Ainda enquanto produto do projeto, foi
elaborado o Manual Participação e Controle Social para Eqüidade em Saúde da Popu-
lação Negra, que se propõe a dar suporte às iniciativas para o controle social da ações
em saúde da população negra, bem como propiciar um mapeamento de atividades  em
desenvolvimento.

20. Informações contidas no Relatório de Ações da Semur – ano 2007.


21. Boletim informativo do GT Racismo do MPPE no 10. Dezembro de 2007.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 245


3.5 Execução orçamentária do Programa Brasil Quilombola
O Brasil Quilombola é um programa interministerial criado em 2004 com o objetivo de
promover o desenvolvimento das comunidades quilombolas, a partir de uma estratégia
sustentável e observando as especificidades históricas e culturais destas comunidades.
As ações do programa são executadas pelo Ministério da Saúde (MS), Ministério da Edu-
cação (MEC), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e Secretaria Especial de
Promoção da Igualdade Racial (Seppir). A Seppir coordena o programa e é encarregada de
promover a integração das ações finalísticas desenvolvidas pelos outros ministérios. O Brasil
Quilombola é atualmente o principal programa da Seppir e representa, no plano do Poder
Executivo, a efetivação do direito à posse das terras pelas comunidades remanescentes de
quilombos, conforme previsto na Constituição Federal, além da promoção do acesso destas
populações às políticas públicas. O MDA é encarregado do processo de reconhecimento,
identificação e demarcação das áreas quilombolas, enquanto o MEC é responsável pela
construção, ampliação e reforma das escolas em comunidades quilombolas, assim como
por promover a distribuição e material de didático e responder pela formação continuada
de professores. Ao MS, por sua vez, cabem as ações de prevenção, promoção e recupe-
ração da saúde da população das comunidades, de forma integral e contínua. A tabela 1
apresenta o orçamento do Programa Brasil Quilombola e sua execução orçamentária nos
anos de 2006 e 2007.
TABELA 1
Execução orçamentária do Programa Brasil Quilombola (2006 e 2007)
(em R$ 1,00 – valores corrigidos)1

2006 2007
Dotação Autorizado Nível de Dotação Autorizado Nível de
Ministério Liquidado Liquidado
inicial (lei + créditos) execução (%) inicial (lei + créditos) Execução (%)
  (A) (B) (C) (C/B)) (E) (F) (G) (G/F)
MS - - - 0,0 200.000 200.000 70.899 35,4
MEC 5.356.434 5.356.434 3.047.336 56,9 5.172.000 197.200 - 0,0
MDA 34.657.632 34.957.973 9.944.502 28,4 31.800.234 31.001.274 7.345.517 23,7
Seppir 13.875.740 13.875.740 6.661.412 48,0 13.999.000 13.999.000 7.123.460 50,9
Total 53.889.805 54.190.146 19.653.250 36,27% 51.171.234 45.397.474 14.539.876 32,03%
Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal/Secretaria do Tesouro Nacional (Siafi/STN).
Elaboração: Diretoria de Estudos Sociais do Ipea (Disoc/Ipea).
Nota: 1 Valores atualizados pelo IPCA* médio.
*IPCA: Índice de Preços ao Consumidor Amplo.

Nota-se, pela tabela 1, uma queda expressiva no valor autorizado para o programa
entre os anos de 2006 e 2007. A diferença de recursos no período é de mais de R$ 8,7
milhões em valores reais. Chama atenção ainda o reduzido percentual de sua execução
financeira, tanto em 2006 (36,27%) como em 2007 (32,03%). Na área da saúde, até
2006, os recursos alocados para as ações em áreas quilombolas não tinham dotação
orçamentária própria, estando inseridos na ação, de caráter mais geral, chamada Saúde
da População Negra. Em 2007, é instituída uma alocação orçamentária específica, que,
entretanto, além do restrito valor, tampouco efetivou um nível de execução expressivo.
Estes recursos são destinados basicamente a repasses via convênios com prefeituras,
visando ao atendimento àquelas comunidades em matéria de saúde.
Destaca-se também na tabela a praticamente não-execução do orçamento do MEC
em 2007. A queda de execução orçamentária do MEC no ano de 2007 foi a mais sig-
nificativa entre os ministérios. Seu orçamento no Brasil Quilombola em 2006 foi de
mais de R$ 5,3 milhões, tendo sido executados 56,9% deste valor. No ano de 2007 o
orçamento autorizado do programa foi reduzido para apenas R$ 197,2 mil mas, até o

246 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


início de 2008, o ministério não havia sequer apresentado a execução do valor. Tal fato
pode ser explicado, ao menos em parte, pelas mudanças ocorridas na política de educação,
decorrentes da implantação do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). Insti-
tuindo os Planos de Ações Articuladas (PAR), de caráter plurianual, o PDE reestrutura
as transferências voluntárias da União, em substituição à prática anterior de realização
de convênios unidimensionais e efêmeros.22 O PAR deve envolver todas as atividades e
projetos educativos do município, incluindo os voltados às comunidades quilombolas.
A novidade em termos de planejamento e as dificuldades para sua elaboração afetaram
as alocações do Programa Brasil Quilombola.23
Por fim, destaca-se a continuidade da baixa execução orçamentária do MDA, incum-
bido das titulações de terras quilombolas por meio do Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra). No que se refere à titulação das terras quilombolas, nota-se
a permanência da tendência indicada em edições anteriores deste periódico, em que o
processo de titulação realizado pelo Incra / MDA não acompanha o reconhecimento
oficial da condição de comunidade quilombola realizado pela Fundação Cultural Palmares
(FCP). Em 2007 foram emitidas 140 certidões de reconhecimento a comunidades
quilombolas. Em contrapartida, foram tituladas apenas quatro de comunidades. Como
resultado deste fenômeno observa-se um acúmulo de processos no Incra aguardando
a titulação. Atualmente são 496 processos de titulação abertos e a tendência é que este
número aumente, uma vez que só no ano de 2007 foram abertos mais 28 processos.
A Seppir foi o único parceiro do programa que chegou a 50% do orçamento exe-
cutado – índice, contudo, ainda bastante baixo. A execução orçamentária do Programa
Brasil Quilombola indica dificuldades ema sua operacionalização, o mais importante no
âmbito da Seppir.
4 Tema em destaque
Esta seção analisa a construção da igualdade racial no Brasil nos últimos 20 anos, à luz
das mudanças decorrentes da promulgação da Constituição Federal de 1988. Por um
lado, com a nova Constituição, o país adotou um modelo de universalização das políticas
sociais, com impactos positivos na redução das desigualdades raciais. Por outro, e refle-
tindo a reorganização do movimento negro no contexto de consolidação democrática,
tornaram-se públicas as demandas pelo fim do racismo e da discriminação racial: os
temas passaram a integrar a agenda política nacional, dando origem assim a um novo
conjunto de políticas públicas.
4.1 A Questão racial na Constituinte
Até o início dos anos 1980, o debate sobre a necessidade de implementação de políticas
públicas voltadas para a redução das desigualdades raciais inexistia em âmbito oficial.
No discurso governamental, afirmava-se a ausência de discriminação racial no Brasil, não
havendo dessa forma necessidade de tomar qualquer medida para assegurar a igualdade
racial no país. Com a democratização e o retorno do tema ao debate público, amplia-se
a reflexão sobre as desigualdades e a discriminação racial e o racismo, assim como sobre
as políticas necessárias para corrigir seus efeitos.

22. O PAR é um plano estratégico orientado em quatro dimensões: gestão, relação com a comunidade, projeto pedagógico
e infra-estrutura. Ver, a respeito, o capítulo Educação deste periódico.
23. Cabe lembrar aqui a dificuldade de construção de escolas em terras quilombolas devido ao baixo índice de titulação
destas terras e à proibição legal de construções públicas em áreas de posse não regulamentadas.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 247


O movimento negro, em meados da década de 1980, empenhou-se na demanda
de reconhecimento por ações de enfrentamento das desigualdades raciais na nova
Constituição. Em diversos estados brasileiros foram realizados encontros regionais e
de comunidades negras rurais, com o intuito de construir propostas para promover a
população negra e combater o racismo e a discriminação racial na nova ordem política
que se instaurava. Destaca-se o I Encontro de Comunidades Negras Rurais do Maranhão,
que teve como tema O Negro na Constituição, realizado em 1986, e o Encontro de
Negros do Norte e Nordeste, cujo tema foi Terra de Quilombo. No entanto, a princi-
pal iniciativa no contexto pré-constituinte foi a realização, no ano de 1986, na cidade
de Brasília, da Convenção Nacional do Negro, com o tema O Negro e a Constituinte.
O encontro, que contou com a participação de militantes de diversos estados brasileiros,
adotou as propostas de racismo enquanto crime e sobre o direito à posse de suas terras
às comunidades quilombolas, ambas incorporadas à Constituição.24
Contudo, se os temas dos quilombolas e da discriminação racial tiveram recepti-
vidade no texto constitucional, no contexto da Assembléia Constituinte outras ações
de promoção da igualdade racial não encontraram eco. Décadas de afirmação de que
o Brasil vivia uma democracia racial faziam com que fosse inviabilizado o reconheci-
mento das desigualdades raciais como problema social específico. Estas, na melhor das
hipóteses, eram reconhecidas como parte e conseqüência de um problema mais geral
de justiça social.
Produto desse contexto, a Constituição Federal possui como marco a afirmação da
igualdade, defesa da justiça, o combate aos preconceitos, o repúdio ao racismo e a defesa
da pluralidade. Nestes termos, um de seus avanços foi reconhecer o racismo como um
crime inafiançável e imprescritível.25 Nesse sentido, ela dá continuidade à trajetória iniciada
durante os anos 1980 e a primeira metade dos anos 1990, quando as principais ações
no enfrentamento ao racismo e à discriminação se deram basicamente em dois campos:
o da criminalização do racismo26 e o da reafirmação/valorização da cultura negra. Estes
eram elementos centrais da estratégia política do movimento negro no questionamento
da ideologia da democracia racial nas décadas de 1970 e 1980.
4.2 Principais mudanças institucionais pós-1988
Tanto no plano do reconhecimento da contribuição negra na formação nacional como
no de valorização da população negra e de suas manifestações culturais e religiosas, uma
das primeiras ações no âmbito do governo federal durante o período da redemocrati-
zação do país foi a criação da Fundação Cultural Palmares (FCP), em agosto de 1988.
Seu objetivo era “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos
decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”.27 A FCP é uma
entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura e, com o passar dos anos, foi
assumindo maior importância política e tornou-se um dos principais interlocutores

24. Ver, a respeito, VERENA, Alberti; PEREIRA, Almicar A. (orgs.) Histórias do Movimento Negro no Brasil: depoimentos
ao CPDOC. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 2007. O livro é uma coletânea de depoimentos de lideranças negras dos anos 1970 e
1980, organizados por temas, entre os quais as mobilizações em torno do ano de 1988 e o processo constituinte.
25. Tratando-se especificamente da Constituição de 1988, outro grande avanço foi o reconhecimento dos territórios qui-
lombolas como bem cultural nacional, além de abrir-lhes a possibilidade do direito a posse de suas terras.
26. A criminalização do racismo já estava em vigor desde 1988. A Lei no 7.437, de dezembro de 1985, também conhecida
como a Lei Caó, incluía entre as contravenções penais as práticas e atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou
de estado civil. Ela foi seguida, posteriormente, por diversas outras leis, como a Lei no 7.668/1988 e a Lei no 7.716/1989.
27. Artigo 1o da Lei Federal no 7.668, de 22.08.88, que a institui.

248 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


da relação entre o governo federal e a sociedade civil referente à cultura e à população
afro-brasileira.
No entanto, os anos subseqüentes à criação da FCP assistiram a poucos progressos
no que se refere à promoção da igualdade racial por parte do governo federal. Somente
em 1995, em resposta à organização, pelo movimento negro, da Marcha Zumbi dos
Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, o governo federal voltou a atuar,
instituindo o Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra,
ligado ao Ministério da Justiça. Como decorrência do trabalho do grupo, o ministério
lançou, já em 1996, o I Programa Nacional dos Direitos Humanos, contendo um tópico
destinado à população negra. No mesmo ano foi criado o Grupo de Trabalho para a
Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTDEO), no âmbito do
Ministério do Trabalho, e em 1997 foi lançado o Programa Brasil, Gênero e Raça, visando
à implementação de Núcleos de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Combate
à Discriminação no Emprego e na Profissão nas Delegacias Regionais do Trabalho.
Entretanto, os resultados destas iniciativas foram limitados.28
Em 2001, enquanto desdobramento da mobilização relacionada à realização da
III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e
as Formas Conexas de Intolerância em Durban, o Brasil assumiu o compromisso de
implementar políticas de Estado de combate ao racismo e de reduzir as desigualdades
raciais verificadas na sociedade, donde novas iniciativas foram adotadas. Surgiu então o
Conselho Nacional de Combate à Discriminação Racial (CNCD), ligado à Secretaria
de Estado de Direitos Humanos, ao mesmo tempo em que tiveram início programas
de ações afirmativas em diversos ministérios.29
Em 2003 ocorreram duas mudanças significativas no que se refere à promoção da
igualdade racial. A primeira foi a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (Seppir), que possui status de ministério e é encarregada de articular
as ações do governo federal de combate à discriminação racial. A segunda mudança de
peso nesse contexto foi a instituição, no âmbito da Seppir, do Conselho Nacional de
Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), cuja composição inclui representantes dos
ministérios e dos movimentos sociais, assim como a representação de populações étnica e
racialmente marginalizadas na sociedade brasileira. Em 2005, realizou-se a I Conferência
Nacional de Promoção da Igualdade Racial.30
4.3 As políticas universais e as desigualdades raciais
O período constituinte foi fortemente marcado pelo debate sobre a precariedade de
atendimento da população brasileira pelas políticas sociais. No que diz respeito à
população negra, o diagnóstico mais freqüente apontava para a cobertura especialmente
limitada destas políticas, fazendo com que este grupo tivesse acesso ainda mais restrito
aos serviços de educação, saúde e proteção social, entre outros. Efetivamente, em 1987,
uma em cada cinco crianças negras não tinha acesso à escolarização elementar, e 63%
não tinham acesso à educação média. Os serviços e benefícios dos sistemas de saúde e

28. Ver, a respeito, a edição especial (número 13) deste periódico.


29. Foram desenvolvidos programas pelos ministérios do Desenvolvimento Agrário, Justiça, Relações Exteriores, Cultura e
Educação. Ver, a respeito, JACCOUD, Luciana; BEGHIN, Nathalie. Desigualdades Raciais no Brasil: um balanço da
intervenção governamental. Brasília: Ipea, 2002.
30. Para mais detalhes sobre as principais mudanças institucionais no que se refere à promoção da igualdade racial, ver o
capítulo Igualdade Racial no número 13 deste periódico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 249


de previdência social, à mesma época, eram igualmente inacessíveis à maior parte deste
segmento da população, inserido em relações de trabalho informais. Finalmente, não
havia qualquer sistema de garantia de renda para a população mais pobre, e as pensões
não contributivas eram apenas incipientes. Ou seja, no final da década de 1980 pouco se
discutiu sobre a necessidade de políticas específicas para melhorar os patamares de inser-
ção e integração da população negra à sociedade. A universalização do acesso às políticas
sociais que, via de regra, não atingia grandes contingentes da população pobre, composta
majoritariamente de negros, representaria efetivamente uma relevante conquista.
A reorganização do Estado brasileiro engendrada pela Constituição de 1988 dotou
a política social de certa prioridade orçamentária e permitiu a sua progressiva universa-
lização. Embora com dificuldades no que se refere à garantia de qualidade, os serviços
de educação e saúde foram ampliando progressivamente suas coberturas, com impactos
expressivos na redução da desigualdade de acesso entre brancos e negros. Notam-se,
com base na tabela 2, os avanços na ampliação da freqüência líquida à educação, tendo
como parâmetros o ano de 1987, antes da Constituinte, e 2006. A freqüência líquida
informa sobre a freqüência dos estudantes nas séries ou etapas de ensino que efetivamente
deveriam estar cursando, se consideradas suas respectivas idades. Assim, a tabela mostra
o percentual de crianças entre 7 e 10 anos que estavam freqüentando uma das séries da
primeira etapa do ensino fundamental (1a a 4a séries); em seguida mostra o percentual
de crianças entre 11 e 14 anos que estavam freqüentando uma das séries da segunda
etapa do ensino fundamental (5a a 8a séries); por fim a tabela conclui com dados sobre
os jovens de 15 a 17 anos freqüentando ensino médio em 1987 e 2006 – para negros e
brancos em cada modalidade de ensino.
TABELA 2
Acesso à educação por faixa etária, cor/raça (1987 e 2006)
1987 2006
  Crianças de 7 a 10 anos
Brancos Negros Brancos Negros
Não freqüentam 9,5% 20,0% 1,0% 2,1%
Freqüência adequada 85,2% 70,2% 96,2% 93,7%
Freqüência defasada 5,3% 9,8% 2,8% 4,2%
  Crianças de 11 a 14 anos
Brancos Negros Brancos Negros
Não freqüentam 17,3% 23,0% 2,2% 3,8%
Freqüência adequada 62,3% 37,2% 91,9% 83,6%
Freqüência defasada 20,4% 39,7% 5,9% 12,6%
  Adolescentes de 15 a 17 anos
Brancos Negros Brancos Negros
Não freqüentam 61,4% 64,4% 14,9% 20,4%
Freqüência adequada 20,1% 8,2% 73,0% 54,5%
Freqüência defasada 18,4% 27,4% 12,1% 25,1%

Fonte: Microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE).
Elaboração: Disoc/Ipea.

É visível a melhoria na freqüência líquida de ambos os grupos. A proporção de


crianças negras entre 7 e 10 anos fora da escola caiu, nessas duas décadas, de 20% para
apenas 2%. Para a faixa entre 11 e 14 anos, o número de crianças brancas e negras que
não freqüentavam a escola também observou uma queda importante. Contudo, consi-
derada especificamente a freqüência líquida, constata-se a manutenção de diferença entre
os grupos, apesar de ter sofrido importante diminuição. Em 2006, 12,6% das crianças
negras entre 11 e 14 anos ainda freqüentavam a primeira etapa do ensino fundamental
– apenas 5,9% das crianças brancas se encontravam nesta situação.

250 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


A melhoria no acesso às duas etapas do ensino fundamental se traduziu em um
maior acesso dos jovens entre 15 a 17 anos a níveis superiores de educação. Segundo a
tabela 2, em 1987 apenas um número irrisório de jovens negros (8%) chegava ao ensino
médio na idade adequada. Dos demais, 27% ainda estavam no ensino fundamental e
65% já estavam fora da escola. Em 2006, aumentou para 54% a proporção de jovens
negros que freqüentavam o ensino médio na idade adequada. O número dos jovens
negros fora da escola também se reduziu expressivamente
Observa-se assim que, não obstante a inegável melhoria do acesso da população
como um todo e da população negra em especial à educação fundamental, as políticas
universais vêm demonstrando uma baixa eficácia na redução das desigualdades educa-
cionais entre negros e brancos nos demais níveis e, em alguns casos, até operou para a
ampliação destas. A tabela 3 apresenta a evolução da taxa de freqüência líquida no ensino
superior, por cor/raça, para os anos de 1992 a 2006, em que também se verifica tal efeito:
em 1992, a diferença entre a taxa de freqüência líquida, no ensino superior, entre brancos
e negros, era de 5,8; em 2006, esta diferença havia subido para 12,9 pontos.
TABELA 3
Taxa de freqüência líquida no ensino superior (18 a 24 anos), segundo cor/raça (1992 a 2005)

Cor/raça 1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Branca 7,3 7,8 9,3 9,4 10,1 11,1 11,9 14,1 15,5 16,6 16,1 17,3 19,2
Negra 1,5 1,5 2,0 1,8 2,0 2,1 2,5 3,2 3,8 4,4 4,9 5,5 6,3

Fonte: Microdados da Pnad/IBGE.


Elaboração: Disoc/Ipea.
Obs.: 1. A Pnad não foi realizada em 1994 e 2000.
2. População negra é composta por pretos e pardos.
3. A partir de 2004, a Pnad passou a contemplar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

No tocante à política de saúde, a população negra experimentou tanto melhorias


quanto dificuldades no acesso aos serviços. O Sistema Único de Saúde (SUS), que garante
a universalização do acesso à saúde no Brasil, foi regulamentado em 1990, por meio da
Lei no 8.080.31 Sua operação permitiu que a população negra passasse a contar com um
melhor acesso aos atendimentos neste campo. Porém, os dados do Suplemento Saúde
da Pnad realizada nos anos de 1998 e 2003 revelam que, apesar da melhoria no acesso
aos serviços de saúde, ainda persiste uma diferença entre brancos e negros. No ano
de 1998, a proporção de pessoas brancas atendidas no sistema de saúde32 foi de 13,9,
enquanto para a população negra era de 11,4. Em 2003 estes índices foram de 15,5 para
brancos e de 13,0 para negros. Outro dado revelado pelo suplemento Saúde da Pnad para os
dois anos refere-se à proporção de pessoas que nunca haviam realizado consulta odontológi-
ca. Em 1998 a proporção de brancos que nunca realizaram uma consulta odontológica era
de 14,2, enquanto a de negros era de 24,3. Em 2003 esta proporção apresentou uma
pequena queda: para brancos a proporção foi de 12,0 enquanto para negros ela ficou
em 20,2. Da mesma forma, os dados colhidos pelo suplemento da Pnad 2003 sobre a
saúde da mulher indicou um acesso diferenciado entre brancas e negras aos serviços de
maior complexidade.

31. Sobre esses aspectos, ver o capítulo Saúde do número 13 deste periódico. Ver também MARINHO, Alexandre et al.
Avaliação descritiva da Rede Hospitalar dos Sistema Único de Saúde (SUS). Rio de Janeiro: Ipea, 2001
(Texto para Discussão, n. 848).
32. Esse índice refere-se à proporção de pessoas atendidas no sistema de saúde, em um período de duas semanas, em
relação à população geral.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 251


Dessa forma, observa-se que a garantia universal de atendimento básico à saúde
representou uma efetiva ampliação do acesso da população negra a estes serviços. Até
a criação do SUS, a assistência pública em atendimento de saúde era prestada pelo
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), mantendo-se
restrita aos trabalhadores que contribuíssem para a Previdência Social e seus dependentes.
O predomínio das relações informais e das atividades precárias no que diz respeito às
condições de trabalho da população negra mantinha-as largamente excluídas do sistema
previdenciário, também no que se tange aos serviços de saúde. Contudo, os dados da
última década33 mostram que desigualdades na saúde ainda são observadas em várias
dimensões que impactam até mesmo sob a forma de mais altas taxas de mortalidade e
morbidade desta população.
Outra importante mudança introduzida pela Constituição de 1988 no âmbito das
políticas sociais se refere à previdência social e à assistência social. Os benefícios assisten-
ciais não contributivos, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a expansão da
cobertura previdenciária em direção ao trabalhador rural, e a fixação do novo piso do
regime geral indexado ao salário mínimo beneficiaram sobremaneira a população mais
pobre, aí incluída a população negra. No BPC, as famílias negras atendidas representam
62% dos beneficiários. Em 2006, entre os favorecidos por benefícios previdenciários no
valor de um salário mínimo, 49% eram negros, enquanto entre aqueles que recebiam
benefícios superiores a um salário mínimo, a representatividade dos negros cai para 28%
do total. Este fato pode ser explicado, em larga medida, pelas grandes desigualdades
raciais verificadas no mercado de trabalho.
Mais recentemente, a criação de programas assistenciais explicitamente focalizados
sobre as famílias mais pobres também significou um fator de redução de desigualdades
raciais. O Programa Bolsa Família (BPC) vem atendendo a uma maioria significativa
de famílias negras: estas chegaram a representar 70% dos beneficiários do programa em
2006. O êxito dos programas assistenciais como o BPC e o Bolsa Família, assim como
a ampliação de acesso aos benefícios previdenciários, ajudou na redução das desigual-
dades de renda observadas entre negros e brancos nos últimos quatro anos, o que pode
ser visualizado no gráfico 1, que demonstra a razão de renda entre negros e brancos nos
últimos 20 anos.

33. Os dados permanentes sobre as desigualdades em saúde passaram a ser produzidos a partir de 2004, com a inserção
do quesito cor nos formulário do SUS. Estas informações permitem indicar a amplitude das iniqüidades em saúde, dando
um quadro geral que foi publicado, pela primeira vez, no relatório Saúde Brasil 2006: uma análise das desigualdades em
saúde. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/saude_brasil_2006.pdf>. Acesso em 01/06/2008.

252 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


GRÁFICO 1
Razão de renda entre negros e brancos

Fonte: Microdados da Pnad/IBGE.


Elaboração: Disoc/Ipea.

Como mostra o gráfico, após décadas em que a razão de renda domiciliar per capita
entre negros e brancos esteve bastante estável, próximo a 2,40, este indicador começou a
cair em 2001, atingindo, em 2006, a marca de 2,11. Trata-se de uma queda sem dúvida
relevante e expressiva, na medida em que 20% da desigualdade na renda domiciliar
per capita foram eliminados em seis anos. Embora falte muito para chegar ao ponto
de igualdade entre brancos e negros (razão de renda entre os grupos igual a 1 ponto),
é significativo que pela primeira vez em um longo período, que até mesmo antecede o
coberto pelo gráfico, tenha havido mudança contínua no índice de desigualdade.
A razão dessa queda ainda precisa ser melhor documentada, mas não há dúvida de
que parte dela está diretamente relacionada com a queda generalizada da desigualdade
no Brasil. Sendo negros maioria entre os beneficiários do BPC, do Programa Bolsa Fa-
mília e dos benefícios previdenciários indexados a um salário mínimo, sua ampliação
representou um movimento pró-igualdade racial, ainda que nenhuma destas iniciativas
tivesse uma orientação específica em prol da redução das desigualdades entre negros e
brancos. Igualmente, as melhorias na distribuição dos rendimentos do trabalho – acar-
retadas tanto por políticas públicas de regulação do mercado de trabalho, como pelo
aumento do salário mínimo e pelas melhorias no perfil educacional da população em
idade ativa (PIA) – contribuíram no sentido de reduzir as desigualdades raciais.
4.4 As ações afirmativas como resposta às limitações das políticas universais no
enfrentamento das desigualdades raciais
Políticas sociais sólidas e universais são imprescindíveis para o combate às desigualdades
raciais em um país com histórico de racialização da pobreza, como é o caso do Brasil.
No entanto, estas são respostas que precisam ser complementadas por ações específicas
de eliminação das desigualdades raciais nas várias dimensões da proteção e da promoção
do bem-estar social. Nesse sentido, é necessário destacar os processos sociais que estão
na origem das desigualdades raciais: a discriminação racial e o racismo que atuam de
forma a restringir a igualdade de oportunidades e alimentam a manutenção da população
negra nas piores posições da sociedade brasileira.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 253


No campo da educação, por exemplo, estudos e pesquisas vêm revelando que
práticas e opiniões racistas e discriminatórias manifestadas, seja de maneira direta, seja
velada, ainda são vivenciadas pelos estudantes dentro do ambiente escolar, operando
no reforço de auto-imagens negativas destes alunos, e de naturalização de sua situação
de pobreza e da subalternidade. Desigualdades raciais na escola vão se construindo no
cotidiano da vida escolar, passando, segundo depoimentos colhidos em trabalhos de
cunho etnográfico, de sentimentos de constrangimento e inadequação decorrentes de
seu tipo físico, cor de pele, cabelo e pertencimento racial, até a naturalização de posições
sociais subalternas e de insucesso escolar.34
Assim, se as causas das desigualdades passadas e presentes das trajetórias escolares
de brancos e negros, registradas pelos indicadores educacionais, podem ser explicadas em
parte por diferenças socioeconômicas das famílias, as pesquisas recentes vêm informan-
do que estas também têm origem no interior do sistema escolar. Como já destacaram
Osório e Soares, “além de serem prejudicados por ter uma origem mais humilde, o que
dificulta o acesso e a permanência na escola, os negros são prejudicados dentro do sistema
de ensino, que se mostra incapaz de mantê-los e de compensar eventuais desigualdades
que impeçam a sua boa progressão educacional”.35 De fato, além de não enfrentarem o
desafio colocado pela maior repetência e evasão dos alunos negros, as escolas brasileiras
são, elas próprias, geradoras de parte significativa das diferenças encontradas neste campo.
Isso porque tais desigualdades também têm origem em tratamentos diferenciados e em
manifestações diretas ou indiretas de discriminação, aí incluída a atuação dos professores
em sala de aula e suas expectativas com relação aos alunos brancos e negros.36
A par dos dados referentes à educação básica, as desigualdades raciais podem ser
encontradas em outros campos, como a área da saúde, aqui citada, a de segurança pública,
acesso à justiça ou trabalho. Como constata um documento do Ministério da Saúde,
O racismo se reafirma no dia-a-dia pela linguagem comum, se mantém e se alimenta pela
tradição e pela cultura, influencia a vida, o funcionamento das instituições e também as
relações entre as pessoas; é condição histórica e traz consigo o preconceito e a discriminação,
afetando a população negra de todas as camadas sociais.37

Seu enfrentamento impõe a adoção de políticas, programas e ações específicos


voltados à população negra, associados e integrados às políticas universais, de modo a
garantir o acesso continuado e as oportunidades iguais aos grupos branco e negro. Este
é o ponto no qual as políticas de ações afirmativas, as políticas valorizativas e os pro-
gramas de combate ao racismo institucional demonstram sua utilidade. Eles devem ter
por objetivo acelerar o processo de redução das desigualdades e combater os mecanismos
institucionais que levam à reprodução de tratamentos diferenciados.
Por fim, cumpre lembrar que, de fato, a universalização das políticas sociais, a
promoção de ações de combate à pobreza e a melhoria do mercado de trabalho e de

34. Ver, por exemplo, ZANETTI, Julia et al. Se eles soubessem...Narrativas juvenis sobre relações raciais e escola.
In: ANAIS DO IV CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISADORES NEGROS. Salvador, 2006.
35. OSÓRIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei. A geração 80: um documentário estatístico sobre a produção das dife-
renças educacionais entre negros e brancos. In: SOARES, Sergei (org.) Os mecanismos de Discriminação Racial nas
escolas Brasileiras. Brasília: Ipea, 2005.
36. Ver, a respeito: BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. A qualidade da escola e as desigualdades raciais no Brasil.
In: Soares (org.) Os mecanismos de Discriminação Racial nas escolas Brasileiras. Brasília: Ipea, 2005.
37. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Ministério da Saúde, 2006.

254 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


renda impactam de maneira muito positiva nas condições de vida da população negra
e na redução das desigualdades raciais. Contudo, cabe estar atento para o fato de que o
próprio funcionamento das políticas públicas e suas instituições guardam mecanismos de
reprodução de discriminação racial – o que implica, para além do acesso proporcionado
pelas políticas universais, uma contínua pauta de luta contra o racismo institucional.
Nos últimos 20 anos a discussão sobre as ações de combate às desigualdades raciais e
à discriminação indireta têm crescido no país, e fomentado as primeiras experiências
na formulação e implementação de políticas e programas de seu enfrentamento. Um
conjunto ainda incipiente, mas crescente de ações voltadas a essa finalidade vem sendo
implementados, e de sua consolidação depende parte importante da promoção de maior
igualdade racial no país.
5 Considerações finais
No campo da implementação das políticas públicas, a seção de acompanhamento
apresenta informações preocupantes sobre a consolidação da temática do combate
às desigualdades raciais e ao racismo institucional. Ao final de 2007, importantes e
bem-sucedidos programas não encontravam garantias de continuidade, como é o caso
do Brasil AfroAtitude, ou apresentavam uma trajetória marcada por descontinuidades,
como são os casos do UniAfro e do Programa de Combate ao Racismo Institucional.
Outros programas vêm atuando durante 2008 com coberturas limitadas. De forma
geral, pode-se inferir, com base na análise das trajetórias dos programas, que o campo
da promoção da igualdade racial continua carecendo de uma ação coordenadora e da
consolidação de uma política que integre e fortaleça as ações iniciadas ou em curso, a
partir do estabelecimento de objetivos e metas claramente pactuados.
Este capítulo também mostrou, na seção Tema em destaque, que os impactos da
implementação das políticas universais na redução das desigualdades raciais tornam-se
visíveis nos campos da educação e saúde, aqui analisados. De fato, o contexto que se
abre com a promulgação da Constituição de 1988 representou para a população negra,
devido à implementação de políticas universais, melhorias importantes nas condições de
vida e para a redução das desigualdades raciais. No entanto, tais políticas demonstram-
se insuficientes para atingir a igualdade entre brancos e negros. A implementação de
políticas públicas específicas deve ser capaz de dar respostas eficientes ao grave quadro
de desigualdade racial existente em nossa sociedade, e se apresenta como uma exigência
incontornável na construção de um país com maior justiça social.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 255


JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA

1 Apresentação
Os altos índices de criminalidade, a forte sensação de insegurança, a impunidade, a
dificuldade de acessar a justiça para resolver conflitos cotidianos, a morosidade dos
serviços jurisdicionais e as violações de direitos no sistema penitenciário são alguns dos
graves problemas nas áreas de justiça e de segurança pública que vêm caracterizando
a realidade brasileira e que reclamam atuação do poder público. Embora as políticas
implementadas no país nestas áreas estejam majoritariamente a cargo dos estados e de
alguns municípios, a União, para além das suas competências específicas, tem realizado
ações que representam um esforço suplementar cada vez mais importante.
No âmbito da política federal de justiça, os objetivos prementes da atuação federal
têm sido a garantia de mais celeridade e qualidade aos serviços jurisdicionais e a demo-
cratização do acesso dos cidadãos à justiça. No âmbito da política federal de segurança
pública, o escopo da atuação está voltado para o fortalecimento das estruturas de estados
e municípios e para a indução de novos valores e práticas institucionais, além de inicia-
tivas visando a uma melhor coordenação dos esforços dos três níveis da Federação e da
atuação preventiva e repressiva em matérias de competência federal – como o tráfico de
drogas, de pessoas, os crimes financeiros, contra o meio ambiente e contra a adminis-
tração pública, entre outros.
O presente capítulo apresenta alguns dos resultados mais significativos desses
esforços no ano de 2007 e nos primeiros meses de 2008. Inicialmente, resgatam-se os
principais fatos que marcaram a área de justiça e segurança pública no período, com
destaque para as mudanças normativas. Na seqüência, faz-se uma análise da execução
dos programas governamentais nestas duas áreas no exercício de 2007.
O texto propõe ainda uma análise de tema de grande relevância na incipiente
democracia brasileira: o crescente recurso de organizações da sociedade civil (partidos
políticos, organizações não governamentais, sindicatos, entre outros) à justiça para
questionar a constitucionalidade de leis, medidas provisórias e práticas administrativas.
Este fenômeno – que não é particular ao Brasil, sendo observável há algum tempo em
diversas democracias mais maduras – é possibilitado pela previsão constitucional de me-
canismos processuais, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins), as Ações
Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão (Adins por omissão) e as Argüições de
Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPFs). Tais mecanismos, ao viabilizarem
a contestação judicial de atos políticos que ferem os direitos e garantias assegurados pela
Constituição Brasileira, têm reconfigurado as relações entre direito, política e justiça, e
contribuído para o aprofundamento da democratização do espaço público no país.
2 Fatos relevantes
2.1 Reforma do Código de Processo Penal
Em junho de 2008, foram sancionadas três leis que alteraram o Código do Processo Penal,
com o objetivo de inscrever mudanças trazidas pela Constituição e tornar o processo

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 257


mais célere e seguro, ao simplificar procedimentos, fundir fases e reduzir brechas para
questionamentos processuais. A primeira delas, a Lei no 11.689/2008, reformulou todos
os artigos referentes ao processo dos crimes de competência do júri – os crimes dolosos
contra a vida. Entre as principais mudanças estão: a reunião em apenas uma audiência
dos procedimentos antes divididos em diversas sessões, simplificando assim a primeira
fase do processo – que termina na decisão do juiz acerca do encaminhamento ou não do
caso ao tribunal do júri; a eliminação do recurso no caso de o juiz julgar que o processo
não deve ser encaminhado ao júri; a possibilidade de mudança do julgamento para outra
comarca, com vistas a reduzir o tempo de processo; e a revogação da previsão legal de
novo julgamento para casos em que a pena aplicada superar 20 anos de reclusão.
A segunda lei (Lei no 11.690/2008) procura atender a três principais pontos: proi-
bir a admissão de provas ilícitas, garantir o contraditório, e garantir direitos às vítimas.
O direito ao contraditório foi ampliado ao se estabelecer que o juiz formará sua convicção
apenas a partir de provas que tenham sido submetidas à apreciação – e eventual con-
testação – da defesa, e ao se permitir a participação de assistentes técnicos das partes na
realização de perícias. Entre os direitos reconhecidos às vitimas estão: i) ser comunicada
de fatos relevantes do processo, como, por exemplo, o ingresso ou a saída do agressor
da prisão; ii) ser encaminhada – se o juiz entender necessário – para atendimento mul-
tidisciplinar (especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde), às
expensas do ofensor ou do Estado; e iii) ter as providências necessárias tomadas para a
preservação de sua intimidade, honra, imagem e vida privada.
Com o objetivo principal reformular os processos criminais, conferindo-lhes maior
celeridade, a terceira lei (Lei no 11.719/2008) traz, entre suas inovações, por um lado,
atualização da multa para o advogado que abandonar o réu sem motivo imperioso, e,
por outro, as seguintes alterações nos processos comuns:1 i) estabelece absolvição su-
mária (antes do julgamento) quando o juiz, depois de receber a denúncia e a resposta
por escrito do acusado, verificar, entre outros, não haver crime, ou que o agente não é
culpado; e ii) determina que a instrução (interrogatório do réu, apresentação e discussão
das provas e oitiva das testemunhas) e o julgamento sejam feitos em uma só audiência e
pelo mesmo juiz. A lei trouxe também simplificações aos procedimentos – autoriza, por
exemplo, gravações audiovisuais sem necessidade de transcrição nos autos – e facilita a
ação civil para a reparação da vítima, ao determinar que o juiz fixará valor mínimo para
a reparação dos danos causados pela infração, assim como ao permitir que a execução
poderá ser efetuada por este valor.
Em linhas gerais, essas mudanças preservam os direitos dos acusados e tendem a
tornar a justiça criminal mais ágil e efetiva, o que pode melhorar a confiança da popu-
lação na atuação das instituições envolvidas.
2.2 Novos regulamentos no sistema de execução penal
A gestão do sistema penitenciário representa um dos mais graves desafios para o Estado
e a sociedade brasileiros. Os problemas reconhecidos vão desde a superlotação e a falta
de condições minimamente dignas para os presos até a ocorrência de rebeliões e a atu-
ação de organizações criminosas em suas dependências. Na tentativa de contribuir para

1. Os procedimentos comuns são aplicáveis a quase todos os crimes. As exceções são os casos de competência do Tribunal
do Júri, dos processos especiais previstos no Código de Processo Penal (CPP) – como aqueles voltados para os crimes de
responsabilidade dos funcionários públicos, calúnia e injúria, crimes contra a propriedade imaterial e aplicação de medida de
segurança por fato não criminoso – e outros procedimentos previstos em lei especial, como os relativos ao uso de drogas.

258 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


o enfrentamento de alguns destes problemas, novos atos normativos foram produzidos
recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Departamento Peniten-
ciário Nacional (Depen).
Em dezembro de 2007, o CNJ editou a Resolução no 47, a qual determina aos juízes
de execução criminal realizarem pessoalmente inspeção mensal nos estabelecimentos penais
sob sua responsabilidade, e tomarem providências para o seu adequado funcionamento,
promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade pelas ilegalidades. Nos
relatórios a serem entregues às Corregedorias de Justiça, devem constar informações sobre
o cumprimento da Lei de Execução Penal (LEP) no que tange ao funcionamento dos
estabelecimentos e à observância dos direitos dos presos, além das medidas adotadas para
resolver problemas encontrados. A resolução dita ainda que os juízes deverão compor e
instalar os Conselhos da Comunidade,2 embora não explicite a fiscalização das carceragens
das delegacias. Apesar destas medidas já estarem previstas na LEP, espera-se que a resolução
e sua fiscalização pelo CNJ garantam o cumprimento destas normas em todo o país.3
No que se refere especificamente aos estabelecimentos federais, o Depen editou por-
tarias complementares ao Regulamento Penitenciário Federal (Decreto no 6.049/2007),
que normatizam a prestação de serviços nestes locais. Três portarias disciplinam o exer-
cício de direitos pelos presos, a saber: o exercício do culto religioso, o recebimento de
familiares e do advogado, e a posse de objetos.4 Contudo, é notável nos textos destas
portarias o difícil equilíbrio entre a garantia de tais direitos e a preocupação com os
meios de preservar tanto a segurança nos estabelecimentos, quanto a autoridade de seu
diretor e os respectivos regulamentos. Se o culto religioso é permitido, também é forte-
mente disciplinado. Há permissão de posse de objetos, mas se restringem praticamente
àqueles relacionados à saúde, à instrução, ao vestuário e à higiene; ainda assim, sua
posse é limitada e o diretor só pode permitir outros objetos mediante decisão motivada
sobre requerimento fundamentado do preso. Quanto às visitas, elas são permitidas se-
manalmente e em horários e dias pré-estabelecidos, mas podem ser suspensas em casos
de fundada suspeita de rebelião.
Outras duas portarias tratam da aplicação do regime penitenciário propriamente
dito. A Portaria no 2.065/2007 define os procedimentos de inclusão nos estabeleci-
mentos penais, a avaliação do preso e a elaboração do programa de tratamento peni-
tenciário pela Comissão Técnica de Classificação. Neste programa são indicados, entre
outros, os tipos de trabalho, cursos de formação ou aperfeiçoamento profissionais, e
atividades educacionais de que o preso poderá participar. Por sua vez, a Portaria no
38/2007 dispõe sobre a disciplina carcerária. Além de outros tópicos que são objeto
da portaria, são definidos ali os papéis e os ritos do procedimento disciplinar, desde
a ocorrência da falta até o fim do período de reabilitação, isto é, aquele que permite
que o preso faltoso tenha sua conduta reclassificada, por exemplo, como bom com-
portamento carcerário, o qual facilita a progressão penal.

2. Órgão de execução penal que deve existir em cada comarca, composto por representantes da sociedade civil.
3. O CNJ deu indicações de que está reagindo às denúncias de falta de inspeção nos estabelecimentos penais. No final de 2007,
o conselho acolheu denúncia de 871 presos da Penitenciária I de Guareí-SP, que alegaram estar a mais de dois anos sem receber
qualquer visita de autoridade judicial, acarretando perda de direitos de redução de pena e de participação em programas de
reinserção social. O Plenário do Conselho determinou que o Tribunal de Justiça de São Paulo apresente ao CNJ um plano de ação
para sanar as irregularidades – confirmadas pelo relator do CNJ – e decidiu pela apuração de responsabilidade dos juízes.
4. Tais direitos foram regulamentados, respectivamente, pelas Portarias nos 120/2007, 122/2007 e 123/2007. Uma quarta
portaria (no 157/2007) trata da revista para acesso às penitenciárias federais.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 259


Esse conjunto de normas supre uma falta de regulamentação do funcionamento
das penitenciárias federais que data desde seu início. Pelo caráter fortemente restritivo
de seu regime, espera-se que estas continuem sendo utilizadas apenas em circunstâncias
excepcionais. De um lado, devido a seus altos custos e ao fato de que disputam recursos
do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), com os precários sistemas penitenciários
estaduais e com ações em prol da aplicação de penas e medidas alternativas. De outro,
porque os estabelecimentos penitenciários federais, por sua localização e pequeno núme-
ro, dificultam o contato do preso com familiares e com o mundo exterior, o que tende
a prejudicar sua posterior reinserção social.
2.3 CPI do sistema carcerário
Em junho de 2008, foi apresentado o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito
da Câmara dos Deputados, instalada nos seguintes termos:
(...) com a finalidade de investigar a realidade do sistema carcerário brasileiro, com destaque
para a superlotação dos presídios, custos sociais e econômicos desses estabelecimentos, a
permanência de encarcerados que já cumpriram pena, a violência dentro das instituições do
sistema carcerário, a corrupção, o crime organizado e suas ramificações nos presídios e buscar
soluções para o efetivo cumprimento da lei de execuções penais (Relatório CPI da Câmara dos
Deputados, 2008).

Os deputados da CPI trabalharam durante dez meses e visitaram 62 unidades


prisionais de 18 estados, e o relatório denuncia um sistema falido, caótico, que não
cumpre com suas funções. Responsabiliza o Estado brasileiro por descumprir as leis e
não implantar medidas de ressocialização, desrespeitando o preceito básico de nosso
sistema de execução penal. Mais do que isso, denuncia casos de tortura e violência, bem
como a situação de completa degradação humana e o desrespeito aos direitos básicos de
cidadania que dominam as prisões brasileiras. O documento, composto por mais de 500
páginas divididas em 11 capítulos, traz ainda um arquivo fotográfico e um vídeo feitos
a partir das diligências realizadas nos estados. O objetivo é que o vídeo seja veiculado
amplamente e impulsione o debate sobre o sistema penitenciário no Brasil.
O relator destaca que os problemas encontrados não podem ser atribuídos somente
aos atuais gestores públicos e operadores do Direito, pois se trata de uma situação que
atravessa anos de má gestão e descumprimento da lei. Ainda assim, sugeriu o indiciamento
de juízes, promotores, defensores públicos, superintendentes do sistema penitenciário,
advogados, diretores de estabelecimentos e agentes penitenciários. A proposta de indi-
ciamento, no entanto, gerou inúmeras reações adversas e a versão finalmente aprovada
propõe tão-somente a “responsabilização” de alguns daqueles atores. O relatório traz
também a proposição de que se amplie no Brasil a aplicação de penas alternativas e de
que políticas de combate à pobreza e à exclusão devem ser implementadas como mais
uma forma de minimizar a criminalidade e a penalização. Por fim, apresenta uma série
de projetos de lei, entre os quais se destaca o Estatuto Penitenciário, com vistas a instituir
normas e procedimentos para os estabelecimentos penais no Brasil, assim como as penas
previstas para os gestores públicos e operadores do Direito que as descumprirem.
2.4 Mudanças no Pronasci
A lei que instituiu o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci
– Lei no 11.530/2007) foi alterada pela Medida Provisória (MP) no 416/2008, convertida
na Lei no 11.707/2008. As mudanças tendem a fortalecer os princípios de participação
social, prevenção à violência e apoio a vítimas, além de prever tanto a concessão de bolsas

260 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


para a formação de policiais quanto o desenvolvimento de trabalhos sociais por mulheres
“socialmente atuantes”, e jovens das áreas nas quais o Pronasci é implementado. Foram
incluídos nas diretrizes, entre outros pontos: o apoio ao desarmamento; o fortalecimento
dos conselhos tutelares; a participação e inclusão de vítimas da criminalidade em progra-
mas de apoio psicológico, jurídico e social; a participação de jovens e adolescentes em
situação de rua em programas profissionalizantes e educativos; a promoção de estudos,
pesquisas e indicadores sobre a violência; e a transparência na execução e garantia de
participação da sociedade civil. Os focos do programa também sofreram alterações:
i) o foco na juventude foi restrito para aqueles de 15 a 24 anos, com prioridade voltada
para aqueles egressos do sistema prisional ou que estejam em situação de moradores
de rua; ii) foram inseridas também vítimas da criminalidade e mulheres em situação de
violência; e iii) foi agregado ainda um foco repressivo de combate ao crime organizado.
As condições que devem ser aceitas pelos estados que aderirem ao Pronasci passaram a
incluir: a criação de gabinete de gestão integrada, a garantia de participação da socie-
dade civil e dos conselhos tutelares nos fóruns de segurança pública que acompanharão
e fiscalizarão os projetos, e o compromisso de criação de centros de referência e apoio
psicológico, jurídico e social às vítimas da criminalidade. Tal como constava na MP no
384 que deu início ao Pronasci, voltaram os projetos Reservista-Cidadão, Protejo e Mulheres
da Paz. Também foi acrescentado o projeto Bolsa-Formação.5 Foi ainda estabelecido que
estes projetos deverão ser estendidos progressivamente para as regiões metropolitanas
de todos os estados federados.
3. Acompanhamento da política e dos programas
3.1 Justiça
3.1.1. Gastos em justiça
Entre 2006 e 2007, houve um incremento da ordem de 9,4% no total de recursos des-
pendidos na implementação da política federal de justiça,6 tendo passado da casa dos
R$ 11,6 bilhões gastos em 2006 para R$ 12,7 bilhões em 2007 (valores liquidados).
Em termos absolutos, o Poder Judiciário foi o principal beneficiado, respondendo por
78,0% do incremento total. Em termos relativos, entretanto, é notável a ampliação das
despesas no Ministério da Justiça (66,8% a mais que em 2006) e na Defensoria Pública
da União (66,1% a mais).
A despeito do aumento no volume total de gastos, não houve alterações substantivas
na distribuição entre os órgãos do sistema: o Poder Judiciário manteve sua participação
em torno de 86,0% das despesas, enquanto o Ministério Público, a Defensoria Pública
e o Ministério da Justiça alcançaram, respectivamente, 13,2%, 0,5% e 0,3% do total.
Quanto ao nível de execução orçamentária, houve pequena oscilação negativa em

5. Segundo a Lei no 11.707/2008, o projeto Bolsa-Formação é destinado à qualificação profissional dos integrantes das
carreiras preexistentes das polícias militar e civil, do corpo de bombeiros, dos agentes penitenciários, dos agentes carcerários
e dos peritos. Para a concessão das bolsas, os profissionais devem freqüentar cursos oferecidos/reconhecidos pelo Ministério
da Justiça (MJ) a cada 12 meses e não terem sido condenados à infração grave ou condenação penal nos últimos cinco
anos. Para aderir a este projeto o ente federativo deverá, entre outros, instituir e manter programas de polícia comunitária
e se comprometer a instituir remuneração mensal não inferior a R$ 1.300,00 a estes profissionais, contribuindo com sua
valorização e conseqüente benefício da sociedade brasileira.
6. Por política federal de justiça entendem-se as ações implementadas pelos órgãos federais do Poder Judiciário e do
Ministério Público (à exceção daqueles com competência nas áreas militar e eleitoral), pela Defensoria Pública da União
e pelo Ministério da Justiça, com os objetivos de defender os direitos consagrados na Constituição brasileira e ampliar o
acesso da população à justiça. Para mais detalhes sobre a divisão de competências entre estes órgãos, ver o capítulo Justiça
e Segurança Pública do número 14 deste periódico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 261


relação ao ano anterior, para o que contribuíram particularmente os desempenhos da
Defensoria Pública e do Ministério Público. O destaque positivo coube ao Ministério
da Justiça, cujos programas atingiram um nível de execução significativamente superior
ao registrado em 2006, embora permaneça abaixo de 75%.
Importante notar que cerca de 76,2% dos recursos totais do sistema federal de
justiça foram destinados à rubrica Pessoal e Encargos Sociais – que inclui a remu-
neração de funcionários e o pagamento de encargos sociais e benefícios (assistência
médica, auxílio-alimentação etc.). Paralelamente, 17,8% dos gastos totais cobriram
despesas correntes com a manutenção da infra-estrutura de trabalho e atendimento
à população; e cerca de 6,0% foram empregados em investimentos relacionados à
construção e/ou aquisição de novos edifícios e à implantação de varas, tribunais,
procuradorias e núcleos de atendimento.
TABELA 1
Execução orçamentária do sistema federal de justiça (2006 e 2007)
(Em milhões de reais constantes)1
Período Execução orçamentária Poder Judiciário2 Ministério Público3 Defensoria Pública4 Ministério da Justiça5 Total
Autorizado (A) 10.167,56 1.545,72 42,53 32,11 11.787,92
2006 Liquidado (B) 10.067,56 1.478,29 38,02 19,22 11.603,07
B/A (C) (em %) 99,0 95,6 89,4 59,8 98,4
Autorizado (A) 11.045,15 1.890,17 77,02 43,21 13.055,56
2007 Liquidado (B) 10.915,32 1.679,06 63,15 32,05 12.689,58
B/A (D) (em %) 98,8 88,8 82,0 74,2 97,2
Autorizado (A) 8,6 22,3 81,1 34,6 10,8
Var. 2007/2006
Liquidado (B) 8,4 13,6 66,1 66,8 9,4
(em %)
D-C -0,2 -6,8 -7,4 14,3 -1,2
Fonte: Sistema de Acompanhamento da Execução Orçamentária e Financeira da União (Câmara dos Deputados e Centro de Informática e Processa-
mento de Dados do Senado Federal).
Notas: 1Os valores orçamentários autorizados do sistema federal de justiça, bem como os liquidados, estão em R$ milhões de 2007, corrigidos pela
média anual do IPCA/IBGE.* Entre todos estes valores, foram excluídos aqueles direcionados ao: i) pagamento de benefícios previdenciários a
servidores públicos federais inativos (aposentadorias e pensões); e ii) custeio do regime de previdência dos servidores públicos federais ativos.
* IPCA: Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo; IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
2
Inclui os seguintes programas: i) Prestação Jurisdicional no Supremo Tribunal Federal (STF) e Democratização do Acesso à Informação Jorna-
lística, Educacional e Cultural, ambos do STF; ii) Controle da Gestão Administrativa e Financeira no Poder Judiciário, do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ); iii) Prestação Jurisdicional no Superior Tribunal de Justiça (STJ); iv) Prestação Jurisdicional na Justiça Federal (JF); e v) Prestação
Jurisdicional Trabalhista e Erradicação do Trabalho Escravo, ambos da Justiça do Trabalho (JT).
3
Refere-se ao Programa Defesa da Ordem Jurídica.
4
Diz respeito ao Programa Assistência Jurídica Integral e Gratuita.
5
Os programas do Ministério da Justiça aqui inseridos são: i) Defesa Econômica e da Concorrência; ii) Defesa do Consumidor; iii) Gestão da
Política na Área de Justiça; e iv) Reforma do Judiciário.

3.1.2 Acompanhamento dos programas


A) Órgãos do Poder Judiciário
Supremo Tribunal Federal (STF) 7
A movimentação processual no STF em 2007 foi marcada pela entrada em vigor dos institutos
da súmula vinculante, da argüição preliminar de repercussão geral e do processo eletrônico,8 bem
como por medidas racionalizadoras de natureza administrativa, que impactaram positivamente
o desempenho do órgão. Assim, o tribunal julgou 159,5 mil causas, 44,7% a mais que no ano
anterior. Vale destacar que, diferentemente do que ocorrera em 2006, em 2007 não apenas houve
ligeira redução na entrada, mas também diminuiu o estoque de processos de anos anteriores.

7. As informações sobre a atuação funcional do STF estão disponíveis em: <http://www.stf.gov.br/portal/principal/principal.


asp> (link Estatísticas).
8. Para uma descrição detalhada das inovações introduzidas por meio desses institutos, ver o número 14 deste periódico.
Ressalte-se, contudo, que já há nove súmulas vinculantes em vigor, versando sobre questões diversas – envolvendo desde
direitos civis, como o exercício do direito de defesa em processos administrativos, até direitos sociais, como a utilização do
salário mínimo como indexador de remunerações de trabalhadores. O conteúdo destas súmulas pode ser examinado no
endereço: <http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/SumulasVinculantes_1_a_9.pdf>.

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No que se refere ao papel “constitucional” desempenhado pelo STF,9 cabe registrar
dois aspectos. Pelo lado do controle indireto de constitucionalidade, deu-se o julga-
mento de 73,2 mil recursos extraordinários, em que se discutiram várias controvérsias
de interpretação da Constituição. Este número representou 45,9% do total de casos
apreciados pelo tribunal – ou seja, concentrou-se aí grande parte de seu esforço. Pelo
lado do controle direto, houve decisão em 240 ações diretas de inconstitucionalidade e 6
ações declaratórias de constitucionalidade ao longo de 2007. Entre as questões discutidas,
destacaram-se: i) a decisão sobre a fidelidade partidária, que determinou que as cadeiras
conquistadas nas eleições proporcionais pertencem aos partidos e não aos candidatos,
uma vez que estes são eleitos com base no quociente eleitoral, que, por sua vez, consi-
dera a votação total das legendas partidárias; ii) a extensão aos trabalhadores do setor
público, “no que couber”, da aplicação da Lei no 7.783/1989, que regulamenta a greve
para o setor privado; e iii) a decisão, em favor do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS), de que a Lei no 9.032/1995, que determinou o beneficio social da pensão por
morte equivalente a 100% do valor da aposentadoria (ou outra situação), será aplicada
apenas aos fatos ocorridos após a sua publicação.
É importante observar que, nesse último caso, registrou-se a primeira experiência de
julgamento múltiplo na história da justiça brasileira, dado que o plenário do STF julgou
“em bloco” cerca de cinco mil recursos extraordinários interpostos pelo INSS referentes
ao tema das pensões por morte.10 Outra inovação experimentada na rotina de trabalho
do STF foi a realização da primeira audiência pública da história do órgão, em abril de
2007. O evento reuniu diversos especialistas em bioética para debater o controverso tema
do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. A audiência antecedeu
o início do julgamento da Adin no 3.510, ajuizada em 2005 pela Procuradoria Geral da
República em contestação ao artigo 5o da Lei de Biossegurança, com base na tese de que
este fere a proteção constitucional do direito à vida e à dignidade da pessoa.11
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 12
Ao lado da atuação disciplinar sobre os membros da magistratura, a formulação de
parâmetros para a organização e atuação do Judiciário configura um eixo de atuação do
CNJ. Em 2007, as resoluções, recomendações e enunciados administrativos do conselho
dispuseram sobre temas como: i) uniformização de normas relativas ao procedimento
administrativo disciplinar aplicável aos magistrados; ii) criação do Sistema Integrado
da População Carcerária; iii) parâmetros mínimos na regulamentação da prestação ju-
risdicional ininterrupta, por meio de plantão permanente; iv) organização de núcleo de
estatística e gestão estratégica nos órgãos do Judiciário; v) criação dos Juizados de Violência

9. Para uma discussão sobre o controle de constitucionalidade pelos órgãos do Judiciário, ver a seção Tema em destaque
deste capítulo.
10. O julgamento em bloco se tornou possível após alteração instituída no Regimento Interno do STF. Até então, os ministros
aguardavam o julgamento em plenário para, em seguida, na apreciação individual de outras causas idênticas, aplicar isola-
damente a mesma tese jurídica fixada pelo colegiado. A inovação, no entanto, não é consensual entre os membros do STF.
Enquanto alguns alegam que a medida representa uma “resposta rápida para os cidadãos, além de economia de tempo e de
despesa para o tribunal”, outros sustentam que “é temeroso o tribunal decidir sobre determinadas ações sem verificar as suas
peculiaridades”. A falta de consenso ficou evidente no próprio julgamento das pensões por morte, quando quatro dos ministros
recusaram-se a apresentar para o julgamento em bloco os processos sobre o tema que estavam sob sua apreciação.
11. O julgamento da controvérsia sobre quando inicia a vida humana apenas começou em março de 2008, tendo sido finalizado
em 29 de maio, quando, por maioria de votos (seis contra cinco, todos estes parciais), a Adin foi considerada improcedente.
12. As informações relativas ao CNJ foram extraídas do Relatório Anual – 2007, disponível na página do órgão na internet,
no endereço <http://www.cnj.gov.br/> (link Serviços on line – Relatórios Anuais).

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 263


Doméstica e Familiar contra a Mulher; e vi) adoção de medidas para dar prioridade aos
processos e procedimentos em que figure como parte interveniente pessoa com idade
superior a 60 anos, em qualquer instância.
Paralelamente, em um esforço para conhecer a realidade do Judiciário, o CNJ está
desenvolvendo alguns projetos especiais, a saber: i) a criação de sistemas e cadastros nacionais
dos diversos segmentos do poder; ii) o mapeamento de todas as serventias judiciais (cartórios,
secretarias de varas e juizados etc.) de primeiro grau dos tribunais de Justiça e do Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e Territórios; iii) o diagnóstico das serventias extrajudiciais
em todo o país; iv) a parametrização das rotinas cartorárias das serventias extrajudiciais por
meio da unificação das consolidações normativas das Corregedorias de Justiça dos estados e
do Distrito Federal (DF); v) um diagnóstico nacional dos processos de competência do júri;
vi) a centralização das medidas de indisponibilidade de bens; e vii) um levantamento do
quadro de horário dos tribunais de Justiça.
Superior Tribunal de Justiça (STJ)13
Em 2007, o STJ recebeu 302,1 mil processos, distribuiu 313,4 mil e julgou 277,8 mil.
Tal como ocorrera em 2006, foram julgados menos processos do que o número distri-
buído (85,7%), e o estoque total de processos pendentes de julgamento atingiu a cifra
de 178,0 mil. Entretanto, o órgão foi mais produtivo e célere em 2007, tendo julgado
proporcionalmente mais e diminuído o período de tramitação (35 dias a menos, em
média). Do quantitativo de processos distribuídos, 24,1% tiveram origem na Justiça
Federal, 70,5% na estadual, 4,2% na Justiça especializada – dos quais 4,0% da Justi-
ça do Trabalho –, e 1,3% corresponde àqueles que tiveram origem no próprio STJ.14
O grande número de processos que entra no tribunal a cada ano tem sido o princi-
pal fator responsável pelo acúmulo de estoque pendente de julgamento. Nesse sentido,
o órgão tem envidado esforços com o objetivo de aumentar sua capacidade produtiva.
Entre as medidas implementadas em 2007, é possível destacar: i) a publicação de um
compêndio de jurisprudência comparada que destaca a divergência e a convergência
jurisprudencial do STJ, visando dar apoio aos ministros na formação de juízo e garantir
harmonia dos julgados; ii) a experiência de troca prévia de documentos entre os minis-
tros (como os relatórios e votos), possibilitando que, durante as sessões colegiadas, as
discussões se concentrem nos processos em que há divergência quanto à proposta do
relator; e iii) o início da implementação do projeto Jurisprudência nos Estados, que deverá
levar as ferramentas e mecanismos de recuperação da jurisprudência do STJ à justiça
dos estados e do Distrito Federal, com o objetivo de evitar a interposição de recursos
que não terão chance de provimento por conflitarem com a jurisprudência do tribunal
e, ao mesmo tempo, com o propósito de incentivar a criação de mecanismos para que
a solução dos litígios se dê nas instâncias inferiores.
Algumas decisões do tribunal tiveram grande repercussão social, a saber: i) a defini-
ção de que é o médico, e não o plano de saúde, quem decide sobre o tipo de tratamento
que deve ser seguido pelo doente, o que evita que este seja impedido de se submeter a

13. O Relatório Estatístico do STJ, fonte das informações sobre a atuação funcional do órgão, está disponível em
<http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/?vPortalAreaPai=183&vPortalArea=584>.
14. É competência originária do STJ, entre outros, julgar, pelos crimes comuns e de responsabilidade, os governadores dos
estados e Distrito Federal, os desembargadores, os membros dos tribunais de Contas dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios, os juízes dos tribunais regionais e das justiças especiais, e os representantes do Ministério Público da União
que oficiem perante os tribunais. No âmbito cível, o STJ julga em caráter originário os mandados de segurança e habeas
data contra ato dos ministros de Estado e dos ministros do próprio tribunal.

264 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


tratamento com método mais moderno disponível em razão de cláusula limitativa do
contrato; ii) a definição de que o envio de fotos pornográficas de crianças e adolescente
via internet é crime; e iii) a determinação de realização de audiência na instância de
origem para iniciar os trabalhos de abertura dos arquivos da Guerrilha do Araguaia.
Justiça Federal Comum (JFC) e Justiça do Trabalho (JT)15
A movimentação processual na JFC em 2007 registrou a distribuição de 3,3 milhões de
processos e o julgamento de 2,8 milhões, um desempenho da ordem de 86%, cerca de 3
pontos percentuais inferior ao registrado em 2006. Metade dos processos foi distribuída
aos órgãos tradicionais da JFC (603 varas da Justiça Federal e cinco Tribunais Regionais
Federais – TRFs) e a outra metade, aos órgãos especiais (383 Juizados Especiais Federais
e 36 Turmas Recursais nos estados, as cinco Turmas Regionais e a Turma Nacional de
Uniformização dos Juizados Especiais Federais – JEFs). No entanto, enquanto nos pri-
meiros o índice de julgamento atingido foi de 71,1%, nos demais este índice atingiu
100,7%, o que comprova a maior celeridade dos órgãos especiais.
Entre os temas que mobilizaram a JFC em 2007 e foram objeto de discussão e/ou
resolução do Conselho da Justiça Federal (CJF), sobressaem: i) o planejamento da implan-
tação do processo virtual e a migração de documentos do papel para o meio eletrônico;
ii) o processo de instalação de postos de JEFs nos aeroportos do país; iii) a criação de uma
base de dados padronizada de jurisprudência dos JEFs, a ser disponibilizada na internet;
iv) o estabelecimento de diretrizes para a instalação de turmas julgadoras descentralizadas
dos TRFs; e v) a discussão sobre o anteprojeto de lei que altera o modelo vigente de execução
fiscal – utilizada para a cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública.16 Importante destacar,
ainda, as iniciativas voltadas para tornar mais eficiente o trâmite na JFC de processos que
envolvem a Previdência Social. Em outubro de 2007, por meio de acordo de cooperação
firmado entre o CJF, o CNJ, o Ministério da Previdência Social, a Advocacia-Geral da
União (AGU) e o Instituto Nacional do Seguro Social, criou-se um grupo técnico para
estudar mecanismos que evitem recursos em ações já pacificadas nos tribunais em favor
dos beneficiários e novas formas de combater fraudes previdenciárias.17
Por seu turno, a JT recebeu 2,6 milhões de processos em 2007 e julgou 2,58 mi-
lhões, alcançando um índice de julgamento de 99%, cerca de 2,6 pontos percentuais
acima do obtido em 2006. Do total de julgamentos, 1,8 milhão (70,3%) ocorreu nas
varas trabalhistas, 613,4 mil nos tribunais regionais do Trabalho (23,8%) e 153,6 mil
no Tribunal Superior do Trabalho (5,9%). Contrariamente ao que se passara em 2006,
a instância superior foi a que registrou melhor desempenho em 2007, com um índice
de julgamento de 124,7%. Vale ressaltar que, em dezembro de 2007, o TST completou

15. As informações sobre a movimentação processual na JFC têm como fonte as estatísticas disponíveis em <http://www.
justicafederal.jus.br/> (link Serviços de Informação – Estatísticas da Justiça Federal). Os dados relativos à JT estão disponíveis
em <http://www.tst.gov.br/> (link Estatística).
16. O anteprojeto é de autoria da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), e prevê a transferência para a esfera
administrativa de grande parte dos procedimentos necessários à execução fiscal, hoje privativa do Judiciário, e estimada
pela PGFN em mais de R$ 460 bilhões.
17. Como conseqüência dessa iniciativa, em junho de 2008 foi lançado o Programa de Redução de Demandas Judiciais do
INSS. O programa prevê que procuradores federais atuem nas agências do INSS com o objetivo de identificar os principais
conflitos jurídicos que ocorrem na avaliação dos pedidos de benefícios, e de formular propostas de solução administrativa
para os casos. Estas propostas serão encaminhadas a uma comissão executiva, encarregada de avaliá-las e aprová-las para,
então, serem transformadas em normas da AGU, a serem cumpridas em todo o país. Ao mesmo tempo, serão elaboradas
novas orientações sobre a aplicação da legislação previdenciária a serem seguidas pelo Conselho de Recursos da Previdência
Social, pelos técnicos do INSS e pelos procuradores federais que representam o INSS em juízo ou prestam consultoria e
assessoramento ao instituto e suas autoridades.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 265


sua nova composição determinada pela Emenda Constitucional no 45/2004, passando a
contar com 27 integrantes – o que, tendo em vista a demanda crescente pela JT, possibi-
litou o aumento no número de processos julgados. O pior desempenho ficou por conta
dos órgãos regionais, que julgaram 93,1% da demanda recebida. Em 2007, o percentual
de conciliações obtidas nas varas do Trabalho ficou em 43,9%, ligeiramente superior ao
resultado de 2006 (43,8%), mas ainda inferior aos de 2004 (44,1%) e 2005 (44,3%).
Entre as matérias que foram objeto de resolução do Conselho Superior da Justiça
do Trabalho no ano de 2007, é possível destacar duas. A primeira dispõe sobre a legiti-
midade dos tribunais regionais do Trabalho (TRTs), compostos por oito magistrados,
dividirem-se em turmas julgadoras formadas por três membros, de modo a garantir
maior produtividade nos julgamentos. A segunda versa sobre a responsabilidade da União
destinar recursos orçamentários para o pagamento dos honorários periciais referentes aos
processos em que a parte sucumbente for beneficiada pela assistência jurídica gratuita.
B) Órgãos essenciais à Justiça
Ministério Público da União (MPU)18
Em 2007, o Ministério Público Federal (MPF) – ramo do MPU dedicado às varas da
JFC, aos TRFs, ao STJ e ao STF – atuou em 1,06 milhão de processos nos diversos
graus de jurisdição, com destaque para o 2o grau (TRFs). Cerca de 61% destes pro-
cessos foram na área criminal (ações penais públicas), ao passo que outros 39% na
área cível (como as ações civis públicas). Acrescente-se que, para além de seu papel
processual, o MPF desempenha um importante papel extraprocessual – sempre que
estejam em jogo interesses coletivos ou individuais indisponíveis, como o direito à
vida, à liberdade, à saúde, etc. Neste último papel, em 2007, dentro da seara criminal,
o MPF analisou 357,6 mil inquéritos e 11,4 mil termos circunstanciados recebidos da
Polícia Federal, o que resultou em 15,0 mil denúncias. Paralelamente, na seara cível,
instaurou 2,9 mil inquéritos civis, bem como firmou 221 Termos de Ajustamento de
Conduta (TACs) com diferentes instituições.
No mesmo ano, entre os temas conjunturais que estiveram presentes na agenda dos
grupos de trabalho das câmaras setoriais do MPF, chamam especial atenção: i) a regula-
mentação da telefonia móvel pessoal, incorporando as questões de rescisão contratual,
clonagem, portabilidade, entre outras; ii) a revisão dos editais da segunda rodada de
licitações de concessões de rodovias federais, de modo a evitar os vícios de informação
da primeira experiência; iii) a defesa do consumidor na crise aérea; e iv) o impacto das
obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no meio urbano. Foram também
objeto de atuação do MPF em 2007 temas mais permanentes, como a regulamentação
dos planos de saúde e o incremento de sua fiscalização, a aplicação de verbas públicas e
a celebração e execução de convênios, o licenciamento de grandes empreendimentos e
a destinação e aplicação dos recursos para a saúde e para a educação.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) é o ramo do MPU que atua pe-
rante a JT. Em 2007, ele atuou em 176,7 mil processos, concentrados no 2o grau
de jurisdição (TRTs – 76,1% dos processos). Tal como no caso do MPF, o MPT
apresenta também uma relevante atuação extraprocessual, que se materializou em
2,0 mil inquéritos civis e 23,9 mil TACs.

18. As informações sobre a atuação funcional do MPF e do MPT em 2007 têm como fonte o Anexo 1 do Relatório de
Atividades do CNMP – 2007, disponível em <http://www.cnmp.gov.br/documentos/navega-documentos/documentos/
relatorios/relatorios-anuais> .

266 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Entre os temas que dominaram a agenda do órgão em 2007, revestem-se de
especial relevância: o tráfico de pessoas; o boom do etanol e o trabalho escravo; as
irregularidades em concursos públicos; a criminalização do direito de greve; ajustes
nas regras de contratação de aprendizes; o trabalho de crianças e adolescentes em clu-
bes de futebol; o trabalho infantil em atividades relacionadas às artes e ao artesanato;
critérios discriminatórios presentes nos instrumentos de contratação e avaliação dos
trabalhadores; assédio moral e sexual nas relações de trabalho; e o desrespeito à Lei
de Cotas pelas convenção coletivas.
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)19
À semelhança do CNJ, o CNMP possui uma atuação normatizadora do Ministério Público
em todo o país, bem como uma atribuição disciplinadora. No que diz respeito à primeira, as
resoluções do CNMP publicadas em 2007 parametrizaram assuntos como: i) a instauração
e tramitação do inquérito civil – procedimento administrativo investigatório privativo do
Ministério Público para apurar fato que ameace a garantia dos direitos transindividuais
(difusos, coletivos ou individuais homogêneos) e embasar a propositura da Ação Civil
Pública; ii) a obrigatoriedade de que o membro do Ministério Público resida na comarca
ou na localidade na qual exerce a titularidade de seu cargo; iii) a vedação do exercício da
advocacia aos membros do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT)
e do MPU;20 iv) a vedação à admissão, no Ministério Público, de servidores cedidos ou
postos à disposição por outros órgãos, que sejam parentes de membros e servidores do
órgão ocupantes de cargos de direção, chefia e assessoramento.21
Defensoria Pública da União (DPU)22
A DPU realizou cerca de 400 mil atendimentos em suas 24 unidades nos estados e no DF
no ano de 2007. Este número é 57% maior que o registrado em 2006, quando o desem-
penho do órgão sofreu o impacto de uma greve de cerca de três meses dos defensores. Vale
notar que, daquele total, 14,6 mil atendimentos foram realizados no âmbito do projeto
Defensoria Itinerante. Este número reflete um empenho significativo do órgão em levar
a prestação de assistência jurídica gratuita a regiões afastadas dos núcleos já instalados,
tendo somado mais de três vezes o registrado em 2005 e cerca de sete o registrado em
2006 – ano em que o serviço foi duramente afetado pela greve dos servidores. Persiste,
contudo, o problema da insuficiência do número de defensores (apenas 213 em todo
o país),23 do pessoal de apoio e da estrutura de atendimento, o que impede que a DPU
acompanhe, de maneira adequada, o processo de interiorização da Justiça Federal.
O órgão também participou de projetos intersetoriais e com outras esferas de
governo, tais como: i) o projeto-piloto Câmara Previdenciária de Conciliação, desen-
volvido em parceria com o INSS, com o objetivo de obter a composição de conflitos

19. As informações relativas ao CNMP foram extraídas do Anexo 1 do Relatório de Atividades do CNMP – 2007, disponível
em <http://www.cnmp.gov.br/documentos/navega-documentos/documentos/relatorios/relatorios-anuais>. Os dados
compreendem o período de 1 de janeiro a 30 de novembro de 2007.
20. No caso do MPU, ficam autorizados a exercer a advocacia os membros do órgão que já integravam a carreira na data da pro-
mulgação da Constituição Federal de 1988 e que permaneceram regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil.
21. A Resolução no 20 do CNMP, de 28/05/2007, que disciplina, no âmbito do Ministério Público, o controle externo da
atividade policial, foi comentada no número 15 deste periódico.
22. As informações relativas à atuação da DPU foram obtidas no Relatório de Gestão do órgão, disponível no endereço
<http://www.dpu.gov.br> (link Relatório de Gestão).
23. Em 2007, teve início o terceiro concurso para Defensor Público da União, para provimento de 61 vagas, além de for-
mação de cadastro de reserva.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 267


em relação ao recebimento de benefícios previdenciários e evitar o ajuizamento de
ações judiciais; ii) um projeto-piloto desenvolvido em parceria com o Depen para
prestação de assistência jurídica aos recolhidos no Presídio Federal de Catanduvas/
PR; e iii) o Projeto BPC (Benefício de Prestação Continuada), projeto-piloto que realiza
parcerias com os órgãos de assistência social municipais para identificação de possíveis
beneficiários do BPC.24
C) Ministério da Justiça (MJ)25
No âmbito do MJ, os programas que afetam mais diretamente o acesso do cidadão à
justiça são os seguintes: Defesa Econômica e da Concorrência, Defesa do Consumidor,
Gestão da Política na Área da Justiça e Reforma do Judiciário.
O processo crescente de fusões e aquisições tem levado ao aumento da demanda pela
atuação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) – composto pela Secreta-
ria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (Seae/MF), pela Secretaria
de Direito Econômico (SDE/MJ) e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(Cade/MJ). Em 2007, foram instaurados 586 processos relativos a atos de concentração
econômica no sistema (40,2% a mais que em 2006), dos quais 556 tiveram pareceres re-
metidos das instâncias instrutórias para o Cade (48,3% a mais que em 2006). No Cade,
por sua vez, foram distribuídos 599 atos de concentração, dos quais 563 foram julgados até
o final do ano. Cabe destacar o fato de que o sistema tem priorizado o combate a cartéis,
com ênfase no setor de compras públicas. Para tanto, em maio de 2007 foi estruturada
no MJ a Coordenação-Geral de Compras Públicas, que tem por função analisar infrações
anticompetitivas no setor, promover estudos que auxiliem os órgãos licitantes a evitar a ação
de cartéis, e fortalecer parcerias interinstitucionais com órgãos como a Advocacia Geral da
União, o Ministério Público Federal e os dos estados com a Polícia Federal.26
No âmbito do Programa Defesa do Consumidor, tiveram destaque as ações rela-
cionadas a temas de grande repercussão nacional no período. De um lado, citam-se o
monitoramento do processo de mudança na fórmula de tarifação da telefonia fixa (de
pulso para minuto), da fiscalização dos produtos transgênicos, e da inspeção da quali-
dade do leite e do frango resfriado e/ou congelado. De outro, cabe realçar a análise e
instrução de averiguações preliminares e processos administrativos, em que as principais
demandas estiveram relacionadas à maquiagem de produtos, à assistência ao usuário
de transporte aéreo e ao vício de informação quanto a serviços e produtos. Ao todo, o
Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) instaurou 31 processos
administrativos, os quais se concentraram, em ordem decrescente de importância, nos
setores de alimentos, de serviços (destacadamente para os financeiros) e de produtos
em geral. Quanto ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Sindec), foram

24. A atuação da Defensoria Pública na esfera da promoção de direitos, tal como se dá no caso do Projeto BPC, não é
estranha à competência do órgão. Ao contrário, sinaliza uma tendência de superação da simples defesa judicial das de-
mandas privadas de indivíduos carentes em favor de objetivos mais amplos, que contemplam também a identificação dos
direitos fundamentais da população e sua eventual instrumentalização pela via judicial. A própria extensão à Defensoria
da legitimidade para propor ações civis públicas, prevista na recente Lei no 11.448/2007, ratifica esta tendência. Para mais
detalhes sobre o BPC, ver a seção Tema em destaque do capítulo Assistência Social e Segurança Alimentar e Nutricional
desta edição.
25. As informações sobre os programas do MJ foram obtidas nas Avaliações por Programa (Ano base- 2007) do Sistema
de Informações Gerenciais e de Planejamento (Sigplan), bem como nos relatórios da Secretaria de Direito Econômico (SDE/
MJ) e da Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ/MJ).
26. Em dezembro de 2007, foi firmado Acordo de Cooperação entre a SDE/MJ e o Departamento de Polícia Federal, que
instituiu o Centro de Investigações de Cartéis.

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integrados dois novos estados, perfazendo 22 no total, e teve seqüência a municipalização
do sistema, com a adesão de mais 30 Fundações de Proteção e Defesa do Consumidor
(Procons) municipais, totalizando 43 desde 2006. Com isso, o Sindec passou a registrar
uma média mensal de 45 mil atendimentos.27
No que tange ao Programa Gestão da Política na Área da Justiça, cumpre destacar
a implantação da Plataforma Nacional de Informações sobre Justiça e Segurança Pública,
projeto ambicioso, mas que vem sendo desenvolvido lentamente desde 2004, com o
objetivo de construir uma “infovia de rede, voz e imagem” que interligará o MJ aos
órgãos de justiça e segurança pública de todo o país. Entre janeiro e outubro de 2007
teve início a estruturação do Centro de Gerência da Infovia no MJ, bem como houve
a contratação da interligação das redes de dados dos núcleos da Defensoria Pública da
União, e da interligação da sede do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) às
secretarias estaduais relacionadas ao sistema penitenciário.
Por fim, em relação às ações do Programa Reforma do Judiciário, deve-se ressaltar
que, além de articular esforços políticos e acompanhar a tramitação dos projetos de
lei que conformam a reforma infraconstitucional,28 o MJ também apóia iniciativas e
projetos voltados para a modernização da justiça, tanto nos aspectos administrativos
quanto organizacionais. Nesta linha, merecem destaque as seguintes ações desenvolvidas
em 2007: apoio à implantação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher, previstos na Lei Maria da Penha; identificação de experiências exitosas do
Judiciário na área de pacificação social e segurança pública; ampliação das experiências
com meios alternativos de solução de conflitos – como a Justiça Comunitária e a Justiça
Restaurativa; e produção e sistematização de análises sobre o processo de reforma e seus
primeiros resultados (projeto Observatório da Justiça Brasileira).
3.2 Segurança pública
3.2.1 Gasto em segurança pública
Analisam-se aqui os gastos do orçamento do Ministério da Justiça em 2007 na área de
segurança pública. Estes, da ordem de R$ 4,8 bilhões, foram bem superiores aos de 2006,
tendo sido notado um aumento de 17,7%. Entre os programas com gastos superiores
a R$10 milhões, os maiores aumentos foram no Sistema Único de Segurança Pública
(136,5%),29 Combate à Criminalidade (45,6%) e Segurança Pública nas Rodovias Federais
(34,2%). Por sua vez, dois programas apresentaram redução de gastos: Aprimoramento
da Execução Penal (36,1%) e Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres (25%),
ambos financiados com recursos do Funpen e executados sob a responsabilidade do
Depen. A execução de gastos em segurança pública pelo MJ caiu de 90,9% do auto-
rizado para 89,2%, sendo que, entre os programas finalísticos, os piores desempenhos
foram também dos programas Aprimoramento da Execução Penal (46,6%) e Prevenção e

27. Dentro do programa, deve-se acrescentar ainda que, em 2007, o Conselho Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos
Difusos (CFDD) apoiou 42 projetos (o maior número registrado em um único ano), distribuídos tematicamente da seguinte
forma: 50,2% na área de meio ambiente; 35% de patrimônio histórico e cultural; e 14,8% dos direitos do consumidor.
28. Para uma breve discussão sobre os principais projetos de lei aprovados em 2007, ver o número 15 deste periódico.
29. A maior parte desse aumento pode ser explicada pela realização dos Jogos Pan e Parapan-Americanos de 2007. Do total
de R$ 487,5 milhões a mais em 2007, 85,8% foram gastos em ações do programa diretamente voltadas para preparação e
realização dos jogos: ações de inteligência (R$ 26,5 milhões), ações preventivas (R$ 46,0 milhões) e implantação de infra-
estrutura e de sistemas de suporte de segurança pública (R$ 296,6 milhões), e preparação e emprego da Força Nacional de
Segurança Pública (R$ 49 milhões). Descontados estes recursos, o aumento de gastos do programa foi de apenas 19,4%.

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Combate à Violência contra as Mulheres (51,9%).
O desempenho orçamentário do Programa Aprimoramento da Execução Penal pode
ser explicado, segundo relatório de avaliação do PPA – ano 2007 do Depen, pelo fato
de que a Medida Provisória no 405/2007, com abertura de crédito extraordinário de
R$ 218,7 milhões (mais de 50% do autorizado), só ter sido publicada em 18 de dezem-
bro de 2007.30 Além disso, o programa teve limitações financeiras para a execução do
orçamento, devido ao grande volume de gastos realizados referentes à rubrica Restos a
Pagar de 2006 (R$178 milhões).
TABELA 2
Execução orçamentária em segurança pública no Ministério da Justiça (2006 e 2007)
(Em R$ milhões constantes)
2006 2007
Programas
Autorizado Liquidado % Autorizado Liquidado %
Aprimoramento da Execução Penal 343,0 313,7 91,5 429,7 200,4 46,6
Sistema Único de Segurança Pública 490,3 357,2 72,8 984,1 844,7 85,8
Combate à Criminalidade 154,8 92,4 59,7 152,9 134,6 88,0
Modernização da Polícia Federal 245,0 173,6 70,8 304,7 229,3 75,3
Segurança Pública nas Rodovias Federais 93,0 67,0 72,1 91,5 89,9 98,2
Desenvolvimento Institucional da Polícia Rodoviária Federal 68,3 54,3 79,5 67,1 54,9 81,8
Combate ao Crime Transnacional 1
0,7 0,3 41,2 1,0 0,5 55,5
Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres 1,0 0,8 76,4 1,2 0,6 51,9
Apoio Administrativo2 3.041,4 3.012,7 99,1 3.334,2 3.241,1 97,2
Pessoal e encargos sociais3 1.616,0 1.616,0 99,9 1.820,3 1.805,2 98,6
Outras despesas correntes 321,4 314,0 93,2 351,0 321,9 90,6
Investimentos 12,3 10,4 83,6 37,5 37,4 99,6
Outros4 93,0 47,2 50,8 67,6 52,1 77,1
Total 4.530,6 4.119,2 90,92 5.434,0 4.848,0 89,22
Fonte: Elaboração própria a partir da fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal/Secretaria do Tesouro Nacional
(Siafi/STN).
Elaboração: Consultoria de Orçamento/CD e Secretaria Especial de Informática do Senado Federal (Prodasen).
Notas: 1 A ação Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro, de responsabilidade do Ministério da Fazenda, não foi considerada.
2
Valores referentes às unidades orçamentárias Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-Fim da Polícia Federal (Funapol),
Departamento de Polícia Federal (DPF) e Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF), excetuando-se aqueles referentes à contribuição
para o regime de previdência dos servidores.
3
Os valores aqui representados referem-se aos gastos no grupo de natureza de despesa Pessoal e Encargos Sociais, excetuando-se aqueles
referentes à contribuição para o regime de previdência dos servidores.
4
Estão incluídos os seguintes programas: Gestão da Participação em Organismos Internacionais; Gestão da Política na Área da Justiça (valores
referentes apenas às ações Plano Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual; Implantação da Plataforma
Nacional de Informações sobre Justiça e Segurança Pública; e Diagnóstico sobre o Tráfico de Seres Humanos no Brasil); Operações Especiais:
Serviço da Dívida Externa (valores relativos à unidade orçamentária DPF); e Operações Especiais: Cumprimento de Sentenças Judiciais (valores
relativos às unidades orçamentárias DPF e DPRF).
Obs.: Os valores de 2006 foram corrigidos a valores de dezembro de 2007 pela média do IPCA/IBGE.

3.2.2 Acompanhamento dos programas31


Aprimoramento da Execução Penal
O Programa Aprimoramento da Execução Penal define como problemas a serem enfrenta-
dos a superpopulação do sistema penitenciário nacional e a necessidade de reintegração
e inclusão social do preso. Nesse sentido, boa parte dos recursos tem sido historicamente
utilizada na abertura de novas vagas em estabelecimentos penais.32 Com os recursos do
orçamento de 2007, foi apoiada a construção de estabelecimentos penais estaduais que
agregarão 4.799 vagas ao sistema prisional, ao custo de R$ 127,4 milhões.33 Em outra
frente, que contribui para a redução da superpopulação e favorece a reinserção social do

30. Esse crédito, no entanto, foi reaberto pelo decreto de 23 de janeiro de 2008 e passou a integrar o orçamento 2008.
31. As informações dessa subseção foram obtidas principalmente nas Avaliações por Programa (ano base 2007) do Sistema
de Informações Gerenciais e de Planejamento/Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (Sigplan/MPOG).
32. Segundo o Depen, o Fundo Penitenciário Nacional, criado em 1994, financiou 38% das vagas existentes no sistema
penitenciário brasileiro.
33. Por convênios de anos anteriores, mais 4.184 vagas foram agregadas aos sistemas penitenciários estaduais em 2007.

270 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


egresso, o Depen tem estimulado a aplicação de penas e medidas alternativas. Em 2007,
foram apoiados 21 serviços de acompanhamento da execução destas penas (R$ 1,9 milhão),
os quais concorreram para a ampliação e manutenção de um conjunto existente de 18
varas especializadas e 249 centrais de apoio, núcleos de monitoramento e serviços de exe-
cução de penas e medidas alternativas no Brasil. Segundo o relatório de gestão de 2007 da
Coordenação-Geral do Programa Fomento às Penas e Medidas Alternativas (CGPMA),
o número de cumpridores de penas e medidas alternativas no ano (422.522) ultrapassou
o total de apenados no sistema prisional (419.551).34
Em prol da melhoria dos serviços prestados nos estabelecimentos penais, foram
financiados o aparelhamento e reaparelhamento de 115 unidades (R$ 30 milhões),
a reforma de dez estabelecimentos penais estaduais (R$ 8,2 milhões), a implantação
e reaparelhamento de quatro escolas penitenciárias (R$ 0,9 milhão) e de 6 ouvidorias
(R$ 0,2 milhão). Foi apoiada ainda a capacitação de 2.797 profissionais em serviços penais
(R$ 3,7 milhões). Atualmente, 25 estados já possuem estrutura própria de capacitação
em serviços penais, cabendo destacar, ainda, que em 2007 o Depen lançou a Matriz
Curricular para Educação em Serviços Penitenciários, com o objetivo de valorizar os
profissionais e fortalecer os princípios de humanização da pena e reinserção social.
Outras ações que atingem mais diretamente os apenados e egressos ainda estão muito
longe de atingir todo o público alvo. A ação Reintegração Social do Preso, Internado e Egresso
alcançou 150.002 beneficiários (R$ 7,5 milhões). O Plano Nacional de Saúde no Sistema
Prisional (PNSSP) conta com 149 equipes cadastradas em dez Unidades da Federação,
que promovem o atendimento de atenção básica à saúde dos internos em 131 estabele-
cimentos penais – aproximadamente 10% do total de estabelecimentos no país.
O programa também tem destinado recursos para a implantação de um sistema
penitenciário federal voltado principalmente para o isolamento de presos “considerados
perigosos”. Foram gastos R$ 9,5 milhões na ação de Construção e Ampliação de Estabeleci-
mentos Penais Federais, e outros R$ 5 milhões na manutenção das penitenciárias federais
existentes.35 Estão em funcionamento duas penitenciárias federais (Catanduvas-PR e
Campo Grande-MS) que, em dezembro de 2007, abrigavam 217 presos, em um total
de 416 vagas. Continuou também o processo de estruturação do sistema: aprovação
do Regulamento Penitenciário Federal, e disciplinamento da prestação de assistência
religiosa, do procedimento de visita aos presos, dos objetos e materiais cuja posse é per-
mitida aos presos, dos procedimentos de revista etc. Segundo o relatório de avaliação
do programa, a atuação das penitenciárias federais contribuiu para que não houvesse
“nenhum incidente relevante relacionado à atuação de facções criminosas no interior de
estabelecimentos penais dos Estados”. No mesmo relatório, o Depen defende a necessi-
dade de criação de carreiras administrativas e de apoio especializado (médico, dentista,
enfermeiro, psicólogo etc.) para o Serviço Penitenciário Federal.
De fato, a construção das penitenciárias federais pode ter contribuído para a
contenção de novos motins de presos como os que ocorreram em São Paulo em 2006.

34. Trata-se de um número histórico. Apenas 24 anos após a reformulação da Parte Geral do Código Penal que ampliou
as penas alternativas à prisão para além da multa, o total de presos – incluídos os provisórios e aqueles em medida de
segurança – em um ano é superado pelo de submetidos a outras penas.
35. Na tentativa de se estimar o custo do sistema penitenciário federal, pode-se dividir os R$ 5,2 milhões gastos na ação
do Serviço Penitenciário Federal pelo número de presos (217). Assim, o custo médio por preso em 2007 seria de ao menos
R$ 24 mil por ano. Este cálculo, no entanto, não inclui o gasto de pessoal e encargos sociais.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 271


No entanto, a expansão do sistema tende a comprometer cada vez mais recursos do
Funpen. Estrategicamente, parece ser mais produtivo priorizar gastos na estruturação
de serviços especializados de monitoramento de condenados a penas alternativas, e na
expansão de estabelecimentos penais semi-abertos e abertos.36 Dessa forma, não so-
mente se estaria buscando o cumprimento da Lei de Execução Penal, ao disponibilizar
estabelecimentos adequados a cada tipo de pena e regime, mas também incentivando
a aplicação de penas alternativas à prisão. Segundo levantamento do Depen, apesar do
aumento das vagas e da maior aplicação de penas e medidas alternativas, o déficit de
vagas no sistema penitenciário, que era de 103.443 em dezembro de 2006, passou a
131.009 em dezembro de 2007.37 Além disso, segundo o relatório de gestão de 2007
da Coordenação-Geral do Programa de Fomento às Penas e Medidas Alternativas
(CGPMA), para um terço da massa carcerária (ou 140 mil detentos) seriam aplicáveis
as penas alternativas.38 No entanto, do total de 2.510 comarcas existentes no Brasil,39
apenas 267 (10,6%) desenvolvem serviços especializados de monitoramento na área
de penas e medidas alternativas. Importante considerar, entretanto, que uma maior
aplicação destas penas e utilização dos regimes semi-aberto e aberto dependem também
de maior empenho dos Judiciários e Executivos estaduais.
Sistema Único de Segurança Pública
O Programa Sistema Único de Segurança Pública (Susp) tem por objetivo ampliar a efici-
ência do sistema de segurança pública e defesa civil mediante a reestruturação e integração
de suas organizações. Apesar disso, a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp),
responsável pelo programa, tem investido, sob pressão dos estados, no reaparelhamento
dos órgãos policiais e na reforma e ampliação de suas estruturas físicas. Dessa forma, em
2007 foram gastos R$ 26 milhões na implantação e modernização de estruturas físicas
de unidades de segurança pública, e outros R$ 162 milhões no reaparelhamento das
instituições de segurança pública. Por um lado, estes gastos auxiliam os principais entes
da Federação responsáveis pelas ações de segurança pública na manutenção e melhoria de
seus serviços policiais. No entanto, por outro lado, substituem recursos que já deveriam
estar sendo aplicados por estes mesmos entes.
As deficiências locais, os graves incidentes na área de segurança e a pressão pelo socorro
da União aos estados levaram o Ministério da Justiça a criar ainda a Força Nacional de
Segurança Pública. Há que se considerar, porém, que, se as operações da Força Nacional
permitem que a União atenda a pedidos dos estados em situações especialmente graves, suas
ações ostensivas drenam recursos para operações que deveriam estar sendo executadas pelas
próprias polícias militares dos estados. Em geral, nestes casos, a União vem atuando mais
nas emergências do presente que na mudança do sistema de segurança pública brasileiro.
Outras ações, por seu turno, estão mais voltadas para enfrentar problemas estruturais
da segurança pública, como a falta de informações para a gestão e a restrita integração

36. Em relação à aplicação dos regimes semi-aberto e aberto, em dezembro de 2007, no Brasil, dois terços dos conde-
nados no sistema prisional estavam em regime fechado, um quarto (25%) estavam em regime semi-aberto e apenas 8%
encontravam-se em regime aberto. Uma das explicações para o quadro parece ser precisamente a menor oferta de vagas
nos regimes semi-aberto (19% do total) e aberto (1,7%).
37. Contudo, o número de presos no sistema de segurança pública, por sua vez, caiu de 61.715 para 56.014.
38. Segundo o relatório, as Defensorias Públicas de seis estados (PA, PE, BA, RJ, SP e ES) apresentaram projetos visando à
implantação do Programa de Prevenção Criminal e Defesa do Preso Provisório Passível de Penas Alternativas.
39. Cada uma das subdivisões territoriais dos Judiciários estaduais e do Distrito Federal.

272 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


dos órgãos que atuam na área. No orçamento de 2007, foram gastos R$ 18,9 milhões
com o Sistema Nacional de Gestão do Conhecimento e de Informações Criminais. Deste
montante, entre outras ações, parte foi utilizada para a capacitação de 110 operadores
das instituições policiais dos estados em gestão na segurança pública, e parte na imple-
mentação e manutenção do Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e
Justiça Criminal. Mais R$ 12,2 milhões foram gastos na Rede Nacional de Informações
de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização (Rede Infoseg), que até setembro de 2007
registrava 20 milhões de consultas no ano e computava 93 mil usuários cadastrados.
A Senasp tem ainda investido na capacitação, tanto para complementar a formação
de policiais, bombeiros e peritos, como para consolidar um processo de mudança de
paradigmas da ação policial que incorpore, entre outros princípios, um maior controle
do uso da força policial, a busca de soluções pacíficas para conflitos, e o respeito à
diversidade. Em 2007, um total de R$ 68,9 milhões foi utilizado no Sistema Integrado
de Formação e Valorização Profissional, que capacitou 72.298 profissionais. A maior
parte dos capacitados realizou cursos de educação à distância;40 outros 22 mil foram
capacitados em policiamento comunitário; e em torno de mil operadores de segurança
pública cursaram especialização em segurança pública (nível de pós-graduação) em 22
universidades da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública. Foram gastos
ainda R$ 36 milhões no treinamento de 4.373 policiais da Força Nacional de Segurança
Pública. A mudança de paradigmas inclui também uma maior ação do poder público na
prevenção à violência. Sob esta lógica, o programa apoiou a implantação de 137 projetos
de prevenção (R$54 milhões).41
Finalmente, o programa Sistema Único de Segurança Pública foi responsável,
em 2007, por boa parte das ações do governo federal na segurança dos Jogos Pan e
Parapan-Americanos de 2007. Apesar dos altos custos do evento, parcela substantiva
dos gastos gerou efeitos que prevalecem após o fim do evento, entre eles: os que pos-
sibilitaram a capacitação de 10,5 mil jovens (14 a 24 anos) de comunidades carentes
do Rio de Janeiro como guias cívicos (aulas de cidadania, ética, turismo e idiomas);
treinamento de mil jovens e adultos (18 a 40 anos) como brigadistas-socorristas (aulas
de noções básicas de primeiros socorros, combate a incêndio e defesa civil); compra de
equipamentos estimados no valor de R$132 milhões (incluídos 500 viaturas e 5.440
coletes balísticos);42 e a implantação do Centro de Monitoramento e Controle de Segu-
rança Pública (R$161 milhões).
Outros programas
Mais um grave problema na área de segurança pública é o crime organizado, alvo de
dois programas do Ministério da Justiça. Um deles é o Programa Combate ao Crime
Transnacional, que tem como objetivo reprimir a lavagem de dinheiro e indisponibilizar e
repatriar recursos existentes no exterior oriundos de atividades ilícitas. Em 2007, o pro-
grama capacitou 1.033 agentes públicos em combate ao crime organizado e à lavagem de

40. Entre os cursos, estão: Direitos Humanos; Tráfico de Seres Humanos; Local de Crime: isolamento e preservação; Violência,
Criminalidade e Prevenção; Uso Progressivo da Força; Uso da Informação na Gestão da Segurança Pública; Atendimento
Policial a Mulheres Vítimas de Violência Doméstica; Saúde ou Doença: de que lado você está?; Combate à Lavagem de
Dinheiro; Busca e Apreensão; Formação de Formadores; Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial.
41. Nessa ação foram apoiados projetos de polícia comunitária e do Programa Educacional de Resistência às Drogas de
Estados e Municípios.
42. Outros estados também receberam parte desses equipamentos após os jogos, como foi o caso de São Paulo, por exemplo.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 273


dinheiro, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacio-
nal negociou acordos de cooperação jurídica internacional com seis países e, entre outras
atuações, quebrou o sigilo de 104 contas bancárias no exterior. O segundo é o Programa
Combate à Criminalidade, quase todo composto por ações sob a responsabilidade do De-
partamento de Polícia Federal (DPF). Destaca-se aí a atuação da Secretaria Nacional de
Justiça na capacitação de profissionais da Rede de Atenção às Vítimas de Tráfico de Seres
Humanos, que alcançou 50 profissionais em 2007. Na repressão ao crime organizado, o
DPF realizou, em cooperação com outras instituições do Executivo e do Ministério Público,
188 operações especiais de repressão ao tráfico de entorpecentes, contrabando, lavagem de
dinheiro, corrupção, crimes contra o meio ambiente, fraudes em licitações etc., nas quais
ocorreu a prisão temporária de 2.876 pessoas. Os dois indicadores do programa ficaram
abaixo do previsto, mas com sinais opostos: enquanto o prazo médio para a conclusão de
inquéritos policiais foi o maior em quatro anos (84 dias), a taxa de conclusão de inquéritos
foi a melhor no período (65%). O principal motivo apontado para o não-atingimento das
metas é que o crescimento do número de servidores não está acompanhando o aumento
do número de inquéritos policiais instaurados.43
Conforme assinalado aqui anteriormente, o Ministério da Justiça, nos últimos
anos, tem investido ainda no fortalecimento do DPF e do Departamento Policial
Rodoviário Federal (DPRF), com aumento de pessoal e maior orçamento. 44 Em 2007,
1.412 servidores foram incorporados ao DPF, que chegou a um efetivo total de 14.447
pessoas. Por meio do Programa Combate à Criminalidade foram ainda capacitados 2.662
servidores da Polícia Federal e formados 1.504 novos policiais federais.
Os recursos para o Programa Modernização da Polícia Federal viabilizaram, entre
outras ações, a implantação do novo passaporte brasileiro (R$ 85 milhões) e de 12 De-
legacias Especiais de Polícia Marítima, e a difusão do Sistema Automático de Impressões
Digitais para os estados. Em relação ao DPRF, destacam-se, em 2007, os seguintes
produtos do Programa Segurança Pública nas Rodovias Federais: 114 equipes de saúde
disponíveis nas rodovias federais, 62 mil km de rodovias com policiamento ostensivo
e 3.280 km de trechos monitorados, e 51 operações realizadas. O DPRF aponta ainda
que, de 2003 a 2007, houve queda na taxas de acidentes e de mortes nas rodovias fe-
derais. Embora seja difícil mensurar até que o ponto o trabalho da DPRF influenciou
estes resultados, a taxa de acidentes caiu de 28,6 acidentes por 10 mil veículos da frota
nacional em 2003 para 24,8 em 2007. A mortalidade nas rodovias federais, por sua vez,
caiu de 1,58 morto por 10 mil veículos em 2003 para 1,38 em 2007.
Por fim, resta mencionar que, em 2007, foi elaborado o Programa Nacional de Se-
gurança Pública com Cidadania (Pronasci).45 Até 31 de março de 2008, 12 estados e 81
municípios das 12 regiões metropolitanas (RMs) priorizadas aderiram ao programa, e
cada qual deverá eleger, entre as 94 ações previstas, aquelas que farão parte do convênio.
Esta abertura permite que cada ente da Federação se comprometa com projetos que serão
efetivamente priorizados e que sejam indicados à situação local ou ao ente federativo.

43. Os inquéritos policiais do DPF, no entanto, nem sempre acarretam denúncias. Conforme dado anteriormente fornecido
aqui, 357,6 mil inquéritos e 11,4 mil termos circunstanciados foram recebidos pelo MPF em 2007, mas houve apenas 15,0
mil denúncias.
44. Esse maior aporte de recursos, entretanto, não atende à demanda dos órgãos, assim como acontece com o Depen
e a Senasp.
45. Para descrição mais detalhada do Pronasci, ver o capítulo Justiça e Segurança Pública do número 15 deste periódico.

274 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


No entanto, a não-realização de determinados projetos poderá reduzir a possibilidade
de uma real mudança da política de segurança pública nestes locais. Até o fim de 2007,
11 estados haviam elaborado o Plano Diretor para o Sistema Penitenciário – apenas o
Ceará não o havia elaborado até então –, e se comprometeram, entre outros pontos,
com a instalação de órgãos de execução penal (como os conselhos de comunidade), a
construção de bibliotecas e de espaço para estudo nos estabelecimentos penais, e a cria-
ção de carreiras específicas para os profissionais que lidam com o sistema penitenciário.
Além disso, o Ministério da Justiça, a partir de abril de 2008, começou a fechar acordos
com outros estados, como Sergipe e Acre.
O Pronasci representa uma possibilidade de inflexão na política de segurança pública
para os próximos anos. Em primeiro lugar, por agregar mais recursos ao orçamento do
Ministério da Justiça: até 4 de abril de 2008 estavam autorizados gastos de R$ 1,4 bilhão
neste programa. Segundo, por prever ações que podem enfrentar alguns dos problemas
de segurança pública do país: i) as bolsas-formação podem ser um incentivo à formação e
valorização das carreiras de policiais, bombeiros e peritos;46 ii) a renovação da Campanha
do Desarmamento pode reduzir o número de armas de fogo em circulação na sociedade;
iii) a ação de apoio a políticas sociais pode fortalecer o trabalho de prevenção à violência;
e iv) o investimento em estabelecimentos penais pode ajudar a resolver os problemas de
falta de estabelecimentos específicos para mulheres, e tanto viabilizar a construção de
estabelecimentos penais abertos e semi-abertos, quanto o fortalecimento dos serviços
especializados de monitoramento na área de penas e medidas alternativas – embora isto
ainda não seja um compromisso assumido pelo programa.
4 Tema em destaque
O controle de constitucionalidade e a mudança nas relações entre direito, política e
justiça no Brasil atual
Este texto trata da reconfiguração das relações entre direito, política e justiça, que teve
impulso no país com o crescente recurso de organizações da sociedade ao sistema de
justiça para questionar o mérito de medidas adotadas tanto pelo Executivo quanto pelo
Legislativo. Por extensão, o texto aborda também a nova dinâmica estabelecida na relação
entre os poderes estatais brasileiros, tomando-a como expressão de um contexto socio-
político em que a legitimação jurídica da política – tomada não apenas como exercício
do poder, mas principalmente como atividade que lida com assuntos e problemas de
interesse público – torna-se parte importante do jogo democrático.
De fato, a democracia brasileira, ou melhor, o processo de democratização47 do país
avançou muito desde a década de 1980. A Constituição Federal contribuiu sobrema-
neira para este processo, tendo estabelecido uma série de procedimentos que abriram
o mundo político à população. Além de assegurar os direitos relativos à participação
tradicional – por meio do voto universal, direto, secreto, periódico e paritário, que
indica os ocupantes de cargos no Executivo e os representantes no Legislativo –, a Carta
de 1988 instituiu também um sistema de participação semidireta, no qual mecanismos

46. Uma contrapartida que poderia ser exigida do bolsista é a dedicação exclusiva ao trabalho policial, de forma a se evitar
outros empregos, o que vem se configurando como um problema para as organizações policiais.
47. De acordo com Max Weber, o termo democratização é sempre preferível, pois traduz melhor a idéia de que se trata de um
processo político aberto e contínuo, em que não há resultados definitivos e garantidos para nenhum dos atores envolvidos.
Ver WEBER, Max. “Classe, Status e Partido” in Velho, Guilherme (Org.) Estrutura de Classes e Estratificação Social. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1973.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 275


de participação direta complementam as tradicionais instituições da democracia re-
presentativa. São exemplos a iniciativa popular, o referendo e o plebiscito.
No entanto, ainda que meritórios per se, esses procedimentos não são capazes
de submeter permanentemente os poderes instituídos à opinião da sociedade civil
brasileira, de modo a possibilitar a real estruturação de um Estado democrático de
direito. Ademais, pode-se atestar, conforme sugerem Luiz Werneck Vianna e Marcelo
Burgos,48 um esvaziamento de conteúdo das arenas políticas tradicionais, expresso, por
exemplo, na intensa gravitação do Poder Legislativo em torno do Executivo em todo
o período. Por meio da proposta de projetos de lei e da edição de medidas provisórias
– mesmo em matérias/situações que não guardam relações com a relevância/urgência
prevista no texto constitucional –, o Executivo teria se adiantado na proposição de
novas matérias legais e subtraído um conjunto de assuntos do âmbito de uma discussão
política mais ampla.49
De certo modo, essa participação ativa do Poder Executivo na discussão política
brasileira tem sido enfrentada mediante o recurso a outra esfera de organização da
vida social: o sistema de justiça. Partidos políticos, sindicatos, entidades de classe e
organizações não governamentais (ONGs), entre outros, têm recorrido à justiça para
questionar a constitucionalidade de leis, medidas provisórias e práticas administrativas,
ou a legalidade de normas infralegais e práticas executivas. No que se refere estritamente
ao questionamento da constitucionalidade, alguns dos instrumentos mais utilizados
são as ações diretas de inconstitucionalidade (Adins), as ações diretas de inconstitu-
cionalidade por omissão (Adins por omissão) e as argüições de descumprimento de
preceitos fundamentais (ADPFs). Estes são instrumentos processuais disponíveis a
algumas organizações da sociedade para o exercício direto do controle de constitucio-
nalidade das ações e omissões do poder público, o que se dá via recurso ao STF, órgão
de cúpula do Judiciário.50

48. Ver VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo. Revolução Processual do Direito e Democracia Progressiva.
in VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A Democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora UFMG/
Iuperj-Faperj, 2003.
49. É preciso relativizar, contudo, a tese de que a edição de medidas provisórias pelo Executivo representa uma interferência
sobre a competência do Poder Legislativo e acaba impedindo a dedicação do Congresso a uma agenda própria. Primeiro, pelo
fato de que há, em todo o mundo, interdependência entre Legislativo e Executivo. Em regimes democráticos, parlamentaristas
ou presidencialistas, o chefe do governo negocia a formação de maiorias parlamentares para obter apoio a seus projetos
políticos, sem o qual dificilmente poderia implementá-los. Segundo, porque as medidas provisórias podem ser discutidas e
substancialmente alteradas, perdendo a eficácia se não forem convertidas em lei pelo Congresso. Por fim, pode-se alegar
ainda que o Legislativo teria mais autonomia propositiva em relação a matérias legais se fosse estabelecido, por exemplo,
que determinadas questões de caráter mais operacional – como boa parte dos créditos adicionais ao orçamento – pudessem
ser resolvidas por meio de decreto presidencial.
50. O controle de constitucionalidade se efetiva por duas vias. De um lado, por meio do controle direto ou concentrado,
que é realizado apenas pelo STF, por provocação de um rol estrito de agentes – previsto no artigo 103 da Constituição
– e segundo procedimentos específicos. De outro lado, por meio do controle indireto ou difuso, que é realizado por todos
os juízos/tribunais – inclusive o STF –, sempre que, no julgamento de quaisquer ações/recursos – no caso do STF, o recurso
extraordinário – apresentados por quaisquer agentes, inclusive o cidadãos comuns, se discuta matéria constitucional.
Ambos os tipos, direto e indireto, averiguam a adequação das normas infraconstitucionais, ou mesmo das condutas dos
agentes do Estado às normas constitucionais. Mas, como mencionado, envolvem agentes distintos, ações diferentes, fóruns
diversos e procedimentos específicos, bem como possuem conseqüências diferenciadas, havendo efeitos vinculantes para
toda a sociedade no caso das decisões tomadas em controle direto de constitucionalidade – o que não ocorre no caso do
controle indireto.

276 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


BOX 1
Instrumentos processuais de controle direto da constitucionalidade

Em linhas gerais, os instrumentos processuais de controle direto da constitucionalidade podem ser empregados nas seguintes
circunstâncias:

• a ação direta de inconstitucionalidade – modalidade existente no regime constitucional brasileiro desde a Emenda Cons-
titucional no 16, de 1965 (então denominada “representação por inconstitucionalidade”), pode ser empregada contra leis
ou atos normativos federais ou estaduais que firam a Constituição Federal (artigo 102, inciso I, alínea “a”);
• a ação direta de inconstitucionalidade por omissão – instituída em 1988, tem por objetivo declarar a omissão do legislador
em face de medida necessária para tornar efetiva uma norma constitucional e indicar medidas para o suprimento desta
omissão (artigo 103, parágrafo 2o); e
• a argüição de descumprimento de preceito fundamental – instituída em 1988, permite questionar a constitucionalidade
de leis, atos normativos e práticas administrativas que entraram em vigor antes da promulgação do novo texto constitu-
cional (artigo 102, parágrafo 1o).

Note-se que, além de instituir instrumentos novos, a Carta de 1988 ainda inovou ao
propor um abrangente leque de agentes legitimados a utilizá-los, contribuindo também dessa
forma para a democratização da política no país. Considere-se que, no regime constitucional
anterior, o procurador-geral da República era o único agente autorizado a propor a represen-
tação por inconstitucionalidade. A partir de 1988, a legitimação ativa para apresentar Adins,
Adins por omissão ou ADPFs foi outorgada aos representantes da sociedade, como os partidos
políticos com representação no Congresso Nacional, as confederações sindicais ou as entidades
de classe de âmbito nacional. Nesse sentido, a Constituição de 1988, aqui, igualmente man-
teve a lógica da democratização do espaço público e assegurou à sociedade brasileira meios
de atuação que vão muito além das formas tradicionais de participação no mundo político,
e que configuram um direito radicalmente novo: o de vigilância sobre a conformidade dos
atos dos poderes públicos com as normas constitucionais.
É importante notar que todos esses instrumentos estão previstos no próprio texto
constitucional como formas de viabilizar a defesa da Constituição pela sociedade. Em outras
palavras, a atuação possibilitada por estes meios é tributária da própria concepção de Estado
democrático de direito consagrada pela Constituição Federal, que se assenta no compromisso
com princípios e direitos fundamentais cuja promoção deve ser o foco da atividade do poder
público e da sociedade. Os instrumentos processuais supracitados se inscrevem no texto de 1988
exatamente como mecanismos de defesa destes princípios e direitos fundamentais por parte
da sociedade contra a atuação dos poderes públicos que infrinja as normas constitucionais.
Há que se considerar que princípios e direitos fundamentais refletem, em última
instância, os valores da comunidade política, mas suas definições são extremamente ge-
néricas e abstratas, o que caracteriza a Constituição brasileira como um texto “aberto”.51
Isto significa dizer que não há instância única localizada no tecido da sociedade que possa
alcançar uma definição para seus princípios isoladamente ou em definitivo. Nesse sentido,
a aplicação da Constituição é um processo político de interpretação que tem lugar no
dia-a-dia da comunidade política e envolve um amplo conjunto de atores. De um lado, o
Judiciário concentra o controle da constitucionalidade, na medida em que seus membros
decidem em juízo sobre a adequação das normas infraconstitucionais à Carta Magna; de
outro lado, os próprios cidadãos – na qualidade de membros integrais da comunidade

51. Carlos Roberto de Siqueira Castro define fenômeno da abertura constitucional ou da “constituição aberta” como efeito
da crescente “ampliação e universalização das pautas ontológicas do modelo democrático, que abriu-se a todo tipo de
aspirações conducentes à melhoria qualitativa do convívio social e ao mais amplo florescimento do espírito humano”. Ver
CASTRO, Carlos R. de Siqueira. A Constituição Aberta e Atualidades dos Direitos Fundamentais do Homem. Rio
de Janeiro: UERJ, Faculdade de Direito, 1995 (Tese, Concurso para Professor Titular). Sobre o tema, ver também CITTADINO,
Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva (Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea). Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2000.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 277


política e de titulares dos diretos que ela assegura – podem atuar, por meio de algumas
instituições e grupos organizados, como “intérpretes informais” dos princípios consti-
tucionais, provocando a justiça em sua defesa.
Pode-se afirmar, enfim, que a utilização dos instrumentos processuais de controle
da constitucionalidade cumpre simultaneamente dois objetivos: a defesa da Constitui-
ção e a democratização do processo de interpretação e aplicação de seus princípios, o
que resulta na democratização da própria criação do direito no Brasil. E a referência aí
não é só o direito civil e o político, mas principalmente o econômico e o social. Por sua
natureza, estes impõem uma série de obrigações materiais ao Estado e implicam a estru-
turação de um vasto conjunto de políticas públicas, tanto no que se refere à provisão de
serviços quanto no que tange à regulação de determinadas atividades.52 Entretanto, tal
como prescrito constitucionalmente, o direito à livre iniciativa, à propriedade privada,
ao trabalho e à proteção do trabalhador, à educação, à moradia, à saúde, à previdência
social ou à cultura, embora sejam plenos de sentido, também são genéricos. Suas normas
instituidoras têm eficácia limitada e aplicabilidade imediata, necessitando de detalhada
regulamentação infraconstitucional para que possam produzir efeitos.
A regulamentação desses direitos, ao longo dos anos 1990 e dos atuais, tem de-
mandado o envolvimento ativo dos grupos da sociedade civil, tanto por vias legislativas
e administrativas como por vias judiciais. Instrumentos como as Adins e as ADPFs, por
exemplo, foram largamente utilizados na luta para chegar a uma definição da natureza
e do conteúdo destes direitos. O resultado deste processo é uma espécie de extensão da
disputa política para o âmbito da justiça. Nos termos Jürgen Habermas,53 talvez se possa
até mesmo falar em uma nova esfera pública no Brasil atual, cuja dinâmica radicaria em
torno das instituições que conformam o sistema de justiça do país: o Poder Judiciário,
o Ministério Público, a Defensoria Pública e a advocacia em geral.54
É forçoso notar que, em um contexto em que as instituições do mundo jurídico,
pautadas por linguagens e procedimentos específicos, são instadas a administrar conflitos
de interesse entre o poder público e setores organizados da sociedade, promove-se uma
crescente interpenetração entre política e direito no país. Na realidade, esta aproximação
acompanha a história das democracias contemporâneas, não sendo particular ao caso
brasileiro. Em certo sentido, é a expressão do lento movimento de construção da legiti-
midade do jogo político-democrático por meio da linguagem do direito, característica da
modernidade. Segundo Antoine Garapon,55 os atores políticos do mundo contemporâneo
têm dificuldade para exprimir suas reivindicações em termos puramente ideológicos, e
recorrem ao apelo universal do direito para expressar seu “ideal democrático desencan-
tado”. Assim, o direito teria se convertido na linguagem da política contemporânea.

52. Tal como alegam José Afonso da Silva e Paulo Bonavides, o direito constitucional contemporâneo é “analítico” e
“dirigente” em sua essência, exatamente porque eivado de valores e compromissos. Ver SILVA, José Afonso da. Curso de
Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Editora RT, 2005 e BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Malheiros Editores, 2004.
53.Ver HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
54. Vale ressaltar que esse novo âmbito nem sempre estabelece relações de concorrência com o âmbito de discussão po-
lítica constituído em torno dos partidos e do Poder Legislativo, bem como em torno das burocracias e do Poder Executivo.
Com alguma freqüência, tais relações são de complementaridade. É o caso do comportamento de alguns partidos políticos
atuantes no Congresso Nacional ao longo da década de 1990, que impetraram várias ações diretas de inconstitucionalidade
contra leis federais aprovadas pelos trâmites legislativos normais.
55. Ver GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

278 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Nesse cenário de juridificação da vida social e política, em que a retórica do di-
reito domina e confere legitimidade aos interesses em disputa, o jogo político ganha
novos contornos e pode incorporar âmbitos de discussão inovadores que multiplicam
os espaços de efetivação dos direitos dos cidadãos. A outra faceta identificável deste
processo seria, portanto, a judicialização da política. Tal situação se caracterizaria
exatamente pela expansão da presença qualitativa do Judiciário e de outros órgãos de
competência judicial na relação com o sistema político – os demais poderes, o governo,
os partidos políticos, as associações civis, a opinião pública. No limite, derivaria da
própria configuração do sistema de justiça como âmbito legítimo de discussão polí-
tica e da tarefa atribuída aos seus órgãos componentes de validar as ações do poder
público e conferir densidade aos princípios constitucionais, atuando como guardiões
das promessas da constituição, nos termos de Garapon.56
O fenômeno da judicialização da política tem recolocado em debate a teoria clás-
sica da separação dos poderes. Na verdade, o fato de que a consagração do controle de
constitucionalidade ao Judiciário nas democracias contemporâneas garante a este poder
uma significativa capacidade de ingerência política sobre o Executivo e o Legislativo seria
uma evidência de que o modelo clássico não reflete a natureza das relações políticas na
atualidade. Conforme argumenta Mauro Cappelletti,57 o constitucionalismo moderno
substituiu o princípio da separação dos poderes pelo princípio dos checks and balances,
por meio do qual afirma-se não tanto uma rígida separação, mas uma relação de sharing
of powers, voltada para o controle da expansão do(s) poder(es) político(s). Esta confi-
guração é característica do cenário contemporâneo, em que as modernas estruturas do
Estado ampliaram crescentemente a sua competência administrativa e legislativa sobre
novas áreas da vida social.
No caso brasileiro, a previsão constitucional atribui ao órgão de cúpula do Ju-
diciário, o STF, o status institucional de guardião-mor da Constituição (artigo 102).
Paralelamente, o Ministério Público foi investido, em caráter inédito, da função de
zelar pela efetivação dos direitos constitucionais, aí incluída a promoção das medidas
necessárias à sua garantia pelo poder público e pelos serviços de relevância pública
(artigo 129, II). Tais previsões constitucionais em relação aos órgãos do sistema de
justiça, particularmente ao Judiciário, têm conseqüências políticas mais ou menos
intervenientes sobre a soberania dos demais poderes do Estado. No caso da declaração
de inconstitucionalidade por omissão, por exemplo, o fato de que ao Judiciário cabe
dar ciência da referida omissão ao poder competente representaria apenas uma “cen-
sura” política; no caso da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo,
contudo, a interferência é absoluta, na medida em que se suspendem os efeitos legais
dos atos dos demais poderes.

56. A necessidade de se proteger a constituição em relação ao jogo político estaria diretamente relacionada ao aprofunda-
mento da democracia, ao fato de que o pluralismo da política democrática traz consigo uma incerteza fundamental sobre a
abrangência dos acordos e o risco sempre iminente de ruptura das fronteiras das comunidades instituídas (Garapon, 1999,
cf. nota anterior). O autor percebeu na judicialização da política um fenômeno social que refletiria uma espécie de reação ao
“desamparo da política”. Resta ponderar, no entanto, que a imagem do juiz como guardião da Constituição está vinculada
ao paradigma de que ele é “a boca que pronuncia a lei”, limitando-se a executá-la e sendo sempre correto em todas as
suas decisões. Fica evidente aqui a preocupação clássica em controlar a constitucionalidade dos atos do Legislativo e do
Executivo, ficando de lado o controle dos atos decisórios do próprio Poder Judiciário.
57. Ver CAPPELLETTI, Mauro. Constitucionalismo moderno e o papel do Poder Judiciário na sociedade contemporânea.
Revista de Processo, nº 60, out-dez de 1990, pp 110-117.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 279


Segundo Oscar V. Vieira,58 o sistema super-rígido de democracia constitucional estipulado
pela Carta de 1988 contribuiu para ampliar o escopo da atuação política do sistema de
justiça, na figura do STF. O fato de que a competência atribuída a este órgão inclui a
avaliação das propostas de reforma do próprio texto constitucional é sintomático por
si só. Como a nova Constituição ampliou as cláusulas sob reserva de constitucionali-
dade – ou as matérias pétreas, que agora incluem a forma federativa de Estado, o voto
direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes, e os direitos e garantias
individuais (artigo 60, parágrafo 4o) –, foi igualmente ampliado o poder do órgão sobre
a vontade de eventuais maiorias formadas nos órgãos de representação popular, que deve
ser sempre submetida à conformação com o texto constitucional.
Em termos institucionais, portanto, a nova ordem reforçou o papel do Judiciário no
jogo político, especialmente o do STF, enquanto uma “instância superior de resolução
de conflitos entre Legislativo e Executivo, e destes com os particulares atingidos por
medidas lesivas de direitos e garantias previstos na Constituição”, nas palavras de Rogério
Bastos Arantes.59 Além de exercer o controle direto de constitucionalidade, o Judiciário
se tornou o órgão para o qual se voltam o Legislativo e o Executivo nas disputas sobre o
alcance e legitimidade de seus respectivos atos enquanto poderes explicitamente políticos.
Estes aspectos afetam a dinâmica das relações entre os poderes no país, trazendo novas
tensões para o jogo político mais amplo.
Do ponto de vista da sociedade civil, o fato de a nova Constituição ter ampliado
a quantidade de agentes legitimados a questionar a constitucionalidade de leis e atos
normativos, entre outros desdobramentos, contribuiu para aumentar a penetração de
demandas políticas no interior do STF; ao mesmo tempo, a “descoberta” das poten-
cialidades oferecidas pelos instrumentos disponíveis envolve a possibilidade de que,
como indica José Eduardo Faria,60 os atores recorram ao Judiciário inspirados por uma
percepção politizada das normas constitucionais, “valorizando a ‘justiça’ em detrimento
do ‘jurídico’ e substituindo o ‘legal’ pelo ‘legítimo’ ”. E o Judiciário terá que lidar com
a crescente politização das demandas que lhe são apresentadas, eventualmente reformu-
lando sua própria forma de perceber o direito e de realizar a justiça.
A percepção desse fenômeno como uma tendência que reflete transformações que
ocorrem na própria dinâmica das sociedades contemporâneas, e que tornam a legitimação
jurídica da política parte importante do jogo democrático, fornece um marco geral para
entender as transformações que têm ocorrido também na vida política brasileira. Entretanto,
a inscrição do Judiciário no quadro constitucional como “agência de controle da vontade do
soberano, permitindo-lhe invocar o ‘justo’ contra a ‘lei’ ”61 sugere a questão de que a eficácia
da Constituição está ligada não somente à mobilização político-jurídica da sociedade civil e
de seus representantes, mas também à operosidade de todo o sistema de justiça do país.
A questão é especialmente importante tendo em vista a concepção de direito aberto,
mas pleno de sentido, consagrada na Constituição de 1988. Isto exige que o sistema de
justiça esteja também ele aberto para as interpretações que os valores e princípios consti-
tucionais possam suscitar. No caso dos novos direitos reconhecidos – os direitos difusos

58. Ver VIEIRA, Oscar V. A constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
59. Ver ARANTES, Rogério Bastos. Judiciário e política no Brasil. São Paulo: Ed. Sumaré/FAPESP/EDUC, 1997, p. 110.
60. Ver FARIA, José Eduardo. Direito e economia na democratização brasileira. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 57.
61. Ver VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 1999, p. 21.

280 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


e coletivos, que caracterizam uma ruptura com o referencial liberal-individualista típico
dos ordenamentos jurídicos anteriores –, é preciso superar o viés positivista e associado
a um liberalismo formal e privatista que ainda hoje marca a cultura dos profissionais do
Direito no Brasil, distanciando-a do reconhecimento de direitos que não se relacionam
imediatamente com a letra da lei e o marco estritamente individual.
Nesse sentido, as possibilidades de efetivação dos novos direitos consagrados consti-
tucionalmente – ou seja, de vigência plena da própria Constituição – estão condicionadas,
no âmbito do sistema de justiça, às possibilidades que seus agentes e seus procedimen-
tos rotineiros autorizam tanto no que se refere à incorporação de um novo escopo de
atuação profissional, quanto no que concerne ao reconhecimento da legitimidade das
novas demandas que passam a ser apresentadas ao sistema. Estas questões relativas à nova
configuração do sistema de justiça brasileiro, com destaque especial para o Judiciário,
estão no cerne das relações atuais entre direto, política e justiça no Brasil.
5 Considerações finais
O capítulo procurou apresentar os principais fatos ocorridos no ano de 2007 e nos pri-
meiros meses de 2008 nos campos da justiça e da segurança pública. No que tange às
mudanças normativas, o texto destacou três novas leis que dão continuidade à reforma
do Código de Processo Penal – buscando tornar a justiça criminal mais ágil e efetiva
e, ao mesmo tempo, preservar os direitos dos acusados nos processos penais –, e novos
regulamentos infralegais que disciplinam a rotina do sistema penitenciário brasileiro,
com vistas a enfrentar alguns dos seus maiores problemas.
O texto trouxe, ainda, a análise da implementação das políticas e programas de
governo nas áreas de justiça e de segurança pública. Merece destaque o fato de que
ano de 2007 foi marcado pela substituição do titular do Ministério da Justiça, com
conseqüências significativas sobre a proposta de atuação da Pasta nos próximos anos.
Insere-se neste contexto o anúncio de que a democratização do acesso à justiça será o
eixo norteador de uma nova fase do processo de reforma do Judiciário, bem como o
lançamento do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, o Pronasci, que
aposta na atuação preventiva sobre o fenômeno da criminalidade por meio da articulação
entre ações de segurança pública e políticas sociais.
Paralelamente, cumpre ressaltar que o ano de 2007 assistiu, na área de justiça,
à entrada em vigor dos institutos da súmula vinculante, da argüição preliminar de
repercussão geral e do processo eletrônico, bem como de medidas racionalizadoras
de natureza administrativa, que tiveram impacto positivo sobre a movimentação pro-
cessual dos órgãos do Judiciário. Na área de segurança pública, programas importantes,
como o Aprimoramento da Execução Penal e o Sistema Único de Segurança Pública,
seguiram dividindo seus recursos entre ações já consolidadas e ações de perfil mais ino-
vador. No primeiro grupo, encontram-se iniciativas como a abertura de novas vagas em
estabelecimentos penais (incluindo as recentes penitenciárias federais) e a modernização
e o reaparelhamento das unidades de segurança pública dos estados; no segundo, ações
voltadas para a produção de informações de gestão e para a capacitação dos operadores
de segurança em todo o país. Paralelamente, a ampliação da capacidade repressiva do
governo federal teve continuidade com o fortalecimento da Polícia Federal e da Polícia
Rodoviária Federal, em termos tanto de pessoal quanto de orçamento.
A análise da atuação do Judiciário brasileiro e das formas de acesso à justiça no país
não está completa sem uma perspectiva mais abrangente que inclua as configurações que

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 281


vêm tomando, de um lado, a relação entre direito, política e justiça e, de outro, a relação
entre os poderes públicos. O Tema em destaque deste capítulo procurou apresentar alguns
elementos essenciais a este debate, analisando tais relações especialmente sob a luz da
dinâmica do controle de constitucionalidade autorizada pela Constituição Federal de
1988. No ano em que se comemoram os vinte anos da Carta Magna, esta é uma discus-
são fundamental para que se possa fortalecer e aperfeiçoar as instituições democráticas
brasileiras e, assim, continuar os avanços no processo de democratização no país.

282 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


IGUALDADE DE GÊNERO

1 Apresentação
A sanção da Lei Maria da Penha (LPM – Lei no 11.340/2006) completou um ano em
agosto de 2007, e sua trajetória até agora vem acompanhada de episódios e desdobra-
mentos da mais diversa ordem, conforme alguns que serão apontados neste capítulo, na
seção Tema em destaque. Ali discutem-se os primeiros resultados da vigência da lei, tanto
do lado da mulher quanto do lado das unidades que atuam no enfrentamento da questão
da violência contra ela (delegacias e postos especializados, juizados e varas específicos,
e outros componentes da rede de atendimento à mulher). Mais além, a seção se detém
ainda nas reações acerca da LPM por parte da sociedade e do Judiciário – o qual inclui
questionamento sobre a própria constitucionalidade da lei.
O capítulo destaca, entre outros marcos em 2007, na seção Fatos relevantes, o lançamento
do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), resultado dos trabalhos de
avaliação do I Plano e da II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM).
Mas isto sem deixar de apresentar analiticamente, ainda que de forma sintética, o desen-
volvimento no mesmo ano dos quatro eixos finalísticos do I PNPM, na seção Acompanha-
mento da política e dos programas, a saber: autonomia, igualdade no mundo do trabalho e
cidadania; educação inclusiva e não-sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos
reprodutivos; e enfrentamento da violência contra as mulheres. A seção dedicada a dar conta
deste acompanhamento discorre ainda sobre a gestão e o monitoramento do I Plano, além
de fornecer elementos sobre a execução financeira da Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres (SPM), que tem como novidade o acolhimento da proposta do PNPM no sentido
de reunir ações a serem executadas por um conjunto importante de ministérios/secretarias
entre os anos de 2008 e 2011.
Dois outros tópicos que também serão examinados neste capítulo dizem respeito
a duas lastimáveis evidências, ocorridas em 2007, do quanto ainda há por fazer em prol
da igualdade de gênero no país – em todas as esferas governamentais, na sociedade or-
ganizada, e até mesmo na concepção das famílias brasileiras: i) a votação e rejeição, na
Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei no 1.135/1991, que trata da descriminalização
do aborto e que tramitava naquela Casa há 17 anos; e ii) os flagrantes disseminados pela
mídia em torno de uma adolescente e uma jovem que dividiam as celas com homens
no estado do Pará, que levaram à formação de um grupo de trabalho interministerial
(GTI) para cuidar da matéria.
Os demais fatos e ações desenvolvidas ao longo de 2007 em torno da igualdade de
gênero no Brasil conformam o capítulo, que conclui com algumas considerações sobre a
situação atual vis-à-vis as perspectivas sobre a efetivação da desejável eqüidade proposta.
2 Fatos relevantes
2.1 O lançamento do II PNPM
O II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), lançado em março de
2008, foi elaborado pelo Comitê de Monitoramento e Articulação do Plano, a partir das

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 283


deliberações da II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM). Seis
novas áreas de atuação estratégica se somaram àquelas constantes do I PNPM, quais sejam:
i) “participação das mulheres nos espaços de poder e decisão”; ii) “desenvolvimento
sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça ambiental,
inclusão social, soberania e segurança alimentar”; iii) “direito à terra, moradia digna e
infra-estrutura social nos meios rural e urbano, considerando as comunidades tradicio-
nais”; iv) “cultura, comunicação e mídia igualitárias, democráticas e não-discriminatórias”;
v) “enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia”; e vi) “enfrentamento das desigual-
dades geracionais que atingem as mulheres, com especial atenção às jovens e idosas”.
A grande inovação foi o destaque conferido à participação das mulheres nos espaços
de poder, como objeto de políticas públicas orientadas para a igualdade de gênero, tema
da II Conferência e, portanto, incorporado ao II Plano Nacional.
A metodologia de construção do II PNPM refletiu avanços, tais como a definição
de recursos por cada ministério para implementação das ações previstas – articulada à
Agenda Social do governo e ao Plano Plurianual (PPA) 2008-2011 –, a ampliação da
rede de parceiros, e o diálogo com a sociedade civil. Durante o processo de elaboração
do II PNPM, foram convocados não apenas os órgãos que já integravam o Comitê
de Articulação e Monitoramento do plano, mas também os representantes dos novos
setores governamentais que passaram a constituí-lo, em face das demandas surgidas na
II CNPM. Na nova configuração, o comitê também ampliou a representação da socie-
dade civil: passou de um para três o número de representantes no Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher (CNDM), e incorporou dois representantes de mecanismos
estaduais de políticas para as mulheres e dois de mecanismos municipais. Na qualidade
de convidadas, representantes dos movimentos de mulheres negras e de mulheres jovens
também participaram dos trabalhos de elaboração do II Plano.
2.2 (Des)criminalização do aborto em debate
Em julho de 2008, os movimentos feminista e de mulheres sofreram uma das maiores der-
rotas na sua história de lutas em prol da garantia de direitos para as brasileiras. O Projeto
de Lei (PL) no 1.135/1991, que tramitava há 17 anos na Câmara dos Deputados, foi final-
mente votado, e rejeitado.
A repentina celeridade que tomou o processo de votação do referido PL, no entanto,
não surpreende. O recrudescimento das reações contrárias à descriminalização do aborto
remonta a abril de 2007, quando o então recém-empossado ministro da Saúde, José
Gomes Temporão, sugeriu a realização de um plebiscito sobre o tema. De acordo com
dados do Ministério da Saúde, os abortos inseguros correspondem hoje à quarta causa
de morte materna no Brasil:1 figuram, portanto, como um grave problema de saúde
pública no país.
Tal disposição do poder público em enfrentar abertamente o polêmico tema do
aborto inseguro surtiu inúmeras reações em cadeia dos setores contrários à descrimina-
lização e à legalização. Uma das mais impactantes foi o resultado da 13a Conferência
Nacional de Saúde, que excluiu do seu relatório final a recomendação da proposta de
discussão sobre a descriminalização do aborto, embora esta tenha sido encaminhada
por dez estados brasileiros. Vale lembrar que, apesar de seus resultados não terem efeito
legal, são tomados como indicativo da sociedade pelos legisladores.

1. Ver MINISTÉRIO DA SAÚDE. Aborto e Saúde Pública: 20 anos de pesquisa no Brasil, Ministério da Saúde, Brasília, 2008.

284 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Outras reações podem ser identificadas nos cerca de 15 projetos de lei que tramitam
no Congresso Nacional, os quais, além de tornarem a legislação mais severa, represen-
tam um retrocesso em direitos já assegurados. É o caso do PL no 478/2007, que prevê
a criação do Estatuto do Nascituro, a fim de garantir o direito do feto à vida, e o PL no
1.763/2007, apelidado de “bolsa-estupro”, que dispõe sobre a assistência financeira à mãe
e ao filho gerado em decorrência de estupro. Soma-se a estas investidas a Campanha da
Fraternidade 2008, cujo lema foi “Escolhe, pois, a vida”, que levou algumas paróquias do
município do Rio de Janeiro a exibirem, nas missas, fetos de resina e vídeos de cirurgias
abortivas a fim de defender a proibição da prática. E, finalmente, merece destaque a ação
penal contra 9.896 mulheres sul-mato-grossenses por crime de aborto.2
Não obstante as contra-reações dos movimentos feminista, de mulheres e de jovens
– que na sua primeira Conferência Nacional da Juventude, realizada em Brasília em abril
de 2008, aprovaram a legalização do aborto entre as suas prioridades –, bem como da
Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), o PL no 1.135/1991 não logrou
sucesso. Em maio último, a Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) rejeitou o
artigo sobre a descriminalização do aborto, sob a alegação de inconstitucionalidade por
“violar o direito à vida”. No entanto, como o PL tratava de outras matérias e a ele estava
apensado o PL no 176/1995, que previa a liberdade de escolha da mulher e estabelecia a
obrigatoriedade da realização da interrupção da gravidez em hospitais públicos, seguiu
para a Comissão de Cidadania e Justiça (CCJ), em que foi novamente rejeitado. Mais
uma vez se assistiu à preponderância de interesses e dogmas religiosos de um grupo em
detrimento da laicidade do Estado, da República, e da vida de milhares de brasileiras.
2.3 Mulheres em situação de prisão
Em meados de novembro, um fato de grande relevância implicou o recrudescimento
dos debates sobre a situação das mulheres encarceradas no país. Vieram a público as
denúncias das prisões de uma adolescente de 15 anos em uma cela com 20 homens,
sofrendo repetida violência sexual, no município de Abaetetuba, e de uma jovem de 23
anos em uma mesma cela com 70 homens, numa delegacia no município de Parauapebas,
ambos no estado do Pará. Estes dois casos levaram à intervenção do Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI) que analisa a situação atual do sistema prisional feminino,3 não
somente para a resolução dos casos, mas também para o empreendimento de mais es-
forços no sentido de melhorar a situação das mulheres encarceradas no país.
Além da SPM, o GTI é composto por mais dez ministérios e secretarias especiais
– Ministérios da Saúde (MS), do Trabalho e Emprego (MTE), da Educação (MEC), do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), da Cultura (MinC), do Esporte
(ME); secretarias nacionais Antidrogas e de Juventude; secretarias especiais dos Direitos
Humanos (SEDH), da Igualdade Racial (Seppir); e Departamento Penitenciário Nacional
do Ministério da Justiça (Depen/MJ).4 Desde o segundo semestre de 2007, quando o
GTI iniciou suas atividades, pautou-se na busca pela construção de um diagnóstico do

2. O processo tramita na 2ª Vara do Tribunal do Júri do Mato Grosso do Sul.


3. O GTI foi criado em junho de 2007 e é coordenado pela SPM.
4. Quando da instituição do GTI, a SPM e o Depen avaliaram que o melhor seria contar com representações do Judiciário
nas oitivas que seriam feitas, tendo em vista que não havia – no Executivo – políticas traçadas para as mulheres no siste-
ma prisional e, assim, tanto o Judiciário como o Legislativo seriam convidados a participar de reuniões específicas com a
finalidade de trazer subsídios para a formulação de propostas, bem como o conhecimento prático da aplicação das leis de
execução penal.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 285


sistema carcerário feminino e, a partir deste, a proposição de uma política a ser desenvol-
vida no âmbito dos estados. Para tanto, foram realizadas audiências com representantes
dos órgãos ligados ao tema (agentes penitenciários, secretários de Justiça dos estados e
pesquisadores), além de visitas a algumas unidades penitenciárias.5
Segundo dados do Depen/MJ, atualmente há no Brasil 55 unidades prisionais fe-
mininas, com 19.034 mulheres presas, o que corresponde a 5% da população carcerária
do país, entre as quais 65% estão no estado de São Paulo. Estima-se um déficit total de
quase 5 mil vagas no sistema penitenciário. O perfil das presas é de mulheres na faixa
dos 20 aos 35 anos, oriundas das camadas mais desfavorecidas da população, chefes de
família com mais de dois filhos e com baixa escolaridade. Com relação às penas, 8,6 mil
mulheres cumprem-nas em regime fechado, 3.185 em regime semi-aberto, 1.629 em
regime aberto, 379 medidas de segurança e 5.228 mulheres são presas provisórias. A situ-
ação se mostra ainda mais grave no caso das mulheres que se encontram em carceragens
policiais: são 6.796 detidas em 995 vagas. Portanto, os casos que foram denunciados no
estado do Pará somente ilustram uma situação das mais preocupantes.
No final de 2007, a partir da análise dos números do sistema penitenciário feminino
e com base nas visitas e audiências realizadas, o GTI apresentou o seu relatório preliminar,
com o diagnóstico e as principais medidas emergenciais para reverter o quadro em que
se encontram as mulheres em situação de prisão no Brasil. De forma geral identificou-se
que as mulheres cumprem pena em espaços inadequados, em situações insalubres; foi
detectado uso excessivo de drogas lícitas, como medicamentos psicoativos, e atendimento
de saúde insatisfatório no que se refere à ginecologia, pré-natal, vigilância sanitária e
epidemiológica. Os espaços destinados a creches são precários e não existem critérios
definidos para a convivência entre mães e filhos. As mulheres não têm garantia plena
de visitas íntimas e há repressão às relações homoafetivas.
São três as medidas emergenciais propostas pelo GTI: i) estabelecimento de parceria
imediata com o Judiciário e demais instituições afins, com vistas a realizar um mutirão
para revisão processual das prisões, que poderá beneficiar cerca de 30% das 25 mil
mulheres que se encontram encarceradas no país; ii) estímulo à realização de convênios
com os governos estaduais, para construção e/ou reforma de cadeias públicas, a fim de
garantir a existência de celas próprias para as mulheres; e iii) readequação do projeto
arquitetônico, elaborado pelo Departamento de Engenharia e Arquitetura do Depen/
MJ, de forma a oferecer celas individuais e instalações adequadas para as mulheres.
Os recursos para tais ações estão previstos no Programa Nacional de Segurança Pública
com Cidadania (Pronasci) e no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Do-
méstica e Familiar contra a Mulher. Este último tem como um dos eixos principais a
promoção dos direitos humanos das mulheres em situação de prisão.6
Em relação ao mutirão de revisão de penas das mulheres encarceradas, em meados
de fevereiro de 2008 foram tomadas as medidas necessárias para dar início aos trabalhos.

5. A primeira visita foi à Penitenciária Feminina de Brasília, localizada na cidade do Gama (DF), na qual o GTI se deparou
com um quadro de grande precariedade: celas lotadas e sem janelas, fossas abertas no chão, cano com água fria para a
higiene e uma ala destinada a presos psiquiátricos, ocupada atualmente por 75 homens. A segunda visita, à Penitenciária
de Sant’Ana, localizada na capital paulista e que abriga 2.700 mulheres, foi motivada por denúncia feita à SPM por en-
tidades da sociedade civil frente às condições degradantes em que se encontram as presas: falta de atendimento médico
preventivo, ambulatorial e emergencial; contaminação da água; falta de assistência jurídica e suspeita de contaminação
por leptospirose dada a presença de ratos e pombos no presídio, a par da morte de uma detenta.
6. A versão final do Relatório do GTI foi lançada no primeiro semestre de 2008.

286 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Durante a abertura da videoconferência com os 26 estados da Federação e o Distrito
Federal para debater a questão, foi assinado um acordo de cooperação técnica entre SPM
e MJ para a elaboração do Mutirão Nacional de Assistência Jurídica às Mulheres em
Situação de Prisão, cuja orientação é a de que seja coordenado preferencialmente pelas
Defensorias Públicas nos estados. Projeta-se que para a sua realização serão mobilizados
centenas de advogados e operadores do Direito para analisar cada um dos cerca de 25 mil
processos. Até julho, 11 estados da Federação (AC, MS, MT, SP, TO, SE, SC, GO, PR,
PE e CE) enviaram projetos para a realização dos mutirões, o que representa um número
aquém da expectativa, dada a situação das encarceradas e o interesse demonstrado por
parte dos estados na videoconferência.7 Os projetos encontram-se sob análise da comissão
formada pela SPM e Depen/MJ, que também acompanhará a sua implementação.
3 Acompanhamento da política e dos programas
O último ano de vigência do I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres foi 2007.
Lançado em dezembro de 2004 como fruto das diretrizes aprovadas na I Conferência
Nacional de Políticas para as Mulheres, o I PNPM agregou ações executadas por diferentes
órgãos do governo federal, com vistas ao enfrentamento das desigualdades de gênero.
Conforme relatado aqui, no mesmo ano foi realizada a II Conferência Nacional, com
o objetivo de avaliar a implementação do I Plano, propondo aprimoramentos e novos
caminhos para os anos seguintes, consubstanciados no II Plano Nacional, com vigência
prevista para o período 2008-2011.
Dado tratar esta edição da execução dos programas em 2007, as realizações apre-
sentadas a seguir ainda refletem a organização do I PNPM, que contava com quatro
eixos finalísticos de atuação, quais sejam: autonomia, igualdade no mundo do trabalho
e cidadania; educação inclusiva e não-sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e
direitos reprodutivos; e enfrentamento da violência contra as mulheres – além de um
quinto eixo que reúne ações relativas à gestão e ao monitoramento da política.
3.1 Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania
Nesta área, cabe destacar a permanente deficiência no envolvimento e protagonismo
do MTE no que diz respeito ao desenvolvimento de ações que possam de fato reverter
as desigualdades historicamente verificadas no mercado de trabalho entre homens e
mulheres. Cabe àquele ministério protagonizar a política de promoção e garantia da
igualdade de gênero no mercado de trabalho, em parceria com outras Pastas e órgãos
que afetam diretamente o setor produtivo, a exemplo do Banco Nacional de Desenvol-
vimento Econômico e Social (BNDES), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior (MDIC), e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(Mapa). No entanto, verifica-se no MTE uma contínua resistência a direcionar ações
para grupos específicos da população, como se assim se explicitasse uma contradição
entre promover os direitos universais e atender as necessidades específicas da população
feminina.8 Tal entendimento dificulta o desenvolvimento de ações que de fato impactem
as desigualdades de gênero observadas no mercado de trabalho, espaço que há décadas
vem sendo objeto de estudos e denúncias de pesquisadores e organizações do movimento
feminista e de mulheres.

7. Cabe registrar que nos estados de SC, GO e PR não há Defensoria Pública. Nestes casos a implementação do mutirão
ficará a cargo da Defensoria Pública da União.
8. Ver o número 14 deste periódico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 287


Os projetos desenvolvidos nessa área foram executados, portanto, pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA), voltados para as trabalhadoras rurais, e pela SPM, sob
a forma de projetos-piloto destinados a estabelecer referências para políticas no setor.
No caso do MDA, importantes iniciativas têm sido tomadas no âmbito do Programa
de Promoção da Igualdade de Gênero e Raça (PPIGRE).9 Na área da agricultura familiar,
o tema que foi objeto de maior debate e atuação do governo federal foi o financiamento
da produção por meio do crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf) e, em especial, do Pronaf Mulher. Na safra 2005/2006 foram efetuados
8.822 contratos do Pronaf Mulher, que representaram um total de R$ 56 milhões aplica-
dos. Já na última safra (2006/2007), contabilizaram-se 10.854 contratos e um volume de
quase R$ 63 milhões emprestados, o que confirmou a tendência de crescimento observada
em anos anteriores. Apesar deste crescimento e da importância do PPIGRE para garantir
uma discussão específica sobre as mulheres no âmbito do ministério, cabe mencionar a
pequena proporção representada por tais contratos em relação à totalidade do programa:
em 2007, o Pronaf contabilizou 1,5 milhão de contratos, no valor global de mais de
R$ 8 bilhões. Para a comercialização da produção, o MDA vem investindo na realização
de feiras10 e centrais de comercialização integradas aos programas de formação e crédito,
em resposta às demandas do movimento social. Como resultado o que vem se verificando
ao longo dos anos é o aumento da participação das organizações protagonizadas por mu-
lheres nas Feiras Nacionais da Agricultura Familiar e Reforma Agrária: elas representavam
1,4% na primeira edição da feira, e atingiram 23% na última.11
Ainda sobre o tema, vale destacar a continuidade e expansão do Programa Nacional
de Documentação da Trabalhadora Rural, que, em 2007, passou a fazer parte da ação
Territórios da Cidadania, a qual, gradativamente, vai envolver 120 territórios rurais
com políticas públicas integradas, entre elas a promoção da emissão do registro civil de
nascimento e documentação civil básica. No decorrer dos três anos e meio de existência
do programa, o governo federal realizou 837 mutirões itinerantes em 1.050 municípios
predominantemente rurais, garantindo a emissão de mais de 546 mil documentos, que
beneficiaram mais de 265 mil mulheres trabalhadoras rurais. Cabe lembrar aqui que os
documentos civis básicos, além de condição para o exercício da cidadania, são também
pré-requisitos para o acesso ao crédito.
No ano de 2007, a SPM desenvolveu suas atividades de promoção da igualdade entre
os sexos no mundo do trabalho e de autonomia das mulheres sob o Programa Incentivo
à Autonomia Econômica das Mulheres no Mundo do Trabalho, do Plano Plurianual então
vigente. O programa, que foi excluído do novo PPA 2008-2011,12 tinha como objetivo
“apoiar iniciativas de empoderamento, autonomização e capacitação de mulheres com
vistas a promover a igualdade de oportunidade no mundo do trabalho, assim como o
incentivo à implementação de projetos orientados para a autonomia econômica das
mulheres, de forma a criar referências para a atuação do governo nas áreas de geração
de emprego, trabalho e renda, tais como incubadoras, cooperativas e associações”.

9. O PPIGRE funciona como um núcleo dentro do MDA que coordena, fomenta e articula as diferentes iniciativas do minis-
tério nas áreas de gênero e raça.
10. O Manual de Orientações aos Expositores, publicado pelo MDA, sugere que as coordenações estaduais das feiras mo-
bilizem e incluam pelo menos 30% de empreendimentos de propriedade de mulheres, ou por elas coordenados.
11. Segundo o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
12. Ver o número 15 deste periódico.

288 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


No total, foram apoiados 25 projetos de organizações não governamentais e de orga-
nismos dos executivos estaduais e municipais em 2007, os quais alcançaram diretamente
15.600 mulheres em dez estados. Este modesto número de projetos apoiados reflete uma
alteração na estratégia de atuação da SPM no que diz respeito às ações na área de trabalho
para o ano de 2007. A partir desta avaliação, optou-se por concentrar os investimentos
em grandes programas, não somente com um atendimento mais expressivo em termos
numéricos, mas que também pudessem se constituir em “boas práticas” e, assim, serem
replicados pelos órgãos responsáveis, tanto no governo federal, quanto nas esferas esta-
duais e municipais, como no caso do Programa Trabalho e Empreendedorismo da Mulher.
Este programa objetiva estimular o empreendedorismo feminino, apoiando as mulheres na
criação e desenvolvimento de seus próprios negócios. Foi implantado em 2007, no estado
do Rio de Janeiro, por haver ali uma experiência pioneira no município de Saquarema, em
parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), com
base em um acordo de cooperação técnica com o governo do estado, por intermédio da
Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos.13 O programa é constituído
por ações de mobilização, sensibilização, capacitação e assistência técnica às mulheres para
possibilitar a criação e a sustentação dos negócios. Constituem o público-alvo do programa
tanto as mulheres identificadas como dotadas de capacidade empreendedora para criar
novos negócios e/ou manter os existentes, quanto aquelas pobres e extremamente pobres,
em situação de risco social e vulnerabilidade e que estejam inscritas, assim como sua rede
familiar, nos programas de inclusão social. Os primeiros resultados foram discutidos e
avaliados em seminário realizado nos dias 16 e 17 de julho em Brasília. Como aspectos
positivos, ressaltaram-se a incorporação das questões de gênero nos cursos de formação do
Sebrae, a maior integração das políticas sociais como Centro de Referência de Assistência
Social (Cras) e Centro de Referência de Atendimento à Mulher (Cram), que atendem
mulheres em situação de violência, e associações de mulheres. O programa encontra-se em
execução, com horizonte de encerramento somente para 2009. Para 2008, está prevista a
implementação do programa no Distrito Federal e no estado de Santa Catarina.
3.2 Educação inclusiva e não-sexista
No que tange à área de educação inclusiva e não-sexista, vale salientar o Programa Mu-
lher e Ciência. O primeiro destaque refere-se à terceira edição do Prêmio Construindo a
Igualdade de Gênero, desenvolvido pela SPM em parceria com o Ministério da Educação
(MEC), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e
Fundo das Nações Unidas para a Mulher (Unifem). O prêmio objetiva a valorização
das pesquisas realizadas e o estímulo à elaboração e divulgação de novos conhecimentos
no campo de estudos das relações de gênero, mulheres e feminismos, e constitui-se de
um concurso de redações para estudantes do ensino médio e de artigos científicos para
estudantes de graduação e graduados.
Essa edição contou com um total de 1.211 trabalhos e 591 inscrições nas categorias
estudantes de graduação e graduados, o que representa um aumento de 64% de trabalhos
inscritos em relação ao ano anterior. Nestas categorias, a participação mais expressiva
foi das regiões Sudeste, Sul e Nordeste do país. Na categoria estudante do ensino médio
foram inscritas 620 redações, das quais 290 foram pré-selecionadas pela equipe técnica
da SPM e da Unifem. Tais inscrições, que refletem a participação da maioria dos estados

13. Cabe salientar que o Ministério do Desenvolvimento Social foi convidado a fazer parte da constituição deste programa,
mas acabou não se inserindo no processo.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 289


do país, evidenciam como aos poucos as reflexões sobre as relações de gênero em suas
interconexões com raça/etnia e sexualidade começam a sensibilizar as escolas do Brasil.
Do total, 60% dos trabalhos foram realizados por mulheres e 40% por homens. A região
com mais inscritos foi a Sudeste, com 221 redações, seguida pela região Nordeste, que
contou com 218 inscrições. Os vencedores da categoria de ensino médio receberam
equipamentos de informática e bolsas de iniciação científica júnior, e os autores dos
melhores artigos científicos da graduação e de graduados receberam prêmios em dinheiro
e bolsas de iniciação científica ou de mestrado/doutorado. A edição de 2007 apresentou
a novidade de as instituições de ensino e os professores também serem agraciados com
computadores e assinaturas da Revista Estudos Feministas e dos Cadernos Pagu.
Outra ação que merece relevo no âmbito do Programa Mulher e Ciência foi a
realização, pela SPM, em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais do Ministério da Educação (Inep/MEC), do Simpósio Gênero e Indica-
dores da Educação Superior Brasileira, em dezembro de 2007. O debate de temas como
a trajetória das mulheres na educação superior, gênero, áreas disciplinares, perspectivas
regionais da educação superior e a construção de indicadores de gênero e raça foram
os destaques do simpósio. O evento responde a uma das principais recomendações do
1o Encontro Nacional de Núcleos e Grupos de Pesquisa Pensando Gênero e Ciências,
realizado em 2006, qual seja: “a formulação de políticas que promovam, a partir de
novas metodologias, a produção e a divulgação de informações estatísticas com dados
desagregados por sexo e raça, em acordos  estabelecidos entre as fundações, agências de
fomento, ministérios, entidades representativas dos pesquisadores profissionais e outros
órgãos públicos”. Tais iniciativas propiciam a visibilidade do tema de gênero e mulheres,
buscando a sua penetração nos mais diferentes níveis do sistema educacional do país.
3.3 Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos
As políticas de promoção da saúde das mulheres e de garantia de seus direitos sexuais
e reprodutivos são protagonizadas, como se deveria esperar, pelo Ministério da Saúde.
À SPM cabe a promoção de parcerias para a construção conjunta de planos, diretrizes
e normas que venham a orientar o atendimento realizado por estados e municípios nos
mais diversos equipamentos de saúde disponíveis para a população.
Nesse sentido, e considerando-se o papel do MS como normatizador de uma política
cuja execução se dá em nível descentralizado, o ano de 2007 foi marcado pelo lançamento
do Plano Integrado de Enfrentamento à Feminização do HIV/AIDS e outras DSTs, em
8 de março, como parte dos eventos de comemoração do Dia Internacional da Mulher,
e, no mês de maio, da Política Nacional de Planejamento Familiar.
O Plano Integrado de Enfrentamento à Feminização do HIV/AIDS e outras DSTs é
resultado de uma parceria entre a SPM e o MS, por meio do Programa Nacional de DST
e AIDS e da Área Técnica de Saúde da Mulher, e pode ser entendido como uma resposta
do governo federal ao crescimento da epidemia de Aids entre as mulheres, especialmente
entre os anos de 1995 e 2005. De fato, a partir de meados dos anos 1990, observa-se
que a taxa de incidência (casos por 100 mil habitantes) diminui entre os homens e cresce
entre as mulheres. Se no início da epidemia a proporção era de 16 casos de Aids em
homens para cada 1 caso verificado em mulheres, atualmente esta razão é de 1,5 homem
para cada mulher, o que indica um crescimento persistente e proporcionalmente mais
intenso no contágio feminino, em especial entre as mulheres adultas casadas.

290 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Para dar conta deste quadro, o plano prevê o desenvolvimento de ações interseto-
riais nos níveis federal, estadual e municipal, com capacidade para acelerar o acesso aos
insumos de prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento das enfermidades sexualmente
transmissíveis e da AIDS, para as mulheres de diferentes regiões do país. Com o objetivo
de reduzir as vulnerabilidades das mulheres em relação ao HIV e outras DSTs, inclui
entre suas metas: dobrar o percentual de mulheres que realizaram testes anti-HIV (de
35% para 70%); reduzir a transmissão vertical de 4% para menos de 1% até 2008;
aumentar a aquisição de preservativos femininos de 4 milhões em 2007 para 10 milhões
em 2008; e eliminar a sífilis congênita.
Ainda no campo da saúde, foi lançada, em maio de 2007, a Política Nacional
de Planejamento Familiar. Também resultado de uma parceria entre o MS e a SPM,
a política tem por objetivo reduzir o número de abortos inseguros no país e os casos
de gravidez indesejada. Para tanto, estão previstas, entre suas ações, a liberação do teto
de pagamento da vasectomia e a oferta de anticoncepcionais (pílulas e injetáveis) em
farmácias e drogarias credenciadas no Programa Farmácia Popular. Na mesma direção,
será ampliada a divulgação de informações sobre os anticoncepcionais, por meio de uma
campanha de veiculação contínua por um ano, e a distribuição de material educativo
sobre todos os métodos anticonceptivos atualmente disponíveis. Por fim, outra linha
de atuação refere-se aos métodos contraceptivos não-reversíveis. O objetivo, neste caso,
é ampliar o acesso das mulheres à laqueadura nos hospitais públicos. No ano de 2002,
havia 262 instituições habilitadas no Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização
da laqueadura tubária; em 2006, contava-se com mais de 1.500 serviços credenciados.
Todas as ações dispostas nessa política guardam um caráter de planejamento fa-
miliar, e não de controle da natalidade. É importante fazer esta distinção, pois, ao se
lançarem programas e políticas desta natureza, pode-se incorrer em uma interpretação
baseada no senso comum de que cabe aos governos – ou de que é seu interesse – de-
senvolver ações para reduzir o número de filhos por mulher brasileira como forma
de controlar a pobreza, o envolvimento com drogas e criminalidade, entre outros.
Diferentemente desta concepção, o que está por trás de uma política de planejamento
familiar como a instituída pelo governo brasileiro é assegurar os direitos sexuais e repro-
dutivos de homens e mulheres, garantindo a cada cidadão o direito de decidir se quer
ter filhos, quantos quer ter e com que intervalo temporal. Resta saber se os resultados
corresponderão às boas intenções de tal intervenção pública.

3.4 Enfrentamento da violência contra as mulheres


Em continuidade à política de alcance nacional para o enfrentamento da violência contra
a mulher desenvolvida pelo governo federal desde 2003, uma inovação a ser destacada é o
incentivo à formação de redes compostas por todos os serviços que atendem a mulher em
situação de violência, com vistas à atuação coordenada dos organismos governamentais
nas três esferas da Federação. O objetivo é oferecer um atendimento integral, que leve
em conta os aspectos jurídico, psicológico e social. A atuação governamental, portanto,
deixa de se limitar ao apoio a serviços e a campanhas isoladas, e passa a se estender de
modo a contemplar o apoio a serviços especializados, aí incluídos: capacitação de agentes
públicos para a prevenção e atendimento; criação de normas e padrões de atendimento;
aperfeiçoamento da legislação; incentivo à constituição de redes de serviços; incentivo
a projetos educativos e culturais de prevenção à violência; e ampliação do acesso das
mulheres à justiça e aos serviços de segurança pública.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 291


Dentro desse marco geral que orienta a política, algumas ações de maior impacto
merecem especial relevo, dados os resultados alcançados em 2007. A primeira é a
ampliação dos serviços especializados de atendimento à mulher. Esta, que se constituiu em
atividade central da SPM em 2007, consiste no apoio financeiro à construção, reforma
ou reaparelhamento dos diversos serviços que compõem a rede de atendimento à mulher
em situação de violência. Como produtos, é possível contabilizar em finais de 2007
a existência de 403 delegacias ou postos especializados de atendimento à mulher
(Deams/PAMs), 96 centros de referência, e 63 casas-abrigo. Ademais, novos instrumentos
começaram a ser implantados, como as Defensorias Públicas das Mulheres (15 defen-
sorias em 2007), os Juizados e Varas Especializados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher (129 serviços14 em 2007), a Central de Atendimento à Mulher – Ligue
180, e a Ouvidoria da SPM.
Além da importância de um serviço nacional e gratuito, que pode constituir uma
importante porta de entrada na rede de atendimento para as mulheres em situação
de violência, a Central de Atendimento à Mulher tem se revelado bastante útil para o
levantamento de informações que subsidiam o desenho da política de enfrentamento da
violência. Ao longo de 2007, foram efetuados quase 200 mil atendimentos a mulheres de
todo o país, 57,4% dos quais referentes ao encaminhamento a serviços da rede. A prestação
de informações e orientações sobre violência doméstica e familiar e direitos da mulher
respondeu por cerca de um terço dos atendimentos realizados, enquanto pouco mais de
10% foram relatos de violência. O 1% restante diz respeito a registros de reclamações,
elogios ou sugestões sobre serviços da rede.
Por sua vez, a Ouvidoria registrou, de janeiro a novembro de 2007, aproximadamente
400 casos que trazem diferentes formas de manifestação da violência ou da violação de
direitos. Todos foram respondidos diretamente para as demandantes com as devidas
informações/orientações, ou encaminhados para os órgãos competentes e acompanhados
até a resolução final.
Em relação ao enfrentamento do tráfico de mulheres, o ano de 2007 foi marcado
pela construção do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que mate-
rializa a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, lançada em outubro
de 2006, por meio do Decreto no 5.948/2006. Para a elaboração do plano foi instalado,
em maio de 2007, um grupo de trabalho interministerial (GTI) – sob coordenação da
SPM, da SEDH e do MJ – que apresentou uma proposta de plano de ações detalha-
do e de monitoramento das atividades. Segundo a proposta, o plano será estruturado
em torno de três grandes eixos: prevenção, repressão e atenção às vítimas de tráfico.
As ações da SPM destinam-se a garantir atendimento específico às mulheres vítimas de
tráfico, a partir do aperfeiçoamento e adequação dos serviços que atendem àquelas em
situação de violência, e a promover a prevenção do tráfico por meio de maior difusão
de informações sobre o tema.
A importância do tema da violência contra as mulheres para o governo federal
foi explicitada em agosto de 2007, quando foi lançado pelo presidente da República
o Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres. Parte da Agenda
Social do governo, o pacto reúne ações a serem executadas nos próximos quatro anos

14. Entre esses serviços, 109 correspondem a juizados e varas adaptados para atender casos de violência doméstica e
familiar contra as mulheres.

292 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


por diferentes órgãos da administração pública, com o objetivo de prevenir e enfrentar
todas as formas de violência contra as mulheres. Atua no sentido de garantir a redução
dos índices de violência, não somente por meio da repressão, mas também da prevenção,
atenção, proteção e garantia dos direitos daquelas em situação de violência, e também da
promoção de uma mudança cultural que dissemine atitudes igualitárias e valores éticos
de irrestrito respeito à diversidade e à paz.15
O pacto tem amplitude nacional, mas, no próximo ano, será priorizada a atuação
em 12 Unidades da Federação, a saber: Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito
Santo, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do
Sul e São Paulo. Os governos do Rio de Janeiro, do Pará e do Espírito Santo já firma-
ram sua adesão e passaram a construir os seus planejamentos estratégicos plurianuais.
Os estados restantes estão em processo de negociação e construção dos seus planejamentos
estratégicos para o enfrentamento da violência contra as mulheres. Uma das principais
dificuldades enfrentadas deve-se à lentidão inerente ao processo de construção de um
projeto integrado entre os diversos órgãos administrativos nos estados e municípios.
A preocupação com o monitoramento e a avaliação dos resultados do pacto tam-
bém norteou as atividades da SPM em 2007. Nesse sentido, foram estabelecidas metas
a serem perseguidas ao longo dos quatro anos de implementação desta nova estratégia
de atuação, e foi instalada, em outubro de 2007, a Câmara Técnica de Monitoramento
das ações do pacto. Vinculada ao Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres, tal câmara tem o objetivo de coordenar a execução
do pacto, monitorar o seu desenvolvimento e o cumprimento das metas apresentadas,
definir estratégias e avaliar os resultados alcançados. Desde sua instalação, a câmara vem se
reunindo periodicamente para elaborar seu planejamento para o período 2008-2011.
3.5 Gestão e monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM)
Finalmente, o quinto e último eixo do I plano Nacional de Políticas para as Mulhe-
res refere-se à sua própria gestão e monitoramento, e encontra respaldo no Programa
Gestão da Transversalidade de Gênero nas Políticas Públicas, sob responsabilidade da
SPM, em seu PPA 2004-2007. Para dar conta de garantir a implementação efetiva do
PNPM, as principais ações desenvolvidas neste âmbito devem se referir à promoção da
transversalização da perspectiva de gênero no nível horizontal (entre órgãos da própria
administração pública federal), vertical (entre governos federal, estaduais e municipais),
e entre Estado e sociedade civil.
No primeiro caso, cabe relembrar que a execução do I PNPM é acompanhada
pelo Comitê de Articulação e Monitoramento do plano, que é a expressão maior da
incorporação e difusão da temática de gênero no espaço do governo federal. Em 2007,
o comitê se dedicou, além de a suas atividades tradicionais, à coordenação e à elaboração
do II PNPM, conforme relatado anteriormente.
Para a promoção da transversalidade de gênero nos governos estaduais e municipais –
estratégia para efetivar a execução do plano na realidade local –, a SPM envidou esforços
no sentido de apoiar a criação, reaparelhamento e fortalecimento de organismos de polí-
ticas para as mulheres nos poderes executivos das esferas subnacionais: em 2007, foram
apoiadas 62 coordenadorias/secretarias ou estruturas similares neste tipo de atividade.

15. Para outros detalhes sobre o pacto, ver o número 15 deste periódico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 293


Para dar lugar ao diálogo e à troca de experiências entre estes organismos, os quais
somavam 179 entre estruturas de estados e municípios, foram realizadas três reuniões
nacionais do Fórum de Mecanismos Governamentais de Políticas para as Mulheres, que,
a partir de 2007, passou a contar também com reuniões regionais.
3.6 Execução financeira da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
Tal como apresentado nas seções anteriores, as ações do governo federal voltadas para a
promoção da igualdade de gênero e para a autonomia das mulheres estão dispersas em
diversos ministérios e secretarias, cabendo à SPM a articulação e coordenação destas
ações, bem como o desenvolvimento de alguns projetos de caráter exemplar, a serem
replicados pelos órgãos responsáveis pela política setorial. Assim, o orçamento destinado
a tal temática no âmbito do governo federal não se resume ao destinado à SPM, mas, ao
contrário, é composto por recursos alocados em outros ministérios e secretarias, dando
concretude ao princípio da transversalidade de gênero nas políticas públicas.
Uma primeira tentativa de estimar esses recursos globais se deu com o Pacto Na-
cional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres. Parte da Agenda Social do
governo federal, o PNPM reúne ações a serem executadas por um conjunto importante
de ministérios/secretarias entre os anos de 2008 e 2011. Se neste período o orçamento
da SPM para o tema será de pouco menos de R$ 150 milhões, os demais órgãos apor-
tarão recursos da ordem de R$ 850 milhões, somando um orçamento total de mais de
R$ 1 bilhão. O mesmo está sendo feito para o II PNPM, que agrega as principais ações
executadas no âmbito do governo federal, no mesmo período, em onze áreas estraté-
gicas, abrangendo desde questões tradicionais – como o enfrentamento da violência, a
inserção no mercado de trabalho e as políticas de saúde –, até novos temas como meio
ambiente, acesso à terra e infra-estrutura social, e participação das mulheres nos espaços
de poder e decisão. Este orçamento deve ser divulgado no segundo semestre de 2008 e
representará a primeira estimativa do montante global de recursos aplicados pela União
em políticas de gênero.
Dada a inexistência, hoje, de um “orçamento-mulher” que possibilite conhecer a
magnitude dos recursos empregados na área, apresenta-se aqui apenas o orçamento da
SPM, como um indicador da evolução da importância do tema no âmbito do Estado ao
longo do período do último Plano Plurianual (PPA) – 2004 a 2007. Cabe lembrar tam-
bém que, assim como ocorre com muitos outros órgãos, a programação da SPM no PPA
não reflete toda a sua atuação, que se dá em grande medida por meio de parcerias.
A tabela 1 traz a execução financeira de todos os programas sob responsabilidade
da SPM para os quatro anos do Plano Plurianual. Um primeiro indicador importante a
ser analisado refere-se à evolução do orçamento total aprovado para a SPM no decorrer
dos anos (lei + créditos). Entre 2004 e 2007, este montante praticamente dobrou, e os
mais significativos incrementos foram verificados nos programas Incentivo à Autonomia
Econômica das Mulheres no Mundo do Trabalho e Prevenção e Combate à Violência contra
as Mulheres. Entretanto, esta ampliação nas Leis Orçamentárias Anuais (Loas) se deu
apenas no ano de 2007, refletindo, por um lado, um maior reconhecimento da relevância
da temática de gênero e dos bons resultados alcançados no período em tela, e, por outro,
a ainda baixa priorização da matéria dentro do governo, uma vez que, até mesmo para
as atividades de articulação, os recursos se mostraram insuficientes.

294 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 1
Execução financeira dos programas da SPM (2004-2007)
(Em R$)
Incentivo à autono-
Prevenção e combate Gestão da transversa-
mia econômica das Atividade
Ano/programa PPA à violência contra as lidade de gênero nas Total
mulheres no mundo administrativa2
mulheres1 políticas públicas
do trabalho
Lei + crédito (A) 12.148.721 5.564.565 4.540.833 6.441.428 28.695.546
Recurso disponível (B) 8.044.308 4.579.293 2.478.992 5.207.985 20.310.579
2004
Liquidado (C) 7.003.998 4.316.627 2.230.627 5.203.356 18.754.608
% (B/C) 87,1 94,3 90,0 99,9 92,3
Lei + crédito (A) 10.943.568 5.566.440 3.437.849 6.564.902 26.512.760
Recurso disponível (B) 9.868.771 3.652.986 2.943.464 5.174.803 21.640.024
2005
Liquidado (C) 9.625.276 3.537.584 2.773.003 5.161.538 21.097.400
% (B/C) 97,5 96,8 94,2 99,7 97,5
Lei + crédito (A) 13.593.385 3.634.662 5.026.790 5.791.915 28.046.751
Recurso disponível (B) 7.870.567 3.210.720 3.639.904 5.581.629 20.302.820
2006
Liquidado (C) 7.843.045 3.210.717 3.639.870 5.295.560 19.989.192
% (B/C) 99,7 100,0 100,0 94,9 98,5
Lei + crédito (A) 22.309.007 8.813.170 11.728.000 6.319.761 49.169.938
Recurso disponível (B) 17.200.780 7.644.527 3.866.536 6.050.291 34.762.134
2007
Liquidado (C) 17.090.000 7.587.776 3.683.314 6.050.290 34.411.380
% (B/C) 99,4 99,3 95,3 100,0 99,0
Lei + crédito (A) 56.087.789 22.297.499 23.697.066 23.570.129 125.652.483
Recurso disponível (B) 40.905.590 18.093.896 12.252.825 20.741.479 91.993.790
Total
Liquidado (C) 39.641.236 17.702.644 11.696.473 20.449.162 89.489.515
% (B/C) 96,9 97,8 95,5 98,6 97,3
Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal/Secretaria do Tesouro Nacional (Siafi/STN).
Notas: 1 Não inclui os valores alocados no Ministério da Justiça (R$ 1.000 mil/ano)
2
Inclui recursos destinados à administração da unidade, administração de pessoal e benefícios.
Obs.: Valores corrigidos para 2007 pela média anual do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Ainda que os recursos destinados à SPM tenham crescido ao longo dos anos, é ne-
cessário atentar para os altos índices de contingenciamento experimentados pelo órgão
em todo o período analisado, o que traz sérias conseqüências para a efetivação do seu
planejamento, o respeito aos compromissos firmados e a capacidade de expandir a política
adotada. Em face deste alto contingenciamento, optou-se por trabalhar com a análise
da execução financeira a partir da comparação daquilo que foi gasto em relação ao que
foi efetivamente liberado para movimentação e empenho. A partir desta metodologia,
tem-se que ao longo de todo o PPA 2004-2007 a SPM apresentou níveis de execução
bastante elevados – próximos a 100%.
4 Tema em Destaque
De inovadora a diabólica: primeiros resultados da Lei Maria da Penha
No segundo semestre de 2007 comemorou-se o primeiro ano de vigência da Lei Maria
da Penha (LMP – Lei no 11.340/2006), que representou um marco histórico na luta
das mulheres contra a violência.16 A grande novidade trazida por este instrumento legal
está na tipificação da violência doméstica e familiar contra as mulheres enquanto um
crime – retirando-a da alçada da Lei no 9.099/1995, que a tratava como uma infração
de menor potencial ofensivo.17
Uma primeira conseqüência da promulgação da lei foi o crescimento do número
de serviços da rede de atendimento à mulher em situação de violência, principalmente

16. Embora a Lei Maria da Penha seja um marco importante das lutas feministas no Brasil, cabe salientar que não se trata
de um tema consensual. É alvo de muitas críticas tanto de setores que visam à promoção dos direitos humanos, que reagem
ao que é considerado o lado conservador da lei por prever a pena de prisão para os agressores, quanto de estudiosos, que
a percebem como mais uma manifestação do fenômeno contemporâneo de judicialização da vida social.
17. Para mais detalhes sobre as inovações introduzidas pela Lei Maria da Penha, ver o número 14 deste periódico.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 295


no que se refere à já mencionada criação dos Juizados e Varas de Violência Doméstica e
Familiar contra as Mulheres, que se deu quase integralmente no ano de 2007.
Em consonância com as recomendações da I Conferência Nacional de Políticas para
as Mulheres, com o Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres e com a Lei
no 11.340/2006, foi constituído, em maio de 2007, o Observatório de Monitoramento
da Implementação e Aplicação da Lei Maria da Penha. Formado por um consórcio de
organizações não governamentais e instituições acadêmicas das cinco regiões do país, o
observatório tem como objetivo monitorar a aplicação da legislação junto a delegacias,
Ministério Público, Defensoria Pública, poderes Judiciário e Executivo, e rede de aten-
dimento à mulher, bem como promover conhecimento sobre o fenômeno da violência
contra as mulheres, seja por meio da produção de pesquisas e estatísticas – conforme
prevê o artigo 8o da referida lei –, seja pela inclusão das estatísticas produzidas pelos
órgãos do sistema de justiça e segurança pública nas bases de dados oficiais, a fim de
subsidiar a construção de um sistema nacional de informações – nos termos do artigo
38 da mesma lei. A produção de dados e estatísticas sistemáticas e oficiais sobre violência
contra as mulheres é da maior importância, não apenas para que seja possível dimen-
sionar o fenômeno, mas também para que sejam produzidos subsídios que orientem
a formulação e avaliação das políticas desenvolvidas. O observatório terá, ainda, um
importante papel no controle social da aplicação da lei, fornecendo não somente aos
órgãos governamentais, mas também à sociedade civil, informações sobre a situação da
violência contra as mulheres no país e os respectivos instrumentos para coibi-la.
As inovações propostas pela Lei no 11.340/2006 trouxeram alguns impactos signi-
ficativos. Entre eles, deve-se destacar tanto a necessidade de uma nova atuação cotidiana
da autoridade policial, com a obrigatoriedade de se instaurarem procedimentos inves-
tigatórios, como os novos papéis para o Judiciário a partir da determinação de criação
dos Juizados Especializados e das Defensorias Públicas da Mulher, com competência
cível e criminal para tratar dos casos.
Com vistas a apurar alguns dos impactos da lei e dar início a um processo de mo-
nitoramento de sua implementação, a SPM realizou uma pesquisa18 junto aos principais
serviços especializados de atendimento à mulher em situação de violência cadastrados
em seu banco de dados, bem como um levantamento dos atendimentos realizados na
sua Ouvidoria e na Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.
A partir desse estudo foi possível conhecer, ainda que de forma preliminar e, portan-
to, incompleta, as principais dificuldades e avanços alcançados com a Lei Maria da Penha
no seu primeiro ano de implementação. Sua utilidade evidencia-se ainda maior em face
dos problemas amplamente conhecidos relativos à falta de sistemática, uniformidade, e
à desagregação dos dados sobre violência contra as mulheres no Brasil.19

18. A pesquisa foi realizada por consultoria específica no âmbito do Projeto Construção e Implementação do Observatório,
da Lei no 11.340/2006 – Lei Maria da Penha.
19. Além da inexistência de estatísticas nacionais, a falta de uma cultura de coleta e sistematização periódica das infor-
mações nos serviços que compõem a rede de atendimento às mulheres torna difícil construir um quadro que retrate a real
magnitude do fenômeno da violência e da intervenção estatal no seu enfrentamento. Além disso, a inexistência de pesquisas
de vitimização de caráter nacional, oficiais e contínuas, também impossibilita a construção de tal diagnóstico. No caso da
violência contra as mulheres, há que se levar em consideração, ainda, outra questão importante: a subnotificação e/ou
notificação incorreta dos casos, o que pode levar à interpretação equivocada de que as menores taxas de denúncia e de
homicídios de mulheres equivalem a uma menor magnitude do fenômeno em apreço.

296 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


4.1 Pesquisa sobre implementação da Lei Maria da Penha (LMP) nos serviços de
atendimento
Os dados foram coletados durante o período de junho a agosto de 2007, junto aos
responsáveis pelos serviços que compõem a rede de atendimento à mulher, a partir do
Sistema Rede Nacional de Atendimento à Mulher da SPM.20 Foram investigados os
centros de referência, casas-abrigo, delegacias e postos especializados de atendimento à
mulher, e Juizados e Varas de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres, que
são os serviços que a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher
define como integrantes da rede.21
No que diz respeito ao funcionamento dos serviços, as principais mudanças
da LMP incidiram sobre a autoridade policial e sobre os procedimentos judiciários.
O breve contato com as/os responsáveis por estes serviços possibilitou identificar, ainda
que de modo impressionista, duas tendências importantes. Segundo estes interlocutores,
percebe-se, em um primeiro momento, um movimento de retraimento e diminuição
da demanda, o que foi atribuído à desinformação tanto das demandantes quanto dos
operadores do direito acerca da lei. Em um segundo momento, passou-se a registrar
um aumento progressivo e significativo da procura, resultante das ações de informação
e divulgação e da construção de parcerias entre os diferentes serviços que compõem a
rede de atendimento à mulher.
Se muitas são as possibilidades trazidas pela Lei Maria da Penha, muitas são tam-
bém as dificuldades práticas para sua implementação. As resistências encontradas dizem
respeito sobretudo aos serviços de segurança pública – especialmente em função da
ampliação do trabalho sob responsabilidade destes atores e da falta de compreensão das
características e da importância do fenômeno –, e no espaço do Judiciário, que ainda
insiste na aplicação da Lei no 9.099/1995 para os casos de violência doméstica, tendo
em vista principalmente os questionamentos sobre a constitucionalidade da LMP.
No âmbito do Judiciário, uma das mudanças mais significativas trazidas pela Lei
Maria da Penha foi precisamente a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Fa-
miliar contra a Mulher (JVDFMs). Além deles, foram pesquisadas as Varas Adaptadas,
que são estruturas que acumulam as atribuições de uma vara criminal comum com
a dos JVDFMs. De agosto de 2006 a setembro de 2007 foram criados 15 juizados e
adaptadas 32 varas, o que, se ainda é um número muito reduzido frente às necessidades
para combate ao fenômeno da violência, é certamente um quantitativo importante, pois
representa uma mudança nos procedimentos e na cultura do Poder Judiciário.
Importa salientar que qualquer análise mais categórica e qualquer avaliação mais
definitiva sobre o impacto social da LMP e sobre a sua eficácia em apenas um ano de
vigência seriam, em grande medida, precipitadas. Deve-se ter em mente que a lei vem
interferir num problema social de grande complexidade: a violência contra as mulhe-
res, que envolve questões culturais profundas e cujas transformações requerem outra

20. Disponível em <http://200.130.7.5/spmu/gerenciamento/atendimento_mnulher.php>.


21. Para cada grande grupo de serviços, foram elaborados roteiros para a coleta de dados, que apresentavam questões
simples e básicas referentes à quantidade de atendimentos e aos novos procedimentos introduzidos pela LMP realizados
nos estabelecimentos ao longo dos oito meses posteriores à promulgação da lei (outubro de 2006 a maio de 2007). Em
relação às informações coletadas junto à Central de Atendimento à Mulher, os dados produzidos também permitem verifi-
car o impacto da criação da Lei Maria da Penha, especialmente pela análise das solicitações de informações sobre a nova
legislação – e, ainda, pelo aumento das demandas no decorrer dos meses posteriores à sua implementação.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 297


temporalidade. Para tanto, há que se garantir a sua aplicação e monitorar os seus resul-
tados ao longo do tempo.
No caso da pesquisa realizada pela SPM, nota-se que se trata de um levantamento
de caráter mais exploratório e pontual para se obter algumas informações específicas
sobre os serviços. Em que pese o seu alcance analítico limitado, os seus resultados trazem
informações de interesse, apresentadas a seguir.
4.1.1 Delegacias e postos especializados de atendimento à mulher
Em relação às delegacias e postos especializados de atendimento à mulher (Deams/PAMs),
os dados permitem construir um diagnóstico não apenas sobre a oferta desses serviços
à população, mas, especialmente, sobre o impacto da Lei Maria da Penha no cotidiano
dos trabalhos nestas instituições e seus respectivos procedimentos.
Para se compreender esses dados há que se levar em conta o histórico desse serviço.
As Deams representaram uma importante conquista do movimento feminista brasileiro
no enfrentamento da violência contra as mulheres. Criadas a partir de 1985, foram, ao
longo da sua trajetória, passando por diferentes transformações. Na sua implantação,
o princípio norteador foi oferecer atendimento às mulheres em situações de violação
de direitos, quaisquer que eles fossem. No ato do atendimento, a autoridade policial
deveria escutar a denúncia, apurar os fatos e proceder a uma investigação. Em vista
disso, os agentes detinham todo o controle dos rumos que a denúncia poderia tomar
no processo. Com tal liberdade sobre as demandas das mulheres, as Deams passaram a
adotar alguns procedimentos distintos do que se esperava ser a sua forma de funciona-
mento. Os registros de ocorrências começaram a ser processados na própria delegacia,
que passou a funcionar como espaço de mediação e de busca de conciliação entre os
casais. As delegadas eram acionadas a fim de “darem um susto” no agressor, supondo
assim reconfigurar as relações conjugais. Neste processo, muitas queixas acabavam por
ser retiradas. A partir desta caracterização, as delegacias especializadas ficaram conhecidas
como exemplo de delegacia que “chama para conversar”. 22
Essa prática sofreu um forte impacto a partir do advento da Lei no 9.099/1995.
Com vistas a promover agilidade e celeridade na Justiça, esta lei criou os Juizados Especiais
Criminais (Jecrims), vocacionados para a conciliação ou a transação penal ao tratar de
“causas de menor complexidade”. Com a sua instalação, a atuação das Deams se recon-
figurou, acabando por ficar mais restrita. A lógica da celeridade imposta pelos Jecrims
fez com que paulatinamente os boletins de ocorrência fossem substituídos pelos termos
circunstanciados de ocorrência (TCOs).23 Com isso, algumas análises demonstram que,
ao longo do tempo, os Juizados Especiais Criminais foram passando por um processo de
“feminização”, posto que a maioria das demandas atendidas advinha de casos de violência
contra mulheres, e muitos deles de violência doméstica e conjugal.
Dez anos após essa mudança, quando a prática de TCOs e de conciliação estava
incorporada e estabelecida, a promulgação da Lei Maria da Penha veio a introduzir

22. Ver MUNIZ, Jacqueline. Os Direitos dos outros e outros direitos: um estudo sobre a negociação de conflitos
nas DEAMs In SOARES, Luiz (org.). Violência e Política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER/Relume Dumará, 1996.
23. Os termos circunstanciados de ocorrência substituem os boletins de ocorrência nos casos de crimes de menor poten-
cial ofensivo – como eram considerados os casos de violência contra a mulheres antes da LMP – e não geram inquéritos
policiais nem processos criminais. O delegado encaminha o TCO diretamente para o Juizado Especial, para que se proceda
à transação penal.

298 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


novas modificações na sua forma de atuação. Em um primeiro momento, esta novidade
(retirada dos casos de violência contra a mulher da alçada dos Jecrims) foi muito prova-
velmente recebida com certa resistência pelos profissionais, acostumados com alguma
rotina de trabalho.
Todo esse breve histórico das mudanças na política de enfrentamento à violência
contra as mulheres deve ser levado em conta em um estudo desta natureza para que se
possa empreender uma adequada interpretação dos dados e um correto acompanhamento
do impacto da Lei no 11.340/2006.
Quando se observa o nível de respostas das delegacias/postos à solicitação enviada
pela SPM, nota-se que este foi de apenas 46%. Neste caso, a maior taxa de retorno foi
da região Sudeste, o que a fez ainda mais sobre-representada no universo das Deams
sobre as quais se conta com dados disponíveis. O menor índice de respostas, por sua
vez, veio do Nordeste (28%).
Entre os dados que permitem visualizar os impactos diretos da Lei Maria da Penha
nas atividades das delegacias especializadas, destacam-se aqueles referentes aos inquéritos
policiais instaurados e às medidas protetivas solicitadas aos juizados/varas que tratam da
violência doméstica contra as mulheres. É importante assinalar, no primeiro caso, o que a
lei determina: qualquer situação de violência doméstica contra as mulheres que chegue às
Deams deve, obrigatoriamente, gerar um inquérito policial composto pelos depoimentos
da vítima, do agressor, das testemunhas, e de provas documentais e periciais.
A LMP tipificou um novo crime, que é a violência doméstica e familiar contra as
mulheres. Não é possível saber, portanto, pelos registros de lesão corporal anteriores, se
estas foram oriundas de casos de violência doméstica e familiar, uma vez que até então
não havia a obrigatoriedade de se especificar se o caso registrado referia-se a este tipo de
fenômeno ou não. Posteriormente à sanção da lei, há a obrigatoriedade de se registrar
a ocorrência como violência doméstica e familiar contra a mulher, assim como de se
instituir um inquérito policial (IP).
Pela própria natureza do IP, que demanda investigação, reunião de provas e monta-
gem de um processo – daí muito mais elaborado, minucioso e demorado que um TCO
–, verifica-se de imediato uma redução natural dos números.24 Estes elementos levam a
concluir que não há como se comparar os números de TCOs anteriores com os núme-
ros de IPs posteriores à LMP, e saber se houve aumento ou diminuição das ocorrências.
Para se ter um retrato mais fidedigno do impacto da LMP na sociedade, há que se aten-
tar para um conjunto importante de variáveis, entre as quais, conforme apresentado a
seguir, o número de inquéritos policiais instaurados e de medidas protetivas solicitadas
após a promulgação da LMP nas Deams, bem como o número de processos, medidas
protetivas concedidas e prisões autorizadas pelos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher.
Entre outubro de 2006 e maio de 2007, nas 184 delegacias que responderam à
pesquisa, foram instaurados 32.630 inquéritos, o que corresponde a uma média de 177

24. Segundo algumas avaliações, a mudança de TCO para IP implicou uma diminuição de reincidências por parte dos
agressores (ver O Popular – GO, seção Cidades de 07.08.07 e O Povo – CE, seção Fortaleza de 07.08.07). Isto indicaria que
a Lei no 11.340/2006 está cumprindo a sua função de coibir a violência. No entanto, há que se ter muito cuidado nestas
afirmações e circunscrever bem o seu escopo interpretativo. Afirmar que a Lei Maria da Penha tem contribuído na diminuição
de reincidências não significa afirmar que ela reduziu a violência que acomete as mulheres, dadas tanto a complexidade do
fenômeno quanto a dificuldade de se contar com dados sistemáticos e de caráter nacional sobre ele.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 299


inquéritos por Deam/Posto de Atendimento à Mulher (PAM). Tal resultado é bastante
positivo, especialmente se se considera que a implementação de tais procedimentos re-
quer uma alteração nas rotinas de atividade dos serviços e um rompimento da cultura e
dos padrões preestabelecidos, conforme colocado anteriormente, o que se constitui em
uma das principais dificuldades para a efetivação da lei.
Quando se trata das medidas protetivas de urgência, cabe destacar que foi estabe-
lecido pela Lei Maria da Penha que a delegacia, ao receber o expediente com o pedido
da mulher em situação de violência, deverá encaminhá-lo ao juiz que, em 48 horas, dará
conhecimento do expediente e decidirá sobre as medidas protetivas cabíveis, determinan-
do o encaminhamento da vítima ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso, e
comunicando ao Ministério Público para adoção das providências necessárias.
Nos primeiros oito meses de vigência da lei, foram solicitadas 16.121 medidas
protetivas de urgência, o equivalente a 88 medidas por Deam. As delegacias e postos das
regiões Centro-Oeste e Sul foram as principais responsáveis por manter a média nacional
em um patamar elevado, uma vez que em cada estabelecimento destas regiões foram
registrados, em média, 194 e 174 demandas no período, respectivamente. No Nordeste
e no Sudeste, contudo, a situação se inverte: a cada Deam ou posto de atendimento
foram solicitadas apenas 28 e 66 medidas protetivas.
4.1.2 Juizados e Varas de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres
A Lei Maria da Penha prevê, em seu artigo 14, a criação, pela União e pelos estados, de
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFMs) como órgãos
da Justiça Ordinária, com competência civil e criminal para o processo, julgamento e
execução das causas decorrentes da prática de violência contra as mulheres. Uma vez
que a legislação permite a criação de juizados, mas não obriga a União ou os estados a
criá-los, várias foram as estratégias adotadas para possibilitar o julgamento dos crimes
de violência doméstica. Entre estas, podem ser enumeradas: i) a transformação de al-
guns juizados, com outras competências, em JVDFMs; ii) a adequação de outros para
acumularem entre suas competências o trato destes crimes; e iii) a designação de varas
criminais para atendimento dos processos oriundos da LMP.
Como resultado dessas possibilidades, foram criados e/ou adaptados, nos oito meses
que se seguiram ao lançamento da lei, 47 juizados ou varas, dos quais aproximadamente
47% localizavam-se nos estados do Sudeste. A região que menos deu concretude à legis-
lação no que se refere a este aspecto específico foi a Nordeste, na qual foi criado apenas
1 (um) juizado para atendimento às mulheres – no estado de Pernambuco – no período.
No entanto, vários foram os relatos de designação de varas criminais para atendimentos
de processos referentes à Lei Maria da Penha na mesma região.

300 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


TABELA 2
Número de Juizados e Varas de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres e de procedi-
mentos selecionados (outubro de 2006 a maio de 2007)

Juizados/varas Juizados/varas
Processos Medidas protetivas Prisões em flagrante Prisões preventivas
existentes que responderam1
Grandes
regiões
Nº Nº Nº Nº Nº Nº Nº Nº Nº Nº
% % % % % %
absoluto absoluto absoluto médio absoluto médio absoluto médio absoluto médio

Norte 5 10,6 3 60,0 1.803 17,3 601 575 11,0 192 178 20,6 59 13 16,9 4
Nordeste 1 2,1 1 100,0 369 3,5 369 110 2,1 110 121 14,0 121 7 9,1 7
Centro-
6 12,8 2 33,3 3.501 33,5 1.751 1.723 32,8 862 223 25,8 112 28 36,4 14
Oeste
Sul 13 27,7 4 30,8 1.783 17,1 446 1.632 31,1 408 256 29,6 64 22 28,6 6
Sudeste 22 46,8 10 45,5 2.994 28,7 299 1.207 23,0 121 86 10,0 9 7 9,1 1
Brasil 47 100,0 20 42,6 10.450 100,0 523 5.247 100,0 262 864 100,0 43 77 100,0 4
Fonte: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2007).
Nota: 1 Número de juizados ou varas que responderam à pesquisa realizada pela SPM.

Do total de juizados/varas existentes, quase 43% responderam à solicitação da SPM


e enviaram informações sobre suas atividades nos meses posteriores à lei, entre as quais
o número de medidas protetivas, processos, prisões em flagrante e prisões preventivas.
As maiores taxas de resposta vieram das regiões Norte e Nordeste, e as menores dos
serviços localizados no Sul e Centro-Oeste.
Entre os meses de outubro de 2006 e maio de 2007 foram instalados, nos 20 jui-
zados/varas que responderam à pesquisa, 10.450 processos, o que equivale a uma média
de 523 processos por serviço. Se a região Sudeste é a que mais concentra estes novos
serviços criados a partir da Lei Maria da Penha, os dados da tabela 2 mostram que os
juizados/varas do Centro-Oeste e do Norte são os que mais têm sido eficientes: seu nú-
mero médio de processos por serviço no período foi de 1.751 e 601, respectivamente.
No sentido oposto encontram-se os estados do Sudeste, que juntos responderam pela
instauração de quase três mil processos, mas que correspondem a uma média de apenas
299 por cada juizado/vara. Tal constatação aponta para as dificuldades encontradas para
a aplicação da lei, as quais vão muito além da já difícil criação dos serviços especializa-
dos, mas dizem respeito à estruturação destes espaços, à existência de recursos dos mais
variados tipos para fazê-los funcionar, e ainda às mudanças nos hábitos consolidados
pela prática jurídica tradicional.
Outra importante informação coletada refere-se às medidas protetivas de urgência
solicitadas pelas delegacias e postos de atendimentos à mulher e concedidas pelos Juizados
e Varas Especializadas de Violência Doméstica e Familiar. No período pesquisado foram
deferidas 5.247 medidas – uma média de 262 por juizado/vara. Importante salientar que
este universo de medidas concedidas não pode ser comparado com o total de medidas
protetivas solicitadas pelas Deams, uma vez que em ambos os casos se está tratando de
uma amostra não estatisticamente representativa do todo, o que impede qualquer com-
paração entre os dados. De qualquer forma, os números mostram que, no mínimo, um
terço das medidas demandadas tem sido deferidas pelos juizados, o que denota tanto uma
boa resposta dos serviços instalados como a aplicação da nova legislação. Entre as medi-
das protetivas mais freqüentes destaca-se, em primeiro lugar, o afastamento do agressor
do lar, seguida pela proibição de aproximação. Este dado aponta para uma tendência de
continuidade das práticas anteriores à promulgação da LMP, visto que a solicitação de
afastamento do agressor do lar em caso de riscos de morte para a mulher sempre foi uma
prática recorrente. Raramente solicitadas e, por conseqüência, concedidas, são a suspensão
do porte de armas e proibição de celebração de contratos, que constituem-se em novas
possibilidades introduzidas pela LMP.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 301


Assim como no caso dos processos, também são os juizados/varas do Centro-Oeste
os que mais têm concedido medidas protetivas de urgência às mulheres em situação
de violência: 1.723 no total, ou 862 por serviço. Tal média é bastante mais alta que a
encontrada nas demais regiões, o que aponta, novamente, para a maior intensidade da
implementação da lei no centro do país. Os serviços do Nordeste e Sudeste seguem sendo
os menos eficientes, com a concessão de apenas 110 e 121 medidas, respectivamente.
Se muitas são as inovações e conquistas asseguradas com a Lei no 11.340/2006,
uma das mais divulgadas e comentadas em diversos espaços da vida social refere-se à
possibilidade de prisão em flagrante, ou preventiva, do agressor. Nos oito meses que se
seguiram à promulgação da lei, foram decretadas 864 prisões em flagrante e 77 prisões em
caráter preventivo. Dado o número de juizados/varas existentes, tem-se, em média, que
cada serviço concedeu autorização para prisão em flagrante de 43 agressores, e preventiva
de outros quatro. Vale lembrar que, segundo o parágrafo único do artigo 20, os juízes
podem revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificarem a falta de motivo
para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
Deduz-se, do baixo número de prisões preventivas em relação ao número de processos
instaurados, que os profissionais das Deams ainda não se apropriaram completamente
dos mecanismos da lei e estão um tanto refratários à sua aplicação na totalidade.
Em termos regionais, lideram o ranking das prisões em flagrante os juizados/varas
do Nordeste e do Centro-Oeste, que decretaram, cada um, uma média de 121 e 112
prisões. Em relação às prisões preventivas, também são os serviços do Centro-Oeste os
que mais têm dado concretude à LPM com um total de 28 prisões, ou 14 por juizado
ou vara pesquisada. A região Sudeste segue concentrando os serviços que menos têm
feito valer a lei, o que ratifica os dados apresentados anteriormente: foram decretadas, no
período aqui analisado, apenas 86 prisões em flagrante e sete preventivas, o que dá uma
média por serviço de nove e uma prisão, respectivamente. A avaliação da concretização
da lei pelo número de prisões, e especialmente de prisões preventivas, se deve ao fato de
ser esta uma importante inovação da LMP, com o objetivo de proteger as mulheres em
situação de violência, assegurando sua vida e integridade física.
4.1.3 Central de Atendimento à Mulher
A Central de Atendimento à Mulher, além de se constituir em uma importante porta de
entrada na rede de atendimento, também é útil para o levantamento de informações que
subsidiam o desenho da política de enfrentamento da violência e assim contribuir para
o seu monitoramento. A central tem ampliado contínua e significativamente o número
de atendimentos realizados. Atualmente, efetua em média 20 mil atendimentos/mês, e
gera dados de atendimento que são classificados em: i) informação; ii) denúncia/relato de
violência; iii) reclamação; iv) elogio; v) sugestão; e vi) encaminhamento aos serviços.
O segundo tipo de atendimento mais realizado – depois do encaminhamento para
serviços especializados de atendimento – é a prestação de informações, que respondeu por
26,7% do total. Entre as orientações mais solicitadas, chamam atenção as relacionadas à
Lei no 11.340/2006, que representam 57% de todas aquelas fornecidas pela central. Isto
significa que no espaço dos primeiros oito meses de vigência da lei foram fornecidas,
somente pelo Ligue 180, mais de 11,1 mil informações sobre a nova legislação, o que
resulta em uma média mensal de 925 atendimentos relacionados a pedidos de orientação
sobre a LMP. Com efeito, este número vem crescendo, tendo passado de um total de
266 informações nos meses imediatamente posteriores à promulgação da lei para mais

302 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


de 5,4 mil um ano depois, e 7,5 mil em dezembro de 2007. Tal constatação evidencia
que tem sido exitoso todo o destaque conferido à lei na mídia e nas ações de divulgação/
sensibilização promovidas pelos governos federal, estaduais e municipais, assim como
pelas organizações da sociedade civil, tornando-a cada vez mais conhecida na socieda-
de em geral e, assim, um instrumento de maior peso para o efetivo enfrentamento da
violência contra as mulheres.
4.2 O debate sobre a constitucionalidade da LMP
Outra manifestação surgida no primeiro ano da Lei Maria da Penha diz respeito aos
questionamentos acerca da sua constitucionalidade, que merecem ser aqui analisados.
De fato, em 2007 observou-se tanto na imprensa nacional quanto nas redes de defesa dos
direitos das mulheres um forte debate acerca da constitucionalidade da LMP, originado
por duas decisões judiciais que se recusaram a aplicá-la em casos de violência doméstica
e familiar, abrindo um debate acerca da sua constitucionalidade.
4.2.1 A lei diabólica: o caso de Sete Lagoas/MG
A divulgação da decisão do juiz da 1a Vara Criminal e Juizado da Infância e Juventude de
Sete Lagoas/MG, proferida em fevereiro de 2007, que recorre a argumentos religiosos e
misóginos para a não-aplicação da LMP, partiu da Comissão de Defesa dos Direitos da
Mulher da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, ao enviar uma moção de
repúdio da decisão à Ouvidoria da SPM. O repúdio se direcionava mais diretamente à
forma como o juiz de 1a instância se reportou à lei a fim de justificar a sua não-aplicação.
O magistrado caracterizou-a como “um conjunto de regras diabólicas”, que redundou
num “monstrengo tinhoso”. Segundo a polêmica argumentação do juiz, “a desgraça
humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em
virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (...). O mundo
é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!”.
Mais além, com base em duas preocupações o juiz justifica o não-deferimento das
solicitações de medidas protetivas de urgência enviadas pelas delegacias que atenderam
as mulheres em situação de violência doméstica: o estatuto social da masculinidade e a
manutenção da coesão familiar. Para o juiz, a LMP tornará os homens “tolos”, para não
se verem incriminados. Nas suas palavras: “Para não se ver eventualmente envolvido nas
armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se
ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões. (...) A vingar esse conjunto
de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os
filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado”.
No entanto, a sentença do juiz foi questionada, e a 4a Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça de Minas Gerais (TJMG), sob o argumento de que a lei é “meio adequado
para se garantir a isonomia entre homens e mulheres, conferindo aplicação concreta
ao previsto no art. 5o, inciso I, da Constituição da República de 1988”, confirmou sua
constitucionalidade e determinou que o juiz daquela 1a vara criminal analisasse as me-
didas protetivas requeridas e aplicasse a lei.
4.2.2 A lei trapalhona: o caso de Itaporã/MS
A segunda sentença, originária de Itaporã/MS, também ganhou notoriedade por se
posicionar contrária à aplicação da LMP, caracterizando-a como “trapalhona” por ferir
preceitos constitucionais. No entanto, não teve tanta repercussão midiática quanto
a anterior, pois se assentava em uma argumentação estritamente jurídica e formal.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 303


Ao contrário da sentença mineira, esta foi mais bem-sucedida: ganhou em primeira e
segunda instâncias da Justiça do estado.
Ambas as decisões se baseiam no argumento de que a Lei Maria da Penha “criou
discriminação, pois coíbe a violência contra a mulher e não a que porventura exista contra
homens”. Segundo o desembargador, seguindo a lógica argumentativa do magistrado e
julgando a sentença procedente, tal discriminação fere os princípios da proporcionalidade
e da igualdade e, logo, desrespeita os objetivos da República Federativa do Brasil. Em vista
destes argumentos, a Lei Maria da Penha foi considerada inconstitucional.
4.2.3. Ataques e reações: o que está por trás das declarações de inconstitucionalidade
Frente às polêmicas sentenças e decisões proferidas, surgiram inúmeras reações dos diferentes
setores da sociedade a fim de reafirmar a constitucionalidade da LMP. Cartas de repúdio
contra os argumentos religiosos e sexistas da sentença do juiz mineiro, assim como artigos
e reportagens invadiram a rede mundial de computadores e a mídia nacional. Organizações
da sociedade civil, pesquisadores e até mesmo alguns juristas manifestaram-se publicamente
em defesa da constitucionalidade da LMP.
Do Executivo originaram-se duas ações marcantes. A primeira veio da Secretaria Espe-
cial de Políticas para as Mulheres (SPM), que oficiou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
então presidido pela ministra Ellen Gracie, sobre a existência das sentenças, solicitando
que tomasse as providências que julgasse cabíveis. A segunda ação, e mais contundente,
foi o ajuizamento de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade no Supremo Tribu-
nal Federal (STF) pelo presidente da República, com vistas a impedir decisões judiciais
de inconstitucionalidade e rejeições das solicitações das medidas protetivas de urgência,
conforme prevê a lei, por parte dos juízes contrários à sua aplicação. O relator da ação no
STF, ministro Marco Aurélio, negou a solicitação, que ainda se encontra em tramitação
no tribunal, em análise pelo Pleno, sem prazo definido para parecer final.
O Poder Legislativo, nas suas diferentes instâncias, também reagiu às declarações de
inconstitucionalidade da lei. De um lado, parlamentares mato-grossenses, instigadas pelo
movimento de mulheres local, realizaram audiência pública a fim de tratar da sentença
de Itaporã. Por outro, a bancada feminina do Congresso Nacional requereu prestação
de esclarecimentos do juiz de Sete Lagoas à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ),
e oficiou a presidente do Supremo Tribunal Federal solicitando providências acerca do
ocorrido. Por sua vez, o Poder Judiciário, demandado pelos diferentes poderes e pela
sociedade civil, representado pelo CNJ, abriu um Processo de Revisão Disciplinar contra
o juiz mineiro, ainda em curso.
É possível extrair lições cruciais dos ataques à constitucionalidade da LMP que
podem colocar em xeque o próprio aprofundamento da democracia no Brasil. Da argüi-
ção quase jocosa, se não fosse trágica, do juiz mineiro pode-se identificar uma ameaça
à laicidade ainda claudicante do Estado brasileiro, em que argumentos religiosos ainda
se imiscuem em questões relativas aos direitos e cidadania. Como se tal ameaça não
fosse o bastante, percebe-se a reprodução de um construto ideológico de família vigente
no ideário social brasileiro, que consolidou o modelo histórico de família patriarcal
como referência central da família brasileira, desconsiderando a pluralidade de arranjos
familiares existentes. Este modelo patriarcal pressupõe padrões estritos de feminilidade
associada à abnegação e ao cuidado, e de masculinidade associada à força e à agressividade,
reforçando relações assimétricas entre os sexos: ao homem cabe o papel de provedor, e
à mulher, o de cuidadora do lar e da prole.

304 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Por seu turno, da argumentação do juiz mato-grossense, baseada no formalismo
jurídico, pode-se identificar a reprodução de uma visão jurídica que se pauta pelo mito
da neutralidade que nega, frente à formalidade da letra fria da lei, as desigualdades de
poder entre homens e mulheres. Tal formalismo, ao desconsiderar a decalagem existen-
te entre a norma e a realidade, vem pôr em xeque as conquistas políticas das mulheres
pela igualdade material, para além da formal. Em última instância, o que se reproduz
sub-repticiamente é o não-reconhecimento da mulher como um sujeito de direitos,
negando-lhe a sua cidadania e relegando-a a uma continuada subalternidade.
No entanto, as reações e mobilizações imediatas à defesa da LMP apontam para
uma transformação profunda em curso na nossa sociedade, que permite a expressão da
diversidade de formas de masculinidade e feminilidade e de arranjos familiares. No bojo
destas mudanças está a constituição de um lugar diferenciado para o fenômeno da vio-
lência contra as mulheres. Embora ainda existam muitas vozes dissonantes, como a do
juiz mineiro, está a se formar um novo consenso sobre a inaceitabilidade e ilegitimidade
da violência contra as mulheres.
Nesse sentido, a Lei Maria da Penha, prestando um reconhecido tributo às mulhe-
res vitimadas pela violência, associa-se a outros mecanismos criados para equilibrar a
desigualdade material em que vivem diferentes sujeitos no nosso país, como o Estatuto
do Idoso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e as leis sobre crimes de racismo.
Estes mecanismos de discriminação positiva contribuem para se alcançar a justiça social,
corolário da igualdade material, na medida em que reconhecem a necessidade de tratar
os desiguais de maneira desigual.
4.3 Perspectivas
A despeito das críticas e dificuldades enfrentadas na implementação da LMP, as suas
inovações são inegáveis, e cabe ressaltar aqui algumas delas, em função do seu impacto
sobre a vida das mulheres e homens no país. As medidas protetivas de urgência que,
entre outras possibilidades, permitem decretar prisões preventivas – em caso de risco
– e prisões em flagrante, têm grande potencial de diminuir as taxas de homicídios de
mulheres. Trata-se de recursos fundamentais de proteção à vida. Por sua vez, a proi-
bição de penas pecuniárias, não obstante ser o ponto de maior dissenso em relação à
lei por prever penas de prisão aos agressores, traz consigo um poderoso instrumento
de transformação simbólica acerca das concepções de gênero vigentes na nossa socie-
dade. Da mesma forma se caracteriza a previsão de criação dos Centros de Educação
e Reabilitação do Agressor. Projeto ainda em construção, os centros visam sobretudo
proporcionar instrumentos para que os agressores revejam as suas práticas e as suas
convenções de gênero.
Tomando-se o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher,
cujo primeiro eixo é totalmente direcionado à Consolidação da Política Nacional de
Enfrentamento da Violência contra as Mulheres e da LMP, percebem-se os esforços para
a sua efetiva implementação. Tendo em vista as previsões de investimentos do governo
federal na área, bem como o grande incentivo aos 12 estados prioritários do pacto no
sentido de proporem projetos para o fortalecimento da rede de atendimento à mulher
e da LMP, é possível vislumbrar que, ao final dos próximos quatro anos, a Lei Maria
da Penha, embora ainda jovem, tenha avanços significativos. Para tanto, contudo, cabe
ainda a monitorar a sua implementação.

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 305


5 Considerações finais
De forma geral, pode-se considerar 2007 um ano de avanços significativos para a pro-
moção da igualdade de gênero no país. A elaboração do II PNPM e suas inovações com
inclusão de seis novas áreas de atuação estratégica, a par da forte marca da sociedade
civil no seu processo de construção, refletem uma maior mobilização em torno da busca
por igualdade entre mulheres e homens no Brasil.
Além disso, do ponto de vista das políticas públicas para as mulheres, representa
um grande avanço o lançamento do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência
contra as Mulheres, que deverá articular diferentes setores governamentais para que,
finalmente, se implemente uma política integrada de enfrentamento deste fenômeno
ainda tão presente em nossa sociedade. Juntam-se ao pacto: i) a busca por melhorias nas
condições das mulheres em situação de prisão, por meio da realização do mutirão para
a revisão das penas e a reforma e construção de cadeias públicas adequadas às especifi-
cidades das mulheres; ii) o aprofundamento da interlocução entre a SPM e o MS para
a promoção de políticas na área de saúde da mulher; e iii) o início de um projeto com
maior potencial na área da autonomia econômica, que é o caso do Programa Trabalho
e Empreendedorismo da Mulher.25
No entanto, a despeito dos inúmeros esforços envidados pela SPM para promover
a transversalidade de gênero, verificam-se algumas estagnações e retrocessos neste pro-
cesso. De acordo com o que se procurou demonstrar na seção 3 deste capitulo (Acom-
panhamento da política e dos programas), a contínua resistência do MTE em promover
ações para enfrentar as desigualdades de gênero no mundo do trabalho, o alto índice de
contingenciamento de recursos da SPM, bem como a ampliação orçamentária ocorrida
somente em 2007 apontam para a não-prioridade das questões relativas à igualdade de
gênero nas políticas públicas, além de revelarem o esforço ainda a ser feito para se efetivar
a referida transversalidade de gênero. Tais dificuldades se somam às crescentes ondas
sociais mais conservadoras, perceptíveis nas temáticas do aborto e dos questionamentos
sobre a LMP e que representam um retrocesso no aprofundamento da democracia no
Brasil. Cabe, assim, acompanhar mais de perto o andamento destas questões, a fim de
contribuir para a realização, de fato, da transversalização de gênero nas políticas, e para
sua tradução em uma verdadeira eqüidade de gênero no país.

25. Conforme discussão na subseção 3.1 deste capítulo.

306 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


GLOSSÁRIO DE SIGLAS

ABA Associação Brasileira de Antropologia


Abcon Associação Brasileira das Concessionárias de Serviços Públicos de
Água e Esgoto
Abes Associação Brasileira de Empresas de Software
ABGLT Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros
Abin Agência Brasileira de Inteligência
ABMP Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude
Abong Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais
ABPD Associação Brasileira de Produtores de Discos
Abpdea Associação Brasileira para Proteção dos Direitos Autorais
Abra Associação Brasileira de Reforma Agrária
Abramge Associação Brasileira de Medicina de Grupo
ABTO Associação Brasileira de Transplante de Órgãos
Acnur Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
Aconeruq Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão
ACS Agente Comunitário de Saúde
ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
Adepol Associação dos Delegados de Polícia do Brasil
Adin Ação Direta de Inconstitucionalidade
Aeps Anuário Estatístico da Previdência Social
Aesbe Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais
Afis Sistema Automatizado de Identificação por Impressões Digitais
AGF Aquisições do Governo Federal
AGU Advocacia Geral da União
AIH Autorização de Internação Hospitalar
AISS Associação Internacional da Seguridade Social
Albigraf Associação Brasileira da Indústria Gráfica
Alca Área de Livre Comércio das Américas
Amencar Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente
AMS Assistência Médico-Sanitária
ANA Agência Nacional de Águas
Anamatra Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 307


Anapp Associação Nacional da Previdência Privada
Ancine Agência Nacional do Cinema
Andifes Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de
Ensino Superior
Aneb Avaliação Nacional da Educação Básica
Anpea Associação Nacional dos Proprietários e Comerciantes de Armas
ANPT Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho
Anresc Avaliação Nacional do Rendimento Escolar
ANS Agência Nacional de Saúde Suplementar
Anvisa Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Apac Autorização de Procedimento de Alta Complexidade
APL Arranjo Produtivo Local
Apoesp Associação dos Professores do Estado de São Paulo
ASPS Ações e Serviços Públicos de Saúde
Assemae Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento
Assera Associação dos Servidores da Reforma Agrária
ASSUFRJ Associação dos Funcionários da Universidade Federal do Rio de Janeiro
ATC Aposentadoria por Tempo de Contribuição
Ater Assistência Técnica e Extensão Rural
BAC Base de Apoio à Cultura
Bacen ou BC Banco Central do Brasil
Bancoob Banco Cooperativo do Brasil S.A.
Bansicred Banco Cooperativo Sicredi
Basa Banco da Amazônia S.A.
BB Banco do Brasil S.A.
BD Benefício Definido
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
Bird Banco Mundial
BN Banco do Nordeste
BN Fundação Biblioteca Nacional
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
BNDPJ Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário
BNH Banco Nacional de Habitação
Bope Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar
BPC Benefício de Prestação Continuada
BT Banco da Terra
Caaf Compra Antecipada da Agricultura Familiar

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Cade Conselho Administrativo de Defesa Econômica
CadÚnico Cadastro Único dos Programas Sociais
CAE Comissão de Assuntos Econômicos
Caeaf Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar
CAFFP Central das Associações Agropastoris de Fundo e Fecho de Pasto
Caged Cadastro Geral de Empregados e Desempregados
Cagedest Caged Estimativas
CAP Centro de Atenção Psicossocial
CAP-AD Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas
Capes Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Capin Caixa de Aposentadorias e Pensões da Imprensa Nacional
CAS Comissão de Assuntos Sociais do Senado
Case Comunidade de Atendimento Socioeducativo
CAT Comunicação de Acidente de Trabalho
CAVC Centro de Atenção a Vítimas de Crimes
CBIA Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência
CBL Câmara Brasileira do Livro
CCA Cooperativa Central de Reforma Agrária
CCFGTS Conselho Curador do FGTS
CCJ Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
CCP Comissão de Conciliação Prévia
CCPNPE Conselho Consultivo do Programa Primeiro Emprego
CD Contribuição Definida
CDAF Compra Direta da Agricultura Familiar
CDC Center for Disease Control and Prevention
CDDPH Conselho de Defesa dos Diretos da Pessoa Humana
CDES Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social
CDHM Comissão de Direitos Humanos e Minorias
CDP Certificado da Dívida Pública
CEA Comissão Especial de Avaliação da Educação Superior
Ceape Centro de Apoio ao Pequeno Empreendedor
Ceas Certificado de Entidade de Assistência Social
Cebas Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social
Cebrid Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas
Cecria Centro de Referências, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes
Cedaw Comitê para Eliminação de todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 309


Cedeplar/UFMG Centro de Planejamento e Desenvolvimento Regional da UFMG
Ceert Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade
CEF Caixa Econômica Federal
Cefet Centro Federal de Educação Tecnológica
Ceff Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos
Ceme Central de Medicamentos
Cendsa Comitê Executivo Nacional para o Desenvolvimento Sustentável
de Alcântara
Cenepi Centro Nacional de Epidemiologia
Cenpec Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária
CEO Centro de Especialidades Odontológicas
Cepal Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
Ceplac Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira
CEPS Conselho Estadual de Previdência Social
Cerlalc Centro Regional para o Livro na América Latina e no Caribe
CES Conselhos Estaduais de Saúde
Cesb Companhias Estaduais de Saneamento Básico
C&T Ciência e Tecnologia
CEU Casa do Estudante Universitário
CF Constituição Federal
CFDD Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos
CFE Conselho Federal de Educação
Cfess Conselho Federal de Serviço Social
CFP Comissão de Financiamento da Produção
CGFAT Coordenação-Geral de Recursos do FAT
CGI Comissão Geral de Investigações
CGPAN Coordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição
CGPC Conselho de Gestão da Previdência Complementar
CGT Central Geral dos Trabalhadores
CGTEE Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica
CGU Controladoria Geral da União
Chesf Companhia Hidro Elétrica do São Francisco
Ciad Conferência de Intelectuais Africanos e da Diáspora
CIB Conselho Intergestores Bipartite
CID Classificação Internacional das Doenças
Cide Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico
CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos

310 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


CIF Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde
CIR Center for International Rehabilitation
Cisan Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional
CIT Comissão Intergestores Tripartite
CLT Consolidação das Leis do Trabalho
CMADS Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
CMN Conselho Monetário Nacional
CMPS Conselho Municipal de Previdência Social
CNA Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil
Cnae Classificação Nacional de Atividades Econômicas
CNAS Conselho Nacional de Assistência Social
CNC Confederação Nacional do Comércio
CNCD Conselho Nacional de Combate à Discriminação
CND Certidão Negativa de Débitos
CNDH Conferência Nacional de Direitos Humanos
CNDI Conselho Nacional dos Direitos do Idoso
CNDM Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
CNDRS Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável
CNE Conselho Nacional de Educação
CNFCP Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
CNI Confederação Nacional da Indústria
CNIC Comissão Nacional de Incentivo à Cultura
CNIR Cadastro Nacional de Imóveis Rurais
CNIS Cadastro Nacional de Informações Sociais
CNJ Conselho Nacional de Justiça
CNMP Conselho Nacional do Ministério Público
CNPB Cadastro Nacional de Planos de Benefícios
CNPC Conselho Nacional de Políticas Culturais
CNPC Conselho Nacional de Previdência Complementar
CNPCP Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
CNPCT Comitê Nacional para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil
CNPIR Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial
CNPJ Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
CNPM Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNPS Conselho Nacional de Previdência Social
CNRAC Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 311


CNRC Centro Nacional de Referência Cultural
CNRT Conselho Nacional de Relações de Trabalho
CNS Conselho Nacional de Saúde
CNS Confederação Nacional de Saúde
CNSAN Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
CNSP Conselho Nacional de Seguros Privados
CNSS Conselho Nacional de Seguridade Social
CNT Confederação Nacional do Transporte
CNTb Conselho Nacional do Trabalho
CNTE Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
Coaf Conselho de Controle de Atividades Financeiras
Cobap Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas
Codefat Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador
Coespir Conferência Estadual de Promoção da Igualdade Racial
Cofecon Conselho Federal de Economia
Coff Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira
Cofins Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social
Cohre Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos
ComVest Comissão Permanente para Vestibulares
Conab Companhia Nacional de Abastecimento
Conad Conselho Nacional Antidrogas
Conade Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência
Conaete Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo
Conaeti Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil
Conamp Associação Nacional dos Membros do Ministério Público
Conanda Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
Conapa Comissão Nacional de Apoio às Penas e Medidas Alternativas
Conapir Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial
Conaq Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas
Conare Comitê Nacional de Refugiados
Conasems Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde
Conass Conselho Nacional de Secretários de Saúde
Conatrae Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo
Condecine Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica
Conep Conselho Nacional de Ética em Pesquisa
Congemas Colegiado Nacional de Gestores Municipais da Assistência Social

312 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


Conjuve Conselho Nacional de Juventude
Consad Conselho Nacional de Secretários de Administração
Consea Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
Consed Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação
Consegue Comissão Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos
Espetáculos Esportivos
Contag Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
Conviver Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Semi-Árido
Corde Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de
Deficiência
CPF Cadastro de Pessoas Físicas
CPI Comissão Parlamentar de Inquérito
CPM Comissão Pastoral do Migrante
CPMF Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
CPMI Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
CPR Cédula de Produto Rural
CPS Conselho de Previdência Social
CPSS Contribuição para o Plano de Seguridade Social do Servidor
CPT Comissão Pastoral da Terra
Cras Centro de Referência da Assistência Social
Creas Centro de Referência Especializado de Assistência Social
Creduc Crédito Educativo
CSJ Consórcio Social da Juventude
CSLL Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
CSN Conselho de Segurança Nacional
CT Cédula da Terra
CTB Carga Tributária Bruta
CTPS Carteira de Trabalho e Previdência Social
CTS Carga Tributária Social
CTSPN Comitê Técnico de Saúde da População Negra
CUT Central Única dos Trabalhadores
CVM Comissão de Valores Mobiliários
Dataprev Serviço de Processamento de Dados da Previdência Social
Datasus Departamento de Informática do SUS
DCA Departamento da Criança e do Adolescente
Dcnem Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio
DCNT Doenças Crônicas Não-Transmissíveis

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 313


DDH Departamento dos Direitos Humanos
Deam Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher
Demu Departamento de Museus e Centros Culturais
Denatran Departamento Nacional de Trânsito
Depec Departamento Econômico
Depen Departamento Penitenciário Nacional
DF Distrito Federal
DFID Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional
e Redução da Pobreza
DHAA Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável
Dieese Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos
Dirur Diretoria de Estudos Regionais e Urbanos
Disoc Diretoria de Estudos Sociais
DNC Departamento Nacional da Criança
DNI Divisão Nacional de Informações
DOU Diário Oficial da União
DPF Departamento de Polícia Federal
DPRF Departamento de Polícia Rodoviária Federal
DPU Defensoria Pública da União
DRCI Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica
Internacional
DRCPim Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Propriedade Imaterial
DRT Delegacia Regional do Trabalho
DRU Desvinculação dos Recursos da União
Dsei Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena
DST Doenças Sexualmente Transmissíveis
DVS Destaque de Votação em Separado
EAPC Entidades Abertas de Previdência Complementar
Ebia Escala Brasileira de Insegurança Alimentar
EC Emenda Constitucional
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
Ecosoc Conselho Econômico e Social da ONU
Ecosol Economia Solidária em Desenvolvimento
EDH Educação em Direitos Humanos
Educafro Educação e Cidadania de Afro-Descendentes e Carentes
EFPC Entidade Fechada de Previdência Complementar
EGF Empréstimos do Governo Federal

314 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


EJA Educação de Jovens e Adultos
Embrafilme Empresa Brasileira de Filmes
Embrapa Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Emgea Empresa Gestora de Ativos
Enade Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes
ENC Exame Nacional de Cursos
Enccla Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de
Dinheiro e Recuperação de Ativos
Enem Exame Nacional do Ensino Médio
Enjune Encontro Nacional de Juventude Negra
EPM Escola Paulista de Medicina
EPT Educação Profissional e Tecnológica
EPUs Encargos Previdenciários da União
ESB Equipes de Saúde Bucal
ESF Equipes de Saúde da Família
FA Fator de Alocação
Faec Fundo de Ações Estratégicas e Compensação
FAF Federação da Agricultura Familiar
Fampe Fundo de Aval do Proger
FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
FAP Fator Acidentário Previdenciário
Fapi Fundo de Aposentadoria Programada Individual
FAR Fundo de Arrendamento Residencial
FAS Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social
FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador
FBN Fundação Biblioteca Nacional
FCEP Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza
FCO Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste
FCP Fundação Cultural Palmares
FCRB Fundação Casa de Rui Barbosa
FCVS Fundo de Compensação de Variação Salarial
FDDD Fundo de Defesa dos Diretos Difusos
FDS Fundo de Desenvolvimento Social
Febec Federação Brasileira das Entidades de Cegos
Febem Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor
Febrasgo Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Pediatria
FEF Fundo de Estabilização Fiscal

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 315


Fenadv Federação Nacional dos Advogados
Fenaseg Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e Capitalização
Fenasp Federação Nacional das Sociedades Pestalozzi
Feraesp Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo
Fetaesp Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura do Estado de
São Paulo
Fetraf Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
FGV Fundação Getulio Vargas
Fibge Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Ficart Fundo de Investimento Cultural e Artístico
Fideps Fator de Incentivo ao Desenvolvimento do Ensino e Pesquisa
Universitária em Saúde
Fies Fundo de Financiamento ao Estudante de Ensino Superior
Fiesp Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
Finep Financiadora de Estudos e Projetos
Finsocial Fundo de Investimento Social
Fiocruz Fundação Oswaldo Cruz
Fipir Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial
FJP Fundação João Pinheiro
FMI Fundo Monetário Internacional
FNAS Fundo Nacional de Assistência Social
FNC Fundo Nacional de Cultura
FNCA Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente
FNDCT Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
FNE Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste
FNHIS Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
FNO Fundo Constitucional de Financiamento do Norte
FNPS Fórum Nacional de Previdência Social
FNS Fundo Nacional de Saúde
FNSP Fundo Nacional de Segurança Pública
FNT Fórum Nacional do Trabalho
FNU Federação Nacional dos Urbanitários
Fonacriad Fórum Nacional de Organizações Governamentais de
Atendimento à Criança e ao Adolescente
Fonseas Fórum Nacional de Secretários Estaduais de Assistência Social
FPE Fundo de Participação dos Estados

316 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


FPM Fundo de Participação dos Municípios
FRGPS Fundo Específico para o Regime Geral de Previdência Social
FSE Fundo Social de Emergência
FSM Fórum Social Mundial
FSPS Fundo Solidário de Promoção Sindical
Funai Fundação Nacional do Índio
Funabem Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
Funarte Fundação Nacional de Arte
Funasa Fundação Nacional de Saúde
Funcab Fundo de Prevenção, Recuperação e de Combate ao Abuso de Drogas
Funcine Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional
Fundeb Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e
de Valorização dos Profissionais de Educação
Fundef Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério
Fundescola Fundo de Fortalecimento da Escola
Funpen Fundo Penitenciário Nacional
Funproger Fundo de Aval para a Geração de Emprego e Renda
Funrural Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural
Fust Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações
Gdamp Gratificação de Desempenho da Atividade do Médico Perito
Gdap Gratificação de Desempenho da Atividade Previdenciária
Gdass Gratificação de Desempenho de Atividade Social
GED Gratificação de Estímulo à Docência
Gedic Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria
Cinematográfica
GEE Grau de Eficiência da Exploração
GER Geração de Emprego e Renda
Gesac Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão
Gfip Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social
GGI Gabinete de Gestão Integrada
GGIM Gabinete de Gestão Integrada Municipal
GHC Grupo Hospitalar Conceição
GLBTTT Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros
Gpaba Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada
GRPE Programa Gênero, Raça, Pobreza e Emprego
Grulac Grupo de Países Latino-Americanos e do Caribe
GSF Gasto Social Federal

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 317


GSFT Gasto Social Federal Tributário
GSHS Global School-Based Student Health Survey
GSI/PR Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República
GT Grupo de Trabalho
GTI Grupo de Trabalho Interministerial
GUT Grau de Utilização da Terra
HBSC Health Behaviour in School-Aged Children
HGB Hospital Geral de Bonsucesso
HPV Papiloma Virus Humano
HSE Hospital dos Servidores do Estado
HU Hospital Universitário
IA grave Insegurança Alimentar Grave
IA leve Insegurança Alimentar Leve
IA moderada Insegurança Alimentar Moderada
Iapi Incentivo de Assistência à População Indígena
Iara Instituto de Advocacia Racial e Ambiental
Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
Ibase Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICCN Instituto de Combate às Carências Nutricionais
ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços
Ideb Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
Idec Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
IDM Índice de Desenvolvimento Municipal
IES Instituição de Ensino Superior
Iesalc Instituto de Estudos Superiores da América Latina e Caribe
Ifeja Índice de Fragilidade em Educação de Jovens e Adultos
Ifes Instituições Federais de Ensino Superior
Ifet Instituições Federais de Educação Tecnológica
IFPI International Federation of the Phonographic Industry
IGD Índice de Gestão Descentralizada
IGP-DI Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna
IGP-M Índice Geral de Preços do Mercado
II Imposto de Importação
Ilanud Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do
Delito e Tratamento do Delinqüente

318 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


IMC Índice de Massa Corporal
IMF Instituições de Microcrédito
Inamps Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
Inan Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição
Inca Instituto Nacional do Câncer
INCC Índice Nacional de Custos da Construção Civil
INCL Instituto Nacional de Cardiologia de Laranjeiras
Incra Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
Inep Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
Infopen Sistema de Informações Penitenciárias
InforSUS Sistema Nacional de Informações de Recursos Humanos do SUS
Infoseg Sistema Integrado de Informações de Justiça e Segurança Pública
INPC Índice Nacional de Preços ao Consumidor
INS Índice de Necessidade em Saúde
INSS Instituto Nacional do Seguro Social
INTEGRASUS Incentivo de Integração do SUS
Into Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia
IOF Imposto sobre Operações Financeiras
IPA Índice de Preços no Atacado
IPC Índice de Preços ao Consumidor
IPCA Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
IPE Índice de Porte Econômico
Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
Iphan Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IPI Imposto sobre Produtos Industrializados
IPMF Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira
IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano
IPVA Imposto sobre Veículos Automotores
IR Imposto de Renda
IRPJ Imposto de Renda - Pessoa Jurídica
IRSM Índice de Reajuste do Salário Mínimo
ISA Instituto Socioambiental
Iser Instituto Superior de Estudos da Religião
ISS Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza
ITBI Imposto de Transmissão de Bens Imóveis por Ato Oneroso
“Inter Vivos”
ITCM Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 319


Iterpa Instituto de Terras do Pará
Itesp Instituto de Terras do Estado de São Paulo
ITR Imposto Territorial Rural
JEF Juizado Especial Federal
JFC Justiça Federal Comum
JT Justiça do Trabalho
LBA Legião Brasileira de Assistência
LBV Legião da Boa Vontade
LC Lei Complementar
LCH Lei de Crimes Hediondos
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
LDO Lei de Diretrizes Orçamentárias
LEP Lei de Execução Penal
Libras Língua Brasileira de Sinais
LOA Lei Orçamentária Anual
Loas Lei Orgânica da Assistência Social
Losan Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional
LPP/Uerj Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro
LRF Lei de Responsabilidade Fiscal
MAB Movimento dos Atingidos por Barragens
MAC Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar
Made Museu Aberto do Desenvolvimento
Mapa Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
MCT Ministério da Ciência e Tecnologia
MCR Manual de Crédito Rural
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MDE Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Mdic Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MEC Ministério da Educação
MEI Módulo de Exploração Indefinida
Mercosul Mercado Comum do Sul
Mesa Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome
MF Ministério da Fazenda
Mieib Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil
MIN Ministério da Integração Nacional

320 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


MinC Ministério da Cultura
MJ Ministério da Justiça
MMA Ministério do Meio Ambiente
MMC Movimento das Mulheres Camponesas
MME Ministério de Minas e Energia
Modermaq Programa de Modernização do Parque Industrial Nacional
Morejus Modernização das Instituições do Judiciário Brasileiro
MP Medida Provisória
MP Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
MP Ministério Público
MPA Movimento dos Pequenos Agricultores
MPF Ministério Público Federal
MPS Ministério da Previdência Social
MPT Ministério Público do Trabalho
MPU Ministério Público da União
MRE Ministério das Relações Exteriores
MS Ministério da Saúde
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MTE Ministério do Trabalho e Emprego
MTO Manual Técnico de Orçamento
Munic Pesquisa de Informações Básicas Municipais
Neab Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros
NF Necessidade de Financiamento
Ninsoc Núcleo de Gestão de Informações Sociais
NIS Número de Identificação Social
Noas Normas Operacionais de Assistência à Saúde
NOB Norma Operacional Básica
NOB-RH Norma Operacional Básica de Recursos Humanos
Novib Netherlands Organization for Development Cooperation
NTN Nota do Tesouro Nacional
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
OCC Outros Custeios e Capital
OCDE Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico
ODM Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
OEA Organização dos Estados Americanos
OGU Orçamento Geral da União
OIJ Organização Ibero-Americana de Juventude

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 321


OIT Organização Internacional do Trabalho
OMC Organização Mundial do Comércio
OMS Organização Mundial de Saúde
ONG Organização Não-Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
Opas Organização Pan-Americana de Saúde
OS Organização Social
Oscip Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
OSS Orçamento da Seguridade Social
OTN Obrigação do Tesouro Nacional
PA Projeto de Assentamento
PA Pronto Atendimento
PAA Programa de Aquisição de Alimentos
Paais Programa de Ações Afirmativas e Inclusão Social
PAB Piso de Atenção Básica
PAC Programa de Aceleração do Crescimento
PAC Programa de Atenção à Criança
PAC Projeto de Assentamento Coletivo
Pacs Programa de Agentes Comunitários de Saúde
PAE Projeto Agroextrativista
Paes Programa de Parcelamento Especial
PAF Projétil de Arma de Fogo
Paif Programa de Atenção Integral à Família
Paism Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
Paiub Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras
PAR Plano de Ações Articuladas
PAR Programa de Arrendamento Residencial
Pasep Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público
PAT Programa de Alimentação do Trabalhador
PBF Programa Bolsa Família
PBPQ Programa Brasileiro de Produtividade e Qualidade
PC Projeto de Colonização
PCA Projeto Casulo
PCC Primeiro Comando da Capital
PcD Pessoas com Deficiência
PCE/Creduc Programa de Crédito Educativo
PCH Pequena Central Hidrelétrica

322 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PCPP Programa de Crédito Produtivo Popular
PCPR Programa de Combate à Pobreza Rural
PCRI Programa de Combate ao Racismo Institucional
PCS Programa de Crédito Solidário
PCT Projeto Cédula da Terra
PDA Plano de Desenvolvimento de Assentamento
PDDE Programa Dinheiro Direto na Escola
PDE Plano de Desenvolvimento da Educação
PDI Plano de Desenvolvimento Institucional
PDS Projeto de Desenvolvimento Sustentável
PEA População Economicamente Ativa
PEC Proposta de Emenda Constitucional
PED Pesquisa de Emprego e Desemprego
PEQ Planos Estaduais de Qualificação
Pesp Planos Estaduais e Municipais de Segurança Pública
PET Programa de Educação Tutorial
Peti Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
Petros Fundação Petrobras de Seguridade Social
PF Polícia Federal
PFL Partido da Frente Liberal
PGBL Plano Gerador de Benefício Líquido
PGFN Procuradoria Geral da Fazenda Nacional
PGMU Plano Geral de Metas de Universalização do Serviço Telefônico
Fixo Comutado
PGPM Política de Garantia de Preços Mínimos
PGRM Programa de Garantia de Renda Mínima
PHPN Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento
PIA População em Idade Ativa
Piac Programa de Incentivo à Adaptação de Contratos
PIACM Plano de Intensificação das Ações de Controle da Malária na
Amazônia
Piaps Plano de Integração e Acompanhamento de Programas Sociais de
Prevenção à Violência
PIB Produto Interno Bruto
Pibid Programa de Bolsa Institucional de Iniciação à Docência
PIC Projeto Integrado de Colonização

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 323


PIC Projeto Inovador de Curso
PICDT Programa Institucional de Capacitação Docente e Técnica
PICDTEC Programa Institucional de Capacitação de Docentes do Ensino Tecnológico
PIS Programa de Integração Social
Pisa Programa Internacional de Avaliação de Alunos
PITCE Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior
Pits Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde
PJR Pastoral da Juventude Rural
PL Projeto de Lei
PlanejaSUS Sistema de Planejamento do SUS
Planfor Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador
PlanSeQ Plano Setorial de Qualificação
PlanTeQ Plano Territorial de Qualificação
PLC Projeto de Lei da Câmara
PLO Projeto de Lei do Orçamento
Ploa Projeto de Lei Orçamentária Anual
PLP Projeto de Lei Complementar
PLS Projeto de Lei do Senado
PMAJ Programa Mundial de Ação para a Juventude
PMDE Programa de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
PME Pesquisa Mensal de Emprego
PMSS Programa de Modernização do Setor Saneamento
PN/DST/Aids Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e da Aids
PNAA Programa Nacional de Acesso à Alimentação
Pnad Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Pnae Programa Nacional de Alimentação Escolar
Pnaes Plano Nacional de Assistência Estudantil
Pnan Política Nacional de Alimentação e Nutrição
Pnas Política Nacional de Assistência Social
Pnate Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar
PNC Plano Nacional de Cultura
PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos
PNDRS Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável
PNE Plano Nacional de Educação
PNEDH Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
Pnete Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo
PNETP Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

324 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


PNH Política Nacional de Habitação
PNI Política Nacional do Idoso
PNLA Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de
Jovens e Adultos
PNLD Programa Nacional do Livro Didático
Pnlem Programa Nacional de Livros Didáticos do Ensino Médio
PNLL Plano Nacional do Livro e Leitura
PNM Política Nacional de Medicamentos
PNMPO Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado
PNPB Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel
PNPCT Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais
PNPE Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego
PNPG Plano Nacional de Pós-Graduação
PNPIR Plano Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
PNPIR Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial
PNPM Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
PNQ Plano Nacional de Qualificação
PNRA Plano Nacional de Reforma Agrária
PNS Plano Nacional de Saúde
PNSP Plano Nacional de Segurança Pública
PNSST Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador
Pnud Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
POF Pesquisa de Orçamentos Familiares
PPA Plano Plurianual
PPCor Programa Políticas da Cor
PPI Programação Pactuada e Integrada
PPI Projeto-Piloto de Investimento
PPIGRE Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia
PPP Perfil Profissiográfico Previdenciário
PPP Parceria Público-Privada
PQD Programa de Qualificação Docente
PRA Plano de Recuperação de Assentamentos
Prasem Programa de Apoio aos Secretários Municipais de Educação
Previ Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil
Previc Superintendência Nacional de Previdência Complementar
Proagro Programa de Garantia da Atividade Agropecuária

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 325


Procera Programa de Créditos para os Assentamentos da Reforma Agrária
Prodasen Centro de Informática e Processamento de Dados do Senado Federal
Prodecine Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional
Prodecult Programa de Desenvolvimento de Cultura
Proeja Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio
na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos
Proemprego Programa de Expansão do Emprego e Melhoria da Qualidade de
Vida do Trabalhador
Proep Programa de Expansão da Educação Profissional
Proex/BB Programa de Financiamento às Exportações do Banco do Brasil
Proext Programa de Apoio à Extensão Universitária
Profae Projeto de Formação de Trabalhadores da Área de Enfermagem
Proformação Programa de Formação de Professores em Exercício
Proger Programa de Geração de Emprego e Renda
ProgeSUS Programa de Qualificação e Estruturação da Gestão do Trabalho e
da Educação no SUS
Proinfantil Projeto de Formação de Professores da Educação Infantil
Proinfo Programa Nacional de Informática na Educação
ProJovem Programa Integrado de Juventude
ProJovem Programa Nacional de Inclusão de Jovens
ProJovem Programa Nacional de Juventude
Prolind Programa Incluir: Acessibilidade na Educação Superior; Programa
de Formação Superior e Licenciaturas Indígenas
Promed Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio
Promisaes Projeto Milton Santos de Acesso ao Ensino Superior
Pronac Programa Nacional de Apoio à Cultura
Pronaf Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
Pronager Programa Organização Produtiva de Comunidades Pobres
Pronasci Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
Prosad Programa de Saúde do Adolescente
Prosup Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino
Particulares
Protech Programa de DifusãoTecnológica para Construção de Habitação
de Baixo Custo
Protejo Proteção dos Jovens em Território Vulnerável
Protrabalho Programa de Promoção do Emprego e Melhoria da Qualidade de
Vida do Trabalhador na Região Nordeste e Norte de Minas Gerais
ProUni Programa Universidade para Todos
Provita Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas

326 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


PRPG Programas Regionais de Pós-Graduação
PRSH Programa de Revitalização de Sítios Históricos
PSB Proteção Social Básica
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PSE Proteção Social Especial
PSF Programa Saúde da Família
PSPS Plano Simplificado de Previdência Social
PT Partido dos Trabalhadores
PTR Programa de Transferência de Renda
Rais Relação Anual de Informações Sociais
RCL Receitas Correntes Líquidas
RDMax Regime Disciplinar Diferenciado de Segurança Máxima
RDPC Renda Domiciliar Per Capita
Recor Registro Comum de Operações de Crédito Rural
Rede Eras Rede de Promoção de Eqüidade Racial em Saúde
Redesap Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e
Adolescentes Desaparecidos
Refis Programa de Recuperação Fiscal
ReforSUS Reforço à Reorganização do SUS
Rejuma Rede Juventude de Meio Ambiente
Renajud Sistema de Restrição Judicial
Rename Relação Nacional de Medicamentos Essenciais
Resex Reserva Extrativista
Reuni Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais
RFB Receita Federal do Brasil
RGPS Regime Geral de Previdência Social
RJU Regime Jurídico Único
RM Região Metropolitana
RMV Renda Mensal Vitalícia
RPPS Regimes Próprios de Previdência Social
SA Segurança Alimentar
Sabi Sistema de Administração dos Benefícios por Incapacidade
SAC Serviços de Ação Continuada
Saeb Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica
SAF Secretaria de Agricultura Familiar
Safe Sistema Nacional de Acompanhamento da Freqüência Escolar

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 327


Sagi Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação
SAI Secretaria de Articulação Institucional
Salic Sistema de Apoio às Leis de Incentivo
SAM Serviço de Assistência aos Menores
Samu Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SAN Segurança Alimentar e Nutricional
Saneatins Companhia de Saneamento de Tocantins
Sanepar Companhia de Saneamento do Paraná
SAS Secretaria de Atenção à Saúde
SAT Seguro contra Acidente de Trabalho
SAV Secretaria do Audiovisual
SBDC Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência
SBM Sistema Brasileiro de Museus
SBP Sociedade Brasileira de Pediatria
SCM Sociedade de Crédito ao Microempreendedor
SDE Secretaria de Direito Econômico
SDS Social Democracia Sindical
SE Secretaria Executiva
Seade Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados
Seae Secretaria de Acompanhamento Econômico
Seas Secretaria de Estado de Assistência Social
Sebrae Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
Secad Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Sectam Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente
SEDH/PR Secretaria Especial dos Direitos Humanos/Presidência da República
SEF Secretaria de Ensino Fundamental
Segets Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde
Selavip Serviço Latino-Americano e Asiático de Vivenda Popular
Selic Sistema Especial de Liquidação e de Custódia
Semur Secretaria Municipal de Reparação
Senac Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
Senad Secretaria Nacional Antidrogas
Senai Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
Senar Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
Senarc Secretaria Nacional de Renda de Cidadania
Senasp Secretaria Nacional de Segurança Pública
Seppir Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

328 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


SES Secretarias Estaduais de Saúde
Sesan Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
Sesc Serviço Social do Comércio
Sesi Serviço Social da Indústria
Sest Serviço Social do Transporte
Sesu Secretaria de Educação Superior
SFC Sistema Federal de Cultura
SFH Sistema Financeiro da Habitação
SFI Sistema Financeiro Imobiliário
Sgep Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
SG/PR Secretaria-Geral da Presidência da República
SIA/SUS Serviço de Informações Ambulatoriais do SUS
Siafi Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal
Sibrater Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Extensão Rural
SIBT Sistema Informatizado do Banco da Terra
Sicorde Sistema de Informações sobre Deficiência
SICPR Sistema Informatizado do Programa de Combate à Pobreza Rural
Sicredi Sistema de Crédito Cooperativo
Sidor Sistema Integrado de Dados Orçamentários
SIFC Secretaria de Incentivo e Fomento à Cultura
Sigae Sistema Integrado de Ações de Emprego
Sigplan Sistema de Informações Gerenciais e de Planejamento
SIH/SUS Sistema de Informações Hospitalares do SUS
SIM Sistema de Informação sobre Mortalidade
Simples Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das
Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte
Sinaes Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior
Sinarm Sistema Nacional de Armas
Sinasc Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos
Sinase Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
Sine Sistema Nacional de Emprego
Sinis Sistema Nacional de Informações
SINTUFRJ Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro
Siops Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde
SIP Sistema de Informação de Produtos
Sipia Sistema de Informações para a Infância e Adolescência

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 329


Sipra Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária
Sisan Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
Sisnad Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
SisProUni Sistema ProUni
SIT Secretaria de Inspeção do Trabalho
SM Salário Mínimo
SMC Sociedade de Microcrédito
SNAS Secretaria Nacional de Assistência Social
SNC Sistema Nacional de Cultura
SNCR Sistema Nacional de Cadastro Rural
SNDC Sistema Nacional de Defesa do Consumidor
SNDH Sistema Nacional de Direitos Humanos
SNHIS Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social
SNI Serviço Nacional de Informações
Snig Sistema Nacional de Informações de Gênero
SNJ Secretaria Nacional de Juventude
SOF Secretaria de Orçamento Federal
SPC Secretaria de Previdência Complementar
SPDCA Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente
SPDDH Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos
SPE Secretaria de Política Econômica
SPE Sistema Público de Emprego
SPE Saúde e Prevenção nas Escolas
SPETR Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
SPI Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos
SPM Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
SPMAP Secretaria de Patrimônio, Museus e Artes Plásticas
Spoa Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração
SPPE Secretaria de Políticas Públicas de Emprego
SPS Secretaria de Políticas de Previdência Social
SPU Secretaria de Patrimônio da União
SQD Sistema de Qualificação da Demanda
SRF Secretaria da Receita Federal
SRP Secretaria de Receita Previdenciária
SSP Secretaria de Segurança Pública
STF Supremo Tribunal Federal

330 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


STJ Superior Tribunal de Justiça
STN Secretaria do Tesouro Nacional
Suas Sistema Único da Assistência Social
SUB Sistema Único de Benefícios
SUS Sistema Único de Saúde
Susep Superintendência de Seguros Privados
Susp Sistema Único de Segurança Pública
TAC Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta
Tafic Taxa de Fiscalização e Controle da Previdência Complementar
TCU Tribunal de Contas da União
TDA Títulos da Dívida Agrária
TFVISA Teto Financeiro da Vigilância Sanitária
TFVS Teto Financeiro da Vigilância em Saúde
TJLP Taxa de Juros de Longo Prazo
TR Taxa Referencial
TST Tribunal Superior do Trabalho
UAB Universidade Aberta do Brasil
UAS Urbanização de Assentamentos Subnormais
UCG Unidades Centrais de Gerenciamento
UDR União Democrática Ruralista
UEL Universidade Estadual de Londrina
Uenf Universidade Estadual do Norte Fluminense
Uerj Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UF Unidade da Federação
UFABC Universidade Federal do ABC
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFF Universidade Federal Fluminense
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFPR Universidade Federal do Paraná
UFRB Universidade Federal do Recôncavo Baiano
UFRPE Universidade Federal Rural de Pernambuco
UnB Universidade de Brasília
Uncme União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação
Undime União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação
UNE União Nacional dos Estudantes

ipea políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 331


Uneb Universidade do Estado da Bahia
Unesco Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
UNFPA Fundo de População das Nações Unidas
UN-Habitat Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos
Uniad Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas
UniAfro Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas
Instituições Públicas de Educação Superior
Unicamp Universidade de Campinas
Unicef Fundo das Nações Unidas para a Infância
Unifem Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher
Unifesp Universidade Federal de São Paulo
Unirede Consórcio Universidade Virtual Pública do Brasil
Urbis Programa de Reabilitação Urbana de Sítios Históricos
Vigiescola Sistema de Vigilância de Tabagismo em Escolares
Vigitel Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico
YRBSS Youth Risk Behavior Surveillance System

332 políticas sociais – acompanhamento e análise | 16 | nov. 2008 ipea


© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2008

EDITORIAL

Coordenação
Iranilde Rego

Revisão
Marco Aurélio Dias Pires
Angélica Cristina de Jesus Amorim (estagiária)
Lilian Mathias Bonfim (estagiária)

Editoração
Jeovah Szervinsk Junior
Bernar José Vieira
Cláudia M. Cordeiro
Elidiane Bezerra Borges

Brasília
SBS – Quadra 1 - Bloco J - Ed. BNDES,
9o andar – 70076-900 – Brasília – DF
Fone: (61) 3315-5336
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ARTE SOBRE FOTO DE JOÃO VIANA DA SILVA
CAPÍTULO 13

O Judiciário e a medida
de abrigo no âmbito
da proteção integral:
a experiência do Rio de Janeiro

Siro Darlan de Oliveira


367
368
A Constituição de 1988, no seu artigo 227, incorporou a teoria da proteção
integral a crianças e adolescentes, atingindo o ponto culminante da evolução do
conhecimento jurídico concernente ao tratamento institucional conferido à infância
e à adolescência.

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao


adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.

A teoria da proteção integral é a compreensão de que as normas que cuidam


de crianças e adolescentes devem tratá-los como cidadãos plenos, sujeitos, porém,
à proteção prioritária, pois se trata de pessoas em desenvolvimento físico,
psicológico e moral. Sua cidadania, como já dito, é plena, sendo-lhes conferidos
todos os direitos a ela inerentes.

Durante muitos anos, a Doutrina da Situação Irregular constituiu-se no


princípio norteador do ordenamento jurídico nacional referente aos chamados
menores pela Lei no 6.697 de 10 de outubro de 1979, antigo Código de Menores.

Resumidamente, podemos definir a situação irregular como uma situação


de abandono, de negação de direitos fundamentais de crianças e adolescentes,
assim como a transgressão das normas do Direito Penal. Em ambos os casos, os
“menores” tinham de ser retirados do convívio social e protegidos pelo aparato
369
estatal. Esse sistema levou à criação da visão cultural contraditória da sociedade
brasileira, presente ainda hoje, de proteção–punição. Ao mesmo tempo em que
se tem piedade das crianças em situação irregular, cobra-se como solução a
transferência dessas crianças e adolescentes para abrigos destinados a carentes e
internatos para os infratores.

A Doutrina da Situação Irregular esculpida no Código de Menores dava ao


juiz a função quase exclusiva de definir o destino das crianças e dos adolescentes
em situação irregular, determinando sua inclusão nos programas de assistência
social ou a reeducação dos infratores.
No contexto sociopolítico e cultural do Brasil de então, o Código de Menores
tornou-se uma arma de discriminação social das crianças e dos adolescentes
pobres, geralmente oriundos de uma família que foge dos padrões da família
tradicional e, conseqüentemente, vive em situação de abandono e segregação.

A Doutrina da Proteção Integral do Menor surgiu na Convenção dos Direitos


da Criança e do Adolescente das Nações Unidas em 1989.

O ECA normalizou a atuação do Poder Judiciário na defesa dos direitos da


criança e do adolescente, atribuindo também ao Ministério Público e aos Conselhos
Tutelares a promoção e a fiscalização dos mesmos direitos e aos conselhos
nacional, estaduais e municipais a competência para formularem as políticas
públicas para a criança e o adolescente.

370 O ECA também atribuiu à Justiça da Infância e da Juventude o poder de


intervenção junto à família e à criança nos casos típicos de descumprimento do
poder familiar.

Nesse contexto, mesmo com a boa vontade do legislador que criou uma
legislação de vanguarda, enfatizando a prioridade absoluta da doutrina da proteção
integral, as formulações de políticas públicas, o destino das verbas e o investimento
em educação estão muito abaixo das expectativas da comunidade.

O papel do Poder Judiciário é fundamental para possibilitar às crianças e


aos adolescentes o acesso aos meios de defesa de seus direitos, responsabilizando
aqueles que porventura venham a ofendê-los.

Em seu artigo 95, o ECA atribui ao juiz da Infância e da Juventude a


competência para fiscalizar as entidades de atendimento. No entanto, essa
fiscalização não pode se resumir à simples observação das instalações físicas. Há
necessidade de se avaliar com igual cuidado os aspectos pedagógicos e psicológicos,
e o atendimento social deve ser realizado no sentido de reintegrar as crianças ou
adolescentes à sociedade (famílias biológicas, substitutas ou independência). Para
isso, o ECA estabeleceu a necessidade de o atendimento à criança e ao adolescente
ser feito por uma equipe profissional composta por psicólogos, um assistente
social e pelo quadro de comissários de Justiça da infância e da juventude, que no
Poder Judiciário do Rio de Janeiro é composto por profissionais com formação
em direito, psicologia, pedagogia, assistência social e administração.

A fiscalização das entidades de atendimento, em especial daquelas que


realizam programa de abrigo, são ações complexas que demandam avaliação do
tipo de trabalho realizado com a família, se há visitas domiciliares e como estão
sendo preservados os vínculos familiares. Nesse aspecto, há necessidade de a
equipe técnica sinalizar, com o maior nível de acerto, a indicação da criança para
inclusão numa família substituta, seja em família extensa ou em famílias indicadas
pelo juiz.

Não raro encontramos adolescentes em situação de risco social que já


perderam os vínculos familiares, ou em que esses vínculos estejam de tal forma
debilitados que se torna difícil uma reintegração familiar mais imediata.

Nesses casos, há a necessidade de um trabalho de autopromoção, auto-


sustento e independência social. Esse trabalho pressupõe que a escolarização, a
inclusão no mundo do trabalho e principalmente a preocupação de trabalhar a
independência social façam com que o jovem adulto possa trilhar sua vida sob
um novo paradigma.

Em 1995, ao assumir a titularidade da 1a Vara da Infância e da Juventude da


Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, constatamos a necessidade de
reorganização do trabalho de fiscalização das entidades de atendimento a crianças
e adolescentes, principalmente no que se referia ao atendimento das entidades de
abrigo. Constatamos que os abrigos que acolhiam nossas 12.800 crianças e
adolescentes, aproximadamente, estavam longe dos preceitos do ECA — não
tínhamos abrigos, mas sim instituições que simplesmente guardavam e, muitas
vezes, molestavam crianças e adolescentes. Eram meninas e meninos com idades
variadas que passavam os dias sem passeios, sem brincadeiras, sem atividades
educativas, sem as perspectivas de mudança em suas vidas. A parte técnica era
um vexame. O histórico social das crianças registradas nas instituições era
371
resumido em poucas linhas e não continha nenhuma informação relevante sobre
suas vidas.

Constatamos que as crianças e os adolescentes vítimas de violência


doméstica, usuários de drogas e principalmente sem qualquer auto-estima
necessitavam de ajuda especializada, mas jamais freqüentaram qualquer terapia
ou atendimento.

Num primeiro momento, foi realizado pela equipe técnica da Vara da Infância
e da Juventude um levantamento das entidades de abrigo que estavam situadas
na Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro. Foram cadastradas 235
entidades de atendimento mais 57 Cieps residenciais.
Quanto ao tipo de atendimento realizado, foram classificadas em linhas
gerais da seguinte forma:

1) Abrigos que tinham uma visão de educação integral das crianças e dos
adolescentes em substituição aos pais, estes, que em muitos casos trabalhavam
várias horas por dia e, além de morar longe ou no próprio trabalho, como
geralmente é o caso de empregadas domésticas, não contavam com o apoio
familiar de um parente ou amigo para cuidar dos filhos por algumas horas
durante o período de trabalho. Nesses abrigos, são grandes os problemas
de violência doméstica, existindo crianças com perfil mais difícil de serem
tratadas.

Nesse tipo de abrigo, o trabalho realizado foi a mudança de regime para

372 atendimento diário e com reserva de poucas vagas para aqueles que tenham
necessidade específica de abrigo, preferencialmente com saídas nos finais
de semana.

2) Abrigos que tinham por meta a retirada das crianças e dos adolescentes
em situação de risco, mantendo-as sob sua proteção, sem, no entanto, terem
a preocupação com o trabalho de reintegração familiar ou colocação em
famílias substitutas. O destino das crianças que eram atendidas nesse tipo
de abrigo era a adoção, quando ainda em tenra idade, ou a exclusão social,
uma vez que, atingida a adolescência, eram encaminhadas para outros abrigos
e ficavam vagando de abrigo em abrigo, conforme a faixa etária, sem que
houvesse nenhum trabalho relevante para o resgate de sua identidade.

3) Abrigos de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e com


participação no tráfico de drogas, que utiliza os adolescentes e atualmente
também crianças para o trabalho de venda de drogas ilícitas - fato agravado
pela crescente dependência química dos adolescentes e das crianças carentes,
que trabalham muitas vezes para financiar o próprio consumo. Em razão
do não-cumprimento de seus deveres com o traficante da área, é comum
serem expulsos da comunidade e, por isto, serem recolhidos em abrigos.

Outra questão relevante a ser abordada é a falta de estrutura familiar. Não


que se queira, nos dias de hoje, apontar a família ideal, mas essa família deve ter
uma estrutura mínima de apoio e suporte que inclua as necessidades fisiológicas,
de segurança, afeto, auto-estima e auto-realização.
Em nossa observação, alguns fatores influenciam definitivamente a ida das
crianças e dos adolescentes para as ruas: a saúde física dos pais ou dos abrigados,
a dependência química dos pais ou dos próprios filhos, a violência doméstica e
comunitária e a prisão dos pais.

No entanto, constatamos que as crianças em real situação de risco eram


minoritárias nos abrigos, tendo em vista que a maioria dos abrigos tradicionais
era destinada exclusivamente a crianças cujas famílias tinham somente dificuldades
financeiras, ou que as mães trabalhavam fora, geralmente domésticas que residiam
no emprego.

A redução do número de crianças abrigadas na Comarca da Capital deu-se,


sobretudo, pela mudança no perfil das famílias de classe média e alta, que em
muitos casos deixaram de manter empregados domésticos dormindo em seus
empregos, e pelo entendimento desse tipo de entidade de abrigo, de que o
atendimento diário supriria as necessidades dessas famílias se fossem atendidas
em um horário que complementasse a jornada escolar, atendendo as crianças e
os adolescentes até as 19 horas.

Embora algumas entidades tenham aderido à mudança de estilo de


atendimento, outras ainda mantêm algumas vagas de atendimento para abrigos
com saída semanal para atender a casos em que os responsáveis trabalham no
período noturno, ou permanecem durante a semana no trabalho. O grande pro-
blema desse tipo de atendimento é a falta de acomodação para os pais frente à
manutenção da necessidade do convívio familiar, bem como a provisoriedade do
atendimento.
373
Quando se fala sobre os grandes entraves à reintegração familiar, temos de
pensar no desafio maior, que é a inclusão social daquelas crianças e adolescentes
que estão em grave risco social, seja pela violência doméstica, seja pela violência
urbana, mas principalmente pelo tráfico de entorpecentes, que afugenta as famílias
das comunidades e leva crianças e adolescentes à rua. Temos ainda que enfrentar
a exploração sexual de crianças e a prática da mendicância.

O trabalho de intervenção da 1a Vara da Infância e da Juventude na


reintegração familiar tem como objetivo fundamental, em primeiro lugar, a
orientação das entidades e o estreitamento das relações com a Justiça da Infância
e da Juventude. No início dos trabalhos, constatamos que o cadastro das entidades
de atendimento e apoio à população infanto-juvenil da Comarca da Capital
necessitava de uma atualização objetivando saber quantas crianças e adolescentes,
efetivamente, estavam abrigados nas diversas unidades e, principalmente, as
condições atuais da instituição quanto ao cumprimento das normas do Estatuto
da Criança e do Adolescente.

A questão maior parece ser a de como incluir os abrigos em um compromisso


com a desinstitucionalização. Conseqüentemente, como fazer com que os abrigos
cumpram as determinações do ECA de serem recursos provisórios. Para assegurar
a efetividade do art. 92 do ECA, são necessárias não só medidas práticas, mas,
fundamentalmente, um processo de mudança de mentalidade das equipes técnicas
e dos dirigentes, no sentido da alteração da lógica asilar e excludente, que ainda
impera no raciocínio cotidiano da grande maioria dessas pessoas.

374 As maiores dificuldades encontradas na conquista desse objetivo são relativas


à resistência dos dirigentes e demais funcionários dos abrigos quanto à função
social do abrigo no contexto das políticas públicas atuais para a infância e a
juventude.

O funcionamento dos abrigos ainda é caracterizado pelo assistencialismo,


que é uma visão fragmentada, reducionista e unilateral do atendimento. Nessa
lógica, as crianças são vistas apenas isoladamente, sem a preocupação de conhecer
de perto a família e a comunidade de origem, recusando-se, assim, o reconheci-
mento do abrigo como um recurso excepcional de passagem no percurso histó-
rico dessas crianças. Essa, infelizmente, ainda é a tônica do atendimento, não só
nos abrigos de crianças e jovens, como também nas demais entidades, inclusive
naquelas que trabalham com adultos e famílias em situação de risco social.

Na via do assistencialismo, as famílias são tomadas numa relação ambígua,


entre a vitimização e a culpabilidade, obscurecendo a dimensão do lugar que
ocupam como atores sociais, detentores de direitos e deveres no exercício da
cidadania. Nesse sentido, estamos no momento de desconstrução definitiva da
imagem benevolente dos mantenedores dessa perspectiva de assistência social.

É importante salientar o objetivo principal do abrigo, que é promover a


reintegração social. A lógica da reintegração social deve priorizar a família possível:
que seja feito um trabalho no sentido de viabilizar uma família substituta, podendo
ser inclusive a família extensa. Nos casos em que nenhuma dessas alternativas
seja viável, que os abrigos trabalhem no sentido de proporcionar que a criança
ou o adolescente adquiram o máximo de autonomia, seja para as atividades de
vida diária, no caso dos portadores de necessidades especiais, seja no sentido de
adquirirem independência financeira e emocional para enfrentar a vida de forma
positiva.

O ECA é claro em instituir a provisoriedade do abrigo. Porém, para que


isso aconteça, há a necessidade da realização de um trabalho de reorganização da
família de origem. Nesse sentido, o trabalho da equipe técnica tem de ser dinâmico,
interdisciplinar e construtor de uma nova visão de sociedade, objetivando a
busca da autonomia.

Em linhas gerais, para que haja um trabalho efetivo, destacam-se duas


diretrizes atuais: (i) para haver desinstitucionalização não basta o retorno ao lar,
é preciso também a inserção na rede e o acompanhamento do processo; (ii) o
comprometimento dos pais é prioritário para que os abrigos possam diminuir e
para que possam durar menos tempo quando forem necessários.

Os juizados, provocados pelo Ministério Público, têm como papel principal


a responsabilização parental e a fiscalização dos demais equipamentos no tocante
ao cumprimento de seus papéis. Contudo, muitas vezes as instâncias jurídicas
colocam as famílias num plano secundário. Após um período de abrigo, a família
de origem aparece como uma das opções (as instâncias jurídicas se vêem tendo
de decidir entre a família de origem, uma família substituta e o abrigo).

Seria preciso reelaborar as políticas de adoção e destituição do poder familiar.

Outra função da Justiça da Infância e da Juventude é trazer ao poder público


Executivo a discussão sobre sua atuação, levando a responder judicialmente por
sua omissão em relação à falta de políticas públicas que atendam às demandas de
saúde, incluindo o planejamento familiar, as terapias para usuários de drogas nos
375
postos de saúde e hospitais, escolas e creches de qualidade com atendimento
pedagógico que respondam às necessidades das crianças e dos adolescentes.

O programa de trabalho da 1a Vara da Infância e da Juventude divide-se nas


seguintes ações:

• cadastrar todas as instituições que atendem as crianças e os adolescentes,


determinando a faixa etária de atendimento, o tipo de atendimento, convênios,
mantenedoras e regularização da documentação. Esse levantamento é
fundamental para conhecer o tipo de trabalho realizado pela entidade, a
qualidade do atendimento, o trabalho com as famílias e com as comunidades
em que está inserida.
• cadastrar e atualizar sistematicamente os dados de todas as crianças e
adolescentes abrigados na Comarca da Capital por processo informatizado
realizado pelo cartório de procedimentos virtuais, apontando o tempo de
abrigo, os motivos, as reincidências, os dados familiares, a escolaridade,
além de controlar o envio de estudos sociais pela entidade de abrigo.

A equipe da 1a Vara da Infância e da Juventude, em cumprimento ao que


preceitua o artigo 95 do ECA, visita periodicamente as instituições para verificar
as condições de atendimento às crianças abrigadas, seu relacionamento com os
familiares ou responsáveis, relatando a visita para ciência do juiz da 1a Vara da
Infância e da Juventude.

Durante as visitas de finalização, é detectada a necessidade de se programar

376 uma Visita Judicial de Reavaliação da medida de abrigo, na qual se fazem presentes
todos os responsáveis pela aplicação da medida de abrigo e da fiscalização das
entidades de atendimento, a saber: o Poder Judiciário, o Ministério Público e o
Conselho Tutelar.

O objetivo das visitas é realizar uma análise conjunta das medidas que
serão impostas aos pais, o suporte social que a família precisa para reinserir seus
filhos no seu seio e o levantamento das situações que possibilitam a colocação
em família substituta.

Outro aspecto que é discutido nas visitas são as deficiências do atendimento


apontadas nos relatórios de fiscalização do juiz (portaria), do Ministério Público
e do Conselho Tutelar (representação), visando à orientação e à cobrança de
melhorias efetivas das irregularidades apresentadas. Nesse caso, a autoridade
judiciária determina um prazo para a remoção das irregularidades a teor do artigo
191, parágrafo 3o, do ECA.

Nestes últimos oito anos, foram realizadas várias audiências de reavaliação.


Apresentamos a seguir alguns números relativos às visitas a abrigos, assim como
audiências de visitação e alterações na realidade nesse período. São apresentadas,
também, as mudanças realizadas na rede de abrigos do município do Rio de
Janeiro como resultado das visitas aos abrigos, assim como das audiências de
visitação:

• número de entidades que mudaram de regime de internação total para


atendimento dia: 14;
• número de entidades que encerraram suas atividades por não se adaptarem
às regras do ECA: 33;

• entidades que passaram a atender com regime misto de abrigo e


atendimento, dia: 14;

• entidades que passaram a atender com regime de abrigo com saídas nos
fins de semana: 15;

• entidades de abrigo com atendimento integral: 89;

• Cieps residenciais em funcionamento: 45;

• abrigos para adolescentes cujas atividades foram encerradas: 10;

• número de reintegrações familiares acompanhadas pelo JIJ e pelo Conselho


Tutelar e crianças e adolescentes colocados em família substituta: 8.600;

• atendimento na Escola de Pais em 14 turmas nos últimos cinco anos:


1.050.

377
ARTE SOBRE FOTO DE JOSÉ VARELLA
CAPÍTULO 2

O perfil da criança
e do adolescente
nos abrigos pesquisados

Enid Rocha Andrade da Silva

41
42
2.1 POBREZA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS
DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

As crianças e os adolescentes representam 34% da população brasileira, o


que, em números absolutos, significa um contingente de 57,1 milhões de pessoas.1
Cerca da metade das crianças e dos adolescentes do Brasil - 48,8% e 40%,
respectivamente - é considerada pobre ou miserável, pois nasce e cresce em
domicílios cuja renda per capita não ultrapassa meio salário mínimo (tabela 1).

TABELA 01
Brasil: população de 0 a 18 anos, segundo a renda per capita domiciliar

FAIXA ETÁRIA
0 a 11 anos incompletos 12 a 17 anos incompletos 0 a 17 anos incompletos

Faixa de RDPC* nº % % acum. nº % % acum. nº % % acum.

Até 1/4 SM 8.327.671 22,5 22,5 3.343.161 16,6 16,6 11.670.832 20,4 220,4

De 1/4 até 1/2 SM 9.755.292 26,3 48,8 4.878.596 24,2 40,9 14.633.888 25,6 46,0

De1/2 até 1 SM 9.325.640 25,2 73,9 5.413.625 26,9 67,8 14.739.265 25,8 71,8

1 SM ou mais 9.658.734 26,1 100,0 6.483.555 32,2 100,0 16.142.289 28,2 100,0

Total global 37.067.337 100,0 20.118.937 100,0 57.186.274 100,0

*RDPC - renda domiciliar per capita


Fonte: IBGE(PNAD 2002). Elaboração: IPEA/DISOC
Nota: O salário mínimo na data de referência da realização da PNAD 2002 era de R$ 200,00

Uma aproximação do quadro da infância e da adolescência brasileiras mostra


outros problemas que reforçam ainda mais a situação de vulnerabilidade em que
43
se encontram. Em 2000, as estimativas do IBGE apontavam que no Brasil em
torno de 20% das crianças de até um ano de idade não tinham sequer registro de
nascimento, que é considerado o primeiro documento de cidadania.2 Apesar da
legislação brasileira restringir o trabalho de crianças e adolescentes, em 2002, de
acordo com o IBGE, existiam 3 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 15
anos trabalhando no país.Em 2001, o Ministério da Saúde registrou um percentual
de óbitos por homicídio da população de zero a 18 anos incompletos equivalente
a 4,4%, ou seja, aproximadamente 2,5 milhões de crianças e adolescentes morreram
em função de danos ou lesões provocadas por terceiros.

1
De acordo com o Estatuto da Criança e o Adolescente, são consideradas crianças as que têm até 12 anos
incompletos e adolescentes, entre 12 e 18 anos de idade.
2
Estimativas Celso Simões, IBGE (não publicadas).
Os dados do Sistema de Informações para a Infância e a Adolescência (SIPIA)
- módulo I), coletados no âmbito dos conselhos tutelares, mostram que os principais
agentes violadores dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes são
seus próprios familiares. Até julho de 2002, do total das violações computadas
pelo SIPIA, 57% haviam sido cometidas pelo pai, pela mãe ou por outra pessoa
detentora da guarda da criança.3 Uma pesquisa do Centro de Estudos e Atendimento
Relativos ao Abuso Sexual (CERAS), do Departamento de Medicina Legal, Ética
Médica e Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da USP aponta
informações na mesma direção: do total de 84 casos de abuso sexual atendidos no
período de 1993 a 1999, cerca de 53% ocorreram entre pais e filhos, sendo que o
pai biológico estava envolvido em 38,2% das vezes.4

Buscando desvendar o fenômeno da relação entre criança, adolescente e


44 violência no cotidiano de famílias brasileiras, Azevedo e Guerra referem-se às
conseqüências da desigualdade social e da pobreza que teriam como resultado a
“produção social de crianças vitimadas pela fome, por ausência de abrigo ou por morar em
habitações precárias, por falta de escolas, por doenças contagiosas, por inexistência de saneamento
básico”.5 Essa situação de vulnerabilidade é denominada vitimação de crianças,
sendo que “a questão principal que consolida o argumento da vitimação é seu caráter
desencadeador da agressão física ou sexual contra crianças, tendo em conta que a cronificação
da pobreza da família contribui para a precarização e deterioração de suas relações afetivas e
parentais. Nesse sentido, pequenos espaços, pouca ou nenhuma privacidade, falta de alimentos
e problemas econômicos acabam gerando situações estressantes que, direta ou indiretamente,
acarretam danos ao desenvolvimento infantil”.6

A realidade mostra, entretanto, que a pobreza ou carência de recursos


materiais não é suficiente para explicar com profundidade o fenômeno da violação
de direitos da criança e do adolescente. A violência cometida contra a população
infanto-juvenil não ocorre em todas as famílias que são pobres, assim como não
é verdade que crianças e adolescentes oriundos de famílias de classes de renda
mais elevadas estejam livres da vivência de maus tratos e da violação de direitos
cometidos por seus familiares.

3
FALLUH, Santiago. O levantamento de informações sobre direitos violados de crianças e adolescentes no Sistema de
Informações para Infância e Adolescência (SIPIA – módulo I): conteúdo e metodologia. Texto para discussão nº
1012 - IPEA, Brasília, março de 2004.
4
COHEN, Cláudio e GOBBETTI, Gisele Joana. O incesto: o abuso sexual intrafamiliar. Disponível em http://
www.violenciasexual.org.br/textos/resumos/incesto. Acesso em 06/09/2004.
5
Azevedo e Guerra apud AMARO, Sarita. Crianças vítmas da violência: das sombras do sofrimento à genealogia da
resistência. Uma nova teoria científica. Porto Alegre: AGE/EDIPURS, 2003.
6
AMARO, Sarita. op. cit.
Assim, é necessário buscar outros fatores explicativos para a incidência da
violência contra crianças e adolescentes no âmbito familiar. Amaro7 enumera
outros fatores de risco que favorecem a vitimação de crianças no contexto da
família, destacando-se os seguintes:

• História familiar passada ou presente de violência doméstica;

• Famílias cujos membros sofrem perturbações psicológicas como baixa


tolerância à frustração, baixo controle de impulsos, dependência de álcool
e/ou drogas, ansiedade crônica e depressão, comportamento suicida,
baixa auto-estima, carência emocional, desordens de personalidade
doenças mentais e problemas de saúde;

• Despreparo para a maternidade e/ou paternidade de pais jovens,


inexperientes ou sujeitos a uma gravidez indesejada;

• Famílias que adotam práticas de educação muito rígidas e autoritárias,


podendo um determinado ato da criança resultar em surras ou castigos
físicos;.

• Famílias fechadas, que evitam desenvolver intimidade com pessoas de


fora do pequeno círculo familiar;

• Famílias/familiares que desenvolvem práticas hostis, desprotetoras ou


negligentes em relação a crianças (não gostam de crianças; pensam que
crianças são “adultos em miniatura”), que consideram a criança irritável,
hostil e exigente, que não entendem e se sentem incomodadas com a
dependência da criança, que exigem mais do que o corpo e a formação
psicosocial da criança podem alcançar; 45
• Fatores situacionais como parto difícil; separação da criança após o parto,
expectativas distorcidas e irreais em relação à criança, criança do sexo
indesejado, criança portadora de alguma doença; estress em função de
alguma crise econômica, no trabalho ou conjugal.

Deve-se ressaltar que, quando nos referimos a esses outros tantos fatores
que podem contribuir para a vitimação infanto-juvenil por parte de seus familiares,
não se pretende mostrar que a pobreza não tem qualquer relação com o fenômeno
da violência cometida contra crianças e adolescentes. Na verdade, o objetivo é
relativizar essa questão, mostrando que a pobreza é insuficiente para explicar
todas as formas de manifestação da violência no âmbito da família.
7
No trabalho citado, Amaro adota o paradigma da complexidade que, dependendo do arranjo dos diversos
fatores de risco, acabam provocando a vitimação infantil (2003, p. 66).
A relação entre pobreza e vitimação de crianças e adolescentes por parte de
seus responsáveis não é direta, pois existem outras mediações que refutam o
caráter natural e fatalista com freqüência atribuído a essa associação. Entretanto,
como bem observa Faleiros, não é possível dissociar o padrão de convivência
familiar das questões mais amplas de frustração, humilhação, redução dos direitos
sociais e privação causadas pelo desemprego e pela diminuição do papel do Estado
na garantia da sobrevivência das famílias por meio da provisão de políticas sociais.8

A tese aqui defendida, portanto, é de que a pobreza, ao aumentar a


vulnerabilidade social das famílias, pode potencializar outros fatores de risco,
contribuindo para que crianças e adolescentes mais pobres tenham mais chances
de ver incluídos na sua trajetória de vida episódios de abandono, violência e
negligência. A condição socioeconômica precária das famílias, ao impor maiores
46 dificuldades para a sobrevivência digna do grupo familiar, funcionaria como um
elemento agravante e desencadeador de outros fatores de risco preexistentes.

2.2 PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DAS CRIANÇAS


E DOS ADOLESCENTES ABRIGADOS

2.2.1 Quantos são, onde estão

O “Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da


Rede SAC” encontrou cerca de 20 mil crianças e adolescentes vivendo nos 589
abrigos pesquisados em todo o Brasil. Como pode ser observado na tabela 2, a
maior parte deles se encontra na região Sudeste, que concentra 49,1% dos abrigos
e 45% dos abrigados. Nessa região, apenas o estado de São Paulo é responsável
por 1/3 das crianças e adolescentes abrigados. A maior participação do estado
de São Paulo e, conseqüentemente, da região Sudeste no total das crianças e
adolescentes abrigados reflete, na verdade, as próprias características do universo
de abrigos que compõem a Rede SAC do Ministério do Desenvolvimento Social.9

As participações das demais regiões no total de crianças e adolescentes


são bem menores do que a da região Sudeste: a região Nordeste é responsável

8
FALEIROS, Vicente de Paula. A questão da violência. IN: SOUSA JR., José Geraldo de [et al.] organizadores.
Educando para Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na universidade. Porto Alegre, 2004.
9
Ver capítulo 1, item 1.2.2, sobre a formação da Rede SAC.
por 29,4% das crianças e adolescentes encontrados nos abrigos pesquisados; a
região Sul, por 15,5%; a região Centro-Oeste, por 8,2%, e a região Norte, por
apenas 1,9%.

TABELA 02
Brasil: número de abrigos da Rede SAC e de crianças e adolescentes abrigados por
Unidade da Federação

NÚMERO NÚMERO DE
Região/UF DE ABRIGOS CRIANÇAS ATENDIDAS

Frequência Percentual Frequência Percentual

Norte Acre 1 0,2 14 0,1


Amapá 3 0,5 83 0,4
Pará 3 0,5 36 0,2
Rondônia 17 2,9 222 1,1
Roraima 1 0,2 15 0,1

Subtotal 25 4,2 370 1,9

Nordeste Alagoas 7 1,2 290 1,5


Bahia 37 6,3 1.915 9,9
Ceará 14 2,4 1.353 7,0
Maranhão 11 1,9 631 3,3
Paraíba 9 1,5 286 1,5
Pernambuco 11 1,9 678 3,5
Piauí 1 0,2 15 0,1
Rio Grande do Norte 10 1,7 115 0,6
Sergipe 12 2,0 410 2,1

Subtotal 112 19,0 5.693 29,4


Sudeste Espírito Santo 3 0,5 53 0,3
Minas Gerais 40 6,8 1.350 7,0
Rio de Janeiro 45 7,6 1.232 6,4 47
São Paulo 201 34,1 6.081 31,4

Subtotal 289 49,1 8.716 45,0

Sul Paraná 41 7,0 1.082 5,6


Rio Grande do Sul 58 9,8 1.529 7,9
Santa Catarina 23 3,9 397 2,0

Subtotal 122 20,7 3.008 15,5


Centro-Oeste Goiás 4 0,7 416 2,1
Mato Grosso do Sul 23 3,9 375 1,9
Mato Grosso 14 2,4 795 4,1
Subtotal 41 7,0 1.586 8,2

Brasil Total 589 100,0 19.373 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
2.2.2. Que idade têm

Entre as crianças e os adolescentes abrigados na época de realização desta


pesquisa, 11,7% tinham de zero a 3 anos; 12,2%, de 4 a 6 anos; 19,0%, de 7 a 9
anos; 21,8%, de 10 a 12 anos; 20,5%, de 13 a15 anos; e 11,9% tinham entre 16 e
18 anos incompletos. Vale registrar que, apesar da medida de abrigo se aplicar
apenas à população menor de 18 anos, 2,3% dos pesquisados tinham mais de 18.
Tal situação reflete as dificuldades das instituições no cumprimento do princípio
do ECA que estabelece que as entidades de abrigo devem realizar a preparação
gradativa para o desligamento dos adolescentes que vão completar a maioridade.

Como pode ser observado pelas informações contidas na tabela 3, com exce-
ção da região Norte, que apresenta significativa proporção de crianças na faixa de

48 zero a 3 anos -, nas demais regiões a faixa etária de maior incidência é a de 10 a 12


anos, seguida da de 13 a 1 5. Em terceiro lugar, a de 7 a 9 anos. O grupo etário de
16 a 18 anos representa uma proporção menor no total das crianças e adolescentes
abrigados, situando-se em torno de 12%.

Somando-se os três grupos mais elevados em número de crianças e


adolescentes – 7 a 9 anos, 10 a 12 anos e 13 a 15 anos -, obtêm-se as seguintes
proporções por região: Norte, 54,9%; Nordeste, 67,2%; Sudeste, 57,7%; Sul,
60,2% e Centro-Oeste, 63,8%. Conclui-se que mais da metade das crianças e dos
adolescentes nos abrigos pesquisados têm entre 7 e 15 anos de idade, o que
coincide com a faixa recomendada para a freqüência no ensino fundamental.

TABELA 03
Brasil: crianças e adolescentes abrigados por grupos de idade

Idade (em anos Regiões brasileiras BRASIL


completos)
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

0 a 3 anos 16,3 7,6 14,4 12,1 9,1 11,7

4 a 6 anos 12,4 9,1 15,1 10,6 10,4 12,2

7 a 9 anos 15,8 20,2 18,8 17,3 19,9 19,0

10 a 12 anos 17,1 23,8 20,4 22,2 23,3 21,8

13 a 15 anos 22,0 23,2 18,6 20,7 20,5 20,5

16 a 18 anos 14,5 12,5 11,1 12,3 12,6 11,9

Mais de 18 anos 1,8 2,4 1,6 4,1 2,1 2,3

Sem informação 0,0 1,1 0,1 0,6 1,8 0,6

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
O gráfico 1 fornece uma boa expressão da freqüência por faixa etária das
crianças e dos adolescentes abrigados, onde é possível observar que, conforme
aumentam as faixas etárias, aumenta a freqüência do número de abrigados, o que
ocorre até a faixa etária de 13 anos, depois da qual, o número de abrigados
começa a diminuir.

A maior concentração de crianças e adolescentes abrigados na faixa etária de


7 a 15 anos pode estar refletindo, entre outros fatores, as maiores dificuldades
enfrentadas para o acesso das famílias de baixa renda a equipamentos públicos de
apoio às mães e aos pais trabalhadores, que ofereçam proteção e cuidados a crianças
a partir dos 7 anos, nos moldes das creches disponíveis para crianças até 6 anos.

GRÁFICO 01
Brasil: crianças e adolescentes abrigados por idade

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
49

2.2.3 Freqüência à escola

A análise da freqüência à escola das crianças e dos adolescentes pes-


quisados, expressa em números na tabela 4, revela que 60,8% dos abrigados de
zero a 6 anos freqüentavam creches ou pré-escolas, e que 95,9% dos que tinham
entre 7 e 18 anos também estavam na escola. Em relação ao analfabetismo, o
“Levantamento Nacional” encontrou, entre os abrigados de 15 a 18 anos, uma
proporção dos que não sabiam ler nem escrever considerada muito elevada,
quando comparada com os índices nacionais para essa faixa etária: 16,8%,
quando o índice geral do Brasil para esta faixa situa-se em torno de 3%, segundo
os dados do IBGE.
TABELA 04
Brasil: informações sobre a freqüência à escola das crianças
e dos adolescentes abrigados

Informações sobre os abrigados Proporção


Crianças de 0 a 6 meses que freqüentam creches ou pré-escola 60,81%
Crianças e adolescentes de 7 a 18 anos que freqüentam escola 95,91%
Adolescentes de 15 a 18 anos analfabetos 16,76%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

2.2.4 Gênero e raça/cor

Do total das crianças e dos adolescentes encontrados nos abrigos no período


50 do “Levantamento Nacional”, 58,5% eram meninos e 41,5% meninas. O gráfico
2 mostra a razão de sexos10 da população de crianças e adolescentes abrigada por
grupos de idade. É possível observar que em todos os grupos etários a razão é
maior do que 1, ou seja a proporção de meninos nos abrigos é sempre maior do
que a de meninas, independente da faixa etária que se analise.

Ressalta-se, ainda, que esta razão aumenta de acordo com a idade das crianças
e dos adolescentes abrigados, alcançando, na faixa etária de 16 a 18 anos, a razão
de 2 para 1. Isto é, neste grupo etário, para cada menina abrigada existem dois
meninos na mesma condição. Tal tendência parece indicar que as meninas
conseguem deixar mais facilmente as instituições do que os meninos, seja porque
retornam mais rápido à convivência com a própria família de origem, ou porque
encontram uma família substituta, ou, ainda, porque conseguem mais rápido
meios para viabilizar a própria sobrevivência de forma autônoma e independente.

Os dados coletados pelo “Levantamento Nacional” não permitem desvendar


os reais motivos desse fenômeno. Assim, convém, investigar mais profundamente
as razões que levam as meninas a deixarem mais cedo as instituições de abrigo. A
preferência pela adoção de crianças do sexo feminino, predominante na nossa
sociedade, parece insuficiente para compreender essa tendência, pois é justamente
em plena adolescência, quando a adoção é mais difícil, que o número de meninas
entre a população abrigada diminui mais significativamente.

10
Razão de sexo é a relação entre as populações masculina e feminina.
GRÁFICO 02
Brasil: razão de sexo entre crianças e adolescentes abrigadas, segundo a faixa etária

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Em relação a raça/cor, os dados do “Levantamento Nacional” mostram


que mais de 63% das crianças e adolescentes abrigadas são da raça negra (21%
são pretos e 42% são pardos), 35% são brancos e cerca de 2% são das raças
indígena e amarela (gráfico 3).

GRÁFICO 03
Brasil: proporção de crianças e adolescentes abrigados, segundo raça/cor

51

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

O cruzamento entre raça e faixa etária, expresso no gráfico 4, evidencia


uma tendência progressiva de aumento da população negra conforme avança a
faixa etária dos abrigados. Como pode se observar, apenas na faixa etária de zero
a 1 ano incompleto é que se verifica uma quantidade de crianças negras menor
do que a de crianças brancas. Acima desta faixa, a diferença entre o número de
crianças e adolescentes afro-descendentes e os de cor branca aumenta
expressivamente. Nota-se que na faixa etária de zero a 1 ano incompleto a
população negra é da ordem de 183 crianças, enquanto que a população branca
é de 215. Na faixa etária seguinte, de 2 anos, o número de crianças negras nos
abrigos já ultrapassa o número de crianças da cor branca: 230 e 202,
respectivamente. Na idade de 13 anos, por exemplo, há 806 adolescentes negros
para 392 adolescentes brancos.

GRÁFICO 04

52 Brasil: crianças e adolescentes abrigadas, segundo a raça/cor e faixa etária

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
A razão raça/cor da população nos abrigos pesquisados encontra-se
demonstrada no gráfico 5. De fato, como pode ser observado, exceto na faixa
inicial, para todos os demais grupos de idade a razão entre negros e brancos é
maior do que 1. Entre 9 e 18 anos, a razão situa-se em torno de 2 para 1.

GRÁFICO 05
Brasil: razão de raça/cor das crianças e adolescentes, segundo a faixa etária

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

53
O que querem dizer esses números? Qual a relação entre a população negra
e a medida de abrigamento? Sobre esse fenômeno, pode-se argumentar a partir
de duas hipóteses. A primeira, obviamente, está relacionada à preferência explícita
das famílias brasileiras pela adoção de crianças de cor branca, o que reflete o
preconceito que tem raízes históricas na nossa sociedade, sobre o qual muito já
se tem escrito. Na segunda hipótese, supõe-se que as instituições de abrigo
representam um locus de concentração de crianças e adolescentes pobres e que
crianças de famílias de renda mais elevada estão menos sujeitas a medidas de
abrigamento. Em outras palavras, as condições socioeconômicas de uma
determinada criança e/ou adolescente exercem importante influência na aplicação
da medida de abrigo.
O gráfico 6 mostra a relação inversa entre raça/cor e renda para o total das
crianças e dos adolescentes brasileiros. É possível observar que quanto menor a
renda familiar per capita, maior é a proporção de crianças da raça negra.
Contrariamente, nas faixas mais altas de renda familiar, diminui a proporção de
crianças negras e aumenta a de crianças brancas. Por exemplo, do total de crianças
e adolescentes vivendo em famílias com renda per capita de até ¼ de salário
mínimo, 68,2% são negros e 31,2% são brancos. Daqueles que vivem em famílias
com renda per capita de ¼ a ½ salário mínimo, 60,3% são negros e 39,4% são
brancos. Contrariamente, no total de crianças e adolescentes que vivem em famílias
com renda per capita de mais de um salário, 70,3% são brancos e apenas 28,9%
são negros.

Assim, se aceitarmos que a condição socioeconômica contribui para a


54 precarização e a deterioração das relações familiares, conforme já discutido
anteriormente, concluímos que as chances de uma criança negra ser
institucionalizada são muito maiores do que de uma criança branca, já que a
primeira provavelmente é mais pobre. As carências materiais sofridas pelas famílias
de baixa renda impõem dificuldades adicionais para a sobrevivência do grupo,
ampliando as chances de crianças e adolescentes pobres passarem por períodos
de institucionalização. Desta forma, pode-se dizer que as condições sociais em
que vive a população negra no Brasil são a principal causa da maior incidência
delas nas instituições de abrigo pesquisadas.

GRÁFICO 06
Brasil: proporção de crianças e adolescentes, segundo a renda per capita familiar

Fonte: IBGE, PNAD 2002 (microdados). Elaboração: IPEA, DISOC.


Interessante destacar que nem sempre na história brasileira as instituições
de abrigo apresentaram maior proporção de crianças e adolescentes negros. De
acordo com Gonçalvez, na época do Brasil colonial, os asilos dos “enjeitados”
cumpriam a função de regular os desvios familiares, sendo que grande parte das
crianças abandonadas na época tinha como origem as relações ilícitas de mulheres
advindas de famílias de condições socioeconômicas favoráveis. Este aspecto
explicaria, por exemplo, o fato de na Roda11 de Salvador haver mais crianças
brancas do que negras, pois na sociedade colonial um filho ilegítimo não desonrava
as mulheres negras e mestiças tal como ocorria com as mulheres brancas. Registra-
se, ainda, que o número de filhos ilegítimos era bem elevado entre moças brancas
na faixa etária de 12 a 16 anos de idade.12

2.2.5 Motivos do abrigamento

Entre os principais motivos do abrigamento das crianças e dos adolescentes


pesquisados estão a carência de recursos materiais da família (24,1%); o abandono
pelos pais ou responsáveis (18,8%); a violência doméstica (11,6%); a dependência
química de pais ou responsáveis (11,3%); a vivência de rua (7,0%); a orfandade
(5,2%); a prisão dos pais ou responsáveis (3,5%) e o abuso sexual praticado pelos
pais ou responsáveis (3,3%). Todos os demais motivos referidos apareceram como
responsáveis pelo abrigamento de cerca de 15% das crianças e dos adolescentes
nos abrigos da Rede SAC em todo o país. Os oito primeiros motivos em freqüência,
destacados na tabela 5, respondem pela institucionalização de mais de 84,8% do
universo pesquisado. Na região Norte, esse percentual alcança 88,1% das crianças
e dos adolescentes; na região Nordeste, 87,5%; na região Sudeste, 84,4%; na
55
região Sul, 81,6% e na região Centro-Oeste, 80,6%.

11
Roda era a denominação pela qual eram conhecidas as instituições de abrigo para crianças abandonadas. Esse
nome advinha do mecanismo giratório utilizado para a recepção dos bebês abandonados: uma roda de madeira
na qual a criança era depositada pelo lado de fora e, girando-se a roda, era passada para dentro, mantendo-se o
anonimato da pessoa que a entregava.
12
GONÇALVEZ, M.ª Expostos, Roda e Mulheres: a Lógica da ambigüidade médico higienista. IN: MOTTA,
Maria Antonieta Pisano. Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção. São Paulo: 2001
TABELA 05
Brasil/grandes regiões: crianças e adolescentes abrigados, segundo os principais
motivos de abrigamento

Motivo de ingresso em abrigo REGIÕES BRASILEIRAS (%)

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil

Carência de recursos materias da família/ 22,7 34,3 22,4 11,3 23,3 24,1
responsável (pobreza)

Abandono pelos pais ou responsáveis 20,5 21,0 16,5 21,6 19,9 18,8

Violência doméstica (maus-tratos físicos e/ou 20,9 5,8 13,3 15,5 10,1 11,6
psicológicos praticados pelos pais ou
responsáveis)

Pais ou responsáveis dependentes químicos/ 7,1 6,8 13,9 12,6 10,1 11,3
alcoólicos

Vivência de rua 9,2 10,0 5,8 5,4 4,6 7,0


56 Órfão (morte dos pais ou responsáveis) 1,8 5,5 5,4 4,9 5,0 5,2
Pais ou responsáveis detidos (presidiários) 2,4 2,6 4,2 2,9 3,5 3,5

Abuso sexual praticado pelos pais ou 3,5 1,6 2,8 7,4 3,9 3,3
responsáveis

Subtotal 88,1 87,5 84,4 81,6 80,6 84,8

Ausência dos pais ou responsáveis por doença 0,7 2,4 3,3 3,2 2,6 2,9

Pais ou responsáveis sem condições para cuidar 0,9 1,6 1,9 5,3 0,7 2,2
de criança/ adolescente portador de deficiência
mental

Pais ou responsáveis portadores de deficiência 1,1 2,5 1,7 2,7 2,0 2,1

Submetido a exploração no trabalho, tráfico e/ 0,0 1,6 2,1 1,6 1,0 1,8
ou mendicância

Pais ou responsáveis sem condições para cuidar 1,1 0,4 1,8 2,6 0,1 1,4
de criança/ adolescente portador de deficiência
física

Pais ou responsáveis sem condições para cuidar 0,2 1,0 1,7 0,6 2,6 1,3
de criança/ adolescente portador de HIV

Pais ou responsáveis sem condições para cuidar 2,9 0,9 1,2 1,2 1,1 1,2
de criança/ adolescente dependente químico

Submetido à exploração sexual (prostituição) 4,4 0,9 0,9 0,9 0,7 1,0

Pais ou responsáveis sem condições de cuidar 0,2 0,0 0,5 0,0 8,2 0,7
de criança/ adolescente com câncer

Pais ou responsáveis sem condições para cuidar 0,4 0,2 0,1 0,3 0,1 0,2
de adolescente gestante

Sem informação 0,0 0,9 0,4 0,0 0,4 0,4

Subtotal 11,9 12,5 15,6 18,4 19,4 15,2

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe, em seu artigo 23, que “a
falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo de suspensão do pátrio poder” e
recomenda, no parágrafo único deste mesmo artigo, que “não existindo outro motivo
que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua
família de origem, a qual deverá, obrigatoriamente, ser incluída em programas oficiais de
auxílio”.

Apesar disso, se considerarmos todos os motivos citados na tabela 4 e que


podem ser relacionados à pobreza familiar, conclui-se que esta é responsável
pelo ingresso de mais da metade (52%) das crianças e adolescentes nos abrigos.
Como é possível notar pelos dados do gráfico 7, a carência de recursos materiais
foi citada como um dos principais motivos de abrigamento de 24,1% dos
pesquisados; o abandono pelos pais ou responsáveis, de 18,8%; a vivência de
rua, de 7,0% e a exploração no trabalho e/ou mendicância, de 1,8%.13

GRÁFICO 07
Brasil: motivos de ingresso em abrigo relacionados à pobreza

57

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Apesar de não se dispor de informações sobre a renda familiar dos abrigados,


pelos motivos de abrigamento citados é possível supor que grande parte das
crianças e dos adolescentes que vivem nos abrigos pesquisados é oriunda de

13
Importante esclarecer que uma mesma criança ou adolescente pode ter sido abrigada em função de um ou
mais motivos entre aqueles citados na tabela.
famílias pobres, onde sabe-se que faltam os meios indispensáveis para a
sobrevivência com dignidade, sendo enormes as dificuldades para a garantia dos
direitos fundamentais, pois encontra-se todo tipo de precariedade: na moradia,
no saneamento, no provimento da alimentação de qualidade e no acesso à saúde
e à escola.

Embora os motivos que determinaram o ingresso no abrigo não possam


ser analisados de forma isolada, o fato de os pais se sentirem destituídos da
função de provedores da manutenção das próprias famílias pode dar margem a
uma série de violações de direitos, como, por exemplo, a exploração do trabalho
infantil e a mendicância, que acabam por resultar no ingresso de crianças e
adolescentes nos abrigos. Da mesma forma, a incapacidade de prover os bens
necessários para a sobrevivência de seu núcleo familiar faz com que o pai ou
58 responsável veja a institucionalização como uma opção real de garantia dos direitos
básicos de seus filhos.

Assim é que grande parte das crianças e adolescentes que ingressam nos
abrigos provêm de pais despossuídos e destituídos e, ao mesmo tempo,
reproduzem as condições de miserabilidade enfrentadas por suas famílias.Guerra
e Azevedo denominam vítimas da violência estrutural aquelas crianças e adolescentes
que se encontram em situações especialmente difíceis, ou ainda aquelas que, por
omissão ou transgressão da família, da sociedade e do Estado, estejam sendo
violados em seus direitos básicos.14

O reconhecimento de que as crianças e os adolescentes que vivem nas


instituições de abrigo são vítimas da violência estrutural que atinge, sobretudo,
as famílias das classes mais baixas de renda leva a questionamentos sobre os
limites das instituições em seu papel de incentivar o retorno da criança à
convivência com sua família e em fazer cumprir o princípio da brevidade da
medida de abrigo. Isto porque, se o empobrecimento das famílias está na raiz da
medida de abrigo, é difícil supor que intervenções pontuais junto à família ou ao
violador de direitos possam estancar os problemas que levaram a criança ou o
adolescente ao abrigo. Na verdade, a solução do problema requer políticas públicas
abrangentes voltadas para a família, o que não é novo: a própria Constituição
afirma que “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um
dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de

14
GUERRA e AZEVEDO. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 2 ed. São Paulo: Cortez,
1997.
suas relações”.15 Tais políticas devem contemplar, necessariamente, ações de
complementação de renda, além do envolvimento de toda a rede de assistência
social disponível em âmbito local.

Vale notar que já existem ações governamentais desta natureza, como é o


caso dos programas cujo objetivo é transferir renda para famílias pobres que
possuem filhos em idade escolar, com alguns condicionantes, geralmente em
relação a educação e saúde. Entretanto, se analisados apenas pela ótica da enorme
quantidade de crianças e adolescentes que vivem nos abrigos sob alegação da
pobreza de suas famílias, já se pode dizer que esses programas não têm
contemplado a totalidade de seus objetivos, nem a totalidade das famílias que
deles necessitam. Na melhor das hipóteses, não são suficientes para evitar que
famílias que vivem em situação de pobreza entreguem ou abandonem seus filhos
nas instituições.

2.2.6 Vínculo familiar e tempo de abrigamento


das crianças e dos adolescentes nas instituições
pesquisadas

Ao contrário do que supõe o senso comum, a maior parte das crianças e


dos adolescentes que vive nos abrigos não são órfãos: 87% dos pesquisados têm
família, sendo que 58,2% mantêm vínculo com seus familiares, isto é, embora
afastados da convivência, as famílias os visitam periodicamente. Outros 22,7%
não mantêm vínculo familiar constante, ou seja, embora conhecida e localizada,
a família raramente aparece para visitar o abrigado. Cerca de 5,8% dos pesquisados, 59
embora tenham família, não podem contatá-la em função de impedimento judicial.
As crianças e os adolescentes “sem família” ou com “família desaparecida” que
vivem nos abrigos pesquisados representam apenas 11,3% do total (tabela 6).

Entre as regiões brasileiras, como pode ser observado pelos dados da tabela
5, a situação familiar dos abrigados é semelhante à média nacional, ou seja, mais
da metade das crianças e dos adolescentes mantêm vínculo com sua família de
origem; em torno de 20% têm família, mas não mantêm vínculo; e uma minoria,
entre 3% e 8%, está impedida judicialmente de manter contato com familiares.

15
Constituição Federal de 1988, artigo 266.
TABELA 06
Brasil/grandes regiões: distribuição das crianças e dos adolescentes abrigados por
situação de vínculo familiar

Situação Familiar Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Com família e com vínculo 58,9 64,3 55,2 52,4 68,7 58,2

Com família e sem vínculo 29,2 18,6 23,4 28,3 19,0 22,7

Impedimento judicial 0,5 2,6 7,4 7,8 4,2 5,8

Subtotal com família 88,5 85,5 86,1 88,5 91,9 86,7

Com família desaparecida 8,5 8,3 6,2 6,0 4,2 6,7

Sem família 2,5 4,3 5,0 4,9 3,4 4,6

Subtotal sem família 11,0 12,6 11,2 10,8 7,6 11,3

Sem informação 0,5 1,9 2,7 0,6 0,5 2,0

60 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Diante deste quadro, pergunta-se que razões impedem uma criança ou um


adolescente de usufruir do convívio com sua família de origem, com a qual,
mesmo vivendo em um abrigo, mantém vínculo constante.

De acordo com Rizzini16 o fenômeno da entrega dos filhos para serem


criados e “educados” em instituições não é novo. Já no Brasil Colônia, o regime
de “internato” era utilizado tanto para os filhos dos ricos, na busca de uma
educação de excelência, quanto para os dos pobres, em associação a medidas de
assistência. Com o tempo, esse modelo educacional foi desaparecendo das práticas
das famílias mais abastadas, enquanto era cada vez mais utilizado pelos pobres.
Existem informações da época da Funaben, em meados da década de 1960,
sobre as famílias que se empenhavam em conseguir internar seus filhos em
instituições, na busca de melhores condições para eles:

“estas [as famílias], desde os primórdios da criação da fundação, buscavam


internar os filhos em idade escolar, desejando um “local seguro onde os
filhos estudam, comem e se tornam gente”. A preocupação era a de
garantir a formação escolar e profissional dos filhos. O uso da instituição
para controle dos filhos rebeldes era de incidência muito pequena. A
pressão exercida pelas famílias para o internamento dos filhos por

16
RIZZINI, Irene A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. Rio de
Janeiro: PUC-RIO; São Paulo: Loyola, 2004.
impedimento de suprir as necessidades de educação, alimentação e
vestuário dos mesmos é referida nos estudos. Mais de 58% de uma
amostragem de 37.371 menores internados tinham, em 1966, entre 7 e 13
anos, isto é, pertenciam à faixa da escolaridade básica”.17

Atualmente, as razões que levam as crianças e os adolescentes aos abrigos


parecem ser semelhantes, principalmente quando analisadas sob a ótica da faixa
etária predominante nas instituições pesquisadas pelo “Levantamento Nacional”,
que também compreende as idades entre 7 e 15 anos.

Além disso, vale lembrar que o motivo mais alegado para o abrigamento
das crianças e dos adolescentes foi a pobreza. É importante considerar que, nos
dias atuais, a situação de precariedade social do país se agravou e, conseqüen-
temente, a condição de exclusão e de desigualdade entre as famílias. Portanto,
aos motivos que eram alegados à época da Funabem para a institucionalização
de crianças e adolescentes com vínculo familiar aparentemente saudável, agregam-
se outros, como a procura por proteção para crianças e adolescentes ameaçados
de morte, vítimas do tráfico, das drogas e das gangues, entre outros.

As razões que explicam por que algumas famílias pobres ainda acabam por
utilizar os abrigos para garantir os direitos fundamentais de seus filhos enquanto
outras, apesar da privação material que enfrentam, continuam se responsabilizando
pela sobrevivência de seus filhos, ainda não foram suficientemente estudadas.
No entanto, aqui também vale a observação de que a pobreza ou a privação
material, das quais padece grande parte das famílias brasileiras, é insuficiente
para explicar as razões que levam a padrões de comportamento tão distintos
entre famílias de uma mesma classe social. Novos estudos nessa área são
61
necessários para fundamentar a questão e para evitar o equívoco de culpabilizar
as famílias que deixam seus filhos nos abrigos.

Na ausência de estudos específicos sobre as razões que levam uma


determinada família a abandonar um filho em uma instituição, procurou-se traçar
um paralelo desta questão com as motivações das mulheres que decidem entregar
seus filhos biológicos em adoção. Resguardadas as diferenças, que podem resultar
de uma ou de outra opção familiar, entre a trajetória de vida das crianças entregues
em adoção e daquelas que passam a viver nas instituições de abrigo, acredita-se
valer para ambas a afirmação feita por Motta (2001) ao examinar os motivos que

17
Apud RIZZINI, 2004, op. cit, p. 40.
levaram uma das mães participantes de sua pesquisa a entregar dois filhos em
adoção:

“(...)estamos mais inclinados em acreditar, como Jones (1993), numa composição de


fatores para a tomada de tal iniciativa. Seu desejo de progredir e vir a ter filhos com
os quais possa permanecer, a consciência de sua fragilidade quanto às drogas e
promiscuidade, a falta de apoio familiar e social são alguns dos fatores que nos
pareceram ter forte influência na decisão de entregar os dois bebês em adoção, além, é
claro, da carência de condições socioeconômicas.”18

Nos casos de entrega ou abandono de crianças e adolescentes em instituições


de abrigo, é possível que, além dos fatores citados, o desejo de ver os filhos
progredirem e de legar aos mesmos uma condição melhor do que a sua própria

62 sejam tão ou mais relevantes para a opção da família pelo abrigamento. Todavia,
em ambas as situações, as condições socioeconômicas são impulsionadoras das
atitudes que acabam na outorga do poder familiar a outrem.

Outro aspecto que também contribui para a entrada tardia de crianças e


adolescentes nos abrigos é observado por Diniz19, que destaca o preconceito
vigente na sociedade em relação à atitude materna de entregar um filho à adoção
na época do nascimento:

a ignorância sobre a possibilidade da adoção, a existência de dificuldades pessoais ou


mesmo de preconceitos – em meios onde uma solução deste gênero é vista como altamente
condenável – impedem, em geral, a tomada de uma decisão precoce por parte da
mãe”.20

Essa dificuldade em decidir pela adoção pode ser apontada como uma das
principais causas do abandono tardio de crianças e adolescentes em abrigos e,
conseqüentemente, pelas dificuldades futuras de adoção que serão enfrentadas
por eles:

“a decisão de separar-se da criança para entregá-la a quem poderá encarregar-se dela


pode significar, para a mulher, aceitar a impossibilidade de criá-la, ou uma rejeição
ao filho, ou a frustração de seu amor ou desejo maternantes. A aplicação da referida
nomenclatura, além de injusta para com a mulher, gera outras injustiças, pois restringe
a própria compreensão da verdadeira situação da criança e a operacionalização

18
MOTTA, Maria Antonieta Pisano, op cit, p. 152.
19
Apud MOTTA, op. cit.
20
DINIZ, apud MOTTA, op. cit, p. 45.
das adoções, uma vez que nos leva, por exemplo, a ter dificuldades em identificar
crianças, institucionalizadas por anos a fio, como abandonadas. Perante a lei, a mãe
ou os pais biológicos ainda detêm o pátrio poder, dele não desistiram, mesmo que seu
contato com a criança seja ínfimo ou inexistente.”21

É assim que muitas crianças e adolescentes passam grande parte de suas


vidas institucionalizados, afastados de suas famílias de origem e incapacitados
para adoção, uma vez que não houve a destituição do poder familiar.

Conforme mostram os dados do gráfico 8, apenas 10,7% das crianças e


dos adolescentes nos abrigos pesquisados em todo o Brasil encontravam-se,
judicialmente, em condições de adoção. A grande maioria (83%) estava diante do
paradoxo de ter uma família que, na prática, já abriu mão da responsabilidade de
cuidar dela, em seu significado mais amplo, mas que, mesmo assim, ainda é
juridicamente responsável pelos filhos que vivem nos abrigos. A proporção de
crianças e adolescentes em condições de ser adotada é muito baixa em todas as
regiões do país. Na região Norte é de 11,2%; no Nordeste, de apenas 6%; no
Sudeste, de 12,5%; no Sul, onde a proporção alcança seu maior nível, é de 16,3%
e no Centro-Oeste é de 7,4%.

GRÁFICO 08
Brasil-grandes regiões: proporção de crianças e adolescentes em condições
de serem adotadas

63

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

21
MOTTA, op.cit, p. 45.
Em relação ao tempo de permanência no abrigo, os dados encontrados dão
conta de que mais da metade das crianças e dos adolescentes pesquisados (52,6%)
vivia nas instituições há mais de dois anos, sendo que, dentre elas, 32,9% estava
nos abrigos por um período entre dois e cinco anos; 13,3%, entre seis e 10 anos; e
6,4%, por um período superior a 10 anos (gráfico 9).

GRÁFICO 09
Brasil: proporção de crianças e adolescentes, segundo o tempo de abrigamento

64

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

As seqüelas de um período de institucionalização prolongado para crianças


e adolescentes já são por demais conhecidas e afetam da sociabilidade à
manutenção de vínculos afetivos na vida adulta. Segundo Silva, os danos causados
pela institucionalização serão tanto maiores quanto maior for o tempo de espera,
que interfere não só na adaptação em caso de retorno à família de origem, como
nos casos de inserção em família substituta:

“a dinâmica do processo de institucionalização redundará em graves conseqüências


se, por exemplo, essa criança for encaminhada para adoção ou colocada em família
substituta. Nos primeiros meses, a criança será objeto da atenção e da curiosidade de
todos, mas passado o período da novidade, logo os pais, os irmãos e, eventualmente,
outros parentes, amigos ou vizinhos perceberão que ela é uma criança diferente.
Diferente no exercício da sociabilidade, diferente na expressão da afetividade,
diferente no rendimento escolar e diferente nos hábitos e costumes também”.22

Segundo estudos do Comitê para o Reordenamento de Abrigos,23 alguns


fatores são determinantes para a permanência prolongada de crianças e
adolescentes nessas instituições, entre os quais podem ser citados: o acolhimento
de crianças e adolescentes nos abrigos sem decisão judicial; a escassez de
fiscalização das instituições de abrigo por parte do Judiciário, do Ministério Público
e dos Conselhos Tutelares; a inexistência de profissionais capacitados para realizar
intervenções no ambiente familiar dos abrigados, promovendo a reinserção deles;
a existência de crianças e adolescentes colocados em abrigos fora de seus
municípios, o que dificulta o contato físico com a família de origem; o
entendimento equivocado por parte dos profissionais de abrigo de que a instituição
é o melhor lugar para criança; a ausência de políticas públicas de apoio às famílias;
a demora no julgamento dos processos por parte do Judiciário; e a utilização
indiscriminada da medida de abrigamento pelos conselheiros tutelares, antes de
terem sido analisadas as demais opções viáveis para evitar a institucionalização
de crianças e adolescentes.

De acordo com os dados do “Levantamento Nacional”, apenas metade


(54,6%) das crianças e dos adolescentes abrigados nas instituições pesquisadas
tinha processo nas varas da Justiça. As demais talvez estivessem nas instituições
sem que houvesse sequer conhecimento judicial24. Vale lembrar que o ECA, em
seu artigo 93, determina que as instituições de abrigo têm até dois dias úteis para
comunicar à Justiça sobre crianças e adolescentes acolhidos em seus programas
sem medida judicial. 65
As regiões Sudeste e Sul apresentam as proporções mais elevadas de crianças
e adolescentes com processo nas varas da infância e da juventude: 74,4% e 69,7%,
respectivamente. As outras regiões têm proporções de crianças e adolescentes
abrigados com processo judicial abaixo da média nacional, a saber: região Norte,
44,4%; região Nordeste, 21,4% e região Centro-Oeste, 39% (gráfico 10).

22
SILVA, Roberto, apud MINISTÉRIO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL, Comitê Nacional para o Reordenamento
dos Abrigos. Subsídios para reflexão na aplicação da medida e o funcionamento de programas em regime de abrigo.
Brasília: 2003. p.13 (não publicado)
23
MINISTÉRIO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Subsídios para reflexão na aplicação da medida e o funcionamento
de programas em regime de abrigo. Brasília: 2003. p.20 (não publicado)
24
É importante mencionar que, no âmbito da pesquisa, 10,5% dos entrevistados não responderam a esta pergunta,
evidenciando que a situação processual das crianças e dos adolescentes nos abrigos não é de amplo conhecimento
dos dirigentes e profissionais das instituições pesquisadas.
GRÁFICO 10
Brasil/grandes regiões: proporção de crianças e adolescentes com processo na Justiça

66
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Em relação à existência de crianças e adolescentes vivendo em abrigos fora


de seus municípios de origem, o “Levantamento Nacional” encontrou proporções
significativas em todas as regiões do país. No Brasil como um todo, a proporção
de abrigados procedentes de outros municípios alcançou 20,9%. Entre as regiões,
foram encontrados os seguintes percentuais: na região Norte, 22,1% de crianças
e adolescentes em abrigos fora de seus municípios; na região Nordeste, 19,2%;
na região Sudeste, 23,3%; na região Sul, 15,9% e na região Centro-Oeste, 24,8%
(gráfico 11).

De acordo com os dados do “Levantamento Nacional”, as duas instituições


que mais encaminham crianças e adolescentes aos abrigos são os Conselhos
Tutelares e as Varas da Infância e da Juventude, mencionadas, respectivamente,
por 88,0% e 85,6% dos abrigos pesquisados (gráfico 12). Tais resultados estão
em consonância com o previsto no ECA quanto às duas instituições responsáveis
pela aplicação da medida de abrigo.

Observa-se, ainda, pelas informações do gráfico 12, o papel desempenhado


por outras instituições no encaminhamento aos abrigos, destacando-se o Ministério
Público, citado por 29,5% das instituições pesquisadas; a própria família da criança
e do adolescente, com 11,1% das citações; os órgãos do Executivo local,
representado no gráfico como secretarias, programa público estadual/municipal da
assistência social, mencionados por 10,8% dos abrigos; as outras instituições de
abrigo, com 6,7%; a Polícia, que foi citada por 5,5% dos abrigos pesquisados; e
outros tipos de instituições, com 2,6% das citações.25

GRÁFICO 11
Brasil/grandes regiões: proporção de crianças e adolescentes vivendo em abrigos fora
de seus municípios

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Vale acrescentar ainda que, na aplicação da medida de abrigo, os Conselhos


Tutelares e o poder Judiciário devem considerar: (i) que a medida tem por objetivo 67
a proteção da criança ou adolescente; (ii) como medida de proteção, pode ser
aplicada de maneira isolada ou cumulativamente, isto é, podem ser aplicadas
várias medidas ao mesmo tempo, que podem ser substituídas a qualquer
momento;26 deve-se verificar, inclusive, se a criança tem sua situação regularizada
no registro civil, caso contrário a regularização desse ser feita com os dados e
elementos disponíveis e com autorização judicial. 27

25
As informações quanto às instituições que mais encaminham crianças e adolescentes aos abrigos referem-se às
respostas dos dirigentes dos abrigos quando indagados sobre a seguinte questão: “Quem encaminha a maior
parte das crianças e /ou adolescentes abrigados nesse programa de abrigo”. Nesta questão eram apresentadas oito
tipos de instituições, além da opção “não sei”. Solicitava-se, ainda, que o respondente assinalasse três opções, no
máximo.
26
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 101, prevê oito medidas de proteção, entre as quais
está a medida de abrigo em entidade.
27
CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de Ação nº 3. São Paulo: março/1993. p 19.
GRÁFICO 12
Brasil: instituições que mais encaminham crianças e adolescentes aos abrigos

68
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Por último, recomendam-se esforços para que os conselhos locais, juntamente


com o Executivo municipal, agilizem a implementação dos serviços que viabilizam
a aplicação das outras medidas previstas no estatuto, como a matrícula na rede
escolar de ensino, o atendimento a viciados em drogas, entre outros. A
disponibilização de uma rede de serviços assistenciais no município corrobora e
previne a aplicação indiscriminada da medida de abrigo. Da mesma forma, é
fundamental a integração das instâncias públicas que atuam no atendimento para
crianças em âmbito local, pois, muitas vezes, a falta de conhecimento por parte
dos Conselhos Tutelares e do poder Judiciário a respeito dos serviços assistenciais
disponíveis nos municípios impede que sejam aplicadas as outras medidas de
proteção previstas no ECA.
2.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O perfil das crianças e adolescentes encontrados nos abrigos pesquisados


mostra características de exclusão social: são na maioria meninos entre as idades
de 7 a 15 anos, negros e pobres. Entre os principais motivos apontados para o
abrigamento destacaram-se os relacionados à pobreza: 24,1%, carência de recursos
materiais da família; 18,8%, abandono pelos pais ou responsáveis; 7,0%, vivência
de rua e 1,8%, exploração no trabalho infantil, tráfico ou mendicância.

Contrariando o senso comum de que a maioria das crianças nos abrigos é


órfã, a pesquisa mostrou que mais de 80% das crianças e adolescentes abrigados
têm família, sendo que 58% delas mantém vínculo com seus familiares.

As razões que levam uma criança ou um adolescente que tem uma família,
com a qual mantém vínculo constante a viver em uma instituição de abrigo ainda
estão longe de ser conclusivas, pois a pobreza, principal motivo apontado para o
abrigamento, não é suficiente para explicar as razões que levam algumas famílias
pobres a abandonarem seus filhos em instituições e, outras, da mesma classe
social, continuarem se responsabilizando pelos cuidados com sua prole.

Entretanto, o que os dados parecem mostrar é que a pobreza, ao aumentar


a vulnerabilidade social das famílias mais pobres, pode potencializar outros fatores
de risco, contribuindo para que crianças e adolescentes mais pobres tenham mais
chances de passar por episódios de abandono, violência e negligência.

Das crianças encontradas nos abrigos, apenas uma minoria (10,7%) estava
judicialmente em condição de ser adotada. A grande maioria ainda mantinha
69
vínculo judicial com suas famílias de origem. Em relação ao tempo de permanência
no abrigo, metade das crianças e dos adolescentes vivia nas instituições há mais
de dois anos, tempo considerado demasiadamente longo, sobretudo quando se
considera o caráter de provisoriedade da medida de abrigo.

No Brasil como um todo, apenas metade das crianças e dos adolescentes


abrigados nas instituições pesquisadas tinha processo na Vara de Justiça. As demais
talvez estivessem nas instituições sem conhecimento judicial.

As duas instituições que mais encaminharam crianças e adolescentes nos


abrigos foram os Conselhos Tutelares e as Varas da Infância. Outras instituições
também se destacam no encaminhamento de crianças aos abrigos, destacando-se
o Ministério Público e a própria família do abrigado.
2.3 BIBLIOGRAFIA

AMARO, Sarita. Crianças vítmas da violência: das sombras do sofrimento à genealogia


da resistência. Uma nova teoria científica. Porto Alegre: AGE/EDIPURS, 2003.

CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de Ação nº 3. São


Paulo: março/1993. p 19.

COHEN, Cláudio e GOBBETTI, Gisele Joana. O incesto: o abuso sexual


intrafamiliar. Disponível em http://www.violenciasexual.org.br/textos/resumos/
incesto. Acesso em 06/09/2004.

70 IPEA/DISOC. Levantamento Nacional de Abrigos da Rede SAC. Relatório de


Pesquisa número 1. Brasília, outubro de 2003 (não publicado).

FALEIROS, Vicente de Paula. A questão da violência. IN: SOUSA JR., José


Geraldo de [et al.] organizadores. Educando para Direitos Humanos: pautas pedagógicas
para a cidadania na universidade. Porto Alegre, 2004.

FALLUH, Santiago. O levantamento de informações sobre direitos violados de crianças


e adolescentes no Sistema de Informações para Infância e Adolescência (SIPIA – módulo I):
conteúdo e metodologia. Texto para discussão nº 1012 - IPEA, Brasília, março de
2004.

GONÇALVEZ, M.ª Expostos, Roda e Mulheres: a Lógica da ambigüidade médico


higienista. IN: MOTTA, Maria Antonieta Pisano. Mães abandonadas: a entrega de um
filho em adoção. São Paulo: 2001

GUERRA e AZEVEDO. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento.


2 ed. São Paulo: Cortez, 1997.

MINISTÉRIO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL, Comitê Nacional para o


Reordenamento dos Abrigos. Subsídios para reflexão na aplicação da medida e o
funcionamento de programas em regime de abrigo. Brasília: 2003. p.13 (não publicado)

RIZZINI, Irene A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e


desafios do presente. Rio de Janeiro: PUC-RIO; São Paulo: Loyola, 2004.
ARTE SOBRE FOTO DE JOSÉ VARELLA
CAPÍTULO 3

Um retrato dos abrigos


para crianças e adolescentes da Rede SAC:
características institucionais, forma de
organização e serviços ofertados

Enid Rocha Andrade da Silva e Simone Gueresi de Mello 7171

Neste capítulo, serão apresentadas as principais características


dos abrigos pesquisados pelo “Levantamento Nacional de Abrigos
para Crianças e Adolescentes da Rede SAC”. Em abordagem
descritiva, os itens a seguir têm o objetivo de destacar os aspectos
que delineiam as principais características institucionais das
entidades investigadas.
72
3.1 TAMANHO E LOCALIZAÇÃO
DO UNIVERSO PESQUISADO

Como ilustrado no gráfico 1, a região Sudeste concentra quase metade dos


589 abrigos pesquisados (49,1%), seguida pela região Sul com 20,7% e pela
região Nordeste com 19,0%. As regiões Centro-Oeste e Norte são responsáveis
por menos de 12% do universo, sendo, respectivamente, 7,0% e 4,2% do total.1

GRÁFICO 01
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo grandes regiões

7373
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

A distribuição das instituições pesquisadas entre as Unidades da Federação


mostra um número expressivamente maior de atendidos no estado de São Paulo,
que tem em seu território mais de 1/3 dos programas da Rede SAC/Abrigos
(34,1%). Os outros estados com maior número de abrigos são o Rio Grande do
Sul (9,8%), Rio de Janeiro (7,6%), Paraná (7,0%), Minas Gerais (6,8%) e Bahia
(6,3%). Individualmente, não alcançam sequer 10% dos programas de abrigo
investigados (tabela 2).

1
Vale notar que a distribuição dos abrigos que responderam o questionário enviado é bastante semelhante à
distribuição das entidades cadastradas para receber recursos da Rede SAC (ver capítulo 1, item 1.2.2), o que
garante representatividade ao universo pesquisado.
TABELA 02
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo Unidades da Federação

Região UF No de abrigos Percentual

Norte Acre 1 0,2%

Amapá 3 0,5%
Pará 3 0,5%

Rondônia 17 2,9%

Roraima 1 0,2%
Nordeste Alagoas 7 1,2%

Bahia 37 6,3%

Ceará 14 2,4%
Maranhão 11 1,9%

Paraíba 9 1,5%

74 Pernambuco
Piauí
11
1
1,9%
0,2%

Rio Grande do Norte 10 1,7%

Sergipe 12 2,0%
Sudeste Espírito Santo 3 0,5%

Minas Gerais 40 6,8%

Rio de Janeiro 45 7,6%


São Paulo 201 34,1%

Sul Paraná 41 7,0%


Rio Grande do Sul 58 9,8%

Santa Catarina 23 3,9%

Centro-Oeste Goiás 4 0,7%


Mato Grosso 14 2,4%

Mato Grosso do Sul 23 3,9%

BRASIL BRASIL 589 100,0%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

3.2 NATUREZA INSTITUCIONAL DOS ABRIGOS

Entre os abrigos da Rede SAC pesquisados predominam as instituições


não-governamentais, que respondem por 68,3% do total, enquanto os abrigos
públicos representam apenas 30,0%, sendo 21,7% municipais e 8,3% estaduais
(gráfico 2). Essa maior parcela municipal das instituições de natureza pública
está em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente e com a
LOAS, que têm como diretriz a municipalização do atendimento para a população
infanto-juvenil.
GRÁFICO 02
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo a natureza institucional

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Às organizações não-governamentais, o estatuto reserva um papel estratégico


ao incluí-las no bojo da política de atendimento dos direitos da criança e do
adolescente. “A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente
far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-
governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.” 2

Mais adiante, no artigo 90, o ECA define que as entidades governamentais


e não-governamentais de atendimento são responsáveis pela manutenção das 7575
próprias unidades, assim como pelo planejamento e execução de programas
socioeducativos e de proteção destinados a crianças e adolescentes.

Isso demonstra que as entidades não-governamentais são atores relevantes


na implementação das políticas de proteção especial à infância e à adolescência.
A predominância desse tipo de entidade na prestação de serviços de abrigo reforça
ainda mais a responsabilidade do poder público – federal, estadual e municipal –
no cumprimento de seu papel de coordenar um sistema, com vistas à efetiva
implementação de uma política de proteção especial conforme prevista no ECA,
bem como na garantia do apoio técnico e financeiro necessário às ações realizadas
pela sociedade civil.

2
Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 86.
As regiões brasileiras mostram algumas diferenças com relação à natureza
dos abrigos pesquisados, apresentada na tabela 3. Em primeiro lugar, destacam-
se as regiões Norte e Sul, nas quais o percentual de instituições não-governamentais
foge ao padrão do restante do Brasil: no Norte, 68% dos abrigos são públicos,
sendo 56% de gestão municipal. Já na região Sul, quase a metade (46,7%) é
governamental, com destaque para os municipais, que representam 36,9% do
total da região.

TABELA 03
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo a natureza
institucional (%)

Natureza do abrigo Regiões brasileiras BRASIL


76 Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Não-governamental 32,0 65,2 79,9 51,6 65,9 68,3

Público municipal 56,0 10,7 17,0 36,9 19,5 21,7

Público estadual 12,0 24,1 1,0 9,8 9,8 8,3

ns/nr 0,0 0,0 2,1 1,6 4,9 1,7

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

No Nordeste, os abrigos públicos estaduais representam aproximadamente


1/4 das entidades pesquisadas na região (24,1%), ou seja, quase o triplo da média
nacional. Mantém-se aproximadamente a mesma proporção do total nacional
para as instituições não-governamentais, reduzindo-se à metade o percentual de
instituições públicas municipais (10,7%), o que pode indicar que as diretrizes de
municipalização da política de atendimento estão menos consolidadas nessa região.

No outro extremo, o Sudeste tem o menor percentual de abrigos estaduais:


apenas 1% das suas instituições. A região destaca-se, ainda, por ter a mais alta
participação das entidades não-governamentais, que respondem por 79,9% das
instituições pesquisadas.
3.3 VINCULAÇÃO/ORIENTAÇÃO RELIGIOSA

De acordo com os dados levantados pela pesquisa, a grande maioria (67,2%)


dos abrigos possui vínculo ou orientação religiosa, sendo que, destes, mais de
60% seguem a religião católica. Outros 22,5% declararam ligação com crenças
evangélicas, enquanto 12,6% seguem a doutrina espírita, e 8,3% se declararam
ecumênicos (gráfico 3).

GRÁFICO 03
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC que possuem vinculação/orientação
religiosa, segundo a crença

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Não é surpreendente esse grande número de abrigos que disseram manter 7777
algum vínculo ou orientação religiosa, uma vez que, no Brasil, os cuidados com
os órfãos e abandonados foram assumidos desde o final do século XVIIII pelas
irmandades e pelas Santas Casas de Misericórdia. Apenas no início do século XX
essa questão passou a ser uma preocupação de Estado, quando foram criados os
reformatórios ou institutos correcionais. Ainda assim, a ação estatal era mais
voltada para os “infratores” do que para os “carentes e abandonados”.3 Além
disso, as religiões costumam se envolver, em maior ou menor grau, em atividades
voluntárias, destacando-se as atividades assistenciais.

O gráfico 4 mostra que a predominância de vínculos/orientações religiosas


tem variação considerável entre as regiões brasileiras: enquanto 82,1% dos abrigos

3
CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de Ação nº 3. São Paulo: março/1993
do Nordeste e 75,6% no Centro-Oeste afirmam manter alguma vinculação ou
orientação religiosa, no Sul essa parcela é de 47,5% (20 pontos percentuais abaixo
da média nacional). Nas regiões Norte (68,8%) e Sudeste (68,5%), a participação
das instituições com orientação/vinculação religiosa se aproxima da média para
o total do universo pesquisado no país.

GRÁFICO 04
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo orientação/
vinculação religiosa

78

Fonte: IPEA/DISOC(2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

A tabela 4 mostra que a predominância da vinculação/orientação católica


nos abrigos não se verifica com a mesma força em todas as regiões. O Norte, por
exemplo, tem o mesmo número de abrigos católicos e evangélicos (35,3% de
cada) e nenhuma instituição que declarou seguir orientação espírita. Interessante
notar que a orientação evangélica é maior em relação à média nacional também
nas regiões Sul e Centro-Oeste (29,3% e 32,3%, respectivamente). Já no Nordeste,
é expressiva a influência católica (68,5% dos abrigos com orientação religiosa), o
que eleva a participação dessa doutrina na média nacional, visto que é a única
região em que o percentual de abrigos com essa vinculação está acima da média.
TABELA 04
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC que possuem
vinculação/orientação religiosa, segundo a crença

Vinculação/ Regiões brasileiras BRASIL


orientação religiosa
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Católica 35,3% 68,5% 55,3% 51,7% 51,6% 56,7%

Evangélica 35,3% 8,7% 16,1% 29,3% 32,3% 18,4%

Espírita 0,0% 5,4% 16,1% 8,6% 9,7% 11,3%

Ecumênica 11,8% 8,7% 8,5% 6,9% 6,5% 8,3%

Mais de uma 17,6% 8,7% 4,0% 3,4% 0,0% 5,3%


orientação/vinculação

Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

3.4 TEMPO DE FUNCIONAMENTO

Mais da metade das instituições pesquisadas (58,6%) foi fundada depois de


1990 (gráfico 5). Esse ano, em função da promulgação do Estatuto da Criança e
do Adolescente, tornou-se um marco para a área da infância e da adolescência,
pois, desde então, o país passou a contar com o efetivo amparo legal para a
garantia dos direitos dessa parcela da população. Após a edição do ECA, todas
as instituições que já trabalhavam na área da atenção a crianças e adolescentes
deveriam iniciar um processo de mudanças em direção à adequação à nova
7979
legislação. O norte das mudanças deveria ser a superação do enfoque
assistencialista, fortemente arraigado nos programas de atendimento, em direção
a modelos que contemplassem ações emancipatórias e que tivessem por base a
noção de cidadania contida no ECA, considerando crianças e adolescentes como
sujeitos de direitos.
GRÁFICO 05
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo fundação posterior ou
anterior a 1990

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

O fato de a maior parte dos abrigos pesquisados ter sido criada após a
promulgação do ECA não implica, necessariamente, a adequação à lei do
80 funcionamento dessas instituições. Como se sabe, o estatuto é considerado uma
legislação avançada até mesmo para os padrões internacionais. Sua disseminação
e aceitação, bem como o efetivo cumprimento de seus princípios, têm sido um
processo difícil, que, ao longo de mais de dez anos de existência, não foi totalmente
compreendido pela sociedade.

A esse respeito, é ilustrativo citar os resultados da primeira etapa do


“Levantamento Nacional” realizada junto aos dirigentes dos abrigos. Apesar de
o ECA ter sido promulgado há mais de uma década, metade desses dirigentes
não demonstrou total entendimento sobre o conteúdo da lei, ainda que 44,3% se
considerassem muito informados sobre o ECA; 48,8%, mais ou menos informados; e
5%, tenham admitido ser pouco ou nada informados.4

Ainda que a maioria dos abrigos pesquisados tenha sido criada depois de
1990, a tabela 5 mostra que, no grupo de abrigos criados antes da promulgação
do ECA, encontram-se instituições bastante antigas: três (0,5%) anteriores à década
de 1920, 23 (3,9%) que foram criadas entre 1920 e 1949, e 68 (11,5%) fundadas
entre os anos de 1950 e 1969. As diferenças regionais nesse quesito não são
expressivas: em todas as regiões, praticamente a metade das entidades de abrigo
foi fundada na década de 1990.

4
Ver capítulo 7.
TABELA 05
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo o ano de
fundação (%)

Fundação Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Antes de 1920 0,0 0,9 0,3 0,0 2,4 0,5

Entre 1920 e 1949 0,0 3,6 5,5 1,6 2,4 3,9

Entre 1950 a 1969 0,0 7,1 15,2 9,8 9,8 11,5

Entre 1970 a 1989 16,0 22,3 21,8 23,0 22,0 21,9

Entre 1990 a 1999 52,0 50,9 45,0 50,0 48,8 47,7

A partir de 2000 8,0 4,5 6,6 7,4 0,0 5,9

Não respondeu 24,0 10,7 5,5 8,2 14,6 8,5

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC(2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

3.5 CAPACIDADE DE ATENDIMENTO E LOTAÇÃO


DOS ABRIGOS PESQUISADOS

De acordo com a tabela 6, no período de realização da pesquisa havia 19.373


crianças e adolescentes nos abrigos pesquisados. Além da população infanto-
juvenil, existiam nessas instituições 938 adultos e 174 idosos. Observa-se, ainda,
que foram encontrados abrigos com apenas duas crianças e adolescentes e outros
com até 450 abrigados. 8181

TABELA 06
Brasil: lotação dos abrigos da Rede SAC*

População Número Média Número Total


atendida mínimo máximo
Crianças e/ou adolescentes 2 33,4 450 19.373
Adultos 1 19,1 100 938
Idosos 1 17,4 70 174

* Dados referentes ao período de realização do levantamento.


Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Nota-se, também, que a maioria dos abrigos (64,2%), na época do
levantamento, estava com a lotação abaixo da capacidade de atendimento, isto é,
o número de vagas disponíveis era superior ao total de crianças e adolescentes
que estava sendo atendido naquele momento. Outros 21,1% estavam operando
dentro da capacidade de atendimento, e apenas 12,2% declararam estar atendendo
uma quantidade de crianças e adolescentes superior à capacidade, ou seja, estavam
superlotados (gráfico 6).

GRÁFICO 06
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo a relação entre lotação e
capacidade de atendimento

82

Fonte: IPEA/DiISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

A lotação dos abrigos no período da pesquisa era semelhante em todas as


regiões brasileiras, destacando-se a região Norte, onde a parcela de abrigos
sublotados era de 88%, bem maior do que a média nacional. Por sua vez, as
regiões Sudeste e Sul do país concentravam a maior parte de abrigos com
superlotação, operando acima da própria capacidade – 18,0% e 15,2%,
respectivamente (tabela 7).
TABELA 07
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo a relação
entre lotação e capacidade de atendimento (%)

Lotação do abrigo Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Acima da capacidade 0,0 2,7 15,2 18,0 7,3 12,2

Dentro da capacidade 8,0 28,6 20,4 18,0 22,0 21,1

Abaixo da capacidade 88,0 65,2 62,3 63,1 63,4 64,2

Não respondeu 4,0 3,6 2,1 0,8 7,3 2,5

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

A situação encontrada, na qual a maior parte dos abrigos estava atendendo


um número menor de crianças em relação ao total de vagas disponíveis, pode ser
um reflexo do esforço das instituições com vistas à adequação ao ECA, que
recomenda o “atendimento personalizado e em pequenos grupos”.5 Embora o
estatuto não defina um número máximo para o atendimento de crianças e
adolescentes em abrigos, alguns estudos, bem como regulamentações estaduais
e/ou municipais, com o objetivo de orientar o reordenamento desse tipo de
instituição, recomendam que a capacidade máxima de vagas não ultrapasse 25
crianças e adolescentes por unidade.6 A partir desse número seria inviável oferecer
um atendimento singular e personalizado, conforme preconizado no ECA.

O gráfico 7 mostra que, apesar de ter sido encontrada a proporção


significativa de 4,1% dos abrigos com uma quantidade de crianças e adolescentes 8383
superior a 100 (24 abrigos), mais da metade (56,7%) das instituições pesquisadas
obedecia à recomendação do atendimento em pequenos grupos, pois 23,1%
atendiam, no período de realização do levantamento, de duas a 12 crianças e
adolescentes, e 33,6% acolhiam entre 13 e 25.

5
Lei 8069/90, art. 92, parágrafo único, inc. III.
6
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. Subsídios para ordenamento e financiamento
dos serviços de abrigo. Brasília, 2000; CONSELHO MUNICIPAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE. Política de abrigo para crianças e adolescentes do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
setembro de 2001.
GRÁFICO 07
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo o número de crianças e
adolescentes atendidos no período na pesquisa

84

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

A tabela 8 mostra a distribuição dos abrigos pesquisados segundo o número


de crianças e adolescentes que estavam sendo atendidos no período de realização
do “Levantamento Nacional”, para cada uma das cinco regiões brasileiras. Em
primeiro lugar, observa-se que a região Norte é a que mais se sobressai no quesito
adequação ao atendimento em pequenos grupos, pois 92% de seus abrigos estavam
atendendo, no máximo, 25 crianças e adolescentes, sendo que 40% até 12, e 52%
entre 13 e 25 crianças e adolescentes.

Em segundo lugar, a região Nordeste possui a menor proporção de abrigos


atendendo pequenos grupos (38,4%), sendo 17,9% com no máximo 12 crianças
e adolescentes, e 20,5% na faixa de 13 a 25. A região Sudeste tem mais da metade
(56,4%) de seus abrigos pesquisados atendendo até 25 crianças e adolescentes,
proporção que é menor do que as encontradas nas regiões Sul e Centro-Oeste:
respectivamente, 66,4% e 58,5% de seus abrigos atendendo grupos de até 25.
TABELA 08
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo o número de
crianças e adolescentes atendidos no período da pesquisa (%)

Número de crianças e Regiões brasileiras BRASIL


adolescentes
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

2 a 12 40,0 17,9 19,4 32,0 26,8 23,1

13 a 25 52,0 20,5 37,0 34,4 31,7 33,6

Subtotal até 25 92,0 38,4 56,4 66,4 58,5 56,7

26 a 50 8,0 25,0 29,4 23,8 14,6 25,5

51 a 75 0,0 15,2 7,6 4,9 14,6 8,7

76 a 100 0,0 8,9 2,8 2,5 0,0 3,6

101 a 200 0,0 7,1 2,1 1,6 9,8 3,4

201 a 500 0,0 2,7 0,3 0,0 0,0 0,7

Subtotal mais de 100 0,0 9,8 2,5 1,6 9,8 4,1

Não sabe/não 0,0 2,7 1,4 0,8 2,4 1,5


respondeu

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,00

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Por fim, cabe esclarecer que os 24 maiores abrigos em número de crianças


e adolescentes atendidos (mais de 100) assim se distribuíam: 11 abrigos no
Nordeste (9,8% do total da região), sete abrigos no Sudeste (2,5% do total da
região), quatro abrigos no Centro-Oeste (9,8% do total da região) e dois abrigos
no Sul (1,6% do total da região).

8585
3.6 EXCLUSIVIDADE E ESPECIALIDADE
NO ATENDIMENTO OFERECIDO

A permanência em programas de abrigo não deve se constituir em fator de


isolamento ou exclusão. As diretrizes para a garantia do direito à convivência
familiar e comunitária, direito fundamental estabelecido no ECA, tratam de vários
aspectos a serem considerados para que se evite o estigma social e o afastamento
de crianças e adolescentes da convivência com suas famílias e com as pessoas da
comunidade.

Por outro lado, o próprio estatuto determina como princípios do atendimento


em abrigos “evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de
crianças e adolescentes abrigados”7 e “o não-desmembramento de grupos de
irmãos”.8 De fato, as transferências de uma instituição para outra, bem como a
separação de crianças e adolescentes de uma mesma família - ambas situações
causadoras de sofrimento e de rompimentos afetivos - com freqüência são deter-
minadas pelas restrições do atendimento oferecido pelos abrigos: limites máximos
e mínimos de idade, exclusividade no atendimento por sexo dos abrigados, não-
aceitação de determinadas características, entre outras.

É desejável que as instituições de abrigo destinadas à proteção da infância


e da adolescência atendam em caráter universal qualquer pessoa com menos de
18 anos que necessite desse serviço. As especificidades das crianças e dos
adolescentes deverão apenas orientar o atendimento personalizado e a própria
organização do abrigo, mas não limitar o acesso ou a permanência nessa ou
86 naquela instituição.

Nesse sentido, os programas de abrigo deveriam evitar especializações e


atendimentos exclusivos a determinadas parcelas da população infanto-juvenil,
como adotar faixas etárias muito estreitas, atender exclusivamente portadores de
necessidades especiais ou de HIV, entre outros exemplos. A atenção especializada,
quando necessária, deveria ser proporcionada por meio da articulação com outros
serviços públicos e, talvez, a partir de pequenas adaptações no espaço e na
organização do abrigo, como aconteceria em uma residência comum.

Do total de abrigos da Rede SAC, 62,3% fazem atendimento misto quanto


ao sexo da criança ou do adolescente abrigado, ou seja, desenvolvem atividades
em regime de co-educação, conforme recomendado pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente.9 Outros 37,2% mantêm critérios restritivos ao abrigamento de
acordo com o sexo, sendo que 12,6% dos abrigos pesquisados atendem somente
meninas, e 24,6% são exclusivos para meninos (gráfico 9).

Entre as instituições que acolhem crianças e adolescentes de apenas um dos


sexos é surpreendente verificar, conforme indicam os dados da tabela 9, que
46,1% foram criadas após a promulgação do ECA, sem atender ao princípio da
co-educação. O acolhimento a ambos os sexos não só contribui para a construção
da identidade das crianças e dos adolescentes abrigados, como também facilita o
cumprimento do princípio de não-desmembramento de grupos de irmãos.

7
Lei 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 92, inc. VI.
8
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 92, inc.V.
9
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 92, inc. IV.
GRÁFICO 09
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC pelas características do atendimento,
segundo sexo

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

TABELA 09
Brasil: distribuição dos abrigos não-mistos, segundo o ano de fundação

Ano de fundação No de abrigos não-mistos Percentual


Antes de 1920 2 0,9%
Entre 1920 e1949 14 6,4%
Entre 1950 e 1969 30 13,7%
Entre 1970 e 1989 52 23,7%
Entre 1990 e 1999 88 40,2%
Após 2000 13 5,9%
Não respondeu 20 9,1%
Total 219 100,0%
8787
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Com relação às diferenças regionais, na região Nordeste 57,2% das


instituições pesquisadas atendem apenas crianças e adolescentes de um dos sexos
(a média nacional é de 37,2%), sendo 38,4% exclusivamente masculino. Por sua
vez, as regiões Centro-Oeste (24,4%), Sul (27,0%) e Norte (28,0%) apresentam
os menores percentuais de abrigos exclusivos por sexo (tabela 10).
TABELA 10
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC pelas características do
atendimento, segundo sexo (%)

Atendimento Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Não-misto 28,0 57,2 36,3 27,0 24,4 37,2

Apenas para meninos 20,0 38,4 22,5 21,3 14,6 24,6

Apenas para meninas 8,0 18,8 13,8 5,7 9,8 12,6

Misto 72,0 42,9 63,0 72,1 75,6 62,3

Não sabe/não 0,0 0,0 0,7 0,8 0,0 0,5


respondeu

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
88

No que diz respeito à faixa etária de atendimento à infância e à adolescência


em abrigos, é recomendável que a organização dos programas que oferecem esse
tipo de serviço ocorra sob a forma do chamado “agrupamento vertical”, onde se
propicia o convívio entre crianças e adolescentes de diferentes faixas etárias.
Esse formato, além de facilitar o acolhimento de grupos de irmãos, permite a
convivência de meninos e meninas de várias idades e, conseqüentemente, em
várias etapas do desenvolvimento infanto-juvenil, o que favorece o estímulo mútuo
e o melhor aproveitamento das atividades educacionais. Os mais velhos estimulam
a independência e o desenvolvimento das crianças mais novas, assim como ocorre
em uma família com filhos em diferentes faixas etárias.10

Assim, quanto mais amplas forem as diferenças entre as idades máxima e


mínima no âmbito do agrupamento aceito pelo abrigo, maior flexibilidade terá o
programa para o atendimento aos princípios recomendados pelo ECA e para
oferecer um ambiente favorável ao desenvolvimento das crianças e dos
adolescentes. A tabela 11 mostra que a maior parte dos abrigos (62%) apresenta
uma diferença superior a 10 anos entre a maior e a menor idade de crianças e
adolescentes aceitos no programa. Trata-se de um intervalo suficientemente amplo
para permitir o acolhimento de irmãos e para proporcionar a convivência de
crianças e adolescentes em diferentes idades.

10
CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de Ação nº 3. São Paulo: março/1993
A análise regional desse quesito mostra que o Centro-Oeste e o Sul se
destacam porque cerca de 70% dos abrigos dessas regiões têm intervalos etários
de atendimento superiores a 10 anos. Na região Sudeste, 62,3% dos abrigos
oferecem atendimento a crianças e adolescentes dessa forma. As regiões Norte
(56%) e Nordeste (50%) têm percentuais menores de abrigos com diferença
maior que 10 anos entre a idade máxima e a mínima. No entanto, vale ressaltar
que nessas duas regiões há maiores concentrações em faixas imediatamente
inferiores, com diferenças entre a maior e a menor idade do atendimento variando
de cinco a 10 anos.

TABELA 11
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC pelas características do
atendimento, segundo faixa etária (%)

Diferença média entre


Regiões brasileiras BRASIL
idades máxima e
mínima
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Até 2 anos 0,0 0,0 0,7 0,0 2,4 0,5

De 3 a 4 anos 4,0 1,8 5,2 3,3 2,4 3,9

De 5 a 7 anos 20,0 28,6 16,3 9,0 19,5 17,5

De 8 a 10 anos 20,0 16,1 10,7 13,9 2,4 12,2

Acima de 10 anos 56,0 50,0 62,3 70,5 70,7 62,0

Não sabe/não 0,0 3,6 4,8 3,3 2,4 3,9


respondeu

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

8989
No que se refere à exclusividade para a população infanto-juvenil, a maioria
dos abrigos pesquisados (91,2%) atende somente crianças e adolescentes. Apenas
6,8% (cerca de 40 abrigos) acolhem também adultos e idosos no mesmo espaço
institucional (gráfico 10). Entre esses últimos, encontram-se instituições que atendem,
por exemplo, pessoas portadoras de necessidades especiais e que aí estão desde a
infância. Há também nesse grupo um pequeno número de instituições que oferece
atenção a adolescentes grávidas ou a jovens mães, que são acolhidas juntamente
com seus bebês. Nesses casos, o público adulto informado por esses abrigos refere-
se às mães ou às gestantes maiores de 18 anos.
GRÁFICO 10
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo atendimento exclusivo para
crianças e adolescentes

90
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Do total do universo pesquisado, 12,1% das instituições declararam possuir


atendimento especializado (gráfico 11). Como pode ser observado na tabela 12,
nesse grupo se destacam os abrigos para crianças e adolescentes em situação de
rua (52,1% das instituições com especialidade), os abrigos para portadores de
necessidades especiais (35,2%) e os abrigos para crianças e adolescentes com
doenças infecto-contagiosas (8,5%).

GRÁFICO 11
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo atendimento exclusivo
especializado

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
A análise regional mostra que as regiões Norte e Nordeste apresentam maior
percentual de abrigos com atendimento especializado exclusivo do que o restante
do país: mais do que o triplo da região Sudeste e praticamente o dobro dos
percentuais das regiões Sul e Centro-Oeste. As regiões Norte e Sul têm a maioria
dos abrigos com especialidade direcionada para crianças e adolescentes em situação
de rua (83,3% e 60%, respectivamente), enquanto no Nordeste esse tipo de instituição
alcança 52%, e as direcionadas a portadores de necessidades especiais, 44%.

TABELA 12
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC com atendimento
exclusivo, segundo especialidade (%)

Especialidade Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Abrigos com atendimento exclusivo 24,0 22,3 6,9 12,3 12,2 12,1

Abrigo para crianças e adolescentes 83,3 52,0 50,0 60,0 0,0 52,1
em situação de rua

Abrigo para portadores de 16,7 44,0 25,0 40,0 40,0 35,2


necessidades especiais

Abrigo para crianças e adolescentes 0,0 4,0 15,0 6,7 20,0 8,5
com doenças infecto-contagiosas

Abrigo para crianças e adolescentes 0,0 0,0 5,0 0,0 0,0 1,4
com câncer

Outros tipos de especialidade 0,0 8,0 5,0 0,0 40,0* 7,0

Não há exclusividade no atendimento 76,0 77,7 90,7 85,2 82,9 85,9

Não respondeu 0,0 0,0 2,4 2,5 4,9 2,0

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

* 40% referentes a dois abrigos, entre cinco com exclusividade de atendimento na região Centro-Oeste, destinados (i) a vítimas de
violência e abuso sexual (residência-protegida) e (ii) a acolher meninas provenientes da zona rural, somente no período letivo.
9191
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Por outro lado, é importante registrar que, apesar de a grande maioria das
instituições pesquisadas (85,9%) ter declarado que atende toda e qualquer criança
ou adolescente que se encontre em situação de risco, sem distinção quanto ao
tipo de problema que culminou no abrigamento, apenas 12,6% das instituições
possuem instalações físicas adaptadas ao acesso de pessoas portadoras de
deficiências, o que indica que crianças e adolescentes com estas características,
na verdade, enfrentam restrições no acesso ou no atendimento nessas entidades.11

11
Registra-se, ainda, que houve entidades que optaram por explicitar algum tipo de restrição no atendimento,
ainda que esse aspecto não fosse objeto de nenhuma das questões aplicadas. Ou seja, são abrigos que atendem
qualquer criança e adolescente, “desde que não sejam portadores de necessidades especiais, infratores (sic) ou usuários
de substâncias tóxicas” (grifo nosso), por exemplo.
3.7 REGIME DE PERMANÊNCIA DE CRIANÇAS
E ADOLESCENTES NOS ABRIGOS

Entre os abrigos pesquisados, predomina o regime de permanência


continuada (78,4%), onde crianças e adolescentes ficam no abrigo o tempo todo,
fazendo da instituição seu local de moradia. Um número reduzido de abrigos
(5,8%) funciona em regime no qual as crianças ficam aos cuidados da instituição
durante a semana e nos fins-de-semana retornam a suas casas, onde convivem
com seus familiares. Há ainda um outro grupo de instituições que adota o regime
misto (12,2%), com as duas formas de atendimento citadas (tabela 13). A inserção
em um ou em outro regime depende, basicamente, das circunstâncias e dos motivos

92 que resultaram na necessidade de a criança permanecer no abrigo.

Com relação a este aspecto, as regiões Nordeste e Centro-Oeste se distinguem


das demais por apresentarem a maior proporção de abrigos que oferecem regimes
de permanência semanal e misto: no Nordeste, 12,5% e 21,4%, respectivamente;
no Centro-Oeste, 9,8% e 14,6%.

TABELA 13
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo o regime de
permanência (%)

Regime de permanência Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Crianças e/ou adolescentes ficam 88,0 61,6 84,1 82,0 68,3 78,4
no abrigo o tempo todo
(moram no abrigo)

Crianças e/ou adolescentes ficam no 4,0 12,5 3,1 4,9 9,8 5,8
abrigo durante a semana e vão para
casa nos fins-de-semana

Regime misto 0,0 21,4 10,0 10,7 14,6 12,2

Outro regime de permanência 8,0 2,7 0,7 0,8 4,9 1,7

Não respondeu 0,0 1,8 2,1 1,6 2,4 1,9

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
O regime de permanência praticado pelas instituições que oferecem
programas de abrigo é um aspecto importante a ser considerado na avaliação
desses serviços, pois sua flexibilidade pode ser um valioso instrumento para
incitar a convivência familiar das crianças e dos adolescentes abrigados. Um
regime de permanência não-rígido pode facilitar a transição entre a fase da
institucionalização e o retorno à família, que tem um tempo para se reorganizar
sem perder o contato com a criança ou com o adolescente.

Além disso, a flexibilidade do regime de permanência pode, em última


instância, fazer parte de uma política mais ampla de prevenção ao abandono,
uma vez que, na ausência ou insuficiência de políticas públicas que atendam a
outros tipos de demanda das famílias - como creches, escolas e centros de
atendimento diário –, as entidades que desenvolvem programas de abrigo podem
oferecer outras opções de apoio a pais e responsáveis que têm menor
disponibilidade para dar atenção a seus filhos, como, por exemplo, empregados
domésticos que necessitam morar durante a semana no local de trabalho.

Deve-se, aqui, mais uma vez, resgatar o abrigo, conforme sua definição no
ECA, como medida provisória utilizada para a proteção da própria criança ou do
adolescente. É uma pausa no convívio familiar durante a qual a família, o Estado
e a sociedade, supostamente, estarão ensejando esforços para que a convivência
familiar seja restabelecida o quanto antes. Dessa forma, a flexibilidade institucional
é importante para que se encontre a melhor opção em cada circunstância na qual
foi estabelecida a medida de abrigamento. Regimes de permanência flexíveis são
especialmente importantes nos casos de crianças e adolescentes que possuem
vínculos familiares e que têm chances de retorno à família de origem. Mesmo 9393
nos casos em que o cumprimento da medida de proteção da criança ou do
adolescente foi motivado por grave enfermidade dos pais ou responsáveis, ou
por problemas de abuso sexual doméstico, por exemplo, a flexibilidade do regime
de permanência deve ser adotada conjuntamente com outras opções de convivência
familiar, como programas de famílias acolhedoras e incentivo à inserção na família
extensiva, assim consideradas as pessoas que não compõem a família nuclear de
origem (pai, mãe e irmãos pequenos), mas que têm relação de parentesco (irmãos
maiores, sobrinhos, primos, avós, tios, cunhados) ou que mantêm vínculo afetivo
com a criança ou o adolescente (padrinhos, agregados da família etc.).
3.7.1 Os centros de atenção diária (CADs) como alternativa

No contexto da importância da flexibilidade no regime de permanência dos


programas de abrigo para a garantia do direito à convivência familiar de crianças
e adolescentes em situação de risco social ou pessoal, é importante destacar a
relevância da atuação das instituições que prestam atendimento diário para a
população infanto-juvenil, denominadas de centros de atenção diária - CADs, ainda
que, segundo a definição adotada nesta pesquisa, não sejam considerados abrigos.12

Entre as instituições pesquisadas pelo “Levantamento Nacional”, foram


encontrados 10 CADs para crianças e adolescentes. Os serviços oferecidos por
instituições dessa natureza têm influência direta na problemática do risco social
94 que leva centenas de crianças e adolescentes à institucionalização. Como se sabe,
apesar de o estatuto afirmar que a falta ou carência de recursos materiais não
constitui motivo suficiente para a perda ou destituição do pátrio poder,13 a realidade
é que muitas famílias abandonam seus filhos nos abrigos sob a alegação de
insuficiência de recursos para a própria sobrevivência e a de seus filhos.

Nesse contexto, os CADs são orientados por uma concepção preventiva e


compensatória de atendimento infanto-juvenil destinado às camadas de baixa
renda, que têm problemas de acesso a outros equipamentos públicos como creches
- para a população de zero a seis anos - e escolas ou centros de atendimento
integral - para as faixas etárias de sete a 12 anos e de 13 a 17 anos.

De fato, como se observa pelos dados da tabela 14, o motivo mais citado
para o ingresso das crianças e dos adolescentes nos CADs é a pobreza/carência
de recursos materiais da família ou do responsável (86,2% do total dos motivos
apontados por esses centros de atendimento). A magnitude desse indicador revela,
de forma contundente, a importância dessas instituições para as famílias de baixa
renda, uma vez que representam suporte para que mães, pais ou responsáveis
possam trabalhar fora de casa e, conseqüentemente, aumentar a renda da família,
diminuindo, assim, as causas de abandono de crianças e adolescentes em abrigos.

12
Essas instituições não estão contempladas nas demais análises realizadas neste trabalho.
13
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 23.
Com efeito, estudos brasileiros sobre creches - que são instituições que
guardam alguma similitude com os CADs - apontam forte relação entre esses
serviços e o incremento do trabalho feminino fora de casa, destacando que,
enquanto o modelo jardim-de-infância é voltado para as classes mais privilegiadas,
nas creches o atendimento é essencialmente dirigido para os pobres.14

TABELA 14
Brasil: motivo de ingresso de crianças e adolescentes nos centros de atenção diária,
segundo a freqüência

Motivos referidos Freqüência Percentual


Carência de recursos materiais da família/responsável (pobreza) 558 86,2%
Outros motivos 84 13,0%
Sem informação sobre os motivos de ingresso 5 0,8%
TOTAL 647 100,0%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

3.8 OUTROS SERVIÇOS OFERECIDOS PELOS ABRIGOS

Também no âmbito da discussão sobre a inadequação e a carência de


programas públicos, voltados prioritariamente para a população de baixa renda, 9595
que atendam às necessidades de acolhimento, educação e cuidado das crianças e
dos adolescentes, é oportuno registrar a atuação dos abrigos na busca do
atendimento de outras demandas da comunidade onde estão inseridos.

14
BARRETO, Ângela Maria R.F. Políticas e Programas federais destinados à criança de zero a seis anos. IN: IPEA/
BID. Relatório final da pesquisa Crianças de zero a seis anos: suas condições de vida e seu lugar nas políticas
públicas. Brasília, dezembro de 2001. (não publicado)
GRÁFICO 12
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo outros serviços oferecidos

96

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Como ilustrado no gráfico 12, 66,2% dos abrigos pesquisados no Brasil


desenvolvem outros tipos de atividades para crianças e adolescentes da comuni-
dade, além do programa de abrigo, e 27,2% declararam que não oferecem outros
serviços. Das regiões brasileiras, o Norte e o Nordeste mantêm os maiores percen-
tuais de entidades que realizam outros programas para crianças e adolescentes:
80,0% e 73,2%, respectivamente. Por sua vez, o Sudeste (64,7%), o Sul (62,3%)
e o Centro-Oeste (61,9%) têm participações desse tipo de abrigo semelhantes à
média do país.

Entre os diversos serviços oferecidos destacaram-se, pela proporção dos


abrigos que os realizam: (i) atividades no turno complementar ao da escola para
crianças e adolescentes da comunidade (40,7% dos abrigos); (ii) apoio psicológico
e/ou social a famílias de crianças/adolescentes carentes (38,4%); (iii) cursos de
profissionalização (32,8%); (iv) escola (23,1%); (v) creche (21,6%); e (vi) pré-
escola (19,9%) (tabela 15).

Com relação às diferenças entre regiões, no Centro-Oeste grande parte dos


abrigos que oferecem outros serviços à comunidade desenvolve atividades
educacionais: 68% oferecem escola e 44% educação infantil. Nas regiões Norte
e Sudeste, a maior parte dos serviços oferecidos contempla o apoio psicológico
e/ou social a famílias de crianças e adolescentes carentes: 70% dos abrigos que
oferecem outros programas no Norte e 61% na região Sudeste. Já no Nordeste e
no Sul, o destaque fica por conta dos abrigos que oferecem atividades no turno
complementar ao da escola (65,9% e 68,4%, respectivamente).

Como se vê, a proximidade com as famílias da comunidade e a possibilidade


de atender parte das necessidades de crianças e adolescentes que permanecem
junto a seus familiares podem fazer dos abrigos importantes instrumentos de
inclusão social e, até mesmo, de prevenção à institucionalização de crianças e
adolescentes.

TABELA 15
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC, segundo outros
serviços oferecidos para crianças e adolescentes da comunidade (%)

Outras atividades oferecidas Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Desenvolve outros tipos de atividade 80,0 73,2 64,7 62,3 61,0 66,2

Atividades no turno complementar 40,0 65,9 60,4 68,4 52,0 61,5


ao da escola

Apoio psicológico e/ou social a famílias 70,0 56,1 61,0 50,0 56,0 57,9
de crianças/ adolescentes carentes

Profissionalização/ cursos 50,0 61,0 41,7 56,6 48,0 49,5

Escola 45,0 42,7 25,7 35,5 68,0 34,9

Creche 25,0 24,4 36,9 31,6 36,0 32,6

Pré-escola 20,0 25,6 31,6 28,9 44,0 30,0


9797
Atividades culturais 5,0 4,9 9,6 1,3 12,0 6,9

Formação religiosa 0,0 2,4 2,7 0,0 8,0 2,3

Atenção à saúde 0,0 1,2 3,2 0,0 4,0 2,1

Acompanhamento/reforço/ 0,0 1,2 3,2 0,0 4,0 2,1


complementação escolar

Programa de atenção/prevenção 5,0 0,0 0,5 1,3 0,0 0,8


ao uso de drogas

Outras atividades 10,0 9,8 8,0 9,2 4,0 8,5

Não desenvolve outros tipos de serviços 20,0 18,8 29,4 32,0 24,4 27,2

Não sabe/não respondeu 0,0 8,1 5,9 5,7 14,6 6,6

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
3.9 BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Ângela Maria R.F. Políticas e Programas federais destinados à criança


de zero a seis anos. IN: IPEA/BID. Relatório final da pesquisa Crianças de zero a seis
anos: suas condições de vida e seu lugar nas políticas públicas. Brasília, dezembro de 2001.
(não publicado).

CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de Ação nº 3. São


Paulo: março/1993.

CONSELHO MUNICIPAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO


98 ADOLESCENTE. Política de abrigo para crianças e adolescentes do município do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, setembro de 2001.

IPEA/DISOC. Levantamento Nacional de Abrigos da Rede SAC. Relatório de


Pesquisa número 1. Brasília, outubro de 2003 (não publicado).

MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. Subsídios


para ordenamento e financiamento dos serviços de abrigo. Brasília, 2000.
ARTE SOBRE FOTO DE JOSÉ VARELLA
CAPÍTULO 4

Quem cuida?
O quadro de recursos humanos
nos abrigos
Simone Gueresi de Mello e Enid Rocha Andrade da Silva

99
100
4.1 ABERTURA

Por longo período, o Estado brasileiro deixou a assistência a “carentes” e


“abandonados” por conta das instituições de caridade e filantrópicas. A entrada
tardia do Estado na atenção à infância e à adolescência em situação de risco teve
reflexos no quadro de recursos humanos que tradicionalmente se ocuparam dessas
entidades de abrigo. Essa atenção foi, durante muito tempo, desenvolvida predo-
minantemente por agentes voluntários – religiosos ou leigos –, contando com
pouquíssimos trabalhadores remunerados.1

Até o fim do século XIX, a assistência à infância e à adolescência desam-


parada no Brasil se caracterizava pelo atendimento em asilos, realizado por ini-
ciativa de ordens religiosas e de sociedades beneficentes. A formação religiosa
era a intenção central do atendimento nessas entidades, sem maiores preocupações
pedagógicas ou educacionais, o que certamente determinava o quadro de recursos
humanos ali envolvidos: basicamente religiosas e padres. Além desses, apenas as
amas – que podiam ser remuneradas2 - responsáveis pela amamentação dos bebês
e pela criação das crianças e dos adolescentes.

No início do século XX, a situação dessas instituições passa a preocupar


uma outra parcela da sociedade, especialmente os juristas e os médicos, que
apontavam nos asilos de caridade problemas como a falta de disciplina e de
organização, a ineficiência da atuação na superação dos “males” da pobreza, 101
bem como o descuido com as condições higiênicas, o que propiciava o apare-
cimento de doenças e as altas taxas de mortalidade infantil verificadas nesses
ambientes. A chamada “nova filantropia” era baseada nos princípios higienistas
da medicina social, que justificavam tecnicamente a ingerência de especialistas
sobre a família e a infância. 3

1
CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de Ação nº 3. São Paulo: março/1993
2
Em 1739, a direção da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, em requerimento enviado a D. João V
solicitando verbas públicas, argumentava: “(...) que não se pagava o salario ás amas dos engeitados, o que procedia
do exhorbitante salário de dose moedas que por onus se dava a cada anno (...) e de ver por todo cuidado na
creação de semelhantes expóstos, mandou que daqui em diante fôsse o salario de cada uma de oito moedas os
trez primeiros annos da criação e os ultimos quatro, á razão de meia moeda por mez (...)” [sic] (MONCORVO
FILHO, Arthur. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500-1922. Rio de Janeiro: 1926. p.43).
3
RIZZINI, Irma. Assistencia à infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Editora Universitária
Santa Ursula,1993.
No âmbito da atuação do Poder Público, em plena consolidação do regime
republicano, surgia a demanda pelo controle sobre a ação não-governamental a
ser exercido pelo Estado, consolidado com a aprovação do Código de Menores,
em 1927. Para tanto, foram introduzidos na ação estatal de assistência critérios
técnico-científicos, tanto para a fiscalização das entidades e definição do formato
do atendimento a ser oferecido, quanto para avaliação e triagem das crianças e
dos adolescentes.4

Isso trouxe novas exigências às instituições de abrigo, tanto para a


especialização do atendimento – visto que os indivíduos atendidos eram agora
classificados em categorias, segundo suas características pessoais, familiares,
jurídicas e sociais –, quanto para a constituição de um quadro de recursos humanos
mais complexo. Os médicos, os psicólogos e os professores, bem como outros
102 profissionais especializados, além do pessoal responsável pela administração
institucional e pela manutenção da “ordem”, adquirem importância singular nesse
trabalho.

As entidades se caracterizavam pelas condições de isolamento impostas às


crianças e aos adolescentes sob sua guarda, pois se organizavam segundo o modelo
de instituições ditas “totais”, nas quais a maior parte das atividades eram realizadas
dentro do próprio abrigo, tais como atenção à saúde, educação, profissionalização
e atividades de cultura e lazer. As crianças e os adolescentes afastados de seus
familiares viviam em espaços com regulamentos difusos, hierarquia rígida e
funcionários que, de maneira geral, se classificavam apenas como “agressores”
ou “protetores”5 - o que nem de longe se parecia com uma vivência residencial e
familiar.

Com relação à postura a ser adotada pelos trabalhadores das entidades,


todos os níveis funcionais deveriam ocupar-se da função de vigilância, desde o
funcionário mais subalterno até o diretor, sendo que este último centralizava as
informações decorrentes dessa prática de controle. Essas informações circulavam
de forma hierárquica e formalizada e contemplavam registros individuais sobre
aspectos pedagógicos, escolares, de saúde, de (in)disciplina e até sobre o
comportamento das crianças e dos adolescentes nas suas horas “livres”.6 Essa

4
RIZZINI, Irma. op. cit.
5
CBIA/SP e IEE/PUC SP. op. cit. p 14.
6
RIZZINI, Irma. op. cit.
rigidez institucional, implementada sem maiores questionamentos por mais de
meio século no Brasil, cristalizou uma cultura organizacional e uma lógica de
funcionamento nas instituições de abrigo difíceis de serem mexidas.

Entretanto, as mudanças estimuladas pelos movimentos sociais e conso-


lidadas como lei no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)7 – que trouxe
uma perspectiva de garantia de direitos à infância e à adolescência – exigem
novas ações para a prevenção do abandono, assim como indicam que o abrigo
em instituições, quando necessário, se dê de forma aberta e promotora de indiví-
duos cidadãos e que priorize a garantia do direito à convivência familiar e comu-
nitária – o que em muito se contrapõe às práticas vigentes até então.

Nesse sentido, os profissionais das entidades que oferecem programas de


abrigo passam a ter o papel de educadores, o que requer não apenas profissio-
nalização da área, mas também a existência de uma política de recursos humanos
que envolva seleção adequada; capacitação permanente, considerando as peculia-
ridades e dificuldades do trabalho a ser desenvolvido; incentivos e valorização, o
que também inclui uma remuneração adequada.8

Assim, tendo em vista o papel estratégico desempenhado pelas instituições


de abrigo no tocante à implementação de uma parte da política destinada a crianças
e adolescentes que necessitam de proteção, e considerando a importância dos
princípios estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente para serem
seguidos por essas entidades, é importante conhecer os profissionais que atuam
nessas instituições já que, em última instância, deles é a responsabilidade por
grande parte da aplicação do que está estabelecido na lei. Além disso, vale destacar
que as despesas com pessoal representam mais de 50% do total de despesas dos
103
abrigos9, o que significa volume considerável dos recursos investidos nesse tipo
de programa. É no âmbito dessa discussão que aqui se busca uma análise mais
detalhada dos recursos humanos das instituições pesquisadas durante o
Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

7
Lei 8.069/90.
8
CBIA/SP e IEE/PUC SP. op. cit. p 36.
9
Ver capítulo 6.
4.2 OS DIRIGENTES DOS PROGRAMAS DE ABRIGO

Pela especificidade conferida ao dirigente da entidade de abrigo no Estatuto


da Criança e do Adolescente, especial atenção foi dada para conhecer essa parcela
dos profissionais das instituições pertencentes à Rede SAC.10 O ECA estabelece
que “o dirigente da entidade de abrigo é equiparado ao guardião, para todos os
efeitos de direito”11 e que a guarda de criança ou adolescente obriga à prestação
de assistência material, moral e educacional12. Assim, o guardião tem atribuições
que vão além da administração da instituição que dirige ou do programa que
coordena, sendo o responsável pelo cuidado, pela orientação, pela assistência e
pela educação que serão dispensados às crianças e aos adolescentes sob sua

104 proteção.13

Vale considerar, porém, que a expressão “dirigente da entidade de abrigo”


utilizada no Estatuto pode suscitar mais de uma interpretação. Em especial nas
instituições maiores, que oferecem outros programas além de abrigo para crianças
e adolescentes, o dirigente pode ser considerado tanto o presidente da instituição
como um todo quanto o coordenador do programa de abrigo, especificamente.

No universo dos abrigos da Rede SAC pesquisados, a maioria (92,4%)


informou que seus dirigentes são legalmente equiparados ao guardião das crianças
e dos adolescentes abrigados sob sua proteção, enquanto em 5,8% o dirigente
não se encontra nessa condição. Pode-se supor que naqueles em que o dirigente
não se equipara ao guardião, há a separação entre as funções de dirigente da
entidade e de responsável mais direto pelas crianças e pelos adolescentes do
programa de abrigo.

10
Os dirigentes das entidades financiadas pela Rede SAC foram contatados em duas etapas do Levantamento
Nacional: na primeira, a etapa da pesquisa telefônica, quando se tentava a interlocução com o próprio dirigente,
na busca da sua adesão à etapa seguinte e respostas sobre suas opiniões com relação ao ECA; na etapa quantitativa,
na qual o dirigente foi o destinatário do questionário auto-aplicável e, por conseqüência, o responsável por seu
preenchimento ou pela delegação a outro respondente. Nesse questionário havia um bloco específico sobre o
perfil do dirigente do programa de abrigo. (Ver maiores detalhes sobre a metodologia da pesquisa no capítulo 1,
item 1.31).
11
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 92, parágrafo único.
12
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 33.
13
CBIA/SP e IEE/PUC SP. op cit.
TABELA 01
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC por equiparação do
dirigente ao guardião das crianças e dos adolescentes abrigados (%)

Dirigente equiparado Regiões brasileiras BRASIL


ao guardião
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Sim 100,0 92,9 92,7 91,0 87,8 92,4

Não 0,0 4,5 5,2 7,4 12,2 5,8

Não sabe/não respondeu 0,0 2,7 2,1 1,6 0,0 1,9

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Os dirigentes pesquisados pelo Levantamento Nacional são, em sua maioria,


mulheres (60,4%), enquanto 38,9% são homens. A maioria feminina se mantém
em todas as regiões do país, destacando-se o Norte, onde essa participação chega
a 80%. Por outro lado, a região Sudeste é a única onde a participação das mulheres
(52,9%) está abaixo da média do país, ainda que majoritária, ficando os homens
com a direção de 45,7% dos abrigos (gráfico 1).

GRÁFICO 01
Brasil/grandes regiões: distribuição dos dirigentes dos abrigos da Rede SAC por sexo

105

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC
A idade média dos dirigentes dos programas de abrigo pesquisados era de
48,6 anos: o dirigente mais velho entre os que responderam o questionário tinha 84
anos, enquanto o mais novo possuía 23 anos. Observando-se as faixas de idade,
percebe-se que 33,8% dos dirigentes tinham idade entre 41 e 50 anos e 21,9%
entre 31 e 40. Somando-se essas duas faixas de maior incidência, obtém-se mais da
metade dos dirigentes (55,7%) com idade entre 31 e 50 anos. Outros 30,6% tinham
entre 51 e 70 anos; 5,8% tinham mais de 70; enquanto 4,9% tinham 30 ou menos,
entre os quais apenas 0,7% tinha menos de 25 anos (gráfico 2).

GRÁFICO 02
Brasil: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC por faixa etária

106

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

A tabela 2 mostra que a região Norte tinha dirigentes mais jovens, com
idade média de 43 anos, enquanto no Sudeste a idade média era a mais elevada:
50,1 anos. De fato, 76% dos dirigentes nortistas tinham entre 31 e 50 anos,
sendo que 44% tinham entre 31 e 40. Por sua vez, a região Sudeste era a única
onde havia abrigos cujos dirigentes possuíam idade superior a 80 anos. A região
Nordeste também tinha um percentual maior do que a média nacional de dirigentes
mais velhos, com 11,6% deles com idade entre 71 e 80 anos.
TABELA 02
Brasil/grandes regiões: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC
por faixa etária (%)

Faixas de idade Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Menos de 25 anos 4,0 0,0 0,7 0,0 2,4 0,7

25 a 30 anos 0,0 7,1 2,8 5,7 4,9 4,2

31 a 40 anos 44,0 23,2 17,3 27,0 22,0 21,9

41 a 50 anos 32,0 31,3 36,0 33,6 26,8 33,8

51 a 60 anos 12,0 17,0 20,1 17,2 22,0 18,7

61 a 70 anos 4,0 9,8 12,5 10,7 22,0 11,9

71 a 80 anos 0,0 11,6 4,5 1,6 0,0 4,8

Mais de 80 anos 0,0 0,0 2,1 0,0 0,0 1,0

Não respondeu 4,0 0,0 4,2 4,1 0,0 3,1

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Idade média 43,0 anos 48,9 anos 50,1 anos 46,3 anos 47,0 anos 48,6 anos

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Os dados de escolaridade dos dirigentes pesquisados mostram que 60,8%


deles têm ensino superior completo, com ou sem pós-graduação. De fato, a grande
maioria dos dirigentes pesquisados (70%) já passou pela universidade, sendo que
42,8% têm ensino superior completo, 18% cursaram pós-graduação e 9,2% não
concluíram o ensino superior. Outra faixa de concentração dos dirigentes
pesquisados é a dos que concluíram o ensino médio, que representam 21,4% do 107
total. Apenas 7,6% possuem escolaridade inferior ao ensino médio completo,
sendo que 2,9% não completaram o ensino fundamental (gráfico 3).
GRÁFICO 03
Brasil: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC
por nível de escolaridade

108

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Analisando a escolaridade dos dirigentes em cada região do Brasil, observa-


se que, com relação aos anos concluídos de estudo, em todas as regiões existe
uma concentração de dirigentes com escolaridade de ensino médio em torno de
30% (ensino médio completo ou superior incompleto), sendo que nas regiões
Centro-Oeste e Norte essa proporção é maior em relação à média nacional: 46,4%
e 36%, respectivamente (tabela 3).

Com relação aos que já concluíram o ensino superior, na região Sudeste


essa proporção é de 50,5%, no Nordeste de 46,4%, e no total Brasil, de 42,8%.
A região Centro-Oeste é a que menos tem profissionais com nível superior
ocupando o cargo de dirigente de abrigo (22%); no Norte, essa participação é de
28% e no Sul, de 31,1%.

Sobre o aspecto da escolaridade cabe ainda destacar, pela expressividade, a


elevada proporção de dirigentes de abrigos com pós-graduação na região Sul
(27%), o que significa uma vez e meia a média nacional para todos os abrigos
pesquisados.
TABELA 03
Brasil/grandes regiões: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC por nível
de escolaridade (%)

Escolaridade do dirigente Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Ensino Fundamental incompleto 12,0 0,9 2,1 3,3 7,3 2,9

Ensino Fundamental completo 4,0 2,7 2,1 2,5 4,9 2,5

Ensino Médio incompleto 8,0 1,8 1,7 1,6 4,9 2,2

Ensino Médio completo 28,0 22,3 19,4 21,3 29,3 21,4

Ensino superior incompleto 8,0 8,0 7,3 12,3 17,1 9,2

Ensino superior completo 28,0 46,4 50,5 31,1 22,0 42,8

Pós-graduação 12,0 17,9 15,2 27,0 14,6 18,0

Não sabe/não respondeu 0,0 0,0 1,7 0,8 0,0 1,0

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Quanto ao tipo de profissão/ocupação dos dirigentes dos programas de


abrigo pesquisados, a tabela 4 mostra que o maior percentual (24,8%) possui
formação ou ocupação no âmbito das Ciências Sociais e Humanas, destacando-
se os assistentes sociais, que correspondem a 10,7% do total - a profissão que
individualmente reúne o maior número de dirigentes (tabela 5).

O segundo agrupamento de ocupações com maior participação dos dirigentes


pesquisados é o dos profissionais do ensino, respondendo por 22,8%, no qual as
principais ocupações são as de professor (10,5%) e de pedagogo (10,2%). Em
109
terceiro, no agrupamento dos profissionais da religião, se destacam os que se
identificaram como “religiosos” (7,5%) e os teólogos (2,5%). A predominância
desses três principais grupos de ocupações/profissões não apresenta variação
significativa na análise por regiões.
TABELA 04
Brasil: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC
por grupos de profissão/ocupação

Grupo de profissão/ocupação Nº de dirigentes Percentual

Profissionais das Ciências Sociais e Humanas 146 24,8


Profissionais do Ensino 134 22,8
Profissionais da Religião 69 11,7
Profissionais da Saúde, das Ciências Biológicas, Bioquímicas e afins 32 5,4
Profissionais das Ciências Jurídicas 31 5,3
Profissionais das Ciências Exatas, Físicas, Químicas e da Engenharia 18 3,1
Vendedores e prestadores de serviços do comércio 18 3,1
Servidores do Poder Público 14 2,4
Dirigentes e gerentes 13 2,2
Trabalhadores de serviços diversos 13 2,2

110 Técnicos de Nível Médio


Profissionais de Letras, das Artes e da Comunicação
12
10
2,0
1,7
Trabalhadores de serviços administrativos 6 1,0
Militares 3 0,5
Trabalhadores do setor primário 1 0,2
Não identificado/não respondeu 69 11,7
Total 589 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

TABELA 05
Brasil: principais profissões/ocupações dos dirigentes de abrigos da Rede SAC

Profissão/ocupação do dirigente Nº de dirigentes Percentual

Assistente social 63 10,7


Professor 62 10,5
Pedagogo 60 10,2
Religioso 44 7,5
Advogado 29 4,9
Psicólogo 22 3,7
Administrador de empresas 21 3,6
Teólogo 15 2,5
Funcionário público 13 2,2
Contador 12 2,0
Comerciante 12 2,0
Empresário 10 1,7
Outros 157 27,5
Não identificado/não respondeu 69 11,7
Total 589 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Em relação à remuneração recebida pelos dirigentes pelo trabalho no abrigo,
no gráfico 4 destaca-se que 59,3% deles afirmaram não receber qualquer tipo de
remuneração para exercer a função, ou seja, são voluntários.14 Quando perguntados
se exerciam atividades remuneradas fora do abrigo, 57,2% dos dirigentes
afirmaram que não exercem outras atividades, sendo que 40,1% dos que não
recebem salário no abrigo também não têm outras atividades remuneradas.

Nas regiões Norte e Sul, ao contrário do restante do país, a maior parte dos
dirigentes é remunerada pelo trabalho no abrigo: respectivamente 60% e 57,4%
deles. Por outro lado, no Sudeste e no Centro-Oeste é alta a participação dos
dirigentes voluntários: 70,6% no Sudeste e 65,9% no Centro-Oeste.

GRÁFICO 04
Brasil/grandes regiões: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC por
recebimento de remuneração pelo exercício da função

111

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

Quanto ao tempo dedicado ao abrigo, o gráfico 5 mostra que, ainda que a


maioria não receba remuneração para atuar como dirigente, praticamente a metade
dos pesquisados (51,4%) dedica 40 horas ou mais por semana ao abrigo, sendo
que a faixa que agrupa a maior parcela (34,8%) é a dos que trabalham entre 40 e
49 horas semanais, o que significa dedicar o dia inteiro ao programa. Vale ressaltar

14
Ver maiores detalhes sobre o trabalho voluntário nos abrigos da Rede SAC no texto de Beghin e Peliano, no
capítulo 8.
que essa faixa de dedicação é maior entre os dirigentes remunerados, dos quais
65,0% se encaixam nela, provavelmente por corresponder a uma jornada de oito
horas diárias, enquanto os voluntários têm maior concentração na faixa de até 20
horas semanais (37,4% dos não-remunerados) e apenas 17,1% se dedicam entre
40 e 49 horas por semana.

GRÁFICO 05
Brasil: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC por carga horária
dedicada ao abrigo

112

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

Do total de dirigentes de abrigos pesquisados, a parcela que dedica até 20


horas semanais ao trabalho no abrigo corresponde a 26,8%. A média geral de
horas dedicadas ao abrigo é alta: 46,7 horas semanais. Vale ressaltar, contudo,
que o índice de não-respostas sobre o número de horas dedicadas ao abrigo foi
significativo, atingindo 11,5%.

Vale notar, ainda, que 7,8% dos dirigentes afirmaram ter uma dedicação
integral ao abrigo, o que corresponde a 168 horas semanais, ou seja, todas as
horas de todos os dias da semana. Provavelmente esses sejam os dirigentes que
moram no local de trabalho, o que explicaria essa dedicação permanente. A tabela
6 mostra que os profissionais da religião (37%) e os profissionais do ensino
(26,1%) somam mais da metade desses dirigentes, sendo que os que se declararam
“religiosos” representam um terço dos que se dedicam integralmente ao abrigo
(32,6%).
TABELA 06
Brasil: distribuição dos dirigentes que dedicam 168 horas por semana aos abrigos
da Rede SAC por profissão/ocupação

Grupo Profissão/ocupação Nº de dirigentes Percentual


do dirigente

Religioso 15 32,6
Profissionais da religião Capelão 1 2,2
Teólogo 1 2,2
Profissionais do ensino Pedagogo 8 17,4
Professor 4 8,7
Detetive 1 2,2
Trabalhadores de serviços diversos Do lar 1 2,2
Leiturista 1 2,2
Profissionais das Ciências Sociais Assistente social 1 2,2
e Humanas Filósofo 1 2,2
Profissionais das Ciências Jurídicas Promotor 1 2,2
Advogado 1 2,2
Dirigentes e gerentes Empresário 1 2,2
Profissionais da Saúde, das Ciências Auxiliar de enfermagem 1 2,2
Biológicas, Bioquímicas e afins 8 17,4
Profissão não identificada/ não respondeu profissão 46 100,0
Total

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Entre os 197 dirigentes (30,1% do total) que afirmaram receber alguma


remuneração por exercer essa função no abrigo, a média salarial era de R$1.103,96,
sendo a faixa com maior freqüência a dos que recebiam entre R$500,00 e R$999,00
(33%). Em segundo lugar estava a parcela dos que recebiam entre R$1.000,00 e 113
R$1.499,00, que representava 22,3% dos dirigentes remunerados, seguidos dos
que tinham salário variando de R$1.500,00 a R$1.999,00 (14,7%). Enquanto
4,1% dos dirigentes (oito pessoas) recebiam entre R$2.000,00 e R$2.999,00 por
dirigir o programa de abrigo e apenas 2,0% (quatro dirigentes) recebiam um
salário igual ou superior a R$3.000,00, 13,7% recebiam menos do que R$500,00
(gráfico 6).

A remuneração dos dirigentes dos abrigos pesquisados apresenta variações


significativas quando analisada por região. A média dos salários pagos no Sudeste
(R$1.349,41) e na região Sul (R$1.195,82) era quase o dobro da remuneração
média dos abrigos da região Norte (R$694,93). Nas regiões Nordeste e Centro-
Oeste, ainda que maiores do que no Norte, as médias salariais também eram
inferiores à média nacional: R$854,06 e R$719,46, respectivamente (tabela 7).
GRÁFICO 06
Brasil: distribuição dos dirigentes remunerados pelo trabalho nos abrigos da Rede
SAC por faixa salarial

114

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

TABELA 07
Brasil/grandes regiões: distribuição dos dirigentes remunerados pelo trabalho nos
abrigos da Rede SAC por faixa salarial (%)

Faixa salarial Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Menos de R$ 250,00 6,7 0,0 1,6 1,4 7,7 2,0

R$ 250 e R$ 499,00 40,0 16,7 4,8 7,1 23,1 11,7

R$ 500,00 a R$ 999,00 26,7 47,2 23,8 31,4 53,8 33,0

R$ 1.000,00 a R$ 1.499,00 13,3 33,3 30,2 14,3 7,7 22,3

R$ 1.500,00 a R$ 1.999,00 0,0 0,0 19,0 22,9 7,7 14,7

R$ 2.000,00 a R$ 2.999,00 6,7 0,0 9,5 1,4 0,0 4,1

R$ 3.000,00 ou mais 0,0 0,0 3,2 2,9 0,0 2,0

Valor não informado 6,7 2,8 7,9 18,6 0,0 10,2

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Remuneração média R$694,93 R$854,06 R$1.349,41 R$1.195,82 R$719,46 R$1.103,96

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Ainda que algumas regiões apresentem remuneração média maior, de maneira
geral pode-se dizer que não são os ganhos monetários que movem os dirigentes
dessas entidades a exercer essa função, visto que a maioria não é remunerada e,
entre os que o são, os salários não são muito competitivos, considerando-se a
escolaridade e a formação da maioria.

Como mostra o gráfico 7, essas pessoas são levadas a trabalhar em


instituições de abrigo para crianças e adolescentes principalmente por motivação
humanitária (44,3% dos dirigentes do país), ou seja, por solidariedade aos seus
semelhantes e por se sensibilizar com o problema de crianças e adolescentes em
situação de risco. Muitos escolheram essa função por motivação religiosa (29,0%),
enquanto outros foram impulsionados pela própria profissão que desempenham
(23,1%) ou por solicitação/convite de amigos (22,8%).15

GRÁFICO 07
Brasil: motivação dos dirigentes para trabalhar em abrigos para crianças e adolescentes*

115

* Considerando múltipla escolha. Percentual sobre 589 abrigos.


Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

15
Ressalta-se que a questão sobre a motivação para trabalhar em abrigo versava apenas sobre o principal motivo.
Ainda assim, vários dirigentes assinalaram mais de uma opção. Se considerado o universo de 463 questionários
em que foi assinalado apenas o principal motivo, a motivação humanitária permanece em primeiro lugar, com
31,6 % dos dirigentes, seguida pela motivação profissional (22,1%) e pela solicitação/convite de amigos (19,1%),
enquanto a motivação religiosa desce para quarto lugar, referida por 18%. Isso indica que a motivação religiosa
geralmente vem associada a outro tipo de motivação.
A análise entre as regiões mostra diferenças em relação aos motivos que
influenciaram os dirigentes a trabalhar em instituições de abrigo para crianças e
adolescentes. Seguindo a tendência do total nacional, a maioria dos abrigos
pesquisados nas regiões Sudeste e Nordeste possui dirigentes que foram levados
a trabalhar nessas instituições por motivação humanitária (53,6% e 42,9%,
respectivamente). O Centro-Oeste se destaca pela grande influência da religião
como motivação para o trabalho, citada por 41,5% dos dirigentes da região. Já no
Norte (36%) e no Sul (34,4%), o motivo mais citado foi a solicitação ou convite
de conhecidos/amigos. A região Norte é a que tem menor percentual de dirigentes
que alegaram motivações religiosas (12%) – menos da metade da média nacional
(tabela 8).

116 TABELA 08
Brasil/grandes regiões: motivação dos dirigentes para trabalhar em abrigos para
crianças e adolescentes* (%)

Motivos Regiões brasileiras** BRASIL***

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Motivação humanitária 32,0 42,9 53,6 27,9 39,0 44,3

Motivação religiosa 12,0 32,1 30,8 21,3 41,5 29,0

Motivação profissional 32,0 27,7 17,3 30,3 24,4 23,1

Solicitação/convite de 36,0 15,2 20,4 34,4 17,1 22,8


amigos/conhecidos

Designação profissional, 0,0 3,6 3,1 4,1 0,0 3,1


alheia à escolha do dirigente

Outros 4,0 1,8 2,4 1,6 4,9 2,4

Não sabe/não respondeu 4,0 2,7 3,8 5,8 0,0 3,7

* Considerando múltipla escolha.


** Percentuais sobre o total de abrigos de cada região.
*** Percentual sobre 589 abrigos
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

O tempo médio de permanência dos dirigentes dos programas de abrigo no


cargo de direção é de 6,7anos. De todos os dirigentes que responderam o
questionário, a maior parte (41,3%) está nessa função há um período entre um e
quatro anos. Outros 20,5%, entre cinco e nove anos; e que 15,7%, há mais de dez
anos exercendo essa função. Apenas 19,7% dos dirigentes estão no cargo há
menos de um ano (gráfico 8).
GRÁFICO 08
Brasil: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC por tempo de exercício
da função

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

TABELA 09
Brasil/grandes regiões: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC por
tempo de exercício da função

Tempo de permanência Regiões brasileiras BRASIL

Menos de 6 meses
Norte

16,0
Nordeste

8,9
Sudeste

6,2
Sul

7,4
Centro-Oeste

14,6 8,0
117
6 a 11 meses 12,0 11,6 9,0 18,9 9,8 11,7

1 a 4 anos 32,0 33,9 45,7 36,9 48,8 41,3

5 a 9 anos 24,0 21,4 19,4 23,8 14,6 20,5

10 a 19 anos 8,0 12,5 13,1 6,6 4,9 10,9

20 anos ou mais 0,0 8,9 3,5 4,9 4,9 4,8

Não sabe/não respondeu 8,0 2,7 3,1 1,6 2,4 2,9

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Tempo médio 5,3 anos 9,6 anos 6,0 anos 6,2 anos 6,3 anos 6,7 anos

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
A tabela 9 mostra que na região Nordeste os dirigentes permanecem por
mais tempo na função: 9,6 anos, em média, sendo que 8,9% estão há mais de 20
anos no cargo. No outro extremo, a região Norte tem o menor tempo médio de
permanência do país (5,3 anos), sendo a única região onde não há dirigentes há
mais de 20 anos no cargo. Provavelmente isto se explica porque no Norte está o
maior percentual de abrigos posteriores a 1990, ou seja, são instituições mais
recentes.16

Com relação à participação social dos dirigentes de abrigos pesquisados, a


tabela 10 revela que a atuação de grande parte deles não fica circunscrita às
dependências do abrigo. O seu envolvimento com as questões referentes às
crianças e aos adolescentes vai além, chegando aos fóruns e instituições que
discutem, deliberam e controlam as políticas públicas voltadas à infância e à
118 adolescência. Do total de dirigentes pesquisados no Brasil, 42,1% já participaram
ou participam de conselhos de direitos da criança e do adolescente; 36,8% citaram
a participação em outros conselhos municipais; enquanto 27,7% já fizeram ou
fazem parte de fóruns DCA17. Já os conselhos tutelares foram ou são integrados
por 13,1% dos dirigentes, enquanto apenas 3,9% deles afirmaram fazer parte da
Rede Nacional das Entidades do Programa de Ação Continuada (Renipac).
Destaca-se que 36,3% afirmaram não participar de nenhum dos espaços sugeridos.

De maneira geral, não há variações muito expressivas na participação dos


dirigentes de abrigos olhando-se entre as diferentes regiões do país. Entretanto,
sobressaem-se em relação às médias nacionais os elevados percentuais de
participação dos dirigentes da região Sul nos conselhos de direitos da criança e do
adolescente (50%); da região Centro-Oeste em outros conselhos municipais (45,9%);
da região Norte nos fóruns DCA (40%); e da região Nordeste na Renipac (13,4%).

Vale lembrar que a participação dessas pessoas nesses espaços é importante


não só para a busca de maior adequação das políticas às reais necessidades de
crianças e adolescentes em situação de abrigo, para inspirar e orientar as práticas
das próprias instituições que executam a medida de proteção, dadas as mudanças
tão profundas que decorrem das inovações legais e pelas mudanças conceituais
que o Brasil viveu nos últimos 15 anos com relação à forma de ver e cuidar de
suas crianças e seus adolescentes.

16
Ver capítulo 3.
17
Fóruns de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, que reúnem, em âmbito municipal e estadual, as
entidades, movimentos e pessoas que atuam nessa causa, tais como os dirigentes dos abrigos pesquisados.
TABELA 10
Brasil/grandes regiões: Participação dos dirigentes de abrigos da Rede SAC em
instituições/fóruns relacionados* (%)

Instituições das quais Regiões brasileiras** BRASIL***


participa/participou Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Conselho de Direitos da Criança 36,0 37,5 41,2 50,0 41,5 42,1


e do Adolescente

Outros conselhos municipais 28,0 34,8 34,9 45,9 34,1 36,8

Fórum DCA 40,0 28,6 27,3 27,0 22,0 27,7

Conselho Tutelar 8,0 13,4 10,7 18,0 17,1 13,1

Rede Nacional das Entidades 0,0 13,4 1,4 3,3 0,0 3,9
do Programa de Ação Continuada
(Renipac)

Nenhuma das instituições anteriores 36,0 36,6 37,4 32,8 39,0 36,3

Não sabe/não respondeu 4,0 6,3 4,2 6,5 2,4 4,9

* Considerando múltipla escolha.


** Percentuais sobre o total de abrigos de cada região.
*** Percentual sobre 589 abrigos
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

4.3 O QUADRO DE PROFISSIONAIS QUE TRABALHAM


NOS PROGRAMAS DE ABRIGO

119
Considerando-se que o abrigo é uma medida de proteção que representa
uma moradia alternativa e provisória para crianças e adolescentes afastados
temporariamente da convivência familiar, as instituições que oferecem esse tipo
de programa devem contar com os profissionais necessários para o atendimento
cotidiano dos abrigados, com especial atenção às peculiaridades da situação em
que se encontram e para a manutenção e a organização mínimas dessa morada
coletiva.

Deve-se ressaltar, ainda, que a superação das instituições “totais” tem como
ideal a possibilidade de uma entidade de abrigo utilizar a rede de atenção e apoio
às crianças e aos adolescentes, bem como outros serviços oferecidos na
comunidade, em medida equivalente à que uma família comum usufrui para o
atendimento de suas necessidades. Assim, o abrigo deve representar, de fato,
uma moradia acolhedora e adequada para aqueles que dela necessitam e não
mais uma medida de economia – pelo atendimento “padrão” e em larga escala, –
nem uma instituição voltada a “(re)formar” indivíduos adequando-os aos padrões
considerados desejáveis por uma parcela da sociedade.

Nessa nova perspectiva, as diretrizes para o reordenamento estabelecem


que o atendimento em regime de abrigo requer três grupos básicos de recursos
humanos, dimensionados e estruturados em conformidade com as especificidades
da instituição, tais como tamanho, tipo de atendimento oferecido e rede de apoio
existente. São eles:

(i) uma equipe técnica de caráter multidisciplinar - composta por


profissionais aptos a trabalhar na área da infância e da adolescência -

120 que responderá pela concepção e pela condução do programa, propondo,


supervisionando e apoiando o projeto educativo da instituição e o
atendimento individualizado às crianças e aos adolescentes abrigados,
incluindo a função de coordenação ou de direção do abrigo;

(ii) os responsáveis pelo cuidado direto e cotidiano das crianças e


dos adolescentes abrigados; e

(iii) o pessoal de apoio operacional, que desempenha as atividades de


organização diária e manutenção do abrigo, como limpeza, arrumação,
preparo de refeições etc.

Na análise da situação do quadro de recursos humanos dos abrigos


pesquisados, os profissionais encontrados no período de realização desta pesquisa
foram classificados em seis grupos, em razão das funções que desempenham ou
dos serviços que oferecem no abrigo, quais sejam: (i) equipe técnica; (ii) cuidados
diretos; (iii) apoio operacional; (iv) administração institucional; (v) serviços
especializados; e (vi) serviços complementares.18

No primeiro grupo, denominado “equipe técnica”, foram agrupados


assistentes sociais, coordenadores técnicos, nutricionistas, pedagogos, psicope-
dagogos, psicólogos e outros relacionados. Como já apontado, a equipe técnica é
responsável pela organização pedagógica do programa, bem como pela atenção
especial que as crianças e os adolescentes abrigados necessitam em face da situação

18
Foi considerada a função que os profissionais desempenham nos abrigos, independente da formação profissional
de cada um. Por exemplo: se um médico atua como professor dentro do abrigo, foi classificado como professor
e não como médico.
peculiar e difícil em que se encontram. Assim, essa equipe exerce papel estratégico
na implementação do programa de abrigo segundo os princípios inovadores do
ECA.

É importante registrar que não é imprescindível que a equipe técnica de


profissionais seja mantida em período integral e com atendimento exclusivo para
uma única instituição. Pelo contrário, em função do alto custo que pode representar
para uma instituição a manutenção de vários profissionais de nível superior e de
as diretrizes para o reordenamento dos abrigos recomendarem a constituição de
unidades pequenas com números reduzidos de crianças e adolescentes, é
perfeitamente possível que uma mesma equipe técnica preste serviços a vários
programas de abrigo.

A participação de voluntários na equipe técnica é sempre considerada


importante. Entretanto, não é recomendável que o desenvolvimento das atividades
rotineiras dependa do trabalho não-remunerado, de maneira a não provocar solução
de continuidade nem atuações desconectadas da proposta geral de trabalho da
instituição.

No segundo grupo, de “cuidados diretos”, foram incluídos dois tipos de


profissionais: primeiro, os educadores, pajens, cuidadores e monitores, que são
responsáveis por cuidar cotidianamente de crianças e adolescentes abrigados sem
reproduzir uma relação familiar, ainda que possam atender em uma estrutura
física assemelhada a uma residência comum. Já no caso dos outros profissionais
considerados - pais e mães sociais –, estes são responsáveis pelo cuidado com os
abrigados em uma estrutura de casa-lar, que se organiza nos moldes de um núcleo
familiar, com uma mãe social ou um casal social cuidando de até 12 crianças e
121
adolescentes em uma mesma residência.

O terceiro grupo trata das funções de “apoio operacional”, ou seja, engloba


o trabalho de auxiliares de serviços gerais (faxineiros, zeladores, jardineiros,
carpinteiros etc.), cozinheiros, motoristas, seguranças/vigias e afins. São as pessoas
que ajudam nas tarefas diárias, mantendo a organização do abrigo, como os
trabalhadores domésticos em uma residência qualquer.

Como foi visto, esses três primeiros grupos descritos constituem as exigências
para a composição da equipe mínima a ser mantida ou, pelo menos, disponibilizada
de forma regular por uma instituição de abrigo. Obviamente, nem todos as
entidades manterão todos os profissionais considerados em cada equipe. O
importante é que, de maneira geral, sejam oferecidas as funções representadas
por esses três grandes grupos.

Os outros três agrupamentos que se seguem refletem funções adicionais


desenvolvidas pelos abrigos pesquisados e têm uma relação direta com o tipo de
atendimento oferecido, a forma de organização institucional, bem como com as
atividades tradicionalmente desenvolvidas pelos abrigos. Assim, supõe-se que
abrigos que atendam exclusivamente pessoas portadoras de deficiências mentais
severas, por exemplo, trabalhem com um número de profissionais de serviços
adicionais maior do que uma pequena casa-lar, onde, com freqüência, a mãe
social realiza quase todas as atividades necessárias ao dia-a-dia das crianças e dos
adolescentes sob seus cuidados.

122 Foram considerados como pertencentes ao quarto grupo, de “administração


institucional” os profissionais que desenvolvem atividades e serviços típicos de
uma instituição e que dificilmente seriam necessários em uma residência comum.
Pertencem a este grupo os profissionais administradores, gerentes, advogados,
almoxarifes, auxiliares administrativos (secretárias, digitadores, office-boys,
telefonistas etc.), bibliotecários, captadores de recursos, contadores, jornalistas,
tradutores e outros relacionados.

Certamente, essas são funções importantes à natureza institucional de uma


entidade de abrigo. Vale observar, entretanto, sua participação no total de
funcionários da instituição – que se espera não ser muito grande -, bem como a
necessidade de sua permanência no mesmo ambiente de moradia das crianças e
dos adolescentes. É perfeitamente possível, por exemplo, a manutenção de um
escritório institucional separado das unidades residenciais de moradia-abrigo, o
que preservaria o ambiente residencial que se deseja para uma instituição de
abrigo.

O quinto agrupamento, dos profissionais que desempenham “serviços


especializados”, reúne dentistas; enfermeiros; fisioterapeutas; fonoaudiólogos;
instrutores de profissionalização; médicos clínicos, pediatras, psiquiatras e de
outras especialidades; técnicos de enfermagem; professores de ensino regular e
de educação especial; terapeutas comportamentais; terapeutas ocupacionais; e
outros relacionados. Ou seja, são especialistas que desenvolvem atividades que
dificilmente seriam oferecidas a crianças e adolescentes dentro das próprias
residências de suas famílias, pois a população, em geral, deles dispõe por meio da
utilização de uma rede de serviços, pública ou privada.
Nesse ponto, vale considerar que a herança cultural das instituições totais
muitas vezes pauta a avaliação de que o trabalho de uma entidade é tanto melhor
quanto maior o número de profissionais e serviços disponíveis para a atenção
aos abrigados. Além disso, por vezes ainda perdura a idéia de que é mais “prático”
e “econômico” atender as crianças e os adolescentes em conjunto, dentro do
próprio abrigo, do que se buscar os serviços externos em atendimento às
especificidades e às necessidades individuais.

Por outro lado, deve-se ressaltar que há ponderações a serem feitas:


enfermeiras, auxiliares de enfermagem, terapeutas corporais, médicos ou outros
profissionais podem realizar visitas e o necessário acompanhamento no caso
especial de uma criança ou de um adolescente abrigado, ou mesmo de um abrigo
inteiro que tenha alguma especialidade no atendimento. Nestes casos, os serviços
especializados podem ser efetivamente necessários, como o seriam para um
atendimento domiciliar.

Finalmente, o sexto grupo reúne os profissionais que desempenham os


aqui denominados “serviços complementares”: acompanhantes, cabeleireiros,
costureiros, estagiários, orientadores espirituais/religiosos, professores de
atividades complementares (artes plásticas, culinária, dança, esportes, informática,
línguas, música, teatro, trabalhos manuais etc.), professores de reforço escolar,
recreadores e afins. São pessoas que desempenham funções e serviços dos quais
qualquer criança e adolescente pode dispor, em maior ou menor grau, dependendo
da sua própria escolha e de sua família, bem como de suas condições de acesso.
São atividades que podem ser oferecidas em residências - por meio da prestação
de serviços particulares -, em instituições públicas ou privadas, em programas de 123
organizações não-governamentais. Como veremos adiante, são os serviços em
que os profissionais voluntários têm maior participação, o que é extremamente
positivo para a convivência das crianças e dos adolescentes com pessoas externas
à instituição.

Nos abrigos pesquisados foram encontrados 16.432 profissionais no período


de realização do “Levantamento Nacional”. Destes, 58% se dedicavam às funções
dos três grupos considerados imprescindíveis ao trabalho no abrigo: 25,5% eram
responsáveis pelos cuidados diretos com as crianças e os adolescentes, 21,2%
eram de apoio operacional; e 11,3% faziam parte da equipe técnica (gráfico 9).
GRÁFICO 09
Brasil: distribuição dos profissionais dos abrigos da Rede SAC por função
desempenhada

124
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

Os 42% restantes do quadro de recursos humanos dos abrigos pesquisados


eram compostos por profissionais atuantes nas outras atividades identificadas:
15,5% estavam envolvidos com a administração institucional das entidades; 15,4%
realizavam serviços especializados, como aqueles relativos a saúde, educação e
profissionalização de adolescentes; e 10,7% atuavam em serviços complementares,
que agrupam as atividades adicionais à atenção diária oferecida pelo abrigo.

Em relação ao vínculo empregatício mantido entre as instituições e os


profissionais, a maior parte das pessoas que trabalham nas entidades pesquisadas
em todo o país é do quadro de funcionários dos próprios abrigos (59,2%),
enquanto 25,3% são voluntários e 15,5% trabalham na instituição por meio de
convênios ou parcerias (gráfico 10).

A participação dos trabalhadores voluntários nos abrigos tem, também,


pesos diferentes, dependendo do tipo de serviço prestado. Como pode ser
observado na tabela 11, o percentual de voluntários é menor nos três grupos de
profissionais considerados imprescindíveis aos programas de abrigo e, por
conseqüência, o número de funcionários do quadro próprio nessas funções é
consideravelmente maior. Essa relação muda ao se tratar dos profissionais
envolvidos com os grupos de atividades adicionais: enquanto 55,7% dos
profissionais que desempenham serviços complementares, 44% dos especialistas
e 41,2% dos trabalhadores da administração institucional são voluntários, apenas
6,1% dos trabalhadores do apoio operacional e 6,8% da equipe de cuidados
diretos estão nessa condição. Com relação à equipe técnica, 25,2% dos profissionais
são voluntários. Ainda que esse percentual seja pequeno em relação aos 56,3%
de profissionais do quadro próprio, é alto em relação aos outros dois grupos de
atividades essenciais, tendo em vista que a importância desse trabalho para o
desenvolvimento do programa exige regularidade na prestação de serviços.

TABELA 11
Brasil: distribuição dos profissionais dos abrigos da Rede SAC por relação
funcional, segundo a função desempenhada

Função desempenhada no abrigo Quadro próprio Convênio/ Voluntário Total


parceria

Equipe técnica 56,3% 18,5% 25,2% 100,0%


Cuidado direto 81,3% 11,9% 6,8% 100,0%
Apoio operacional 79,3% 14,6% 6,1% 100,0%
Administração institucional 51,4% 7,4% 41,2% 100,0%
Serviços especializados 29,4% 26,6% 44,0% 100,0%
Serviços complementares 25,0% 19,3% 55,7% 100,0%
Outros 31,3% 1,6% 67,2% 100,0%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

O cruzamento entre relação funcional e função desempenhada pelos profis-


sionais dos abrigos pesquisados revela diferenças entre as regiões brasileiras,
como mostra a tabela 12. As regiões Nordeste e Sul têm uma participação 125
considerável de profissionais dos quadros próprios dos abrigos entre os serviços
especializados (41,9% e 41,5%, respectivamente), enquanto os abrigos das outras
regiões têm maioria voluntária nesse tipo de atividade.

A região Norte não possui trabalho voluntário nas equipes de responsáveis


pelos cuidados diretos com crianças e adolescentes abrigados, e o Nordeste tem
apenas 2,8% desses profissionais como voluntários. Com relação a esse ponto, as
diretrizes para reordenamento de abrigos, de fato, indicam que alguns tipos de
atividades, especialmente as relacionados à atenção cotidiana a crianças e
adolescentes, bem como à coordenação técnica dos trabalhos, não devem depender
do trabalho voluntário para não sofrer descontinuidade.
TABELA 12
Brasil/grandes regiões: distribuição dos profissionais dos abrigos da Rede SAC por
relação funcional, segundo a função desempenhada

Regiões brasileiras Função desempenhada

Equipe Cuidado Apoio Administração Serviços Serviços


técnica direto operacional institucional especializados complementares

Quadro próprio 71,8% 80,0% 78,4% 69,1% 36,6% 30,0%


Conv./parc. 11,5% 20,0% 19,3% 8,8% 14,1% 30,0%
Voluntários 16,7% 0,0% 2,3% 22,1% 49,3% 40,0%
TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Quadro próprio 57,0% 76,3% 72,1% 62,6% 41,9% 31,2%
Conv./parc. 24,1% 20,9% 25,1% 9,1% 32,8% 24,2%
Voluntários 18,9% 2,8% 2,8% 28,3% 25,3% 44,6%
TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

126 Quadro próprio


Conv./parc.
51,3%
18,3%
82,9%
9,2%
82,8%
9,7%
45,0%
6,6%
19,2%
24,6%
19,8%
22,1%
Voluntários 30,4% 7,9% 7,5% 48,3% 56,3% 58,1%
TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Quadro próprio 67,0% 85,1% 84,6% 59,7% 41,5% 41,4%
Conv./parc. 14,2% 6,9% 8,4% 8,2% 21,6% 9,8%
Voluntários 18,8% 8,0% 7,0% 32,1% 36,9% 48,9%
TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Quadro próprio 49,0% 74,6% 71,6% 41,5% 18,8% 10,2%
Conv./parc. 21,9% 10,2% 18,0% 5,6% 35,9% 11,2%
Voluntários 29,2% 15,1% 10,4% 52,8% 45,3% 78,6%
TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Região Norte Região Nordeste Região Sudeste Região Sul Região Centro-Oeste

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Com efeito, no que diz respeito à dependência exclusiva do voluntariado, a


tabela 13 mostra que a maioria dos abrigos atua de acordo com as diretrizes.
Ainda que a maior parte (68,6%) dos abrigos pesquisados tenha algum tipo de
atividade ou serviço que depende exclusivamente do trabalho voluntário, apenas
6,4% desses referem-se aos serviços de cuidados diretos com as crianças e os
adolescentes. A maior parte têm como dependência dos voluntários os serviços
complementares, citados por 92,3% dos abrigos que têm alguma função
dependente do trabalho não-remunerado, com destaque para a assistência religiosa
e as atividades culturais, esportivas e de lazer. Os serviços especializados foram
citados como dependentes do trabalho voluntário por 67,3% desses abrigos,
com destaque para a atuação de médicos e dentistas. No grupo de administração
institucional, citado por 59,4% dos abrigos que dependem em alguma medida
do trabalho voluntário, destaca-se a assistência jurídica. Com relação à equipe
técnica (39,6%), a atividade de assistência psicológica foi citada pela maior parte
desses abrigos como dependente do trabalho voluntário, o que pode ser
preocupante, dada a importância desse tipo de atenção a crianças e adolescentes
em situação peculiar como a do abrigamento.

Na análise regional, o Sul se destaca por ter o menor percentual de abrigos


que possuem alguma atividade ou serviço dependendo exclusivamente do trabalho
voluntário: 50,8%. Por sua vez, as regiões Centro-Oeste (82,9%) e Norte (80%)
têm as maiores parcelas de instituições dependentes, em alguma medida, de
trabalhadores não-remunerados. As regiões Sudeste e Nordeste têm percentuais
próximos à média nacional: respectivamente 72,3% e 70,5% dos abrigos dessas
regiões possuem algum tipo de trabalho exclusivamente voluntário.

Com relação a esse aspecto, no Centro-Oeste 17,6% desses abrigos citaram


as atividades de cuidados diretos como realizadas exclusivamente por voluntários,
o que, como já foi destacado, não é recomendável.

TABELA 13
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC por dependência
exclusiva do trabalho de voluntários, segundo tipo de atividade

Atividades exclusivas Regiões brasileiras BRASIL


de voluntários Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Possui atividade/serviço que depende 80,0% 70,5% 72,3% 50,8% 82,9% 68,6%
exclusivamente de voluntários

Apoio operacional 10,0% 7,6% 9,1% 9,7% 8,8% 8,9%


127
Equipe técnica 5,0% 46,8% 40,2% 40,3% 38,2% 39,6%

Cuidados diretos com crianças 0,0% 7,6% 5,3% 4,8% 17,6% 6,4%
e adolescentes

Administração institucional 35,0% 55,7% 65,6% 50,0% 61,8% 59,4%

Serviços especializados 40,0% 58,2% 73,7% 62,9% 73,5% 67,3%

Serviços complementares 85,0% 93,7% 91,9% 98,4% 85,3% 92,3%

Outras atividades 0,0% 0,0% 0,0% 1,6% 0,0% 0,2%

Nenhuma atividade/serviço depende 16,0% 21,4% 25,6% 43,4% 17,1% 27,5%


exclusivamente de voluntários

Não sabe/não respondeu 4,0% 8,0% 2,1% 5,7% 0,0% 3,9%

TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Outro dado importante para analisar a adequação do quadro de recursos
humanos nos abrigos é a razão expressa pela relação entre o número de crianças
e adolescentes e o número de profissionais trabalhando na instituição. Esta relação
permite avaliar a capacidade de a instituição exercer os cuidados necessários às
crianças e adolescentes abrigados, já que a quantidade de profissionais disponíveis
expressa um diferencial de atendimento nos abrigos. É importante, por exemplo,
manter uma certa proporção de educadores/monitores em relação ao número de
crianças atendidas. Infelizmente, as diretrizes para o reordenamento dos abrigos
ainda não avançaram no sentido de definir um parâmetro técnico a ser seguido
pelas instituições no que tange à relação quantitativa crianças/funcionários. É
importante ressaltar que esta proporção varia muito em função da faixa etária,
uma vez que o atendimento a crianças menores requer um número maior de

128 educadores. Adotando-se os parâmetros das creches, a título de ilustração, observa-


se que, para a faixa etária de zero a 02 anos, são recomendados um educador para
cada 05 crianças; para a faixa de 02 a 05 anos, um educador para cada 10 crianças;
e para a faixa etária de 05 a 06 anos, recomenda-se um educador para cada 13,5
crianças.

O “Levantamento Nacional” identificou, por sua vez, proporções muito


distintas na razão criança/funcionários nos abrigos pesquisados. A tabela 14
apresenta estas informações para as instituições pesquisadas em cada uma das
regiões brasileiras. Cabe esclarecer, no entanto, que na ausência de parâmetros
técnicos não foi possível fazer uma avaliação da adequação das instituições sob
este aspecto.

No que se refere aos profissionais que atuam na equipe técnica (assistentes


sociais, coordenadores técnicos, nutricionistas, pedagogos, entre outros), a razão
média encontrada para o país foi de12,5 crianças e adolescentes para um profissional.
Isto significa que, na equipe técnica dos programas de abrigo, cada profissional é
responsável por um grupo de 12,5 crianças. Entre as regiões observam-se valores
muito distantes da razão média encontrada para o país. Na região Centro-Oeste,
por exemplo, a razão encontrada é o dobro daquela verificada no país: para cada
profissional da equipe técnica trabalhando nos abrigos pesquisados existem 24,6
crianças. Na região Nordeste esta relação é também maior que a média nacional e
alcança 17,6 crianças por profissional atuando na área técnica. Já na região Norte,
a relação criança/profissional da equipe técnica é da ordem de cinco crianças para
cada profissional.
TABELA 14
Brasil/grandes regiões: distribuição dos dirigentes de abrigos da Rede SAC por
tempo de exercício da função

Especificações Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Equipe técnica 5,3 17,4 11,0 9,9 24,6 12,5

Cuidado direto 4,0 9,9 6,2 5,7 12,3 7,0

Apoio operacional 3,3 10,6 7,8 7,3 9,5 8,2

Administração institucional 6,5 14,3 10,2 10,6 11,1 11,0

Serviços especializados 5,7 12,7 9,2 10,2 17,9 10,5

Serviços complementares 9,7 31,2 16,0 14,1 23,6 19,5

Total de profissionais 0,7 1,9 1,2 1,3 2,0 1,4

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Quanto aos profissionais que atuam no grupo de cuidados diretos (edu-


cadores, pagens, cuidadores, monitores, pais e mães sociais), a razão encontrada
para os abrigos pesquisados em todo o país foi de sete crianças para cada
profissional desta área. Aqui também as regiões Centro-Oeste e Nordeste
ultrapassam a média nacional: 12,3 e 9,9 crianças por profissional de cuidado
direto, respectivamente. Cabe registrar que, neste quesito, quanto menor a razão
encontrada melhor a capacidade da instituição em exercer as atividades com as
crianças e adolescentes sob sua guarda, já que os cuidados com os abrigados
podem ser partilhados com um número maior de profissionais.

No que se refere aos profissionais que atuam no apoio operacional (faxineiros, 129
zeladores, jardineiros, carpinteiros, cozinheiros, motoristas, seguranças, vigias etc),
a razão média encontrada foi de cerca de oito crianças para um profissional nos
abrigos pesquisados em todo o país. A região Norte é a que apresenta a menor
relação: 3,3 crianças por profissional desta área, ou seja, pode-se dizer que para
cada criança abrigada na região Norte existe um número maior de profissionais da
área de apoio operacional em comparação aos profissionais da equipe técnica e da
área de cuidados diretos. Esta característica também pode ser observada em outras
regiões. Por exemplo, na região Centro – Oeste foi encontrada uma relação de 9,5
crianças para 01 profissional vinculado aos serviços de apoio operacional, enquanto
que as relações obtidas nas áreas técnica e de cuidados diretos foram de 24,6 para
01 e 12, 3 para 01, respectivamente.
No grupo de administração institucional, composto por profissionais mais
dedicados às áreas administrativas das instituições, como os administradores, os
advogados, os almoxarifes, as secretárias, os digitadores, os contadores, os
bibliotecários, os telefonistas, os captadores de recursos, entre outros, a relação
nos abrigos pesquisados no Brasil é de 11 crianças para cada profissional atuando
nesta área. Por se tratarem de profissionais não ligados diretamente às atividades
finalísticas dos abrigos, esperava-se encontrar relação mais elevada, já que na
área técnica, onde as atividades se caracterizam pelo contato direto com os
abrigados e pela inserção no cotidiano da entidade, a razão média alcançada em
todo o país foi de 12,5 crianças por um.

Em relação aos profissionais do grupo de serviços especializados (dentistas,


enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, pediatras entre outros), a
130 razão encontrada para os abrigos pesquisados no país foi de 10,5 crianças para
cada profissional desta área. Na observação regional, a região Norte apresenta a
melhor relação: cerca de seis crianças (5,7) para cada profissional desta área. No
outro extremo encontra-se a região Nordeste, que apresentou uma razão média
de 17,9 por um, quando a proporção média nos abrigos pesquisados em todo o
país foi de 10,5 por um.

Quanto ao último grupo analisado, denominado de serviços complementares,


onde estão envolvidos profissionais de várias áreas como acompanhantes,
cabeleireiros, orientadores religiosos, professores de música, dança, informática,
línguas, teatro, entre outras atividades consideradas complementares, a razão
criança/profissional foi considerada elevada quando comparada aos itens
anteriores. A razão média encontrada para a totalidade dos abrigos pesquisados
no país foi de 19,5 crianças para um profissional. Na região Nordeste, por
exemplo, existem 31,2 crianças e adolescentes abrigadas para cada profissional
prestando serviços nestas áreas, e na região Centro-Oeste a razão encontrada foi
de 23,6 por um. Nas demais regiões, as razões médias encontradas também são
mais elevadas quando comparadas aos outros grupos analisados, mas são menores
do que a média encontrada para o país.

Por fim, apresentam-se na tabela 15 os valores máximos e mínimos das


razões entre criança e adolescente abrigado/profissional encontradas entre os
abrigos pesquisados. Efetivamente, as médias escondem alguns casos considerados
muito críticos em relação a (in)disponibilidade de profissionais nos abrigos. Por
exemplo, enquanto na equipe técnica a média dos abrigos pesquisados em todo
o país foi de 12,5 crianças por profissional, os valores mínimos e máximos
encontrados revelam que existem, ainda que em número reduzido, instituições
onde a relação alcançou 195 crianças para um profissional. No extremo oposto,
foram identificados abrigos onde o número de profissionais nesta área excedia o
número de crianças, na razão de 0,6 criança e adolescentes para um. Nas outras
áreas, esses exemplos se repetiram, denotando, de um lado, a total precariedade
em que se encontram algumas instituições do ponto de vista de sua capacidade
de cuidar e atender as crianças e adolescentes sob sua guarda e, de outro, a
ociosidade de determinados grupos de profissionais em algumas instituições.
Tanto em um quanto no outro caso, evidencia-se a necessidade de um melhor
planejamento com vistas a adequar o quadro de profissionais vis a vis ao número
de crianças e adolescentes para que os funcionários possam, de fato, dar o apoio
necessário a esta população.

TABELA 15
Brasil: número mínimo e máximo de crianças e adolescentes por profissional
de abrigo

Mínimo Média Máximo


Equipe técnica 0,6 12,5 195,0
Cuidado direto 0,2 7,0 130,0
Apoio operacional 0,2 8,2 140,0
Administração institucional 0,3 11,0 101,0
Serviços especializados 0,2 10,5 90,0
Serviços complementares 0,3 19,5 270,0
Outros 3,3 32,0 195,0
Total 0,1 1,4 14,2
131
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na área de recursos humanos, o reordenamento institucional dos programas


de abrigo está passando por um processo de crescentes mudanças As recomen-
dações são de que os profissionais das entidades passem a exercer o papel de
educadores, o que envolve, capacitação permanente, considerando as
peculiaridades e as dificuldades do trabalho que deve ser desenvolvido.

Em relação ao perfil dos dirigentes das instituições pesquisadas, destacam-


se as seguintes características: 92,4% são legalmente equiparados ao guardião
das crianças e adolescentes abrigados; são na maioria mulheres (60,4%); têm
idade média de 48,6 anos; têm ensino superior completo (60,8%), sendo que
132 grande parte possui formação na área de ciências sociais e humanas.

Quanto à remuneração recebida, mais da metade dos dirigentes (59,3%)


afirmou não receber qualquer tipo de remuneração pela função exercida no abrigo.
Entre os dirigentes remunerados, a média salarial encontrada foi de R$1.103,96.
Como principal motivação para trabalhar no abrigo, a humanitária foi citada por
44,3 dos dirigentes pesquisados.

Na distribuição dos recursos humanos que trabalham nos abrigos pes-


quisados, observou-se que a os profissionais voltados para os cuidados diretos
alcançaram a maior proporção em relação ao total de profissionais: 25,5%. Os
profissionais voltados para o apoio operacional representaram 21,2%; os da
administração institucional, 15,5%; aqueles que prestam serviços especializados,
15,4%; os profissionais da equipe técnica representaram 11,3% e os de serviços
complementares, 10,7%.

A participação dos profissionais voluntários nos abrigos varia em função


do tipo de serviço prestado. A proporção de voluntários é menor nas equipes
técnicas, na equipe de cuidados diretos e no apoio operacional.

Considerando todos os grupos de ocupação, a relação criança e adolescente


abrigado por profissional disponível foi de 12,5 para um, sendo que os dados
coletados evidenciaram grande discrepância entre as regiões e entre os grupos de
profissionais/atividades nos abrigos. Nesta área, as informações reforçam a
necessidade de serem definidos parâmetros técnicos para orientar a adequação
da relação criança/profissional ( nas várias áreas de atuação) nos abrigos.
4.5 BIBLIOGRAFIA

CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de Ação nº 3. São


Paulo: março/1993

MONCORVO FILHO, Arthur. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500-


1922. Rio de Janeiro: 1926.

RIZZINI, Irma. Assistencia à infância no Brasil: uma análise de sua construção.


Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Ursula,1993.

133
134
ARTE SOBRE FOTO DE JOSÉ VARELLA
CAPÍTULO 5

O ambiente físico no qual


vivem crianças e adolescentes
em situação de abrigo
Simone Gueresi de Mello

135
Não tive mais do que uma casa. De seus corredores iluminados
pela lua, de seus arcos e suas colunas, de seus plátanos e suas
laranjas, de seus pássaros e suas águas correntes, me recordo com
êxtase. Dessa visão brota minha vida. É raiz de minha consciência,
primeiro sabor de meus sentidos, alegria primeira e agora, na
ausência, dor perene. (...) As casas que depois habitei me eram
alheias. Apartado de meu primeiro centro, me senti estranho em
todas as partes. Choro a ausência de minha casa infantil com um
sentimento de peregrinação, com um cansaço de jornada sem fim.1
(Reys Afonso, 1989)
136
136
5.1 ABERTURA

Os espaços construídos têm como função essencial a proteção ao ser


humano. Desde os primórdios, o homem, em busca da sobrevivência, intervém
no mundo – inicialmente por meio da utilização de espaços naturais,
posteriormente pela construção - inventando “uma segunda pele que o proteja e
lhe garanta um espaço habitável onde possa produzir e reproduzir sua vida. Uma
pele que lhe propicie a comodidade, a segurança e o deleite que necessita para
viver plenamente”.2

Entretanto, a relação entre as pessoas e os espaços, especialmente o espaço


de moradia, vai além da estrita utilidade: o significado da habitação para o ser
humano extrapola a função de simples meio de proteção física. Para o indivíduo,
a casa representa o seu lugar no mundo, e é por meio de seu endereço que ele
confirma esse lugar no espaço e na própria sociedade.3 Por outro lado, a habitação
reflete, em vários aspectos, aqueles que nela moram: “uma casa só se torna ela
mesma quando o homem a habita, a vivencia, moldando-a com seus costumes,
seus desejos, suas angústias, seus sonhos”.4 É por isso que, desde o início da sua
história, os homens têm buscado imprimir sua identidade e suas referências aos
espaços que habitam.

Com efeito, a moradia é reconhecida como direito fundamental do ser


humano,5 mas não como uma construção isoladamente: uma habitação adequada
137
significa algo mais do que um teto sob o qual se proteger. Significa que esse teto
deve proporcionar privacidade, espaço suficiente, acessibilidade física e segurança.
Deve ter estabilidade e durabilidade estruturais, iluminação, aquecimento e
ventilação suficientes. Além disso, dispor de infra-estrutura básica, índices

1
REYES, Alfonso. Iconografia. Ed. FCE, 1989. p.30.
2
PONCE, Afonso Ramírez. Pensar e habitar. Arquitextos n. 24, maio de 2002. p. 1. Disponível em: <http://
www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq024/bases/02text.asp>. Acesso em 09 de julho de 2004.
3
ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE SAÚDE. Documento de posición de la OPS sobre políticas de salud
em la vivienda. OMS/OPS/Divisão de Saúde e Meio Ambiente. Washington, D.C. Havana, Cuba. Outubro,
1999.
4
PONCE. op.cit. p. 6.
5
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. XXV. 1948.
apropriados de qualidade ambiental, urbanização adequada e acessibilidade ao
trabalho e aos serviços básicos.6

O direito à moradia digna, assim, está intimamente ligado aos direitos


fundamentais à vida e à saúde, pois o conceito ampliado de habitação envolve a
função de proteção em largo espectro. As condições do espaço de habitar, mais
do que de quaisquer outros espaços, podem ser consideradas fatores de risco ou
de saúde, dependendo de sua qualidade.7 Considerando, ainda mais, que a
habitação é fundamental para o desenvolvimento das atividades produtivas e
criativas do ser humano, pode-se dizer que o desenvolvimento como hoje se
conhece não seria concebível sem a intermediação dos espaços da habitação.8

Esse significado que a moradia tem para todos os seres humanos adquire

138
138 maior importância na medida em que diminui a idade das crianças ou em que
aumenta a idade dos adultos. Crianças e idosos são particularmente dependentes
da habitação por sua maior necessidade de proteção e permanência em casa,
motivos pelos quais devem ser alvo de especial atenção na busca de adequação
dos espaços de moradia.9

As crianças e os adolescentes, no Brasil, gozam de todos os direitos


fundamentais inerentes à pessoa humana e, além disso, desfrutam de proteção
integral pela condição especial de pessoa em desenvolvimento, sendo dever de
todos – da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público –
assegurar-lhes, com absoluta prioridade, a efetivação de seus direitos.10 O Estatuto
da Criança e do Adolescente estabelece, ainda, o direito ao respeito como direito
fundamental de crianças e adolescentes, o que inclui, entre outras coisas, a
preservação dos seus espaços e objetos pessoais.11

Assim, como cidadãos sujeitos de direitos, as crianças e os adolescentes


têm direito a uma moradia digna que lhes permita o pleno desenvolvimento e a
proteção da sua integridade física, moral e psíquica, preferencialmente em

6
Agenda Habitat, parágrafo 60. A Agenda Habitat é um compromisso internacional assumido por vários países,
inclusive o Brasil, na Segunda Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos - Habitat II,
realizada em Istambul, na Turquia, em 1996.
7
Atividades comumente desenvolvidas no ambiente de moradia, como o sono ou o simples repouso, se
caracterizam pelo predomínio das funções vegetativas, o que diminui a atividade do sistema imunológico e
aumenta a suscetibilidade a fatores estressantes. (Organização Panamericana de Saúde, op. cit.)
8
Organização Panamericana de Saúde, op. cit.
9
Organização Panamericana de Saúde, op. cit.
10
Estatuto da Criança e do Adolescente, arts. 3o e 4o.
11
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 17.
companhia de seus familiares.12 Nesse sentido, as crianças e os adolescentes em
situação de abrigo – medida de proteção que visa a garantia e nunca a privação
de direitos – merecem especial atenção pela situação peculiar em que se encontram,
vivendo em um espaço que não é o seu de origem, com pessoas que não são os
seus familiares.

Durante a vigência da doutrina da situação irregular, inspiradora do antigo


Código de Menores, as instituições chamadas “totais”, destinadas a crianças e
adolescentes em situação de risco – como orfanatos, internatos, asilos, refor-
matórios –, materializavam-se em construções muito características: prédios
enormes; longos corredores; quartos numerosos que reuniam muitas camas; não-
identidade individualizada dos espaços. Além disso, previam a realização
intramuros de quase todas as atividades atinentes à vida das crianças e dos
adolescentes abrigados: consultórios médicos, gabinetes odontológicos,
enfermarias, salas de aula, capelas, ginásios esportivos. Em síntese, um ambiente
tipicamente institucional voltado à ampla intervenção e “reforma” no modo de ser
e viver dos abrigados, uma vez que as instituições tinham como objetivo trans-
formá-los em indivíduos mais adequados às exigências da sociedade da época.13

Nesse contexto, a opulência das instalações físicas das entidades não só


atendia plenamente aos objetivos preventivos e correcionais como demonstrava,
também, o prestígio conquistado e a eficiência da ação institucional. De forma
ilustrativa, pode-se observar como se apresentava, em 1942, a “evolução” do
Asilo Infantil N. S. de Pompéia, no Rio de Janeiro, após ser encampado pela
administração do Patronato de Menores:

“Nesse curto período de doze anos em que o Asilo permanece incorporado ao Patronato
139
de Menores conseguiu um desenvolvimento que a todos surpreende: o terreno em que está
construído, adquirido palmo a palmo, com esmolas e donativos, mede hoje 135 metros de
frente por 115 de fundo, todo ele cercado por muro de cimento armado de dois e meio
metros de altura, isolando-se assim, completamente, dos visinhos [sic] e da via pública.
O prédio, que, ao ser fundado o Asilo, comportava apenas vinte crianças, já o ano
passado agasalhava 140 menores e, dentro em pouco, (...) poderá internar mais 60

12
Toda criança e todo adolescente têm direito à convivência familiar e comunitária (Estatuto da Criança e do
Adolescente. Lei 8.069/90, art. 19).
13
Um exemplo dos objetivos das instituições totais que justificavam as configurações físicas descritas pode ser
extraído da apresentação do livro sobre o Patronato de Menores, no Rio de Janeiro: “A finalidade do Patronato
de Menores é receber o menor em abandono, ou em risco de perversão ou já viciado e, transcorrido o período
educacional, restituir à sociedade um cidadão sadio de corpo e alma, apto para constituir uma célula do organismo
social, capaz de prever à própria subsistência e de impulsionar a vida econômica nacional (...)” LIMA, A. Sabóia.
Patronato de menores. Rio de Janeiro: Editora Henrique Velho, 1942. p. 9.
meninas. (...) Banheiros higiênicos, rouparia, pavilhão de ginástica, sala de música,
magníficas salas de aula, refeitórios amplos, dormitórios (...) calculando-se em mais de
mil contos o valor dessa propriedade.”

Assim, crianças e adolescentes afastados de suas famílias e da vida em


comunidade eram também ceifados em suas referências ambientais. As grandes
dimensões espaciais, a organização impecável, a extrema homogeneidade e a
rotina rígida mostravam que ali não estavam em casa.

Como se sabe, crianças e adolescentes que chegam aos abrigos foram, muitas
vezes, vítimas de violência, abandono, negligências e abusos, o que compromete
a auto-estima deles, assim como traz dificuldades na afirmação de sua identidade
e individualidade. Uma vez nas instituições como descritas anteriormente, eram

140
140 submetidos à homogeneidade espacial e grupal, impedidos de imprimir suas
características pessoais aos espaços – como o dormitório –, às manifestações
individuais, como o vestir-se, e ao fazer diário – como o brincar. Fatores que,
sem dúvida, dificultavam a superação do quadro delicado em que se encontravam.

As inovações introduzidas pela Constituição Federal (1988) e pelo Estatuto


da Criança e do Adolescente (1990) na visão sobre a infância e a adolescência
provocaram uma inversão na forma de considerar o abrigo em instituições. O
que antes era uma medida de prevenção e correção de “desvios” individuais e
sociais passa a ser uma medida de proteção. Muda-se o foco, antes centrado na
instituição que deveria atender as necessidades de uma sociedade amedrontada
pelo “perigo” representado pelos “desajustados”, para as necessidades de crianças
e adolescentes em situação de risco social e pessoal.

Considerando que qualquer objeto arquitetônico surge sempre em resposta


a uma demanda, cabe discutir de que forma as crianças e os adolescentes abrigados
serão atendidos em suas necessidades e especificidades nas entidades que oferecem
programas de abrigo hoje em dia. Ainda que as crianças e os adolescentes estejam
temporariamente afastados de suas famílias – o que por si já representa uma
privação do direito à convivência familiar –, a estadia na instituição deve ser o
menos agressiva possível, o que, sem dúvida, envolve o ambiente em que se
desenvolve o programa de abrigo.

Assim, as diretrizes e discussões com vistas a promover o reordenamento


dos abrigos para crianças e adolescentes, mostrando caminhos para sua adequação
ao ECA, têm dedicado especial atenção à estrutura física dessas instituições.
Nesse ponto, tratam a questão, basicamente, segundo três perspectivas: o aspecto
externo do abrigo; a configuração interna dos seus espaços; e as atividades que
devem ser previstas.

Com relação aos aspectos do exterior da construção, particular ênfase é


dada à não-identificação do abrigo como tal: devem ser evitadas placas e referências
ostensivas, bem como as edificações claramente institucionais. O abrigo deve
assemelhar-se a outras residências das proximidades e estar inserido entre elas,
para que as crianças e os adolescentes não sejam estigmatizados.

Da mesma forma, os espaços internos devem assemelhar-se aos de uma


residência comum, evitando-se, por exemplo, os imensos dormitórios e refeitórios,
bem como cozinhas e lavanderias industriais, inacessíveis às crianças e aos
adolescentes. Além disso, deve-se prever o acesso para pessoas portadoras de
deficiências, de forma que crianças e adolescentes nessa condição não enfrentem
recusas sucessivas em função de inadequações do ambiente físico. É preciso que
as crianças e os adolescentes em situação de abrigo sintam-se em casa, ou, pelo
menos, em uma casa, como acontece com a maioria das crianças e dos adolescentes
da comunidade que conhecem e que os circunda.

Finalmente, a configuração interna dos espaços deve proporcionar que as


crianças e os adolescentes desenvolvam suas atividades cotidianas o mais próximo
possível da normalidade. Deve haver ambientes receptivos a brincadeiras e
atividades típicas por idade, os brinquedos e os livros devem estar acessíveis aos
usuários e, se possível, espaço para recreação ao ar livre. Além disso, singular
atenção é dada à disponibilidade de um lugar para estudos individuais e realização
de tarefas escolares, à existência de espelhos em altura que permita a visualização
141
da própria imagem por todos, bem como aos espaços individuais para guarda de
objetos pessoais, onde cada uma possa colocar seus brinquedos, roupas e outros
pertences.

Todas essas recomendações têm como objetivo proporcionar a convivência


com rotinas normais à infância e à adolescência, possibilitar a ocorrência de
atividades que favoreçam o desenvolvimento infanto-juvenil, assim como
promover a recuperação e a manutenção da auto-estima e da identidade de todos.
Eis o porquê, também, da atenção especial aqui dedicada às instalações físicas
dos abrigos pesquisados no “Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças
e Adolescentes da Rede SAC”.
Ainda que seja dado destaque à semelhança com um ambiente residencial,
a edificação resultante do cumprimento das recomendações aos abrigos – se
construída especificamente em atenção a essas diretrizes – não seria exatamente
uma residência comum, mas uma instituição de pequeno porte. Em relação ao
princípio do atendimento em pequenos grupos, por exemplo, recomenda-se que
o número de crianças e adolescentes atendidos em uma mesma unidade de
programa de abrigo não ultrapasse 25, número que não é comumente encontrado
em uma residência. Da mesma forma, sugere-se que os programas de abrigo
disponham de espaços externos para recreação e lazer, o que não acontece em
grande parte das residências brasileiras e que pode ser perfeitamente superado
pela utilização de espaços públicos para esse fim.

De qualquer forma, deve-se destacar que a edificação resultante da aplicação


142
142 das diretrizes é bastante melhor do que as antigas instituições de abrigo,
organizadas em grandes pavilhões e com muitos equipamentos e espaços
especializados. Além disso, o padrão recomendado inclui as características das
edificações residenciais comuns, que poderiam ser consideradas ideais, ao mesmo
tempo em que define o mínimo aceitável – o que é importante para permitir a
transição das instituições de um modelo para o outro.

Assim, é importante ressaltar que os parâmetros considerados na análise


apresentada neste capítulo pautaram-se na constituição de uma edificação que
comporte até 25 crianças e adolescentes e que se aproxime de um ambiente
residencial por algumas características, mesmo reconhecendo-se que certos
critérios utilizados não se aplicariam a um domicílio comum.

Os dados utilizados para essa investigação foram coletados por meio das
11 questões do bloco denominado Instalações Físicas do questionário enviado às
instituições da Rede SAC, componentes do universo de pesquisa do “Levan-
tamento Nacional”. Deve-se ressaltar que esta abordagem apresenta algumas
limitações: em primeiro lugar, a metodologia adotada para esta etapa – investigação
quantitativa por instrumento auto-aplicável – não possibilita uma avaliação
profunda da estrutura física das instituições, o que seria contemplado de forma
mais abrangente em pesquisa que previsse a visitação aos abrigos. Em segundo
lugar, em se tratando do primeiro estudo de abrigos para crianças e adolescentes
com abrangência nacional, eram inúmeros os aspectos que precisavam ser abor-
dados, de maneira que o instrumento de pesquisa continha outros sete temas, o
que acabou por exigir uma limitação no número de questões em cada bloco.14

No entanto, realizou-se o esforço de aproximação, com critérios mínimos


de adequação, em atendimento à intenção mais geral da pesquisa, qual seja, a
avaliação da promoção do direito à convivência familiar e comunitária, para o
que, sem dúvida, as características físicas da instituição podem contribuir
consideravelmente.

Neste sentido, a estrutura física dos abrigos pesquisados foi analisada segun-
do duas dimensões: (i) as condições gerais da edificação, como moradia que deve atender
a requisitos básicos de dignidade, uma vez que é direito fundamental de todo ser
humano; e (ii) a adequação como programa de abrigo, em atendimento às diretrizes de
reordenamento e em cumprimento aos princípios introduzidos pelo ECA.

5.1 CONDIÇÕES GERAIS DAS EDIFICAÇÕES

As condições gerais das construções onde funcionam os abrigos para crianças


e adolescentes da Rede SAC foram analisadas com vistas a se conhecer em que
medida as necessidades básicas relativas à moradia dos abrigados estão sendo
atendidas. A esse respeito, foram considerados dois dos atributos usualmente
utilizados para determinação de adequação das edificações: (i) as características de
acesso à infra-estrutura e (ii) as características físicas dos abrigos.15
143
De maneira geral, as condições investigadas revelam uma situação bastante
adequada, mantendo-se as diferenças usuais entre ambientes urbanos e rurais.
Das instituições pesquisadas, a grande maioria localiza-se em área urbana (90,3%),
sendo apenas 8,3% (49 abrigos) situados na zona rural (gráfico 1).

14
Ainda assim, o questionário possuía 83 questões. Para maiores detalhes sobre a metodologia de pesquisa, ver
item 1.3, no Capítulo 1 deste livro.
15
Com freqüência, em avaliações de adequação domiciliar, esses atributos são associados a aspectos relativos à
propriedade da edificação e ao acesso a bens duráveis. Essas características não foram investigadas no “Levantamento
Nacional” pelas especificidades de uma investigação sobre programas de abrigo, para a qual se avaliou não serem
relevantes essas informações, no momento.
GRÁFICO 01
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC por localização

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

As características de acesso à infra-estrutura são internacionalmente consideradas


144
144 como indicadores de qualidade de vida, de desenvolvimento, de saúde, de
cumprimento do direito à moradia digna, entre outras. Neste trabalho, foram
analisadas segundo três quesitos: (i) abastecimento de água; (ii) abastecimento de
luz; e (iii) esgotamento sanitário.

Com relação ao abastecimento de água, como se sabe, a água potável é


absolutamente necessária à vida e à saúde humanas e por isso deve estar disponível
em quantidade suficiente para atender a todas as pessoas, por um preço e em
localização que permitam seu usufruto.16 Como mostra a tabela 1, 84,6% das
instituições pesquisadas são servidas pela rede geral, considerada como a forma
adequada de abastecimento hídrico.17 Outros 11% são abastecidos por meio de
poços ou nascentes, ressaltando-se que, na zona rural, 51% dos abrigos
investigados são abastecidos dessa forma, que também tem presença significativa
na área urbana: 7,5% (40 abrigos). O abastecimento por poços ou nascentes,
ainda que possa ser adequado em alguns casos – onde a qualidade da água pode
ser atestada e, especialmente na zona rural, onde o custo de extensão da rede de
água tratada costuma ser demasiado elevado –, de maneira geral é considerado
inadequado, tanto por não se poder determinar a qualidade da água em todos os
casos, quanto pelo comprometimento que pode causar ao meio ambiente, em
seu uso indiscriminado.

16
UN-HABITAT (United Nations Human Settlements Programme). Guide to monitoring target 11: improving
the lives of 100 million slum dwellers. Nairobi, Kenya, 2003.
17
Ainda que aqui se esteja tratando de instituições de abrigo e não de domicílios particulares, como parâmetro
de comparação vale registrar que os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) registram
um índice de 82% de abastecimento pela rede geral de água no Brasil (IBGE, 2002). Vale destacar que as
instituições de abrigo são classificadas como domicílios coletivos na PNAD, para os quais não existem dados
desagregados para condições do domicílio.
TABELA 01
Brasil: condições gerais das edificações dos abrigos da Rede SAC, segundo
localização (% de abrigos)

Características Quesitos Condições Função desempenhada Total


consideradas de abrigos
Área rural Área urbana
Principal forma de Rede geral 32,7 89,3 84,6
Acesso à
abastecimento de Poço ou nascente 11,0
infra- 51,0 7,5
água
estrutura Cisterna 6,1 0,9 1,4
Outras1 10,2 0,6 1,4
Não sabe/não respondeu 0,0 1,7 1,7
sobre a forma de
abastecimento de água

Principal forma de Rede geral 100,0 99,8 99,7


abastecimento de Não sabe/não respondeu 0,3
0,0 0,2
luz sobre a forma de
abastecimento de luz

Principal forma de Rede geral 20,4 76,9 72,0


esgotamento Fossa séptica 20,4
63,3 16,4
sanitário
Fossa comum 14,3 5,1 5,8
Não sabe/não respondeu 2,0 1,7 1,9
sobre a forma de
esgotamento sanitário

Material da maior Alvenaria 98,0 97,0 96,9


Características
parte das Madeira 1,5
físicas 2,0 1,5
paredes externas
Outro2 0,0 0,2 0,2
Não sabe/não respondeu 0,0 1,3 1,4
sobre o material das
paredes

Funcionamento Cozinha 98,0 94,7 94,6


em área Dormitórios 93,7
95,9 94,2
exclusiva* Refeitório 80,6
85,7 80,5
Administração 77,6 75,2 75,2
Recreação interna 77,6 72,9 73,3
Sala para atendimento 63,3 55,5 56,0
técnico especializado

Recreação externa
Horta
73,5
79,6
52,8
33,5
54,5
37,7
145
Escola/ salas de aula 57,1 28,9 31,4
Berçário 10,2 32,5 30,6
Oficinas artesanais 36,7 25,0 26,3
Consultório médico 20,4 17,7 17,7
Gabinete odontológico 30,6 12,2 13,6
Oficinas 32,7 11,5 13,2
profissionalizantes

Outros 14,3 8,5 8,8


Não sabe/não respondeu 0,0 0,8 0,8
sobre áreas exclusivas

1
Outras: torneira pública ou chafariz; carro-pipa; rio, açude ou barreiro; água de outra propriedade (vizinho).
2
Outro: chapas de fibro-cimento (um abrigo).
* Área exclusiva: espaço delimitado por paredes ou divisórias, usado somente para a função descrita. Houve
resposta para múltiplas áreas exclusivas. Em cada linha, o percentual sobre o total de abrigos da coluna (rurais: 49;
urbanos: 532; total: 589).

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
A tabela 2 mostra que nas regiões Centro-Oeste e Norte diminui o percentual
dos abrigos pesquisados que são abastecidos de água pela rede geral: 70,7% e
76%, respectivamente. Nessas regiões, cresce o abastecimento por poços ou
nascentes, que fornecem água para 22% dos abrigos no Centro-Oeste e para
20% dos nortistas. As outras regiões mantêm proporções semelhantes às médias
nacionais, destacando-se a região Sudeste como a que tem o maior percentual de
abrigos abastecidos pela rede geral: 87,9%.

Com relação ao segundo quesito analisado - abastecimento de luz -, todos os


abrigos que responderam à questão são abastecidos pela rede geral de energia
elétrica, inclusive os rurais (100%), o que é bastante positivo. Na área urbana, só
0,2% dos abrigos pesquisados não responderam ou não sabiam dizer a forma de
iluminação da instituição. Vale registrar que os dados para o total de domicílios
146
146 particulares brasileiros indicam que 96,7% têm energia elétrica, sendo 99,4% na
zona urbana e 80,2% na zona rural.18

Finalmente, o terceiro quesito das condições de acesso à infra-estrutura


trata da disposição de resíduos sanitários, considerada importante fator de saúde
pública, visto que está ligada à prevenção de doenças e à preservação do meio
ambiente, com especial ênfase no impacto sobre os recursos hídricos do planeta.19
A principal forma de esgotamento sanitário em 72% das instituições de abrigo
pesquisadas é a rede geral, enquanto 20,4% possuem fossas sépticas, o que soma
92,4% de adequação a esse critério. Na zona urbana, o percentual de abrigos
adequados é de 93,3%, enquanto nas áreas rurais, de 83,7%. Nesse quesito está
a maior proporção de abrigos não-adequados com relação à infra-estrutura (5,8%),
embora bastante minoritários. Ainda assim, vale comparar com os números
relativos ao total de domicílios particulares do país, que são bem menores: 76,7%
do total têm ligação com a rede geral ou fossa séptica, sendo 68,1% nas áreas
urbanas e apenas 17,2% dos domicílios rurais.20

As diferenças regionais são mais evidentes nesse quesito. Enquanto 86,9%


das entidades do Sudeste têm ligação com a rede geral de esgotos, no Centro-
Oeste esse percentual é de apenas 31,7% e no Norte, 32%. Nessas regiões, a
participação dos abrigos servidos por fossas sépticas, que também são adequadas,
é praticamente o dobro da média nacional (44% no Norte e 43,9% no Centro-

18
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Rio de Janeiro: 2002.
19
UN-Habitat. op. cit.
20
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Rio de Janeiro: 2002.
TABELA 02
Brasil/grandes regiões: condições gerais das edificações dos abrigos da Rede SAC
(% de abrigos)

Regiões brasileiras Total


de abrigos
Quesitos Condições
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-O.

Principal Rede geral 76,0 81,3 87,9 86,1 70,7 84,6


forma de Poço ou nascente 20,0 12,5 7,6 12,3 22,0 11,0
abasteci-
Cisterna 4,0 1,8 1,4 0,0 2,4 1,4
mento de
água Outras 1 0,0 1,8 1,4 0,0 4,9 1,4
Não sabe/não respondeu sobre a 0,0 2,7 1,7 1,6 0,0 1,7
forma de abastecimento de água
Principal Rede geral 100,0 100,0 99,7 100,0 97,6 99,7
forma de Não sabe/não respondeu sobre a 0,0 0,0 0,3 0,0 2,4 0,3
abasteci-
forma de abastecimento de luz
mento de
luz
Principal Rede geral 32,0 60,7 86,9 68,9 31,7 72,0
forma de Fossa séptica 44,0 24,1 12,1 23,8 43,9 20,4
esgota-
Fossa comum 20,0 11,6 0,3 4,9 22,0 5,8
mento
sanitário Não sabe/não respondeu sobre a 4,0 3,6 0,7 2,5 2,4 1,9
forma de esgotamento sanitário
Material da Alvenaria 92,0 98,2 97,6 95,1 97,6 96,9
maior Madeira 8,0 0,9 0,0 4,1 2,4 1,5
parte das
Outro2 0,0 0,0 0,0 0,8 0,0 0,2
paredes
externas Não sabe/não respondeu sobre 0,0 0,9 2,4 0,0 0,0 1,4
o material das paredes
Cozinha 100,0 90,2 95,8 93,4 97,6 94,6
Funcio-
namento Dormitórios 100,0 89,3 94,5 94,3 95,1 93,7
em área Refeitório 72,0 82,1 82,4 77,0 80,5 80,6
exclusiva* Administração 84,0 78,6 77,2 67,2 70,7 75,2
Recreação interna 60,0 70,5 80,3 68,9 53,7 73,3
Sala para atendimento técnico 44,0 58,9 62,3 45,9 41,5 56,0
especializado
Recreação externa 36,0 50,9 60,2 52,5 43,9 54,7
147
Horta 32,0 34,8 36,7 41,8 43,9 37,7
Escola/ salas de aula 16,0 49,1 29,8 20,5 36,6 31,4
Berçário 28,0 17,0 37,4 29,5 26,8 30,7
Oficinas artesanais 20,0 27,7 26,3 27,9 22,0 26,3
Consultório médico 0,0 22,3 17,3 16,4 19,5 17,5
Gabinete odontológico 4,0 18,8 12,8 11,5 14,6 13,4
Oficinas profissionalizantes 4,0 26,8 9,3 11,5 14,6 13,2
Outros 4,0 10,7 6,2 14,8 7,3 8,8
Não sabe/não respondeu sobre 0,0 0,9 1,0 0,8 0,0 0,8
áreas exclusivas

Características consideradas: Acesso à infra-estrutura Características físicas

1
Outras: torneira pública ou chafariz; carro-pipa; rio, açude ou barreiro; água de outra propriedade (vizinho).
2
Outro: chapas de fibro-cimento (um abrigo).
* Área exclusiva: espaço delimitado por paredes ou divisórias, usado somente para a função descrita. Houve
resposta para múltiplas áreas exclusivas. Em cada linha, o percentual sobre o total de abrigos da coluna (rurais: 49;
urbanos: 532; total: 589).
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Oeste). Entretanto, deve-se destacar que nessas duas regiões, assim como no
Nordeste, crescem os percentuais de esgotamento por fossas comuns, consideradas
inadequadas - 22% no Centro-Oeste, 20% no Norte e 11,6% no Nordeste - ,
enquanto para a média dos abrigos de todo o Brasil o percentual revelado pelo
“Levantamento Nacional” é de apenas 5,8%. Com efeito, registra-se que a
proporção de abrigos adequados quanto a esse quesito (rede geral somado à
fossa séptica) é de 99% no Sudeste e de 75,6% no Centro-Oeste, 76% no Norte
e 84,8% no Nordeste. No Sul, 92,7% dos abrigos são adequados, respondem
por , parcela semelhante à média nacional.

O segundo grupo de aspectos considerados foi o das características físicas das


edificações. É sabido que o ambiente em que se vive influencia diretamente nas
condições de saúde física e mental das pessoas. Segundo Wilheim21, a proteção
148
148 contra agressões externas e a disponibilidade de espaço para repouso, por exemplo,
são condições que aumentam a possibilidade de recuperação física dos indivíduos
e, como conseqüência, de garantia da sua integridade, levando à sensação de
bem-estar e segurança. Por sua vez, o silêncio, o recolhimento e a privacidade são
condições importantes para a chamada recuperação emocional, possibilitando a
apreensão e o processamento de informações que permitem o estabelecimento
de um quadro coerente e consistente da realidade vivida. Esses aspectos facilitam
a consolidação da orientação moral e ética do indivíduo (saber o que é certo e o
que é errado), contribuem para a sensação de ser aceito e querido, assim como
aumentam as possibilidades de expressão e criação.

As características físicas das instituições de abrigo pesquisadas foram


captadas no “Levantamento Nacional” por meio de dois quesitos: (i) o material
das paredes externas do abrigo e (ii) as áreas separadas por paredes ou divisórias
com funcionamento exclusivo.

O material das paredes externas determina a durabilidade e a adequação da


construção para cumprir suas funções essenciais de proteção contra intempéries,
agressões e animais, bem como de manutenção da privacidade em relação ao
meio social na realização de determinadas atividades. A análise desse quesito
revela que a grande maioria das instituições pesquisadas possui paredes de
alvenaria (96,9%), enquanto o restante das instituições que responderam a essa
questão também são construídas com materiais considerados adequados. Ou

21
WILHEIM, Jorge. Cidades: o substantivo e o adjetivo. 3 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. p. 152.
seja, pode-se dizer que a totalidade das instituições respondentes está adequada
em relação a esse quesito.

Entre as regiões brasileiras, não há grandes variações, destacando-se apenas


a maior participação da madeira na constituição das paredes externas dos abrigos
do Norte (8%) e do Sul (4,1%), o que pode ser explicado pelas características da
arquitetura regional que, nos dois casos, registram a freqüente utilização desse
material em construções.

O funcionamento em áreas exclusivas, segundo quesito analisado para as


características físicas dos abrigos, se refere à existência de cômodos separados
por paredes ou áreas delimitadas por algum tipo de divisória, utilizados somente
para o desenvolvimento de determinadas funções. Por exemplo, dormitórios
apenas servindo como dormitórios, cozinhas utilizadas apenas para esta função,
e assim por diante. A inclusão deste quesito visou conhecer a forma de organização
dos espaços nos abrigos, visto que pode facilitar ou dificultar o usufruto de
fatores importantes como silêncio, privacidade e descanso, além de influenciar
aspectos de segurança, como a proteção de áreas de calor e de presença de
combustíveis.

A análise mostra que a grande maioria dos abrigos investigados possui


áreas utilizadas exclusivamente como cozinha (94,6% do total) e dormitórios
(93,7%)-, o que, a rigor, são as funções mínimas a serem desenvolvidas em
separado para um atendimento saudável às crianças e aos adolescentes. Em
seguida, observa-se que 80,6% das instituições da Rede SAC têm espaços
exclusivos para refeições e 75,2% para as funções administrativas (tabelas 1 e 2).
149
Com relação à existência de espaços destinados à recreação e lazer, 73,3%
possuem espaços de recreação interna – salas para TV, espaços de brinquedos e
jogos, por exemplo – e 54,7% têm áreas de lazer externas – quadras esportivas,
campos de jogos, parquinho infantil e piscinas, entre outros. A disponibilidade
desses espaços é importante para o desenvolvimento das crianças e dos
adolescentes, mas a existência deles não deve limitar a realização desse tipo de
atividade exclusivamente ao abrigo. É importante buscar a participação em ações
junto à comunidade, bem como a utilização de espaços públicos destinados à
recreação e ao lazer de crianças e adolescentes.

Vale registrar, ainda, que 56% mantêm salas para atendimento técnico
especializado (por assistentes sociais ou psicólogos, por exemplo), o que demonstra
a prioridade e a importância conferidas a esse tipo de atividade e à manutenção
da privacidade necessária em atendimentos individuais, se realizados nas
dependências do abrigo.

Deve-se observar, ainda, que as funções que exigem áreas externas – como
recreação e horta –, bem como os espaços destinados a funções mais especializadas
– salas de aula, oficinas e consultórios – têm presença maior nos abrigos situados
na zona rural do que nos urbanos, provavelmente por estarem em terrenos maiores
e pela menor disponibilidade de serviços externos às instituições.

As regiões brasileiras não mostram grandes variações da análise nacional


em relação às funções mais essenciais, como cozinhas e dormitórios, mantidas
em áreas exclusivas pela maior parte dos abrigos. Já os espaços mais especia-

150
150 lizados mostram participação diferenciada por região: têm uma presença maior
no Nordeste e consideravelmente menor no Norte em relação às outras regiões
e à média nacional. As escolas/salas de aula, por exemplo, cuja presença no
mesmo espaço do abrigo não é o mais desejável, pois é preciso buscar a inserção
em escolas da comunidade, estão presentes em 49,1% dos abrigos nordestinos
(tabela 2).

A partir da observação dos critérios considerados, pode-se concluir que a


grande maioria das construções dos abrigos pesquisados está em situação
adequada, geralmente em melhores condições que a média dos domicílios parti-
culares brasileiros. Pode-se afirmar, assim, que, do ponto de vista da estrutura
física e de acesso à infra-estrutura, as necessidades da maioria das crianças e dos
adolescentes abrigados estão sendo atendidas.

No entanto, a observação dos dados sobre áreas exclusivas suscitam algumas


preocupações, especialmente no que se refere à manutenção de espaços para
atendimentos especializados, que, em princípio, deveriam ser realizados fora do
abrigo, por meio da utilização dos serviços existentes na comunidade. Porém,
esses são aspectos mais voltados para a análise da adequação às diretrizes para
reordenamento de abrigos, o que será detalhado a seguir.
5.2 ADEQUAÇÃO DAS INSTALAÇÕES AO
DESENVOLVIMENTO DE PROGRAMA DE ABRIGO

Como já foi visto, recomenda-se que as instituições que oferecem programas


de abrigo para crianças e adolescentes mantenham características residenciais
tanto no que se refere à rotina desenvolvida quanto aos espaços construídos.
Deve-se ter em mente que, conforme o que está estabelecido no Estatuto da
Criança e do Adolescente, o abrigo representa uma moradia alternativa, da qual
necessitam algumas crianças e adolescentes, preferencialmente por um período
breve. Por outro lado, por estarem vivenciando uma situação especial de fragilidade,
essas crianças e esses adolescentes necessitam de maiores cuidados no atendimento
oferecido e no ambiente constituído para sua recepção e acolhimento.

Com a intenção de verificar em que medida as instituições pesquisadas pelo


“Levantamento Nacional”estão de acordo com as diretrizes para o reordenamento
de abrigos no que se refere às instalações físicas, foram analisadas características
afetas a dois aspectos: (i) a inserção da edificação no contexto da comunidade; e (ii) a
configuração dos seus espaços internos.

5.2.1 Inserção da edificação no contexto da comunidade

As características de inserção da edificação no contexto da comunidade são


importantes porque, como visto anteriormente, o local de moradia representa o
lugar do indivíduo no mundo e, especialmente, na comunidade em que vive, 151
sendo uma extensão da sua identidade. Por este motivo, as instituições de abrigo
devem se inserir em bairros residenciais e não destoar das residências ao seu
redor. Além disso, na busca de superação das instituições totais, é desejável que
as instituições de abrigo se instalem em bairros que permitam o acesso facilitado
a serviços e equipamentos comunitários, possibilitando a interação com a
comunidade circundante e a utilização da rede de serviços existentes.

Assim, a adequação da edificação no contexto foi avaliada segundo três


quesitos: (i) a existência de outras residências nas proximidades do abrigo; (ii) o
aspecto externo da edificação; e (iii) a disponibilidade de serviços na vizinhança.

Com relação ao primeiro deles, a grande maioria dos abrigos (95,1%)


conta com residências nas proximidades, o que foi considerado adequado.
Apenas 4,4% dos abrigos não contam com residências próximas, sugerindo
que estão inseridos em bairros isolados ou não-residenciais (gráfico 2).

GRÁFICO 02
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC por presença de residências nas
proximidades

152
152
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

TABELA 03
Brasil/grandes regiões: condições de adequação dos abrigos da Rede SAC segundo
critérios de inserção da edificação no contexto da comunidade

Quesitos Condições Regiões brasileiras Brasil


Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Residências Adequado) 92,0% 95,5% 96,5% 95,9% 82,9% 95,1%


nas
proximidades Inadequado 8,0% 4,5% 3,1% 3,3% 14,6% 4,4%

Não sabe/não 0,0% 0,0% 0,3% 0,8% 2,4% 0,5%


respondeu

Aspecto Adequado 76,0% 54,5% 66,1% 77,0% 70,7% 66,9%


externo
do abrigo Inadequado 12,0% 33,9% 25,3% 16,4% 26,8% 24,6%

Não sabe/não 12,0% 11,6% 8,7% 6,6% 2,4% 7,5%


respondeu

Vizinhança Adequado 96,0% 91,1% 91,0% 86,9% 78,0% 89,5%

Inadequado 0,0% 5,4% 5,9% 8,2% 12,2% 6,5%


Não sabe/não 4,0% 3,6% 3,1% 4,9% 9,8% 4,1%
respondeu

Adequados em todos 68,0% 47,3% 58,5% 68,0% 53,7% 58,4%


os critérios

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Quanto a esse item, observa-se que as regiões Sudeste, Sul e Nordeste quase
não apresentam variações em relação à média dos abrigos brasileiros: estão
adequados 96,5% dos abrigos no Sudeste, 95,9% no Sul e 95,5% no Nordeste.
No Norte, a proporção fica um pouco abaixo, em 92%, e o Centro-Oeste tem o
menor percentual de instituições consideradas adequadas: 82,9% possuem outras
residências nas proximidades (tabela 3).

Com relação ao segundo quesito considerado, o aspecto externo da edificação


onde se desenvolve o programa de abrigo, foram analisadas as informações sobre
os tipos de construções destinadas à moradia das crianças e dos adolescentes
abrigados como casas, apartamentos, pavilhões/prédios ou outros. Nesta avaliação,
foram classificados como adequados os abrigos que informaram ter pelo menos
uma construção do tipo “casa”. Para a utilização desse parâmetro de adequação,
considerou-se que a maior parte dos domicílios particulares brasileiros estão
sediados em construções como casas ou apartamentos em edifícios residenciais.22
Além disso, o imaginário coletivo com relação à moradia é reforçado pela usual
representação da habitação por meio de uma casa. Assim, partiu-se do pressuposto
de que, para se assemelhar a uma residência e reproduzir um ambiente residencial,
as instituições de abrigo deveriam manter alguma referência à usual aparência
externa de um domicílio comum.23

O percentual de abrigos adequados segundo o aspecto externo da edificação


cai em relação ao anterior. As instituições pesquisadas que têm pelo menos uma
casa destinada à moradia das crianças e dos adolescentes sob seus cuidados
representam 66,9% do total (gráfico 3). Outros 24,6% possuem exclusivamente
outros tipos de construções, em sua grande maioria pavilhões/prédios, que
remetem às antigas instituições de atendimento a crianças e adolescentes.

A tabela 3 mostra que as regiões Sul, Norte e Centro-Oeste têm percen-


153
tuais maiores do que a média nacional de abrigos adequados com relação ao
aspecto externo das construções: 77%, 76% e 70,7%, respectivamente. O
Sudeste tem 66,1% dos abrigos com pelo menos uma casa para moradia das
crianças e dos adolescentes, enquanto no Nordeste a participação desses
abrigos é de 54,5%.

22
Os dados da PNAD mostram que 88,7% dos domicílios particulares permanentes brasileiros situam-se em
casas e 10,7% em apartamentos residenciais (IBGE, 2002).
23
Vale ressaltar que o questionário auto-aplicável respondido pelas instituições pesquisadas contava com um
item relativo a “apartamentos”, que não foi considerado por dois motivos: primeiro, por serem muito pontuais
os casos de referência exclusiva a esse tipo de construção já que, em geral, os abrigos indicaram também a
existência de casas, o que já os incluía como adequados. Segundo, porque o item “apartamentos” foi assinalado
com referência a quartos que dispõem de sanitário exclusivo, o que não necessariamente se enquadra como
aspecto residencial, conforme estabelecido para esta análise. Destaca-se, ainda, que a opção “casa” não era
necessariamente exclusiva, aceitando-se a existência de outros tipos de construção na instituição.
GRÁFICO 03
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC por tipo de construção destinada à
moradia das crianças e dos adolescentes abrigados

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

154
154
Como terceiro quesito relativo à inserção da edificação no contexto da
comunidade, analisou-se a disponibilidade de serviços na vizinhança que possam ser
usados pelas crianças e pelos adolescentes abrigados. As instituições que respon-
deram o questionário enviado assinalaram, entre as opções oferecidas, as exis-
tentes nas proximidades do abrigo: comércio, delegacia, escola, escritórios, hospital,
igreja, indústrias, outras instituições de abrigo, ponto de ônibus e posto de saúde.

O gráfico 4 mostra que 84,6% dos abrigos pesquisados possuem escolas


próximas e 82,7% têm acesso facilitado a pontos de ônibus. Comércio e igrejas/
templos estão presentes na vizinhança de 73,3% das instituições, enquanto há
postos de saúde em 66,2% dos casos. Cerca de um terço dos abrigos mantém
proximidade com equipamentos como hospital (34,5%), escritórios (28%) e
delegacias (27,3%). São minoria as entidades que têm como vizinhas outras
instituições de abrigo (21,1%) e indústrias (16,8%).

Esse retrato mostra que a maior parte das instituições pesquisadas tem
possibilidade de acesso a importantes serviços e equipamentos nas suas
proximidades, o que pode facilitar em muito a promoção da convivência das
crianças e dos adolescentes com a comunidade - direito estabelecido como
fundamental pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e que deve ser priorizado
no desenvolvimento das atividades dos programas de abrigo.
GRÁFICO 04
Brasil: serviços presentes nas proximidades (vizinhança) dos abrigos da Rede SAC

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Indo além da análise da presença isolada deste ou daquele serviço nas


proximidades das instituições pesquisadas, para melhor qualificar o contexto em
que se inserem esses abrigos, foi estabelecida uma pontuação para cada um dos
elementos presentes na vizinhança. À soma resultante atribuiu-se a classificação
de ótimo, bom ou ruim.

Definiram-se como mais importantes os itens escola, posto de saúde e ponto


155
de ônibus, recebendo dois pontos cada um, quando existentes. Esses foram
definidos como os mais valorosos porque os dois primeiros representam serviços
básicos essenciais de atenção a crianças e adolescentes, e o terceiro, um
equipamento público estratégico para facilitar a mobilidade das pessoas e o acesso
àquilo que não estiver disponível nos arredores. Outros três itens, também
importantes para a promoção da convivência das crianças e dos adolescentes
com a comunidade próxima, mereceram um ponto cada: comércio, delegacia e
igrejas/templos.

A existência de escritórios e hospitais foi considerada indiferente. No caso


de hospitais, especificamente, a instalação deste tipo de equipamento é estabelecido
em um planejamento de escala mais abrangente, no âmbito da cidade e não de
bairros, já que destina-se a casos de maior complexidade no sistema de atenção
à saúde da população. Assim, ainda que a proximidade de um hospital seja
interessante, não se pode tornar negativa a sua inexistência.

Com relação a outras instituições de abrigo nas vizinhanças, não é desejável


que um abrigo fique em local especializado, onde existam apenas instituições
desse tipo. Entretanto, em alguns casos, a existência de outros abrigos nas
proximidades pode até significar um fator positivo, como a aproximação de irmãos,
que não puderam permanecer no mesmo abrigo. Pode, ainda, significar a existência
de outras unidades ligadas a uma mesma instituição, sendo natural estarem
próximas umas das outras. Assim, estabeleceu-se a presença de outros abrigos
como item indiferente nos casos das instituições que citaram haver também
156
156 residências nas proximidades, o que leva à dedução de que não se trata de local
estritamente institucional. Por outro lado, para as entidades que informaram existir
outros abrigos, mas não citaram residências nas proximidades (seis abrigos), esse
item foi considerado negativo, assim como a presença de indústrias, equivalendo
à subtração de um ponto para cada.

A soma resultante da aplicação da pontuação a cada item presente nos


arredores das instituições pesquisadas podia apresentar um resultado máximo de
nove pontos e um mínimo de dois pontos negativos. A partir desses parâmetros,
estabeleceu-se como ótima a vizinhança dos abrigos que conseguiram pontuação
entre seis e nove; boa àqueles que tiveram um total de três a cinco pontos; e ruim
para os que somaram dois pontos ou menos.

No gráfico 5 pode-se observar que a grande maioria dos abrigos da Rede


SAC tem vizinhança classificada como ótima (69,8%) ou boa (19,7%), o que
representa 89,5% de abrigos considerados adequados segundo esse quesito. A
região Norte apresenta percentual elevado de adequação (96% dos seus abrigos),
enquanto nas regiões Centro-Oeste e Sul, a parcela de entidades adequadas fica
abaixo da média nacional: 78% e 86,9%, respectivamente (tabela 3).24

24
No Centro-Oeste, o percentual de não-respostas a essa questão foi elevado (9,8%), o que contribuiu para a
diminuição do percentual de abrigos considerados adequados.
GRÁFICO 05
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC por qualificação da vizinhança

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Finalmente, a tabela 3 mostra o percentual de abrigos adequados segundo


todos os critérios estabelecidos para os três quesitos já analisados individualmente.
Em todo o Brasil, é de 58,4% a parcela de abrigos que: (i) tem residências nas
proximidades; (ii) possui pelo menos uma construção com aspecto tipicamente
residencial; e (iii) dispõe de uma quantidade razoável de serviços e equipamentos
nas proximidades.

As regiões Norte e Sul são as que apresentam maior proporção de abrigos


adequados segundo todos os quesitos: no total de entidades pesquisadas nessas
regiões, 68% estão adequadas. As regiões Sudeste (58,5%) e Centro-Oeste (53,7%)
mantêm proporções praticamente iguais à média nacional, enquanto a região
Nordeste foi a que apresentou a menor proporção de abrigos considerados
adequados: 47,3%. 157
Pode-se afirmar, portanto, que a maioria do universo dos abrigos da Rede
SAC está adequada quanto à inserção das suas edificações no contexto das
comunidades em que se localizam, o que pode facilitar a garantia do direito à
convivência comunitária das crianças e dos adolescentes sob seus cuidados. É
necessário, entretanto, que especial atenção seja dada aos casos destoantes, já que
aqui consideramos valores médios, que escondem os casos mais gritantes de
inadequação, ainda que reduzidos.

O conforto ambiental é apontado como fator que influencia na sensação de


segurança e no sentimento de realização dos indivíduos. Junto a outros tantos
fatores ambientais já analisados - como o acesso à água limpa e a instalações
sanitárias adequadas -, o conforto no âmbito das edificações é influenciado pela
disponibilidade de espaço, pelo desfrute de privacidade e pela possibilidade de
obtenção de silêncio e, conseqüentemente, de repouso e reflexão.25

O desenvolvimento de atividades adequadas ao desenvolvimento infanto-


juvenil e, especificamente, de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal
e social certamente depende do projeto pedagógico da instituição que se dedique
a atendê-los e da relação estabelecida com os profissionais que lhes dão atenção
especializada e cotidiana na entidade. Alguns desses aspectos são tratados em
outros capítulos deste estudo. Outros, ainda, poderiam ser captados com o
desenvolvimento de pesquisas qualitativas de investigação dos aspectos subjetivos
que permeiam o atendimento em regime de abrigo.

Não obstante, as características relativas à configuração dos espaços internos dos

158
158 abrigos podem influenciar no desenvolvimento do projeto pedagógico e foram
aqui analisadas levando-se em consideração um mínimo de conforto; a adequação
ao atendimento personalizado e em pequenos grupos – princípio estabelecido
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente para o atendimento em entidades –; e
a acessibilidade para pessoas portadoras de deficiências, o que indica a possi-
bilidade de acolher indistintamente crianças e adolescentes nessa condição.

Assim, a partir das informações disponíveis, foram considerados cinco


quesitos, a saber: (i) o número de dormitórios por unidade de atendimento; (ii) o
número de crianças e adolescentes por dormitório; (iii) o número de crianças e
adolescentes por sanitário disponível; (iv) a existência de locais individuais para
guarda de objetos pessoais das crianças e dos adolescentes abrigados; e (v) a
existência de instalações adaptadas ao acesso de pessoas com deficiências.

Para o primeiro deles, o número de dormitórios destinados a crianças e


adolescentes sob os cuidados da entidade, estabeleceu-se como adequado um
máximo de seis dormitórios por unidade de atendimento.26 Para a definição deste
parâmetro, buscou-se a coerência com o princípio de atendimento em pequenos
grupos estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - para o que se
recomenda o acolhimento de até 25 crianças e adolescentes por unidade -, bem
como a acomodação de no máximo quatro pessoas em um mesmo dormitório,
critério que será tratado adiante.

25
WILHEIM, Jorge. op. cit. p. 152.
26
Uma mesma instituição de abrigo pode ter mais de uma unidade de atendimento. Nesses casos, o número
total de dormitórios foi dividido pelo número de unidades separadas destinadas à moradia das crianças e dos
adolescentes abrigados.
Além disso, levou-se em consideração que 52,2% dos domicílios particulares
no Brasil têm no máximo cinco cômodos, e 44,5% têm entre cinco e dez.27 Tendo
em vista a possibilidade de adaptação de unidades habitacionais para a utilização
em programas de abrigo, o que facilita em muito a manutenção de aspectos
residenciais, avaliou-se que mais do que seis dormitórios constituiriam edificações
muito diferentes do padrão residencial brasileiro.

O gráfico 6 mostra que a maioria dos abrigos possui um número adequado


de dormitórios por unidade de atendimento (86,4%). Entretanto, se à primeira
vista esse dado pode indicar que os abrigos mantêm um ambiente residencial,
com um pequeno número de dormitórios, é importante assinalar que a parcela
de adequação a esse quesito é praticamente o inverso da verificada para o próximo:
apenas 18% das instituições mantêm um número pequeno de crianças e
adolescentes por dormitório (gráfico 7). Ou seja, os dormitórios são poucos
porque abrigam um grande número de crianças e adolescentes, o que os aproxima
mais das características de ambientes institucionais, nos moldes dos antigos abrigos
para crianças e adolescentes, descaracterizando o ambiente residencial.

GRÁFICO 06
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC segundo número de dormitórios por
unidade de atendimento

159

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

O número de crianças e adolescentes por dormitório foi calculado pelo cruzamento


de dois aspectos: (i) a densidade por dormitório, ou seja, a relação entre o total de
crianças e adolescentes atendidos pela instituição e o número de dormitórios
existentes; e (ii) o número máximo de crianças e adolescentes que utilizavam um
mesmo quarto no período da pesquisa.

27
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Rio de Janeiro: 2002.
GRÁFICO 07
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC segundo número de crianças e
adolescentes por dormitório

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Considerou-se como limite para adequação a presença de até quatro crianças


160
160 e adolescentes por dormitório, levando-se em conta parâmetros adotados em
diretrizes para o reordenamento de instituições de abrigo, que fazem referência à
capacidade máxima por dormitório.28 Por outro lado, considerou-se, também,
que a convivência de até quatro pessoas em um mesmo dormitório seria razoável
para proporcionar um ambiente com semelhança residencial, com condições
mínimas de saúde e conforto.29
Deve-se ressaltar que essas condições dependem, também, do tamanho dos
dormitórios, bem como do uso que é permitido fazer do seu ambiente –
informações não colhidas diretamente por esta pesquisa. De qualquer forma, os
dados gerais fornecidos pelo “Levantamento Nacional” possibilitam uma apro-
ximação das condições de adequação dos abrigos, o que pode, inclusive, subsidiar
a realização de investigações qualitativas de avaliação in loco.

Como já foi visto no gráfico 7, apenas 18% das instituições pesquisadas


acomodam até quatro crianças e adolescentes por dormitório, enquanto a grande
maioria (78,6%) possui quartos que recebem cinco ou mais abrigados, proporção
que não varia muito em nenhuma das regiões brasileiras (tabela 4).

28
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. SECRETARIA DE ESTADO DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL. Subsídios para o ordenamento e financiamento dos serviços de abrigo – Programa Acolher.
Brasília, 2000.
29
Vale registrar que internacionalmente existem inúmeros parâmetros diferentes para definição da adequação de
unidades particulares de habitação com relação à densidade por dormitório/cômodo. As diferenças consistem
tanto no número máximo admitido (variando de 1,5 a 3) quanto na forma de cálculo da densidade (por exemplo,
considerando-se todos os cômodos, apenas aqueles utilizados como dormitórios ou a disponibilidade de m2;
fazendo-se ou não ponderações por sexo dos ocupantes e relação parental/afetiva entre eles). Essas nuances
metodológicas impedem que se possa determinar quantas pessoas, de fato, utilizam um mesmo dormitório – o
que era o objetivo na avaliação das instituições pesquisadas. No que se refere a instituições de abrigo, não há
referências condizentes com as diretrizes de reordenamento, em cumprimento ao atendimento em pequenos
grupos.
TABELA 04
Brasil/grandes regiões: condições de adequação dos abrigos da Rede SAC segundo
critérios de configuração dos espaços internos

Quesitos Condições Regiões brasileiras Brasil


Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste
Número de Adequado 12,0% 12,5% 18,7% 21,3% 22,0% 18,0%
crianças e
Inadequado 88,0% 79,5% 79,6% 75,4% 73,2% 78,6%
adolescentes
Não sabe/não 0,0% 8,0% 1,7% 3,3% 4,9% 3,4%
por dormitório respondeu

Número de Adequado 96,0% 79,5% 88,2% 86,9% 85,4% 86,4%


dormitórios Inadequado 4,0% 15,2% 11,1% 11,5% 9,8% 11,5%

Não sabe/não 0,0% 5,4% 0,7% 1,6% 4,9% 2,0%


respondeu

Número de Adequado 36,0% 50,0% 63,0% 61,5% 63,4% 59,1%


crianças e 64,0% 49,1% 35,6% 36,9% 36,6%
Inadequado 39,7%
adolescentes
Não sabe/não 0,0% 0,9% 1,4% 1,6% 0,0% 1,2%
por sanitário respondeu

Existência
Adequado 84,0% 81,3% 87,2% 85,2% 87,8% 85,6%
de espaços
Inadequado 16,0% 18,8% 11,8% 13,1% 12,2% 13,6%
individuais para
guarda de Não sabe/não 0,0% 0,0% 1,0% 1,6% 0,0% 0,8%
respondeu
pertences

Acessibilidade Adequado 12,0% 16,1% 12,5% 9,0% 14,6% 12,6%


para pessoas Inadequado 84,0% 81,3% 86,9% 90,2% 82,9% 86,1%
portadoras de Não sabe/não 4,0% 2,7% 0,7% 0,8% 2,4% 1,4%
deficiências respondeu

Adequados nos quatro 8,0% 8,0% 11,4% 12,3% 14,6% 11,0%


primeiros quesitos
(exc. acesso a PPDs)
Adequados em todos 4,0% 0,0% 1,4% 0,0% 0,0% 0,8%
os critérios
161
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

A investigação do número máximo de pessoas utilizando o mesmo dor-


mitório no período da pesquisa revelou que, ao mesmo tempo em que foram
encontrados abrigos com apenas uma (0,2%) ou duas (2,4%) crianças e adoles-
centes por dormitório, 7,5% das instituições mantinham mais de 20 no mesmo
quarto, chegando ao número máximo de 80 em um mesmo dormitório. Consi-
derando a tradição das antigas instituições de abrigo de manter enormes dormi-
tórios - o que dificultava a identificação individual do espaço, bem como a manu-
tenção da própria privacidade -, esses dados são preocupantes.

O terceiro quesito refere-se ao número de crianças e adolescentes por sanitário,


obtido pela relação entre o total de crianças e adolescentes vivendo no abrigo e o
número de sanitários disponíveis para seu uso. Considerou-se como adequada a
densidade máxima de até sete crianças e adolescentes por sanitário.

Na ausência de referências oficiais sobre esta questão, decidiu-se pela consulta


aos parâmetros utilizados em códigos de edificações e obras municipais, que
variam de cidade para cidade. A partir de uma breve pesquisa nesses documentos,
é possível elencar algumas considerações. No que se refere às edificações
habitacionais determina-se que cada habitação tenha, pelo menos, um conjunto
de bacia sanitária, lavatório e chuveiro, ou seja, um sanitário. Em se tratando de
habitações multifamiliares, ou seja, que abrigam mais de uma família com uso de
instalações comuns, é estabelecida como mínima a existência de dois sanitários,
sendo um para cada sexo. Por outro lado, quando há referência a entidades de
abrigo, são classificadas como habitações coletivas, juntamente com asilos,
162
162 albergues e pensões, entre outras. Na maior parte dos casos, o número de habitantes
por sanitário estabelecido para esse tipo de edificação varia entre 10 e 20 pessoas.30

Frente à diversidade desse quadro, tentou-se determinar um parâmetro para


avaliar a adequação das instituições pesquisadas com relação às diretrizes de
reordenamento. Levou-se em conta a aproximação desejada entre as instituições
de abrigo e uma residência comum, optando-se por um meio termo: a média
entre o mínimo das exigências legais para instituições de abrigo – que, ao que
tudo indica, ainda respondem às antigas práticas de atendimento a crianças e
adolescentes – e as exigências para habitações unifamiliares, considerando que a
média de habitantes por domicílio no Brasil é de 3,6 pessoas.31 Assim, adotou-se
como parâmetro de adequação a densidade de sete crianças e adolescentes por
sanitário disponível para seu uso no abrigo.

O gráfico 8 mostra que, no Brasil, 59,1% das instituições pesquisadas


atendem a esse critério, registrando-se, na análise regional, que as regiões Centro-
Oeste, Sudeste e Sul têm, respectivamente, 63,4%, 63% e 61,5% dos abrigos
adequados. Já a região Nordeste apresenta 50% dos abrigos em adequação,
enquanto o Norte apresenta o percentual mais baixo: 36%, invertendo a relação
entre adequados e não-adequados (tabela 4).

30
Exemplos de parâmetros para habitações coletivas: Código de Edificações de São Paulo, um sanitário para
cada 20 pessoas; Código de Edificações de Porto Alegre, um conjunto de bacia sanitária e lavatório para cada
cinco pessoas e um chuveiro para cada dez pessoas; Código de Edificações de Pelotas/RS: um sanitário para cada
dez pessoas; Código de Edificações de Vitória: um sanitário para cada dez pessoas; Código de Edificações de
Belo Horizonte: um sanitário para cada 15 pessoas.
31
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Rio de Janeiro: 2002.
GRÁFICO 08
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC por número de crianças e adolescentes
por sanitário

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

O quarto quesito diz respeito à existência de locais individuais para guarda de


objetos pessoais das crianças e dos adolescentes abrigados, recomendação à qual é conferida
singular importância nos documentos de diretrizes para organização de entidades
que oferecem abrigo para crianças e adolescentes. Do total de entidades
pesquisadas, 85,6% possuem espaços para que cada criança e adolescente possa
guardar seus pertences, como roupas, documentos, fotos, livros e brinquedos
pessoais (gráfico 9). Ainda assim, 13,6% das entidades não possuem esse tipo de
local reservado, que pode ser simplesmente um armário, uma gaveta, ou uma
prateleira individual.

GRÁFICO 09
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC por existência de espaços individuais 163
para guarda de pertences

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
O quinto e último quesito considerado em relação à configuração dos espaços
internos dos abrigos diz respeito à adaptação das instalações físicas ao acesso de pessoas
com deficiências. Este é o quesito com menor índice de adequação dos abrigos da
Rede SAC: apenas 12,6% das instituições podem receber crianças e adolescentes
portadores de deficiências com o conforto de instalações adequadas (gráfico 10).

GRÁFICO 10
Brasil: distribuição dos abrigos da Rede SAC por existência de instalações físicas
adaptadas ao acesso de pessoas com deficiências

164
164

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Essa proporção não varia muito em relação às regiões brasileiras (tabela 4).
Em todo o país existem poucos abrigos preparados para receber pessoas com
deficiências, o que exigiria um mínimo de adaptação nas instalações físicas: portas
mais generosas, redução de obstáculos nas circulações, sanitários com apoios nas
paredes. Sem isso, aparecem as indesejáveis especializações: de um lado, os abrigos
que só recebem pessoas com deficiências, por serem os únicos que têm condições
de fazê-lo; de outro, um sem número de rejeições às crianças e aos adolescentes
com deficiências e a dificuldade de sua inserção mais igualitária na política de
atendimento em regime de abrigo.

Finalmente, a tabela 4 mostra, também, as proporções de abrigos


considerados adequados em relação a todos os critérios analisados para a
configuração dos espaços internos: (i) o número de dormitórios por unidade de
atendimento; (ii) o número de crianças e adolescentes por dormitório; (iii) o
número de crianças e adolescentes por sanitário disponível; (iv) a existência de
locais individuais para guarda de pertences; e (v) a existência de instalações
adaptadas ao acesso de pessoas com deficiências.
Os abrigos considerados adequados em relação à configuração dos seus
espaços internos, que atendem a todas as condições simultaneamente, representam
uma parcela ínfima do total pesquisado: apenas 0,8%. Nas regiões Nordeste, Sul
e Centro-Oeste, a situação é ainda pior: nenhum abrigo é adequado segundo
todos os critérios. Com efeito, percebe-se que o último quesito – acessibilidade
para pessoas com deficiências – é o que mais exclui entidades da condição de
adequação. Retirando-se da análise esse parâmetro, a parcela de abrigos adequados
no total do universo pesquisado sobe para 11,0%.

Ainda assim, o percentual de abrigos adequados permanece baixo e não há


grandes variações por regiões brasileiras. Enquanto 58,4% das instituições estão
adequadas segundo os parâmetros externos da edificação, menos de um quinto
dessa parcela segue orientações mínimas de ambientação interna. Parece que os
grandes prédios isolados entre muros e totais no atendimento a crianças e
adolescentes estão sendo superados com mais facilidade. Talvez porque o ECA
seja explícito ao indicar o atendimento em pequenos grupos. Por outro lado, as
condições internas ainda estão mais longe da adequação e mais próximas do
passado. Provavelmente, esse dado se explica porque a evolução do simples
atendimento numérico em pequenos grupos para uma verdadeira promoção da
convivência em um ambiente residencial exige maiores mudanças culturais.

5.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


165
A análise da estrutura física das instituições de abrigo que recebem recursos
do governo federal por meio da Rede SAC demonstra que, na média, as condições
gerais de acesso à infra-estrutura básica e as características físicas encontram-se
bastante adequadas. A inserção das edificações na comunidade também se mostra
positiva, visto que a maioria possui construções que podem resgatar referências
residenciais, assim como dispõe de vizinhança que possibilita a convivência das
crianças e dos adolescentes com a comunidade.

Passando-se porta adentro das entidades, a situação é um pouco diferente.


Uma pequena parte atende a critérios mínimos estabelecidos, como até seis crianças
e adolescentes por dormitório, assim como a acessibilidade para pessoas com
deficiências. A avaliação não tratou de outros tantos aspectos importantes, como
o tamanho dos espaços e o uso que é permitido fazer desses ambientes. Também
não tratou de pontos como a existência de espaços que permitam a realização
tranqüila de estudos e tarefas escolares ou a existência de espelhos em altura
compatível com a utilização pelas crianças. Ainda assim, as informações analisadas
demonstram que há preocupação com a realização de atividades de recreação e
lazer e que a maioria das crianças e adolescentes atendidos pela Rede SAC tem a
possibilidade de guardar seus pertences em locais individuais.

Vale ressaltar que esse estudo não pretende, de forma alguma, desqualificar
as instituições que ainda não estão adequadas segundo os critérios aqui consi-
derados. Muitas delas foram aprovadas segundo a legislação de obras e edificações
166
166 existente em seus municípios e são registradas nos conselhos municipais de direitos
das crianças e dos adolescentes, da maneira como estão estruturadas. Isso indica
que alterações dessa ordem não dependem exclusivamente da iniciativa isolada
dessa ou daquela entidade. Antes disso, é preciso que haja incentivo e orientação.

As políticas de atenção a crianças e adolescentes devem voltar a atenção


também para a estrutura física das entidades de atendimento. Mas não mais no
sentido de medir sua eficiência pelo número de metros quadrados construídos
ou pelo valor agregado à propriedade pelas benfeitorias realizadas internamente,
como no passado. Ao contrário, talvez dizendo que o ambiente ideal para acolher
provisoriamente crianças e adolescentes afastados de suas famílias pode ser
encontrado na busca da simplicidade aconchegante das residências, possibilitando
que cada um tenha lugar para desenvolver as atividades comuns à sua faixa etária
e permitindo a expressão individual de todos, cada um a seu modo. Um ambiente
que tenha generosas portas abertas para ir e vir e janelas que mostrem o mundo
e permitam conhecê-lo.
5.4 BIBLIOGRAFIA

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Rio de Janeiro:


2002.

LIMA, A. Sabóia. Patronato de menores. Rio de Janeiro: Editora Henrique


Velho, 1942.

MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL.


SECRETARIA DE ESTADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Subsídios para o
ordenamento e financiamento dos serviços de abrigo – Programa Acolher. Brasília, 2000.

ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE SAÚDE. Documento de posición


de la OPS sobre políticas de salud em la vivienda. OMS/OPS/Divisão de Saúde e Meio
Ambiente. Washington, D.C. Havana, Cuba. Outubro, 1999.

PONCE, Afonso Ramírez. Pensar e habitar. Arquitextos n. 24, maio de 2002.


Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq024/bases/
02text.asp>. Acesso em 09 de julho de 2004.

REYES, Alfonso. Iconografia. Ed. FCE, 1989.

UN-HABITAT (United Nations Human Settlements Programme). Guide to


monitoring target 11: improving the lives of 100 million slum dwellers. Nairobi, Kenya,
2003.

WILHEIM, Jorge. Cidades: o substantivo e o adjetivo. 3 ed. São Paulo: Editora


Perspectiva, 2003.
167
168
168
ARTE SOBRE FOTO DE JOSÉ VARELLA
CAPÍTULO 6

O financiamento dos abrigos


para crianças
e adolescentes no Brasil
Enid Rocha Andrade da Silva

169
170
6.1 INTRODUÇÃO

O ambiente econômico do Brasil no início dos anos 90 foi marcado


pelas políticas de estabilização da moeda e pela implementação das políticas de
ajuste estrutural. Do ponto de vista social, notabilizou-se pelo aumento da pobreza
e pelo acirramento da desigualdade.

A necessidade de financiamento das dívidas interna e externa, aliada aos


custos de uma economia com inflação alta, exercia enorme pressão sobre os
cofres públicos, penalizando o financiamento das políticas sociais. Como os custos
do ajuste são extremamente elevados para as classes mais baixas, as políticas
sociais passaram a desempenhar o papel de ações reparadoras ou compensatórias,
atuando sobre os danos ou conseqüências nefastas do processo econômico em
curso, privilegiando os gastos com os grupos mais necessitados. Nesse contexto,
as políticas consideradas universais - como educação e saúde públicas e gratuitas
para todos - perdem terreno para políticas de concepção focalizada, como a de
transferência de renda por meio da concessão de bolsas aos mais necessitados.

O processo de ajuste teve início poucos anos após a promulgação da Cons-


tituição de 1988 que, no que se refere à proteção social, garantiu, entre outros
direitos, a universalidade, a integralidade e a eqüidade do atendimento à seguridade
social que envolve as políticas de saúde, previdência e assistência social.

No tocante ao financiamento da seguridade social, a Constituição Federal


instituiu um orçamento próprio a ser composto por recursos provenientes dos
orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e das contribuições sociais.
171
Especificamente em relação ao financiamento da política da assistência social,
sua principal fonte de recursos advém das contribuições sociais incidentes sobre:
(i) a receita ou faturamento, o lucro e a folha de salários e demais rendimentos do
trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que preste serviço
a empregadores, empresas ou entidades a ela equiparadas; (ii) o salário e/ou
remuneração de trabalhadores e demais segurados da previdência social; (iii) a
receita de concursos e prognósticos, e (iv) a remuneração de importadores de
bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.

A gestão e o repasse dos recursos são realizados por meio dos fundos de
assistência social nas três esferas de governo. O Fundo Nacional tem o objetivo
de proporcionar recursos e meios para financiar o benefício de prestação
continuada (BPC) e apoiar serviços, programas e projetos de assistência social.
O repasse dos recursos relativos aos benefícios de prestação continuada para
idosos e pessoas portadoras de deficiência se dá de forma direta aos destinatários.
Já o financiamento dos serviços de natureza continuada, tais como creches, asilos
para idosos e abrigos para crianças e adolescentes, realizados por organizações
governamentais e não-governamentais, é feito por meio do repasse fundo a fundo,
que deve ser regular e seguir critérios de partilha pactuados nas comissões
intergestoras. O montante de recursos destinados a esses serviços é definido em
valores per capita, conforme previsão do número de atendimentos efetuados
mensalmente.1

Não é objetivo deste capítulo aprofundar a discussão sobre o papel do


poder público e das organizações assistenciais no financiamento da prestação de
172 serviços para crianças e adolescentes nas instituições de abrigo. Em relação a
este aspecto da questão, nosso entendimento é de que a assistência social é um
direito da população que dela necessita, conforme previsto na Constituição Federal,
cabendo ao Estado o dever legal da sua condução. Depreende-se daí que o
atendimento aos direitos sociais básicos das crianças e adolescentes abrigados é
de responsabilidade do poder público, em seus três níveis – União, estados e
municípios. Além disso, a diretriz do co-financiamento, presente na concepção
da política de assistência social, advoga que os direitos assistenciais devem ser
financiados levando em consideração alguns aspectos, dentre os quais se destacam:
(i) as demandas e prioridades que se apresentam de forma específica conforme a
região ou território; (ii) a capacidade de gestão, de atendimento e de arrecadação
de cada município ou região; e (iii) os diferentes níveis de complexidade dos
serviços. Assim, em função da co-responsabilidade federativa da política de
assistência social, a rede nacional de abrigos para crianças e adolescentes deveria
contar com a provisão de recursos provenientes das três esferas de governo e
suficientes para o provimento das necessidades básicas da população atendida.
Tal diretiva não implica, todavia, na estatização dos serviços prestados. Segundo
Ivanete Boschetti 2 deve haver uma colaboração vigiada entre os poderes públicos
e as entidades assistenciais:

1
Em relação aos direitos assistenciais, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) ainda prevê a modalidade
“projetos de enfrentamento à pobreza” (artigo 25) que compreendem a instituição de investimento econômico-
social nos grupos populares, buscando subsidiar, financeira e tecnicamente, iniciativas que lhes garantam meios,
capacidade produtiva e de gestão para a melhoria das condições gerais de subsistência, elevação do padrão da
qualidade de vida, preservação do meio ambiente e sua organização social.
2
BOSCHETTI, Ivanete. Financiamento e gastos na área da assistência social implementada pelo governo federal na
década de 90. Relatório de pesquisa nº 3. IPEA, Brasília, junho de 2002.
“A despeito de sua inclusão na ordem do direito, portanto dever do
Estado, a assistência social pública pode continuar a ser implementada
por organizações não-governamentais, com recursos e subvenções públicas, as quais
devem desenvolver suas ações a partir das indicações apresentadas na LOAS, ou
seja, devem submeter-se ao estatuto do direito e do dever legal.” (Boschetti, 2002)

Na prática, entretanto, ainda não foram definidos os percentuais de


participação da União, dos estados e municípios no financiamento dos direitos
assistenciais; tampouco foram definidos os critérios de partilha dos recursos de
origem federal para a contribuição do financiamento da totalidade dos serviços
de prestação continuada previstos na LOAS, ficando o financiamento dos serviços
assistenciais dependente em grande parte da participação voluntária da sociedade.

Assim, levando em conta o cenário de restrições orçamentárias, aliado à


ausência de definição sob a parcela que cabe a União, estados e municípios no
financiamento dos serviços, e ainda o agravante de que o repasse atual de recursos
federais não leva em conta os critérios de adequação à demanda da população
pelos serviços, é fácil depreender que o atendimento aos direitos assistenciais
vem enfrentando sérias dificuldades no seu financiamento3.

Como decorrência, a rede prestadora de serviços socioassistenciais –


instituições governamentais e não-governamentais – também sofre as conse-
qüências da escassez de recursos públicos para o financiamento dos serviços que
prestam de forma colaborativa com o Estado, sendo forçadas a desenvolver outras
estratégias de captação de recursos para a manutenção de seus serviços. Em
relação aos abrigos de crianças e adolescentes, os recursos públicos alocados,
como será mostrado mais adiante, não têm sido suficientes para arcar com o 173
provimento básico de crianças e adolescentes abrigados. O montante de recursos
federais repassados para estados e municípios por meio da Rede SAC, por exemplo,
obedece, até hoje, o critério da “série histórica”, que era utilizado pela extinta
LBA, sendo que a rede de instituições atendidas é praticamente a mesma que na
época da FCBIA, sem que se saiba ao certo quais foram os parâmetros utilizados
para sua composição.4

3
Cumpre esclarecer que no debate em torno do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, no tocante ao
financiamento, as principais reivindicações são: financiamento com base no território, considerando os portes
dos municípios e a complexidade dos serviços; a não exigibilidade da Certidão Negativa de Débitos junto ao
INSS como condição para os repasses; a não descontinuidade do financiamento a cada início do exercício
financeiro; o repasse automático de recursos do Fundo Nacional para os estaduais, municipais e do Distrito
Federal para o co-financiamento das ações; e o estabelecimento de pisos de atenção.
4
O capítulo 1 detalha os problemas relativos à adoção do critério da série histórica na Rede SAC/Abrigos.
O objetivo deste capítulo é descrever e discutir a estrutura do finan-
ciamento e do gasto dos abrigos pesquisados, segundo a sua vinculação pública
ou privada. A ênfase recai sobre a composição das receitas, despesas e custos
destas instituições, demarcando as principais fontes de recursos para o financia-
mento dos serviços, bem como seus principais itens de despesas .

6.2 ALGUNS ELEMENTOS DE AVALIAÇÃO


DA REDE SAC ABRIGOS

174 6.2.1 Dimensão da cobertura da Rede Socioassistencial


de Abrigos para Crianças e Adolescentes
(Rede SAC/Abrigos) no país

A Rede SAC/Abrigos é um programa federal que se destina a contribuir


para o alcance do objetivo da política de assistência social de prover mínimos
sociais para o atendimento das necessidades de toda a população que dela necessita.

O público alvo da Rede SAC/Abrigos são as crianças e adolescentes que se


encontram em situação de risco, sujeitos à violação de direitos pela negligência,
violência, abandono e outras formas de violação, demandando ações de proteção
especial, da parte do Estado ou da sociedade. A ação de proteção especial, neste
caso, se materializa na medida de abrigo, que pode ser aplicada pelo conselho
tutelar ou pelo poder Judiciário. Uma vez abrigada, a criança e o adolescente
devem ter todos os seus direitos garantidos por meio da política de assistência
social, que o faz a partir de recursos próprios ou em articulação com as demais
políticas setoriais.

No âmbito da política de assistência social, os abrigos para crianças e


adolescentes integram os serviços de prestação continuada, tendo como carac-
terística o repasse fundo a fundo dos recursos, cujo montante é calculado de acordo
com o estabelecimento de uma meta de atendimento mensal para cada instituição
cadastrada na rede. Atualmente, os recursos que são repassados pelo governo
federal por meio da Rede SAC são da ordem de R$ 35,00 per capita e destinam-se
a colaborar com o financiamento dos gastos com o atendimento das crianças e
adolescentes que estão sob medida de abrigo. De acordo com os dados coletados
nos abrigos pesquisados, o custo médio mensal por criança/adolescente abrigado
é da ordem de R$392,18.

Considerando esse custo por criança/adolescente abrigado, a contribuição


dos recursos federais repassados por meio da Rede SAC representa, em média,
menos de 10% (8,92%) dos gastos das instituições para a manutenção da população
atendida.

Muito embora a política de assistência social tenha como princípio o co-


financiamento, prevendo a participação de recursos das três esferas de governo
no financiamento dos serviços assistenciais, ainda não foi definida a magnitude
das parcelas que cabe a cada uma destas esferas. Sendo assim, não é possível
avaliar se a participação do governo federal, em torno de 9%, no financiamento
dos abrigos conveniados é ou não adequada no que se refere ao pacto federativo
da co-responsabilidade e do co-financiamento.

Entretanto, à luz do princípio da universalização dos direitos sociais que


rege a política de assistência social5, é possível tecer alguns comentários a respeito
da cobertura desta ação federal. Segundo Boschetti,6 a universalização no caso
da assistência social não significa que os direitos assistenciais devem ser garan-
tidos a todos os cidadãos, pobres e ricos indiscriminadamente, mas que devem
agir no sentido de buscar a inclusão de cidadãos no universo dos bens, serviços
e direitos que são patrimônio de todos. Assim, considerando a Rede SAC/Abrigos
como parte da política de assistência social, o escopo de atuação desta ação
pública deveria contemplar todo o universo de crianças e adolescentes em abrigos
175
no país, a fim de atender ao princípio da universalização no campo da sua
especificidade. Entretanto, algumas informações disponíveis dão mostras de que
a Rede SAC/Abrigos é um programa cuja cobertura é muito limitada. Embora
não existam estatísticas nacionais sobre o número total de abrigos para crianças
e adolescentes no Brasil, as informações relativas à quantidade de abrigos existentes
em alguns municípios brasileiros evidenciam que a Rede SAC atende apenas a
uma reduzida fração das instituições que mantêm programas de abrigos para
crianças e adolescentes no país. No município de São Paulo, por exemplo, o

5
Lei Orgânica da Assistência Social, art. 4.
6
BOSCHETTI. op. cit.
universo dos abrigos contemplados pela Rede SAC é de apenas 17,5%; em Porto
Alegre, é de apenas 22%; e no do Rio de Janeiro, de somente 15,8%.7

6.2.2 O conhecimento e a gestão da Rede SAC/Abrigos


por parte da rede conveniada

A Rede SAC/Abrigos para crianças e adolescentes teve início a partir do


ano 2000. Até então, o financiamento dos abrigos ocorria no âmbito do programa
Brasil Criança Cidadã, criado em 1966, quando os abrigos eram atendidos pela
FCBIA na modalidade de financiamento de projetos foram agregados à rede
prestadora de serviços da área da assistência social federal e começaram a receber
o repasse de valores per capita de acordo com a meta de atendimento mensal.8
176
De acordo com os dados do “Levantamento Nacional”, a maior parte
dos dirigentes de abrigo (53,7%), quando perguntada sobre qual foi o primeiro
ano em que seu programa recebeu recursos do governo federal por meio da Rede
SAC, respondeu que foi após 1995, sendo que, desses, 23,6% se referiram ao
período de 1996 a 1998, que corresponde ao período seguinte à extinção da
FCBIA e da LBA, 30% responderam que foi entre 1999/2002, e cerca de 1%
disse que passou a ser contemplado pela Rede SAC apenas em 2003. Para além
da informação sobre o início do recebimento dos recursos da Rede SAC, cujas
respostas são coerentes com o ritmo das mudanças ocorridas na política de
assistência social após 1995, o ponto que mais chama a atenção nos dados
apresentados na tabela 1 refere-se ao grau de desconhecimento desse programa
federal por parte das instituições atendidas. Tal constatação decorre da observação
dos expressivos percentuais de dirigentes da rede conveniada que, embora tivessem
sua instituição contemplada pelo programa federal, sequer sabiam quando
começaram a receber os recursos (19,65%), e também daqueles que deixaram de
responder a questão, possivelmente porque também não sabiam a data de início
(9,74%); e dos que, embora cadastrados na Rede SAC e, portanto, detentores do
direito de recebimento do recurso, responderam que “nunca receberam os recursos”
(8,68%). O elevado grau de não-respostas de dirigentes que não souberam precisar

7
Não existem informações ou estimativas sobre o número total de abrigos existentes no país. Para maior
detalhamento e leitura complementar sobre o tamanho e cobertura da Rede SAC/Abrigos, ver capítulo 1 deste
livro.
8
Mais detalhes sobre a modalidade de financamento na modaliadade per capita podem ser encontrados no
capítulo 1.
quando começaram a receber os recursos e de respostas equivocadas chamam
atenção para a precariedade do conhecimento sobre essa ação pública federal
junto às entidades cadastradas, evidenciando a necessidade de maior divulgação.
Uma explicação para tal desconhecimento pode estar no fato de que os recursos
federais são repassados, normalmente, pelo Fundo Nacional da Assistência Social
aos fundos municipais de assistência social que, por sua vez, os repassam para a
rede de abrigos conveniada no município, fazendo com que muitas instituições
ignorem a procedência federal dos recursos recebidos.

TABELA 01
Brasil: primeiro ano de recebimento dos recursos da Rede SAC

Período Proporção (%)


Antes de 1990 3,19
De 1991 a 1995 3,99
1996 a 1998 23,6
1999 a 2002 30.03
2003 1,12
Não sabe 19,65
Não respondeu 9,74
Nunca recebeu os recursos 8,68
TOTAL 100

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

177
Indagados sobre o montante de recursos recebidos da Rede SAC no mês de
maio de 2003, dois meses anteriores à realização desta pesquisa, cerca de 66,26%
souberam o valor aproximado do montante repassado. No entanto, uma proporção
significativa das instituições cadastradas na Rede SAC (15,82%) ainda não tinha
recebido do programa os recursos relativos àquele mês. Outro percentual também
bastante significativo (13,01%) foi das instituições que não responderam esta
questão, sendo o desconhecimento a principal hipótese da não-resposta. Além
disso, é também importante destacar que cerca de 4% (3,69%) dos abrigos
pesquisados responderam que não sabiam ao certo se já haviam ou não recebido
os recursos da Rede SAC no mês de maio e cerca de 1% (1,23%) respondeu que
sua instituição deixou de ser contemplada pelo programa federal. (gráfico 1)
GRÁFICO 01
Brasil: proporção de abrigos que receberam recursos da Rede SAC
em maio de 2003

178
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Como já salientado anteriormente, pouco se conhece a respeito dos critérios


que orientaram a conformação atual da Rede SAC/Abrigos. O que levou, por
exemplo, a região Sudeste a deter a maior parte dos abrigos financiados pela
Rede SAC no país ou quais teriam sido os critérios que fizeram com que fossem
estas e não outras instituições a comporem o cadastro de abrigos conveniados
pelo governo federal são questões que ensejariam maiores investigações para,
efetivamente, reconstituir a história do atendimento federal aos abrigos de crianças
e adolescentes 9. No tocante à inclusão na Rede SAC, cerca da metade (46%) das
instituições conveniadas não enfrentou qualquer dificuldade para começar a
receber os recursos deste programa, 18,6% enfrentaram dificuldades para inserção
na rede e as demais não souberam responder (29,7%), ou não responderam a
questão (5,6%). (gráfico 2).

Os abrigos que tiveram dificuldades para serem incluídos na Rede SAC


referiram-se, principalmente, à demora/atraso ou ao não-repasse dos recursos
(31,1%), à burocracia e à dificuldade em preencher os requisitos (documentação,
estrutura física, tempo de funcionamento) (21,7%). As demais dificuldades
declaradas, apesar de serem pouco expressivas em termos proporcionais, revelam

9
A este respeito, ver capítulo 1
uma gama de diferentes problemas em que as entidades esbarraram para ter
acesso aos recursos da Rede SAC, destacando-se, entre outros: dificuldades
políticas no relacionamento com a prefeitura; falta de divulgação, de informações
e de orientação para o acesso aos recursos; dificuldades para aquisição dos registros
de utilidade pública e junto aos conselhos; falta de metas de atendimento
disponíveis no município para a entrada de novas entidades; metas inadequadas
ao número de crianças atendidas; estado ou prefeitura inadimplentes com o INSS.
(tabela 2).

GRÁFICO 02
Brasil: Rede SAC, proporção de abrigos que enfrentou dificuldades no acesso ao
programa

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

179
Outra questão importante no tocante ao financiamento deste programa é a
ausência de regularidade e de pontualidade no recebimento dos recursos por
parte das entidades beneficiadas. Como pode ser observado pelo gráfico 3, o
recebimento dos recursos não observa integralmente o critério de pontualidade,
já que cerca de um terço dos abrigos pesquisados (33,6%) respondeu que “não há
data certa para o pagamento dos recursos”; 19,4% costumam receber os recursos com
mais de 60 dias de atraso; 14,4% mencionaram um atraso entre 31 e 60 dias; e
8,9% usualmente recebem os recursos com atraso de 15 a 30 dias. Observe-se
ainda que apenas 1,1% das entidades declararam receber os recursos da Rede
SAC sem atraso - algo que deve ser objeto de preocupação por parte dos gestores
federais deste programa.
TABELA 02
Brasil: Rede SAC, principais dificuldades enfrentadas para ter acesso ao programa

Principais dificuldades Freqüência Percentual


Demora/ atraso ou não-repasse dos recursos 50 31,1
Burocracia e dificuldades em preencher os requisitos 35 29,9
(documentação, estrutura física, tempo de funcionamento)
Dificuldades políticas no relacionamento com a prefeitura / 12 7,5
com gestores
Falta de divulgação, de informações e de orientação para 9 5,6
acesso aos recursos
Restrições para o gasto dos recuros e burocracia na prestação 6 3,7
de contas
Valor do benefício baixo e falta de reajuste 6 3,7
Dificuldades para aquisição dos registros de utilidade pública 5 3,1
e dos registros junto aos conselhos
180 Falta de metas disponíveis para o município ou para novas entidades 5 3,1
Metas inadequadas ao número de crianças atendidas 5 3,1
Desvio e/ou falta de transparência na gestão dos recursos 4 2,5
disponíveis
Estado/prefeitura sem certidão negativa do INSS 2 1,2
Outros 22 5,5
TOTAL 161 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

GRÁFICO 03
Brasil: pontualidade no envio dos recursos da Rede SAC às entidades conveniadas

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Os vários aspectos levantados sobre o desempenho da Rede SAC junto às
entidades prestadoras de serviços de abrigos, tais como a sua baixa cobertura, o
desconhecimento sobre a origem federal dos recursos e a ausência de pontualidade
no seu recebimento indicam uma reduzida influência desta ação federal, o que
prejudica a atribuição constitucional do governo federal nesta área, quais sejam:
a de propor novas modalidades de atendimento, novos padrões de qualidade na
prestação de serviços, e novos programas e ações junto aos municípios e à rede
conveniada.

6.3 A COMPOSIÇÃO DAS RECEITAS DOS ABRIGOS


PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A assistência à infância abandonada e desvalida no Brasil sempre contou


com considerável participação da sociedade civil. Segundo Marcílio,10 no período
colonial o Estado e a Igreja atuavam indiretamente na assistência às crianças
abandonadas por meio do controle jurídico e público, da concessão de apoio
financeiro esporádico e de outros estímulos. No entanto, segundo a autora, foi a
sociedade civil quem primeiro se preocupou com a situação das crianças órfãs e
abandonadas.10

A primeira forma institucional de assistência às crianças desvalidas foi a


Roda dos Expostos, que teve como fundador uma figura da sociedade de nome 181
Romão de Mattos Duarte que, segundo Moncorvo Filho,11 era dono de enorme
riqueza e resolveu empregá-la em prol dos necessitados:

“Quando era a mais angustiosa a situação dos expostos nesta Capital, ao tempo do
Governador Gomes Freire, Conde de Bobadella, pois viviam elles no meio da
promiscuidade dos doentes e operados do Hospital da Misericórdia, quis a grande
alma de Romão de Mattos Duarte que uma vida confortável e menos perigosa lhes
fosse assegurada e eis que, em 14 de janeiro de 1738, era entregue à administração
da Santa Casa 32 mil cruzados para a creação da Roda, doação essa que fôra

10
MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec,1998.
11
MONCORVO FILHO, Arthur. Histórico da protecção à infância no Brasil: 1500-1922. Rio de Janeiro: Empresa
Graphica Editora, 1926.
secundada por uma de mais de 10 mil réis feita por Ignácio da Silva Medella”
(Moncorvo Filho, pp 36 e 37).

A participação da sociedade nas causas da infância sempre foi marcada pela


falta de recursos financeiros regulares e contínuos e pelos recorrentes pedidos ao
poder público que desse prioridade a esta causa em relação a outros gastos.
Moncorvo Filho cita uma passagem de um documento extraído do “Archivo da
Misericórdia”, de 1752, onde se comparavam os recursos despendidos para as
funções desempenhadas pelo Senado com os que eram necessários para os
cuidados das crianças expostas:

“... o grande excesso a que tinha chegado a despeza que tenha havido na cera que se
despende nas funcções deste Senado que fazia nisso a despeza de treze mil e trezentos,

182 quantia que ao mesmo tempo faltaria para acudir a creação dos expostos, cuja
despeza era mais útil à República ... deviam os vereadores desterrar as despezas
supérfluas...” (Moncorvo Filho, p 43).

Mais adiante o autor cita, ainda, um trecho em que informa que as amas
que cuidavam dos enjeitados recebiam um salário de apenas “doze moedas por ano”
e que ainda “viviam sendo pagos atrasados”.

Dada a constante falta de recursos financeiros, o que fez com que até o
final do século XVIII tivessem sido fundadas apenas quatro Rodas no país, os
Senados e as Câmaras assumiram a dispendiosa tarefa de manter os enjeitados.

Estudos históricos, no entanto, mostram que a Câmara Municipal de São


Paulo relutou muito em contribuir para a manutenção destas instituições, como
era de sua responsabilidade, repassando apenas pequenas quantias até parar de
vez com essa contribuição, quando a Lei dos Municípios (1828) retirou-lhe tal
atribuição, passando-a, oficialmente à Santa Casa. Assim, ao longo do século
XIX foram as confrarias, irmandades e Santas Casas de Misericórdia que
assumiram o cuidado das crianças pobres e abandonadas.12

12
SAS/SP. SECRETARIA MUNCIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DE SÃO PAULO [et alii]. Reordenamento
de abrigos infanto-juvenis da cidade de São Paulo: construção da política interinstitucional de defesa dos direitos de
convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes de São Paulo. São Paulo: 2004.
O atendimento do Estado nesta área pôde ser notado apenas nos últimos
anos do século XIX, quando dirigiu sua atuação com o objetivo de corrigir e
reprimir os adolescentes denominados “delinqüentes e infratores”. Assim, é do
final do século XIX e início do século XX a criação dos reformatórios e institutos
correcionais, como a Casa dos Expostos em São Paulo, em 1898, e o Instituto
Disciplinar, posteriormente chamado Reformatório Modelo, também em São
Paulo, no ano de 1902. Entretanto, cabe notar que a responsabilidade pelos carentes
e abandonados continuou sendo assumida pelas entidades filantrópicas.

A década de 30, sob a égide do primeiro Código de Menores , caracterizou-


se nesta área pela criação dos grandes internatos e reformatórios, cujo objetivo
era reformar os internos e proteger a sociedade da convivência com crianças e
adolescentes consideradas em situação irregular.

No início da década de 60, já em plena vigência do governo militar no


Brasil e após a aprovação pela ONU da Declaração Universal dos Direitos da
Criança, o Estado decide assumir a função de principal responsável pelas políticas
de assistência à infância e à adolescência abandonada, pobre e “infratora”, criando
a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor – Funabem que tinha, entre outras
atribuições, a de orientar, coordenar e fiscalizar as organizações públicas ou
privadas que executavam atendimento nesta área.

No ano de 1979, com o novo Código do Menor, toma forma a doutrina


que definia como “menor em situação irregular” aquele que estava “privado de
condições essenciais a sua subsistência, saúde, instrução obrigatória; em perigo
moral; privado de representação ou assistência legal pela falta eventual dos pais
ou responsável; com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar
183
ou comunitária; respondendo por prática infracional”.13 De acordo com as
diretrizes do novo código, deveriam ser criadas entidades de assistência social e
de proteção aos “menores”, sendo que os governos estaduais ficaram com a
responsabilidade do abrigamento dos “menores carentes” e dos “menores
infratores”.14

A década de 80 foi de questionamento da doutrina da situação irregular, que


mantinha internados enorme número de crianças e adolescentes considerados

13
Código de Menores de 1979, artigo 2º, apud SAS/SP, op.cit.
14
De acordo com Marcílio, op. cit., a maior parte das instituições desta natureza não foram criadas pois já
existiam desde o século passado as quais foram repassadas aos governos esataduais.
“irregulares” de acordo com o Código de Menores de 1979. Da ampla discussão e
participação dos movimentos sociais, que priorizavam as bandeiras “Criança –
Constituinte” (1986) e “Criança – Prioridade Absoluta” (1987), resultaram inúmeros
avanços. Dentre estes podem ser destacados, sobretudo, a elevação da criança e do
adolescente à condição de sujeitos de direitos com prioridade absoluta prevista na
Constituição Brasileira de 1988 e a substituição do Código de Menores pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente em 1990.

O financiamento da política de atendimento à criança e ao adolescente hoje


se vincula a pelo menos dois preceitos constitucionais. O primeiro refere-se à já
mencionada condição de sujeito de direito que a criança e o adolescente adquiriram
após a Constituição de 88. O segundo está relacionado ao status de direito social
adquirido pela política de assistência social na Carta Magna. Da leitura destas
184 duas inovações introduzidas no marco constitucional brasileiro, entendeu-se que
cabe ao Estado a primazia da condução da política de atendimento a crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade social, considerando-os público-
alvo, por excelência, da política de assistência social.15

Sob esta ótica insere-se a discussão do financiamento dos abrigos para


crianças e adolescentes. O atendimento em abrigo é o exemplo de uma política
de assistência social que conta com a presença expressiva das entidades da
sociedade civil que executam a política no marco dos princípios doutrinários da
LOAS que estabelece a complementaridade entre o poder público e a sociedade.

A atual situação do financiamento dos abrigos encontra-se ilustrada na tabela


3, que traz os dados coletados pelo “Levantamento Nacional” sobre a origem
dos recursos financeiros dos abrigos pesquisados. Em 2002, os serviços prestados
pelas instituições cadastradas na Rede SAC envolveram recursos da ordem de
R$101,9 milhões16. A análise da distribuição percentual revela que, para o conjunto
dos abrigos pesquisados, os recursos públicos oriundos das três esferas de governo
contribuem com menos da metade das receitas. Mesmo assim, constituem-se na
principal fonte de financiamento, com 41,47% do total. Os recursos privados
contribuem com cerca de um terço dos recursos (33,69%), e as receitas próprias
são responsáveis por 24,93% do total.

15
MPAS. Norma Operacional Básica da Assistência Social. Brasília: outubro de 1998.
16
82,1% dos abrigos pesquisados, ou seja, 488 abrigos deram respostas válidas às perguntas sobre origem das
receitas.
Quando se analisa isoladamente a composição das receitas de abrigos
governamentais, observa-se que existe uma dependência quase total dos recursos
públicos, que representam 95,88% do total das receitas deste conjunto de abrigos.
Entre os recursos públicos, nota-se uma preponderância dos recursos oriundos
da esfera municipal, da ordem de 59,72%. As demais esferas, federal e estadual,
contribuem com 13,38% e 22,79%, respectivamente.

No tocante ao financiamento dos abrigos não-governamentais, a


contribuição dos recursos públicos situa-se em torno de um terço do total
(32,25%), sendo que o governo federal é responsável por 6,44%, os estados
contribuem com 14,71% e os municípios, com 11,1%.

Os recursos privados são a principal fonte de receita dos abrigos não-


governamentais, representando 38,95% do total das receitas, contra 2,63% no
caso dos abrigos governamentais. Na composição do financiamento privado dos
abrigos não-governamentais, sobressaem, pela ordem, os recursos das
mantenedoras, que representam 10,06%; as doações de pessoas físicas, que
contribuem com 10,28% do total; as doações de empresas, que correspondem a
6,04%, e os recursos doados por organizações não-governamentais estrangeiras,
da ordem de 6,59%.

Outra fonte importante para o financiamento dos abrigos não-governa-


mentais são os recursos próprios, que representam quase 30% (28,8%) das receitas
deste conjunto de instituições, enquanto que nos abrigos públicos a participação
da receita própria é de apenas 1,49%. Importante notar que o principal componente
dos recursos próprios corresponde à rubrica de prestação de serviços, que contribui
com cerca de 15,36%. No âmbito desta rubrica foram citados, por exemplo, a
185
realização de cursos para a comunidade (corte e costura, pintura, artesanato,
entre outros) e o aluguel do terreno da instituição como estacionamento.

É importante ressaltar que a prestação de serviços e as doações como


principais fontes de recursos para o financiamento dos abrigos não-governamentais
devem ser analisadas como parte da estratégia desenvolvida por estas instituições
para superarem o desafio da sustentabilidade financeira, já que não contam com
recursos públicos suficientes para atender as necessidades das crianças e dos
adolescentes abrigados.
TABELA 03
Brasil: composição das receitas dos abrigos pesquisados em 2002 (%)

Origem dos recursos Abrigos Abrigos não-


governamentais governamentais Total
% % %

Recursos públicos federais 13,38 6,44 7,47


Recursos públicos estaduais 22,79 14,71 15,90
Recursos públicos municipais 59,72 11,10 18,09
SUBTOTAL DE RECURSOS PÚBLICOS 95,88 32,25 41,47
Recursos da mantenedora 0,30 10,06 8,63
Doações de empresas 0,03 6,04 5,16
Doações de pessoa física 0,48 10,28 8,86
ONGs brasileiras 0,19 1,08 0,95

186 ONGs estrangeiras 0,00 6,59 5,61


Governos estrangeiros 0,00 1,38 1,18
Agências internacionais 0,00 0,37 0,32
Outras receitas de recursos privados 1,64 3,14 2,91
SUBTOTAL DE RECURSOS PRIVADOS 2,63 38,95 33,60
Prestação de serviços 1,32 15,95 13,78
Contribuições de sócios/ usuários/ responsáveis 0,11 3,27 2,88
Realização de eventos e promoções 0,05 3,47 3,01
Outras receitas próprias 0,01 6,10 5,25
SUBTOTAL RECEITA PRÓPRIA 1,49 28,80 24,93
TOTAL 100,00 100,00 100,00

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

As doações em espécie constituem-se também em contribuição muito


importante para o cotidiano do funcionamento dos abrigos. Conforme mostram
os dados do gráfico 4, os alimentos são as doações mais freqüêntes, correspon-
dendo a 82,5% do total das doações recebidas pelas instituições pesquisadas. Em
seguida, aparecem as doações de vestuário (78,9%); de brinquedos (63,4%); de
material escolar (28,3%); de móveis (19,8%); de remédios (18,9%); de benfeitorias
nas instalações físicas (18,9%); e de material de construção (8,5%), entre outras.
É importante registrar ainda que tanto as doações em espécie como aquelas
realizadas em dinheiro são fruto de uma rede de solidariedade construída em
torno dos abrigos, sendo que as principais motivações dos doadores se referem a
princípios caritativos e religiosos e também ao dever moral da ajuda.
GRÁFICO 04
Brasil: principais doações recebidas pelos abrigos pesquisados

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

6.4 DESPESAS E CUSTOS NOS ABRIGOS PESQUISADOS 187

A investigação de custos e despesas dos abrigos pesquisados que será aqui


apresentada foi concebida como um exercício de pesquisa. Enquanto tal, seu
objetivo é gerar um conjunto de informações sobre as diferentes parcelas que
compõem as despesas feitas pelos abrigos, segundo a vinculação pública ou
privada. Neste sentido, é importante o cuidado que se deve ter para não comparar
as experiências entre os abrigos governamentais e não-governamentais, visto que
os custos sempre vêm associados à eficácia, ao impacto social, e, principalmente,
à efetividade dos gastos. Um estudo sobre a qualidade social do atendimento a
crianças e adolescentes em abrigos demandaria uma análise específica que não
fez parte do escopo desta pesquisa. Neste capítulo estão sendo apenas apropriados
os custos e despesas por tipo de rubrica nas instituições pesquisadas.

A tabela 4 mostra os componentes das despesas praticadas nos abrigos


pesquisados em 2002 e as proporções das parcelas que constituem os custos dos
abrigos em foco. A título de informação, vale esclarecer que, em 2002, as despesas
totais nos abrigos pesquisados atingiram o valor de R$91,1 milhões, segundo as
respostas de 80% dos abrigos pesquisados.

TABELA 04
Brasil: composição das despesas nos abrigos pesquisados em 2002 (%)

Destino dos recursos Abrigos Abrigos não-

188 governamentais governamentais


% %
Total
%

Pessoal 59% 53% 55%


Aluguel, condomínio e IPTU 2% 1% 2%
Água 3% 1% 2%
Luz 2% 3% 3%
Telefone 1% 2% 2%
Gás 1% 1% 1%
Alimentação, material de higiene e limpeza 15% 15% 15%
Educação para os abrigados 3% 3% 3%
Saúde para os abrigados 2% 2% 2%
Cultura, lazer e esporte para os abrigados 1% 1% 1%
Vestuário para os abrigados 2% 2% 2%
Transporte para os abrigados 1% 1% 1%
Combustível 1% 2% 2%
Serviços de terceiros 4% 4% 4%
Manutenção de bens/ equipamentos 2% 5% 4%
Material de consumo 0% 2% 1%
Ações de assistência 0% 0% 0%
Bens duráveis e materiais permanentes 0% 0% 0%
Profissionalização 0% 0% 0%
Taxas e emolumentos 0% 1% 1%
Outros 0% 1% 1%
TOTAL 100% 100% 100%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Examinando-se os dados apresentados na tabela 4, observa-se a elevada
importância relativa dos custos de pessoal que representaram, em média, 55%
das despesas sendo 53% nos abrigos não-governamentais e 59% nos abrigos
governamentais.

Outro item importante das despesas são os gastos com alimentação e material
de higiene e limpeza, que representaram 15% dos gastos em 2002, tanto para os
abrigos públicos como para os privados. As demais despesas se afiguram como
de pequena importância quando analisadas individualmente, situando-se em menos
de 5,0% do total.

Na tabela 5 apresentam-se os dados de custo médio por abrigado, segundo


o tipo de abrigo - governamental e não-governamental. As informações, quando
analisadas sob esta ótica, evidenciam claramente os custos per capita mais elevados
dos abrigos públicos em relação aos abrigos não-governamentais. Enquanto o
custo médio/mês por abrigado no abrigo público é de cerca de R$508,14, nos
abrigos não-governamentais é de R$365,51; isto é, os custos dos abrigos públicos
são cerca de 40% mais elevados.

Ao analisar os principais itens de custo que compõem o custo total médio


por abrigado, observa-se que as principais diferenças entre os custos dos abrigos
públicos e privados residem nos itens de aluguel, condomínio e IPTU; água;
educação, profissionalização e saúde; pagamento de pessoal, transporte para os
abrigados; vestuário; cultura, esporte e lazer; e alimentação, material de higiene e
limpeza.

As diferenças dos custos per capita encontradas entre os abrigos gover- 189
namentais e não-governamentais podem ser devidas a vários fatores, dentre os
quais podem ser destacados os seguintes:
• o número médio de crianças e adolescentes atendidos por abrigos, que é
consideravelmente mais baixo nos abrigos governamentais;
• as diferenças de remuneração do pessoal do abrigo, destacando-se
que os trabalhadores dos abrigos governamentais, por serem, na maioria,
servidores públicos, reúnem mais vantagens sobre o salário base em
comparação aos trabalhadores dos abrigos não-governamentais;
• a maior incidência de trabalho voluntário nos abrigos não-governa-
mentais;
• as diferentes atividades e os diferentes atendimentos oferecidos aos
abrigados.
Assim, convém ressaltar mais uma vez que uma análise de custo comparativa
entre experiências que apresentam características muito distintas não é pertinente,
devido à própria especificidade de cada programa de abrigo. Mesmo dois
programas de abrigo que atendem crianças da mesma faixa etária, por exemplo,
não são, em princípio, comparáveis, porque podem oferecer serviços de com-
plexidade e qualidade diferentes.

TABELA 05
Brasil: custo médio por abrigado, segundo a natureza governamental
ou não-governamental - 2002

Despesas Não-
Governamental governamental (a/b) Total

190 (a) (b) %

Pessoal R$ 3.621,38 R$ 2.322,06 56% R$ 2.572,94


Aluguel, condomínio e IPTU R$ 134,07 R$ 54,02 148% R$ 70,83
Água R$ 157,01 R$ 61,81 154% R$ 81,68
Luz R$ 101,33 R$ 130,96 -23% R$ 123,20
Telefone R$ 65,83 R$ 77,69 -15% R$ 74,43
Gás R$ 43,70 R$ 44,70 -2% R$ 44,21
Alimentação, material de higiene e R$ 914,14 R$ 648,67 41% R$ 698,96
limpeza
Educação para os abrigados R$ 192,51 R$ 111,40 73% R$ 127,35
Saúde para os abrigados R$ 137,91 R$ 90,70 52% R$ 99,69
Cultura, lazer e esporte para os R$ 48,98 R$ 32,70 50% R$ 35,83
abrigados
Vestuário para os abrigados R$ 113,55 R$ 72,47 57% R$ 80,37
Transporte para os abrigados R$ 57,68 R$ 46,70 23% R$ 49,09
Combustível R$ 75,29 R$ 103,48 -27% R$ 96,86
Serviços de terceiros R$ 249,00 R$ 167,05 49% R$ 181,99
Manutenção de bens/ R$ 130,94 R$ 232,28 -44% R$ 209,79
equipamentos
Material de consumo R$ 24,90 R$ 73,22 -66% R$ 61,97
Ações de assistência R$ 0,30 R$ 8,01 -96% R$ 6,21
Bens duráveis e materiais R$ 5,38 R$ 9,08 -41% R$ 8,31
permanentes
Profissionalização R$ 7,54 R$ 4,26 77% R$ 4,89
Taxas e emolumentos R$ 2,14 R$ 52,90 -96% R$ 42,31
Outros R$ 14,08 R$ 42,02 -66% R$ 35,28
TOTAL R$ 6.097,66 R$ 4.386,18 39% R$ 4.706,20

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Desta forma, a análise de custos que foi aqui apresentada buscou tão-somente
permitir uma compreensão mais profunda das diferenças entre os itens que
compõem as despesas feitas pelos abrigos, bem como seus diferentes pesos para
as instituições, de acordo com sua natureza pública ou privada.

Permanecem, entretanto algumas questões. Por exemplo: uma vez que os


abrigos públicos apresentaram, em média, custos por criança e adolescente
abrigados em torno de 40% maiores do que os dos abrigos privados, teria o
atendimento público, proporcionalmente aos seus custos, uma qualidade melhor
em termos dos serviços prestados à população abrigada?

A resposta a esta questão só poderia ser conhecida a partir de uma avaliação


qualitativa dos resultados de diferentes programas de abrigo, que buscasse associar
custos e resultados, ou custos e impacto social, o que não foi realizado aqui.

6.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo teve o objetivo de descrever e discutir a estrutura de


financiamento e gasto dos abrigos pesquisados, segundo a sua natureza pública
ou privada. A ênfase da discussão sobre o financiamento é a origem dos recursos,
de acordo com suas fontes. Em relação aos gastos, a discussão focou os principais
itens de despesas, conforme a vinculação dos abrigos.
191
O processo de ajuste econômico iniciado nos primeiros anos da década
de 90 penalizou o financiamento das políticas sociais, colocando em cheque os
avanços conquistados pela Constituição de 1988, que elevou a criança e o
adolescente à condição de sujeitos de direitos e considerou a assistência social
um direito social, figurando ao lado dos direitos universais de saúde e previdência
social.

Desta forma apesar dos avanços legais e de gestão verificados no campo da


política de assistência social, algumas de suas diretrizes permanecem sem definição.
É o caso, por exemplo, da diretriz do co-financiamento dos serviços assistencias
entre as três esferas de governo – União, estados e municípios. Em relação ao
financiamento dos serviços sociais assistenciais de abrigo, até o momento, não
foi definida a parcela de recursos que cabe a cada um dos entes federativos.
Especificamente no que se refere ao financiamento dos serviços de abrigos
pelas entidades assistenciais, o Governo Federal mantém um programa de repasse
de recursos per capita a uma rede de instituições conveniadas. No entanto, os
dados do “Levantamento Nacional” mostraram que este programa é de baixíssima
cobertura em relação ao total dos abrigos existentes em alguns municípios, além
de ser pouco divulgado e conhecido pelas instituições. Muitas das instituições
atendidas pela Rede SAC sequer sabem que se trata de um programa federal.
Além disso, viu-se também que os recursos repassados não são regulares,
tampouco pontuais, tendo sido citados recorrentes atrasos no seu recebimento
por parte das instituições atendidas.

O reconhecimento destes aspectos do funcionamento da Rede SAC/Abrigos


indica uma reduzida influência desta ação federal, o que prejudica a atribuição
192 constitucional da União nesta área: a de propor novas modalidades de atendimento,
padrões de qualidade na prestação de serviços e novos programas e ações junto
aos municípios e à rede conveniada.

A análise da composição das receitas dos abrigos pesquisados no exercício


de 2002 mostrou que os serviços prestados pelas instituições cadastradas na
Rede SAC envolveram recursos da ordem de R$101,9 milhões. A distribuição
percentual dos recursos revelou que, para o conjunto dos abrigos pesquisados,
os recursos públicos contribuíram com menos da metade das receitas. Mesmo
assim, foram a principal fonte de financiamento, com 41,47% do total. Os recursos
privados contribuíram com cerca de um terço dos recursos (33,69%), e as receitas
próprias foram responsáveis por 24,93% do total.

Para os abrigos não-governamentais, os recursos privados são a principal


fonte de receita, representando 38,95% do total contra apenas 2,63% para os
abrigos governamentais.

Em relação às despesas, o objetivo deste capítulo foi o de realizar a


apropriação dos custos e despesas das instituições pesquisadas. Não se tratou de
estudo sobre a qualidade social do atendimento das crianças e adolescentes em
abrigos, o que demandaria uma análise específica que não fez parte do escopo
desta pesquisa.

A análise do custo médio por abrigado, segundo o tipo de abrigo –


governamental e não-governamental – evidenciou custos 40% mais elevados
nos abrigos públicos em relação aos abrigos não-governamentais.
A avaliação de custos realizada não permite concluir se há relação entre a
qualidade no atendimento e os custos mais elevados praticados nos abrigos
públicos. Assim, indica-se a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre o
tema, por meio de pesquisa qualitativa, buscando estabelecer a relação entre
resultados, impacto social e custos per capita nos abrigos de crianças e adolescentes.

193
6.6 BIBLIOGRAFIA

BOSCHETTI, Ivanete. Financiamento e gastos na área da assistência social


implementada pelo governo federal na década de 90. Relatório de pesquisa nº 3. IPEA,
Brasília, junho de 2002.

MPAS. Norma Operacional Básica da Assistência Social. Brasília: outubro de


1998.

MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo:


Hucitec,1998.

MONCORVO FILHO, Arthur. Histórico da protecção à infância no Brasil: 1500-


194 1922. Rio de Janeiro: Empresa Graphica Editora, 1926.

SAS/SP. SECRETARIA MUNCIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DE


SÃO PAULO [et alii]. Reordenamento de abrigos infanto-juvenis da cidade de São Paulo:
construção da política interinstitucional de defesa dos direitos de convivência familiar e comunitária
das crianças e adolescentes de São Paulo. São Paulo: 2004.
ARTE SOBRE FOTO DE JOSÉ VARELLA
CAPÍTULO 7

O Estatuto da Criança
e do Adolescente e a percepção
das instituições de abrigo

Enid Rocha Andrade da Silva


195
195
196
O Estatuto da Criança e do Adolescente consolidou novas formas de ver a
infância e a adolescência e, conseqüentemente, de atendê-las quando em situação
de risco pessoal ou social. Com efeito, analisando-se os dispositivos do estatuto,
conclui-se que a legislação inova ao introduzir princípios que, se cumpridos,
podem evitar a institucionalização de crianças e adolescentes, historicamente
difundida e praticada no Brasil. A retirada do convívio familiar deve ocorrer
apenas quando for medida inevitável e, ainda neste caso, a permanência da criança
ou do adolescente em abrigo deve ser breve. Além disso, deve-se zelar pela
manutenção e pelo fortalecimento dos vínculos familiares e, quando esgotados
os recursos sem que se obtenha resposta, promover o mais rápido possível a
inserção em família substituta.

Porém, para que os dispositivos do ECA relativos às medidas de proteção


sejam cumpridos, é necessário que tanto os responsáveis por sua aplicação quanto
os executores - entre os quais as entidades que oferecem abrigo para crianças e
adolescentes - tenham não apenas amplo conhecimento do estatuto, mas também
partilhem dos seus objetivos. Os responsáveis pela implementação dos programas
de abrigo devem fazê-lo de forma a contribuir para que as crianças e os adoles-
centes sob sua guarda possam exercer plenamente seus direitos, especialmente o
direito à convivência familiar e comunitária, fugindo do isolamento representado
pela institucionalização.
197
197
Considerando a importância desses atores na rede de atendimento a crianças
e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, buscou-se captar o
conhecimento dos dirigentes ou coordenadores das instituições de abrigo sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como seu grau de adesão aos
princípios estabelecidos em lei. Os resultados da primeira etapa do “Levantamento
Nacional”1 mostram que 44,3% dos dirigentes entrevistados consideram-se muito
informados a respeito do Estatuto da Criança e do Adolescente, e quase a metade
(48,8%) deles se acha mais ou menos informada. Menos de 5% se disseram pouco ou
nada informados (3,3% e 1,1%, respectivamente) (gráfico 1).

1
Pesquisa telefônica realizada na primeira etapa do “Levantamento Nacional”, que buscou a atualização do
Cadastro de Entidades da Rede SAC, bem como conhecer algumas opiniões dos dirigentes de todas as entidades
de abrigo cadastradas. Mais detalhes sobre a metodologia da pesquisa, ver item 1.3, capítulo 1.
GRÁFICO 01
Brasil: dirigentes dos abrigos da Rede SAC, segundo conhecimento do ECA*

198

* Foi pedido aos dirigentes dos abrigos que fizessem uma auto-avaliação de seu conhecimento sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente.

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

TABELA 01
Brasil/grandes regiões: dirigentes dos abrigos da Rede SAC,
segundo conhecimento do ECA

Auto-avaliação Regiões brasileiras BRASIL

Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul

Muito informado 41,4 37,6 42,2 47,8 43,6 44,3

Mais ou menos informado 51,7 53,9 48,9 45,5 51,3 48,8

Pouco informado 6,9 2,6 2,2 4,0 1,7 3,3

Nada informado 0,0 2,6 2,2 0,3 1,7 1,2

Não sabe/não respondeu 0,0 3,4 4,4 2,3 1,8 2,5

TOTAL 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Observando-se as diferenças entre as regiões brasileiras, nota-se que é na
região Nordeste que se encontra o menor percentual de dirigentes que se
consideram muito informados: 37,6%. No outro extremo está a região Sudeste,
com o maior percentual de dirigentes que se auto-avaliaram dessa maneira (47,8%).
Em seguida aparecem a região Sul, com uma proporção de 43,6%, e as regiões
Centro-Oeste e Norte, com percentuais também elevados, já que a proporção de
dirigentes que se reconhecem “muito informados” em relação ao ECA é de 42,2%
e 41,4%, respectivamente (tabela 1).

Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente ter sido promulgado há


mais de uma década e de quase a metade dos dirigentes dos abrigos da Rede SAC
se considerarem bem informados em relação ao seu conteúdo, existe, ainda, a
outra metade dos dirigentes que se considera mais ou menos informada, ou seja,
não tem muita convicção e/ou segurança sobre o conteúdo dessa lei.

O conhecimento ainda não efetivo dos dirigentes sobre o ECA provavel-


mente está relacionado à baixa capacidade de transmitir informação por parte
dos órgãos formuladores de políticas voltadas para crianças e adolescentes, bem
como dos formadores de opinião - que, normalmente, têm como principal
preocupação a veiculação de reportagens espetaculares em vez de informações
sobre a legislação e sobre as políticas públicas existentes nessa área. As conclusões
registradas na publicação Balas Perdidas 2, que teve como objetivo apresentar uma
radiografia da forma como a imprensa aborda a violência nos universos da infância
e da adolescência, apontam para “a grande lacuna” existente na mídia nacional
nesse tipo de discussão: a ausência dos atores dos poderes públicos, das políticas
públicas, da legislação pertinente, das estatísticas e das fontes que compõem as 199
199
reportagens.

Por outro lado, destaca-se que 89,8% dos entrevistados no “Levantamento


Nacional” declararam ter conhecimento de que o ECA tem uma parte que trata
do atendimento em abrigos para crianças e adolescentes 3, sendo que apenas 6,2%
disseram não saber da existência do artigo 92 do estatuto e 3,9% não responderam
essa pergunta. Interessante notar que, se de um lado metade dos dirigentes
reconhece que não é muito informada sobre a totalidade do conteúdo do estatuto,

2
ANDI/ DCA-MJ/AMENCAR. Balas perdidas: um olhar sobre o comportamento da imprensa brasileira quando
a criança e o adolescente estão na pauta da violência. Brasília: 2001.
3
O artigo 92 do Estatuto da Criança e do Adolescente trata dos princípios que uma entidade de abrigo deve
seguir no atendimento à criança e ao adolescente sob sua guarda.
de outro, observa-se que a grande maioria declarou que sabe da existência do
artigo 92. Ou seja, a parte específica sobre o funcionamento dos abrigos é de
amplo conhecimento dos dirigentes.

Na divisão por regiões, não há grandes diferenças entre as proporções


encontradas nas respostas dos dirigentes sobre o artigo 92, destacando-se apenas
a região Norte, onde o percentual dos dirigentes que respondeu sim a esta pergunta
alcançou 100% (tabela 2).

TABELA 02
Brasil/grandes regiões: dirigentes dos abrigos segundo conhecimento das disposições
do ECA sobre o assunto*
200 Resposta do dirigente Regiões brasileiras BRASIL

Centro-Oeste Norte Nordeste Sudeste Sul

Sim 88,89 88,03 100,00 89,04 91,45 89,82

Não 6,67 5,13 0,00 7,31 5,98 6,24

Não respondeu 4,44 6,84 0,00 3,65 2,56 3,94

TOTAL 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

* Aos dirigentes entrevistados foi feita a seguinte pergunta: O senhor sabia que o Estatuto da Criança e do Adolescente
tem uma parte que trata de como devem ser os serviços de abrigo para crianças e adolescentes?

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Apesar de quase 90% dos dirigentes terem declarado que sabem que o
estatuto “tem uma parte que trata de como devem ser os serviços de abrigo para crianças e
adolescentes”, 52,7% dos entrevistados disseram que não houve mudanças em suas
entidades após conhecerem as recomendações do estatuto; 29,7% responderam
que houve mudanças; 10,5% dos dirigentes não souberam dizer se houve ou não
alguma mudança na entidade em função das recomendações legais; e 7,1% não
responderam esta questão (gráfico 2).

Vale ressaltar que boa parte dos dirigentes justifica a ausência de mudanças
em decorrência do estatuto pelo fato de suas instituições terem sido fundadas
após 1990, ano de aprovação da lei, ou porque, segundo eles, não havia
discordância entre a prática já desenvolvida e os princípios do ECA.
GRÁFICO 02
Brasil: reação dos dirigentes de abrigo ao disposto no ECA sobre o assunto*

*Aos dirigentes que declararam saber que no ECA há uma parte que trata de como devem ser os serviços de abrigo
oferecidos a crianças e adolescentes foi perguntado se, depois de tomar conhecimento dessa parte, fizeram alguma
mudança no serviço de abrigo que vinham oferecendo.

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

TABELA 03
Brasil: mudanças realizadas nos serviços de abrigamento em função do ECA*

Mudanças citadas Nº de menções Percentual

Adequação do espaço e das instalações físicas 65 20,3

Qualificação e adequação da equipe de funcionários do abrigo 49 15,3

Redução no número de crianças e adolescentes atendidos 49 15,3

Mudança no regime de atendimento ("internato", atendimento ao adolescente 42 13,1


em conflito com a lei, albergue etc.)

Alteração no perfil da criança/adolescente atendido (idade, sexo, exclusividade no


atendimento, etc.)
38 11,9 201
201
Ampliação do relacionamento do abrigo com a família e a com a comunidade 34 10,6

Ampliação das relações interinstitucionais 17 5,3

Outros 26 8,1

TOTAL 320 100,0

* Aos dirigentes que afirmaram ter feito mudanças no serviço de abrigamento que oferecem em função do disposto no
Estatuto da Criança e do Adolescente foi pedido que citassem essas mudanças (pergunta aberta, de resposta múltipla).

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Das mudanças citadas pelos entrevistados que afirmaram ter havido
alterações em suas instituições após o conhecimento do ECA, 20,3% são
relacionadas à adequação do espaço e das instalações físicas; 15,3%, à qualificação
e adequação da equipe de recursos humanos do abrigo; 15,3% dizem respeito à
redução no número de crianças e adolescentes atendidos; 13,1%, à mudança no
regime de atendimento da instituição, como ter deixado de atender adolescentes
em conflito com a lei ou em regime de albergue, por exemplo, passando a atender
crianças e adolescentes apenas em regime de abrigo; 11,9% das mudanças citadas
referiam-se à alteração no perfil da criança/adolescente atendido, como idade e
sexo, por exemplo; 10,6%, à ampliação do relacionamento do abrigo com a família
e com a comunidade; e 5,3%, à ampliação das relações interinstitucionais,
sobretudo com o Judiciário (tabela 3).
202 De fato, todas as mudanças citadas correspondem a orientações contidas
no ECA. No que se refere aos temas mais citados pelos dirigentes, ainda foi
possível identificar, por meio de declarações espontâneas, que existe um certo
consenso entre os entrevistados de que as mudanças introduzidas pelo estatuto
melhoraram o atendimento de crianças e adolescentes abrigados.

“Mudou muito, primeiro era um grande depósito de crianças e adolescentes, agora


criou-se um espírito de família, um ambiente familiar. Quando nós mudamos para
uma casa, que foi construída a partir de uma doação, os nossos meninos não se
agüentavam de tanta felicidade. Alguns diziam: ‘agora sim temos um lar, podemos
fazer nossas comidas, ter nossas plantas...’” (depoimento de um dirigente
do RS entrevistado)

Na busca de aprofundamento e confirmação do grau de conhecimento e de


adesão dos profissionais de abrigo aos princípios do artigo 92 do ECA, pedia-se
para o entrevistado citar um ou mais princípios contemplados na lei e seguidos
ou adotados em sua instituição. Do total das respostas obtidas, apenas 13,1%
correspondem a princípios não contemplados no artigo 92. Houve referências a
princípios religiosos seguidos pela instituição e ao direito à educação e à saúde -
que, embora não estejam no artigo referido, encontram-se subscritos em outras
partes do estatuto.

Observa-se que, com exceção dos princípios relativos à “participação de pessoas


da comunidade no processo educativo” e ao “desenvolvimento de atividades em regime de co-
educação”, sobre os quais não foram feitas referências, a maior parte dos princípios
estabelecidos no artigo 92 do ECA foram citados pelos entrevistados. Entre os
mais citados estão a preservação dos vínculos familiares (36,4% das citações
feitas); a participação na vida da comunidade local (28,4%); e o atendimento
personalizado e em pequenos grupos (10,5%). Os demais foram citados com
menor freqüência (tabela 4).

TABELA 04
Brasil: princípios do ECA seguidos pelos abrigos da Rede SAC*

Princípios referidos Nº de menções Percentual

Preservação dos vínculos familiares 233 36,4

Participação na vida da comunidade local 182 28,4

Atendimento personalizado e em pequenos grupos 67 10,5

Não desmembramento de grupos de irmãos 34 5,3

Preparação gradativa para o desligamento 20 3,1

Integração na família substituta 19 3,0

Evitar sempre que possível transferência para outras entidades de crianças e 1 0,2
adolescentes abrigados

Participação de pessoas da comunidade no processo educativo 0 0,0

Atividades em regime de co-educação 0 0,0

SUBTOTAL ARTIGO 92 556 86,9

Citações que não fazem parte do artigo 92 84 13,1

TOTAL 640 100,0

* Foi pedido aos dirigentes de abrigo que citassem, espontaneamente, algum princípio do Estatuto da Criança e do
Adolescente que estivesse sendo adotado em seu abrigo (pergunta aberta, respostas múltiplas).

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

É importante registrar, ainda, que alguns dirigentes, apesar de terem afirmado


203
203
que suas instituições têm se empenhado em seguir as recomendações do ECA,
destacaram os desafios que se colocam à sua implementação, com especial destaque
para a manutenção dos vínculos familiares e para a reinserção familiar, dificultadas
pela ausência ou insuficiência de outras políticas e serviços públicos. Alguns
dirigentes apontaram até mesmo discordância em relação a alguns princípios,
como o desligamento obrigatório por maioridade.

Sendo o abrigo uma medida de proteção destinada a crianças e adolescentes,


a idade máxima de atendimento é 18 anos – idade que delimita a adolescência,
segundo o ECA. O estatuto estabelece como princípio a ser seguido pelos abrigos
“a preparação gradativa para o desligamento”, o que, por dedução, deve contemplar
a saída dos adolescentes prestes a completar 18 anos. As discussões técnicas da
área indicam que, para tanto, as instituições deveriam, além de disponibilizar
apoio psicológico, promover as demais garantias para a vida do egresso fora do
abrigo, tais como renda, emprego, escolarização e a criação de algum tipo de
vínculo, parental ou não, externo à instituição. No entanto, nas palavras de uma
dirigente:

“... é realmente muito cruel ter que desligá-los da instituição, sabendo que eles ficam
desprotegidos de novo. Que mãe, quando o filho completa 18 anos, o põe para fora de
casa? Por isso, eu não cumpro este princípio. Podem me colocar na rua junto com eles,
mas eu não faço isso. Eles mesmos nos dizem: ‘a família acaba agora de novo pra
nós?’ Então têm coisas que eu questiono no estatuto, questiono com uma experiência
sofrida junto com as crianças”. (relato de uma dirigente de abrigo do RS)

204 Outro aspecto a ser considerado é que, se de um lado a ausência de um


conhecimento mais amplo sobre o ECA por parte dos dirigentes de abrigo pode
levar os mesmos a pautarem o atendimento oferecido em suas instituições a
partir de suas próprias crenças e prioridades, estabelecidas subjetivamente, por
outro, a referência ao conhecimento sobre a lei não garante a sua aplicação.

Assim, buscou-se levantar a opinião dos dirigentes com relação a outros


aspectos que possibilitassem uma aproximação entre suas percepções e os princípios
do ECA: (i) as instituições consideradas importantes para o sucesso do trabalho
em abrigo com meninos e meninas – o que poderia demonstrar maior ou menor
alinhamento com a antiga doutrina da situação irregular e com as diretrizes de
abertura das instituições à comunidade; e (ii) as dificuldades enfrentadas para a
reinserção familiar – que, em princípio, deveria mobilizar grandes esforços para
garantir a provisoriedade da medida de proteção abrigo, bem como o direito à
convivência familiar das crianças e dos adolescentes abrigados.

A família foi apontada como a instituição mais importante para o trabalho


dos dirigentes na condução de seu trabalho no abrigo pela maioria (60%), antes
da escola, citada por apenas 6,4% dos dirigentes entrevistados; da Igreja (3,6%);
dos Conselhos Tutelares (2,1%); dos governos (1,3%); e dos voluntários (1,3%)
(gráfico 3).

De fato, a família é reconhecida como fundamental para o trabalho de


proteção integral a crianças e adolescentes. Quando, por violação de seus direitos,
necessitam ser afastados da família, os esforços devem se dar no sentido da
reintegração familiar dos abrigados o mais rápido possível. No entanto, o retorno
da criança e/ou do adolescente abrigado para sua família de origem foi visto
como um dos principais desafios por muitos dirigentes, que reconhecem que é
muito difícil interromper a dinâmica desemprego-vício-violação de direitos-
abandono.

“A convivência familiar só é possível se houver uma transformação no ambiente


familiar, não adianta tratar da criança se a família continuar doente” (relato de
um dirigente do MS entrevistado).
“O abrigo é a solução mais fácil para um problema de difícil solução” (relato de
uma dirigente da BA entrevistada).

Assim, foram investigadas junto aos dirigentes as principais dificuldades


enfrentadas por eles para o retorno das crianças e dos adolescentes para suas
famílias de origem. Mais de um terço das respostas (35,5%) dizem respeito às
condições sócio-econômicas das famílias, especialmente a pobreza. Em seguida,
a fragilidade, ausência ou perda do vínculo familiar (17,6%); e a ausência de
políticas públicas e de ações institucionais de apoio à reestruturação familiar
(10,8%). Por fim, o envolvimento com drogas corresponde a 5,7% das dificuldades
apresentadas, e a violência doméstica a 5,1% (tabela 5).

GRÁFICO 03
Brasil: importância das instituições para o trabalho desenvolvido nos abrigos*

205
205

*Entre nove opções apresentadas, os dirigentes de abrigos deveriam apontar a instituição que, no seu entendimento, era
a mais importante para o trabalho que realiza com crianças e adolescentes.

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
TABELA 05
Brasil: principais dificuldades para o retorno do abrigado à família de origem*

Dificuldades apontadas Percentual de menções

Pobreza/condições socioeconômicas precárias da família 35,5%

Rejeição familiar/família desaparecida/perda do vínculo em função da longa 17,6%


permanência no abrigo

Ausência de políticas públicas e de ações institucionais de apoio 10,8%


à reestruturação familiar

Drogas 5,7%

Violência doméstica 5,1%

Outros 25,3%

Não respondeu 7,2%

TOTAL 100,0%

* Foi pedido aos dirigentes de abrigos que citassem o que consideram a principal dificuldade para o retorno da criança
206 e do adolescente abrigados à família de origem (pergunta aberta, resposta única).

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Com relação a essas dificuldades, destaca-se que o principal impedimento


ao retorno das crianças e dos adolescentes a suas famílias – a pobreza – por si
não representa motivo para o abrigamento. Ressalvando-se que a pobreza pode
estar articulada com outros fatores determinantes da violação de direitos, visto
que a resposta dos dirigentes não era exclusiva, salienta-se que o Estatuto da
Criança e do Adolescente é claro ao afirmar que a falta ou carência de recursos
materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder
parental4. Quando os pais ou responsáveis não conseguem cumprir com suas
obrigações de proteção aos filhos por motivo de pobreza, o ECA estabelece a
obrigatoriedade de sua inclusão em programas oficiais de auxílio.

Somando-se essas dificuldades de natureza sócioeconomica com a referência


explícita dos dirigentes à ausência de políticas públicas de apoio ou auxílio às
famílias, chega-se a 46,3% das dificuldades apontadas. Isso indica que as políticas
de atenção a crianças e adolescentes como indivíduos não estão devidamente
articuladas com ações de atenção a suas famílias, o que poderia não apenas evitar
a institucionalização, como também abreviá-la, quando necessária.

4
Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 23.
Por sua vez, o segundo grupo de dificuldades apresentadas, relativo à
fragilidade dos vínculos familiares, aponta outra deficiência na implementação
da medida de proteção abrigo. A provisoriedade da medida, assim como a
promoção do fortalecimento dos vínculos com a família de origem, ou, em última
instância, a colocação em família substituta, são duas faces da mesma moeda. Ao
que tudo indica, os dirigentes dos programas de abrigo têm encontrado
dificuldades para a promoção e manutenção do direito à convivência familiar e,
provavelmente, não têm encontrado o necessário apoio junto a outras instituições
para fazê-lo, visto que não se deseja que atuem sozinhas no atendimento às
crianças e aos adolescentes abrigados.

207
207
BIBLIOGRAFIA

ANDI/ DCA-MJ/AMENCAR. Balas perdidas: um olhar sobre o comportamento


da imprensa brasileira quando a criança e o adolescente estão na pauta da violência. Brasília:
2001.

208
ARTE SOBRE FOTO DE JOSÉ VARELLA
CAPÍTULO 8

Os abrigos para crianças


e adolescentes e a promoção
do direito à convivência familiar
e comunitária

Enid Rocha Andrade da Silva, Simone Gueresi de Mello


209
e Luseni Maria Cordeiro de Aquino
210
8.1 INTRODUÇÃO

A Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em 1989 pelas Nações


Unidas, reconhece, em seu preâmbulo, “que a criança, para o pleno e harmonioso
desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de
felicidade, amor e compreensão”. A família é tida como “grupo fundamental da sociedade e
ambiente natural para o crescimento e o bem-estar de todos os seus membros, e em particular
1
das crianças”.

No Brasil, tanto a Constituição Federal de 1988, quanto o Estatuto da Criança


e do Adolescente (1990) determinam como dever da família, em primeiro lugar,
da comunidade, da sociedade em geral e do Estado assegurar a crianças e
adolescentes os seus direitos fundamentais, incluindo, entre eles, o direito à convi-
vência familiar e comunitária 2. Esse último é expresso da seguinte forma: “toda
criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente,
em família substituta”.3

É amplamente reconhecida a importância da família no cuidado e no bem-


estar de seus membros, uma vez que é o âmbito privilegiado e primeiro a
proporcionar a garantia de sobrevivência a seus integrantes, especialmente aos
mais vulneráveis, como crianças, idosos e doentes; o aporte afetivo fundamental
para o desenvolvimento infanto-juvenil e para a saúde mental dos indivíduos; a
absorção de valores éticos e de conduta; bem como a introdução das crianças na
cultura da sociedade em que estão inseridas.

No que diz respeito a crianças e adolescentes em situação de risco social ou


211
pessoal, a discussão sobre o seu direito à convivência familiar e comunitária deve
se dar, ainda, à luz de dois aspectos: (i) a definição de família a que se está referindo;
e (ii) a relevância singular que adquire a garantia desse direito a essa parcela da
população frente à histórica prática de institucionalização dos filhos de famílias
em situação de vulnerabilidade.

Com relação ao conceito de família, há que se ressaltar que a família


considerada como “padrão” ou “regular” raramente corresponde à diversidade

1
Vale lembrar que a convenção considera como “crianças” os menores de 18 anos, o que, na legislação brasileira,
corresponde a crianças (até 12 anos incompletos) e adolescentes (entre 12 e 18 anos).
2
Constituição Federal, art. 227. Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 4o.
3
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 19.
vivenciada na realidade social. Entretanto, com freqüência é o modelo tradicional
de família que orienta não apenas as políticas e as leis, mas também a maior parte
dos registros históricos e estudos científicos. Como bem coloca Fukui:

“Historicamente, no mundo ocidental, as formulações sobre como a família deve ser


couberam primeiramente à Igreja, depois ao Estado e posteriormente à própria ciência.
(...) Hoje podemos incluir neste elenco os meios de comunicação de massa como um dos
fatores que, se não são formuladores, são, no mínimo, divulgadores de idéias feitas
sobre a família” 4.

Philippe Ariés5 mostra o nascimento, na sociedade européia, do padrão


familiar que tanto influenciou o Ocidente e a sua relação com o avanço da per-
cepção sobre a infância e com a importância conferida às crianças no âmbito
familiar. Na época medieval, predominava, entre a classe dominante, a chamada
212 família patriarcal extensiva, na qual as relações de linhagem se sobrepunham em
importância à família nuclear. Pela indivisibilidade do patrimônio, reuniam-se na
mesma propriedade, em redor do patriarca – que tinha posses –, os filhos solteiros,
os casados e suas famílias, assim como irmãos, primos e cunhados. As crianças,
a partir dos seis ou sete anos, eram afastadas da família e encaminhadas a outras
casas, onde realizavam toda sorte de serviços domésticos e/ou aprendiam um
ofício. A família de origem, por sua vez, recebia os filhos de outrem, para o
mesmo fim. Essas crianças permaneciam afastadas da família até atingirem idade
entre 14 e 18 anos.6

O “sentimento de família”, como se conheceu na era moderna, não existia.


Assim, se nas classes mais abastadas eram a ambição e a prosperidade do
patrimônio que organizavam as relações familiares, para os pobres restava pouco
do que hoje se conhece como família:

“No caso de famílias muito pobres, ela [a família] não correspondia a nada além
da instalação material do casal no seio de um meio mais amplo, a aldeia, a fazenda,
o pátio ou a ‘casa’ dos amos e dos senhores, onde esses pobres passavam mais tempo
do que em sua própria casa (às vezes nem ao menos tinham uma casa, eram vagabundos
sem eira nem beira, verdadeiros mendigos)”.7

4
FUKUI, Lia. Família: conceitos, transformações nas últimas décadas e paradigmas. IN PALMA e SILVA, L. A.,
STANISCI, S. A. e BACCHETTO, S. Famílias: aspectos conceituais e questões metodológicas em projetos. Brasília:
MPAS/SAS; São Paulo: Fundap, 1998. p.16-17.
5
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos
Editora S.A., 1981.
6
ARIÉS. op. cit. p. 154.
7
ARIÉS. op. cit. p. 159.
A partir do século XV, mudanças importantes começaram a ocorrer: o
aprendizado doméstico foi aos poucos sendo substituído pela educação escolar;
os filhos passaram a ser mantidos mais próximos de casa; foram crescendo os
deveres atribuídos aos pais; e a família começou a se concentrar em torno de
suas crianças. Entretanto, esse foi um processo lento. Enquanto as famílias pobres
continuaram por muito tempo enviando seus filhos para exercer a função de
criados nas casas da nobreza, os ricos permaneceram mandando suas crianças às
amas de leite até quando os avanços da medicina e da higiene permitiram a
utilização do leite animal. É progressivamente e aos poucos que a família vai se
diferenciando e a vida privada de pais e filhos adquire relevância social, chegando-
se até a constituição da chamada família nuclear moderna.8

O Brasil herdou o modelo europeu de família nuclear, desprezando o sem-


número de outras experiências familiares encontradas entre os diferentes povos
indígenas ou trazidas pelos negros procedentes de várias nações africanas. A
visão de que indígenas e negros representavam raças inferiores e de que suas
práticas eram promíscuas e até “não-humanas”,9 que serviu tanto para explicar o
massacre da cultura indígena quanto para justificar a escravidão negra, contribuiu,
também, para reforçar a defesa da família extensiva patriarcal como ideal.

No período compreendido entre o início da República e meados do século


XX, a tese positivista da eugenia (melhoria da raça), os movimentos de
“higienização” da sociedade e os processos de modernização, urbanização e
industrialização aliavam-se à difusão do padrão da família nuclear burguesa como
a “nova família”, a família “moderna” que, obviamente, se contrapunha à maioria
da população brasileira: miscigenada, pobre, descendente de escravos e de 213
10
indígenas. Esse padrão foi reforçado pela influência religiosa, especialmente
católica, que pregava como modelo a família conjugal, com base no atrelamento
entre sexualidade, reprodução e casamento.11

A partir da década de 50, novos valores em torno do conceito de família


foram introduzidos com a aceleração da urbanização e o crescente processo de
industrialização. Por sua vez, fatores como as mudanças no ideário feminino
relativo ao casamento e a queda da fecundidade observada desde a década de

8
ARIÉS. op. cit.
9
NEDER, Gizlene. Ajustando o foco das lentes: um novo olhar sobre a organização das famílias no Brasil. IN
KALOUSTIAN, S. M. (org.) Família Brasileira, a base de tudo. 6 ed. São Paulo: Corte;. Brasília: UNICEF, 2004.
10
NEDER. op.cit.
11
FUKUI. op. cit.
1960 interferiram profundamente nas relações culturais de gênero. Acrescente-
se ainda o fato de que a crise econômica, iniciada nos anos 80, provocou o
desemprego em massa do homem adulto e a conseqüente intensificação da
participação feminina no mundo do trabalho, causando forte impacto sobre a
dinâmica intrafamiliar brasileira.

Tudo isso resultou na diminuição do tamanho das famílias e na diversificação


dos arranjos familiares que se observam hoje no país, destacando-se o aumento
do número de famílias monoparentais, das famílias compostas pelos cônjuges e
filhos de casamentos anteriores, de famílias compostas por membros de várias
gerações, dos domicílios multifamiliares (com várias famílias) e das unidades
individuais.

214 Entretanto, em que pesem as mudanças substanciais verificadas no decorrer


do século XX, ainda hoje predomina, no ideário da sociedade brasileira, o modelo
de família tradicional composto por “pai, mãe e filhos pequenos”. Os laços de
parentesco, por sua vez, ainda mantêm fortíssima influência na organização das
famílias brasileiras. Medeiros e Osório, analisando dados que vão de 1977 a
1998, mostram que a grande maioria dos arranjos domiciliares no Brasil está
baseada em relações de parentesco entre pelo menos dois dos moradores,
ressaltando que, em 1998, apenas 9,3% dos arranjos domiciliares não eram
familiares – maior índice do período.12

Vale registrar que a própria legislação brasileira reflete esta tendência,


preservando uma definição de família fortemente vinculada aos laços de sangue,
à relação conjugal e ao padrão nuclear. Para efeitos da proteção do Estado, a
Constituição Federal de 1988 reconhece como unidade familiar a que é constituída
pela “união estável entre o homem e a mulher”, assim como a comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes.13 O Estatuto da Criança e do
Adolescente referenda a definição constitucional, entendendo por família natural
“a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”.14

A família brasileira, no entanto, está em pleno processo de mudança, movida


por novos valores sociais que, muitas vezes, passam ao largo da legislação e das

12
MEDEIROS, M. e OSÓRIO, R. Arranjos domiciliares e arranjos nucleares no Brasil: classificação e evolução de
1977 a 1998. Texto para discussão no 788. Brasília: IPEA, abril de 2001.
13
Como exemplo de outras definições, cita-se a oficial do governo holandês para família: qualquer lar privado
composto por um ou mais adultos responsáveis pelo cuidado e pela educação de uma ou mais crianças (apud
GEORGE, S. e VAN OUDENHOVEN, N. Apostando al acogimiento familiar: um estúdio comparativo
internacional. Amberes (Bélgica); Apeldoorn (Países Bajos): Garant, 2003, p. 100).
14
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 25.
políticas públicas que para ela foram desenhadas. Levando-se em conta os diferentes
arranjos possíveis entre as relações de consangüinidade, de afinidade e de
descendência – como características de família – e extrapolando o limite da
coabitação, pode-se ter um efetivo avanço em relação ao estabelecido nas leis.
Assim o olhar flexível sobre a disposição de cada arranjo familiar, disposto a captar
sua singularidade e, principalmente, o que isso representa como potencial a ser
fortalecido pode contribuir para a construção de novas soluções para os problemas
vivenciados pela infância e pela adolescência brasileira em situação de risco.

Neste sentido, a discussão sobre o direito à convivência familiar das crianças


e adolescentes em situação de risco envolve questões ainda mais específicas,
relacionadas aos diferentes aspectos dos problemas por eles enfrentados. Em
primeiro lugar, é preciso considerar a prioridade a ser dada à manutenção da criança
ou do adolescente no arranjo familiar de origem, seja ele qual for, evitando-se a
separação e tudo o que isso implica. Em segundo, quando o afastamento é inevitável,
há que se pensar em como manter a vivência familiar, seja com a família da qual
foram afastados, seja com outras famílias.

Ao se falar em manutenção da criança e do adolescente no arranjo familiar de


origem, devem ser consideradas as situações de vulnerabilidade que podem resultar
em violação de direitos infanto-juvenis no próprio âmbito familiar, assim como a
atenção a lhes ser conferida a fim de evitar que o pior aconteça. O capítulo 2 desta
publicação, que retratou o perfil das crianças e dos adolescentes encontrados nos
abrigos pesquisados pelo “Levantamento Nacional”, mostrou que a maioria se
encontra nas instituições por motivos relacionados à pobreza e, conseqüentemente,
por falha ou inexistência das políticas complementares de apoio aos que delas 215
necessitam. Também foi tratada a relação entre pobreza e violência, destacando-se
que não existe causalidade linear entre esses dois fenômenos, mas que as condições
de pobreza podem potencializar fatores geradores de violência e de violação de
direitos preexistentes, assim como se constatou que a maioria das crianças e
adolescentes nos abrigos é vítima da violência estrutural. Portanto, tratar da
prevenção ao abandono e à institucionalização é falar das políticas de atenção às
famílias, majoritariamente às famílias pobres.

A família, como unidade essencial de organização na sociedade brasileira,


sofre as influências do desenvolvimento socioeconômico e da ação estatal por
meio das políticas públicas. E são as famílias pobres as mais negativamente afetadas
pela implementação das políticas econômicas de ajuste, a partir dos anos 90, e
pela ineficiência ou insuficiência das políticas sociais.
Essa família empobrecida tem peculiaridades na sua forma de organização –
é fortemente apoiada nas relações de solidariedade parental ampliada e conterrânea15
– e se caracteriza pela crescente diminuição da sua capacidade de proteção aos seus
membros16. Além disso, a dinâmica familiar, naturalmente marcada pela ocorrência
de entradas e saídas de integrantes, registra, no caso das famílias pobres, movimentos
ainda mais traumáticos, determinados pelas condições socioeconômicas e pela luta
pela sobrevivência: migrações em busca de novas oportunidades; institucionalização
de crianças, adolescentes, adultos e idosos; afastamento de pessoas por longos
períodos em função da ocupação exercida, como o trabalho doméstico, por exemplo,
entre inúmeras outras situações.17

Nos últimos anos, tem-se defendido de forma crescente que a família seja
priorizada nas políticas sociais, como forma de introduzir um olhar mais integrado
216 na garantia dos direitos sociais, para além do atendimento individual - e não em
substituição a ele. E, de fato, a família tem surgido como elemento organizador
de programas e ações de governo.

Entretanto, vale considerar que isso se dá justamente em um contexto de


crise do Estado no cumprimento de sua função social. Para Carvalho, ressurgem
a família e a comunidade quando “a crise do ‘Welfare State’, o déficit público, o
individualismo crescente, a institucionalização das necessidades individuais /
grupais e o desemprego estrutural” trazem desafios a serem enfrentados pelo
poder público. Neste contexto, reforçam-se as idéias da família “como unidade
econômica e direito da criança”, e da comunidade como parceira do Estado para
com ele “partilhar as responsabilidades e os custos das políticas públicas de proteção e reprodução
social de seus cidadãos”.18

A forma como a família surge no centro da agenda política representa um


avanço em relação ao passado conservador, em que a noção estereotipada de
família apoiava práticas segregadoras e discriminatórias, bem como em relação
ao atendimento dos indivíduos de forma fragmentada. Entretanto, alguns autores
chamam atenção para o risco de se transferir para o campo privado – representado

15
CARVALHO, M. C. B. A priorização da família na agenda da política social. IN : KALOUSTIAN, S.M. (org)
Família brasileira: a base de tudo. 1 reimpressão. São Paulo: Cortez; Brasília: Unicef, 1997.
16
CAMPOS, M. S. e MIOTO, R.C.T. Política de Assistência Social e a posição da Família na Política Social
Brasileira. Ser Social: Revista do Programa de Pós-Graduação em Política Social. Brasília, v.1, n.1 (1º semestre,
1988), UnB.
17
FERRARI, M. e KALOUSTIAN S. M. Introdução. IN KALOUSTIAN (org). op. cit.
18
CARVALHO. IN KALOUSTIAN (org). op. cit. p. 96.
pela família – as responsabilidades outrora assumidas pela esfera pública no
avanço das conquistas sociais. Com relação a isto, vale destacar o que colocam
Campos e Mioto:

“(...) a família se encontra muito mais na posição de um sujeito ameaçado do que de


instituição provedora esperada. E considerando a sua diversidade, tanto em termos
de classes sociais como de diferenças entre os membros que a compõem e de suas rela-
ções, o que temos é uma instância sobrecarregada, fragilizada e que se enfraquece ain-
da mais quando lhe atribuímos tarefas maiores que a sua capacidade de realizá-la”.19

Assim, a família não pode ser transformada em alternativa à ineficiência da


ação estatal ou à insuficiência do atendimento, pelo mercado, das demandas que
não lhe interessa atender. Para Campos e Mioto, as expectativas de solidariedade
centradas de forma irreal na família – como se esta nunca fosse falhar na atenção
e no cuidado àqueles que não estão inseridos na proteção do mundo do trabalho
– representam, na verdade, retrocessos na proteção social.20

É ao Estado que cabe proporcionar os investimentos para erradicar a miséria,


permitindo que as famílias pobres usufruam “de bens e serviços indispensáveis
à alteração da qualidade de vida e exclusão a que estão submetidas”21. Talvez,
assim, milhares de crianças e adolescentes que hoje vivem em instituições ou nas
ruas pudessem permanecer com seus familiares, em um ambiente de garantia e
proteção de seus direitos.

Entretanto, o Brasil é um país com tradição de atendimento institucional a


crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, tradição essa histo-
ricamente forjada na desqualificação da parcela da população a que pertencem, 217
em sua grande maioria pobre e procedente de etnias não-brancas. Instituições
religiosas e filantrópicas e, mais tarde, a própria ação estatal esforçaram-se para
promover a adaptação dessa população aos padrões considerados aceitáveis.
Contudo, essa estratégia não conferiu a essas pessoas condições de igualdade e
inclusão; pelo contrário, reforçou a idéia de sua presumida incapacidade para a
plena inserção na sociedade - o que, de certa forma, tornava natural a sua condição
de subalternidade.

19
CAMPOS e MIOTO. op. cit. p. 183.
20
op. cit. pp. 186-187.
21
CARVALHO. IN KALOUSTIAN (org). op. cit. p. 102.
Já no início do século XX, a chamada nova filantropia surge num movimento
de crítica à assistência caritativa, apontando inúmeros problemas no atendimento
oferecido. Entretanto, essa postura, em vez de depor contra os estabelecimentos
asilares, apenas justificava a sua transformação em instituições mais “disciplinadas”
e “disciplinadoras”. A colocação de crianças e adolescentes em instituições era
utilizada como medida de “proteção” contra os desvios causados pelas condições
sociais, econômicas e morais das famílias pobres (no caso dos preventórios) ou
como medida corretiva dos desvios já verificados (no caso dos reformatórios). E
assim se cristalizaram as experiências das chamadas instituições totais, onde
crianças e adolescentes viviam sob rígida disciplina e afastados da convivência
familiar e comunitária, visto que quase todas as atividades pertinentes a suas
vidas eram realizadas intramuros.22
218 O acolhimento de grande número de meninos e meninas em situação de
risco nas instituições era justificado pela economia de “escala”, pela possibilidade
de controle da aplicação dos recursos – o que não poderia ser feito se repassados
diretamente às famílias, uma vez que já haviam se mostrado “incapazes” no
cuidado dos filhos –, e pelo fato de proporcionar a educação moral que tais
crianças e adolescentes não teriam junto a seus familiares.

A partir da Constituição de 1998, da Convenção dos Direitos da Criança,


de 1989, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, estabeleceram-se
direitos para todas as crianças e adolescentes brasileiros indistintamente. Nesse
cenário, a manutenção em família e na comunidade passa a ser tratada como
prioritária, e se introduz a obrigatoriedade de promoção do direito à convivência
familiar e comunitária pelas entidades que oferecem programas de abrigo.

O “Levantamento Nacional de Abrigos” mostrou que mais de 80% das


crianças e dos adolescentes encontrados nessas instituições têm família, 23 o que
demonstra que a institucionalização se mantém, ainda, como caminho utilizado
indiscriminadamente e, muitas vezes, considerado como o único possível para a
proteção infanto-juvenil.

No Brasil, a superação da aplicação indiscriminada de medidas que acarretam


o afastamento de crianças e de adolescente de suas famílias de origem tem pela

22
RIZZINI, Irma. Assistência à infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Ed. Universitária
Santa Úrsula, 1993.
23
Sobre isso, ver o capítulo 2 deste livro.
frente um longo caminho a ser trilhado. Vicente24, ao tratar da insistência de
instituições em manter a denominação orfanato – ainda que a grande maioria das
crianças e adolescentes atendidos tenha família – chama atenção para o fato de
que “ao orfanizar a clientela, explicita-se uma mentalidade segundo a qual a família miserável
é ignorada ou tratada como inexistente”.

De acordo com o estabelecido no ECA, a separação provisória de crianças


e adolescentes de suas famílias é uma medida de proteção. Assim, a legislação
internacional e a brasileira prevêem a retirada do ambiente familiar exclusivamente
quando isso se mostrar necessário para o bem-estar da criança ou do adolescente.
O ECA, por exemplo, determina que o poder familiar poderá ser suspenso nos
casos em que os pais não cumprirem, injustificadamente, com suas obrigações
enquanto guardiões. Ainda assim, isso se dará mediante a instauração de um
processo judicial, com direito à ampla defesa.

A legislação brasileira tem como regra geral a convivência de crianças e


adolescentes com suas famílias naturais. Conforme já citado anteriormente, o artigo
19 do ECA é explícito ao indicar que toda criança e todo adolescente brasileiro
“tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta.”
Nos casos em que seus direitos estão ameaçados ou já foram efetivamente violados,
o estatuto prevê, no artigo 101, uma série de medidas que antecedem e procuram
postergar ou evitar a suspensão do poder familiar. Entre essas citam-se, por exemplo,
o encaminhamento da criança ou do adolescente aos pais, mediante termo de
responsabilidade; a inclusão da família em programas oficiais de auxílio; e a fre-
qüência obrigatória da criança à escola. No rol dessas medidas, consideradas
preventivas ao abrigamento e à destituição do poder familiar, o ECA estabelece, 219
como última opção a ser adotada, a colocação em família substituta, o que pode se
dar mediante as forma de guarda, tutela e adoção.25

No que se refere à colocação em família substituta, no Brasil não existe a


tradição de acolhimento familiar de crianças e adolescentes em situação de risco
em contraposição ao abrigamento institucional. Assim, a forma mais usual de
colocação acaba sendo a adoção, o que, diferentemente da guarda e da tutela,
implica a destituição do poder familiar original. Isso significa a ruptura definitiva
dos vínculos familiares desses meninos e meninas, impossibilitando seu retorno

24
VICENTE, C. M. O direito à convivência familiar e comunitária: uma política de manutenção do vínculo. IN
KALOUSTIAN (org). op. cit. p. 53.
25
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 101 e art. 28.
ao seio de suas famílias de origem. É por isso que a adoção é a última opção
estabelecida no ECA, a ser aplicada apenas quando as chances de manutenção
ou recuperação dos vínculos com a família de origem não existem mais.

Com efeito, na busca de garantir o direito à convivência familiar e comunitária


a crianças e adolescentes privados do convívio com seus pais e como alternativa
à destituição imediata do poder familiar, uma primeira opção a ser considerada é
o acolhimento por outros membros da família da criança ou adolescente em
risco (a chamada família extensiva). Outra forma de propiciar vivência em família
para esta população seria o acolhimento por famílias voluntárias, que têm surgido
em vários lugares do mundo - sobretudo na Europa, e mais recentemente no
Brasil – sob as denominações de famílias acolhedoras, guardiãs, madrinhas, entre
outras.
220
Na avaliação de uma e outra opção, valem ser destacadas as considerações
de Pasztor e Barbell. Como vantagens do acolhimento pela família extensiva
citam: a manutenção na própria família; a redução dos traumas da separação e da
colocação com pessoas desconhecidas; a preservação da identidade cultural; e a
redução dos transtornos de adaptação. Por outro lado, apontam como desvantagens
dessa alternativa sobre a colocação em outras famílias a menor proteção contra
pais abusivos e o menor apoio profissional, seja do Estado, seja de outras
organizações.

É importante esclarecer que o acolhimento por outras famílias pode ser


formal, quando acompanhado e regulamentado pelo Estado, ou informal, quando
implementado por costumes ou pela cultura social. George e Van Oudenhoven26
trabalham, ainda, com a idéia de dois níveis de acolhimento familiar, de primeira
e segunda ordem, que podem ajudar no entendimento desse tipo de iniciativa.

O acolhimento de primeira ordem se refere aos intervenientes primários do


processo, ou seja, à própria criança ou ao adolescente; os pais acolhedores e sua
família nuclear; e os integrantes da família biológica do acolhido. O acolhimento
de segunda ordem refere-se àqueles que “acolhem os que acolhem”: os técnicos
sociais e as instituições responsáveis pelo programa; outros profissionais, como
médicos e professores, envolvidos com as crianças e os adolescentes em questão;
os operadores dos marcos legais do acolhimento; as estruturas estatais da rede de

26
GEORGE, S. e VAN OUDENHOVEN, N. Apostando al acogimiento familiar: um estúdio comparativo
internacional. Amberes (Bélgica); Apeldoorn (Países Bajos): Garant, 2003, pp.19-20.
apoio; e o consenso social de que crianças e adolescentes devem ser socializados
em família, o que legitima o acolhimento familiar como eficaz.

Nos chamados países em desenvolvimento, o acolhimento formal é muito


menos utilizado do que nos países desenvolvidos, onde já existe uma prática
consolidada nesse sentido, especialmente na Europa. De fato, nos primeiros,
constata-se que vários níveis do acolhimento de segunda ordem são frágeis ou
inexistentes. Por isso, são freqüentes as práticas de acolhimento informal, não
reguladas pelo Estado, sendo as crianças e os adolescentes acolhidos sem incentivos
financeiros, sem apoio profissional e sem procedimentos reguladores.27

Destaca-se, ainda, que, onde há forte tradição de acolhimento informal


baseada em ditames sociais implícitos, verifica-se uma maior resistência ao
acolhimento formal supervisionado pelo Estado. Os incentivos financeiros baixos
ou inexistentes não “compensariam” a interferência estatal. Além disso, como
são contextos em que a burocracia do Estado tende a ser lenta, reforça-se a
opção pelo acolhimento informal, ou, como é o caso do Brasil, pela conhecida
“adoção à brasileira”, que consiste em registrar uma criança como filho natural
sem tê-lo concebido, como forma de evitar a burocracia de um processo regular
de adoção.

De qualquer forma, nos casos de acolhimento por famílias voluntárias a


mediação de uma autoridade formalmente reconhecida – diferença básica entre
o acolhimento formal e informal – é muito importante quando a autoridade
social difusa é frágil e quando os benefícios do acolhimento informal são anulados
pela eventual ocorrência de violação de direitos nos lares acolhedores. E ainda:
quando a quantidade de crianças e adolescentes a ser atendida extrapola a oferta
221
informal de famílias voluntárias.

No Brasil, a prática do chamado acolhimento informal é bastante antiga,


registrada desde o período colonial. Moncorvo Filho28 cita, por exemplo, que os
primeiros bebês entregues à “Roda” da Santa Casa foram criados fora da
instituição, por famílias da sociedade local, que o fizeram em sinal de benevolência.
Até os dias atuais, pesquisas mostram que entre as classes populares, nas várias
regiões do país, ainda é bastante freqüente a criação de crianças e adolescentes

27
GEORGE, S. e VAN OUDENHOVEN, N. op.cit. pp.20-21.
28
MONCORVO FILHO, Arthur. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500-1922. Rio de Janeiro: 1926.
p. 40.
por avós, tias, madrinhas ou por outras pessoas que se propõem a fazê-lo29,
registrando-se que esta prática de acolhimento na família extensiva ocorre sem
qualquer mediação jurídica.

Quanto ao acolhimento formal, ainda que não sejam amplamente conhecidas,


há registro de experiências brasileiras. Com freqüência, as crianças abandonadas
na “Roda” eram enviadas a mulheres “criadeiras”, que recebiam um pagamento
para suprir as despesas com os acolhidos.30 Ainda que houvesse denúncias de
exploração e maus-tratos praticados por muitas dessas mulheres, acreditava-se
que o envio de crianças a elas contribuía para reduzir o índice de mortalidade
infantil verificado quando as crianças permaneciam por muito tempo aglomeradas
nas Santas Casas de Misericórdias.

222 No início do século XX, conheceu-se outra forma de acolhimento familiar,


que permitia ao juiz determinar a colocação de adolescentes do sexo feminino
em casas de família, geralmente para a realização de serviços domésticos. Em
troca, deveria ser depositado mensalmente um valor destinado a garantir o futuro
da jovem. Esta prática, no entanto, recebia muitas críticas devido às denúncias de
exploração e abusos empreendidos 31.

Outro registro histórico importante de acolhimento familiar formal no país


refere-se à Lei de Colocação Familiar, de 1949, que criou o Serviço de Colocação
Familiar no estado de São Paulo, inspirado nos modelos europeus. As avaliações,
contudo, registram que seu funcionamento foi precário devido à insuficiência de
recursos financeiros e de recursos humanos capacitados; ao aumento crescente
da demanda; e à incompreensão da sociedade sobre o caráter provisório do
acolhimento - razões que também contribuíram para sua extinção.32

Em boa medida, a constatação dos problemas apontados nessas práticas


contribuiu para a defesa da institucionalização no país. No entanto, nas últimas
décadas do século XX, no bojo da implementação das diretrizes de proteção
integral do Estatuto da Criança e do Adolescente, o acolhimento familiar começou
a ser resgatado em outras bases. E, deve-se ressaltar, seu ressurgimento se dá no
âmbito das críticas à institucionalização.

29
BRASIL, E. D. O conceito de acolhimento familiar na ótica de diversos atores estratégicos. Distribuído no Colóquio
Internacional sobre Acolhimento Familiar. Rio de Janeiro, abril de 2004. <cópia>
30
BRASIL, E. D. op. cit. p.4. RIZZINI, Irene e RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil:
percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio. São Paulo: Loyola, 2004. p. 24.
31
Ver RIZZINI, Irma, 1993. p. 28.
32
BRASIL, E. D. op. cit.
Embora o acolhimento formal por famílias voluntárias ainda seja incipiente
no Brasil, já existem experiências implantadas em alguns estados (como Rio de
Janeiro, São Paulo, Ceará, Santa Catarina), funcionando como formas alternativas
ao abrigamento institucional. São experiências diferentes - umas mais, outras
menos consolidadas como políticas públicas - e contam, em geral, com a partici-
pação de organizações não-governamentais, de forma mais ou menos protagonista.

É preciso destacar que o acolhimento em famílias voluntárias não se apresenta


como substituto ao atendimento institucional ou às políticas de adoção. Ao contrário,
representa mais uma opção na busca de garantir a convivência familiar e comunitária
a crianças e adolescentes em situação de abandono social. Mesmo nos países com
experiências de acolhimento familiar mais consolidadas, não existe consenso de
que esta opção seja a ideal, devendo ser generalizada para todos os casos ou
implicando a eliminação do abrigamento institucional. George e Van Oudenhoven
chamam a atenção para os casos em que a prática de acolhimento em famílias
voluntárias é levada ao extremo nesses países, chegando ao ponto de se negligenciar
o investimento no bem-estar de crianças e adolescentes em suas famílias biológicas,
o que poderia prevenir a eventual separação entre pais e filhos:

“O sistema de acolhimento freqüentemente trata as famílias com dificuldades de mo-


radia, renda e acesso à saúde como incapazes ou negligentes para cuidar de seus pró-
prios filhos. É irônico que crianças e adolescentes em acolhimento geralmente estejam
melhor economicamente do que aqueles que permanecem com suas famílias de origem”.33

De outro lado, citam o caso de crianças e adolescentes portadores de defi-


ciências mentais e físicas severas ou com sérios transtornos de conduta e emocio-
nais que podem ter dificuldade de serem acolhidos por famílias voluntárias ou de
223
se adaptarem a elas34. Há também situações em que pais biológicos ainda atuantes
na vida da criança ou do adolescente podem preferir a instituição, temendo a
perda do vínculo ou a interferência cultural caso seus filhos fiquem com outra
família35.

Assim, o acolhimento institucional continua sendo uma opção alternativa


dentro da política de atendimento a crianças e adolescentes em situação de risco,
seja pela inexistência de outras opções de acolhimento - como é comum nos

33
Krysik apud GEORGE e VAN OUDENHOVEN. op.cit. p. 29.
34
GEORGE e VAN OUDENHOVEN. op. cit.
35
Salienta-se, sobre este último ponto, que essa reação é mais freqüente onde os limites familiares são pouco
permeáveis, como, por exemplo, em famílias imigrantes cuja cultura e religião sejam muito diferenciadas das
famílias acolhedoras. (GEORGE e VAN OUDENHOVEN. op. cit. p. 44)
países em desenvolvimento -, seja nos casos em que as instituições que prestam
atendimento em regime de abrigo o fazem de forma adequada, respeitando os
direitos individuais e sociais da população que acolhem.

Considerando-se que o atendimento em abrigos ainda cumpre, especialmente


no Brasil, papel importante no cuidado com crianças e adolescentes em situação
de risco, é fundamental humanizar o cuidado institucional por meio do incentivo
ao reordenamento dos programas existentes. As mudanças a serem implementadas
passam pela superação do enfoque assistencialista, fortemente arraigado nesses
programas, em direção a modelos que contemplem ações emancipatórias, com
base na noção de cidadania e na visão de crianças e adolescentes como sujeitos
de direitos.

224 O ECA estabeleceu princípios que exigiram de muitas instituições atuantes


na área o início de um processo de mudanças em direção à readequação de seus
programas. Especial ênfase é dada ao direito fundamental à convivência familiar
e comunitária, cuja violação implica em uma das principais privações a que são
submetidas crianças e adolescentes abrigados em entidades.

Nesse sentido, na seção seguinte são analisados aspectos da organização


dos programas de abrigo pesquisados que possibilitam indicar seu nível de
adequação às diretrizes de reordenamento estabelecidas no ECA. Com relação à
convivência familiar, consideram-se quatro quesitos: (i) preservação dos vínculos
com a família de origem; (ii) apoio à reestruturação familiar; (iii) incentivo à
convivência com outras famílias, e (iv) semelhança residencial dos abrigos. No
que se refere à convivência comunitária, são considerados: (i) a realização de
ações que visam à participação de crianças e adolescentes na vida da comunidade
local e (ii) a realização de ações que proporcionam a participação de pessoas da
comunidade no processo educativo do abrigo.
8.2 OS ABRIGOS DA REDE SAC E A PROMOÇÃO DO
DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

8.2.1 Quantos promovem a preservação dos vínculos


familiares?

A família é, reconhecidamente, fundamental no trabalho de proteção integral


a crianças e adolescentes. Quando há necessidade de afastamento do ambiente
familiar e meninos e meninas passam a viver, temporariamente, em uma instituição
de abrigo, os esforços devem ser direcionados para que a reintegração se dê no
menor tempo possível e, especialmente, para que as referências familiares não
sejam perdidas. Para tanto, é importante que os programas de abrigo implementem
medidas orientadas para o fortalecimento e a manutenção dos vínculos afetivos
entre as crianças e os adolescentes abrigados e suas famílias.

Para avaliar o esforço desses programas em promover a preservação dos


vínculos familiares, foram considerados dois grupos de ações desenvolvidas pelas
instituições: (i) de incentivo à convivência das crianças e dos adolescentes com
suas famílias de origem; e (ii) de não-desmembramento de grupos de irmãos
abrigados, em cumprimento ao princípio previsto no ECA.

Como pode ser observado na tabela 1, ainda que tenham sido encontrados
índices elevados de instituições que praticam alguns dos itens isoladamente,
somente 5,8% dos abrigos pesquisados realizam todas as ações consideradas
nesses dois grupos.
225
Com relação ao primeiro grupo de ações, referentes ao incentivo à convi-
vência dos abrigados com suas família, 79,8% das instituições mantêm informa-
ções sistematizadas sobre as famílias dos abrigados, tais como: endereço, renda,
organização familiar, trabalho, visitas, irmãos abrigados ou registro de acompa-
nhamento psicossocial; 65,9% promovem visitas das crianças e dos adolescentes
aos lares de suas famílias; e 41,4% permitem a visitação livre das famílias ao
abrigo, sem datas e horários preestabelecidos. No entanto, quando considerado o
número de instituições que praticam os três critérios conjuntamente, o percentual
se reduz para apenas 25,5%.

Com relação a esses aspectos, a análise por regiões brasileiras revela que, no
Nordeste, o percentual de instituições que atendem a todos os quesitos é quase o
dobro da média nacional: 44,6%. No Centro-Oeste, ao contrário, essa proporção
é a metade (12,2%) do percentual para o país, e na região Sul é de 18%. A região
Norte tem 32% de abrigos que atendem aos três critérios, e o Sudeste, 22,1%.

O não-desmembramento de grupos de irmãos foi o segundo grupo de ações


considerado. Estabelecido pelo ECA como um dos princípios para o atendimento
em instituições de abrigo, tem particular importância na preservação dos vínculos
familiares visto que, quando indicada a medida de proteção em regime de abrigo
a irmãos, a separação entre eles pode agravar a sensação de abandono e
rompimento vivenciadas pelas crianças e adolescentes afastados de suas famílias.

TABELA 01
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC por incentivo à
226 preservação dos vínculos familiares (%)

CRITÉRIOS Regiões brasileiras Brasil


CONSIDERADOS Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

1. INCENTIVO À CONVIVÊNCIA COM A FAMÍLIA DE ORIGEM

1.1. Mantêm informações 64,0% 79,5% 84,8% 80,3% 53,7% 79,8%


sobre as famílias de
origem

1.2. Promovem visitas de 64,0% 74,1% 63,0% 69,7% 53,7% 65,9%


crianças e adolescentes aos
lares de suas famílias

1.3. Permitem visitas 64,0% 74,1% 33,2% 23,8% 48,8% 41,4%


livres dos familiares
ao abrigo

ATENDEM AOS TRÊS CRITÉRIOS 32,0% 44,6% 22,1% 18,0% 12,2% 25,3%

2. NÃO-DESMEMBRAMENTO DE GRUPOS DE IRMÃOS ABRIGADOS

2.1. Priorizam a manutenção ou 64,0% 49,1% 69,2% 68,0% 54,0% 63,8%


reconstituição de grupos
de irmãos

2.2. Organizam-se sob 56,0% 50,0% 62,3% 71,3% 70,7% 62,1%


agrupamento vertical
(intervalo entre idades
mínima e máxima maior
do que 10 anos)

2.3. Atuam em regime de co- 72,0% 42,9% 63,0% 72,1% 75,6% 62,3%
educação (meninos e
meninas)

ATENDEM AOS TRÊS CRITÉRIOS 32,0% 15,2% 32,2% 39,3% 36,6% 30,7%

1+2 8,0% 4,5% 6,2% 5,7%


5,7% 4,9%
4,9% 5,8%
5,8%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Das instituições pesquisadas, 63,8% afirmam priorizar a manutenção ou a
reconstituição de grupos de irmãos, enquanto 62,1% adotam o modelo de
“agrupamento vertical”, predominando uma diferença superior a dez anos entre
a maior e a menor idade de atendimento. Esse intervalo etário foi considerado
suficientemente amplo para permitir o acolhimento de irmãos em diferentes idades.
Além disso, 62,3% oferecem atendimento misto, recebendo tanto meninos quanto
meninas, aspecto que também facilita o acolhimento de irmãos. O universo de
instituições que atende aos três critérios conjuntamente representa apenas 30,7%
do total.

Esse percentual de instituições encontrado no cruzamento dos três aspectos


considerados não tem variação significativa entre as regiões brasileiras, com
exceção do Nordeste, onde apenas 15,2% cumprem simultaneamente todos os
critérios.

8.2.2 Quantos apóiam a reestruturação familiar?

Além do fortalecimento e da manutenção dos vínculos afetivos entre os


abrigados e seus familiares, outro aspecto se mostra importante para a garantia
do direito à convivência familiar das crianças e dos adolescentes em abrigos: a
busca da reestruturação de suas famílias. Assim, pais, mães e responsáveis poderão
desenvolver as condições para receber seus filhos de volta, superadas as
dificuldades que determinaram o afastamento.

A reestruturação familiar envolve fatores complexos, relacionados à


superação do desemprego e da dependência de drogas, por exemplo, que
227
demandam muito mais de outras políticas públicas do que do esforço isolado
das instituições de abrigo. No entanto, considera-se que essas entidades podem
realizar ações de valorização da família, bem como buscar estabelecer a conexão
e a inserção dos familiares na rede de proteção social disponível e nas demais
políticas públicas existentes.

No que se refere às ações realizadas com esse objetivo, o “Levantamento


Nacional” revelou que 78,1% das instituições pesquisadas realizam visitas
domiciliares às famílias das crianças e dos adolescentes sob sua responsabilidade;
65,5% fazem acompanhamento social dessas famílias; 34,5% organizam reuniões
ou grupos de discussão e de apoio para os familiares dos abrigados; e 31,6%
encaminham as famílias para inserção em programas oficiais ou comunitários de
auxílio/proteção à família. Também aqui, se considerarmos as instituições que
realizam todas essas ações conjuntamente, o percentual se reduz para apenas
14,1% do total pesquisado, sendo que, nas regiões Nordeste e Sul, a proporção
de instituições é ainda menor: 9,8% em cada uma delas (tabela 2).

TABELA 02
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC por apoio à
reestruturação familiar (%)

CRITÉRIOS Regiões brasileiras Brasil


CONSIDERADOS Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

1. Realizam visitas domiciliares 80,0% 82,1% 77,5% 80,3% 63,4% 78,1%

2. Oferecem acompanhamento 72,0% 61,6% 68,9% 65,6% 48,8% 65,5%


228 social

3. Organizam reuniões ou 24,0% 46,4% 35,6% 23,8% 31,7% 34,5%


grupos de discussão e apoio

4. Encaminham para inserção 36,0% 19,6% 35,3% 34,4% 26,8% 31,6%


em programas de auxílio/
proteção à família

1+2+3+4 16%
16,0% 9,8%
9,8% 17%
17,0% 9,8%
9,8% 17,1%
17,1% 14,1%
14,1%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

8.2.3 Quantos incentivam a convivência com outras


famílias?

A colocação em família substituta é uma forma de garantir o direito à


convivência familiar de meninos e meninas a quem foram aplicadas medidas de
abrigo.36 Configura-se, assim, como opção importante frente à tradicional prática
brasileira de institucionalização de crianças e adolescentes em situação de risco,
condenados a viver grande parte de suas vidas privados de qualquer vivência
familiar.

Entretanto, a colocação em família substituta envolve importantes questões


adicionais. No âmbito das entidades, é preciso superar a cultura de que, havendo
problemas familiares, o melhor lugar para crianças e adolescentes é uma instituição,

36
O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece como princípio a ser seguido pelas entidades de
abrigo “a colocação em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem”
(Lei 8.069/90, art. 92, inc. II).
onde podem “ter melhores condições de vida”, o que resulta em certa
“apropriação” de meninos e meninas pelas entidades. Além disso, dos abrigos
depende a avaliação periódica das condições de reintegração à família de origem
e a rápida comunicação às autoridades judiciárias quando esgotadas essas
possibilidades, para que sejam providenciadas, quando for o caso, a destituição
do poder familiar e a colocação em família substituta.

Por outro lado, é necessário problematizar as concepções sociais na tentativa


de mudar os mitos em torno da adoção de crianças e adolescentes – que tem
como ideal a adoção de bebês fisicamente parecidos com os pais adotivos. O
predomínio de tal padrão social e cultural é um dos principais fatores responsáveis
pelo fato de grande parte das crianças e dos adolescentes negros maiores de sete
anos permanecerem nos abrigos até a maioridade. Além disso, é importante rever
o paradigma de que a colocação em família substituta só é possível via adoção.
Existem opções intermediárias, não definitivas, como os programas de
apadrinhamento e de famílias acolhedoras, que são alternativas para propiciar o
convívio em ambiente familiar para crianças e adolescentes que estão sob medida
de abrigo, mas cujas chances de retorno à família de origem ainda existem.

Mesmo que a colocação em família substituta não dependa exclusivamente


do trabalho das instituições de abrigo, estas podem desempenhar um papel
fundamental nesse processo. Como pode ser observado pelas informações da
tabela 3, a promoção da convivência de crianças e adolescentes abrigados com
outras famílias - por meio do desenvolvimento conjunto de ações como o incentivo
à integração em família substituta, a elaboração e envio de relatórios periódicos
para as Varas da Infância e a implementação de programas de apadrinhamento - 229
é realizada por apenas 22,1% do total de instituições pesquisadas. Essa proporção
é menor na região Nordeste, onde apenas 9,8% das instituições pesquisadas
atendem a todos os quesitos considerados. A região Sudeste tem percentual de
27%; o Sul, de 23%; o Norte, de 20%; e o Centro-Oeste, de 19,5%.

Analisando-se os critérios isoladamente, nota-se que 51,8% dos abrigos


afirmaram incentivar a integração em família substituta sob as formas de guarda,
tutela ou adoção. Deve ser ressaltado que apenas a autoridade judicial pode
determinar a colocação em famílias substitutas. Entretanto, sabe-se que, enquanto
existem instituições que mantêm uma relação estreita e periódica com a Justiça e
que recebem bem famílias interessadas em adoção ou em outra forma de
acolhimento, há aquelas em que as equipes das Varas da Infância e da Juventude
são vistas como concorrentes capazes de “roubar-lhes” as crianças e/ou em que
os interessados em conviver com os abrigados enfrentam um sem-número de
desestímulos e obstáculos para consegui-lo.

Nesse sentido, 42,4% das entidades pesquisadas afirmaram enviar relatórios


periódicos para a Justiça da Infância e da Juventude, o que é imprescindível para
que se concretize a provisoriedade da medida de abrigo, visto que, da mesma
forma que apenas a autoridade judiciária pode determinar o abrigamento, somente
ela pode adotar outra medida de proteção, incluindo a reintegração familiar e a
colocação em família substituta.

Os programas de apadrinhamento – alternativa de referência familiar para


crianças e adolescentes abrigados – são utilizados por 81,5% das instituições

230 pesquisadas. Existem dois diferentes tipos de programas de apadrinhamento: os


que de fato promovem a convivência da criança ou do adolescente com a família-
madrinha, propiciando encontros, passeios e trocas afetivas; e aqueles que
representam apenas o apoio financeiro à instituição, podendo ocorrer sem um
único contato entre o afilhado e seus padrinhos. Vale registrar que essas diferenças
não foram captadas no “Levantamento Nacional”. Assim foram incluídas nesse
critério todas as instituições que afirmaram implementar programas de apadrinha-
mento à época da coleta de dados da pesquisa.

TABELA 03
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC por incentivo à
convivência com outras famílias que não a de origem (%)

CRITÉRIOS Regiões brasileiras Brasil


CONSIDERADOS Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

1. Incentivam a integração em 60,0% 29,5% 58,5% 57,4% 43,9% 51,8%


família substituta (guarda,
tutela ou adoção)

2. Enviam relatórios periódicos 36,0% 37,5% 45,7% 44,3% 31,7% 42,4%


para a Justiça da Infância e
da Juventude

3. Mantêm programas de 88,0% 60,7% 89,6% 86,9% 61,0% 81,5%


apadrinhamento

1+2+3 20%
20,0% 19,8%
9,8% 27,0%
27% 23%
23,0% 19,5%
19,5% 22,1%
22,1%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
8.2.4 Quantos estão organizados à semelhança de uma
residência?

Estudos sobre o atendimento massificado a crianças e adolescentes realizado


nas instituições que recebem grande número de abrigados têm revelado os custos
que tal situação neles acarreta: carência afetiva, dificuldade para estabelecimento
de vínculos, baixa auto-estima, atrasos no desenvolvimento psicomotor e pouca
familiaridade com rotinas familiares. Esses aspectos, se vivenciados por longos
períodos, representam não apenas uma violação de direitos, mas deixam marcas
irreversíveis na vida dessas crianças e desses adolescentes, que, com freqüência,
não adquirem sentimento de pertencimento e enfrentam sérias dificuldades para
adaptação e convívio em família e na comunidade.

As diretrizes para reordenamento de abrigos recomendam que as instituições


busquem oferecer um acolhimento que seja o mais semelhante possível ao de
uma rotina familiar. As entidades não devem, por exemplo, manter placas ou
faixas externas que as identifiquem como abrigos. Da mesma forma, a construção
deve aparentar uma residência comum. Os grandes pavilhões, símbolo dos antigos
orfanatos, devem ser esquecidos.37 Por outro lado, é fundamental que o atendi-
mento ocorra em pequenos grupos, o que permite olhar para as características de
cada criança ou adolescente, bem como para as especificidades de suas histórias
de vida.

No “Levantamento Nacional” foram selecionados alguns critérios para


analisar se os abrigos pesquisados atendem ao quesito de semelhança a residências
comuns, utilizando-se informações referentes a: (i) estrutura física da entidade; e
(ii) atendimento em pequenos grupos.
231
No primeiro grupo, relativo à estrutura física, foram considerados aspectos
que permitissem avaliar a aproximação em relação à organização residencial.
Analisando-se cada item individualmente, obtém-se o seguinte quadro das
instituições: 66,9% apresentam características residenciais externas, ou seja,
possuem pelo menos uma edificação do tipo “casa”; 86,4% possuem, no máximo,
seis dormitórios; 18% acomodam, no máximo, quatro crianças e adolescentes
por dormitório; 85,6% possuem espaços individuais para que crianças e
adolescentes possam guardar seus objetos pessoais; e 54,0% não possuem áreas

37
Para uma análise mais detalhada sobre as características físicas dos abrigos pesquisados, assim como sobre os
critérios considerados, ver o capítulo 5 desta publicação.
exclusivas para serviços especializados – consultório médico, gabinete odon-
tológico, salas de aula e oficinas profissionalizantes (tabela 4).

A análise individual dos critérios selecionados para verificar a adequação


da estrutura física aponta para elevados percentuais de instituições que têm
conseguido cumpri-los isoladamente; no entanto, quando se analisa a proporção
de instituições que conseguem atender aos cinco critérios conjuntamente,
encontram-se apenas 9,3% do universo pesquisado. A situação em todas as regiões
é semelhante, havendo poucas variações em relação à média nacional. Apenas as
regiões Centro-Oeste e Sudeste têm percentuais superiores: 12,2% e 10,7%,
respectivamente. Nas outras regiões, a parcela de entidades que atendem todos
os critérios é menor: 9% no Sul; 8% no Norte; e apenas 5,4% na região Nordeste.
(tabela 4)
232
TABELA 04
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC por critérios de
semelhança residencial (%)

CRITÉRIOS Regiões brasileiras Brasil


CONSIDERADOS Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

1. ESTRUTURA FÍSICA

1.1. Têm aspecto externo com 76,0% 54,5% 66,1% 77,0% 70,7% 66,9%
características residenciais

1.2. Têm no máximo 06 dormitórios 96,0% 79,5% 88,2% 86,9% 85,4% 86,4%

1.3. Acomodam no máximo 04 12,0% 12,5% 18,7% 21,3% 22,0% 18,0%


crianças e adolescentes por
dormitório

1.4. Possuem espaços individuais 84,0% 81,3% 87,2% 85,2% 87,8% 85,6%
para guarda de objetos pessoais

1.5. Não possuem áreas exclusivas 80,0% 39,3% 55,0% 66,4% 46,3% 54,8%
para serviços especializados

ATENDEM AOS CINCO CRITÉRIOS 8,0% 5,4% 10,7% 9,0% 12,2% 9,3%

2. ATENDIMENTO EM PEQUENOS GRUPOS

2.1. Atendem até 25 crianças e 96,0% 53,6% 64,0% 80,3% 65,9% 66,9%
adolescentes

2.2. Mantêm proporção de até 12 72,0% 64,3% 79,6% 76,2% 39,0% 72,8%
crianças e adolescentes por
responsável

ATENDEM AOS DOIS CRITÉRIOS 72,0% 40,2% 55,0% 67,2% 36,6% 54,2%

1+2 8,0% 3,6% 9,0% 9,0% 9,8% 8,0%

8,0% 6,2% 5,7% 4,9%


Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Com relação ao atendimento em pequenos grupos, foram considerados
dois quesitos: (i) o número de crianças e adolescentes por programa de abrigo; e
(ii) a relação entre o total de crianças e adolescentes abrigados e o número de
profissionais responsáveis pelos cuidados cotidianos com eles.

Ainda que o ECA não estabeleça um número exato para o que se considera
pequenos grupos, diretrizes de reordenamento adotadas em algumas localidades
do país por iniciativa do respectivo Conselho Municipal de Direitos da Criança e
do Adolescente indicam um máximo de 20 a 25 abrigados por unidade de
atendimento. A maior parte dos abrigos da Rede SAC pesquisados se enquadram
nesse critério, visto que 66,9% deles atendem até 25 crianças e adolescentes.

Quanto aos cuidados cotidianos, considerou-se como adequada a relação


de um profissional responsável (pais sociais, educadores, monitores) para até 12
crianças e adolescentes. A parcela de abrigos que atende esse critério é de 72,8%.
A proporção que atende aos dois itens considerados – até 25 abrigados por
unidade e até 12 abrigados por profissional - alcança 54,2% do total pesquisado.

Entretanto, considerando os dois grupos de critérios selecionados, observa-


se que apenas 8% dos abrigos atendem simultaneamente todos os itens relativos
à semelhança residencial. A análise por regiões mostra que quatro delas têm
percentuais de atendimento aos critérios bem próximos à média nacional: 9,8%
no Centro-Oeste; 9% no Sudeste e no Sul; e 8% no Norte. A região Nordeste,
por sua vez, tem proporção inferior à metade da média nacional: apenas 3,6%
das instituições nessa região respondem aos quesitos considerados.

233
8.3 OS ABRIGOS DA REDE SAC E A PROMOÇÃO
DO DIREITO À CONVIVÊNCIA COMUNITÁRIA

8.3.1 Quantos estimulam a participação na vida da


comunidade local?

Durante muitos anos, a colocação de crianças e adolescentes em instituições


se configurava como instrumento de privação de liberdade, visto que esses espaços
funcionavam como instituições totais onde todas as atividades e serviços eram
desenvolvidos dentro dos muros das entidades – educação, atenção à saúde,
lazer (quando existia).

234 O ECA indica como princípio a ser seguido no atendimento em abrigos a


participação na vida da comunidade, que deve ser concretizada pela garantia de
acesso dos abrigados às políticas básicas e aos serviços oferecidos para a comu-
nidade em geral, bem como por meio da participação das crianças e dos ado-
lescentes em atividades oferecidas pela comunidade, tais como: lazer, esporte,
religião e cultura. Isso proporciona a convivência comunitária, evitando-se a
alienação e inadequação à vida em sociedade.

O “Levantamento Nacional” mostra um quadro preocupante nesse sentido:


apenas 6,6% dos abrigos pesquisados utilizam todos os serviços disponíveis na
comunidade, tais como: creche, ensino regular, profissionalização para adoles-
centes, assistência médica e odontológica, atividades culturais, esportivas e de
lazer, e assistência jurídica. Neste aspecto, a maioria dos abrigos (80,3%) ainda
oferece pelo menos um desses serviços diretamente (de forma exclusiva) dentro
do abrigo (tabela 5).
TABELA 05
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC por utilização de
serviços existentes na comunidade local (%) *

UTILIZAÇÃO DE SERVIÇOS Regiões brasileiras Brasil


EXTERNOS Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

1. Utilizam serviços 12,0% 1,8% 5,5% 12,3% 7,3% 6,6%


especializados existentes na
comunidade para oferecer:
creche; ensino regular;
profissionalização para
adolescentes; assistência
médica e odontológica;
atividades culturais, esportivas
e de lazer; e assistência
jurídica.

2. Oferecem pelo menos 68,0% 86,6% 83,0% 75,4% 65,9% 80,3%


um dos serviços
exclusivamente no abrigo.

3. Não sabem/não responderam/ 20,0% 11,6% 11,4% 12,3% 26,8% 13,1%


não oferecem nenhum dos
serviços considerados

*Deve-se ressaltar que o percentual de abrigos que utilizam serviços externos em cada tipo de serviço foi encontrado
sobre o total de abrigos que oferecem esse serviço. Além disso, estão incluídos entre os que utilizam serviços externos
aqueles que os oferecem, também, internamente.

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

8.3.2 Quantos propiciam a participação de pessoas da


comunidade no projeto pedagógico?
235
A participação de pessoas da comunidade nas atividades internas da insti-
tuição proporciona a garantia do direito à convivência comunitária, facilitando o
estabelecimento de novos vínculos e relações, bem como a oxigenação das práticas
e rotinas institucionais.

Nesse sentido, foram considerados dois critérios de participação comunitária


no abrigo. Primeiro, a existência de trabalho voluntário no âmbito dos serviços
complementares: acompanhantes, cabeleireiros, costureiros, estagiários,
orientadores espirituais/religiosos, professores de atividades diversas (artes
plásticas, culinária, dança, esportes, informática, línguas, música, teatro, trabalhos
manuais etc.), professores de reforço escolar, recreadores e afins.38 Segundo, a
inserção da instituição de abrigo em um contexto espacial com disponibilidade
de serviços e equipamentos comunitários.

A análise mostrou que 31,7% dos abrigos pesquisados no Brasil contam


com trabalho voluntário na realização de serviços complementares, e 89,5%
apresentam inserção espacial adequada do ponto de vista da disponibilidades de
serviços e equipamentos comunitários. Considerando-se os dois critérios con-
juntamente, alcança-se uma proporção de 27,5% de instituições em relação ao
total pesquisado (tabela 6).

TABELA 06

236 Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos da Rede SAC por participação de
pessoas da comunidade no processo educativo (%)

CRITÉRIOS Regiões brasileiras Brasil


CONSIDERADOS Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

1. Possuem trabalho voluntário 16,0% 29,5% 37,7% 23,0% 31,7% 31,7%


na equipe de serviços
complementares

2. Possuem vizinhança com 96,0% 91,1% 91,0% 86,9% 78,0% 89,5%


disponibilidade de serviços
comunitários

1+2 16,0% 24,1% 34,6% 18,9% 19,5% 27,5%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

38
A análise dos recursos humanos dos abrigos foi feita a partir de seis agrupamentos de funções/profissões: (i)
equipe técnica; (ii) equipe de cuidados diretos com as crianças e adolescentes; (iii) apoio operacional; (iv)
administração institucional; (v) serviços especializados; e (vi) serviços complementares. A escolha apenas dos
serviços complementares para análise de participação da comunidade no abrigo se deu em função das
especificidades de cada grupo, bem como por coerência com outros critérios aplicados em outros itens analisados.
Em alguns grupos, como a equipe de cuidados diretos e a equipe técnica, por exemplo, a existência de voluntários
pode vir a comprometer o trabalho realizado se a dependência deste tipo de profissional for elevada. Em outros,
não é interessante que se desenvolvam as funções correspondentes dentro do próprio abrigo, como no caso dos
serviços especializados; outros, ainda, não são imprescindíveis nem diretamente ligados ao processo educativo,
como administração institucional e apoio operacional, não podendo ser, portanto, critérios excludentes. Para
maiores detalhes sobre o quadro de recursos humanos dos abrigos pesquisados, ver capítulo 4.
8.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se viu ao longo deste capítulo, a família no Brasil – seu conceito e


arranjos na realidade social -, sofreu mudanças substanciais no decorrer do século
XX. Vários fatores contribuíram para isto, dentre os quais podem ser citados: (i)
o aumento da urbanização e o crescimento industrial, a partir da década de 50,
que modificaram a sociedade brasileira de forma muito profunda, ao introduzirem
novos valores sociais; (ii) o declínio da fecundidade, que alterou, sobremaneira, o
tamanho das famílias; (iii) a elevação da participação da mulher no mercado de
trabalho; (iv) a crise econômica das duas últimas décadas que, ao diminuir o
poder aquisitivo das famílias, altera as relações entre os sexos no contexto familiar,
por meio da entrada massiva da mulher no mercado de trabalho e pelo maior
índice de desemprego masculino, contribuindo para o aumento das separações
conjugais e para a elevação no número de famílias monoparentais; e (v) a trans-
formação dos valores tradicionais sobre o ideário feminino relativo ao casamento,
que contribuiu para o aumento das famílias unipessoais e das famílias formadas
por mulheres vivendo sem cônjuge e com filhos.

Na sociedade brasileira, o modelo da família nuclear tradicional, representado


por pai, mãe e filhos, coexiste com uma diversidade de outros arranjos familiares
que, geralmente, são desqualificados por não corresponderem ao padrão familiar
valorizado socialmente.

No tocante ao objetivo de restabelecer o direito à convivência familiar de


crianças e adolescentes em situação de abandono, é importante que as políticas 237
públicas, os agentes sociais e as instituições que ofertam serviços para esta popu-
lação considerem e respeitem a diversidade dos arranjos familiares encontrados.
O fortalecimento e a valorização desses arranjos podem evitar o rompimento
drástico de seus vínculos e a conseqüente fragmentação e abandono de seus
membros.

A história sobre a infância em risco no Brasil mostra que as políticas públicas


voltadas para esta área sempre priorizaram a institucionalização em detrimento
de políticas de reconstrução e de fortalecimento dos vínculos familiares. A visão
predominante sempre foi a da incapacidade das famílias empobrecidas de cuidar
e de proteger sua prole.
As experiências de acolhimento de crianças e adolescentes na modalidade
de guarda por famílias voluntárias são ainda muito escassas no Brasil e carecem
de apoios técnicos e financeiros, bem como da normatização do Estado, para
que possam, de fato, adquirir status de política pública e se transformar em opção
segura ao acolhimento institucional.

Embora o acolhimento familiar sob a forma de guarda seja, na maioria das


vezes, preferível ao acolhimento institucional, por proporcionar um atendimento
mais individualizado, ainda não há um consenso sobre a sua aplicação generali-
zada, uma vez que sempre haverá situações onde o acolhimento institucional
será necessário (crianças portadoras de deficiências severas, de transtornos
emocionais graves, inexistência de famílias voluntárias, entre outras).

238 Assim, o acolhimento por famílias voluntárias foi aqui entendido como
uma alternativa adicional no âmbito das políticas de atendimento a crianças e
adolescentes em situação de risco. Desta forma, o acolhimento institucional, sob
a forma de abrigo, desde que adequado aos preceitos do ECA, ainda cumpre um
papel muito importante no cuidado de crianças e adolescentes em situação de
abandono. Reconhece-se, no entanto, a necessidade do estabelecimento de diretri-
zes claras para o seu reordenamento. Tais diretrizes deveriam ter como norte a
garantia da convivência familiar e comunitária, que representa a principal privação
das crianças e adolescentes que vivem hoje nos abrigos do país.

A partir da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, essa si-


tuação foi instada a mudar. Embora muitas instituições de abrigo já tenham
implementado inúmeras melhorias no sentido de se adequar ao ECA, o retrato
dos abrigos da Rede SAC revelado pelo “Levantamento Nacional” mostra que
ainda há muito por fazer para que todas as crianças ali abrigadas tenham direito
à convivência familiar e comunitária.

A tabela 7, a seguir, traz um resumo dos critérios selecionados para avaliar


o esforço dos abrigos pesquisados na promoção do direito à convivência familiar
e comunitária. Como pode ser observado, de maneira geral, os percentuais de
programas de abrigo que atendem aos critérios selecionados são muito baixos.
Apenas 5,8% realizam as duas ações consideradas importantes para a “preservação
dos vínculos familiares dos abrigados”. Em relação às ações de “apoio à
restruturação familiar”, apenas 14,1% das instituições pesquisadas implementam
ações nesta direção. As instituições que promovem ações visando a “convivência
dos abrigados com outras famílias” atingem 22,1% do total pesquisado. No quesito
“semelhança residencial”, foram encontradas somente 8% de instituições que
têm estrutura física semelhante a de uma residência comum e que, ao mesmo
tempo, atendem a um pequeno número de crianças e adolescentes abrigados.

TABELA 07
Brasil: resumo da situação dos abrigos da Rede SAC quanto à promoção do direito
à convivência familiar e comunitária

CRITÉRIOS CONSIDERADOS ABRIGOS QUE


ATENDEM (%)

PRESERVAÇÃO DOS VÍNCULOS FAMILIARES 5,8%

Incentivam a convivência com a família de origem

Não desmembram grupos de irmãos abrigados

APOIO À REESTRUTURAÇÃO FAMILIAR 14,1%

Realizam visitas domiciliares

Oferecem acompanhamento social

Organizam reuniões ou grupos de discussão e apoio

Encaminham para inserção em programas de auxílio/proteção à família

INCENTIVO À CONVIVÊNCIA COM OUTRAS FAMÍLIAS 22,1%

Incentivam a integração em família substituta (guarda, tutela ou adoção)

Utilizam programas de apadrinhamento

Enviam relatórios periódicos para a Justiça da Infância e da Juventude

SEMELHANÇA RESIDENCIAL 8,0%

Têm estrutura física semelhante à de uma residência

Prestam atendimento em pequenos grupos


239
PARTICIPAÇÃO NA VIDA DA COMUNIDADE LOCAL 6,6%

Utilizam serviços existentes na comunidade

PARTICIPAÇÃO DE PESSOAS DA COMUNIDADE NO PROCESSO EDUCATIVO 27,5%

Possuem trabalho voluntário na equipe de serviços complementares

Possuem vizinhança com disponibilidade de serviços comunitários

CONVIVÊNCIA FAMILIAR CONVIVÊNCIA COMUNITÁRIA

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Quanto à “participação na vida da comunidade local”, observou-se que
apenas 6,6% dos programas de abrigo pesquisados utilizam o conjunto de serviços
públicos disponíveis na comunidade (saúde, educação, lazer, profissionalização,
entre outros) para as crianças e adolescentes sob sua proteção . O quesito relativo
à “participação de pessoas da comunidade no projeto pedagógico” foi aquele
que alcançou o maior percentual de adequação (27,5%).

240
8.5 BIBLIOGRAFIA

ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro:


LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1981.

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Distribuído no Colóquio Internacional sobre Acolhimento Familiar. Rio de Janeiro,
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da Família na Política Social Brasileira. Ser Social: Revista do Programa de Pós-Graduação
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Rio de Janeiro: Ed. Universitária Santa Úrsula, 1993.

242 RIZZINI, Irene e RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil:


percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio. São Paulo:
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manutenção do vínculo. IIN: KALOUSTIAN, S. M. (org.) Família Brasileira, a base de
tudo. 6 ed. São Paulo: Corte;. Brasília: UNICEF, 2004.
ARTE SOBRE FOTO DO ACERVO IPEA
Na foto, Nilzete de
Almeida Camurugi
Meneses(73 anos),
do abrigo
Instituto La Irmã
Benedita Camurugi,
Salvador - BA

CAPÍTULO 9

O voluntariado nos abrigos:


uma profissão de fé
Nathalie Beghin e Anna Maria Tiburcio Medeiros Peliano

243
244
9.1 INTRODUÇÃO

A legislação brasileira descreve o trabalho voluntário como uma “atividade


não-remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza
ou instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais,
educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive,
mutualidade” (Lei 9.608 de 1998). Nestes termos, destaca-se que o “Levantamento
Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC”1, realizado
pelo IPEA em 2003, revelou a presença significativa do voluntariado na
implementação de um direito social, qual seja, o de acolhimento, proteção e
assistência a crianças e adolescentes em situação de risco social ou pessoal.2

Com efeito, os dados da pesquisa mostram que a maior parte dos abrigos é
dirigida por voluntários e conta com trabalhadores não-remunerados no seu quadro
de profissionais. Tentar dimensionar e qualificar esse voluntariado é o objetivo
do presente ensaio. Busca-se, pois, responder a questões como: quem são esses
voluntários – dirigentes ou prestadores de serviço -, onde estão, que atividades
realizam e em que medida os abrigos dirigidos por voluntários atendem
satisfatoriamente às exigências do ECA no que se refere à promoção do direito à
convivência familiar e comunitária do qual gozam todas as crianças e todos os
adolescentes. Trata-se de contribuir para o debate sobre a relação público/privado
no bojo das preocupações com a formulação de políticas públicas, envolvendo 245
arranjos entre o Estado e a sociedade que assegurem a realização dos direitos
sociais básicos.

1
O “Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC” foi realizado pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, em 2003. Tal iniciativa foi promovida pela Secretaria Especial dos
Direitos Humanos - SEDH da Presidência da República, por meio da Subsecretaria de Promoção dos Direitos
da Criança e do Adolescente do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda.
Contou, ainda, com o apoio do Ministério da Assistência Social - MAS e do Fundo das Nações Unidas para a
Infância - Unicef. A pesquisa buscou conhecer as características, a estrutura de funcionamento e os serviços
prestados pelos abrigos beneficiados com recursos do Governo Federal repassados por meio da Rede de Serviços
de Ação Continuada (Rede SAC) do Ministério da Assistência Social. Foram pesquisadas 626 instituições, em
todas as regiões brasileiras, sendo que, destas, 589 ofereceram programa de abrigo para crianças e adolescentes
em situação de risco pessoal ou social. Para maiores esclarecimentos sobre a metodologia da pesquisa, ver o
capítulo 1 do presente livro.
2
Conforme definição contida no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.
Com o intuito de contribuir para enfrentar tal discussão, o presente texto
está divido em duas partes. A primeira trata da recente “redescoberta” do
voluntariado no Brasil, como no resto do mundo. Um passo inicial para quem se
propõe a abordar esta temática é contar um pouco de história. Neste sentido, a
primeira seção oferece uma breve retrospectiva de como o voluntariado vem
sendo entendido ao longo do tempo no país. O que se observa é que a prática de
atividades não remuneradas ainda é carregada de ambigüidades e tensões.
Apresentar alguns dos principais contornos do debate atual é, pois, o objetivo da
segunda seção: de um lado, o entendimento de que o serviço voluntário se insere
num modelo de gestão da pobreza, associado a práticas clientelistas ou de
assistencialismo paliativo distintas da lógica dos direitos sociais; e, de forma
contrária, a defesa de que o voluntariado pode ser protagonista de transformações

246 sociais na medida em que contribui para a construção de uma nova cidadania
baseada em valores como a solidariedade. A terceira seção se dedica a ilustrar o
perfil do voluntariado no Brasil. É importante registrar que, apesar do crescente
interesse que o tema vem despertando tanto no país como no exterior, ainda são
poucas as pesquisas sobre este tema.

Na segunda parte do texto são apresentados os dados sobre o trabalho não-


remunerado nos abrigos financiados com recursos do Governo Federal, oriundos
da pesquisa realizada pelo IPEA. Faz-se mister ressaltar que, como a pesquisa
em tela não tinha o voluntariado como objeto central de investigação, a análise
dos dados sobre o trabalho não-remunerado no âmbito dos abrigos se dará dentro
dos limites da própria pesquisa. Para realizar o estudo, foram preparadas pelo
IPEA tabulações especiais referentes aos abrigos dirigidos por voluntários, aos
abrigos que contam com voluntários no seu quadro de profissionais e ao perfil
desses voluntários, entre outras. Apresenta-se, também, um conjunto de
indicadores que possibilitam verificar em que medida os abrigos dirigidos por
voluntários estão se adequando às diretrizes de reordenamento do atendimento a
crianças e adolescentes preconizadas pelo Estatuto dos Direitos da Criança e do
Adolescente – ECA.

Nas considerações finais, retomam-se os principais resultados da pesquisa.


Parte 1

A RECENTE “REDESCOBERTA” DO VOLUNTARIADO

9.2 O VOLUNTARIADO EM RETROSPECTIVA

9.2.1 A força da religião

O voluntariado no Brasil remonta ao início da colonização, associado


predominantemente à filantropia e à caridade, intimamente ligadas à Igreja
Católica. Isto porque origina-se com a chegada da Irmandade da Misericórdia e
a instalação das primeiras Santas Casas que, desde o século XVI, mantém hospitais
abertos à população. Criadas com preocupações caritativas e beneficentes e
voltadas para os grupos socialmente mais vulneráveis – órfãos, idosos, doentes
ou inválidos –, as obras religiosas, localizadas junto a conventos e igrejas,
ampliaram-se de forma acelerada nos séculos seguintes. E todas essas obras
contavam com o trabalho voluntário para prestar assistência aos pobres e
desvalidos.

Somente no final do século XIX, com a Proclamação da República (1889)


e a separação formal da Igreja Católica, o Estado brasileiro começou a incorporar
atribuições sociais. A partir dos anos de 1930, no contexto da ditadura do
presidente Getúlio Vargas e do avanço da industrialização, é que se observa o
crescimento da intervenção governamental no campo social. Para enfrentar os
problemas urbanos emergentes, o Estado passou a financiar organizações
247
beneméritas por intermédio de diversos mecanismos – vigentes até os dias de
hoje –, tais como subsídios, convênios, subvenções ou concessão de benefícios
(imunidades, isenções e dedutibilidade de doações). Trata-se, sobretudo, de um
modo de agir subsidiário à ação privada, isto é, uma prestação de serviços por
meio do co-patrocínio do fundo público às ações das entidades beneficentes.

Ao longo do século XX, a Igreja Católica prosseguiu investindo


sistematicamente na prestação de serviços sociais, a partir da construção de
equipamentos (como escolas, casas de saúde, asilos e abrigos) e de promoção do
trabalho voluntário (os milhares de voluntários das pastorais ou, ainda, os
vicentinos). Ainda hoje pode-se dizer de cada paróquia que abriga alguma obra
social. Segundo Fernandes (1994), a articulação de tantas instituições e projetos
no interior da Igreja Católica é objeto de uma organização especializada chamada
Caritas. Estruturada em 1950 como uma instância mundial, a Caritas Internacional
acompanha a estrutura complexa da Igreja, abrindo escritórios em cada país.
Assim, até os dias atuais, a Igreja Católica Romana predomina no campo do
voluntariado e dos serviços sociais não-governamentais.

É interessante registrar o recente crescimento, bem como a maior visibilidade


no cenário nacional, de outras crenças que vêm provocando transformações no
campo religioso. Com efeito, como ressalta Novaes (1998, p. 92), “não se pode
negar que está se modificando a histórica equação entre Catolicismo (religião oficial e dominante)
como ‘a’ agência supletiva e o Estado no que tange à assistência social”. Este é o caso, por
exemplo, da expansão das Igrejas Evangélicas nos últimos anos3. Segundo
Fernandes, “o crescimento dos evangélicos é o sinal mais espetacular de mudança de mentalidade
248 na região (América Latina) neste final de século. Iniciado por missões estrangeiras, em especial
norte-americanas, o evangelismo tornou-se um movimento endógeno, que cresce sobretudo através
de meios locais” (Fernandes: 1994, p. 124). Trata-se de um movimento minoritário,
mas com forte poder de convencimento; dirige-se particularmente aos pobres e
estimula o trabalho não-remunerado. Um outro exemplo pode ser dado pelos
espíritas que, com suas históricas obras sociais e vocação para o trabalho voluntário,
tornam-se cada vez mais visíveis. Para os seguidores dessa religião, a caridade “é
definida como o principal dos meios pelos quais se estabelece a evolução espiritual, servindo
imediatamente à salvação pessoal” (Giumbelli: 1998, p. 135). As religiões afro-
brasileiras, das quais as mais praticadas são o candomblé e a umbanda, devem
ser citadas igualmente: os terreiros são locais onde as pessoas vão em busca de
assistência material e onde se articulam formas de trabalho voluntário (Novaes:
1998; Corullón: 2002).

Em resumo, desde os tempos coloniais, fortaleceu-se um conjunto de


organizações não-governamentais de caridade, a maior parte delas de inspiração
religiosa, que consolidou práticas assistencialistas, clientelistas, de apadrinhamento
e de tutela. É por isso que, no Brasil, o voluntariado é quase sempre associado à
filantropia, entendida como o oposto de cidadania; é associado à manutenção do
status quo, a um modelo de gestão da pobreza e, não, de promoção da igualdade e
da reciprocidade.

3
Segundo dados censitários do IBGE, em 1991, 9% da população brasileira se declarava evangélica. Em 2002,
esse percentual elevou-se para 15%.
9.2.2 A contestação e a pressão por direitos

Na segunda metade do século XX, novas mudanças no campo social


começaram a ocorrer, atreladas a um maior ativismo político de novas
organizações que emergiram da sociedade e que buscaram se distanciar das práticas
sociais filantrópicas tradicionais. Com efeito, paralelamente à existência de um
voluntariado caritativo – que se estende até os dias de hoje –, surgiram no Brasil
nos anos de 1960 e, particularmente, na década de 1970, movimentos populares
assentados em um voluntariado de contestação à ditadura militar vigente e
alinhados ideologicamente às esquerdas. Ainda que múltiplos e diversos, esses
movimentos eram entendidos como “populares” na medida em que orientavam
sua atuação pela luta de classes. Trava-se de construir um contrapoder popular
ou uma força popular independente do Estado. Grande parte das reivindicações
desses movimentos refletia problemas urbanos, e é interessante observar que,
nesse processo, também foi fundamental a participação da Igreja Católica, mais
particularmente, da ala articulada à Teologia da Libertação (Fernandes: 1994;
Gohn: 1997; Peliano e Beghin: 2002).

Ao longo dos anos de 1980, em paralelo à democratização do país e ao


fortalecimento sindical, outros movimentos sociais de base mais transclassista
foram se consolidando e incorporando nas suas agendas diversas problemáticas
sociais, tais como a proteção à infância e à adolescência, o combate às discrimi-
nações de raça e de gênero, a proteção ao meio ambiente, o respeito às populações
indígenas e o combate às desigualdades e a pobreza. Aos poucos, esses segmentos
sociais foram abrindo espaços para uma nova forma de interlocução política
com o Estado. Neste sentido, na preparação da Constituição Federal, promulgada 249
em 1988, eles tiveram participação ativa, organizando-se em múltiplos grupos de
pressão4 que acabaram influenciando o conteúdo de muitas das leis vigentes no
país no sentido da ampliação dos direitos sociais básicos. No bojo dessas
conquistas cabe citar, por exemplo, os artigos 227 e 228 da Carta Magna, que
contemplam a proteção integral a crianças e adolescentes, bem como a
promulgação, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

4
Assim, por exemplo, em 1987, a criança é tema da Campanha da Fraternidade promovida pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. No processo constituinte, os movimentos sociais se articularam na
defesa dos direitos da criança e do adolescente dando prioridade a duas bandeiras de luta: Criança Constituinte
(1986) e Criança Prioridade Absoluta (1987). Ver CBIA/SP e IEE/PUC SP. Trabalhando Abrigos. Cadernos de
Ação nº 3. São Paulo: março/1993.
9.2.3 A “redescoberta” do voluntariado

A partir dos anos de 1990, observa-se uma inflexão no perfil do ativismo


social de pessoas e organizações. Como ressalta Landim (1998, p. 17), o pano de
fundo dessa inflexão “é global e bem conhecido, compreendendo fenômenos
também diversificados, como a redefinição do papel do Estado e o avanço da
lógica do mercado, com suas conseqüências sociais negativas; a queda do muro
de Berlim e a reorganização das sociedades do Leste Europeu; a diminuição do
prestígio e a desconfiança com relação às instituições político-representativas
tradicionais, como partidos e sindicatos; a intensificação de afirmações – e
discriminações – étnicas e religiosas; o recrudescimento da chamada exclusão
social, configurando-se o que, para alguns, é a nova questão social; a retomada e
revisão da questão da democracia e da cidadania, entre outras”. Neste contexto,
250 vem crescendo o entendimento de que, para além das reivindicações, é preciso
buscar coletivamente (Estado e sociedade) soluções alternativas e agir, já.

No Brasil, pode-se perceber essa mudança de comportamento, por exemplo,


no crescimento do ativismo social empresarial5 e de doações individuais,6 ou no
surgimento de iniciativas da sociedade muito pouco institucionalizadas, amplas,
espontâneas e descentralizadas, em favor de uma causa determinada. Este é o
caso, entre outros, do “Movimento pela Ética na Política”, que se notabilizou,
em 1992, no processo de impeachment do ex-presidente Collor, desdobrando-se
posteriormente no movimento da “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria
e pela Vida”. A “Ação da Cidadania”7 evocou o sentimento de solidariedade
nacional em favor dos excluídos e promoveu, entre outras atividades, inúmeras
campanhas de distribuição de alimentos em todo o país, impulsionadas pelo
sentimento de indignação contra a fome e a exclusão. Milhares de pessoas e de
instituições participaram voluntariamente da campanha: indivíduos comuns,
ONGs, sindicatos e centrais sindicais, artistas, igrejas e grupos religiosos, empresas

5
Segundo dados do IPEA (Peliano e Beghin, 2003), em 2000, 59% do total de empresas privadas formais no
país com mais de um empregado promoveram, em caráter não-obrigatório, algum tipo de ação social voltada
para populações mais pobres e, pelo menos 39% dessas empresas afirmaram que irão expandir suas atividades
sociais no futuro próximo.
6
A pesquisa coordenada por Landim e Scalon (2000) revela que as doações individuais tendem a crescer.
7
A expressiva participação da sociedade brasileira na “Ação da Cidadania”, também chamada de “Campanha
contra a Fome”, é resgatada por Landim (1998), ao apresentar os resultados de uma pesquisa realizada pelo
Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística – Ibope –, em 1993, segundo a qual, à época, 68% da
população brasileira maior de 16 anos declarava conhecer ou ter ouvido falar da campanha nacional contra a
fome. Além disso, 32% dessa mesma população informava ter participado ou contribuído para a campanha, de
alguma forma. Entre os que participaram ou contribuíram, 11% afirmavam pertencer a algum “comitê de
combate à fome”, a unidade básica de organização da “Ação da Cidadania”.
dos mais variados tipos – privadas e estatais, grandes e pequenas –, associações
comunitárias e profissionais, instituições filantrópicas, escolas e universidades,
dentre outros.

É neste contexto que vem aumentando o interesse pelo voluntariado


entendido como “um hábito de coração e uma atividade cívica” (Cardoso et alii,
2002). Dentre os disseminadores desta prática cabe destacar, por exemplo, a
iniciativa do Conselho da Comunidade Solidária – órgão presidido pela primeira-
dama do país e vinculado à Presidência da República na gestão do presidente
Fernando Henrique Cardoso, extinto pelo governo do presidente Lula em 2003
–, que criou o Programa Voluntários8 com o objetivo explícito de promover e
fortalecer a cultura e a prática do voluntariado no Brasil como expressão de uma
“cidadania participativa e transformadora”. Segundo os idealizadores do programa,
em 2002, existiam 36 Centros de Voluntários. Entre os desdobramentos desse
programa, cabe destacar, pela sua magnitude, o programa Amigos da Escola,
implementado em parceria com outras instituições, sobretudo com a Rede Globo
de Televisão, que conseguiu que mais de 30 mil escolas passassem a contar com
o apoio de voluntários.

A atenção crescente com o trabalho voluntário, no Brasil, pode ser detectada


em outro instrumento recente: a promulgação, em 1998, da Lei 9.608, que regula-
menta e institucionaliza a prestação deste tipo de serviço no país. Essa era uma
reivindicação antiga das organizações que adotam o trabalho voluntário na
prestação de serviços e que veio não só valorizar o voluntariado, mas, também,
contribuir no equacionamento das dificuldades de ordem trabalhista até então
freqüentemente observadas. 251
A “redescoberta” do voluntariado ocorre igualmente no cenário interna-
cional. Ilustra esse fato uma resolução das Nações Unidas que declara o ano de
2001 como Ano Internacional do Voluntariado. Segundo Douglas Evangelista –
diretor geral do programa de Voluntários das Nações Unidas (UNV) -, só muito
recentemente o voluntariado tem deixado a sua “condição de invisibilidade
histórica, após séculos de existência e frutífera manifestação” (Evangelista: 2002,
p 34). Os documentos oficiais das Nações Unidas apontam o trabalho voluntário
como uma prática onde todos ganham, na medida em que traz resultados positivos

8
Antes do Programa Voluntários, o último programa de abrangência nacional de estímulo ao voluntariado foi o
Programa Nacional do Voluntariado – Pronav. Coordenado pela ex-Legião Brasileira de Assistência Social –
LBA, era um programa governamental cuja presidência de honra cabia à primeira-dama do país. O Pronav
durou de 1979 até o início dos anos 1990 e chegou a ter mais de mil núcleos e 5,4 mil voluntários.
(i) para os voluntários individualmente; (ii) para as comunidades atendidas; e, (iii)
para o conjunto da sociedade, uma vez que contribui para o fortalecimento do
ativismo civil e político. Propaga-se que o trabalho voluntário colabora para o
desenvolvimento econômico e social; para o combate à exclusão social; e, para o
“empoderamento” das mulheres (Evangelista, 2002).

No Brasil, em 2001, em função do Ano Internacional do Voluntariado,


assistiu-se a uma grande mobilização em torno do tema, amplamente divulgada
pelos meios de comunicação. Não se tem uma clara dimensão de todo o esforço
empreendido mas, segundo informações do Instituto Brasil Voluntários9, até
meados daquele ano, a metade da população havia tomado conhecimento do
movimento e declarava que os benefícios gerados pelo trabalho voluntário eram
maiores do que os oriundos das doações em bens ou em dinheiro.
252
A recente “redescoberta” do voluntariado traz consigo a discussão sobre as
ambigüidades e ambivalências que caracterizam esse tipo de prática:
freqüentemente colocada no campo do clientelismo ou do assistencialismo
paliativo e contrário à lógica dos direitos sociais, aponta-se, de outro lado, para
seu peso na construção de uma nova cidadania baseada em valores como a
solidariedade.

9.3 ALGUMAS QUESTÕES DO ATUAL DEBATE:


VOLUNTARIADO COMO GESTÃO DA POBREZA OU
COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL?

Há uma diversidade de reflexões a respeito do significado do trabalho


voluntário. Para alguns estudiosos, o voluntariado é entendido como um meio
para resolução de problemas específicos. Este é o caso de grupos de ajuda-mútua.
Godbout ilustra bem essa vertente com o exemplo dos Alcoólicos Anônimos –
AA. Trata-se de uma rede mundial de voluntários que tem um único objetivo:
combater o alcoolismo de seus membros. Por sua eficácia, vem não só crescendo

9
Informações recolhidas pela pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Pesquisa – Ibope, para o
Instituto Brasil Voluntários, em agosto de 2001, em nove capitais do Brasil. Foram feitas 7.700 entrevistas com
pessoas de 10 anos ou mais, representativas da população.
desde sua criação, em 1935, nos Estados Unidos, como inspirando outros grupos
de ajuda-mútua que adotam sua abordagem (contra a toxicomania, a depressão,
a fase terminal de doenças). Os grupos de AA “estão hoje disseminados pelo mundo
inteiro. Constituem uma federação mundial, uma rede de redes inteiramente controlada pela
base, e os próprios grupos aproximam-se da democracia direta. Nenhum líder carismático,
nenhum guru, e sim, ao contrário, o anonimato, tanto para os fundadores do AA, cujos
sobrenomes são desconhecidos, quanto para os demais membros. É também uma instituição
moderna, já que os grupos não se baseiam num passado comum, na comunidade territorial ou
cultural dos membros, mas num problema específico” (Godbout: 1999, p 86).

Já para outros, a atuação dos cidadãos em diversos espaços sociais (na


comunidade, na igreja, nas associações, nas empresas) acaba por desresponsabilizar
o Estado de suas obrigações sociais. Um outro conjunto de estudiosos acredita
que a multiplicação de movimentos populares e o empoderamento de grupos
nas bases da sociedade é uma demonstração de mobilização política e democrática.
Outros avaliam, ainda, que o voluntariado é uma forma de uso racional dos
recursos; acreditam que a provisão de serviços sociais por meio de trabalho não-
remunerado é mais eficiente, menos custosa e mais próxima das preferências dos
usuários do que a pública-estatal.

No bojo dessas discussões, observa-se um interessante debate sobre a questão


do voluntariado: de um lado, os críticos, que qualificam a promoção do trabalho
não-remunerado como uma forma de disseminar atitudes e valores que reforçam
relações de submissão e tutela, um modelo de “gestão da pobreza”. De outro
lado, os que defendem uma nova forma de atuar, baseada na consolidação da
noção do direito à igualdade, onde o voluntário é percebido como um militante 253
ou um ativista civil e político. As duas vertentes de pensamento apresentam
concepções diferentes sobre (i) as motivações para o trabalho voluntário; (ii) a
percepção da pobreza; e (iii) o tratamento em relação aos beneficiários do tempo
doado.

Os críticos entendem que o trabalho voluntário se insere num modelo social


onde a pobreza é percebida como natural e as razões para aliviar seus efeitos
podem ser oriundas da ética (religiosa ou não), do sentimento de solidariedade
comunitária ou de um mal-estar pessoal dos que doam seu tempo. As motivações
para “ajudar o próximo” estariam no campo da caridade e ancoradas no sentimento
religioso ou na laicização da concepção católica de caridade. Na avaliação de
diversos autores, essa prática se insere na lógica do assistencialismo puro (Faleiros,
1997) ou do social-assistencialismo (Castel, 1998): busca criar redes de interde-
pendência entre os que doam e os que recebem. Como ilustra Castel (1998, p 319),

“A relação de ajuda é como um fluxo de humanidade que circula entre duas pessoas.
Evidentemente, esta relação é desigual, mas é nisso que reside seu interesse. O benfeitor
é um modelo de socialização. Por sua mediação, o bem se derrama sobre o beneficiário.
Este, por sua vez, responde com sua gratidão: o contato está restabelecido entre as
pessoas de bem e os miseráveis. (...) A relação de tutela instaura uma comunidade na
e pela dependência. O benfeitor e seu obrigado formam uma sociedade, o vínculo
moral é um vínculo social. (...) A virtude do rico funciona como cimento social que
filia novamente esses novos bárbaros que são os indigentes dos tempos modernos,
desmoralizados por sua condição de existência”.

254 A perspectiva caritativa do voluntariado, segundo seus detratores, apóia-se


no entendimento da menor capacidade dos mais pobres. A ajuda dada é uma prática
pontual, localizada e feita de forma discricionária, geralmente fundada numa
apreciação de bom comportamento e num julgamento moral dos pobres. O serviço
voluntário é aleatório e entendido como favor. O voluntariado baseado na caridade
reforçaria, assim, a idéia de que o Estado é incompetente para solucionar as mazelas
sociais e, portanto, desnecessário. Nessa economia política da caridade “estabelece-se
um comércio entre o rico e o pobre, com vantagem para as duas partes: o primeiro ganha sua
salvação graças à sua ação caridosa, mas o segundo é igualmente salvo, desde que aceite sua
condição” (Castel: 1998, p 65).

Nesta vertente, o voluntariado hoje, como dantes, não visa “transformar”,


mas trabalhar sobre a miséria do mundo capitalista, sobre os efeitos perversos do
desenvolvimento econômico. Tenta introduzir correções às contrafinalidades mais
desumanas da organização capitalista da sociedade, mas sem tocar em sua estrutura
(Castel: 1998); em outras palavras, atua-se somente para “administrar” ou
“gerenciar” a pobreza.

Esse tipo de interpretação vem, no entanto, sendo questionada por alguns


setores, inclusive religiosos10. Segundo Corullón (2002), diversas iniciativas buscam
estimular um protótipo de voluntariado diferente, baseado na participação, no
adensamento das formas de sociabilidade e de laços de solidariedade, na cobrança
dos direitos e num novo padrão moral e ético. O fenômeno da pobreza é consi-
derado como inaceitável, e a motivação para doar seu tempo é a da transformação

10
A esse respeito ver Giumbelli (1998) sobre a atuação de determinados segmentos do espiritismo.
social, isto é, a extensão da cidadania para todos. Entende-se que a intervenção
do Estado é indispensável, mas insuficiente frente ao tamanho e a natureza da
exclusão social; somente a união de esforços entre Estado e sociedade será capaz
de superar os principais impasses do país na área social.

Aldaíza Sposatti vislumbra um novo padrão de maioridade do voluntariado


ancorado num mix de inconformismo e indignação (com a desigualdade, a
discriminação, a pobreza, a cidadania restrita), de tolerância (com a diferença), de
ética social e de solidariedade. A autora propõe três tipos de ações voluntárias
para a transformação social, quais sejam: (i) ação vinculada, isto é, realizada em
parceria com as políticas públicas, de modo a qualificá-las, complementá-las e
exercer o controle social de seus procedimentos e orçamentos; (ii) ação de
cidadania, isto é, construindo uma nova relação com as instituições públicas,
valorizando o voto, construindo orçamentos participativos, combatendo a
corrupção, defendendo a ética pública, promovendo padrões de qualidade de
vida para todos, respeitando o espaço público; e, (iii) ação civilizatória, isto é,
construindo diversos valores como ética, estética e felicidade; trata-se de ações
de valorização da cultura, da arquitetura, da arte, da modernidade tecnológica e
digital, dos direitos. Para Sposatti, “a perspectiva de transformação social abre novos
campos para o voluntariado e não supõe, em absoluto, a redução do Estado, a fragilização de
suas atribuições, mas sim a direção da ação pela ética social, justiça social, cidadania e
solidariedade” (Sposatti: 2002, p 63).

Essa concepção de voluntariado, que apenas se anuncia, assenta-se numa


concepção ampliada de cidadania nascida no âmbito dos novos movimentos
sociais. Segundo seus defensores, a cidadania ampliada é potencialmente produtora 255
de uma nova cultura política, a da emancipação do que Santos (1999) chama de
todas as formas de opressão. A sociabilidade dela decorrente seria de reciprocidade,
isto é, operando num espaço de trocas sancionadas por um novo contrato social
onde a cidadania tanto se constitui na obrigação política vertical entre os cidadãos
e o Estado, como na obrigação horizontal entre cidadãos.

Por si só, somente essas duas concepções antagônicas reforçam a necessidade


de se aprofundar esta temática, inclusive porque, no mundo acadêmico, ainda
são poucas as reflexões sobre o assunto. Abordar o tema do voluntariado é de
certo relevante na medida em que o número de voluntários no Brasil, como se
verá logo a seguir, não é nada desprezível. Neste sentido, qualquer que seja a
maneira como os voluntários exercitam essa prática (resolvendo problemas
específicos, “gerindo” ou “transformando” a pobreza), suas motivações e formas
de atuação são aspectos centrais quando se quer entender como as questões
sociais são reguladas e como se definem e se delimitam os interesses privados e
a ação pública.

9.4 O VOLUNTARIADO EM NÚMEROS

Dos poucos estudos estatísticos sobre voluntariado existentes no Brasil, o


mais abrangente foi realizado por Landim e Scalon (2000)11. Os dados dessa
pesquisa apontam que, no Brasil, 23% dos adultos, o equivalente a 19,7 milhões
256 de pessoas, doam alguma parte de seu tempo para ajudar a outros, sendo que a
maioria desses voluntários – 13,9 milhões de indivíduos – presta serviços em
instituições. A pesquisa revela, ainda, que a média de horas doadas no país por
intermédio de trabalho voluntário é de seis horas mensais. Ainda segundo
Landim, nos Estados Unidos, considerados campeões do trabalho não-
remunerado, 49% dos adultos (ou 90 milhões de pessoas) doam, em média,
cerca de 17 horas por mês.

Para se ter uma idéia da dimensão deste voluntariado, faz-se um cálculo de


qual seria o valor médio dos salários destes trabalhadores caso fossem remu-
nerados12. Assim, em 2002, os recursos mobilizados pelos voluntários no Brasil
seriam da ordem de R$ 7,8 bilhões. A título de comparação, este valor é equivalente
ao total de recursos repassados pelo Governo Federal, naquele ano, para programas
de transferência direta de renda13.

11
Trata-se de uma pesquisa promovida, em 1998, pelo Instituto de Estudos da Religião – Iser em parceria como
o Instituto Brasileiro de Opinião e Pesquisa – Ibope a partir de uma amostra representativa da população brasileira
com 18 anos ou mais (1.200 entrevistas domiciliares), que vivia em cidades com mais de 10 mil habitantes
12
Segundo dados da PNAD, em 2002, o salário médio/hora bruto de trabalhadores dos setores de educação,
saúde, serviços sociais e outros serviços coletivos e sociais era de R$ 5,00 (são as ocupações que mais se aproximam
do tipo de trabalho realizado pelos voluntários). Se os voluntários no Brasil fossem remunerados pelo seu trabalho
ganhariam, individualmente, R$ 399,00 por ano (R$ 5,00 por hora, seis horas mensais, 12 meses mais 13º
salário e adicional de 30% de férias). Na medida em que são 19,7 milhões de voluntários, o volume de recursos
mobilizados chegaria a R$ 7,8 bilhões.
13
Segundo dados da Diretoria de Estudos Sociais do IPEA, em 2002, os programas de transferência direta de
renda de âmbito federal totalizaram recursos da ordem de R$ 7,8 bilhões distribuídos entre os seguintes programas:
Benefício de Prestação Continuada – BPC (R$ 3,4 bilhões), Renda Mensal Vitalícia – RMV (R$ 1,7 bilhão),
Bolsa-Escola (R$ 1,5 bilhão), Auxílio-Gás (R$ 0,680 bilhão), Bolsa Criança-Cidadã (R$ 0,275 bilhão), Bolsa-
Renda (R$ 0,160 bilhão), Bolsa-Alimentação (R$ 0,118 bilhão) e Agente Jovem (R$ 0,043 bilhão).
Segundo os dados de Landim e Scalon (2000), no Brasil o trabalho voluntário,
medido em horas de dedicação, se concentra em atividades referentes à manutenção
cotidiana da infra-estrutura da organização (53,7%): trata-se de trabalho de
escritório, como o de atendimento ao público, alimentação, limpeza e outros
serviços gerais, que não exigem maiores qualificações por parte do voluntário.
Seguem, num distante segundo lugar, atividades de captação de recursos (18,4%).
Em terceiro lugar, encontram-se ações ligadas a práticas religiosas (11,4%). É
bem menos freqüente a realização de atividades educativas e de treinamento
(4,5%), ou de cuidados pessoais (4%), ou, ainda, de prestação de serviços
profissionais (3%), compreendendo-se aí atividades qualificadas, tais como as
executadas por médicos, dentistas, advogados etc.

No que se refere ao campo de atuação, 58,7% do total de horas de trabalho


voluntário desenvolvem-se em instituições religiosas. A área de assistência social
ocupa o segundo lugar, com 16,7% das horas trabalhadas. Seguem-se as de
educação e desenvolvimento e defesa de direitos com 8,9% e 7,9%, respec-
tivamente. Tem ainda expressão a área de saúde, com 6,5% das horas doadas
pelos voluntários do Brasil.

Os dados da pesquisa mostram que os voluntários brasileiros são cidadãos


comuns, ainda que se observe entre eles uma maior proporção de adultos entre
35 a 54 anos, com nível de escolaridade correspondente ao segundo grau completo.
Vale ressaltar que as pessoas mais propensas a doar seu tempo são aquelas que
têm uma prática religiosa freqüente.

É interessante notar que a pesquisa captou as ambigüidades que perpassam o


voluntariado no Brasil, apontadas na seção anterior. Com efeito, foi registrada a
257
opinião dos entrevistados a respeito do trabalho voluntário, e os resultados revelaram
a predominância de uma opinião positiva sobre a ajuda não-remunerada. Revelaram,
também, que coexistiam duas lógicas: de um lado, proporções elevadas de
entrevistados fizeram afirmações referentes aos domínios da reciprocidade, da
obrigação moral e religiosa, bem como a formas integradoras de sociabilidade.
Mas, de outro lado, percentuais semelhantes de entrevistados responderam no sentido
do fortalecimento da cidadania e de resultados melhores para a sociedade. Essas
lógicas foram capturadas tanto entre os que declararam realizar trabalho voluntário
como entre os que afirmaram não realizar qualquer trabalho não-remunerado. E
mais: registra-se, também, o entendimento generalizado (mais de dois terços dos
entrevistados) de que “se o Governo cumprisse o seu dever, as pessoas não precisariam ajudar
os outros com atividades não remuneradas” (Landim e Scalon: 2000, p 68).
Landim e Scalon (2000, p 69) concluem que, quanto à ação social, as culturas
“estatizante” e de “caridade” convivem historicamente no país. Essas duas faces
da medalha – Estado ou caridade – deixaram pouco espaço para o reconhecimento
de uma ação “privada, porém pública”. Isso só recentemente vem se afirmando
com as idéias de cidadania ampliada. É no âmbito dessas ambigüidades que se
insere o voluntariado no Brasil.

Parte 2
258 O VOLUNTARIADO NOS ABRIGOS FINANCIADOS
PELA REDE SAC

9.5 COMO FOI REALIZADA A ANÁLISE?

Pela riqueza das informações contidas no “Levantamento Nacional de


Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC” é possível descortinar
aspectos bastante interessantes sobre o trabalho não-remunerado em abrigos que
contam com algum recurso federal. Para tanto, foram realizadas tabulações
especiais que permitem apresentar os seguintes resultados:

1. Um mapeamento dos abrigos que contam com voluntários entre seus


profissionais prestadores de serviços, procurando responder a indagações
como: quantos são e onde estão estes abrigos? Quantos voluntários trabalham
nestas instituições, que tipo de serviço prestam e qual sua participação no
programa de abrigo?

2. A presença do voluntariado na direção dos abrigos, buscando responder


as seguintes perguntas: qual o percentual de abrigos dirigidos por voluntários?
A localização do abrigo e sua vinculação com instituições confessionais
influenciam a opção por uma direção exercida em caráter voluntário?

3. Um perfil dos dirigentes de abrigos que trabalham em caráter voluntário


baseado em indagações, tais como: quais as principais características dos
dirigentes voluntários, destacando-se as motivações, idade, sexo, formação
e propensão a participar de fóruns ou conselhos voltados para crianças e
adolescentes? Qual o tempo que um dirigente voluntário dedica ao abrigo?

4. As especificidades regionais dos abrigos dirigidos por voluntários,


revelando a influência da localização geográfica no perfil do programa de
abrigos.

5. Uma análise dos abrigos dirigidos por voluntários no que se refere à


promoção do direito das crianças e dos adolescentes à convivência familiar
e comunitária. Trata-se de verificar em que medida as instituições que histo-
ricamente abrigaram crianças e jovens em situação de risco social e pessoal,
num enfoque predominantemente assistencialista, estão caminhando em
direção a modelos de atendimento mais emancipatórios, com base no concei-
to de cidadania e na visão de crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos.

A seguir, apresentam-se os principais resultados da análise do trabalho


voluntário praticado nos abrigos para crianças e adolescentes financiados com
recursos do Governo Federal.

9.6 UM MAPEAMENTO DOS ABRIGOS QUE RECORREM


AO TRABALHO VOLUNTÁRIO
259
9.6.1 O destaque é do Sudeste

Cerca de dois terços do total de 589 abrigos financiados com recursos da


Rede SAC contam com os serviços de profissionais voluntários: 375 instituições,
isto é, 64%, declaram ter pelo menos um voluntário.

A maior parte desses abrigos (58%) se encontra localizada no Sudeste; cerca


de um terço deles está no Nordeste (18%) e no Sul (14%). O Centro-Oeste e o
Norte, juntos, reúnem apenas 10% das instituições (7% e 3%, respectivamente)
(gráfico 1).
GRÁFICO 01
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos que contam com voluntários

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

260
Note-se que a localização geográfica tem influência na utilização de mão-
de-obra não-remunerada. O gráfico 2 revela que são os abrigos da região Sudeste
os que mais recorrem ao trabalho dos voluntários, numa proporção maior do
que a média nacional: 75% e 63%, respectivamente. Já no Sul e no Norte, a
situação encontrada é bem diferente. Nessas duas regiões, a utilização de serviços
não-remunerados não é uma prática majoritária: ela é encontrada em menos da
metade dos abrigos (43% no Sul e 48% no Norte).

GRÁFICO 02
Brasil/grandes regiões: proporção de abrigos que contam com trabalho voluntário

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
9.6.2 O peso da religião

A absoluta maioria (88%) dos abrigos que declaram recorrer à prestação de


serviços voluntários é não-governamental. E mais: possui laços com instituições
confessionais (78%) (gráficos 3 e 4).

GRÁFICO 03
Brasil: distribuição dos abrigos pela natureza do trabalho voluntário
com que contam

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

GRÁFICO 04
Brasil/grandes regiões*: distribuição dos abrigos que contam com trabalho
voluntário segundo orientação religiosa

261

* A região Norte possui apenas 12 abrigos que recorrem ao trabalho voluntário, correspondendo a 3% do total de
abrigos que possuem trabalho não-remunerado. A presença reduzida de instituições pode contribir para que, por vezes,
os percentuais apresentados pelo Norte divirjam dos das demais regiões.

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Os abrigos que contam com voluntários se inspiram, predominantemente,
na religião católica (44%). No Nordeste, 69% deles informam seguir esta
orientação religiosa. É interessante notar a influência dos evangélicos no Norte:
um terço dos abrigos dessa região, o que representa mais do que o dobro da
média nacional, que é de 14%, declara estar em sintonia com essa doutrina
espiritual. Os evangélicos também têm seu peso nas regiões Sul e Centro-Oeste:
um quarto dos abrigos possui essa orientação religiosa.

9.6.3 A importância do voluntariado

Os profissionais que trabalham voluntariamente nos abrigos representam


pouco mais de um terço (35%) do total de trabalhadores dessas instituições.
262 Com efeito, de 11.939 trabalhadores, 4.134 prestam gratuitamente seus serviços.

A maior parte dos voluntários (59%) encontra-se no Sudeste. Note-se a


similaridade entre o Sul e o Nordeste: ambas regiões reúnem, cada uma, em
torno de 14% dos voluntários (gráfico 5). São justamente essas duas regiões as
que, proporcionalmente, contam com uma menor proporção de abrigos que
recorrem à mão-de-obra não-remunerada, conforme já observado no gráfico 2.

GRÁFICO 05
Brasil/grandes regiões: distribuição dos voluntários

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
A proporção de voluntários nas equipes dos abrigos varia de acordo com a
região. No Centro-Oeste, cerca da metade (44%) não é remunerada pelas atividades
realizadas; já no Norte e no Nordeste, esta relação é bem menor: 27% e 25%,
respectivamente. Nas regiões Sudeste e Sul, a proporção de voluntários em relação
ao total de profissionais é de 36% e 37%, respectivamente, bem próxima, portanto,
à média nacional que é de 35% (gráfico 6).

GRÁFICO 06
Brasil/grandes regiões: proporção de voluntários em relação ao total de profissionais
dos abrigos que recorrem ao trabalho não-remunerado

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Para complementar a análise, é interessante observar a relação de voluntários 263


por crianças e adolescentes abrigados. A tabela 1 revela que, no conjunto dos
abrigos que contam com trabalho não-remunerado, esta proporção é de um
voluntário para 3,4 crianças e adolescentes. No Nordeste, a relação cai para a
metade: um voluntário para 7 crianças e adolescentes. No entanto, no Norte e no
Sul, diferentemente do observado até o momento, tem-se um voluntário por
apenas 2,5 e 2,4 crianças e adolescentes, respectivamente. Note-se que nestas
duas regiões o número de profissionais dos abrigos é maior do que o número de
abrigados.
TABELA 01
Brasil/grandes regiões: proporção de crianças e adolescentes por profissional e por
voluntário nos abrigos que contam com trabalho não-remunerado

Região Nº de Nº de profissionais Nº Nº de crianças Proporção de Proporção de


abrigos que que trabalham nos de e adolescentes crianças e crianças e
contam abrigos que voluntários que contam adolescentes adolescentes
com contam com com por por
voluntários voluntários voluntários profissional voluntário
Norte 12 306 83 207 0,7 2,5
Nordeste 67 2.340 588 4.127 1,8 7,0
Sudeste 218 6.700 2.437 6.868 1,0 2,8
Sul 53 1.680 620 1.483 0,9 2,4
Centro-Oeste 25 913 406 1.333 1,5 3,3
Total 375 11.939 4.134 14.018 1,2 3,4

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

264
9.6.4 Quais as funções desempenhadas pelos voluntários?

Conforme pode ser observado na tabela 2, a participação dos voluntários é


relevante nos serviços especializados, particularmente no que tange aos cuidados
com a saúde das crianças e dos adolescentes abrigados: os profissionais dessa
área (dentista, clínico, pediatra, psiquiatra, enfermeiro, fonoaudiólogo e fisio-
terapeuta, dentre outros) representam pouco mais de um quarto dos voluntários
(27%) e, em média, 52% desses trabalhadores são voluntários.

Metade dos responsáveis pela administração institucional dos abrigos (51%)


também é composta por profissionais não-remunerados. Os serviços de advocacia
são predominantemente prestados por voluntários: 85% dos advogados que
trabalham nesses abrigos o fazem gratuitamente. Outra atividade relevante para
os abrigos e que depende fortemente de mão-de-obra não-remunerada é a captação
de recursos: 73% desses profissionais são voluntários. Essa atribuição é
fundamental para os abrigos na medida em que, no geral, a maior parte de seus
orçamentos é financiada com recursos privados14.

A maior parte dos serviços complementares ao programa de abrigo (63%)


é prestada por voluntários: são, sobretudo, estagiários, recreadores e professores
de reforço escolar ou de outras atividades. A presença de profissionais não-

14
Segundo Silva e Gueresi (2004), os abrigos financiados pela Rede SAC são majoritariamente sustentados por
recursos privados que, em 2002, representavam 59% do total de seus orçamentos. A este respeito, ver o capítulo
6 deste livro.
remunerados na prestação desses serviços é, de uma maneira geral, positiva, pois
estimula a convivência comunitária dos abrigados, bem como areja as práticas e
rotinas institucionais.

Ainda que, em menor proporção, observa-se igualmente a presença de


trabalhadores não remunerados nas equipes técnicas, isto é, entre os profissionais
que são responsáveis pelo programa e que orientam o atendimento personalizado
às crianças e aos adolescentes. Assim, somando-se os coordenadores técnicos,
assistentes sociais, pedagogos e psicopedagogos, psicólogos, nutricionistas e téc-
nicos em nutrição têm-se um total de 1.325 profissionais, sendo 462 voluntários,
o que corresponde a 35% (tabela 2). Aqui pode-se formular duas hipóteses: a
primeira é que o exercício não-remunerado dessas ações deve ser predominan-
temente motivado por questões religiosas, uma vez que se trata de atividades que
exigem muita atenção e que, se mal prestadas, podem resultar em desgaste físico,
mental e emocional. Assim, a âncora da fé deve ser central para a prestação
voluntária desses serviços. Em segundo lugar, por mais dedicados que sejam os
voluntários, de maneira geral não devem dispor do tempo necessário ao
atendimento satisfatório das crianças e dos adolescentes abrigados, já que cumprem
funções que são essenciais no programa de abrigo. Dessa forma, a rotina do
abrigo pode estar comprometida.

TABELA 02
Brasil: distribuição dos voluntários por função desempenhada nos abrigos

Função desempenhada Nº de Total de


no abrigo voluntários
(A)
Percentual Profissionais
(B)
Percentual
(A/B)
265
Equipe técnica 462 11,2% 1.325 34,9%

Assistente social 84 2,0% 361 23,3%

Coordenador técnico 30 0,7% 171 17,5%

Nutricionista 82 2,0% 126 65,1%

Pedagogo 81 2,0% 231 35,1%

Psicólogo 184 4,5% 431 42,7%

Assessor de coordenação - 0,0% 1 0,0%

Psicopedagogo 1 0,0% 3 33,3%

Técnico em nutrição - 0,0% 1 0,0%

Cuidado direto 286 6,9% 2.541 11,3%

Educador/ monitor/ pajem/ cuidador 227 5,5% 2.258 10,1%

(continua)
TABELA 02 (continuação)

Função desempenhada Nº de Total de


no abrigo voluntários Percentual Profissionais Percentual
(A) (B) (A/B)

Pai/ mãe social 59 1,4% 283 20,8%

Apoio operacional 213 5,2% 2.308 9,2%

Auxiliar de serviços gerais (faxineiro, zelador, 90 2,2% 1.236 7,3%


jardineiro, auxiliar de limpeza etc.)

Cozinheiro 39 0,9% 571 6,8%

Motorista 66 1,6% 277 23,8%

Segurança/ vigia 18 0,4% 223 8,1%

Coordenador de serviços gerais - 0,0% 1 0,0%

266 Administração institucional 1.053 25,5% 2.054 51,3%

Administrador/ gerente 278 6,7% 515 54,0%

Advogado 219 5,3% 259 84,6%

Auxiliar administrativo (secretária, digitador, 88 2,1% 502 17,5%


office-boy, telefonista etc.)

Captador de recursos 352 8,5% 485 72,6%

Contador 109 2,6% 261 41,8%

Almoxarife 0 0,0% 3 0,0%

Assistente contábil - 0,0% 1 0,0%

Bibliotecário 1 0,0% 1 100,0%

Cobrador 0 0,0% 10 0,0%

Recepcionista - 0,0% 2 0,0%

Coordenador de lares - 0,0% 6 0,0%

Coordenador de serviços - 0,0% 1 0,0%

Coodenador de almoxarifado 1 0,0% 1 100,0%

Coordenador de estoque de alimentos 1 0,0% 1 100,0%

Jornalista 3 0,1% 3 100,0%

Supervisor das casas-lares - 0,0% 1 0,0%

Técnico em segurançao do trabalho - 0,0% 1 0,0%

Tradutor 1 0,0% 1 100,0%

Serviços especializados 1.108 26,8% 2.113 52,4%

Dentista 370 9,0% 470 78,7%

Enfermeiro 46 1,1% 85 54,1%

Fisioterapeuta 53 1,3% 86 61,6%

Fonoaudiólogo 74 1,8% 118 62,7%

Médico clínico 140 3,4% 194 72,2%


TABELA 02 (continuação)

Função desempenhada Nº de Total de


no abrigo voluntários Percentual Profissionais Percentual
(A) (B) (A/B)

Médico pediatra 170 4,1% 243 70,0%

Médico psiquiatra 42 1,0% 78 53,8%

Professor de educação física - 148

Professor de ensino regular 47 1,1% 380 12,4%

Técnico em enfermagem (auxiliar) 38 0,9% 197 19,3%

Terapeuta ocupacional 26 0,6% 53 49,1%

Coordenador de atividades agrícolas - 0,0% 1 0,0%

Coordenador da área de saúde 5 0,1% 5 100,0%

Engenheiro civil 1 0,0% 1 100,0%

Eqüoterapeuta 1 0,0% 1 100,0%

Instrutor de profissionalização 16 0,4% 49 32,7%

Musicoterapeuta 1 0,0% 1 100,0%

Professor de educação especial - 0,0% 2 0,0%

Tetapeuta comportamental 1 0,0% 1 100,0%

Serviços Complementares 969 23,4% 1.537 63,0%

Estagiário 323 7,8% 577 56,0%

Professor de reforço escolar 236 5,7% 432 54,6%

Recreador 297 7,2% 372 79,8%

Acompanhantes em passeios 15 0,4% 15 100,0%

Cabeleleiro 2 0,0% 2 100,0%

Costureiro 14 0,3% 20 70,0% 267


Estimulação precoce 8 0,2% 8 100,0%

Professor de atividades complementares 52 1,3% 85 61,2%

Massagista 1 0,0% 1 100,0%

Monitores de atividades ocupacionais: tricô, 10 0,2% 11 90,9%


crochê, pintura em tecido, bordado a mão,
tapeçaria, costuras, brechó

Orientador espiritual/religioso 9 0,2% 12 75,0%

Técnica reiki 2 0,0% 2 100,0%

Outros 43 1,0% 61 70,5%

TOTAL 4.134 100,0% 11.939 34,6%

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Os serviços de cuidados diretos (monitor, educador, pais sociais etc) e de
apoio (cozinheiros, faxineiros, auxiliares de limpeza, secretárias, vigias etc) contam
com relativamente pouco trabalho voluntário, o que é desejável: a absoluta maioria
(cerca de 90%) é realizada por trabalhadores remunerados.

O que se observa, de maneira geral, é que, diferentemente do que legisla o


estatuto, o trabalho voluntário não é uma atividade apenas complementar ao
programa de abrigo: ele cumpre funções essenciais, tais como a relação com o
poder Judiciário e o Ministério Público, o cuidado com a saúde das crianças e dos
adolescentes e uma parte não negligenciável do acompanhamento diuturno dos
abrigados.

268
9.7 A PRESENÇA DO VOLUNTARIADO NA DIREÇÃO
DOS ABRIGOS

A maior parte dos abrigos que recebem recursos do Governo Federal é


dirigida por voluntários: do total de 589 abrigos pesquisados, 349, isto é, 59%,
são chefiados por profissionais que exercem essa atividade sem ser remunerados
para tal.

É, particularmente, no Sudeste que se localizam os abrigos dirigidos por


voluntários: 59%. Esse percentual cai para 19% no Nordeste, para 13%, no Sul
e para menos de 10% nas regiões Centro-Oeste (8%) e Norte (1%) (gráfico 7).

GRÁFICO 07
Brasil/grandes regiões: distribuição dos abrigos dirigidos por voluntários

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
A localização geográfica tem influência quando se trata de dirigir um abrigo
em caráter voluntário: o Sudeste, além de reunir a maior parte dos abrigos cujos
responsáveis são voluntários, é também a região onde a maioria absoluta das
instituições tem um voluntário como seu dirigente: 71%. Esse percentual varia
entre 60% e 66% nas regiões Nordeste e Centro-Oeste, respectivamente. Já no
Norte e no Sul, as relações se invertem: a direção exercida em caráter voluntário
não é um fenômeno majoritário. No Sul, somente 38% dos dirigentes dos abrigos
declaram não ser remunerados para o exercício desta atividade; no Norte, esse
percentual é de 20% (gráfico 8).

GRÁFICO 08
Brasil/grandes regiões*: proporção de dirigentes voluntários
e remunerados por região

269
* A região Norte possui apenas cinco abrigos dirigidos por voluntários (1% do total de abrigos dirigidos por voluntários).
A presença reduzida de instituições pode contribir para que, por vezes, os percentuais apresentados pelo Norte divirjam
dos das demais regiões.

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

A presença dos dirigentes voluntários é ainda mais forte nas instituições


que possuem orientação religiosa. Assim é que a absoluta maioria dos abrigos
dirigidos por voluntários tem vinculação com algum tipo de credo (80%). Interessa
observar que esta relação se mantém qualquer que seja a região do país (gráfico
9). Tal resultado revela o peso da religião, ainda nos dias de hoje, na prestação de
serviços que são direitos das crianças e dos adolescentes em situação de risco
social ou pessoal.
GRÁFICO 09
Brasil/grandes regiões*: distribuição dos abrigos dirigidos por voluntário segundo
vinculação religiosa

270

* A região Norte possui apenas cinco abrigos dirigidos por voluntários (1% do total de abrigos dirigidos por voluntários).
A presença reduzida de instituições pode contribir para que, por vezes, os percentuais apresentados pelo Norte divirjam
dos das demais regiões.
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

No geral, predomina a religião católica (50%); seguem-se, já em patamares


menores, vinculações com crenças evangélicas (15%) e espíritas (13%). Mas as
médias nacionais escondem especificidades regionais: a predominância de vínculos
com a religião católica acontece, sobretudo, no Nordeste, onde 72% dos abrigos
informam possuir laços com essa orientação. E mais: nessa região, somente 9%
das entidades dirigidas por profissionais não-remunerados se declaram laicas.
No Norte, dos cinco abrigos dirigidos por voluntários, quatro, ou seja, 80%, têm
orientação evangélica. A religião evangélica também tem forte influência no
Centro-Oeste: um terço dos abrigos declara possuir essa orientação confessional,
percentual que é mais de duas vezes superior à média nacional de 15% e semelhante
à proporção de abrigos de origem católica na região (33%). É o Sul que apresenta
a maior proporção de entidades laicas (28%); isto acontece sobretudo em
detrimento da influência católica, na medida que somente 37% dos abrigos
dirigidos por voluntários se declararam orientados por essa crença; nos demais
casos, as proporções são ligeiramente superiores - como é o caso dos laços com
os evangélicos –, ou se assemelham às médias nacionais.
9.8 UM PERFIL DOS DIRIGENTES VOLUNTÁRIOS

9.8.1 São profissionais de meia-idade com diploma superior

De modo geral, não há uma forte predominância de gênero entre os dirigentes


voluntários dos abrigos financiados pela Rede SAC: os homens, ligeiramente
mais numerosos, são 52%, e as mulheres, 48%. No entanto, essa relação se
modifica um pouco nas regiões Nordeste e Centro-Oeste: no Nordeste, 55% dos
responsáveis por essas instituições são mulheres; esse percentual é de 59% no
Centro-Oeste (gráfico 10).

GRÁFICO 10
Brasil/grandes regiões: distribuição de dirigentes voluntários por sexo

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
271
É interessante observar a semelhança entre as regiões quando se trata da
idade dos dirigentes voluntários: em média, têm em torno de 52 anos, variando
de 47 anos, no Norte, a 54 anos no Nordeste (gráfico 11).

A maioria desses voluntários que dirigem abrigos (61%) possui diploma


universitário (gráfico 12). Esse nível de escolaridade é encontrado em praticamente
todas as regiões, com exceção do Centro-Oeste, onde somente um terço dos
dirigentes concluiu o nível superior. Nessa região, a maior parte das organizações
que contam com voluntários está sob a responsabilidade de profissionais que
têm o ensino médio (52%). Vale destacar que, no geral, 6% dos abrigos, o que
corresponde a 21 instituições, são dirigidos por voluntários que somente
concluíram o ensino fundamental.
GRÁFICO 11
Brasil/grandes regiões: idade média dos dirigentes voluntários por região

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

272 É interessante registrar que, entre as mais de 80 profissões declaradas por


esses dirigentes não-remunerados, cerca da metade se concentra em apenas quatro
campos, quais sejam: (i) educação (educador, pedagogo, professor), 19%; (ii)
religião (capelão, pastor, missionário, religioso), 18%; (iii) direito, 8%; e, (iv)
assistência social, 5%. Vê-se aqui novamente o peso da religião: além de a maior
parte dos abrigos apresentar vínculos com instituições religiosas, cerca de um
quinto deles está diretamente sob a responsabilidade de representantes oficiais
dessas instituições.

GRÁFICO 12
Brasil/grandes regiões*: distribuição dos dirigentes voluntários por escolaridade

* A região Norte possui apenas cinco abrigos dirigidos por voluntários (1% do total de abrigos dirigidos por voluntários).
A presença reduzida de instituições pode contribir para que, por vezes, os percentuais apresentados pelo Norte divirjam
dos das demais regiões.
.Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
9.8.2 Dedicam parte significativa de seu tempo ao abrigo

Mais de 40% dos dirigentes voluntários estão no cargo há mais de cinco


anos. E mais: um quinto desses profissionais (23%) dirige os abrigos sem ser
remunerado para tal há pelo menos dez anos. A antigüidade no comando do
abrigo é maior no Nordeste, onde um terço dos dirigentes voluntários está no
cargo há pelo menos dez anos (gráfico 13).

GRÁFICO 13
Brasil/grandes regiões*: distribuição dos dirigentes voluntários por tempo na
direção do abrigo

* A região Norte possui apenas cinco abrigos dirigidos por voluntários (1% do total de abrigos dirigidos por voluntários).
A presença reduzida de instituições pode contribir para que, por vezes, os percentuais apresentados pelo Norte divirjam
273
dos das demais regiões.
.Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

O tempo que os dirigentes voluntários dedicam ao abrigo também deve ser


destacado: no geral, cerca da metade (47%) deles passa mais de 20 horas por
semana na instituição. E mais: um terço deles trabalha em horário integral, isto é,
acima de 40 horas (gráfico 14). É provavelmente por este motivo que grande
parte (40%) desses voluntários não exerce qualquer atividade remunerada fora
do abrigo (gráfico 15).
GRÁFICO 14
Brasil/grandes regiões*: distribuição dos dirigentes voluntários por número de horas
semanais dedicadas ao abrigo

274

* A região Norte possui apenas cinco abrigos dirigidos por voluntários (1% do total de abrigos dirigidos por voluntários).
A presença reduzida de instituições pode contribir para que, por vezes, os percentuais apresentados pelo Norte divirjam
dos das demais regiões.
.Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

GRÁFICO 15
Brasil/grandes regiões*: distribuição dos dirigentes voluntários segundo exercício de
atividade remunerada fora do abrigo

* A região Norte possui apenas cinco abrigos dirigidos por voluntários (1% do total de abrigos dirigidos por voluntários).
A presença reduzida de instituições pode contribir para que, por vezes, os percentuais apresentados pelo Norte divirjam
dos das demais regiões.
.
Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
Aqui também, se observam especificidades regionais. No Sul, cerca de um
quinto dos voluntários trabalha em tempo integral - acima de 40 horas semanais
- no abrigo e, por conseguinte, não exerce qualquer atividade remunerada fora
dele. No Nordeste e no Centro-Oeste, cerca de 40% dos dirigentes se dedicam,
em caráter voluntário, integralmente a esta função. No Norte, dos cinco dirigentes
voluntários dos abrigos pesquisados, um (20%) trabalha em tempo parcial na
instituição e três (60%) trabalham em tempo integral, sendo que somente um
deles não exerce qualquer atividade remunerada fora do abrigo.

9.8.3 Participam de fóruns ou conselhos

A maioria dos dirigentes voluntários, cerca de dois terços, declara participar


de algum fórum ou conselho de políticas referentes a crianças e adolescentes,
tais como, o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (46%), o Fórum
dos Direitos da Criança e do Adolescente - Fórum DCA (29%) ou o Conselho
Tutelar (13%). Note-se que 41% também integram outros conselhos municipais
(41%) (gráfico 16). É preciso destacar que um terço não participa de qualquer
dos espaços de concertação citados na pesquisa.

Neste caso, com exceção do Norte, onde os dirigentes voluntários das cinco
instituições participam todos do Conselho dos Direitos da Criança e do
Adolescente e do Fórum DCA, observa-se uma certa similaridade de
comportamento entre as regiões.

275
9.8.4 Atuam motivados pela caridade

Em geral, é o espírito da caridade que motiva os dirigentes dos abrigos a


exercerem esta função voluntariamente: 59% declaram fazê-lo por questões
humanitárias e 42%, por razões de cunho religioso. Essas motivações são
generalizadas na medida em que predominam, ainda que com intensidades
diferentes, em todas as regiões do país (gráfico 17). Note-se, contudo, que as
questões humanitárias são mais mencionadas no Sudeste (65%), enquanto as
religiosas prevalescem nas regiões Nordeste (54%) e Centro-Oeste (59%).
GRÁFICO 16
Brasil/grandes regiões*: distribuição dos dirigentes voluntários segundo o fórum ou
conselho de que participa

276

* A região Norte possui apenas cinco abrigos dirigidos por voluntários (1% do total de abrigos dirigidos por voluntários).
A presença reduzida de instituições pode contribir para que, por vezes, os percentuais apresentados pelo Norte divirjam
dos das demais regiões.
.Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

Cerca de um quinto dos dirigentes voluntários (18%) declara ter assumido


este cargo em função de demandas de amigos. Em suma, os resultados da pesquisa
revelam que a opção por exercer essa atividade em caráter voluntário pouco tem
a ver com uma motivação, de cunho profissional - aliás, nem aparece como
motivação apesar de existir uma opção de resposta nesta direção. Trata-se,
majoritariamente, de uma atividade filantrópica influenciada por uma fé católica,
evangélica ou espírita.
GRÁFICO 17
Brasil/grandes regiões*: distribuição dos dirigentes voluntários segundo motivação
para o trabalho no abrigo

* A região Norte possui apenas cinco abrigos dirigidos por voluntários (1% do total de abrigos dirigidos por voluntários).
A presença reduzida de instituições pode contribir para que, por vezes, os percentuais apresentados pelo Norte divirjam
dos das demais regiões.
.Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.

9.9 AS ESPECIFICIDADES REGIONAIS DOS ABRIGOS


DIRIGIDOS POR VOLUNTÁRIOS
277
A pesquisa revelou que existem traços comuns a todos os dirigentes de
abrigos que exercem esta função em caráter voluntário: são homens ou mulheres
de meia-idade, em torno de 52 anos, que atuam impulsionados por motivos
caritativos de forte inspiração religiosa. Apesar de exercerem atividades
remuneradas fora do abrigo para prover seu sustento, dedicam boa parte de seu
tempo à instituição e, em geral, participam de conselhos ou fóruns referentes a
políticas voltadas para crianças e adolescentes. No entanto, além desses traços
gerais, existem algumas especificidades de comportamento que variam de acordo
com a região.
Assim, por exemplo, o Sudeste se destaca em diversos aspectos. Em primeiro
lugar, porque é a região que sedia o maior número de abrigos dirigidos por
voluntários (58% do total). Em segundo lugar, porque são os abrigos dessa região
que, proporcionalmente, mais contam com dirigentes que não são remunerados
pelo exercício dessa função (71%). É também no Sudeste que se encontra a
maior proporção de dirigentes com ensino superior (66%).

É no Sul que o voluntariado tem menos peso: somente 38% dos dirigentes
dos abrigos dessa região não são remunerados para realizar essa atividade.
Ademais, a absoluta maioria dos responsáveis por essas instituições trabalha em
tempo parcial, dedicando outra parte de seu tempo à realização de atividades
remuneradas. No Sul, a influência da religião, apesar de ser importante, é menor
do que nas demais localidades: mais de um quarto dos abrigos não possui qualquer
278 orientação religiosa. Essa proporção é de um quinto, em média, para as demais
regiões do país.

O Centro-Oeste apresenta outras especificidades. Predomina o voluntariado


feminino (59%), motivado, sobretudo, por questões de fé (59%). Nesta região, o
peso dos evangélicos é grande: um terço dos abrigos, isto é, mais do que o dobro
da média nacional, declara ter esta orientação religiosa. O nível de instrução dos
dirigentes voluntários é o menor de todos: mais da metade deles (52%) tem
somente o ensino médio. E mais: de cada dez dirigentes, um (11%) concluiu
apenas o ensino fundamental. Em geral, são voluntários que dirigem o abrigo há
pouco tempo: cerca de dois terços estão ali há menos de cinco anos.

No Nordeste, vale destacar o peso da religião, particularmente a católica:


72% dos abrigos dirigidos por voluntários informam seguir esta orientação
religiosa. É também nesta região que os dirigentes estão há mais tempo no cargo.
Com efeito, 60% deles exercem essa função há mais de cinco anos, e um terço, há
pelo menos dez anos.

Por fim, nos cinco abrigos dirigidos por voluntários na região Norte, a
maioria, isto é quatro deles, informa ter orientação evangélica. Em média, esses
dirigentes são mais novos do que seus colegas das demais regiões (47 anos e 52
anos, respectivamente) e a maior parte exerce atividades remuneradas fora do
abrigo. Todos participam de fóruns ou conselhos voltados para crianças e
adolescentes.
9.10 UM RETRATO DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR
E COMUNITÁRIA

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu novos princípios de


proteção e de atendimento às crianças e aos adolescentes abrigados, parti-
cularmente no que se refere ao direito à convivência familiar e comunitária. A lei
rompeu com a lógica das grandes instituições consideradas como “depósitos de
crianças”, ao impor um modelo baseado no atendimento personalizado e em
pequenos grupos. Ou seja, o acolhimento das crianças e dos adolescentes deve
assemelhar-se ao de uma família. E mais: devem ser procurados todos os caminhos
para restabelecer ou estabelecer vínculos com as famílias (de origem ou substituta),
bem como para manter ou inserir as crianças e os adolescentes na comunidade.

Neste sentido, a partir de um conjunto de critérios construído por Silva e


Gueresi (2004), verificou-se até que ponto os abrigos dirigidos por voluntários
se adequam aos preceitos legais (tabela 3). Como referência são feitas comparações
com instituições governamentais supostamente mais avançadas em termos de
atendimento ao estatuto.

No que tange ao direito à convivência familiar, foram considerados quatro


aspectos: o primeiro diz respeito à preservação dos vínculos familiares, isto é, em
que medida os dirigentes dos abrigos (i) apóiam as famílias dos abrigados com o
intuito de incentivar a convivência, quer levando as crianças e os adolescentes
regularmente até suas casas, quer permitindo visitas dos familiares sem restrições
de horário; e (ii) evitam a separação dos irmãos abrigados, ou seja, promovem 279
um atendimento integrado entre meninas e meninos de todas as idades. Conforme
pode ser observado na tabela 3, somente 5% dos abrigos dirigidos por voluntários
atendem, simultaneamente, a esses dois critérios. Esse percentual é ligeiramente
superior nos abrigos governamentais: 8%.
TABELA 03
Comparação entre abrigos dirigidos por voluntários e abrigos governamentais
quanto à garantia do direito à convivência familiar e comunitária

Abrigos que atendem


Convivência aos critérios
familiar e
Quesitos Condições Dirigidos por Governamentais
comunitária voluntários

FAMILIAR Preservação Mantêm informações sobre as famílias 5% 8%


dos vínculos de origem
familiares Apóiam famílias dos abrigados

Não desmembram grupos de irmãos


abrigados

Apoio à Realizam visitas domiciliares 13% 15%


reestruturação
Oferecem acompanhamento social
familiar
280 Organizam reuniões ou grupos de
discussão e apoio

Encaminham para inserção em


programas de auxílio / proteção
à família

Incentivo à Incentivam a integração em família 25% 18%


convivência substituta (guarda, tutela ou adoção)
com outras Mantêm programa de apadrinhamento
famílias

Semelhança Apresentam instalações físicas 6% 7%


residencial semelhantes às de uma residência

Promovem atendimento em
pequeno grupo

COMUNITÁRIA Participação Utilizam serviços especializados da 5% 11%


na vida da comunidade
comunidade
local

Participação Possuem trabalho voluntário na equipe 36% 8%


de pessoas de serviços complementares
da Contexto com disponibilidade
comunidade de serviços
no processo
educativo

Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC.
O segundo aspecto para caracterizar a convivência familiar refere-se ao
apoio dado pelo abrigo à reestruturação das famílias dos abrigados. Trata-se de
dimensionar os esforços realizados pelas equipes responsáveis pelos programas
de abrigo para auxiliar os pais ou familiares das crianças e dos adolescentes a
superarem as dificuldades que determinaram o afastamento legal de suas crianças
(realização de visitas às famílias, organização de grupos de apoio, articulação
com programas governamentais ou comunitários de auxílio às famílias). Dentre
as instituições comandadas por trabalhadores não-remunerados, apenas 13%
preenchem todos os critérios ao mesmo tempo. Esse percentual é ligeiramente
superior nos abrigos governamentais: 15%.

O incentivo à convivência com outras famílias é o terceiro aspecto consi-


derado. Com efeito, o incentivo à colocação em família substituta (por meio de
guarda, tutela ou adoção) ou a utilização de programas de apadrinhamento são,
de acordo com o ECA, formas de garantir o direito à convivência familiar de
meninos e meninas cujas chances de retorno para suas famílias de origem são
inexistentes. Pouco mais de um quarto (25%) dos abrigos dirigidos por voluntários
atende a estes critérios, numa proporção maior do que as instituições governa-
mentais (18%). Pode-se formular a hipótese de que, neste caso, as entidades não-
governamentais estão mais inseridas na comunidade e, portanto, têm mais
facilidades para auxiliar o Judiciário na identificação de famílias que possam
acolher crianças e adolescentes.

Organizar a vida como se fosse a de uma casa é o quarto e último aspecto


para dimensionar a promoção do direito à convivência familiar. Com efeito, hoje
se conhece o impacto negativo que provoca sobre crianças e adolescentes um 281
atendimento massificado como o oferecido por orfanatos ou grandes internatos:
baixa auto-estima, dificuldades para estabelecer laços afetivos, atrasos no desen-
volvimento psicomotor e pouca familiaridade com rotinas. Como pode ser
verificado na tabela 3, é pequeno o percentual de abrigos dirigidos por voluntários
que se estruturaram nesta direção: 6%. Nos governamentais, a proporção é quase
a mesma: 7%. Esse tipo de atendimento é mais caro, particularmente para as
instituições existentes antes da promulgação do estatuto, que, em tese, deveriam
se adequar às novas exigências. No entanto, os abrigos não-governamentais mal
possuem recursos para os gastos correntes, quanto menos para a realização de
obras, sendo que nos últimos anos os governos têm repassado poucas verbas
para investimentos. De toda sorte, o percentual observado nas instituições oficiais
também encontra-se muito aquém do desejado.
Quanto ao direito à convivência comunitária, foram considerados dois
aspectos. O estímulo à inserção das crianças e dos adolescentes na vida da
comunidade local é o primeiro. Trata-se de assegurar que os meninos e as meninas
tenham acesso aos serviços sociais básicos oferecidos na comunidade (ensino
regular, profissionalização no caso dos adolescentes, assistência médica e
odontológica), bem como a atividades externas de lazer, esporte, cultura e religião.
Apenas 5% dos abrigos dirigidos por profissionais não-remunerados atende,
simultaneamente, a estes critérios. Entre os governamentais este percentual é
duas vezes maior (11%). Pode-se levantar a hipótese de que, neste caso, quem
tem vantagens comparativas são os abrigos governamentais: por serem estatais,
apresentam mais facilidades para acionar a rede pública de serviços básicos
(escolas, postos de saúde, hospitais, promotorias ou programas governamentais

282 voltados para este público).

O segundo aspecto diz respeito à participação de pessoas da comunidade


no processo educativo das crianças e dos adolescentes, principalmente por meio
de trabalho voluntário na prestação de serviços complementares (reforço escolar,
esporte, lazer e recreação). Este tipo de prática facilitaria o estabelecimento de
novos vínculos e relações afetivas, bem como a organização de práticas e rotinas
institucionais. A tabela 3 revela que 36% dos abrigos cujos dirigentes são
voluntários atendem a este critério. No caso das instituições governamentais,
este percentual é de apenas 8%. Acredita-se que isto ocorre, pois os abrigos de
origem estatal geralmente não recorrem ao trabalho não-remunerado.

Por fim, o que os dados revelam é que, de uma maneira geral, qualquer que
seja a origem do abrigo – privado ou governamental -, ainda é longo o caminho
a ser percorrido para adequar às exigências da lei o atendimento às crianças e aos
adolescentes desprotegidos, ou em situação de abandono social.
9.11 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presença do trabalho voluntário nos abrigos para crianças e adolescentes


financiados com recursos do Governo Federal é bastante significativa. Em geral,
a maior parte destas instituições (59%) é dirigida por pessoas que exercem esta
atividade em caráter voluntário, e grande parte dos abrigos (63%) conta com a
colaboração de profissionais não-remunerados, que representam pouco mais de
um terço do total de trabalhadores. E mais: os dados revelam que os voluntários
não exercem apenas atividades complementares ao programa de abrigo. Suas
funções vão desde a responsabilidade legal para assistir, cuidar e educar as crianças
e adolescentes, passando pelo atendimento técnico e administrativo das unidades,
até o desempenho de atividades de lazer, de recreação e de profissionalização,
entre outras.

A religião é o principal combustível do exercício cotidiano de atividades


não-remuneradas. A absoluta maioria dos abrigos (em torno de 80%) que, de
alguma forma, recorrem ao trabalho voluntário declara possuir vínculos con-
fessionais, sobretudo com a orientação católica, mas também se fazem presentes
instituições evangélicas e espíritas. Quando perguntados por que motivos exercem
a direção das unidades sem ser remunerados para tal, a resposta da maior parte
dos dirigentes se situa no campo da caridade: as razões são humanitárias (59%)
ou declaradamente religiosas (42%). Acredita-se que a fé, qualquer que seja o
credo, mobiliza a realização de múltiplas atividades que, na percepção dos
voluntários, busca fortalecer laços afetivos e de vizinhança entre as crianças e os
adolescentes e a comunidade que os circunda.
283
A pesquisa não permite analisar o conteúdo das mensagens e dos valores
passados pelos voluntários. Não se sabe em que medida contribuem para
consolidar a noção de direito à igualdade de pessoas que vivem na sociedade. A
história da assistência social no Brasil não é propriamente uma história de
emancipação de sujeitos: o modelo de atendimento dominante tem sido o de
uma solidariedade hierarquizada e moralista, de manutenção do status quo. E mais,
vê-se que o Estado não tem conseguido assegurar satisfatoriamente o direito das
crianças e dos adolescentes em risco social ou pessoal a serem acolhidos, protegidos
e assistidos.
Diante da magnitude da miséria, da pobreza e das desigualdades sociais
neste começo de milênio, a sociedade civil está em movimento buscando atuar
em espaços onde o Estado não está presente. Tem crescido o entendimento de
que, numa sociedade complexa como a brasileira, a parceria entre Estado e
sociedade é fundamental para enfrentar a exclusão e para consolidar um novo
modo de pensar a ação pública estatal:

“as parcerias asseguram maior sustentabilidade e legitimidade política à ação.


Introduzem a dimensão da participação conjunta, possibilitando o encontro de
diferentes atores em diferentes estágios de organização, acrescentando conhecimentos,
redefinindo focos. Possibilitam o aproveitamento do potencial de cada organização
participante. Por fim, introduzem uma relação mais horizontal e democrática, que
ajuda a diminuir a fragmentação do atendimento. Trabalhar juntos é o grande
284 desafio” (Brant: 2002).

Enfim, este ensaio é um convite para outras pesquisas onde se procure


aumentar a compreensão sobre os valores e as redes de sociabilidade que, em
contraposição a uma atitude de indiferença, mobilizam um trabalho voluntário
(em termos de militância leiga ou religiosa) capaz de imprimir novas formas de
agir contra a exclusão social e formas realmente inéditas de regulação social.
9.12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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brasileira. IN: PEREZ, Clotilde e JUNQUEIRA, Luciano Prates (orgs).
Voluntariado e a gestão das políticas sociais. São Paulo: Futura, 2002.
Introdução
Muito se tem escrito sobre crianças e adolescentes no Brasil,

principalmente para chamar a atenção para a violação de

direitos que grande parte dessa população enfrenta

cotidianamente: maus-tratos; abuso e exploração sexual;

trabalho infantil; desaparecimento; fome e abandono. Os

indicadores sociais que refletem a realidade da infância e da

adolescência brasileiras também são fartos e mostram que

as crianças e os adolescentes são a parcela mais exposta às

conseqüências nefastas da exclusão social.

Esta pesquisa não é um estudo da situação da infância e da

adolescência no Brasil, tampouco mais um relatório com

números cabais demonstrando os resultados da iniqüidade

da sociedade brasileira sobre elevada parcela da população.

Este levantamento examina a situação de instituições que

têm a responsabilidade de cuidar de uma parte das crianças

e dos adolescentes do Brasil. São os abrigos, ou outra

denominação que se dê: orfanatos, educandários e casas-

lares. Essas instituições são responsáveis por zelar pela


17
integridade física e emocional de crianças e adolescentes

que, temporariamente, necessitam viver afastados da

convivência com suas famílias, seja por uma situação de

abandono social, seja por negligência de seus responsáveis

que os coloque em risco pessoal.

Em sentido estrito, a missão dessas instituições é executar a

medida de proteção denominada abrigo, definida pelo

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como “medida

provisória e excepcional, utilizável como forma de transição


para a colocação em família substituta, não implicando

privação de liberdade”.1 Trata-se de proteção especial a

crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e so-

cial, cujos direitos tenham sido desatendidos ou violados.

O que se analisa nesta pesquisa são as condições do

atendimento nessas instituições, à luz dos princípios do ECA,

com ênfase na garantia do direito à convivência familiar e

comunitária. A situação estudada envolve as diferentes

formas de organização, funcionamento e atendimento

18 encontradas, bem como uma breve incursão sobre as prin-

cipais características da população abrigada. São explorados

aspectos relativos às ações desenvolvidas pelos programas

de abrigos para as crianças e os adolescentes sob sua guarda;

ao incentivo à convivência das crianças e dos adolescentes

com suas famílias de origem ou mesmo com outras famílias;

aos serviços de apoio aos egressos, entre outros.

A despeito da extensa bibliografia existente sobre crianças e

adolescentes, as instituições de abrigo para essa população

são ainda pouco conhecidas, muito embora exerçam papel

fundamental em nossa sociedade. Por sua vez, as esferas

governamentais, com a atribuição de estabelecer normas e

diretrizes para o ordenamento e o reordenamento das polí-

ticas públicas para crianças e adolescentes socialmente vul-

neráveis, têm-se ressentido dessa ausência de informações

que reflitam a real situação da rede de serviços de abrigo

existente.

1
Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 101, parágrafo único.
O estudo sobre a situação do atendimento em instituições

de abrigo revela-se ainda mais importante frente à diversidade

encontrada entre essas entidades no Brasil, destacando-se a

heterogeneidade na forma de organização, no regime de

permanência de crianças e adolescentes, no tipo de exclu-

sividade do atendimento e na estrutura física.

Além disso, com a Constituição Brasileira de 1988 e com a

aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em

1990, iniciou-se um processo que exigiu mudanças e revisão

das práticas adotadas por aqueles que desenvolvem serviços

para crianças e adolescentes. No caso específico do aten-

dimento em abrigos, tem-se requerido seu reordenamento

com vistas à adequação à nova legislação, o que envolve

considerar novos princípios, destacando-se os seguintes:

• substituição da tendência assistencialista por propostas de

caráter socioeducativo e emancipatório;

• prioridade à manutenção da criança e do adolescente na

família e na comunidade, buscando-se prevenir seu aban- 19


dono;

• garantia do pleno desenvolvimento físico, mental, moral,

espiritual e social às crianças e aos adolescentes, em condições

de liberdade e dignidade;

• garantia de que o abrigo seja de fato uma medida de

proteção social caracterizada pela provisoriedade.2

2
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. Secretaria de Estado de Assistência Social.
Subsídios para o ordenamento e financiamento dos serviços de abrigo – Programa Acolher. Brasília, 2000.
Passados 14 anos de promulgação do estatuto, muitas ins-

tituições que prestam serviços de abrigo introduziram con-

dutas diferentes e programas mais condizentes com o ECA,

ampliando-se no país o elenco de experiências inovadoras

pautadas pelos princípios da proteção integral e do atendi-

mento individualizado. Entretanto, há instituições que man-

têm as práticas excludentes da convivência social, comuns

quando da vigência do antigo Código de Menores.

Conhecer a situação e as práticas de atendimento adotadas

20 pelos abrigos é, desta forma, fundamental para todos aqueles

que desenvolvem ações, programas e políticas voltados para

a defesa dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil.

Enid Rocha Andrade da Silva


MINISTRO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO
NELSON MACHADO (INTERINO)

SECRETÁRIO EXECUTIVO
NELSON MACHADO

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA-IPEA


GLAUCO ARBIX

DIRETORA DA DIRETORIA DE ESTUDOS SOCIAIS - DISOC


ANNA MARIA T. MEDEIROS PELIANO

COORDENAÇÃO DA PESQUISA
ENID ROCHA ANDRADE DA SILVA

EQUIPE DA PESQUISA
SIMONE GUERESI DE MELLO
ALAM GONÇALVES GUIMARÃES, ALESSANDRO SANTIAGO ULHÔA CINTRA
JACILEIDE DO SOCORRO CASTRO DO MONTE, MARIA APARECIDA TEIXEIRA DOS SANTOS

CONSULTORES
ELIANE ARAÚJO, LISEANE MOROSINI, MARIA RAQUEL GOMES MAIA PIRES
MARLETE R. CARVALHO DE SALES OLIVEIRA

APOIO TÉCNICO
TELTEC-TELEMARKETING (BRASÍLIA)

AGRADECIMENTOS
DIRETORIA DE ADMINISTRAÇÃO E FINANÇAS DO IPEA E COORDENAÇÃO EDITORIAL DO IPEA

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
MARIA DO SOCORRO ELIAS DE MENESES E XAVIER DYSARZ

PROJETO GRÁFICO, EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E REVISÃO


CLARISSA SANTOS E MARIA TEREZA LOPES TEIXEIRA

O direito à convivência familiar e comunitária : os abrigos para crianças e


adolescentes no Brasil / Enid Rocha Andrade da Silva (Coord.).

Brasília : IPEA/CONANDA, 2004. 416 p.: il.

1. Direito do menor-Brasil. 2. Estatuto da Criança e do Adolescente-Brasil


(l990). 3. Criança-Proteção-Brasil. I. Silva, Enid Rocha Andrade da II. IPEA.
III. CONANDA

CDD. 342.1641
CONANDA

Nilmário Miranda José Fernando da Silva


Presidente Vice-Presidente

REPRESENTANTES GOVERNAMENTAIS
GESTÃO 2003 A 2004

Casa Civil da Presidência da República Ministério das Relações Exteriores


Titular Titular
Ivanildo Tajra Franzosi Maria Luiza Ribeiro Viotti
1ª Suplente 1º Suplente
Kátia dos Santos Pereira Andrea Giovannetti
2ª Suplente 2º Suplente
Tereza Cristina Silva Cotta Christiano Sávio Barros Figueirôa

Secretaria Especial dos Direitos Ministério da Educação


Humanos da Presidência da República Titular
Titular Shoko Kimura
Nilmário Miranda 1ª Suplente
1º Suplente Cleyde de Alencar Tormena
Mário Mamede Filho 2ª Suplente
2ª Suplente Roseana Pereira Mendes
Antonia Puertas Jimenez
Ministério da Saúde
Secretaria Especial de Políticas de Titular
Promoção da Igualdade Racial da
Regina Celeste Bezerra Affonso de Carvalho
Presidência da República
1ª Suplente
Titular
Thereza de Lamare Franco Netto
Cristina de Fátima Guimarães
2ª Suplente
1º Suplente
Alexia Luciana Ferreira
Denise Antonia de Paula Pacheco
2º Suplente
Ministério da Fazenda
José Carlos Rodrigues Esteves
Titular
Rosângela Fragoso de Mendonça Santiago
Ministério da Justiça
Suplente
Titular
Helda Renilda Meireles Borba
José Luis Gonzaga de Oliveira
1ª Suplente
Graciela Leite Pinto
2ª Suplente
Myriam Bréa Honorato de Souza
Ministério do Trabalho e Emprego Ministério do Planejamento, Orçamento
Titular e Gestão
Eunice Léa de Moraes Titular
1ª Suplente Enid Rocha Andrade da Silva
Silvana Márcia Veloso de Castro 1ª Suplente
2º Suplente Luseni Maria Cordeiro De Aquino
José Adelar Cuty da Silva 2ª Suplente
Nair Heloisa Bicalho de Souza
Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate a Fome Ministério do Esporte
Titular Titular
Marcia Helena Carvalho Lopes Alcino Reis Rocha
1ª Suplente 1º Suplente
Margarida Munguba Cardoso Meyre France Ferreira Leão
2º Suplente 2º Suplente
Joseleno Vieira dos Santos Roberto Liáo Júnior

Ministério da Cultura Ministério da Previdência Social


Titular Titular
Ricardo Anair Barbosa de Lima Ana dos Santos Braga
1ª Suplente 1º Suplente
Ana Maria Angela Bravo Villalba Laerte Ricarte Júnior
2º Suplente 2º Suplente
Napoleão Alvarenga Filho Eliane Lourenço da Silva

REPRESENTANTES DE ENTIDADES NÃO-GOVERNAMENTAIS NO CONANDA


GESTÃO 2003 A 2004

Associação Brasileira de Magistrados e Sociedade Brasileira de Pediatria – SBP


Promotores da Justiça, da Infância e da Representante: Rachel Niskier Sanchez
Juventude/ABMP
Representante: Simone Mariano da Rocha
Associação Brasileira de Organizações
não-governamentais - Abong
Fundação Fé e Alegria do Brasil Representante: José Fernando da Silva
Representante: Cláudio Augusto Vieira da Silva
Ordem dos Advogados do Brasil - OAB
Conselho Federal de Serviço Social – Representante: Marta Marília Tonin
Cfess
Representante: Elisabete Borgianni
Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil - CNBB
Central Única dos Trabalhadores – CUT Representante: Maria das Graças Fonseca Cruz
Representante: Maria Izabel da Silva
Federação Nacional das APAE’s UBEE – União Brasileira de Educação e
Representante: Laura Nazareth de Azevedo Ensino
Rossetti Representante: Pedro Vilmar Ost

Movimento Nacional de Meninos e Conselho Federal de Psicologia


Meninas de Rua - Mnmmr Representante: Sandra Maria Francisco de
Representante: Maria Júlia Rosa Chaves Amorim
Deptulski
Visão Mundial
Pastoral da Criança – Organização de Representante: Welinton Pereira da Silva
Ação Social da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil – CNBB
Representante: Irmã Beatriz Hobold

REPRESENTANTES DE ENTIDADES NÃO-GOVERNAMENTAIS – SUPLENTES

Salesianos - Inspetoria São João Bosco Confederação Geral dos Trabalhadores -


Representante: Jessimar Dias Pereira CGT
Representante: Antonio Pereira da Silva Filho
Associação Brasileira Multiprofissional
de Proteção a Infancia e Adolescencia - Fundação Abrinq Pelos Direitos da
Abrapia Criança – Abrinq
Representante: Vânia Izzo de Abreu Representante: Maria de Lourdes Alves
Rodrigues
Instituto de Pesquisa, Ação de
Mobilização – IPAM Centro de Referencia, Estudos e Ações
Representante: Anamaria Mühlenberg da Silva Sobre Crianças e Adolescentes.
Representante: Vicente de Paula Faleiros
Sobre os autores
Coordenada por Enid Rocha Andrade da Silva, esta publicação reúne
os seguintes autores:

Anna Maria T. Medeiros Peliano, socióloga, pós-graduada em


Política Social pela UnB, foi coordenadora do Núcleo de Estudos da
Fome da UnB (1987-1992), diretora de Política Social do IPEA (1992-
1994), membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar - Consea
(1993/1994) e secretária-executiva da Comunidade Solidária (1995-
1998). Atualmente é diretora da Diretoria de Estudos Sociais do IPEA.

Enid Rocha Andrade da Silva, economista pela Unicamp, mestre


em Economia pela UFMG, pesquisadora do IPEA e conselheira do
Conanda. Na área dos direitos da criança e do adolescente é autora de
importantes trabalhos, tendo sido coordenadora do Mapeamento
nacional da situação das unidades socioeducativas para o adolescente
em conflito com a lei, realizado em parceria com a Secretaria Especial
de Direitos Humanos em 2002.

Nathalie Beghin, economista formada pela Universidade Livre de


Bruxelas e mestra em Políticas Sociais pela UnB, trabalhou no Programa
de Combate à Fome e à Miséria (1993-94), e no Programa Comunidade
Solidária. É pesquisadora do IPEA, membro do Conselho Diretor do
Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc e presidente da Ação
Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos - Abrandh.

Luseni Maria Cordeiro de Aquino é graduada em Ciências Sociais


pela UFMG e mestra em Sociologia pela UnB. Técnica de planejamento
e pesquisa do IPEA desde 1997, tem atuado nos estudos sobre gasto
social, acesso à Justiça e garantia dos direitos da infância e da adoles-
cência no Brasil.
Simone Gueresi, arquiteta e mestra em Planejamento Urbano pela
UnB, atua como consultora na área de planejamento estratégico em
diversas instituições governamentais. É co-autora do estudo O
adolescente em conflito com a lei: situação do atendimento institucional
no Brasil (IPEA/Brasília).

Siro Darlan de Oliveira, juiz titular da 1ª Vara da Infância e da


Juventude da Comarca do Rio de Janeiro, possui diversos artigos
publicados nos principais jornais do país e é autor do livro Da infância
perdida à criança cidadã. Por sua contribuição à causa dos Direitos
Humanos, recebeu diversos prêmios de honra ao mérito.

Úrsula Lehmakuhl Carreirão, mestranda em Serviço Social pela


UFSC, assistente social lotada na Secretaria de Estado do
Desenvolvimento Social, Urbano e do Meio Ambiente/SC, participou
da elaboração de ações e pesquisas voltadas ao resgate de direitos de
crianças e adolescentes com medida de proteção em abrigo e de incentivo
a adoção.

Roberto da Silva, pedagogo, mestre e doutor em Educação, leciona


na Faculdade de Educação da USP. Como consultor do Unicef, atuou
junto ao Comitê Nacional de Abrigos em 2003 e 2004 e integra a
Comissão Intersetorial para Promoção, Garantia e Defesa do Direito a
Convivência Comunitária. Dentre seus livros e artigos destaca-se Os
filhos do governo, publicado pela editora Ática.
Agradecimento

A Coordenação da Pesquisa agradece a todos os dirigentes

e profissionais de abrigo que se dispuseram a responder ao

questionário enviado pelo IPEA e que, com desprendimento,

disponibilizaram as informações necessárias. Esta atitude

participativa e colaborativa foi fundamental para os resultados

aqui apresentados.

Enid Rocha Andrade da Silva

Coordenadora da Pesquisa
Prefácio
Em boa hora nos chega às mãos este livro-relatório “O direito
à convivência familiar e comunitária: os abrigos para
crianças e adolescentes no Brasil”, realizado a partir de
uma pesquisa encomendada ao Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada - IPEA pela Subsecretaria de Promoção
dos Direitos da Criança e do Adolescente e pelo Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA), no âmbito de um colóquio sobre abrigos que,
em meados de 2002, reuniu Governo e sociedade civil para
debater a questão.

Tão diligentemente conduzida pela economista e


pesquisadora do IPEA Enid Rocha Andrade da Silva, a pesquisa
nos eleva a um novo patamar de conhecimento sobre essa
importante faceta da nossa realidade institucional,
contribuindo para retirar da sombra do esquecimento
milhares de crianças e adolescentes brasileiros, que vivem
atualmente em abrigos, privados do direito básico e funda-
mental, que todo ser humano possui, de crescer no seio de
uma família e de uma comunidade. Superando uma visão
difusa do problema, baseada em impressões e dados
assistemáticos, inauguramos com esse estudo uma nova
etapa no processo de reordenamento de abrigos, iniciado
há 14 anos com o advento do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). A informação sistematizada e de âmbito
nacional, com que nos brinda a pesquisa, ainda que restrita
aos 589 estabelecimentos que compõem a rede de abrigos
que recebem recursos do Governo Federal, aponta várias
tendências no perfil desse tipo de entidade e dos seus
usuários, deitando luz sobre aquilo que até então era somente
entrevisto.
Sem querer antecipar-me ao leitor, nos achados e questões

que a pesquisa nos coloca, gostaria de comentar dois

pequenos conjuntos de dados que compõem este livro-

relatório. Em primeiro lugar, o fato de 86,7% das crianças e

adolescentes abrigados possuírem família, com a qual a

maioria mantém vínculos (58,2%), sendo os motivos

relacionados à pobreza os mais citados para o abrigamento

(52%). Ainda assim, o tempo de duração da

institucionalização variando entre 2 e 5 anos para 32,9% de

todos os abrigados. Indevidamente, e violando direitos

consagrados no ECA, a medida protetiva de abrigo em

entidade, originalmente de caráter provisório e excepcional,

vem sendo aplicada de maneira indiscriminada no Brasil, o

que nos obriga a gestar políticas públicas voltadas a essas

famílias e programas especiais de apoio sócio-familiar para

sustentar uma política de preservação de vínculos.

Interessante perceber também que, do universo pesquisado,

68,3% dos abrigos são não-governamentais e 67,2% deles

possuem significativa influência religiosa. No que se refere à

manutenção dos abrigos não governamentais, cerca de 70%

dos recursos são próprios ou se originam de doações de

pessoas físicas ou jurídicas. A contribuição dos recursos

públicos (União, estados e municípios) situa-se em torno de

um terço do total. Não se trata, portanto, de uma institu-

cionalidade capitaneada por este ou aquele Governo, mas

que se funda em raízes histórico-culturais que remetem à

formação da sociedade brasileira e a certas representações

acerca da criança e da família pobres, que apesar de

constituírem velhos paradigmas, ainda subsistem e

prevalecem fortemente no fazer cotidiano das entidades de

atendimento e no de muitas organizações que compõem o

chamado Sistema de Garantia de Direitos.


Este é, precisamente, outro grande mérito do livro, que não
se detém na descrição do ente pesquisado, mas procura
refazer o percurso histórico da institucionalização de crianças
e adolescentes no Brasil, realizando uma extensa revisão da
literatura sobre o tema e aportando contribuições teóricas
que aprofundam significativamente a análise dos dados
obtidos e as suas conclusões.

Uma mudança cultural se dá pela afirmação de novos valores,


no momento em que estes se tornam dominantes e passam
a ser adotados pelo conjunto da sociedade e pelo Estado. O
país vem acumulando ao longo dos últimos anos
conhecimento e massa crítica nessa área. Como uma grande
onda em formação, uma nova mentalidade ganha forma e
espaço e, na agenda política, o tema se torna emergente.
Se, por um lado, a realidade ainda é bastante adversa, ações
e instituições, por outro, convergem e se articulam, nacional
e internacionalmente, num momento histórico ímpar para
promover e acelerar esse longo processo de mudança que,
no caso do Brasil, assume a proporção de um salto
civilizatório.

Vários fatores, sincronicamente, contribuem para a criação


de uma sinergia institucional orientada ao reordenamento:
a crescente produção de estudos e pesquisas, estaduais e
municipais, governamentais e não-governamentais sobre o
tema; o desenvolvimento de sistemas nacionais e
internacionais de informação, como o SIPIA e a Rede
Interamericana de Informação sobre a Infância (RIIN); o
desenvolvimento de programas e metodologias alternativas
ao abrigamento institucional, como o acolhimento familiar
e o apadrinhamento afetivo; a realização do XIX Congresso
Pan-Americano da Criança, cujo tema foi “A família como
base para o desenvolvimento integral da criança e do
adolescente”; a proliferação e crescente organização dos
grupos de apoio à adoção; e o debate em torno do PL 1756
– Lei Nacional de Adoção.

No âmbito federal constituiu-se, por decreto presidencial,


uma Comissão Intersetorial para Promoção, Defesa e Garantia
do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Fami-
liar e Comunitária, com representantes dos Três Poderes, de
entidades representativas da sociedade civil, de conselhos e
de organismos internacionais, visando estabelecer diretrizes
políticas e um plano de ação nesta área. Ela substitui e amplia
o escopo do Comitê para o Reordenamento da Rede Nacional
de Abrigos, que participou e, de certa forma, construiu
conjuntamente o estudo apresentado neste livro, que agora
retroalimentará o processo de discussão da Comissão.

E assim avançamos, o conhecimento alimentando a ação,


buscando construir um país que seja verdadeiramente de
todos. Longe de esgotar o assunto, o trabalho realizado pelo
IPEA em parceria com a Secretaria Especial de Direitos
Humanos e o CONANDA, sob a coordenação da pesquisadora
Enid Rocha, qualifica e aquece o debate, mostrando a
necessidade de irmos muito além. Que a leitura dessa obra
instigue e mobilize a todos a tomar parte nessa construção,
é o que sinceramente desejamos.

Nilmário Miranda

Secretário Especial de Direitos Humanos e Presidente do


CONANDA
Índice
INTRODUÇÃO ........................................................................................... 17

CAPITULO 1 .............................................................................................. 21
Contextualizando o “Levantamento Nacional dos Abrigos
para Crianças e Adolescentes da Rede de Serviço de Ação Continuada”

CAPÍTULO 2 .............................................................................................. 41
O perfil da criança e do adolescente nos abrigos pesquisados

CAPÍTULO 3 .............................................................................................. 71
Um retrato dos abrigos para crianças e adolescentes
da Rede SAC: características institucionais, forma de organização
e serviços ofertados

CAPÍTULO 4 .............................................................................................. 99
Quem cuida? O quadro de recursos humanos nos abrigos

CAPÍTULO 5 ........................................................................................... 135


O ambiente físico no qual vivem crianças e adolescentes em
situação de abrigo

CAPÍTULO 6 ........................................................................................... 169


O financiamento dos abrigos para crianças e adolescentes no Brasil

CAPÍTULO 7 ........................................................................................... 195


O Estatuto da Criança e do Adolescente e a percepção
das instituições de abrigo
CAPÍTULO 8 ........................................................................................... 209
Os abrigos para crianças e adolescentes e a promoção do direito à
convivência familiar e comunitária

CAPÍTULO 9 ........................................................................................... 243


O voluntariado nos abrigos: uma profissão de fé

CAPÍTULO 10 ......................................................................................... 287


A construção do direito à convivência familiar e comunitária no Brasil

CAPÍTULO 11 ......................................................................................... 303


Modalidades de abrigo e a busca pelo direito à convivência
familiar e comunitária

CAPÍTULO 12 ......................................................................................... 325


A rede de proteção a crianças e adolescentes, a medida protetora
de abrigo e o direito à convivência familiar e comunitária:
a experiência em nove municípios brasileiros

CAPÍTULO 13 ......................................................................................... 367


O Judiciário e a medida de abrigo no âmbito da proteção integral:
a experiência do Rio de Janeiro

ANEXO ................................................................................................... 379


Questionário usado na pesquisa

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