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Soteriologia

Aula 1

Se perguntarmos a alguma pessoa a respeito de sua salvação pessoal, possivelmente a pessoa


se sentirá um pouco desnorteada, e talvez devolva a pergunta: “Salvo do quê?”. Nesses
tempos modernos, as pessoas perderam a noção da necessidade e da importância da salvação.
Vivem numa rotina de trabalho, estudos, diversões, etc., que nem lhes passa pela cabeça a
interrogação: “O que será de mim depois dessa vida?”. O mundo porvir perdeu o interesse
para a maioria das pessoas. Se na Idade Média as pessoas chegavam até a “comprar” um lugar
no céu (indulgências), tal era a preocupação delas com a salvação de suas almas, hoje, a
maioria das pessoas nem acredita no céu ou no Inferno, ou pelo menos, na prática, não
demonstra preocupação. Outras, por outro lado, pensam que um Deus de amor não as jogaria
no Inferno, e por isso vivem despreocupadamente. A alienação das pessoas a respeito desse
assunto é algo muito perigoso. Frequentemente ficamos sabendo de pessoas que foram
levadas de forma tão imprevista… Todos nós deveríamos constantemente pensar no que
aconteceria se Deus nos chamasse hoje.

Tudo o que o homem tem construído nesse mundo tende a apontar apenas para esse mundo
mesmo. A vida nesse mundo tem sido considerada o início e o fim de toda existência. Até
mesmo a pregação dos nossos dias tem colaborado para isso. Enfatiza-se a necessidade de
vitórias, prosperidade e conquistas nesse mundo, o que leva naturalmente ao pensamento de
que esse mundo é a única coisa que importa. É impressionante a transposição de temas que o
modernismo evangélico tem feito em relação aos temas tradicionais da pregação bíblica. Na
pregação evangélica histórica, o verdadeiro problema do homem é o pecado, e para resolvê-lo,
ele precisa se arrepender, crer em Jesus, iniciar o processo de santificação através de uma vida
de renúncia, esperando o momento final quando entrará no reino celestial e será, então,
revestido da perfeição. Na pregação modernista, ou talvez devêssemos até dizer, pós-
modernista, o problema do homem é a falta de prosperidade (doença, dívida,
desentendimentos, etc.). A solução é reconhecer essa situação desesperante, procurar uma
determinada igreja, e tomar parte em algum ritual de quebra de maldição. A partir daí ela
iniciará um processo de apropriação de bênçãos, onde terá que ter atitudes de renúncia,
fazendo generosas doações para a igreja, até que alcance a plena prosperidade. Isso leva as
pessoas a não ter mais consciência de que necessitam de salvação. Sentem-se seguras em
meio ao sistema de vida que esse mundo tem oferecido. Não têm consciência de que, se só
esse mundo existe, a vida vale muito pouco, e não há diferença entre ser justo ou ser perverso
ou entre o bem e o mal, e nem mesmo entre ser próspero ou miserável, pois como diz Paulo,
“se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos
os homens” (1Co 15.19), e, portanto, seríamos miseráveis de qualquer jeito.

A Salvação do Senhor
A Escritura ensina a universalidade do pecado. Após a queda de Adão o ser humano
mergulhou no pecado e jamais conseguiu e nem desejou se livrar dele. Jesus descreveu o
homem que comete pecado como um escravo do pecado (Jo 8.34), pois além de não querer, o
homem nada pode fazer para deixar de pecar. Após a queda, a natureza humana se corrompeu
total e intensamente, e a contaminação se estendeu a todas as áreas da vida. Entre as
principais consequências do pecado está a quebra da comunhão com Deus. O pecado gerou a
separação entre o homem pecador e o Deus Santo (Is 59.2). A Escritura ensina também que a
universalidade do pecado trouxe como justo pagamento a morte de todos. Paulo diz que “o
salário do pecado é a morte” (Rm 5.12; 6.23), e Lorraine Boettner interpreta:

A sentença que foi imposta como resultado do pecado de Adão, inclui mais do que a
decomposição do corpo. A palavra ‘morte’, usada nas Escrituras com referência às
consequências do pecado, inclui toda espécie de mal que é infligido como castigo desse
pecado (…) significa, pois, a miséria eterna do Inferno e, ainda, o antegozo dessas misérias já
nos males sofridos nesta vida.

O pecado, portanto, deixou o ser humano num estado de absoluta miséria espiritual. Isto torna
todos os homens dependentes única e exclusivamente da salvação de Deus. E de fato, desde o
início foi Deus quem tomou a iniciativa para salvar o homem. Deus agiu e age para salvar o
homem baseado exclusivamente em sua graça, por isso dizemos que somos salvos pela graça.
Todos os homens se encontram em um mesmo estado, o decaído. Cometer um pecado ou um
milhão não faz diferença quanto à condenação do Inferno, pois quem quebra um mandamento
da lei, quebrou todos (Tg 2.10). Mas, a notícia maravilhosa é que todos poderão ser salvos,
sendo que Deus não faz distinção entre pecadores. Ele não escolhe os mais bonzinhos. A fé
salvadora em Jesus Cristo garante a salvação para todos os que creem.

Antes mesmo do Éden, Deus já havia decidido sobre a forma como salvaria os homens. Na
eleição, ainda na eternidade, Deus visualizou a obra da salvação. O próximo passo para a
salvação, depois da eleição, foi a Encarnação. Deus não ficou esperando que nos movêssemos
para ele, até porque, nunca faríamos isso, ele veio atrás de nós. O Conselho da Trindade
determinou que a Segunda Pessoa seria o Mediador, aquele que satisfaria a justiça divina e
daria vazão à misericórdia divina. O Mediador se tornaria um homem sem, contudo, perder
sua divindade. Jesus Cristo cumpriu o propósito divino de salvar o homem, ainda que Satanás
tenha feito todas as tentativas para impedi-lo. Apesar da gravidade do pecado humano e de
suas consequências, Jesus venceu, e a salvação foi providenciada. Cristo fez aquilo que Adão
não pôde fazer, e assim, a maldição de Adão foi vencida e destruída pela graça de Cristo. A
vida de Cristo derrotou a morte de Adão.

O ponto central da salvação que Deus conquistou para nós consiste na morte de Jesus, muito
embora a morte do Senhor não seja o único evento redentivo. Precisamos entender que Jesus
viveu, morreu e ressuscitou para nossa salvação. Sua vida nos salva porque ele obedeceu
inteiramente a Deus fazendo aquilo que Adão não tinha feito. Através de sua vida de
obediência ele conquistou a justiça que derrama sobre nós. Sua morte nos salva porque é a
punição que nós deveríamos receber pelos pecados, mas que ele recebeu em nosso lugar,
quando assumiu a nossa culpa e pagou a nossa dívida. Sua ressurreição nos salva porque
através dela podemos também viver em novidade de vida. Além disso, a ressurreição é base
para nossa transformação e para a ressurreição futura de nosso corpo.

Um atalho para o céu

A salvação é pela graça, mas os homens têm tido dificuldades em entender o que isso
realmente significa. A maioria das pessoas continua pensando que precisa conquistar a
salvação. Mas aí, diante das dificuldades que elas mesmas se impõem, buscam caminhos
alternativos. Nunca faltaram heresias na história da igreja que oferecessem um caminho mais
curto para o céu, uma espécie de “atalho”. Se por um lado há os que pregam a salvação pelo
legalismo, há por outro, alguns que têm pavimentado a estrada estreita que Jesus ensinou, a
ponto de torná-la até razoavelmente confortável, quando não extremamente fácil. Na Idade
Média, foi criado um sistema que facilitava bastante a salvação dos pecadores, era o sistema
das indulgências. No catolicismo medieval, para se obter o perdão dos pecados era preciso
seguir uma certa ordem. Primeiramente uma pessoa precisava se arrepender de seus pecados,
depois fazer uma confissão perante um sacerdote, e por fim, cumprir a penitência, que era
uma espécie de reparação pelo erro cometido e que dependia da gravidade da falta.
Entretanto, o perdão se estendia apenas às consequências eternas do pecado, ou seja, a única
coisa que ele conseguia era libertar o culpado do Inferno. A absolvição não eliminava as
consequências terrenas dos pecados, isso dizia respeito ao sofrimento que alguém poderia
receber como retribuição por seus erros. Acreditava-se que, aqueles que não recebessem
todas essas consequências nessa vida, receberiam no Purgatório. Assim, o Purgatório era um
local intermediário entre o céu e o Inferno, onde aqueles que não haviam sido maus o
suficiente para irem para o Inferno, e nem bons o bastante para irem diretamente para o céu,
ficavam algum tempo até terem sofrido ou “purgado” seus pecados. A absolvição sacerdotal
não eliminava as penas do Purgatório, no entanto, era ensinado que a igreja tinha poder sobre
essas penas, e que o Papa poderia liberar alguém do Purgatório. Acreditava-se que havia uma
espécie de depósito de “méritos” conquistados por Cristo e pelos “Santos”, e que o Papa como
depositário desses tesouros, poderia conceder um pouco dele para os que necessitassem. As
indulgências foram usadas nas Cruzadas, onde os soldados lutavam em troca da remissão de
pecados para si e para seus familiares.

As Indulgências foram um dos principais motivos para o início da própria Reforma Protestante
do Século 16. Foi contra elas, especialmente, que Martinho Lutero fixou suas 95 teses na porta
da Catedral de Wittenberg em 31 de Outubro de 1517. Naqueles dias, um Arcebispo chamado
Albrecht, endividado com alguns nobres, conseguiu do Papa o direito de vender indulgências
na Alemanha. Ele enviou um dominicano chamado Teztel, que ficou conhecido como um dos
mais hábeis vendedores de indulgências. Esse homem andava pelas ruas das cidades
anunciando que, na medida em que a moeda caía em seu cofre, e se ouvia o tilintar, a alma em
favor de quem se havia comprado a indulgência saía do Purgatório. Também eram vendidas
indulgências para pessoas vivas que desejassem garantir que depois de mortas seriam salvas.
Emitia-se até mesmo certificados de garantia, que eram guardados como uma espécie de
passaporte para o céu. As pessoas da época pensavam que estavam aproveitando uma
excelente oportunidade de garantir o céu. Não é por acaso que multidões se arrastavam atrás
dos vendedores de indulgências, afinal, comprar com uma quantia de dinheiro algo que não
tem preço, na visão do povo era um excelente negócio. Para a igreja Romana, era melhor
ainda.

Nada poderia ser mais irônico do que o fato de as pessoas tentarem um atalho para o caminho
mais próximo que existe, ou desejarem comprar a coisa mais gratuita dessa vida. Mas, foi isso
o que aconteceu no período das Indulgências e acontece até hoje. Entretanto, o fato de a
salvação ser de graça, não significa que ela é fácil. Ainda é o velho caminho estreito ensinado
por Jesus, porém, talvez, seja justamente o fato de ele ser tão simples, que o torna
aparentemente tão difícil para as pessoas.

Esforços inúteis

O sistema de Indulgências, bem como todos os sistemas antigos ou modernos que tentam
encontrar atalhos para o céu somente existem por causa da falta de entendimento de como
funciona a salvação, e de qual é a natureza do Evangelho. A igreja da Idade Média não
entendia ou não queria entender que a salvação é pela graça. Em meio às trevas daqueles
tempos, Lutero encontrou na carta aos Romanos a resposta para todas as suas angústias. Ele
redescobriu a salvação pela graça, e teve início a Reforma Protestante. Em Romanos, Paulo diz
que o Evangelho é a manifestação da Justiça de Deus: “A justiça de Deus se revela no
Evangelho” (Rm 1.17). Justiça essa que Lutero, antes da conversão, tanto temia, pois apesar de
cumprir rigorosamente todos os rituais prescritos pela igreja, jamais se sentia perdoado, e
nunca conseguia encontrar paz de espírito. Quando Lutero entendeu que essa justiça, Deus
não exige de nós, ao contrário, ele exige de si mesmo, a paz inundou o coração do monge, pois
compreendeu que “o justo viverá por fé” (Rm 1.17). Em Romanos 3.21 Paulo diz: “Mas agora,
sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas”. Há um
imenso contraste nessa declaração, é o contraste entre a total depravação do ser humano que
é incapaz de agradar a Deus, e a provisão que o próprio Deus tem preparado para o homem e
que tem se manifestado no Evangelho.

Os que desejam conquistar sua salvação através das boas obras podem desistir enquanto é
tempo, pois Paulo diz que “ninguém será justificado diante dele por obras da lei” (Rm 3.20; Ver
Gl 2.16). Portanto, a salvação não pode ser conquistada pelo simples obedecer da lei de Deus,
pelo motivo de que esse não é o caminho proposto por Deus, até porque, ninguém jamais
conseguiria cumprir plenamente a lei (Ver Rm 3.10; Ver Tg 2.10). A salvação é um presente de
Deus, ao contrário do que pensavam as pessoas da Idade Média, e muitas ainda hoje, justiça
não se compra, nem se conquista, justiça se ganha. Paulo diz que a Justiça que se manifestou
não é qualquer justiça, algo como uma auto-justificação humana, mas é a “Justiça de Deus”,
que é concedida “mediante a fé”. Aqui está o único requisito exigido do homem para que seja
salvo. Quando o carcereiro desesperado jogou-se aos pés de Paulo e Silas suplicando como
poderia ser salvo, eles lhe responderam de forma simples: “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo,
tu e a tua casa” (At 16.29-31). Na mais famosa declaração sobre a salvação mediante a fé,
Paulo diz “porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”
(Ef 2.8).

Se alguém ainda estiver pensando que tem algum mérito em sua salvação, os textos acima
devem eliminar essa ideia. Alguém poderia dizer: “Mas a fé sou eu quem sente, logo isso é um
mérito meu, algo como uma obra minha”. Essa declaração está errada porque não fazemos
uma troca com Deus. Não oferecemos a ele nossa fé, e em troca ele nos dá a Salvação. Tudo o
que acontece com relação a nossa salvação é regido pela palavra “graça”, que é um sinônimo
de “gratuito”. Alguém pode me oferecer algo valiosíssimo e me dizer que não preciso pagar
nada, mas se eu lhe oferecer um centavo e ele aceitar, já não é mais de graça. Pode ser muito
barato, mas não é de graça. Para ser de graça, não se pode dar nada em troca. Paulo deixa
bem claro que a salvação é totalmente pela graça na expressão: “Isso não vem de vós, é dom
de Deus”. Ele está se referindo a todo o conjunto da salvação que inclui a fé. Diríamos então
que a fé faz parte do “pacote” da salvação que recebemos como um presente de Deus. Como
diz McGregor Wright,

A salvação é um dom, e o pecador não contribui com nada, tendo apenas as mãos vazias
estendidas para recebê-la. Mesmo esse simples ato de fé em si mesmo é da iniciativa divina, e
não pela auto geração humana. A fé salvadora é em si mesma, um dom, não uma capacidade
natural pela qual simplesmente decidimos concentrar em Cristo como um objeto de nossa
confiança.

Portanto, devemos eliminar de nossa mente toda ideia de que de alguma forma colaboramos
para o processo da salvação. Nosso dinheiro não pode comprar a salvação, e nossas boas obras
são tão inúteis quanto. Quem não for salvo pela graça, não será salvo de maneira alguma.
Lutero e a Reforma entenderam que o homem não precisa se tornar justo para poder alcançar
a vida eterna, pois isto, ele jamais conseguiria, uma vez que ninguém jamais cumpriu a lei de
Deus (Rm 3.10, 20, Gl 3.11), mas que baseado na justiça de Cristo, Deus pode e efetivamente
declara o homem como justo quando ele crê. Este ato de declarar é algo completamente
gratuito, pois o homem nada fez para merecer isso, uma vez que tudo provêm da obra e dos
méritos do Senhor Jesus Cristo.

O significado da salvação

A fim de entendermos melhor o que é salvação, podemos listar algumas características


práticas dela em nossa vida.

Ter vida verdadeira


A Escritura descreve as pessoas que ainda não encontraram a salvação como estando mortas
espiritualmente por causa dos pecados. O estado de morte aponta para a completa alienação
da vida espiritual a que estão submetidos todos os não-convertidos. Eles estão mortos e não
têm consciência nem de que estão mortos. Um não convertido não tem qualquer sensibilidade
para a vida espiritual, pois Paulo diz que “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de
Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente” (1Co 2.14). A razão pela qual as pessoas não se importam com a vida eterna é
porque estão mortas espiritualmente. Salvação significa receber a vida verdadeira. Isso
significa que uma pessoa só começa a viver realmente a partir do dia em que se converte. Por
melhor que tenha sido sua vida antes, ela percebe que não passava de morte.

Receber perdão completo

Muitos sabem qual é a experiência de ter uma dívida alta e não ter condições de pagá-la.
Vivemos num país em que quase é impossível não se envolver em dívidas. A instabilidade da
economia, os juros altíssimos e o salário cada vez mais mínimo, podem surpreender a qualquer
um. Mas, existe uma dívida muito pior: A nossa dívida com Deus. Cada ação nossa, cada
pecado, tudo está registrado diante de Deus, e Cristo disse que daríamos conta de cada
palavra frívola que dissermos nesse mundo (Mt 12.36). No livro do Apocalipse, na descrição do
juízo final, é dito que livros são abertos, são os livros que contêm cada ato que os homens
praticaram, pois tudo foi registrado (Ap 20.11-12). Todos esses pecados formam uma grande
dívida espiritual, e ela será cobrada. Mas, quando Cristo entregou a vida dele na cruz, pagou
toda a dívida do seu povo. Ser salvo, portanto, significa ser completamente perdoado por
causa da cruz. Através do arrependimento e da fé podemos receber o perdão completo, este
perdão é obra de Deus, como Bavinck assevera: “De fato o perdão de pecados é realizado
definitiva e perfeitamente em Deus, mas nos é dado e apropriado por nós em nossas vidas
através da fé e do arrependimento”. Quase que podemos resumir a salvação como sendo:
libertação do pecado. A verdade é que só precisamos de salvação porque um dia o pecado
entrou no mundo. Chafer fala de sermos livres do pecado em três tempos, passado, presente e
futuro[6]. Pensando nisso, podemos dizer que nossos pecados passados são perdoados na cruz
de Cristo, no presente nossos pecados atuais continuam sendo perdoados e, além disso,
através da atuação de Deus em nossa vida, somos ininterruptamente livrados do poder do
pecado; e quanto aos pecados futuros, também são perdoados na cruz de Cristo, um dia,
seremos definitivamente livres da presença e de qualquer influência do pecado.

Ser livre da ira vindoura

João Batista advertiu as multidões que vinham para ser batizadas no rio Jordão de que não
poderiam escapar facilmente da “ira vindoura”. Paulo também falou sobre um “dia da ira” de
Deus quando o seu justo juízo seria revelado (Rm 2.5), e o Apocalipse descreve em cores
dramáticas aquele dia (Ap 6.12-17). Salvação, portanto, consiste em ser livre da ira vindoura.
Paulo diz em 1Tessaloniscenses que os crentes a partir do momento em que ouviram a Palavra
e se converteram, podiam servir ao Deus vivo e esperar dos céus a vinda de Jesus que livra da
ira vindoura (1Ts 1.8-10). Naquele dia, todos os verdadeiros crentes serão poupados da
manifestação final da ira de Deus que está determinada sobre esse mundo. Essa promessa já
havia sido dada ao povo de Deus, ainda no Antigo Testamento: “Eles serão para mim particular
tesouro, naquele dia que prepararei, diz o SENHOR dos Exércitos; poupá-los-ei como um
homem poupa a seu filho que o serve. Então, vereis outra vez a diferença entre o justo e o
perverso, entre o que serve a Deus e o que não o serve” (Ml 3.17-18).

Vitória completa

Quando Cristo morreu, houve um despojamento, mas não foi Jesus quem foi despojado, e sim,
o inimigo. Despojar é uma linguagem militar, e significa saquear o acampamento vencido.
Paulo diz que quando Cristo foi crucificado, ele removeu o escrito de dívida que era contra nós,
e “despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando
deles na cruz” (Cl 2.14-15). A grande força do inimigo era esse documento, uma espécie de
“prova” contra nossos pecados. O diabo (acusador) nos acusava diante de Deus, mas, agora já
não há documento que nos acuse, e portanto, Satanás perdeu sua arma, perdeu seus trunfos,
foi derrotado e humilhado pela vitória de Cristo. Os crentes em Cristo desfrutam de uma
vitória completa sobre as forças malignas, por isso Paulo escreve aos Romanos: “Quem
intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará?”
(8.33-34). Cristo derrotou nosso inimigo, e nos dá sua vitória. Nada mais o diabo poderá fazer
contra nossas vidas, pois temos a salvação de Cristo, e por essa razão, já somos mais que
vencedores por causa de Jesus (Rm 8.37; Rm 16.20).

Vida Eterna

Acima de tudo, salvação significa receber a vida eterna. Não fomos criados para morrer, a
morte entrou em nossa existência por causa do pecado. De certa forma, toda a ação redentora
de Deus tem o objetivo de retirar a morte de sua criação. Por isso, Paulo diz que a morte é o
último inimigo a ser derrotado, e que Cristo a derrotará na ressurreição final (1Co 15.26).
Nenhum texto é mais claro em demonstrar a salvação pela graça representando a vida eterna
do que Romanos 6.23: “Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a
vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”. A morte é consequência (pagamento) pelo
pecado, mas Deus tem dado um presente ao ser humano, a vida eterna em Cristo Jesus. Em
Jesus está a vida eterna, por isso João diz que quem tem o Filho tem a vida, quem não tem o
Filho de Deus não tem a vida (1Jo 5.12). A vida eterna não é um dom do futuro, pois segundo a
Bíblia, é algo que os crentes já desfrutam agora. A Bíblia não diz que os crentes terão a vida
eterna, mas que já a têm (Jo 3.36).

Conclusão
Portanto, a salvação é a maior necessidade do ser humano, e nenhuma outra atividade nesse
mundo deveria ser mais importante do que se preocupar com a salvação de nossas almas. Não
fomos feitos para morrer, pois Deus nos fez para a eternidade. Em Jesus Cristo, Deus tem
concedido gratuitamente salvação a todo aquele que crê. Essa salvação é o maior presente
que alguém pode receber.

Pregar sobre salvação pela graça mediante a fé, dentro dos moldes bíblicos, pode ser muito
impopular nos dias atuais. Algumas pessoas não estão interessadas no assunto, enquanto
outras entendem que devem conquistar a salvação para elas mesmas. Querem poder dizer: eu
sou salvo porque eu faço isso. É muito difícil para o ser humano reconhecer sua completa
incapacidade e descansar em Cristo. Por isso, a salvação é ao mesmo tempo a coisa mais fácil e
a mais difícil de ser obtida. A salvação é o assunto mais importante a ser considerado por
pessoas decaídas. Ela deveria ocupar a nossa mente, os nossos púlpitos, as nossas conversas
com amigos, e até os momentos de insônia. Mais do que bons conselhos sobre como viver
melhor, sobre como ser próspero ou ter saúde, as pessoas precisam aprender sobre a
salvação, pois ninguém vive para sempre, e, muitos só se darão conta da importância desse
assunto quando for tarde demais.

Soteriologia

Aula 2

Os cristãos frequentemente pensam em Cristo mais como um salvador fora deles do que um
salvador que habita neles. Geralmente passa despercebido o profundo e magnífico ensino que
existe por detrás da expressão “em Cristo”, que é tão comum na Escritura. Podemos dizer que
a união com Cristo é simplesmente a verdade central de toda a doutrina da salvação. Nossa
salvação depende absolutamente de nossa união com Cristo, pois esse foi o método escolhido
por Deus para nos salvar. Somos salvos porque fomos feitos “um com Cristo”, e
permanecemos salvos apenas porque permanecemos unidos com Cristo. Este, sem dúvida, é o
ponto distintivo do cristianismo em relação a todas as demais religiões que existem no mundo.
Todas as religiões apontam para alguma coisa que precisa ser feita ou preenchida pelo fiel, a
Bíblia, porém, aponta para uma pessoa: Jesus de Nazaré. Ela não aponta apenas para os
ensinos dele, mas para ele próprio, pois ele é a salvação que precisamos. Por isso ele mesmo
disse: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (Jo 14.6). Note que ele não disse: “Eu sei o
caminho, sigam-no”, nem mesmo: “Meu ensino é a verdade, obedeçam-no”, ou: “Eu sei como
ter vida”. Jesus demonstrou que, ele próprio, em si mesmo, é o caminho, a verdade e a vida.
Somente podemos desfrutar dessas coisas nele, por isso, Jesus sempre usou a expressão “eu
sou” em seus ensinos. Ele disse: “Eu sou o pão da vida” (Jo 6.48), “eu sou a luz do mundo” (Jo
8.12), “eu sou o bom pastor” (Jo 10.11), “eu sou a ressurreição” (Jo 11.25), “eu sou a videira
verdadeira” (Jo 15.1). Com isso, ele sempre quis apontar para seu caráter singular, pois a
salvação não é ter algo de Jesus, mas ter o próprio Jesus. Salvação e Jesus Cristo são
sinônimos. Tudo na salvação depende inteiramente de Jesus, por isso a Bíblia não diz que ser
salvo significa imitar a Jesus, mas “receber” a Jesus e continuar “andando” em Jesus. João
disse de forma inequívoca: “Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no seu Filho. Aquele
que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida” (1Jo 5.11-12).

Salvação é ter Jesus. Salvação é o que Paulo disse ao Colossenses: “Como recebestes Cristo
Jesus, o Senhor, assim andai nele, nele radicados, e edificados, e confirmados na fé, tal como
fostes instruídos, crescendo em ações de graças” (Cl 2.6-7). Cada passo de um convertido é em
Jesus Cristo, desde o ato de recebê-lo, como o desenvolvimento espiritual que deve ser nele. O
entendimento de Paulo sobre este assunto é tão pleno que ele diz que “viver é Cristo” (Fp
1.21). O ideal de um cristão, portanto, é poder dizer como Paulo: “Logo, já não sou eu quem
vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20). Estar unido a Cristo significa que Deus não nos vê de
forma independente de Jesus, significa que a nossa vida é enxertada em Cristo, ou que Cristo
foi “formado” dentro de nós (Gl 4.19). Assim, passamos a fazer parte de tudo o que Cristo é,
como se mergulhássemos nele. Paulo fala que somos ramos que foram enxertados na Oliveira.
Antes éramos “oliveira brava”, mas agora fomos enxertados e passamos a desfrutar do
sustento da raiz e da seiva da Oliveira (Rm 15.17). Com certeza Paulo está lembrando das
palavras do próprio Jesus: “Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem permanece em mim, e eu,
nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (Jo 15.5). Não poderia haver
uma expressão mais perfeita sobre a nossa inteira dependência de Jesus Cristo do que a
relação entre um ramo e a oliveira. Estar unido a Cristo é vida, é salvação, separado dele,
somos ramos que secam e morrem (Jo 15.6).

A doutrina da “união com Cristo” significa que, em tudo o que é necessário para nossa
salvação, Deus nos tornou um com Jesus. Como nosso representante diante de Deus, ele viveu
uma vida de obediência que passa a ser nossa, morreu pelos pecados de modo que podemos
dizer que também morremos, ressuscitou e nos fez ressuscitar com ele. Nos tornamos
participantes de toda a vida e obra de Jesus, de modo que, é como se Deus olhasse para nós e
visse Jesus. A isso os teólogos chamam de “união mística”, porque é uma união efetivada pelo
Espírito Santo de maneira misteriosa e sobrenatural, que nos faz ser “um com Jesus”.

Em Cristo: na eternidade

A salvação como “união com Cristo” começa ainda na eternidade. Já estudamos sobre a
doutrina da eleição, agora precisamos entender que a base para a eleição é a união com
Cristo. Segundo a Bíblia, Deus nos escolheu em Cristo. Anthony Hoekema diz: “Enquanto
pensamos sobre o escopo e a abrangência de nossa união com Cristo, precisamos ver essa
união como estendida por todo o caminho, de eternidade a eternidade”. Nossa história de
união com Cristo não começa no momento em que fomos convertidos, pois muito antes de
Deus criar o mundo, ele já havia planejado nossa salvação, e disposto que ela seria em Cristo.
Paulo diz: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com
toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu nele
antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele” (Ef 1.3-4).
Todas as bênçãos celestiais com que temos sido abençoados sobrevêm a nós nele, ou seja “em
Cristo”.

Deus nos escolheu para salvação não porque viu algum mérito em nós que o motivasse a fazer
isso, mas baseado na predeterminada união com Cristo. Isso significa que nossa eleição jamais
poderá ser vista à parte de Cristo. A união entre Cristo e o seu povo foi planejada por Deus
desde toda a eternidade. Deus nunca escolheu alguém por si mesmo, ele nunca olhou
qualquer um dos eleitos de forma independente. Ele viu cada eleito em Cristo, ou seja, na obra
que Cristo realizaria pelo eleito. Por isso, Jesus é chamado de o “Cordeiro que foi morto desde
a fundação do mundo” (Ap 13.8). E em 1Pedro 1.18-20 está escrito: “Sabendo que não foi
mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil
procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem
defeito e sem mácula, o sangue de Cristo, conhecido, com efeito, antes da fundação do
mundo, porém manifestado no fim dos tempos, por amor de vós”. Desde toda a eternidade
Deus já havia escolhido um povo em Cristo e decretado que esse Cristo morresse pelo povo
escolhido[5]. É impossível separar a eleição da morte de Cristo, somos eleitos em Cristo.

Em Cristo: morte, ressurreição e ascensão

Se fomos escolhidos em Cristo para sermos salvos antes da fundação do mundo (união
federal), Deus enviou Jesus para ser nosso substituto em vida, e assim nos incluiu em Cristo
durante seu ministério nesse mundo, a isso chamamos “união de vida realizada objetivamente
em Cristo”. Aqui é necessário o entendimento de outro assunto, diz respeito a nossa união
natural com Adão. Adão foi o representante da humanidade no teste que Deus o submeteu
ainda no jardim do Éden. A escolha que Adão fizesse afetaria toda a sua descendência, pois ele
era o cabeça dela. Adão escolheu a rebelião e a consequência é que toda a sua descendência
foi envolvida nessa rebelião. De nada adianta as pessoas culparem Adão por sua escolha, pois,
diante de Deus, nós estávamos em Adão. Por isso Paulo declara: “Portanto, assim como por
um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte
passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5.12). E Paulo diz em 1Coríntios 15.22
que “em Adão, todos morrem”, pois todos os homens já nascem com essa realidade de estar
em Adão. Porém, Deus resolveu mandar um segundo Adão, um novo representante para o seu
povo: Jesus Cristo. Da mesma forma como fomos incluídos por natureza nas atitudes de Adão,
de modo que, suas atitudes podem ser consideradas como “nossas atitudes”, também
espiritualmente somos incluídos em Cristo, de modo que as atitudes de Cristo passam a ser
“nossas atitudes”. É assim que a Escritura diz, por exemplo, que morremos e ressuscitamos
com Cristo. Paulo diz: “Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que,
como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós
em novidade de vida. Porque, se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte,
certamente, o seremos também na semelhança da sua ressurreição, sabendo isto: que foi
crucificado com ele o nosso velho homem” (Rm 6.4-6). Como diz Horton, “é importante
perceber que Cristo não vem para melhorar o antigo eu, guiar e redirecioná-lo para uma vida
melhor; ele vem para nos matar, a fim de nos ressuscitar em novidade de vida”. A morte de
Jesus é a nossa morte e a ressurreição de Jesus é a nossa ressurreição, porque tanto na morte
quanto na ressurreição de Cristo, estávamos nele. E não somente nisso, mas até mesmo na
ascensão, pois em Cristo já estamos assentados nos lugares celestiais (Ef 2.6). Após a
ressurreição Jesus ascendeu aos céus, e agora ele está assentado à destra de Deus. Nossa
união mística com Cristo nos faz estar lá com ele, pois de algum modo estamos assentados
com Cristo nos lugares celestiais. A igreja unida a Cristo foi, como diz Berkhof, “crucificada com
Cristo, morreu com ele, nele ressurgiu dos mortos e foi levada a sentar-se com ele nos lugares
celestiais”.

Devemos sempre lembrar que a “união mística” é misteriosa, pois estamos falando de algo
sobrenatural, que não pode ser completamente racionalizado ou explicado. Hodge tem
palavras muito próprias para isso:

É-nos suficiente saber que Cristo e seu povo são realmente um. São tão verdadeiramente um
como a cabeça e os membros do mesmo corpo, e pela mesma razão; são envolvidos e
animados pelo mesmo Espírito. Não se trata meramente de uma união de sentimentos, ideias
e interesses. Esta é só a consequência da união vital na qual as Escrituras põem tanta ênfase.

De fato, a união do crente com Cristo é uma união vital. Cristo e seu povo compartilham da
mesma vida.

Em Cristo: todo processo da salvação

No próximo capítulo falaremos sobre uma espécie de “ordem” ou “caminho” da salvação. Isso
diz respeito aos diversos elementos que compõe a salvação. Todos esses aspectos são
realizados “em Cristo”, e dependem de nossa união com Cristo. Como disse Calvino, “nós
devemos entender que enquanto Jesus permanecer exterior a nós, e estivermos separados
dele, tudo o que ele sofreu e fez para a salvação da raça humana permanece inútil e sem
qualquer valor para nós”[9]. John Gerstner usa a ilustração do casamento para demonstrar
como os benefícios de Cristo chegam até nós por causa de nossa união com ele: “Sendo a
igreja casada com Cristo, tudo que é dele passa a ser de sua esposa, o crente. Uma esposa
torna-se co-herdeira de tudo que pertence ao esposo simplesmente por ser sua esposa, por
sua união com ele pelo casamento”.Todas as bênçãos espirituais de Cristo são nossas em
nossa união com ele, pois “para ser aceito diante de Deus, para ser livre de toda culpa e
punição e para desfrutar da glória de Deus e da vida eterna, nós temos que ter Cristo, não algo
dele, mas o próprio Cristo”.

Regeneração em Cristo

A regeneração é também chamada de novo nascimento e deve ser entendida como o ato
divino pelo qual ele traz alguém à vida pela união com Cristo. Assim, alguém que estava
espiritualmente morto passa a estar espiritualmente vivo. Paulo diz: “Mas Deus, sendo rico em
misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos
delitos, nos deu vida juntamente com Cristo” (Ef 2.4-5). Esse ato de dar vida ao que estava
morto é o que entendemos por regeneração ou novo nascimento. Note que isso acontece, nas
palavras do Apóstolo, “juntamente com Cristo”. Estávamos espiritualmente mortos, mas num
dado momento, Deus fez com que nos tornássemos espiritualmente vivos ao compartilharmos
a vida de Cristo. A regeneração é em Cristo, e é uma espécie de ressurreição espiritual.

Justificação em Cristo

Justificação é o ato divino pelo qual ele coloca sobre o crente a justiça de Cristo. Deste modo, o
pecador passa a ser declarado justo diante de Deus. Paulo diz: “Aquele que não conheceu
pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co 5.21).
A expressão “nele” do texto é muito enfática. Em Cristo fomos feitos justos. Nossa justificação
depende inteiramente de nossa união com Cristo (Ver Fp 3.8-9). Como diz Michael Horton,
“somente Cristo possuía em si mesmo, em sua essência tanto quanto em suas ações, a justiça
que Deus requer da humanidade. Portanto, somente por meio da união com Cristo pode o
crente gozar da identidade de pertencer a Deus”[12]. Ou como diz Bavinck, “a justiça que nos
justifica, portanto, não deve ser separada da pessoa de Cristo”, embora sempre deve ser
lembrado que Deus nos imputa sua justiça livremente, e não com base em alguma condição
existente.

Adoção em Cristo

A adoção diz respeito à atitude divina pela qual ele nos adota como filhos através de Cristo
Jesus. Isso já estava predestinado, pois Paulo diz que Deus “nos predestinou para ele, para a
adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo” (Ef 1.5). Mas, como Paulo declara: “Vindo, porém, a
plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar
os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. E, porque vós sois
filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!” (Gl 4.4-6).
Fomos predestinados para sermos filhos na eternidade, e Deus concretizou isso dentro do
tempo. Somos filhos em Cristo porque temos o Espírito de Cristo em nós. Isso nos faz também
herdeiros, como Paulo declara: “Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de
Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados”
(Rm 8.17). Somos filhos e herdeiros “em Cristo”.

Santificação em Cristo

Santificação é a atividade do Espírito pela qual o crente é renovado dia a dia em conformidade
com a imagem de Deus. É o abandonar dos pecados para viver em pureza. Em 1Coríntios 1.30
Paulo diz: “Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus,
sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”. Além da justiça que temos em Cristo, o texto
diz que Cristo é nossa santificação. A santificação não é algo que conseguimos por nós
mesmos, como muitos pensam. A santificação, embora inclua nossos esforços, somente pode
ser encontrada em Cristo. Jesus deixou bem claro que dependeríamos dele para podermos
fazer alguma coisa. Ele disse: “Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. Como não
pode o ramo produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem vós o
podeis dar, se não permanecerdes em mim (Jo 15.4). Em Cristo podemos ser santos, portanto,
Robert Strimple está certo ao dizer que, “a verdadeira união do crente (embora
profundamente misteriosa) com Cristo produz não apenas a justificação mas também a
santificação”. E muito antes, Calvino já disse: “Devido ao caráter de Deus, que é santo, esta
união traz como ingrediente fundamental a santificação, que é o seu vínculo: “Quando
ouvimos menção de nossa união com Deus, lembremo-nos de que santidade deve ser-lhe o
vínculo.”

Perseverança em Cristo

Perseverança é a virtude de permanecer fiel até ao fim capacitado pelo Espírito Santo.
Podemos perseverar até o fim porque estamos em Cristo. Paulo diz: “Porque eu estou bem
certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do
presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer
outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”
(Rm 8.38-39). Durante todo o capítulo 8 de Romanos Paulo está tratando sobre as dificuldades
da vida presente. Parte de seu argumento é que devemos permanecer fiéis mesmo em meio às
tribulações, porque elas não podem nos separar do amor de Deus. Todas as dificuldades dessa
vida não poderão nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus. Em Cristo Jesus
encontramos o amor de Deus que não vai permitir que sejamos perdidos, pois desse amor,
nada poderá nos separar.

Nossa salvação, em todos os sentidos, depende inteiramente de nossa união com Cristo.
Eleitos em Cristo, regenerados, justificados, santificados e guardados em Cristo. A doutrina da
“união com Cristo” é “a roda que une os aros da salvação e os mantém em perspectiva
apropriada”.

Em Cristo: vida cristã

A excelência de nossa vida cristã também depende inteiramente de nossa união com Cristo.
Paulo diz: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram;
eis que se fizeram novas” (2Co 5.17). A nova vida que o crente desfruta depois da conversão
não tem origem ou desenvolvimento em si mesma, ela depende exclusivamente de estar unida
com Cristo. Paulo diz: “Se alguém está em Cristo é nova criatura”. Em Cristo, por causa de sua
ressurreição, o crente pode desfrutar de uma vida de ressurreição também, de modo que as
coisas antigas somente ficam para trás porque foram anuladas na cruz de Cristo. Como Paulo
declarou, nós morremos com Cristo, ou seja, nossa velha vida acabou em Cristo. A razão de
nossa existência hoje já não é a vida da carne e dos pensamentos humanos, mas a vida do
Espírito que nos é dada em Cristo. Bavinck diz que os crentes que foram crucificados para o
mundo, e não vivem mais em si mesmos, mas naquele que morreu e ressuscitou por eles,
“receberam um novo referencial para todo o seu pensamento e ação, pois eles têm sua vida,
movimento e existência em Cristo”.

Estar em Cristo é, portanto, a base fundamental de nossa existência como cristãos. Não
existimos mais independentemente, existimos nele, como se nossa existência e a dele se
tornassem uma só. Por isso Paulo disse: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e
esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si
mesmo se entregou por mim” (Gl 2.20). Essa é uma das expressões mais ricas das Escrituras.
Paulo diz que Cristo está vivendo através dele, ou seja, aquela razão ou princípio que faz com
que a vida continue a se desenvolver, tenha sentido e propósito, já não parte mais dele, é
Cristo.

Nesse sentido devemos considerar também, uma das doutrinas mais repudiadas pelo mundo e
pela pregação moderna: a doutrina do sofrimento. Hoje os crentes querem ser prósperos,
querem ser senhores, querem ser respeitados e admirados, mas o Senhor dos crentes foi
humilhado, escarnecido, crucificado e morto. O sofrimento é um ingrediente indispensável da
vida cristã autêntica, pois todo crente verdadeiro sofre. O simples fato de ainda estarmos na
carne, apesar de termos sido regenerados pelo Espírito, cria um conflito em nós que causa
sofrimento. Lutar contra o pecado é uma tarefa bastante dolorosa, e quando pecamos,
sofremos ainda mais. Jesus descreveu a vida de discípulo como uma tarefa diária de “carregar
a cruz” (Lc 9.23; Mt 16.24). Ele ensinou que para segui-lo precisamos renunciar a muitas coisas,
como nossos desejos, riquezas, honras, e até a própria vida (Lc 14.26). De todas essas coisas
Jesus abriu mão por nós, e agora devemos fazer o mesmo por ele. Nossa união com Cristo é
bênção para nós até mesmo na medida em que participamos dos sofrimentos de Cristo.

Paulo tinha esse entendimento, em muitas passagens ele falou sobre isso. Devemos lembrar
que Paulo sofreu muito por causa do Evangelho. O próprio Jesus, ao comissioná-lo, disse que
ele teria que sofrer pelo seu nome (At 9.16). Em quase todos os lugares por onde passou,
Paulo enfrentou perseguições, afrontas, dores físicas e sofrimentos espirituais (2Co 11.24-29).
Ele entendia que sua vida de sofrimento nada mais era do que uma bênção de poder imitar a
Cristo, por isso dizia que seu alvo era: “Ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede
de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé;
para o conhecer, e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos,
conformando-me com ele na sua morte” (Fp 3.9-10). Ele desejava experimentar cada vez mais
a comunhão com Cristo no sofrimento, e por essa razão dizia se regozijar: “Agora, me regozijo
nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a
favor do seu corpo, que é a igreja” (Cl 1.24). Pedro tinha esse mesmo entendimento: “Alegrai-
vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na
revelação de sua glória, vos alegreis exultando. Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-
aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus” (1Pe 4.13-14). Todo
o sofrimento que os cristãos tiverem que enfrentar nessa vida, e que não forem em
decorrência de seus próprios pecados, são para a glória de Deus e motivos de regozijos. A
nossa união com Cristo nos leva também a sofrer como ele sofreu, e isso é uma bênção para
nós, para o nosso crescimento espiritual. O sofrimento nos faz mais parecidos com ele, nos faz
mais submissos e mais dependentes da vontade de Deus.

Outra consequência de nossa união com Cristo é a comunhão com os irmãos. Na igreja se fala
muito no fato de que os crentes devem ter comunhão uns com os outros, mas nem sempre
fica claro qual é a base disso. Muitos não entendem porque devem ter amizade mais com
pessoas da igreja do que com pessoas do mundo. A base da comunhão da igreja é a união
mística. A Bíblia descreve a igreja como um corpo, e esse corpo tem uma cabeça: Cristo. Paulo
diz que, pela ascensão, Cristo foi exaltado ao posto supremo do universo, sendo que Deus “pôs
todas as coisas debaixo dos pés, e para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja, a
qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas” (Ef 1.22-23, ver
Cl 1.18). A função do Cabeça da Igreja é unir cada vez mais os membros no corpo para que
todos cresçam juntamente. Paulo fala extensivamente sobre isso em Efésios 4. Ele diz que
Jesus ao subir à destra de Deus concedeu dons aos homens, e esses dons foram dados para o
aperfeiçoamento dos santos, para o desempenho do serviço divino, para a edificação do corpo
de Cristo (Ef 4.12). A ordem da edificação da igreja como corpo de Cristo é a seguinte: “Mas,
seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem
todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa
cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em
amor” (Ef 4.15-16). Entre cada membro do corpo de Cristo está a Cabeça, e todo
relacionamento precisa ser mediado por ela. Do que se percebe do texto, a comunhão entre os
irmãos é essencial para o crescimento de cada um e do corpo como um todo.

Conclusão
Por isso dissemos que o cristianismo não é uma religião, mas uma pessoa, uma única pessoa:
Jesus Cristo. Para efeitos de salvação, é como se só Cristo existisse. Deus não olha para nossas
obras, olha para as obras de Cristo. Deus não olha para nossos pecados, olha para a justiça de
Cristo. Quando Deus nos olha, ele vê Cristo. Todos nós agora fazemos parte dessa pessoa
maravilhosa. Jesus vive nos crentes, ele é a vida dos crentes. Viver o cristianismo não é
questão apenas de fazer o que Cristo mandou ou seguir o exemplo dele, é questão de ter o
Filho (1Jo 5.12), de estar nele (Jo 15.5). Cristo é o tesouro maior que temos. Nada se compara
aos benefícios que temos nele. A pior situação que alguém pode enfrentar é a de estar “sem
Cristo”. O Apóstolo Paulo fala que os crentes de Éfeso, antes de conhecerem a verdade,
estavam “sem Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos às alianças da promessa,
não tendo esperança e sem Deus no mundo” (Ef 2.12). Estar “sem Cristo” é não dispor de
nenhuma das bênçãos de Deus. Em unidade com Cristo, dispomos de uma nova identidade, a
identidade de Jesus. O Cristianismo não é uma religião, é uma pessoa: Jesus Cristo.

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