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http://dx.doi.org/10.24933/horizontes.v35i3.

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A clínica da atividade no Brasil: por uma outra psicologia do trabalho


Cristiane Lisbôa da Conceição*
Roberta Pereira Furtado da Rosa **
Claudia Osorio da Silva***

Resumo
Este artigo tem como proposta explorar um campo de coerência para a psicologia do trabalho no Brasil por meio
de algumas pesquisas em clínica da atividade. Dentre as heranças que o compõem, destacam-se o campo da
saúde do trabalhador e a análise institucional. Também outras referências como Oddone, Wisner e Canguilhem
fazem parte desse campo, marcado por uma multirreferencialidade em que a pesquisa-intervenção se constitui na
construção de métodos de análise a partir da situação de trabalho. Afirmamos uma psicologia do trabalho que
valoriza a controvérsia como fonte de desenvolvimento de recursos de ofício.
Palavras-Chave: Psicologia do trabalho; Clínica da atividade; Análise institucional; Saúde do trabalhador.

La clinique de l’activité au Brésil: pour un autre psychologie du travail

Résumé
L’objectif de cet article est d’explorer un champ de cohérence pour la psychologie du travail au Brésil au moyen
de certaines recherches en clinique de l’activité. Parmi les héritages qui le composent, se distinguent le domaine
de la santé du travailleur et l’analyse institutionnelle. D’autres références comme Oddone, Wisner et Canguilhem
font également partie de ce domaine, marqué par une multiréférentialité dans laquelle la recherche-intervention
se constitue dans la construction de méthodes d’analyse à partir de la situation de travail. Nous affirmons ainsi
une psychologie du travail valorisant la controverse comme source de développement de ressources de métier.
Mots clés: Psychologie du travail; Clinique de l’activité; Analyse institutionnelle; Santé du travailleur.

Introdução nosso coletivo: um estranhamento e uma


dificuldade em definir o que é a psicologia do
A clínica da atividade se constituiu na trabalho. Tomando esse estranhamento como motor
França, nos anos 1990, como uma vertente da da atividade de pesquisa, os estudantes foram em
psicologia do trabalho. É apresentada por Yves Clot busca de uma definição que estivesse presente no
(2010b) como herdeira de uma tradição francófona discurso do corpo docente e discente da
em que se destacam a psicologia ergonômica universidade.
desenvolvida por Faverge e Leplat, a ergonomia de Como resultado, encontraram, é claro,
Wisner e a psicopatologia do trabalho francesa, com diferentes sentidos possíveis para a psicologia do
o trabalho de Le Guillant. Na perspectiva da clínica trabalho, mas gostaríamos de destacar um deles em
da atividade, o trabalho exerce uma função especial: o discurso que cinde a psicologia entre
psicológica, podendo ser fonte de saúde ou aquela que cuida da saúde dos trabalhadores e uma
adoecimento. No Brasil, ela tem sido assumida em outra que gerencia os processos organizacionais.
grupos de pesquisa, que, de diferentes modos, a Nesse artigo, buscamos, a partir do campo
tomam como ferramenta para as suas práticas de de coerência que temos constituído, afirmar um
pesquisa e intervenção. compromisso de romper com esse binarismo,
Desse modo, temos construído, com a contribuindo para uma renovação da psicologia do
clínica da atividade e outras heranças teórico- trabalho. Com a clínica da atividade, reiteramos
metodológicas, um campo de coerência que tem uma psicologia tout court, uma psicologia do
dado sentido à prática universitária de pesquisa, desenvolvimento humano, coletivo e pessoal, “visto
ensino e extensão no campo da psicologia do como história”1. Essa psicologia tem o estudo e a
trabalho. Nessa atividade, recentemente nos intervenção em situação de trabalho como uma de
deparamos com uma questão interessante no grupo suas vias de desenvolvimento.
de estudantes de graduação da Universidade Federal A seguir, acompanharemos alguns
Fluminense, em Niterói-RJ, que participam de fundamentos desse posicionamento, passando pelo
*
Endereço eletrônico: cristianelisboa@gmail.com
**
Endereço eletrônico: robertafur@gmail.com
***
Endereço eletrônico: claudia.osorio.uff@gmail.com
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campo da saúde do trabalhador (MINAYO- entre trabalho, ambiente e saúde, construído a partir
GOMEZ, 2011), pela análise institucional da noção de que a classe trabalhadora trazia em seus
(LOURAU, 1993) e pelas contribuições de Ivar corpos as marcas do desenvolvimento capitalista
Oddone, Alain Wisner e Georges Canguilhem2. pós-guerras. Como descreve a autora:

Saúde do trabalhador e clínica da atividade: A experiência do ambientalismo do trabalho


mútuas interferências italiano começou quando uma geração de
“especialistas” militantes - médicos, engenheiros
Na década de 1990, ao mesmo tempo em e sociólogos do trabalho - começaram a entrar
nas fábricas do milagre econômico, ali
que se concebia na França a clínica da atividade,
chamados pelo mesmo movimento sindical na
diversos pesquisadores brasileiros procuravam o etapa crucial do “Outono quente”, e encontraram
país com o objetivo de viver experiências de o conhecimento dos riscos encarnado pelos
formação. Somava-se a esse fértil encontro o trabalhadores e as trabalhadoras. Esse primeiro
interesse pelas análises dos processos de trabalho, encontro havia sido preparado, por um lado,
fruto das experiências e conquistas brasileiras no pelas reflexões sobre a relação entre saber e
campo da saúde pública e da saúde do trabalhador. poder típica do movimento estudantil e, por
O campo da saúde do trabalhador (ST) abriu outro, pela consciência do movimento operário
caminho e sedimentou uma importante tradição de (e da opinião pública) da existência de um
estudos sobre a relação entre saúde e trabalho no enorme problema de saúde / segurança no
trabalho causado pelo chamado “milagre
Brasil. Ele emergiu no contexto de transição
econômico” (BARCA, 2010, p.11).
democrática do início dos anos 1980 (MENDES;
DIAS, 1991, MINAYO-GOMEZ; THEDIM-
Já a América Latina sente as ressonâncias
COSTA, 1997), alinhado aos eventos de
desses movimentos na década de 1980, quando,
contestação que ocorriam na Europa já desde o final
como resultado da transnacionalização da
da década de 1960.
economia, torna-se o principal palco de atuação das
Inserida no campo mais amplo da saúde
indústrias pesadas e da poluição ambiental (com o
pública, a saúde do trabalhador tem a Constituição
asbesto, chumbo, agrotóxicos, etc.). Desse modo,
de 1988 como um importante marco, já que nela a
apontando a centralidade do trabalho na vida
execução das ações em prol da saúde do trabalhador
moderna, a teoria da determinação social do
é atribuída ao Sistema Único de Saúde (SUS),
processo saúde-doença ganha corpo no movimento
passando a ser um direito de todos e dever do
da Medicina Social Latino-americana,
Estado brasileiro. Tais direitos são reafirmados pela
influenciando, em nosso país, o campo da ST.
Portaria nº 1.823 de 2012 que institui a Política
Segundo Minayo-Gomez e Thedim-Costa
Nacional de Saúde do Trabalhador e da
(1997), o campo da ST no Brasil representa uma
Trabalhadora (BRASIL, 2012).
vontade, um compromisso, que entrelaça
Nos países europeus, a segunda metade da
trabalhadores, profissionais da saúde e
década de 1960 representou um momento de intensa
pesquisadores, entre outras categorias, em direção a
efervescência política onde o sentido do trabalho e
uma mesma meta: a mudança das condições de
da vida foram questionados. Isso ocorreu, entre
saúde da população brasileira, especialmente a
outras coisas, em decorrência da crise da sociedade
trabalhadora, entendendo o processo produtivo
de consumo e do esgotamento do modelo
como fator determinante dessas condições de saúde.
organizacional taylorista-fordista (ALLIEZ;
FEHER, 1988). Um outro fato relevante diz respeito Em síntese, por Saúde do Trabalhador
aos danos causados à vida pela falta de condições compreende-se um corpo de práticas teóricas
adequadas de saúde e segurança no trabalho, que interdisciplinares – técnicas, sociais, humanas –
foram tão significativos a ponto de não ficarem e interinstitucionais, desenvolvidas por diversos
muito atrás do grande saldo de mortes decorrentes atores situados em lugares sociais distintos e
dos conflitos bélicos ocorridos no mesmo século. informados por uma perspectiva comum. Essa
Na Itália, podemos destacar neste período a perspectiva é resultante de todo um patrimônio
atuação do movimento operário, que tinha como acumulado no âmbito da Saúde Coletiva, com
propósito combater a nocividade nos ambientes de raízes no movimento da Medicina Social latino-
americana e influenciado significativamente
trabalho. Seu ponto de partida teórico, segundo
pela experiência italiana. O avanço científico da
Barca (2010), era a unidade orgânica e material

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Medicina Preventiva, da Medicina Social e da e métodos que dão destaque à experiência dos
Saúde Pública, durante os anos 60 e o início da trabalhadores e ao seu protagonismo na busca por
década de 70, ao suscitar o questionamento das melhores condições de trabalho e de vida. Nesses
abordagens funcionalistas, ampliou o quadro grupos é comum a aproximação de conceitos
interpretativo do processo saúde- doença,
advindos de diversas tradições acadêmicas,
inclusive em sua articulação com o trabalho
(MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1997, operando múltiplas composições. Assim, em um de
p.25). seus desenvolvimentos, os conceitos da clínica da
atividade se articulam, em novos planos de
Nesse sentido é importante pontuar que a coerência, com conceitos da vigilância em saúde do
ST se diferencia do campo da Saúde Ocupacional – trabalhador (OSORIO; MACHADO; MINAYO-
sucessora da Medicina do Trabalho – na medida em GOMEZ, 2005; OSORIO; CLOT, 2010) e da
que esta parte de uma visão estritamente biomédica análise institucional francesa (OSÓRIO DA SILVA;
e individualizante das questões de saúde, ou melhor ZAMBONI; BARROS, 2016). Ou articulam clínica
dizendo, das patologias relacionadas ao trabalho. da atividade, saúde do trabalhador e ergologia
Sendo assim, a Saúde Ocupacional naturaliza as (SANTORUM, 2006, BARKER, 2005). Outros, no
condições de trabalho e os modelos organizacionais, campo da análise do trabalho, sobretudo em saúde e
não trazendo para suas análises os processos educação, privilegiam articulações com a filosofia,
históricos, políticos e sociais que culminaram nos embarcando em inspirações espinosistas que
quadros analisados. Suas intervenções acabam por encontramos em textos da clínica da atividade
se restringir a questões pontuais e riscos mais (AMADOR; BARROS; FONSECA, 2016; MAIA,
evidentes, como a utilização de equipamentos de 2006), por vezes fazendo articulações com os
proteção individual, o que alimenta uma perspectiva trabalhos de Bergson e Deleuze (BARROS;
de responsabilização e penalização dos LOUZADA, 2009, 2010; LOUZADA, 2009;
trabalhadores quando as doenças e os acidentes TEIXEIRA; BARROS, 2009).
efetivamente ocorrem. Em um caminho que valoriza o percurso
A ST põe em cena avanços significativos no francês, mas segue com características próprias,
âmbito conceitual que apontam um novo enfoque e podemos citar alguns grupos brasileiros e suas
novas práticas para lidar com a relação entre saúde e especificidades. Alguns destes afirmam seu
trabalho, embora ainda se observe a hegemonia da desenvolvimento na transdisciplinaridade: N-
Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional PISTA(s) – Núcleo de Pesquisas Instituições,
(MINAYO-GOMEZ, 2011). Por isso, a luta dos Subjetivação e Trabalho em Análise(s), na UFRGS;
trabalhadores por melhores condições de vida o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e
persiste. Se lançarmos um olhar à história Políticas, na UFES; o Nutras - Núcleo de Estudos e
contemporânea, veremos diferentes momentos desta Intervenções em Trabalho, Subjetividade e Saúde,
luta pela saúde, que são desdobramentos dos na UFF. Outros dialogam com métodos
movimentos de ascensão e modulação do quantitativos e com outras correntes da psicologia
capitalismo na humanidade. É claro que tanto a do trabalho como o GEPET – Grupo de Estudos e
saúde quanto o trabalho são temas que podem ser Pesquisas sobre o Trabalho, na UFRN. E outros
abordados de diversos modos em diferentes ainda se situam em núcleos de pesquisa fora da
momentos históricos. Mas o capitalismo inaugurou psicologia, na linguística ou na educação como, por
um regime social, político e econômico específico, exemplo, as pesquisas do Grupo de Pesquisas
sob o qual podemos entender esse campo de lutas, Pensamento e Linguagem (GPPL – Unicamp), do
pesquisas e intervenções – conhecido no Brasil grupo de Linguística Aplicada e Estudos da
como saúde do trabalhador – como uma réplica, um Linguagem (LAEL – PUC-SP) e dos grupos Análise
colocar em debate (CONCEIÇÃO, 2015). da Linguagem, Trabalho Educacional e suas
Isso posto, as pesquisas brasileiras em Relações (ALTER-USP) e Linguagem, Atividade e
análise do trabalho ressoam a efervescência das Desenvolvimento Humano (LAD'Humano-
conquistas no campo da ST, do qual muitos UTFPR), entre outros.
pesquisadores que buscaram se aproximar das Vale lembrar que para a clínica da
clínicas do trabalho participaram ativamente. Desde atividade, no “exercício profissional, um
a década de 1990, grupos de pesquisa vêm se funcionamento nunca é idêntico, até mesmo em
constituindo no Brasil, desenvolvendo metodologias situação estabilizada” (CLOT, 2010a, p.29). Toda

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repetição comporta uma singularidade, ou seja, toda obra. Sendo assim, até a primeira metade do século
a atividade, inclusive a do pesquisador ou analista XX, as atividades dos psicólogos brasileiros eram,
do trabalho, se expressa de forma única em função predominantemente, relacionadas à seleção de
de seu endereçamento, jamais encontrando pessoal, ou seja, “não ultrapassavam o
situações e/ou destinatários idênticos. Desse modo, recrutamento, a seleção, o treinamento, a análise
a clínica da atividade em nosso país está a serviço ocupacional e a avaliação de desempenho”
de uma outra história, a brasileira. Clot reconhece (ZANELLI, BASTOS, 2004, p. 474).
este movimento no prefácio do livro de Rosemberg, Muitas críticas foram elaboradas a essa
Ronchi Filho e Barros (2014), que apresenta a psicologia – que se destacava no contexto norte-
produção de um grupo de pesquisa brasileiro sobre americano – e ao seu princípio do “homem certo no
o trabalho docente: lugar certo”, apontando, de um modo geral, que sua
prática está a serviço da exploração e da alienação
Vale dizer que não considero este livro como dos trabalhadores. Na França, a psicologia
uma “aplicação” da Clínica da Atividade, no cognitiva, a ergonomia e a psicopatologia do
Brasil. Essa seria uma ideia desastrosa. Os trabalho, cada uma a seu modo, cumpriram essa
textos que seguem, como encantadoramente o função crítica, desenvolvendo um leque de
enuncia um deles, “sujam” a Clínica da
ferramentas, teorias e possibilidades de atuação para
Atividade perturbando a geografia de suas
paisagens sedimentadas graças a uma outra o psicólogo do trabalho. Como aponta Clot:
história que não a história francesa. Felizmente,
para nós, para todos nós, brasileiros e franceses [...] a psicologia do trabalho jamais se voltou
(CLOT, 2014, p.12). completamente para a psicologia industrial “à
americana”. Certamente há a psicologia
industrial clássica na França, mas é menos forte
Desse modo, os pesquisadores brasileiros
que em outros países da Europa; não é, por
utilizam a clínica da atividade como recurso para exemplo, como na Espanha e na Alemanha. A
sua ação, partindo dos obstáculos que enfrentam em originalidade francesa é muito forte. Na França
seus contextos e de suas controvérsias herdadas de há duas razões para a psicologia do trabalho não
um patrimônio histórico singular. Sobre esse se transformar na psicologia industrial [...]. Há,
patrimônio, um primeiro ponto a se explorar é sobre então, duas raízes muito fortes: psicopatologia
a psicologia do trabalho no Brasil. do trabalho e ergonomia. Elas protegeram,
poderíamos assim dizer, a disciplina psicologia
Por uma outra psicologia... na qual o trabalho é do trabalho da psicologia industrial (CLOT,
operador de saúde 2006, p.100).

Se a constituição da psicologia do trabalho No Brasil, como afirma Codo (1984), os


no mundo, segundo autores como Zanelli e Bastos psicólogos críticos à psicologia industrial tenderam
(2004), está associada ao processo de a evitar a área do trabalho, referindo-se a ela como
industrialização, que ocorria de forma crescente nos uma espécie de irmã menor da psicologia, ou uma
países que se destacavam no cenário ocidental no especialidade daqueles que se vendem às leis do
fim do século XIX e início do século XX, no Brasil capital. Nesse ponto, apostamos, como o autor, na
sua gestação ocorreu em condições similares. Neste importância de ocupar, enquanto psicólogos, nosso
caso, associada a uma demanda de racionalização e lugar na fábrica, a partir do qual é possível
controle dos processos produtivos em pleno sustentar, junto aos trabalhadores, a viabilidade dos
processo de transformação de um país de economia ofícios operarem na saúde (CLOT, 2013).
agroexportadora para um país em industrialização Apesar das críticas, a psicologia industrial
(ZANELLI, BASTOS, 2004). Assim, ela surge teve várias linhas teóricas e uma profícua produção
enquanto uma psicologia a serviço da Organização de práticas que tinham em comum o olhar sobre o
Científica do Trabalho (OCT) e ganha legitimidade posto de trabalho. Entretanto, tais técnicas
antes mesmo do reconhecimento legal da profissão começaram a entrar em declínio à medida que os
em nosso país, o que ocorre na década de 1960. psicólogos passaram a discutir a estrutura das
Desse modo, como um fenômeno global, a organizações (SAMPAIO, 1998). Ampliando,
psicologia do trabalho se estabelece como uma então, o escopo de análise, a psicologia
psicologia industrial, uma psicotécnica, compondo organizacional passa a se preocupar também com as
um arsenal de ferramentas para gestão da mão-de- relações humanas e toma a organização como um

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sistema social complexo. 2010b, p.224). A transformação que a observação


Por outro lado, a psicologia organizacional produz, a interferência do pesquisador no campo
dá continuidade ao caráter essencialmente pesquisado, é um efeito tomado em sua
instrumental da psicologia industrial, positividade.
“supervalorizando as teorias comportamentais na Além disso, as clínicas do trabalho também
Psicologia, que maximizam a influência do afirmam em suas análises, por meio do conceito de
ambiente no comportamento humano e minimizam atividade, um real que é muito mais amplo do que o
as influências intrapsíquicas” (SAMPAIO, 1998, comportamento observável do trabalhador. Sobre
p.24). Desse modo, como afirma, Bendassolli: este ponto, a herança de Wisner e da ergonomia
francesa de modo amplo são fundamentais, já que,
A psicologia industrial está metateoricamente nos contextos reais de trabalho e pesquisa, a tríade
vinculada ao conceito de realidade objetiva, saber-prever-agir não é encarada como passos
especificamente ao de comportamento sequenciais da prática analítica, considerando-se a
observável, submetido a relações de causa e realidade apenas parcialmente previsível.
efeito. O que pode ter mudado, especialmente
Desse modo, a atividade real, para Wisner,
nas últimas cinco ou seis décadas, com sua
aproximação da psicologia organizacional, é o nada teria a ver com a perspectiva realista. Ele
deslocamento para uma concepção cognitivista rejeita os modelos simplificados e arbitrários de
do sujeito – embora mantendo, provavelmente, produção de conhecimento, sempre afirmando haver
as mesmas bases epistemológicas do realismo uma “relação dialética entre o estudo de campo e a
(BENDASSOLLI, 2011, p.78). experimentação, [...] no sentido de que o método
experimental não podia partir da ideia imprecisa de
Na perspectiva realista, conhecer refere-se um pesquisador a respeito do que se passa na
ao ato de acessar a realidade; uma realidade dada, situação concreta” (WISNER apud CLOT, 2010a,
sobre a qual construiríamos uma representação p.54). Assim, Clot, junto a Wisner, questiona o
fidedigna. Qualquer distorção seria um falso experimentalismo, propondo, para a psicologia do
julgamento ou uma falha do nosso sistema de trabalho, o estudo das situações concretas.
percepção e representação do mundo. Para que não Próxima dessa concepção também está a
ocorram esses enganos, o pesquisador – em sua psicologia defendida por Oddone, um importante
tarefa científica de desvelar a verdadeira natureza representante do Movimento Operário Italiano
do real – adota, então, uma postura neutra e (MOI). Isso porque Oddone e sua equipe
distanciada do seu objeto de estudo, passando a acreditavam que o encontro do operário com seu
produzir conhecimento a partir de experiências de posto de trabalho produz uma experiência crucial
laboratório. De modo geral, essa perspectiva é para transformação dos ambientes de trabalho. A
encontrada nas abordagens positivistas, que questão fundamental de Oddone (2007) era como
orientam tanto a psicologia industrial quanto a produzir um intercâmbio, uma comunicação, entre a
organizacional. linguagem médica e a linguagem operária/sindical.
Por outro lado, a clínica da atividade, e as Ele passa a concentrar seus esforços no sentido de
demais clínicas do trabalho, de um modo geral, são construir uma linguagem nova que pudesse servir de
tradicionalmente críticas quanto ao ideal de interface. Algumas ferramentas produzidas pelo
neutralidade do pesquisador/analista, trazendo ao MOI que possibilitaram trilhar esse caminho foram
debate os efeitos produzidos pela observação, a técnica de construção de mapas de risco e o
enquanto método de pesquisa, naquele que é método de instruções ao sósia. Elas permitem
observado. Para Clot, a observação implica um enxergar os trabalhadores como sujeitos ricos de
duplo movimento a ser acompanhado: ela produz uma experiência que o analista não tem e ao mesmo
conhecimento sobre a atividade de trabalho para o tempo fabricar uma linguagem comum que
pesquisador, mas principalmente, produz uma possibilita formalizar e transmitir os saberes da
atividade no observado, ou seja, “o observado experiência.
procura se apresentar da melhor forma possível, e Por meio dessa construção, Oddone e sua
representar aquilo que o outro quer ver. E isso equipe se dedicaram, portanto, a “fazer de outra
provoca alguma coisa que não se vê, que é o diálogo maneira a psicologia do trabalho” (CLOT, 2010a,
interior do trabalhador, se observando no momento p.84), buscando a via da superação dos obstáculos
mesmo em que os outros o observam” (CLOT, que se colocam nas situações concretas, ao invés de

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apenas protestar por melhores condições ou prever e controlar a iniciativa operária por meio de
barganhar compensações financeiras. Nessa métodos que privilegiam a matematização da
psicologia, que reconhece que aquele que trabalha é experiência. É assim que, como nos explica
o que melhor pode falar do trabalho em questão, a Canguilhem a partir de análise do trabalho de
objetividade e a neutralidade positivistas não fazem Friedmann3, essa racionalização, assumida por
sentido. Como poderia o analista do trabalho / exemplo pela psicotécnica ao tomar o homem como
pesquisador desvelar o real dos contextos de objeto, choca-se com a resistência da subjetividade
trabalho? Pela via sugerida por Oddone, não há o humana:
que desvelar, só há o que inventar. Nossa tarefa
consiste, então, em inventar estratégias com os O comportamento operário se revela como um
trabalhadores, construindo junto e ampliando, dado rebelde à previsão e ao cálculo. A prática
assim, o raio de ação de ambos, analistas e operária de restrição de rendimento é um
trabalhadores. sintoma da não integração do operário à
empresa. Acredita-se poder remediar isso pelo
Seguindo essas pistas,
desenvolvimento dos serviços sociais, clubes,
sociedades esportivas. Mas é claro que a
[...] diríamos que as metodologias de pesquisa insuficiência destas práticas revela a
que operamos no campo do trabalho, afirmam incapacidade em que se encontram os
um construtivismo radical (CLOT, 2008a; investigadores ("enquêteurs"), agentes a serviço
BARROS; LOUZADA, 2009). Buscam não suas da empresa, de ver a empresa com olhos de
regularidades a partir de hipóteses e variáveis operários, de ver a empresa na sociedade, no
controladas, mas ressaltam as possibilidades de lugar de fazer coincidir a sociedade e a empresa.
divergir, os movimentos de inventividade do Os motivos da resistência operária à
viver, num constante processo de diferenciação racionalização são qualificados de irracionais,
que se atualiza nos cotidianos dos trabalhadores isto é, finalmente, de anormais
em situação concreta. E para isso é necessário (CANGUILHEM, 2001, p.120).
colocar-se no campo de outro modo, é
necessário produzir os dados (e não coletá-los),
pois não se considera a existência de um mundo Desse modo, essa racionalização científica,
do trabalho (ou mundos do trabalho) que estaria ao se acreditar absoluta, cai na ilusão dos
aí pronto a ser desvendado (OSORIO DA universais, esquece-se que existem outros sentidos e
SILVA; BARROS; LOUZADA, 2011, p. 197). outros objetivos, que não o lucro, a se realizarem
por meio do trabalho. Como lembra o autor: “Não
É importante notar que essa construção há, portanto, uma racionalização, mas
empreendida na análise da atividade se produz no racionalizações” (CANGUILHEM, 2001, p.113).
diálogo entre os trabalhadores e os Seria, então, a racionalização operária uma
analistas/pesquisadores, ou seja, estes descartam o anomalia? A divisão entre a concepção e a execução
papel de especialista, como aquele que vai orientar do trabalho nos responde implicitamente que sim.
os trabalhadores sobre os melhores modos de agir Mas é importante lembrar que essas racionalizações,
no trabalho. Atuar dessa maneira seria cair em uma ao fabricarem diferentes normas, encontram sua
ilusão cientificista, que, como denuncia diversidade na pluralidade de valores em jogo em
Canguilhem, possui “a pretensão de deduzir e toda organização econômica, política e social.
comandar todo o progresso humano a partir
unicamente do progresso do conhecimento Afinal, os valores que davam sua forma de
científico” (2001, p.111). Esse modo de pensar normas aos resultados da cronometragem
desconsidera a possibilidade de escolha dos taylorista, encontravam-se presentes, mesmo
que latentes, porque não discutidos, no
indivíduos e embarca na racionalização concebida
pensamento de Taylor, em um certo momento
por Taylor na OCT. do progresso capitalista na América do Norte,
Entretanto, a atividade de trabalho sempre quando em período de abundância de mão-de-
implica escolhas, mais precisamente, na atividade, obra, todo operário que não se dobrasse à
várias ações rivais entram em disputa, concorrem pretendida norma (the one best away) era
entre si, nessa atuação somente uma dessas ações se automaticamente despedido. Os problemas de
realizará. A ilusão da racionalidade científica, aptidões individuais, do normal individual e do
especificamente aquela referida ao trabalho normal coletivo para uma classe que não fosse a
predominantemente industrial, é a expectativa de dos empregadores não se colocavam
(CANGUILHEM, 2001, p.118).

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A clínica da atividade no Brasil: por uma outra psicologia do trabalho

Ao elaborar o método de instruções ao


Nessa variedade de normas e valores, é sósia, o médico e psicólogo italiano buscou cumprir
notória a dificuldade na definição daquilo que é com esses compromissos, fazendo de uma questão
considerado normal. Para Canguilhem, o “normal” técnica uma questão ética. Desse modo, ele propôs a
não tem sentido absoluto, é um termo ambíguo e só multiplicação das instruções sobre determinada
pode ser pensado na relação entre o vivente e meio. situação de trabalho: além daquelas que vêm da
Afinal, como defender que tal vivente, ou que tal chefia, fez emergir, com o método, instruções
ação, é ideal, se não no seu sucesso em reproduzir produzidas a partir da operacionalização do
sua existência em determinada situação concreta? trabalho. Com isso, buscou formalizar e transmitir a
Nessa perspectiva, não há a priori forma bem- experiência profissional, o que faz saltar aos olhos
sucedida ou falhada, não há normal ou patológico tudo que os trabalhadores fazem para que o trabalho
em si. Sendo o meio sempre infiel, a normalidade se efetivamente se realize.
faz quando a vida ensaia possibilidades, testa Por isso, é preciso também ver o trabalho
novidades, e o patológico ocorreria, na verdade, na como uma instância de saúde e de subversão, onde,
tentativa de suportar passivamente as mudanças do para além da execução, instituem-se novas normas
meio. A racionalidade operária é, assim, o modo dos de vida, criam-se novos meios. A atividade de
trabalhadores persistirem na sua existência. trabalho não é uma reação ao meio, “Ela livra –
Aqui afirmamos uma aposta clínica, que, correndo sempre o risco de fracassar nessa tentativa
mais precisamente, busca adaptar o trabalho ao – o sujeito das dependências da situação concreta e
homem – e não o contrário –, por meio de uma subordina a si o contexto em questão” (CLOT,
transformação protagonizada pelos trabalhadores. 2010a, p.8). Como nas catacreses, onde os
Afasta-se, dessa forma, qualquer possibilidade de o trabalhadores atribuem novas funções aos seus
analista do trabalho cooperar com a imposição de instrumentos de trabalho com o objetivo de realizar
uma ordem social pré-estabelecida, pois sua prática a tarefa da melhor maneira possível. Em atividade,
implica assumir que “ser normal não é ser adaptado os trabalhadores desenvolvem os objetos, os
à situação, mas ser criador de normas. Ser normal destinatários, os instrumentos, e a si mesmos,
não é ser conformado” (CLOT, 2008, p. 67). Para provando que a eficácia não é inimiga da saúde.
sustentar esse protagonismo é preciso, como nos
fala Clot inspirado em Tosquelles, cuidar do Outras interferências: a análise institucional
trabalho e não dos indivíduos. Cuidar, neste
contexto, significa pôr em ação, chamar à atividade, Apostando no desenvolvimento, a função
à construção coletiva de recursos para a ação, de do analista do trabalho em clínica da atividade seria
modo que “cuidar do trabalho é transformar a a implementação de dispositivos metodológicos,
organização do trabalho” (CLOT, 2010b, p.222). É construídos a partir de uma “coelaboração”, que
por essa via que podemos conceber o trabalho em almeja tornar-se instrumento para a ação dos
seu aspecto positivo, como um operador de saúde próprios trabalhadores. Isso significa buscar
(OSORIO DA SILVA; RAMMINGER, 2014), o produzir uma atividade sobre a atividade, ou seja,
que não significa negar a nocividade dos modos de fazer com que o trabalho seja objeto da atividade de
organização do trabalho hegemônicos, mas assumir pensamento, ou objeto do cuidado. Significa,
um compromisso coletivo de ampliar a potência também, sustentar uma espécie de “cooperação
normativa dos trabalhadores, frequentemente conflitual”4, ou seja, poder usar as divergências
amputada nesta conjuntura. como motores do desenvolvimento entre os
Podemos, ainda nessa linha, assumir uma trabalhadores e entre eles e a organização do
função social conquistada pelo coletivo de análise trabalho, a partir da discussão das controvérsias de
do trabalho por meio das intervenções em clínica da ofício e da qualidade do trabalho bem feito.
atividade. Trata-se de fazer com que o ponto de Cuidando do trabalho, os trabalhadores cuidam de si
vista do trabalhador, essa racionalização operária, e encontram a saúde no desenvolvimento dos
seja levada em consideração, exercendo influência recursos coletivos para ação.
na organização do trabalho. Conforme Oddone, não Desse modo, ao afirmar o protagonismo dos
devemos nos esquivar de tal compromisso apesar do trabalhadores nessa análise que se dá entre
difícil caminho que devemos percorrer para trabalhadores e analistas, a clínica da atividade
conquistá-lo. interpela o próprio papel de analista, colocando-o

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30 Cristiane Lisbôa da Conceição, Roberta Pereira Furtado da Rosa, Claudia Osorio da Silva

numa posição de horizontalidade com seu objeto. escândalo da análise institucional foi propor a noção
Com isso, não só questiona o paradigma de implicação, colocando em xeque, a seu modo, a
cientificista, mas nos faz pensar que a análise da neutralidade do pesquisador.
atividade dos trabalhadores acompanha a análise da
atividade dos analistas / pesquisadores. Afinal, Sabemos que a Psicanálise e algumas tendências
também se faz necessário ampliar os recursos para da Sociologia e da Antropologia há muito se
ação do ofício de analista do trabalho, bem como é interrogam sobre a posição do pesquisador
desejável que estes possam desenvolver-se em sua frente à sua produção. Portanto, não somos nem
completamente novos nem originais. Propomos,
atividade. Nesse ponto, a interlocução com a análise
ao contrário da idéia de "originalidade das
institucional é fundamental. idéias", a multireferencialidade. Esta não é
Uma importante ferramenta teórico-prática sinônimo de pluridisciplinaridade; não é uma
dessa linha de estudos e intervenções é o conceito mera coleção de disciplinas justapostas. Refere-
de implicação. Segundo Lourau (1993), essa se ao apelo a diferentes métodos e ao uso de
ferramenta traz uma crítica à ideia da neutralidade certos conceitos já existentes, a fim de construir
do pesquisador já que, como um prolongamento do um novo campo de coerência (LOURAU, 1993,
“escândalo psicanalítico” – ao forjar os conceitos de p.9-10).
transferência e contratransferência –, busca trazer
para cena da análise as relações que envolvem Aqui enxergamos um ponto de contato entre
pesquisador e objeto de pesquisa. a análise institucional e os comentários de Wisner,
feitos logo acima por meio dos escritos de Clot.
[...] a História – e em particular, a história das Para fugir dos reducionismos, construindo uma
ciências – nos mostra as implicações do indissociabilidade entre o estudo de campo e a
pesquisador em situação de pesquisa como o experimentação, é preciso sustentar a ideia de um
essencial do trabalho científico (mesmo tais real complexo e paradoxal, referenciável somente
implicações sendo negadas). Por exemplo, os por meio de múltiplos métodos, conjugados de
pesquisadores do programa de energia atômica forma rigorosa. Sobre esta questão, o ergonomista
nuclear puderam negar, durante muito tempo,
nos presenteia com uma linda imagem:
suas implicações e dizer: "isso não existe". Mas,
alguns anos após Hiroshima, os mesmos
Não se pode rejeitar nenhuma dessas
escreveram mil páginas de confissão, onde
abordagens. Vou propor uma imagem: a
afirmavam: "somos idiotas". E era tarde demais.
realidade é tão multiforme que é impossível
Sequer era "científico". A Análise Institucional
segurá-la com um dedo; para isso, será
tenta, timidamente, ser um pouco mais
necessário, no mínimo, utilizar dois e,
científica. Quer dizer, tenta não fazer um
provavelmente, três ou quatro. Somos levados,
isolamento entre o ato de pesquisar e o momento
cada vez mais, fatalmente a uma abordagem
em que a pesquisa acontece na construção do
múltipla, mas essa questão é crítica (WISNER
conhecimento. Quando falamos em implicação
apud CLOT, 2010a, p. 55).
com uma pesquisa, nos referimos ao conjunto de
condições da pesquisa. Condições inclusive
materiais, onde o dinheiro tem uma participação A questão é crítica porque não podemos
tão "econômica" quanto "libidinal" (LOURAU, perder o rigor. Lourau também nos atenta para a
1993, p.16). contradição de uma preocupação simultânea com a
multirreferencialidade e a coerência. O caminho,
Ao mesmo tempo, o conceito de então, seria nunca deixar de realizar uma reflexão
implicação, segundo o autor, tenta explorar um teórico-epistemológica da nossa prática científica,
outro campo de coerência que não o da psicanálise. papel que a análise de implicações busca cumprir.
A aparição de um novo campo de coerência se Desse modo, analisar as implicações envolve
revela na contradição entre uma nova disciplina e o colocar em questão as próprias condições de
saber instituído. Esse movimento de embate entre produção do saber, as relações de poder e as forças
saberes acontece a todo momento entre as que atravessam o encontro do pesquisador com o
disciplinas de uma universidade, por exemplo. Foi o campo pesquisado. Esse movimento é incompatível
que aconteceu com a própria Psicanálise quando era com o campo de coerência positivista, como afirma
formulada por Freud. O novo, ao questionar o o autor:
instituído, é entendido como incoerente, como
estranho, comportando, assim, um escândalo. O [...] hipotetizamos ser a implicação

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A clínica da atividade no Brasil: por uma outra psicologia do trabalho

incompreensível no C de C [campo de emergência de outros modos de agir (mais uma vez,


coerência] herdado; na melhor das hipóteses – no trabalho e na pesquisa).
ou na pior? –, isso dá lugar a mal-entendidos ou Sendo assim, a noção de implicação e sua
a pálidas recuperações neopositivistas [...]. [...], análise fazem parte do campo de coerência da
a implicação é integrada, por outros, como
análise institucional. Mas, para que esse tipo de
instrumento de produção de conhecimento, [...],
sem colocar em questão nossas condições de análise ocorra, é interessante que estejamos atentos
sobrevivência, quer dizer, a instituição científica àquilo que, em geral, é silenciado, deixado à sombra
enquanto realidade social que o observador [...] ou visto como algo de pouca importância. Essas
herda cegamente (LOURAU, 2004, p.217). coisas que são “faladas apenas em corredores, cafés,
Ao interrogarmos essa dimensão política, o ou na intimidade do casal” (LOURAU, 1993, p.51)
lugar em que o psicólogo se coloca e é colocado, ou revelam as implicações do pesquisador, podendo ser
seja, como aquele autorizado a lidar com a importantes disparadores da análise de implicação.
dimensão subjetiva do trabalho, nos jogamos numa Nesse processo de pesquisa, uma prática
experimentação que recusa o lugar de especialista que é problematizada por Lourau como caminho
do funcionamento dos humanos em situação de possível para realizar uma análise de implicações é
trabalho. a restituição. A restituição enquanto um conceito da
Sendo assim, acompanhamos o análise institucional visa, em última instância, uma
questionamento feito por Elizabeth Barros e real socialização da pesquisa, se constituindo
colegas: enquanto uma prática distinta daquela empreendida
tradicionalmente pelas ciências humanas – uma
Como recusar a esse “mandato social” que devolução de resultados. Segundo Lourau (1993,
atribui ao psicólogo do trabalho controlar, p.54), a restituição tem suas origens na etnologia
docilizar, esse “fator humano”, fator que indica colonialista em seu encontro com o processo de
a inviabilidade de considerar homens e mulheres descolonização. Nela, geralmente, a população
como máquinas? E mais, se afirmamos a
estudada era tratada como um “serviçal doméstico”,
potência da vida, como investir em práticas que
não nos anestesiem e nos tornem insensíveis ao que, após ser objetificada por esse discurso, pouco
que se passa nos mundos do trabalho, sabia sobre o que a partir dela se produzia. Quando
insensíveis ao que nos dizem aqueles que se muito, recebia, anos mais tarde, um artigo ou um
“sujam” cotidianamente nos ambientes laborais. livro publicado pelos responsáveis da pesquisa. Ao
Como nos diz Maia (2006): “tudo uma urgente contrário, a análise institucional propõe a restituição
questão de implicação, pois não fazer escolhas, como um procedimento intrínseco à pesquisa, uma
se deixar levar pelos acontecimentos, já é ter prática real, pessoal e implicada. A pesquisa, assim,
escolhido” (BARROS; LOUZADA; não se encerra em sua redação final, mas continua, e
VASCONCELLOS, 2008, p. 16). pode ser interminável. A população estudada, ao
receber a restituição, “se torna uma espécie de
Rejeitamos o “especialismo” (CHAUÍ, ‘pesquisador-coletivo’”, produzindo ela também,
1982), bem como a função de “gestão dos riscos novas restituições tanto ao pesquisador como ao seu
psicológicos” (CLOT, 2013) ou qualquer outra presente social e global. “Isso seria, efetivamente, a
proposta conscientizadora ou adaptacionista. socialização da pesquisa” (LOURAU, 1993, p.56).
Trabalhamos sim com a subjetividade, mas Desse modo, a noção de restituição,
buscando problematizar as relações nas quais problematizada, coloca em cena a participação da
estamos enredados, tanto no âmbito da intervenção população estudada na produção da pesquisa,
quanto nas práticas sociais em geral, por meio da questão cara para a clínica da atividade, que preza
análise de implicações. A análise, aqui, é por uma coanálise da atividade, e para a ST, que
fundamental porque implicado sempre se está, já busca o protagonismo dos trabalhadores na análise
que não existe sujeito ou grupo sem história. Ao dos processos de trabalho. Fazer com que os
analisar, intensificamos a atividade de pensamento trabalhadores se apropriem do status de pesquisador
sobre ação (seja de trabalhar ou de pesquisar) por é também o que essas perspectivas procuram, bem
meio da troca de destinatários, motivando, com isso, como assumem, ou ainda, buscam que as pesquisas
a produção coletiva de conhecimentos sobre o sejam intermináveis, ou seja, que produzam efeitos
funcionamento da ação (novamente, seja de de ressonância no campo provocados pela presença
trabalhar ou de pesquisar) e possibilitando a do pesquisador. A transformação está colocada e é

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32 Cristiane Lisbôa da Conceição, Roberta Pereira Furtado da Rosa, Claudia Osorio da Silva

perseguida pelas intervenções em clínica da ainda, a produção de uma atividade de pensamento


atividade: sobre a atividade de trabalho. Desse modo,
constroem-se métodos indiretos de intervenção, por
Neste processo de pesquisa e intervenção o meio dos quais organiza-se uma nova atividade,
objetivo de transformar é fundamental. O agora de análise, que nada mais é do que uma
desenvolvimento de recursos para a ação é um “repetição sem repetição”, ou seja, uma replicação
objetivo ético. Mas, se trabalho é processo, impossivelmente idêntica da atividade de trabalho.
induzir um aumento de intensidade no processo
São estas repetições que nos conectam aos possíveis
– transformá-lo - é também uma exigência para
que se conheça as características desse processo não realizados que continuam a exercer influência
em um determinado ofício, no exercício do na atividade em curso. Sendo assim, cabe ao
trabalho em uma determinada organização ou pesquisador/analista do trabalho, diante da
equipe (OSORIO DA SILVA, 2014, p.86). necessidade de transformar para conhecer, induzir
uma intensificação nesse processo, uma atividade
Se, por um lado, tanto para Oddone quanto sobre a atividade, sendo uma espécie de catalisador.
para os ergonomistas, o objetivo final das Nessa indução do processo, viabilizada
intervenções é a transformação das situações de pelos métodos indiretos, são produzidos registros da
trabalho degradadas (classicamente, também no atividade, marcas do trabalho sobre as quais a
campo da ST), tem-se afirmado a necessidade de coanálise se debruçará. São essas marcas que
conhecer para transformar, ou construir junto aos permitem ao trabalhador se apropriar do status de
trabalhadores conhecimentos que sejam úteis no pesquisador, ou seja, assumir o papel de observador
sentido de ampliar seu raio de ação, para que, então, da atividade. Ao comentar esses registros, o
eles sejam protagonistas da transformação. Por trabalhador busca em seus interlocutores, seja no
outro lado, os autores da clínica da atividade, na analista do trabalho, seja em seus pares, pistas para
França e no Brasil, têm afirmado a importância da “defender” sua análise. “Como falar de seu trabalho
inversão dessa equação apoiada na metodologia ao clínico? E como fazê-lo ao dirigir-se ao colega?
histórico-desenvolvimental de Vigotski. Como nos Ele não busca diretamente em si mesmo, nos seus
fala Clot: próprios conhecimentos, mas no outro. Deste modo,
ele verá sua própria atividade pelos olhos de outros”
Ela [a metodologia de Vygotski] é significativa (OSORIO DA SILVA, 2014, p.89).
de uma ideia experimental preconcebida bem Estando o sentido da atividade diretamente
particular: é necessário “provocar” o ligado ao seu endereçamento, a troca de
desenvolvimento para ser possível estudá-lo. De interlocutores possibilita a construção de novos
fato, não sendo acessível por métodos diretos de sentidos para ação. Assim, essa metodologia tem
observação, ele obriga ao emprego de “métodos
por objetivo fazer com que os trabalhadores “se
indiretos” (Vygotski, 1999, 2003). Ele nos
impõe a organização das “repetições sem liberem, tanto quanto possível, de suas maneiras
repetição”, [...], para ter uma possibilidade de habituais de pensar e dizer suas atividades” (CLOT,
“apreendê-lo”. No campo do trabalho o interesse 2010a, p.37), ampliando, com isso, a vitalidade
da tradição ergonômica francófona (Béguin & dialógica do plano de possíveis não realizados, ou
Weil-Fassina, 1997) consiste em ter insistido seja, ampliando o poder de agir5.
sobre o fato de que compreender está destinado É interessante destacar que: “Para
a transformar. O que descobrimos é, talvez, a intensificar os efeitos da entrada do novo
profundidade do problema assim levantado. interlocutor, o clínico, propõe-se que a análise seja
Com efeito, para compreender o que procuramos feita em etapas sucessivas, que ampliam as
compreender, é necessário transformar. Neste
oportunidades para o diálogo interior” (OSORIO
aspecto, opera-se, sem dúvida o encontro de
duas tradições (CLOT, 2010a, p.192). DA SILVA, 2014, p.90). Nesse sentido, quanto
mais oportunidades forem criadas para se retornar à
Analisar a atividade em clínica da atividade análise coletiva, melhor. É como se a restituição –
implica ter acesso ao real da atividade, que não se como movimento para retomar os acontecimentos,
revela pela simples observação do comportamento em geral excluídos (LOURAU, 1993, p.57) –
realizado, mas considerando os efeitos da fizesse parte do método de intervenção, já que não
observação naquele que é observado, ou seja, se aplica simplesmente uma técnica, mas, a partir
considerando a produção de um diálogo interno, ou dela, criam-se momentos para discutir e rediscutir
os processos mobilizados pela intervenção.

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33
A clínica da atividade no Brasil: por uma outra psicologia do trabalho

Aliás, a concepção dos métodos, no que diz longa pesquisa epidemiológica em ST como
respeito ao número de etapas ou a que tipo de dispositivo de análise do trabalho. Ainda uma outra
registros serão utilizados, é feita a cada intervenção (ALBUQUERQUE, 2010) tomou um espaço
planejada. Como nos fala Clot (2007, p.129), a coletivo já instituído nos serviços de Saúde Mental,
construção de um ambiente duradouro de análise e os encontros de supervisão clínico-institucional,
de ação com os trabalhadores requer uma efetiva como campo de registro e análise da atividade dos
“coelaboração”, refeita a cada encontro. Desse profissionais que aí atuavam.
modo, “para seguir tais proposições não é essencial Desse modo, dada a variedade e o
usar os mesmos dispositivos, os mesmos métodos, ineditismo dessas pesquisas, reafirmamos, como no
já usados anteriormente em clínica da atividade. Ao comentário de Clot, que algumas iniciativas como
contrário, novas situações de análise irão exigir estas ‘sujam’ a clínica da atividade reconstruindo
novos caminhos, novos métodos” (OSORIO DA seus métodos, e a própria metodologia, a cada
SILVA; BARROS; LOUZADA, 2011, p. 200). encontro com os trabalhadores e suas situações
Assim, para empreender uma análise do trabalho concretas. Sendo assim, a partir de seu patrimônio
aos moldes da clínica da atividade, é preciso estar histórico, certos grupos de pesquisa no Brasil têm
atento às suas pistas teórico-metodológicas, que afirmado um comum a partir do entrecruzamento da
fundamentarão a construção dos métodos, ou, como clínica da atividade, a análise institucional e a ST,
entende a análise institucional, dos dispositivos de lançando mão de um novo campo de coerência:
intervenção. É preciso estar atento para não cairmos
em uma supervalorização do método em detrimento A análise institucional francesa nos propõe a
da metodologia, como apontam Osorio da Silva, metodologia da pesquisa-intervenção, em que é
Barros e Louzada: central o conceito da multirreferencialidade,
[...].
[...] as buscas de trabalhos no Brasil em base de O campo da saúde do trabalhador, por sua vez,
dados bibliográficas, além de outros indica como caminho ora a inter ora a
instrumentos disponíveis na Internet, apresentam transdisciplinaridade, assumindo que o trabalho
algumas surpresas. A expressão como objeto não pode ser analisado por uma
“autoconfrontação cruzada” leva o pesquisador a única disciplina.
uma quantidade consideravelmente maior de Buscamos então compor um novo campo de
trabalho que a expressão “clínica da atividade”. coerências em que a perspectiva disciplinar da
Numa avaliação que merece ser discutida, esse clínica da atividade, tal como proposta por Yves
fato parece indicar que há uma supervalorização Clot, se articula a outras (OSORIO DA SILVA,
dos dispositivos em detrimento da sua 2016, p.46-47).
fundamentação teórico-epistemológica. De todo
modo, cabe salientar que o que caracteriza a Se, segundo Lourau (1993), o escândalo da
clínica da atividade como uma corrente de análise institucional, enquanto novo campo de
pensamento no âmbito da psicologia do trabalho coerência, tem por finalidade propor a noção de
não é a adoção frequente de dispositivos como o implicação, qual seria o escândalo do campo
da autoconfrontação cruzada ou aquele das referido acima? Talvez seja o de fazer da psicologia
instruções ao sósia. Se esses são usados com do trabalho uma clínica – aqui não excluindo outras
frequência é porque essa estratégia se revelou concepções em Clínica do Trabalho. Como
profícua para o desenvolvimento dos conceitos
lembram Barros, Louzada e Vasconcellos:
acima apresentados, estes sim centrais para a
clínica da atividade (OSORIO DA SILVA;
BARROS; LOUZADA, 2011, p. 202). Usualmente, a palavra clínica em psicologia traz
um suposto cenário de neutralidade, um palco
para os problemas psíquicos, uma composição
Sobre essa criação de métodos em clínica da intimista a meia luz para dar vazão aos dramas
atividade, no Brasil, podemos destacar alguns individuais. Pensar o trabalho como uma clínica,
exemplos, como a concepção da Oficina de Fotos e uma clínica subjetiva, rompe com essa
(OSORIO DA SILVA, 2011). Nela, fotografias composição. Esse lugar quase sagrado,
produzidas no ambiente de trabalho pelos próprios intocável, sem cheiro das ruas, das massas é
trabalhadores são utilizadas como marcas do estilhaçado, fazendo-se em mil pedaços, dando
trabalho. Outra pesquisa recente (FERREIRA, voz a uma clínica como produção da diferença,
2016) utilizou a restituição dos resultados de uma como desabitando o solo dos conflitos “intra-

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34 Cristiane Lisbôa da Conceição, Roberta Pereira Furtado da Rosa, Claudia Osorio da Silva

psíquicos”, tomando a clínica como política fundamentar nossos argumentos, frente à


(BARROS; LOUZADA; VASCONCELLOS, comunidade científica (2010b, p.52), forjando
2008, p. 16). modos de fazer ciência a partir, não do experimento
de laboratório, mas da experiência produzida na
Desenvolve-se, assim, no Brasil, uma situação concreta. Ainda citando o trabalho de
espécie de novo gênero de atividade, o do clínico do Wisner, Clot afirma:
trabalho, na intercessão com vários outros
(OSORIO DA SILVA; ZAMBONI; BARROS, Não há, provavelmente, outro setor do
2016). Ao mesmo tempo, constrói-se outra conhecimento em que a mesma palavra seja
concepção de clínica (e de psicologia!), utilizada para designar, simultaneamente, uma
desestabilizando suas paisagens habituais arte e uma ciência” (1995, p.104). Daí, sua
circunscritas na noção de setting terapêutico e em recusa categórica em considerar a psicologia do
cenas que incluem um divã. Mas que comum é esse trabalho como ciência aplicada. O oposto é que
que permite afirmar um novo campo de coerência e deve ser promovido: “O trabalho é um dos
lugares de constituição da psicologia
caracterizar essa prática como clínica? Sustentamos
fundamental” (ibid., p.105). Ele não pode ser um
a ideia de que essa concepção “é sempre clínica, no simples campo de aplicação ou de verificação de
sentido de que é situada, mas também no sentido de hipóteses, nem sequer, por exemplo, um terreno
que deve produzir efeitos de desenvolvimento de de estudo para “revestir” alguns problemas de
recursos para a ação e de que o trabalhador é psicologia teórica. No trabalho, os operadores
protagonista nessa coanálise” (OSÓRIO DA não fazem o que os psicólogos designam como a
SILVA, 2016, p.51). E ainda, com Clot6, “resolução de problemas” e com toda a razão: na
acreditamos que o trabalho clínico envolve a realidade cotidiana, “em vez de se limitarem a
passagem do conhecido ao desconhecido, ou seja, a resolver o problema, eles ainda têm previamente
possibilidade de se desfazer de ideias fixas ou de de construí-lo (1995, p.134) (CLOT, 2010a,
p.53).
hábitos que carregam o risco da repetição de velhos
conflitos.
Nós também, enquanto pesquisadores e
É importante pontuar que a afirmação de
analistas do trabalho, não nos limitamos à resolução
um comum não deseja produzir um efeito de
de problemas, mas construímos e reconstruímos tais
identidade entre as linhas que formam esse novo
problemas a cada passo desse amálgama que é
campo de coerência. Não nos esqueçamos que,
pesquisar e intervir. Seguimos, assim, sustentando
como caracteriza Clot (2008, p.66), a controvérsia é
as controvérsias produzidas a partir da pergunta
a fonte do coletivo, por isso essas linhas se cruzam
feita pelos estudantes, “O que é a psicologia do
afirmando sua diferença e produzindo desvios umas
trabalho?”, assegurando-nos de que a última palavra
nas outras em alianças transversais. Assim, ampliam
nunca seja dita.
seu poder agir podendo contribuir com uma possível
Procuramos ferramentas conceituais e
renovação na psicologia do trabalho no Brasil, sem
metodológicas que nos servem para o
fazer dicotomias como as que temos vivenciado
desenvolvimento da experiência tanto clínica como
entre a psicologia do trabalho de um lado e o campo
da saúde do trabalhador, de outro (OSORIO DA de pesquisa de uma outra psicologia do trabalho,
marcada pela clínica da atividade. Com elas,
SILVA, 2014, p. 96).
buscamos construir métodos de pesquisa-
intervenção para superpor a atividade ordinária, a
Conclusão
fim de transformá-la como meio indispensável para
compreender.
Por fim, gostaríamos de apontar o caráter
estético, ou inventivo, da atuação em análise do
Notas
trabalho pela perspectiva da clínica da atividade.
Como explicitamos anteriormente, esta prática abre-
1 No livro intitulado Avec Vigotski, na Introdução,
se à reconstrução cotidiana de métodos e da própria
Clot (1999) aponta em que se ancora a importância
metodologia, já que ela se faz a partir de uma “co-
dada ao trabalho de Vigotski na clínica da atividade:
elaboração” e de uma coanálise com os
“En fait, le livre propose, entre autres, du neuf sur
trabalhadores. Nesse sentido, como fala Clot sobre o
deux problèmes essentiels : celui du développement
trabalho de Wisner, assumimos o risco de inventar
de la personne regardé comme histoire – et non plus
outros modos de administração da prova, ou de

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35
A clínica da atividade no Brasil: por uma outra psicologia do trabalho

comme genèse - ; celui des rapports entre affects et 6 Trecho inspirado em falas proferidas por Clot no III
concepts dans la vie psychologique. E ainda: “Une Colóquio Internacional de Clínica da Atividade (III
autre représentation de l’œuvre de Vygotski devrait CICA).
en sortir. Sa conception de la psychologie
s’accommode mal des frontières que l’histoire de Referências
cette discipline a finalement tracées entre
psychologie expérimentale, psychologie cognitive, ALBUQUERQUE, L. G. C. Saúde Mental em Rio
psychologie sociale et psychologie clinique. Quand Bonito: atividade dos trabalhadores no processo de
Vygotski s’intéresse au développement c’est autant Reforma Psiquiátrica no Município. 2010.
à celui des concepts qu’à celui des émotions. Quand Dissertação (Mestrado) – UFF.
il cherche à expliquer les mouvements de la
conscience c’est du point de l’inconscient et ALLIEZ, E. FEHER, M. Os Estilhaços do capital.
inversement. Quand il insiste sur les déterminations In: ALLIEZ, E. FEHER, M. GILLE, D.
historico-sociales de l’apprentissage c’est pour STENGERS, I. Contratempo. Ensaios sobre
comprendre la singularité du développement algumas metamorfoses do capital. Tradução: Maria
personnel.” Assim, ao falarmos em de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense-
desenvolvimento em Vigotski não nos interessa Universitária, 1988, p. 150-214.
retornar às divisões entre desenvolvimento lógico,
cultural, afetivo etc. AMADOR, F.S. BARROS, M.E.B. FONSECA, T.
2 Para uma aproximação com esses três autores pode- M. G. Clínicas do Trabalho e Paradigma Estético.
se buscar, além de suas próprias obras, a Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016.
apresentação feita por Clot em Uma Herança em
Discussão, primeira parte do livro Trabalho e Poder BARCA, S. Pão e veneno. Reflexões para uma
de Agir (2010a). investigação sobre o ‘ambientalismo do trabalho’
3 Segundo Canguilhem, Friedmann conduziu várias em Itália, 1968-1998. Laboreal, 6, (2), 10-18, 2010.
enquetes sobre os problemas da racionalização
técnica e do maquinismo; especificamente no BARKER, S. As dramáticas do uso de si de jovens
trabalho tomado como objeto de análise de mães trabalhadoras: cartografias do trabalho em
Canguilhem “A enquête visa prioritariamente as insuspeitáveis territórios. 2005. Tese (Doutorado) –
condições de trabalho nos ateliers (oficinas) da ENSP, Fiocruz.
grande indústria da América do Norte e do ocidente
europeu, durante a segunda revolução industrial, BARROS, M. E. B. LOUZADA, A. P. Afirmando a
caracterizada do ponto de vista técnico pelo uso da potência de cirandar: cartografia dos processos de
eletricidade como força motriz e do ponto de vista produção de saúde na docência. In: BARROS, M.
econômico pela tendência imperialista do E. B. CARVALHO, S. R. FERIGATO, S. (Org).
capitalismo bancário” (2001, p. 110). Conexões: saúde coletiva e políticas de
4 Essa expressão foi usada por Clot no III CICA para subjetividades. São Paulo: Hucitec, 2009.
designar uma atuação clínica que não busca o
consenso entre as divergências de determinado BARROS, M. E. B. LOUZADA, A. P.
grupo, mas que usa essas divergências como motor VASCONCELLOS, D. Clínica da Atividade em
do desenvolvimento. uma Via Deleuziana: por uma psicologia do
5 O desenvolvimento do poder de agir vive ora no trabalho. Informática na educação: teoria &
sentido da ação, a partir das trocas com a atividade prática, v. 11, n. 1, 2008.
dos outros e com as outras atividades do próprio
sujeito, ora na eficiência, buscando sempre fazer BENDASSOLLI, P. F. Crítica às apropriações
melhor o que já tem sido feito. Nessa dinâmica, ao psicológicas do trabalho. Psicologia & Sociedade,
realizar as tarefas de forma mais eficaz, surgem v. 23, n. 1, p. 75–84, 2011.
novas preocupações que colocam em cheque os
sentidos já construídos em um círculo virtuoso BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.823, de
(CLOT, 2010a). 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de
Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora.

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36 Cristiane Lisbôa da Conceição, Roberta Pereira Furtado da Rosa, Claudia Osorio da Silva

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Sobre os autores:

Cristiane Lisbôa da Conceição é psicóloga, especialista em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana pelo
CESTEH/ENSP/Fiocruz e mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense.

Roberta Pereira Furtado da Rosa é docente do curso de Terapia Ocupacional no IFRJ. Doutoranda do
programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.

Claudia Osório da Silva é psicóloga, mestre e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz.
Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense.

Recebido em julho de 2017.


Aprovado em novembro de 2017.

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