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RIBEIRÃO PRETO – SP
2006
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
RIBEIRÃO PRETO - SP
2006
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Documentação XXXXXXX
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
Aprovado em:
Banca Examinadora
A todos que fazem parte das composições que pude produzir nos momentos de minha
existência e com as quais pude contar neste trabalho.
AGRADECIMENTOS
Aos meus filhos Vitor e Júlia, por serem fonte de inspiração para qualquer situação vivida.
Ao meu companheiro Clau, que sempre me incentiva na busca e realização de novos projetos.
Ao orientador Reinaldo Furlan, por ter possibilitado a continuidade dos meus estudos.
À Annie, pelo jeito manso e carinhoso que demonstrou em todas as vezes que precisei.
Aos professores Regina Benevides e Eduardo Passos, por fazerem do território acadêmico
uma máquina de pensamento e de luta, pela qual fui afetada.
A minha irmã Simone, pelos incentivos sempre tão bem vindos em qualquer momento.
Ao meu irmão Neuber, que sempre buscou modos de ampliar as possibilidades positivas da
vida.
A minha sobrinha Gabriela, que ao nascer neste momento de produção, provcou em mim mais
interesse pelo tema da pesquisa.
Às amigas Mariana Garbim e Ana Luiza, pela amizade nos momentos de produção.
A minha amiga Dodô, que me deu muita força para começar este trabalho.
CORRÊA, S.L. Analysis of Deleuze and Guattari’s critical reviews concerning to the
psychoanalysis of sexuality as a model of constitution of subjectivity. 2006, 155.
Dissertation (Master) – Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São
Paulo, Ribeirão Preto, SP, 2006.
This work aims at investigating the compromise of Freud’s concept of sexuality from Gilles
Deleuze and Felix Guattari’s critical reviews. According to these authors Freud equivocated
the most when he reduced sexuality to an interior instance, refuting all the libidinal investment
in the familiar determination of the society of his time. In order not to lose all the multiple
analysis of the unconscious processes and its relevancies to the study of subjectivity, it is
necessary to investigate the compromise of this notion with the capitalist context when the
processes of subjectivity are under the influence of the individual models. These processes
were present not only in Freud’s time, but also in the present time, in many notions concerning
to subjectivity. Deleuze and Guattari do not deny the influence of the unconscious outcome,
but they define the way in which the machinic function works. Therefore, desire will be
analyzed in a social context. It is a matter of investigating the possible investment of the libido
without any predetermined function. Both authors refuse any binary, dualistic logic of notion
of subjectivity since these aspects correspond to a specific historic and philosophic dominium.
Thus, they make use of concepts that approach subjectivity in its multiple facets. It is a
machinic unconscious opposing to the figurative unconscious of Psychoanalysis. The notion of
body without organs is studied which remits to the idea of experimentation versus the
psychoanalytic concept of interpretation breaking with the identity perspectives. The concept
of rhizome helps to understand the performance of the wishing machines going beyond the
binary logic. Besides the critical reviews this project aims at finding in Deleuze and Guattari
new ways of thinking about sexuality in its clinical dimension. The analytical process will be
reassured in its revolutionary and creative power, since Schizoanalysis does not intent to find
anything in terms of predetermined aims of desire when analyzing the unconscious.
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 09
2 DESENVOLVIMENTO
3. CONCLUSÃO.....................................................................................................................148
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 150
9
1 INTRODUÇÃO
justamente, de acordo com as críticas apresentadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari,
trabalho buscará seu desenvolvimento central. Trata-se de uma investigação das obras
edipiana, dicotomia operada por Édipo como o grande divisor de águas. A psicanálise
esquizofrenias. Mas o problema que se coloca é que ela faz de Édipo um eixo de
referência tanto para as fases pré-edipianas, como também para as tais variações. As
como uma lacuna estrutural em relação ao eixo estruturante de Édipo. Isto implica a
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que toda a produção da sexualidade humana só se faz enquanto estruturada desse modo.
É isso que querem dizer esses autores quando afirmam que Freud não gostava dos
produção desejante cai na armadilha que captura seus investimentos com a pretensão de
se deixa prender (É isso que você queria! os fluxos decodificados! era o incesto!).
p. 210).
Na leitura das obras aqui propostas, uma nova perspectiva pode ser elaborada,
foi ter fechado a sexualidade em uma instância interior, tendo Édipo como princípio
libido como investimento social é a própria relação com a exterioridade ao invés de uma
investimento libidinal sobre uma determinação familiar, isso não significa que o pai, a
mãe, as experiências infantis vividas na situação familiar não façam parte da cadeia
“significante”, porém essas correlações são furtivas entre os agentes coletivos. A libido
não pode ser nunca separada de um campo social e dos fenômenos de grupo, sendo
sempre maquinada sobre um socius. O desejo está sempre investido num campo social,
de modo que não há operações abstratas autônomas individuais que obedeçam ao destino
que se repete ao longo da evolução humana por meio de articulações simbólicas movidas
Os investimentos libidinais são antes de tudo conexões, fluxos e intensidades que não
Deleuze não nega que haja sexualidade edipiana, mas a distingue em um tipo
de operação da ordem dos objetos globais e egos específicos. Esta operação provoca a
ilusão de que toda a produção desejante está submetida a leis transcendentes e, mesmo
que iniciada por etapas pré-edipianas, se orientará para uma organização futura regida
Então é seu pai, então é sua mãe, então é você: a conjunção familiar resulta das
conjunções capitalistas, enquanto se aplicam a pessoas privatizadas. Papai-mamãe-
ego, tem-se certeza de encontrá -los em toda parte, porque se aplicou a tudo. O reino
das imagens, tal é a nova maneira pela qual o capitalismo utiliza as esquizas e desvia
os fluxos: imagens compósitas, imagens rebatidas sobre imagens, de tal maneira que,
ao fim da operação, o pequeno ego de cada um, referido a seu pai-mãe, seja
realmente o centro do mundo.
desejo restritos às imagens familiares. São processos que impõem aos fluxos do desejo
psicanálise não podem ser analisadas separadamente das operações realizadas pela
subjetivação. Para Deleuze e Guattari (1976, p. 463), Édipo parece inocente e exclusivo
relacionados aos temas familiares, papai-mamãe, vagina, pênis, castração... Para tanto,
codificados, pode ser combatido. Muitas das interpretações psicanalíticas das formações
do inconsciente serão consideradas por Deleuze e Guattari como formações que não
estão dadas a priori, pois as produções do inconsciente funcionam como usina, como
simbólico da psicanálise. O desejo é concebido como produção de real que remete a uma
produção social que é extrínseca e não intrínseca como quer a psicanálise, quando
concebe esse desejo como falta que produz um imaginário que duplica a realidade
(idealismo). Conceber o desejo como falta é afirmar que este se dá como produção de
Essa solda do desejo com a falta é, justamente, o que dá ao desejo fins, metas ou
intenções coletivas e pessoais – em lugar do desejo tomado na ordem real de sua
produção que se comporta como fenômeno molecular desprovido de meta e de
intenção. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 435)
desejantes inconscientes não se fazem de modo estrutural, nem pessoal e muito menos
falta.
O corpo sem órgãos é um outro conceito utilizado por Deleuze e Guattari que,
Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: Vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso CsO1 , não desfizemos ainda suficientemente
nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela
experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de
vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se
decide.
1
Abreviatura utilizada pelos autores para corpo sem órgãos.
15
constituído por intensidades que não se reduzem a uma cena ou a um sentido prévio a
poderá ser mais bem compreendida com a introdução do conceito de rizoma, tratado
afirmam que é sempre um “padre” que amaldiçoa o desejo ao prendê-lo a tais princípios.
que se quer dizer com CsO. Deleuze e Guattari (2000, p. 8) têm como projeto apresentar
uma teoria das multiplicidades, que questiona as idéias de unidade, totalidade e sujeito:
16
não significa que territorializações, unificações não ocorram, mas não servem como
produção, a experimentação pelo “meio”, sem origem, sem fim prévio, sem hierarquias,
constituído apenas por linhas que se alteram através de conexões efetuadas a partir de
qualquer ponto do processo, por velocidades que tomam força pelo meio, sem início e
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nem conclusão. A multiplicidade rizomática se faz por alianças heterogêneas e não por
algo.
Enfim, o rizoma pode ser utilizado como operador conceitual que se contrapõe
Freud por meio das operações edipianas em que o esquizo resiste. É por decalques que
as identidades perversas e neuróticas são formadas. E parece que é só isso que resta à
rizomático de funcionamento.
delírios de Schreber, como qualquer outro fenômeno esquizo, não se deixam reduzir pela
rompem constantemente com o centro, que criam ilnhas de fuga onde aparece toda uma
relação com a exterioridade da história, das raças, das religiões... E em Hans, segundo
Deleuze e Guattari, nos deparamos com toda a sorte de bloqueios de sua produção
desejante.
distingue de toda representação, não sendo figurativa, nem projetiva. São intensidades
puras, embora possam ser representadas e sofrerem processo de significação como quer
anedipianos.
19
que tem por finalidade questionar a concepção de que o desejo e a subjetividade estariam
232).
1976, p. 130).
É uma proposta de análise militante, com princípios práticos em direção aos processos
inconscientes do campo social pelo desejo. Guattari (1987) propõe a militância como
esquizoanálise visa à ultrapassagem dos grandes conjuntos molares, como a família, para
A sexualidade não é mais considerada como uma energia específica que une pessoas
derivadas dos grandes conjuntos, mas como a energia molecular que põe em conexão
moléculas-objetos parciais (libido)... Pois as máquinas desejantes são exatamente
isso: a microfísica do inconsciente... Mas, enquanto tais, elas não existem nunca
independentes dos conjuntos molares históricos... Sob os investimentos conscientes
das formações econômicas, políticas, religiosas, etc., há investimentos sexuais
inconscientes, microinvestimentos que testemunham a maneira pela qual o desejo
está presente num campo social... A sexualidade não é absolutamente uma
determinação molar representável num conjunto familiar, mas a subdeterminação
molecular, funcionando nos conjuntos sociais, e secundariamente familiares, que
traçam o campo de presença e de produção do desejo: todo um inconsciente não
edipiano, que produzirá Édipo apenas como uma de suas formações estatísticas
secundárias (‘complexos’), à saída de uma história que põe em jogo o devir das
máquinas sociais, seu regime comparado ao das máquinas desejantes. (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 232-233)
desejo que subvertem a ordem molar, ou estatística dos sexos. É a sexualidade como
verdade que colocam a sexualidade como algo a ser descoberto nas profundezas da
produção na superfície e na relação dos corpos no campo social. Ao realizar esta tarefa
existência humana.
21
2 DESENVOLVIMENTO
libido articulada à idéia de máquina. São as famosas máquinas desejantes que tanto
mecânica, pois “a mecânica é relativamente fechada sobre si mesma: ela só mantém com
Não há mais nem homem nem natureza, mas apenas o processo que produz um no
outro e acopla as máquinas. Em toda parte, máquinas produtoras ou desejantes, as
máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior não
querem dizer mais nada. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 16)
As noções de fluxo e corte fazem parte de um mesmo conceito que não faz
não apenas é interceptado por uma máquina que o corta, sendo ele próprio emitido por
A libido é maquinada sobre um socius, ou seja, sobre uma “superfície onde toda
tempo todo definida a partir de relações binárias entre sujeito-objeto, específicas de uma
dos investimentos libidinais dos pais. Deste modo, toda uma cadeia plural de signos
plural dos sistemas de signos, considerando que o signo do desejo não é a lei, sendo o
Guattari, não são absolutamente significantes, enquanto estão sob o regime das
“disjunções inclusivas”, onde tudo é possível. Eles são pontos de natureza qualquer,
princípio esta visão aparece na psicanálise, mas, posteriormente, ela irá supor uma cadeia
Édipo:
nem muito menos uma de destinação. É a afirmação das totalidades que se fazem ao
francês que relaciona sempre as partes com o todo. As pulsões parciais não se somariam
para configurar um todo, que, aqui em questão, seria a estrutura edipiana. Trata-se de
cortes, onde uma máquina produz um corte de fluxo em outra máquina que,
supostamente, produz fluxo e que, em outra máquina, produzirá um corte e assim por
diante. Isto significa afirmar que toda máquina é máquina de máquina. Radicalizando,
Deleuze e Guattari afirmam que “a parte não tem nada a ver com o todo, ela representa
concepção bi-univocizante e linearizada: “Não há uma evolução das pulsões que as faria
progredir, com seus objetos, para um todo de integração, assim como não há totalidade
É neste sentido que surge uma crítica a Melanie Klein quanto à suposição de os
edipianizante dos psicanalistas, Melanie Klein não concebe os objetos parciais em seu
2
BIRMAN, J. Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze. In: E. ALLIEZ (Org.). Gilles Deleuze: uma vida
filosófica. São Paulo: 34, 2000, p. 463-478.
24
pessoas globais.
Portanto, Proust dizia que o todo é produzido, que ele é ele próprio produzido como
uma parte ao lado das partes, que ele não unifica nem totaliza, mas que se aplica a
elas, instaurando somente comunicações aberrantes entre vasos não comunicantes,
unidades transversais entre elementos que guardam toda a sua diferença nas suas
dimensões próprias.
do todo, então se terá uma relação de hierarquia com um princípio de unidade, e esta é
uma das concepções combatidas pelos autores aqui estudados (esta discussão será mais
também já se pode adiantar que para os autores o inconsciente ignora pessoas e que os
objetos parciais não são representantes de pessoas, nem muito menos das parentais. Os
objetos parciais seriam peças na máquina desejante e são produzidos por extração sobre
um fluxo impessoal. A libido é sempre uma energia de máquina que não se deixa reduzir
por uma identidade imaginária nem por uma unidade estrutural. Na psicanálise ocorre
um esmagamento das máquinas desejantes por remetê-las às imagens dos pais. Deleuze e
Guattari indagam: “O que são as máquinas desejantes?” Eles respondem que para a
inconsciente. Mas eles fazem outra aposta: a produção desejante é pura multiplicidade
irredutível à unidade. O que está em questão não é negar que haja uma sexualidade
edipiana, mas limitar a sexualidade em um campo dos objetos globais e egos específicos,
25
mesmo em fases pré-edipianas, para uma organização futura determinada por Édipo. O
razão não pode ser concebido como fenôme no primário, causal e individual. Parece que,
segundo os autores, Melanie Klein percebeu a grande riqueza dos objetos parciais, mas
inconsciente não conhece pessoas, e que os objetos parciais investidos pela libido não
são os representantes dos pais, nem muito menos o que irá fundamentar as relações
parciais não “representam” nada. O que não quer dizer que para as crianças os pais não
[...] saber se tudo que ela toca é vivido como representando os pais. Desde o
nascimento, o berço, o seio, a chupeta e os excrementos são máquinas desejantes em
conexão com as partes de seu corpo. Achamos contraditório dizer, ao mesmo tempo,
que a criança vive no meio dos objetos parciais, e o que ela capta nos objetos parciais
são as pessoas parentais, mesmo que em pedaços. Que o seio seja extraído do corpo
da mãe, isso não é rigorosamente verdade, pois ele existe como peça de uma
máquina desejante, em conexão com a boca, e extraído de um fluxo de leite não
pessoal, ralo ou denso. Uma máquina desejante, um objeto parcial não representam
nada: não são representativos. São realmente suportes de relações de distribuidores
de agentes; mas estes agentes não são pessoas, e nem muito menos essas relações são
inter-subjetivas. São relações de produção como tais, agentes de produção e de
antiprodução. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 66)
rebateu tudo em uma só ordem perdendo com isso o entendimento de outras ordens que
26
limitada da origem dos fenômenos. Ainda se busca platonicamente a essência das coisas
nessa armadilha, enquanto também foi uma armadilha, sobretudo pelo seu anseio em
buscar uma identidade primeira no seio da relação familiar. Foucault (1982, p. 18),
baseado em Nietzsche, afirma que “... o que se encontra no começo histórico das coisas
disparate”.
todo um processo social determinante em suas produções, ou seja, não se deu conta
sociedade, conseguindo, deste modo, arrastá-la para um domínio das normas familiais e
sociais dominantes.
pela psicanálise em sua noção de desejo, principalmente por achar que os verdadeiros
27
uma ordem social, onde os objetos parciais, ao invés de serem extraídos de pessoas
globais, se produziriam por fluxos não pessoais que se transferem de uns para outros.
apresentada no campo psicanalítico. Esta é uma outra questão que também será tratada
mais adiante quanto ao conceito de inconsciente e sua relação com o desejo. O que é
interpretações. Quando a psicanálise rebate todo o desejo sobre uma estrutura familiar,
ela desconecta deste processo todo um campo social que é investido pela própria libido.
A interpretação é o principal artifício redutor dos fluxos, sobretudo ao inferir: “então era
isso que isso queria dizer?” É sempre por formas representativas que, na psicanálise, o
desejo se expressa, ou seja, algo que significa outra coisa, que está em outro lugar.
porém estas não são produções do inconsciente. Trata-se de disjunções não exclusivas,
conteúdo político-cultural-histórico-mundial-racial...
28
nova organização social capitalista em expansão que, ao mesmo tempo em que rompia
família e loucura.
delírios estão presentes conteúdos raciais, políticos e históricos que extrapolam o campo
relatadas pela psicanálise e pela literatura, são utilizados pelos autores para revelar a
edipianização insuportável?
familiares são como estímulos quaisquer que disparam processos sociais de raças,
29
complexa e composta por várias linhas de composição, que sofreu mutações importantes
a partir dos séculos XVIII e XIX. Deleuze comenta a obra deste autor enfatizando a
população e Estado. O modo pelo qual o corpo foi gerenciado, as relações institucionais,
interesse que se estenderam desde as camadas burguesas até as classes sociais mais
atuais. Esses processos foram intensificados pelo romantismo que valorizava, sobretudo,
tanto o indivíduo como a sociedade são atravessados simultaneamente por duas ordens: a
molar e a molecular. Isto significa dizer que tudo é, ao mesmo tempo, micro e macro
30
Pode-se assim, concluir que economia política e economia libidinal fazem parte
bipolares, faz parte de uma apropriação capitalista do desejo, que tem no familialismo
um dos seus princípios mais convincentes ao colocar a família como anterior à produção
dicotomia que ainda é feita de modo explícito entre família e Estado. A família é
primário que antecede a criação do Estado. São idéias que afirmam a autonomia da
e do próprio Estado. São concedidos à família poderes sem a menor visão crítica,
Para se estudar melhor a questão do desejo tal qual proposta pelos autores aqui
analisados, seguir-se-á para um próximo tópico, mas não sem antes citar Guattari (1987,
p. 77-78):
31
Édipo supõe uma fantástica repressão das máquinas desejantes. E por quê, com que
fim? É realmente necessário ou desejável dobrar-se frente a ele? E com quê? O que
colocar no triângulo edipiano, com que formá-lo? (DELEUZE e GUATTARI, 1976,
p.17)
socialmente. Esta sujeição sofreria recalcamento, sendo esta operação indispensável para
de uma lei. Esta hipótese supõe uma antinomia entre sexualidade e civilização, e grandes
ser a sociedade de sua época a principal responsável pelos malefícios causados pela
repressão sexual3 . Seria então a moral sexual civilizada a causadora dos transtornos
psíquicos. Esta hipótese inicial de Freud o aproxima de certa compreensão mais social e
freudiano foi considerada como fase otimista quanto à possibilidade de conciliação entre
3
FREUD, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX, 1996.
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de modo paradoxal, seria o grande perigo da organização social e por isso a sociedade
filogênese:
4
________ . (1905). Três ensaios sobre a sexualidade. In op. cit., vol. VII.
5
________ . (1913). Totem e tabu. In op. cit., vol. XII.
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E, por fim, Freud ainda irá recorrer à formulação da teoria da pulsão de morte
como força primitiva transcendente, que se adere às pulsões de vida causando os piores
máquinas desejantes.
históricas do desejo e que toma a sexualidade de um modo tão reacionário? Foi com esta
concluem:
Que se considere o artigo de 1908 sobre ‘a moral sexual civilizada’: Édipo ainda não
está nomeado, o recalcamento é aí considerado em função da repressão, que suscita
um deslocamento, e que se exerce sobre as pulsões parciais enquanto elas
representam à sua maneira uma espécie de produção desejante, antes de exercer-se
contra as pulsões incestuosas ou outras que ameaçam o casamento legítimo. Mas, em
seguida, é evidente que, quanto mais o problema de Édipo e do incesto ocuparão o
primeiro plano, mais o recalcamento e seus correlatos, a supressão e a sublimação
serão fundados em exigências supostas transcendentes da civilização, ao mesmo
tempo em que a psicanálise se embrenhará cada vez mais em sua visão familialista e
ideológica.
que se encontra em discussão é a natureza do que é recalcado e que continua sem uma
6
FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. In op. cit., vol. XVIII.
34
Édipo é uma imagem falsificada e não é sobre ele que o recalcamento incide,
nem muito menos existiria um retorno do recalcado. A relação entre os desejos edipianos
e o recalcamento está em uma outra ordem. Os desejos sofrem recalcamento, mas porque
tentar fazer funcionar a máquina analítica e a revolucionária apesar de não ter concebido
desejo, conjurando sua potência revolucionária. A família será a estratégia perfeita para
35
rapidamente como produtora e reprodutora de uma formação social maior. Édipo só pôde
socius de modo sem precedente. Uma enorme teia repressora que, não só inibe
A concepção de poder apresentada por Foucault é muito útil para o entendimento das
relações sociais, por ser, justamente, a definição pela positividade que ganha relevo. Para
idéias dominantes de repressão social, Foucault irá analisar a produção e os efeitos dos
como os autores aqui investigados, faz relevantes críticas à psicanálise. Foucault (1977)
afirma que, a partir principalmente do século XVIII, o sexo passou a ser incitado
difusão do discurso sobre o sexo alcançou seu ápice, e esta intensificação não foi só de
essa dupla operação faz parte de uma mesma estratégia de poder-saber que teve início
com as práticas de confissão da pastoral cristã e colocou muito mais o sexo em discurso
o que implica reconhecer nele não só um caráter coercitivo, tal qual as teorias a respeito
muito mais amplo a partir de relações de forças para além da dimensão individualizante
que todas essas teorias fizeram crer: “[...] o poder não é uma instituição e nem uma
estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam, dotados: é o nome dado a uma
dispositivo na qual está evidente o caráter histórico da sexualidade, mas não como a
dispositivo impessoal, sem origem ou instância determinante, fabricada por uma rede
caso da sexualidade, esta é uma das áreas da vida humana que mais atende em termos de
servem aqui para pensar em como as grandes estratégias de poder se estabelecem e como
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249). Está-se no campo das estratégias sem sujeito, o que não significa afirmar que não
exista representação, mas afirmar uma operação que ocorre de fora para dentro, ou
melhor:
Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar
que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno,
na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce
sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados,
treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados,
sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a
existência. (FOUCAULT, 1995, p. 31)
na família e pela família que os procedimentos de incitação ao sexo terão maior alcance.
importância na instauração e difusão desse movimento. Muito mais que uma célula
razão que Foucault rejeita a tese de que o sexo foi silenciado e censurado, principalmente
no século XIX, o que não significa afirmar que não tenha ocorrido censura, repressões,
mas esta tese não pode servir de ponto de apoio para uma análise do que aconteceu com
junção psicanálise-família foi uma das estratégias que mais intensificou a colo cação do
também que o sexo foi reprimido é supor uma natureza instintiva, rebelde e obscura da
que, para Foucault, nada mais é que uma suposição característica de uma rede de poder
Deleuze/Guattari, por se constatar uma operação social que age por deslocamentos
tempo, determinada por essa formação social que desencadeou toda uma relação com o
psicanálise não foi a autora exclusiva desse processo, ele já podia ser visto na literatura,
como também a psicanálise encontrou neste plano social um campo fértil para suas
dos consultórios.
favoreceu as produções psicanalíticas. Toda essa produção vai muito mais longe:
jogo nesta perspectiva é uma operação de interesse da produção social, na qual está
coloca sob suspeita e ao mesmo tempo como lugar de mais profunda verdade. São
proibido também é aquilo que é mais desejado. No entanto, para Deleuze e Guattari
(1976, p. 219), o recalcado não coincide com a representação edipiana e, sim, com a
produção desejante.
O incesto não remete a Édipo, mas aos fluxos intensivos do desejo. Édipo é
uma tentativa de codificação do desejo, uma tentativa de nomear aquilo que é da ordem
libidinais para valores determinados por uma ordem social dominante, mas que, por
40
figurativos desta ordem. Considerando que a libido que investe a triangulação edipiana
colocar a questão do desejo em certo plano social. Existe uma manobra social que faz
com que o recalcado apareça travestido em desejo edipiano e o recalcante seja a família
em suas relações binárias, constituindo a sexualidade infantil. Para que ocorra Édipo é
necessário que ele ocupe o lugar do representante do desejo e que ocorra uma separação
entre social e família estabelecendo uma relação bi-unívoca entre esses dois campos, o
que é uma característica específica do sistema capitalista. Isso já não ocorre nos sistemas
mais específica entre Édipo e sistema capitalista será vista mais adiante. Resta, aqui,
ressaltar o caráter primordial dos investimentos sociais, anteriores aos familiares, pois os
sentido, Deleuze e Guattari (1976, p. 233) afirmam que a sexualidade não pode ser nunca
representação, da lei e da proibição? Quem pode afirmar que esta seja realmente a forma
O campo social não é constituído por objetos que lhe preexistem. O indivíduo
tomado em sistemas bipolares do tipo homem/mulher, adulto/criança, genital/pré-
genital, vida/morte, etc., já é resultado de uma redução edipianizante do desejo sobre
a representação. A enunciação individuada do desejo já é uma condenação do desejo
à castração. Totalmente outra é a idéia de um agenciamento coletivo da libido em
partes do corpo, em grupos de indivíduos, em constelações de objetos e de
intensidades, em máquinas de toda espécie que fariam o desejo sair desta oscilação
entre o triângulo edipiano e seu desmoronamento na pulsão de morte, para conectá-lo
a multiplicidades cada vez mais abertas ao campo social. (GUATTARI, 1987, p. 31)
nos meios científicos e sociais de um modo geral. Porém, em seu percurso, Freud
deixou-se capturar pelas armadilhas de um sistema social que aliena o desejo, que o
prende ao segredo sujo familiar. Esta é uma concepção altamente repressiva do desejo,
responsáveis pelos seus impulsos incestuosos. É uma “tacada de mestre” afirmar neste
grande jogo das repressões sociais que o desejo é isso: Édipo. A esquizoanálise de
Deleuze e Guattari (1976, p. 130) pretende romper com este jogo propondo desmontar a
condições necessárias para o nascimento de Édipo. Será feita uma delimitação desta
análise, complementando o que já foi visto até aqui, buscando uma maior compreensão
capitalístico, inventada por Guattari, serve para englobar os países que já são capitalistas
capitalismo universal em si, pois ele existe apenas no atravessamento das forças sociais,
A intenção dos autores é fazer a análise a partir de Édipo não para considerá-lo
uma verdade a ser revelada, mas para mostrar como sua construção foi bem sucedida,
sobretudo a partir das peças de uma engrenagem social capitalística na qual tomou força
e corpo. É neste sistema social que a análise crítica se mostra mais forte. Édipo só existe
alguma entre elas, pois todas são colonizações opressoras que operam com a suposição
de um inconsciente figurativo.
43
importante que a produção em outros setores, como no energético, informá tico etc.
escala mundial que não depende apenas de superestruturas. Ela é fabricada nas mais
ocorre separada da produção econômica. Não basta que a produção ocorra apenas na
esfera profissional, semiótica ou financeira, mas é uma confecção que começa desde a
infância, na escola, na família, que engloba todo um campo maquínico. Como afirma
Guattari (1986, p. 27), o sistema capitalista manipula as relações de produção e faz uso
produção, que não se difunde pela ideologia, mas pela modelização. A ideologia está na
7
As distinções entre as noções de produção de subjetividade e modos de subjetivação serão feitas nos dois
últimos capítulos.
44
subjetivação, pois a modelização implica uma práxis social nas condições que a
determinam, e que estão para além de uma questão de idéia ou de identificações com
afirmar sua natureza esquizofrênica, mas que, ao mesmo tempo, com alto rigor, repele
Dizemos do capitalismo, ao mesmo tempo, que ele não tem limite exterior, e que ele
tem um: tem um que é a esquizofrenia, isto é, a decodificação absoluta dos fluxos,
mas ele só funciona repelindo e conjurando esse limite. E também tem limites
interiores e não os tem: tem nas condições específicas da produção e da circulação
capitalistas, isto é, no próprio capital, mas só funciona, reproduzindo e alargando
esses limites a uma escala sempre mais vasta. E é realmente a potência do
capitalismo, que sua axiomática não seja nunca saturada, que ele seja sempre capaz
de acrescentar um novo axioma aos axiomas precedentes. (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 318)
criando novas imagens flutuantes nas máquinas técnicas, científicas, sociais etc. São
outro. É assim que antigos códigos são decodificados e se tornam novas territorialidades.
capitalista. Esta análise não é feita num nível evolutivo, mas mostra como as relações
eram estabelecidas de modo diferente das relações edipianas do sistema capitalista. Para
45
os autores, na sociedade primitiva e despótica não existe Édipo tal como o proposto pela
inteligência política que opera com antigas categorias desfiguradas pelos movimentos de
desterritorialização e reterritorialização.
entre produção social e produção humana deste social. A família, por exemplo, é co-
autônoma. Não são mais as relações de aliança que constituem as relações sociais, mas o
Essa colocação fora do campo social da família é também sua maior chance social.
Porque é a condição sob a qual todo o campo social vai poder aplicar-se à família.
As pessoas individuais são primeiramente pessoas sociais, quer dizer, funções
derivadas das quantidades abstratas; tornam-se concretas elas mesmas na colocação
em relação ou na axiomática dessas quantidades, na sua conjunção. [...] O
capitalismo preenche assim com imagens seu campo de imanência... (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 336)
O capital torna-se o corpo pleno do social e é a partir dele que as imagens serão
construídas. Ele está em primeiro plano, e a família será o lugar de rebatimento dessas
quando surge Édipo a partir de operações de rebatimento das imagens sociais de primeira
ordem. Édipo, com todas as suas imagens privadas, é o ponto de chegada das forças
sistema que cria a separação entre privado-público. A força dessa dicotomia está
e sujeito do enunciado (pessoa social). Édipo nasceria no sistema capitalista onde ocorre
segunda ordem.
Ele é nossa formação colonial íntima que responde à forma de soberania social.
Somos todos pequenas colônias e é Édipo que nos coloniza. Quando a família deixa
de ser uma unidade de produção e de reprodução, quando a conjunção encontra nela
o sentido de uma simples unidade de consumo, é pai-mãe que consumimos.
(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 337)
mas não há como deixar de mencioná-las se se quer propor um Édipo produzido a partir
nova relação com o desejo surgirá ligando-o a uma interioridade. Nietzsche chama de
indivíduo. Espaços foram produzidos e marcados, e toda uma relação entre um fora e um
dentro foi instaurada. Autores como Foucault, Lapassade, Althusser não se cansaram de
mostrar como uma nova subjetividade surge a partir de estratificações das instituições. A
por esta formação social, sobretudo a partir das novas configurações familiares. Freud
conseguiu reduzir Édipo à família exatamente por encontrar terreno fértil para isso. Se a
família não tivesse passado por todas essas mudanças, não seria possível rebater o desejo
desejo como produção é, ao mesmo tempo, desejante e social e, de acordo, com Deleuze
(1976, p. 347) Édipo nasce na cabeça do pai: “Édipo é primeiro uma idéia de paranóico
Não há dúvida de que o pai interfira no inconsciente da criança, mas não por
uma transmissão familiar expressiva que se faça de geração em geração. O pai funciona
trágica esse privilégio insensato? Por que ter instalado formas expressivas, e todo um
Imagens, nada mais que imagens. O que fica no final é um teatro íntimo e familiar, o
teatro do homem privado, que não é mais nem produção desejante nem representação
objetiva. O inconsciente como cena. Todo um teatro posto no lugar da produção, e
que a desfigura ainda mais do que podiam fazê-lo a tragédia e o mito reduzidos aos
seus únicos recursos antigos. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 386)
desejo que distribui figuras na unidade familiar. Édipo é uma máquina gregária que se
inconsciente pode ser colonizado, pois ele é por natureza uma máquina subversiva que
está sempre escapando por todos os lados. Está-se diante de uma reprodução social
inconsciente, que tenta capturá-la. Édipo também seria o grande significante despótico
entre psicanálise e repressão social é correta, porém, limitada por estabelecer esta relação
em termos ideológicos e por fazer distinção entre economia política e libidinal: “Não
forma e sua própria finalidade estão marcadas por essa função social” (DELEUZE e
um deslocamento fazendo com que Édipo apareça como uma representação montada
8
“A não-relação torna-se uma relação, a disjunção, uma relação” (ZOURABICHVILI , 2004, p. 104).
50
dos fluxos de desejo. A psicanálise e outros artifícios nos fazem crer quando não há mais
desejante sem uma reterritorialização, uma é o avesso da outra. Estes são movimentos
que ocorrem juntos e que desembocam sempre em uma representação. Não existe
afirmação de Édipo; sim, ele existe, mas como uma ficção coletiva. Ele não é nem uma
invenção da psicanálise nem, muito menos, uma ilusão de Freud. Ele está na máquina
ao instaurar a distância não só entre os regimes das produções subjetivas e sociais, como
faz o menor sentido para esses autores fazer a distinção entre o molar e molecular pela
natureza dos investimentos desejantes, pois eles aparecem tanto no molar quanto no
Uma seqüência de desejo se acha prolongada por uma série social, ou, então, uma
máquina social tem nas suas engrenagens peças de máquinas desejantes. As
micromultiplicidades desejantes não são menos coletivas que os grandes conjuntos
sociais, propriamente inseparáveis e constituindo uma única e mesma produção.
Desse ponto de vista, a dualidade dos pólos passa menos entre o molar e o molecular
do que no interior dos investimentos sociais molares, porque de qualquer maneira as
formações moleculares são investimentos como estes. (DELEUZE e GUATTARI,
1976, p. 431-432)
Entre o molar e o molecular existe uma relação disjuntiva inclusiva, sendo que
onde está um, está o outro. A natureza dos dois conjuntos em termos de investimento de
um campo social é a mesma. Mas os regimes são diferentes. O conjunto molar forma
unidades, totalizações dos conjuntos moleculares de acordo com as leis dos grandes
conjuntos molares são os corpos plenos que determinam os diferentes modos do socius:
fixadas por estas formações sociais. Estas determinam o modo pelo qual homem-
A distinção não está aí; a distinção a fazer passa na própria infra-estrutura econômica
e em seus investimentos. A economia libidinal não é menos objetiva que a economia
política, e a política não é menos subjetiva que a libidinal, embora as duas
correspondam a dois modos de investimento diferentes da mesma realidade social.
Há um investimento libidinal inconsciente de desejo que não coincide
necessariamente com os investimentos pré-conscientes de interesse, e que explica
como estes podem ser perturbados, pervertidos na ‘mais sombria organização’, sob
qualquer ideologia. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 438)
investimentos libidinais não incidem sobre as metas ou fins sociais, porque eles são
anteriores e só podem incidir sobre os fluxos que passam pelo corpo pleno de cada
investimento libidinal é parte da infra-estrutura social e não de sua ideologia. Ele está
sempre na produção como produção social e esta nele como produção desejante. O
quanto no outro não se trata de pessoas e, sim, de investimentos que coexistem. Trata-se
de uma questão de uso dos investimentos libidinais e, neste sentido, faz pouca diferença
grupo. É importante frisar a coexistência dos dois tipos de grupo, ou seja, um grupo
situou no primeiro tipo de grupo, embora, em seus primeiros passos, tenha funcionado
podem não apenas contrariá-los, mas coexistir com eles em modos opostos”.
Isto não é tarefa fácil, pois a situação sempre se mostra de modo muito
dos fluxos de sexualidade. São fluxos que não se deixam edipianizar e que, ao investirem
o campo social, “delira a própria História”. A libido está no entrecruzamento dos fluxos
que atravessam os continentes, as raças, que não figuram nada, designando apenas zonas
É deste modo que Deleuze e Guattari percorrem alguns dos estudos clínicos de
familiar e, com isso, toda uma possibilidade de análise das relações com o exterior foram
impedidas. O fechamento produzido pela psicanálise fez com que a visão da libido em
seu aspecto não familiar ficasse perdida. A libido como índice do não humano no sexo
pode ser inserida no campo social e ultrapassar a visão familialista. O que está em jogo é
social como índice das relações deste mesmo campo: “Um amor não é reacionário ou
primazia dos investimentos libidinais do campo social sobre o familiar. A libido não
repressão social aplicada à família, sem a qual o sistema capitalista teria muita
9
Este conceito será analisado nos capítulos seguintes.
54
linhas de fuga dos fluxos. O capitalismo conseguiu formar um conjunto gregário sob
forte sujeição por meio de um campo de imanência que está sempre se alargando,
multiplicando seus axiomas e produzindo imagens que fazem seus elementos desejarem
sua própria repressão (imperialismo). E sobre isto o próprio Guattari (1987, p. 26) alerta:
“os modelos repressivos são tão virulentos nos psicanalistas quanto nos militares”.
aumentando constantemente seus limites. Trata-se de uma máquina louca, que está
à sua sobrevivência. A arte maior desse sistema é implantar a falta no desejo e, assim,
exacerbar a produção.
[...] quais são os índices maquinísticos, sociais e técnicos, sobre um socius, que se
abrem sobre as máquinas desejantes, que entram nas peças, engrenagens e motores
destas, tanto quanto elas fazem com que estas entrem nas suas próprias peças,
engrenagens e motores. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 483)
suposto como aquisição. Daí surge a relação entre desejo e falta. Kant, segundo os
faculdade de ser por suas representações causa da realidade dos objetos destas
mudança essencial entre as duas formas de conceber o desejo, pois, para se conceber o
desejo como produção, ainda se apóia na concepção clássica de falta ao se afirmar sua
realidade psíquica. Isto significa que, para Kant, o desejo era capaz de produzir seu
objeto, mas de modo irreal, fantasmado. Deleuze e Guattari concluem que para Kant “a
realidade do objeto enquanto produzido pelo desejo é, pois, a realidade psíquica” (1976,
princípio idealista está em total concordância com o proposto pela psicanálise. O desejo
como falta do objeto real produz um imaginário que duplica a realidade. É o desejo
concebido como encenação, e, nesta lacuna entre o que é encenado e o objeto, surge a
necessidade como base do desejo. Deleuze e Guattari fazem duras críticas a esta noção
de desejo como falta produzida por uma realidade psíquica. Eles afirmam: ao desejo
nada falta! Não existiria uma relação de falta entre sujeito e objeto, até porque, para eles,
que falta ao desejo, ou ao desejo que falta um sujeito fixo; só há sujeito fixo pela
repressão. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 43-44)
dão numa relação de máquina de máquina. O desejo é potência produtora e nunca uma
subjetivo10 . Portanto, a falta não existe antes do social, nem muito menos é o que
46) não há separação entre produção social e produção de fantasma, pois: “Na verdade, a
Não haveria operação psíquica responsável pela produção do desejo, no sentido descrito
notável, mas o desejo pode ser também desejo de repressão, já que isso implica uma
produção que é real. Ainda que a repressão aja sobre a produção desejante, isto não
significa uma separação entre desejo e social, pois: “O desejo produz real, ou a produção
desejante não é outra coisa senão a produção social” (1976, p. 47). O desejo, mesmo
de grupo. Neste sentido, pode-se afirmar que o desejo tanto opera em regimes
10
Sabe-se que certos tipos de povos nômades da Mongólia não reconhecem o conceito de falta por considerarem
apenas o que possuem e o que fazem. A forma de concepção produtiva destes povos parece se aproximar do que
Deleuze e Guattari querem passar com a noção de desejo como produção.
57
moleculares como nos molares. Molar e molecular estão numa relação intrínseca e o
desejo percorre os dois campos. O que há na relação dessas máquinas não é uma
diferença de natureza do desejo, mas uma diferença de regimes que dizem respeito a
relações de grandeza. O regime molar (as máquinas técnicas/sociais) funciona por meio
desejantes colocam sempre em perigo os sistemas molares pelas rupturas, pelas quebras
que produz. Essa relação está presente em todos os campos sociais: na literatura, na
máquinas desejantes.
familiar. A psicanálise estudou muito o inconsciente, tanto que Deleuze e Guattari (1976,
p. 40-41) chegam a afirmar que ela até mesmo o descobriu, mas esses estudos levaram a
unidades: “[...] uma encenação teatral que substitui as verdadeiras forças produtivas do
como uma dimensão psíquica que não reconhece a negação nem a contradição, e que só
sofre uma verdadeira domesticação quando reduzido aos efeitos edipianos em sua forma
individuada. Porém, não satisfeito, Freud afirma que Édipo institui não só o ser humano
no plano individual como também institui a própria civilização: “É sobre uma ausência
apela cada vez mais para uma apologia do desejo ligado à falta e, conseqüentemente, à
culpa, para além de todo determinismo social. Édipo é suposto como um legado genético
constitutivo tanto do indivíduo quanto do social. Em “Totem e tabu” (1913), Freud tenta
malthusianismo não seria suficiente para impor este antagonismo, recorrendo assim à
hipótese filogenética como determinante da renúncia que todo indivíduo tem de fazer
diante do desejo e que a própria civilização também teve que fazer durante sua evolução.
59
homem dos lobos, Freud conclui que os sintomas de seu paciente são oriundos de
seu comportamento. Lacan recorrerá à ordem simbólica, que já existe antes mesmo de a
criança nascer, para explicar o fenômeno edipiano como um fenômeno que irá constituir
o sujeito pela linguagem, sem ter que recorrer à fixidez de um comportamento instintivo:
humor, alegam que tudo isto não passa de coisa de “padre”. É a partir de um Ideal
transcendente que a concepção do desejo ligado à falta pode ser feita, que consiste,
campo de imanência do desejo está relacionado à noção de corpo sem órgãos, que será
estudada mais adiante, a qual permite que o desejo seja definido como processo de
produção.
Para Deleuze e Guattari, o desejo não carece de nada, não porque possa atingir a
plenitude de uma satisfação, mas porque a falta só pode ser pensada do ponto de
vista de um sujeito, que se orienta pela cartografia de um Ideal transcendente. É esse
sujeito que, ao ver sua figura desestabilizar-se pelos movimentos do desejo, o
interpretará como sinal de uma carência de completude. No entanto, se tiramos de
cena o Ideal transcendente e examinamos esses mesmos movimentos com a escuta
sintonizada no corpo sem órgãos, aquilo que para o sujeito é falta revela-se como
excesso de singularidades que transbordam e desmancham sua figura, levando-a a
tornar-se outra, se o processo seguir seu curso. (ROLNIK, 2000, p. 458)
60
As considerações feitas aqui por Rolnik serão revistas ao final deste trabalho
Deleuze e Guattari, e isso é feito muito bem por Rolnik, é a maldição que foi lançada
desejo na esfera do impossível gozo. Enfim, para que o indivíduo entre na cultura, ou
associação ao prazer que, para Deleuze e Guattari, faz parte do sacrifício ao qual foi
submetido. Para Lacan, a entrada no simbólico supõe a falta, ou seja, não há desejo antes
da lei. A maldição é que o desejo é definido como falta. O gozo é impossível porque
pretende suprir a falta, o que seria desfazer a própria condição humana – estamos
condenados para sempre. O prazer, por sua vez, é algo exterior porque é almejado pelo
desejo como supressão da falta, não é algo imanente ao próprio desejar, definido como
falta. Mas, para Deleuze e Guattari, isso continua sendo “coisa de padre”, pois o desejo
A figura mais recente do padre é o psicanalista com seus três princípios: Prazer,
Morte e Realidade. Sem dúvida, a psicanálise mostrou que o desejo não se submetia
à procriação nem mesmo à genitalidade. Foi este o seu modernismo. Mas ela
conservava o essencial, encontrando inclusive novos meios para inscrever no desejo
a lei negativa da falta, a regra exterior do prazer, o ideal transcendente do fantasma.
(DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 16)
desejo aqui examinado. O desejo sempre foi uma questão política que a psicanálise, com
seus aliados, fez questão de desarticular pelas operações de subjugação. Trata-se, para
L’anti-Oedipe é uma crítica à psicanálise, por ela reduzir e até mesmo abolir ou
destruir o desejo ao ligá-lo intrinsecamente à representação, à lei, à falta, à privação.
Para Deleuze, ao contrário, o desejo nem se liga à lei nem se define por uma falta
essencial, isto é, em vez de representação, é máquina, processo de produção –
processo de autoprodução do inconsciente – que não só não é interior a um sujeito,
como também não tende para um objeto.
Machado alerta para o descuido de uma conclusão precipitada que acha que o
“O Anti-Édipo” é uma recusa total da psicanálise. Isto não é verdade, pois, em vários
momentos, não só dessa obra, mas em muitas outras, a genialidade dos primórdios da
psicanálise é ressaltada, como também o seu valor como máquina analítica. Mas a
psicanálise, como qualquer outra abordagem, deve ser levada a uma autocrítica, pois,
quando isto não é feito, corre-se o risco de cair em armadilhas que naturalizam,
torna uma grande aliada no estudo da fabricação dos conceitos e na criação de outros.
filosofia reflexiva que sempre esteve em busca de uma causalidade e sua finalidade.
Deleuze e Guattari (1997) acreditavam que entre a filosofia, a arte e a ciência poderia
haver uma relação de ressonância altamente produtiva para o conhecimento, até porque,
62
do conhecimento, que esses dois autores irão criar uma nova concepção de desejo em seu
O desejo é máquina e, como tal, só pode ser pensado a partir de um plano de imanência
impessoais que animam a vida. Mas esses conceitos serão vistos no próximo capítulo.
63
plano fechado de lógicas dadas para a noção de desejo e construir uma outra que tem por
se perguntar, ao invés do que pode um corpo, o que pode um desejo? Eteríamos como
resposta: tudo é afecção, tudo diz respeito ao poder e à potência de ser afetado. Mas isto
não significa que o desejo seja uma energia indiferenciada ou bestial que precisa ser
domada para que uma lei possa ser instaurada estabelecendo, assim, o seu controle. Para
Guattari, esta concepção de desejo é amplamente compartilhada por várias teorias, mas
recorrerão à noção de corpo sem órgãos para explicar o funcionamento das máquinas
*
Sigla utilizada por Guattari para se referir ao Capitalismo Mundial Integrado.
64
O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o
fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações. A psicanálise faz o contrário:
ela traduz tudo em fantasmas, comercializa tudo em fantasmas, preserva o fantasma e
perde o real no mais alto grau, porque perde o CsO. (DELEUZE e GUATTARI,
1999, p. 12)
reacionário da psicanálise. Isso não significa jogar fora os textos freudianos, mas
questionar o que foi feito deles, denunciar seus equívocos, suas armadilhas. Trata-se de
analisar o que foi feito da sexualidade no campo psicanalítico e como ela pode ser
não se deve fazer uma teoria geral das elaborações teóricas da psicanálise, aplicando
suas idéias a tudo que vemos, escutamos ou sentimos, considerando que isto implicaria
da clínica. Ás vezes é necessário “engavetar” certas teorias para que encontremos outras
possibilidades de cartografar. Será que não foi exatamente isto que Freud fez em muitos
multiplicidades e metamorfoses. Freud viu o fora do desejo. Mas tal vislumbre não durou
subjetividade. É com a noção de corpo sem órgãos (CsO) que a idéia de sujeito será
revista, colocando-o na posição de resíduo, de borda: “Ele não está no centro, ocupado
65
pela máquina, mas na borda, sem identidade fixa, sempre descentrado, concluído a partir
as forças que operam pelas máquinas desejantes. Estas não reconhecem figuras
familiares – “são estranhas ao tecido edipiano”. Trata-se de pensar uma nova forma de
produção do inconsciente:
Mas, precisamente, nenhuma operação binária se produz aqui, que rebata a produção
sobre representantes; nenhuma triangulação aparece nesse nível, que refira os objetos
do desejo a pessoas globais, nem o desejo a um sujeito específico. O único sujeito é
o próprio desejo sobre o corpo sem órgãos, enquanto ele maquina objetos parciais e
fluxo, extraindo e cortando uns pelos outros, passando de um corpo a outro, segundo
conexões e apropriações que destroem cada vez a unidade factícia de um ego
possuidor ou proprietário (sexualidade anedipiana). (DELEUZE e GUATTARI,
1976, p. 97-98)
da máquina, de pessoa, pois haveria ligação direta entre máquina e desejo: “Não é o
desejo que está no sujeito, mas a máquina no desejo” (DELEUZE e GUATTARI, 1976,
produzindo e não reproduzindo, não expressivo, sem uma origem, como um campo de
batalha a partir de um CsO. Neste caso, nenhuma questão de sentido é colocada, mas, o
desmoronamento total das figuras e das representações que a noção de CsO faz sua
inconsciente, povoado por relações de intensidades “através das quais o sujeito passa
sobre o corpo sem órgãos, e opera devires, quedas e altas, migrações e deslocamentos”
não como um plano constituído por fluxos indiferenciados, porque é a própria teoria
edipiana que supõe um indiferenciado que ameaça o indivíduo caso este não entre na
imanência não tem nada a ver com uma interioridade; ele é como o De fora de onde vem
Guattari afirma que não há nenhum tipo de relação natural entre as pessoas,
nem muito menos entre bebê e mãe ou pai... Portanto, a criança vive “programações”
[...] não existe um processo de formação genética na criança que desemboque numa
maturação da economia desejante. Uma criança, por menor que seja, vive sua relação
com o mundo e sua relação com os outros de um modo exatamente produtor e
criativo. É a modelização de suas semióticas, através da escola, que a conduz a uma
espécie de processo de indiferenciação. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 216)
Mais adiante neste trabalho, a noção de agenciamento será mais bem elaborada.
Por enquanto, é a noção de CsO que será enfatizada. Repetindo, esta noção não está
relacionada a uma idéia de indiferenciado, pois é sempre produção de algo, sendo esta a
imanência definido como um CsO. O CsO é constituído por linhas, por gradientes de
Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por
intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma
cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um
fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as
distribui num ‘spatium’ ele mesmo intensivo, não extenso. Ele não é espaço e nem
está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau – grau que
corresponde às intensidades produzidas. Ele é a matéria intensa e não formada, não
estratificada, a matriz intensiva, a intensidade = 0, mas nada há de negativo neste
zero, não existem intensidades negativas nem contrárias.
O CsO é matéria e produz o real, mas como grandeza intensiva sem nenhuma
conhecimento que implica um saber filosófico, como leituras de Espinosa que inspiraram
a construção dessa noção e, segundo, pelos próprios paradoxos da noção por se referir a
algo que está sempre em construção11, mesmo que preexista de um certo modo, mas não
iniciado por cada agenciamento. Os paradoxos estão espalhados por todos os lados: “Ele
é não-desejo, mas também desejo”. Ele não é um conceito, mas um conjunto de práticas
das quais a completude passa longe, pois “ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se
1999, p. 9-10):
Diz-se: que é isso – o CsO – mas já se está sobre ele – arrastando-se como um
verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e
nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lu tamos, lutamos e
somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades
inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que
amamos.
O termo CsO aparece em Antonin Artaud como um corpo sem imagem, onde o
uma experiência onde o CsO é a superfície de toda maquinaria do desejo. Rompe-se com
conceito se opõe muito mais à idéia de organismo do que à de órgãos, por estar o
Inevitavelmente, toda triangulação perde seu sentido com esta noção, o que possibilita
11
Consultar a esse respeito: PRADO Jr. A idéia de ‘plano de imanência’. In: E. ALLIEZ (Org.). Gilles Deleuze:
uma vida filosófica. São Paulo: 34, 2000.
69
do mesmo modo como o mundo possui suas geografias, assim também o homem possui
suas geografias internas. É justamente isto que Deleuze e Guattari (1999, p. 11)
propõem:
Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente
nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela
experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de
vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se
decide.
Cada grupo ou cada indivíduo constrói um tipo de CsO e, por isso, o que interessa é
saber como cada um foi produzido, quais são suas sínteses para além de qualquer tipo de
regime identitário. Assim, o CsO é o próprio plano de imanência do desejo e, sobre isso,
muito distante do Cogito cartesiano, onde a imanência não está remetida a um objeto
“Lógica do Sentido” (1974). Nesta obra, Deleuze define transcendental como uma
transcendental que, paradoxalmente, não inclui nem um objeto intencional, nem muito
menos um mundo das idéias puras. O princípio de imanência foi desenvolvido na teoria
que supõe uma independência entre estes. Na imanência, sujeito e objeto não se
processualidade sem fronteiras. A noção de transversalidade 12 cabe muito bem aqui para
exterior a si mesma, nem se direciona para nenhum fim transcendente. Ela é o próprio
todos os aspectos, tem a ver com a produção, não com adequação” (DELEUZE, 1988, p.
200). Contudo, não pode ser pensada nela mesma a não ser a partir de um mapeamento
12
Esta noção reaparecerá no último capítulo como uma das importantes noções para se pensar o plano clínico.
71
O plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado, e o que não pode
ser pensado. Ele seria o não-pensado no pensamento. É a base de todos os planos,
imanente a cada plano pensável que não chega a pensá-lo. É o mais íntimo do
pensamento e, todavia, o fora absoluto. (DELEUZE, 1993, p. 78)
desejo como o próprio limite do corpo vivido – “limite imanente”. Não se trata de um
corpo próprio, pois, como já vimos, não estamos diante de uma interioridade de um eu,
mas, sim, diante de um campo impessoal que não impossibilita a experiência do nome
próprio. Isto significa que o estado vivido é primeiro em relação ao sujeito que o vive
(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 37), mas isto não implica um estado constante de
Prado Jr. (2000, p. 314-315), comentando a obra “O que é a filosofia?”, distingue plano
mesmo tempo em que se afirma sua potência criadora. Isto significa que nesse plano não
se busca uma essência oculta que pela interpretação será revelada. O que interessa é
[...] incisões a serem feitas nos estratos, para que o invisível, já-presente, se torne
visível. Blocos de invisíveis buscam passagem e, ao fazê-lo, produzem rachaduras. O
que há para ser feito é investir nas rachaduras mais do que nas configurações
homogêneas com que uma realidade se apresenta. (BARROS, 1994, p. 258)
define como produção, rompendo com quaisquer instâncias exteriores que se articulem
com a idéia de falta. Tal perspectiva faz do CsO o próprio anti-édipo. Ele é a própria
[...] não há material inconsciente nem interpretação psicanalítica, mas somente usos,
usos analíticos das sínteses do inconsciente, que se deixam definir tão pouco pela
indicação de um significante quanto pela determinação de significados. (DELEUZE
e GUATTARI, 1976, p. 228)
inconsciente sem fazer uso da interpretação. Isso porque, se algo precisa ser interpretado,
é porque ele já tem um sentido a priori que só precisaria passar pelo trabalho
p. 35) afirmam que o inconsciente nada quer dizer: “Aqui nada é representativo, mas
afirmativo, ilimitado, operando pelas sínteses disjuntivas e não exclusivas como é feito
na psicanálise.
São disjunções livres, que não operam por meio de ligações ‘e’, mas, por ‘ou’,
sem que haja exclusão de um dos termos. Poderia se dizer então que o esquizo, no caso
proposto pela psicanálise freudiana, através das operações edipianas, e o uso imanente é
intensidades sem sujeito. O uso transcendente de Édipo fecha todas as saídas e entradas
modo, estamos diante do uso edipiano das disjunções exclusivas e do uso anediapiano
das disjunções inclusivo-ilimitativas, onde tudo se mistura a partir do CsO, sem que,
com isso, os devires se confundam, muito pelo contrário, é daí que eles se instauram e
74
criam uma nova ordem - a ordem intensiva. As raças e as culturas se movem sobre o
delírios estão presentes esses devires que se movem por intensidades, e isto é muito
que se está diante de uma deriva histórica coletiva, nos entrecruzamentos de raças,
alianças, clãs, relações de poder, campos de força, toda uma complexa rede de relações
de cortes-fluxos, de aberturas que não são produzidas a partir dos fundamentos redutores
das figuras edipianas, servindo para a psicanálise, de eixo explicativo das relações
humanas ao longo da história. A libido investe o campo social de modo objetivo, sem
objetos que representam os pais, ou órgãos do corpo, que simbolizam as fantasias típicas
que operam pelo princípio da decalcomania, operação que será investigada no próximo
capítulo. A espada representa o falo, a casinha a vagina, bichos que podem representar
figuras parentais, armários ou caixas que representam o útero materno, e por aí vai...
objeto sonhado atrás de cada objeto real’ ou uma produção mental atrás das produções
simbólico, o real sempre adiado para amanhã” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 64).
GUATTARI, 2002a, p. 68). Para compreender melhor esta questão há que se recorrer à
diferenciação entre conteúdo e expressão. Estes dois conjuntos não são de mesma
É precisamente porque o conteúdo tem sua forma assim como a expressão, que não
se pode jamais atribuir à forma de expressão a simples função de representar, de
descrever ou de atestar um conteúdo correspondente: não há correspondência nem
conformidade. As duas formalizações não são de mesma natureza, e são
independentes, heterogêneas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002a, p. 26)
76
das desterritorializações inerentes aos dois conjuntos. Isto implica afirmar que o sistema
semiótico não pode ser reduzido a simples arte de representar, pois, em cada operação,
ponto de vista dos autores em estudo, é abordada a partir da natureza dos agenciamentos
coletivo de enunciação (de expressão). Estes fazem parte de um eixo horizontal dos
características dos agenciamentos serão definidas mais adiante. O que importa destacar
máquinas, já que não haveria uma relação de causalidade entre os mesmos, nem de
subjetividade.
77
na filosofia cartesiana, define o primeiro como o sujeito que conhece o mundo pela sua
cogito. O segundo seria o sujeito da ação, que experimenta o mundo. No primeiro estaria
a verdade do sujeito, pois o segundo sujeito, o de enunciado, está ligado ao corpo que
experimenta e, para Descartes, esse conhecimento não garante a verdade por ser do
domínio das paixões, passível de enganos. Para Descartes seria duvidosa a afirmação,
por exemplo, “eu caminho”. Isto porque todo enunciado tem que se submeter ao crivo de
correto para Descartes seria afirmar: “penso que caminho”. A filosofia cartesiana
instaura de vez a idéia de um sujeito individualizado que pensa. A verdade estaria, deste
filosofias reflexivas, sobretudo quando se separa mundo interno e mundo externo, sendo
ego traduzem bem esta distinção entre os dois mundos. Na dinâmica inconsciente do
No complexo de Édipo, descrito por Freud, o inconsciente fica refém dos impulsos
esquecimentos, lapsos, nas ações ou nas falas, serão interpretadas como resultado dos
78
em última análise, não pode nem ser pensada como processo, pois sua mecânica é
recognição.
muito diferente. Eles refutam qualquer enunciação centrada na noção de sujeito. Para
eles o que existe são processos de subjetivação que ocorrem nos agenciamentos,
experimentação.
funcionam de duas formas: pelos sistemas extrapessoais, que comportam todos os tipos
entendimento desta dicotomia está presente nas formas filosóficas desde a antigüidade,
sintético, pode-se afirmar que, para os autores aqui estudados, a superfície não pode ser
indivíduo, nem muito menos a superfície relacionada a um uma exterioridade, onde estão
presentes atos e falas indicativas de um conteúdo encoberto, pronto para ser revelado
experimente! Este era o lema desses dois pensadores. A esquizoanálise faz uso da
clínico, sendo este de maior interesse neste trabalho. Portanto, segundo Guattari,
80
freudianas. As experiências de Hans são vistas por um outro ângulo, onde a interpretação
fluxos. Hans faz parte de um campo de afecção produzido por intensidades ativas e
O cavalo do pequeno Hans não é representativo, mas afectivo [...] Esses afetos
circulam e transformam-se no seio do agenciamento: o que ‘pode’ um cavalo. Eles
têm efetivamente um limite ótimo no topo da potência-cavalo, mas também um
limiar péssimo: um cavalo cai na rua! E não pode se reerguer sob a carga
demasiadamente pesada e as chicotadas demasiadamente duras; um cavalo vai
morrer! – espetáculo outrora ordinário (Nietzsche, Dostoievski, Nijinski o
lamentam). Então, o que é o devir-cavalo do pequeno Hans? Também Hans está
tomado num agenciamento, a cama de mamãe, o elemento paterno, a casa, o bar em
frente, o entreposto vizinho, a rua, o direito à rua, a conquista desse direito, o
orgulho, mas também os riscos dessa conquista, a queda, a vergonha [...] Não são
fantasmas ou devaneios subjetivos: não se trata de imitar o cavalo, de se ‘fazer’ de
cavalo, de identificar-se com ele, nem mesmo de experimentar sentimentos de
piedade ou simpatia.
81
pais, agora são agenciamentos produzidos pela experimentação, que ocorre no corpo sem
coletivos, sem implicação com algo da ordem do indeterminado. Nas composições que
Hans faz com o cavalo, com a rua, quarto dos pais, com outras crianças, nada se
despótico – Édipo. O que está em jogo são hecceidades que se formam nas relações de
enunciados sem sujeitos e é por esta razão, que Deleuze e Guatari (2002b, p. 52) se
[...] que quer a todo preço, que, atrás dos indefinidos, haja um definido escondido,
um possessivo, um pessoal: quando a criança diz ‘um ventre’, ‘um cavalo’, ‘como as
pessoas crescem?’, ‘o pai’, ‘ficarei grande como meu papai?’. O psicanalista
pergunta: quem está sendo batido, e por quem?
13
“Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma
substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade” (DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 47). “Uma
hecceidade não tem nem começo nem fim, nem origem nem destinação; está sempre no meio. Não é feita de
pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma”. (p. 50).
82
pai de Hans, ao invés do afeto em si mesmo, pois “não há outras pulsões que não os
plano constituído por velocidades e lentidões, e não no fantasma. “A psicanálise não tem
o sentimento das participações anti-natureza, nem dos agenciamentos que uma criança
pode montar para resolver um problema cujas saídas lhe estão sendo barradas: um plano,
não um fantasma”.
não existe o outro. Na experimentação estão em jogo a produção de novos signos com o
carente de sujeito sem, no entanto, afirmar uma desarticulação sem sentido. “Não o
2.3.1 AS LINHAS
inúmeras produções, não só no domínio das ciências humanas, como também biológicas,
14
A noção de Rizoma é definida em Mil Platôs (2000, p. 32-33). A noção surgiu da botânica, onde é definido
como um caule subterrâneo responsável pela produção de ramos aéreos com características de raízes. Deleuze e
Guattari ampliam a noção articulando-a a uma rede conectiva de vários sentidos.
84
linear constituído por uma correspondência de relações que sustentam uma dimensão
totalizante de sujeito. Como contraponto a este modelo, surge a noção de rizoma como
Em Mil platôs, o comentário sobre o homem dos lobos (“Um só ou vários lobos”)
constitui nosso adeus à psicanálise, e tenta mostrar como as multiplicidades
ultrapassam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a
história, o corpo e a alma. As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem
nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um
sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos
que se produzem e aparecem nas multiplicidades. (DELEUZE e GUATTARI, 2000,
p. 8)
que estabelecem a lógica binária entre sujeito e objeto, bem como com todas as reduções
clássico romântico. Eles afirmam que jamais um livro é feito por um sujeito, mas por
vários. Um livro não é constituído por um objeto nem por um sujeito e, sim, por relações
singularidades. Afirmar que um livro seja uma multiplicidade não significa afirmar que
ordens muito diversas que se espalham em todos os sentidos, sem que haja um centro
seus segmentos não significa a afirmação de uma dimensão indiferenciada. Isto não tem
sentido, pois o rizoma está sempre produzindo algo, ele se realiza pelas inovações
produções que se dão pelo meio, sem um começo ou fim determinados. São conexões
em qualquer ponto da produção. Este tipo de lógica vem é elaborada em diversos campos
campo da linguagem etc. Será que já se está vivendo uma era deleuziana, como
profetizou Foucault? Por que não pensar em um devir deleuziano que se mistura a tantos
outros devires que se espalham, e estes outros devires contagiando Deleuze e Guattari?
Sem começo e sem fim. Até porque nunca se pode afirmar total autenticidade de uma
idéia, pois, segundo os próprios autores, não se está sozinho nem se é o único autor de
alguma coisa; há sempre muitos e é por esta razão que Guattari (GUATTARI e
86
subjetividade, depara-se com uma nova aposta capaz de pensar o indivíduo como uma
das formas possíveis de manifestação da subjetividade que não implica, de modo algum,
multiplicidades que não estão pré-estabelecidas nem muito menos compõem um campo
modo “fácil”, corrente de pensamento, isto não pode resumir, ou definir, um saber sobre
Esta é uma referência também citada por Barros (1994), para dar conta dos
estudados. O texto de Barros é claro quando, a respeito dos processos grupais, tenta
grupo constituído pelo meio, que funciona de modo rizomático e não como totalidade.
Deleuze e Guattari (2000, p. 18) afirmam que é sempre um plano de consistência social
que está em jogo e nele operam forças do tipo rizomático que podem tanto se individuar,
sem que com isso se pense em indivíduo, como podem formar organizações do tipo
molar ou arborescente:
87
Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de
reencontrar nela organizações que reestratificam o conjunto, formações que dão
novamente o poder a um significante, atribuições que reconstituem um sujeito – tudo
o que se quiser, desde as ressurgências edipianas até as concreções fascistas. Os
grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização. Sim,
a grama é também rizoma. O bom e o mau são somente o produto de uma seleção
ativa e temporária a ser recomeçada.
dominante com leis transcendentais. Esta visão se opõe às principais teorias lingüísticas
fazem pelas multiplicidades, com ausência de unidade e de divisão entre sujeito e objeto.
“Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações,
88
grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de
16).
idéia de múltiplo está associada, por oposição, à idéia de unidade. Existiria entre o
múltiplo e o Uno não só uma relação de derivação como também de dualidade. E não é
disto que Deleuze e Guattari tratam quando se referem à idéia de multiplicidade, tendo
noção de multiplicidade aparece também em um texto de Deleuze (1998), onde ele faz
Saber” (1972), Foucault realiza um passo decisivo com relação à teoria prática das
propõe uma nova maneira de estudá-la como multiplicidades que escapam aos modelos
claramente multiplicidade da idéia de múltiplo, para melhor entender esta teoria das
história:
isto porque o que está em funcionamento são relações entre linhas que formam uma
trama e que mudam de natureza à medida que aumentam suas combinações. Este modo
contingentes. Essas conexões se dão pelo meio, não existiria um ponto de início ou de
término, mas proliferação. Para tanto, faz-se necessário um plano sobre o qual as
conexões sejam possíveis. Esse plano é o plano de consistência das multiplicidades, sua
Todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas preenchem, ocupam todas as
suas dimensões: falar-se-á então de um plano de consistência das multiplicidades, se
bem que este ‘plano’ seja de dimensões crescentes segundo o número de conexões
que se estabelecem nele. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata,
linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se
conectarem às outras. O plano de consistência (grade) é o fora de todas as
multiplicidades. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 17)
Trata-se de um plano de exterioridade, e é por essa razão que não se pode supor
qualquer série pontual, estrutural nesse plano. Nele só haveria velocidades variáveis,
querem estabelecer com a noção de rizoma é quando ambos fazem a distinção entre os
jogos de Xadrez e o Go, no último volume de “Mil Platôs”. As regras desses jogos são
bem diferentes quanto à posição, relações e espaços das peças do jogo. No xadrez tudo
que as peças podem mudar suas características e funções de acordo com um espaço
Existe uma situação de guerra nos dois jogos, mas no xadrez essa guerra é
seria o Estado composto por uma interioridade que serve de padrão para todos, e o Go a
máquina de guerra que, na verdade, é pura exterioridade, lugar dos afetos em oposição
rizomático, sem sujeito, apenas linhas que se fazem por velocidades e lentidões,
Deleuze e Guattari (2002, p. 21) refutam a visão evolucionista que definem os bandos
Para esses autores não se trata de formações inferiores, mas diferentes, que adotam
mecanismos complexos de formação social. Os bandos seriam grupos do tipo rizoma que
“procedem por difusão de prestígio, mais do que por referência a centros de poder”. Nos
bandos, a hierarquia está em constante ameaça exatamente por não comportar nenhum
centro de poder fixo, sendo o poder mantido por persuasão e pelo prestígio. É uma
dominação semelhante à do líder ou à da vedete, que corre sempre o risco de ser perdida.
poder, pelos chefes de Estado, ocorrendo assim uma cristalização de aparelhos separados
91
movimentos do próprio corpo social. Esses exemplos servem para mostrar uma outra
subjetividade.
os dualismos não servem mais para explicar os cortes que aparecem nas cadeias dos
fluxos. O rizoma é cortado pelas linhas de fuga que podem formar uma organização, ou
a contingência. Nunca se sabe por quanto tempo pode durar uma organização, ou um
conjunto molar, enfim, quando novas linhas de fuga podem surgir e, com elas, novos
conjuntos molares. Este é o próprio movimento da história universal, que para Deleuze e
Guattari é sempre uma história universal das contingências produzida por movimentos,
significante supõe um tipo de relação que não comporta atribuições ou séries evolutivas
estabelecerem contatos com novos pontos sempre além de seus próprios territórios e em
outras direções. Os princípios descritos por Deleuze e Guattari para explicar o modo de
funcionamento do rizoma estão interligados a tal ponto que não podemos supor um sem
o outro.
oposição entre rizoma e modelo estrutural ou gerativo. Este último funciona a partir de
estados organizados que podem ser decompostos em unidades que estão em relação com
suas dimensões mais imediatas. Para Deleuze e Guattari (2000, p. 21), trata-se sempre de
Do eixo genético ou da estrutura profunda, dizemos que eles são antes de tudo
princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito. Toda lógica da árvore é uma lógica
do decalque e da reprodução. Tanto na Lingüística quanto na Psicanálise, ela tem
como objeto um inconsciente ele mesmo representante, cristalizado em complexos
codificados, repartido sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura
sintagmática. Ela tem como finalidade a descrição de um estado de fato, o
reequilíbrio de correlações inter-subjetivas, ou a exploração de um inconsciente já
dado camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela consiste em
decalcar algo que se dá já feito, a partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um
eixo que suporta. A árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são
como folhas da árvore.
máquina não redutível a uma representação. Por esta razão, ao invés de decalque, o
termo mais apropriado para as produções do inconsciente será mapa. A idéia de mapa
modo rizomático do que uma representação por decalques, repetições que fecham as
93
múltiplas entradas do rizoma. Este foi o grande erro de Freud e de seus cúmplices,
Deleuze e Guattari (2000, p. 22) preferem acreditar que Hans produzia mapas
O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele
contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos,
para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma.
rizoma, pois sua produção é aberta e suas conexões são feitas em qualquer ponto, o que
lhe permite ser reversível e modificado a qualquer momento. O mapa possui várias
entradas e por isso é rizomático, por se fazer pelo meio, podendo ser construído por um
Decalcar é tirar fotos. Foi isso que a psicanálise, segundo os autores, não parou de fazer
com os mapas que encontrou e com os rizomas que a impregnavam por todas as
direções. Melanie Klein também conseguiu desfazer o mapa de seu paciente, o pequeno
interpretações das figuras parentais como bons ou maus objetos. Para Deleuze e Guattari
94
(2000, p. 22), não é por interpretações das pulsões parciais que se podem descrever ou
As pulsões e os objetos parciais não são nem estágios sobre o eixo genético, nem
posições numa estrutura profunda, são opções políticas para problemas, entradas e
saídas, impasses que a criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu
desejo.
culpa, operações que são da própria máquina social repressiva. Arborizar o desejo
implica a morte do mesmo, pois sua condição de expansão se faz pelo rizoma. É isto que
esquize entende-se: “Sistema de cortes que não são apenas interrupções de um processo,
o que importa é analisar não só como Hans faz rizomas com a rua, a família, com o
prédio, mas também analisar como seu rizoma foi impedido com as interpretações
ver como de um rizoma podem surgir estratificações do desejo, enfim, como a produção
raízes nos rizomas, mas, inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz
podem recomeçar a brotar em rizoma. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 24)
modos rizomático e arborescente, o que torna possível que do decalque surja um rizoma
e vice-versa. Não se deve pensar em um novo dualismo entre dois modelos e, sim, em
indagam Deleuze e Guattari (2000, p. 48), na análise que fazem do Homem dos lobos,
territorialidade?”
que estaria em oposição ao modelo fechado da árvore psicanalítica, que faz das
pensamento, a memória são rizomáticos, não funcionam de modo linear, mas a partir de
vizinho a outro, sem necessariamente passar por conjunções hierárquicas que obedecem
Por fim, a noção de rizoma serve para se pensar a subjetividade constituída por
que formam os agenciamentos. O rizoma é formado por dimensões, isto é, por platôs que
e culminante.
O que está em questão no rizoma é uma relação com a sexualidade, mas também
com o animal, com o vegetal, com o mundo, com a política, com o livro, com as
coisas da natureza e do artifício, relação totalmente diferente da relação arborescente:
todo tipo de ‘devires’. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 33)
precisam de maior elaboração, como é o caso das noções de agenciamento, linha de fuga,
subjetividade, devir e outros, tendo em vista que todos estes conceitos, de um modo ou
de outro, estão estreitamente interligados, não sendo possível uma análise nos moldes
lineares.
97
sugerida. Contudo, não o suficiente para que se entendam, de modo mais claro, as
construções de uma nova imagem do pensamento sobre a subjetividade, tal qual proposta
por Deleuze e Guattari. Deleuze investigou, de modo muito próprio, as grandes imagens
[...] a subjetividade, segundo os dois autores, não é dada; ela é objeto de uma
incansável produção que transborda o indivíduo por todos os lados. O que temos são
processos de individuação ou de subjetivação, que se fazem nas conexões entre
fluxos heterogêneos, dos quais o indivíduo e seu contorno seriam apenas uma
resultante. Assim, as figuras da subjetividade são por princípio efêmeras, e sua
formação pressupõe necessariamente agenciamentos coletivos e impessoais.
(ROLNIK, 2000, p. 453)
modo e quais possibilidades de novos agenciamentos elas permitem. É neste sentido que
subjetividade no indivíduo, sobretudo com a que foi produzida pela psicanálise, segundo
como resultado dos agenciamentos molares e/ou moleculares. Guattari, em sua passagem
pelo Brasil, não cansou de questionar as noções de indivíduo como referencial geral dos
processos de subjetivação.
Parece oportuno partir de uma definição ampla da subjetividade, como a que estou
propondo, para, em seguida, considerar como casos particulares os modos de
individuação da subjetividade: momentos em que a subjetividade diz eu, ou super-eu
(ego ou superego), momentos em que a subjetividade se reconhece num corpo ou
numa parte de um corpo, ou num sistema de pertinência corporal coletiva. Mas aí
também estaremos diante de um pluralismo de abordagens do ego e, portanto, a
noção de indivíduo vai continuar a explodir. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 40-
41)
à elas. As noções de agenciamento, linhas, rizomas, corpo sem órgãos são muito
rizomáticas inscritas em um corpo sem órgãos . Tais linhas são de diferentes naturezas
que, segundo Deleuze e Guattari, se dividem em três conjuntos, sendo cada conjunto
constituído por múltiplas espécies de linhas. Em “Mi Platôs” (1999), os autores afirmam
que algumas linhas nos são determinadas de fora, outras surgem por acaso e outras
devem ser inventadas. Estas últimas são as mais interessantes do ponto de vista
linhas, cada vez mais heterogêneas e singulares. Este modo de conceber a subjetividade
perceber e de perseguir os traços de cada conjunto de linhas que, por princípio, nada
É uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso
mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. Rizoma.
Certamente não tem nada a ver com a linguagem, é ao contrário a linguagem que
deve segui-las, é a escrita que deve se alimentar delas entre suas próprias linhas.
Certamente não têm nada a ver com um significante, com uma determinação de um
sujeito pelo significante; é, antes, o significante que surge no nível mais endurecido
de uma dessas linhas, o sujeito que nasce no nível ma is baixo. Certamente não têm
nada a ver com uma estrutura, que sempre se ocupou apenas de pontos e de posições,
de arborescências, e que sempre fechou um sistema, exatamente para impedi-lo de
fugir. (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 77)
linhas de fuga que se traçam num CsO, não submetidas à ordem imaginária ou
CsO é constituído. Neste sentido, nenhuma linha tem primazia sobre a outra, diferente da
psicanálise que faz de Édipo sua “linha dura”, sua “linha costumeira”.
100
A esquizoanálise não tem outro objeto prático: qual é o seu corpo sem órgãos? Quais
são suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha
abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros? Sua própria linha de
fuga? Seu CsO que se confunde com ela? Você racha? Você rachará? Você se
desterritorializa? Qual linha você interrompe, qual você prolonga ou retoma, sem
figuras nem símbolos? (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 77)
segmentaridade não podem ser definidas a partir das determinações sociais e as linhas de
fuga a partir dos processos de um mundo interno, particular, onde cada indivíduo busca
ordem social. Seria a própria relação entre superestrutura e infra-estrutura que, para os
utilizados por Freud, quando este trata dos dualismos pulsionais. Os processos de
Deleuze e Guattari propõem pensar o desejo como parte da infra-estrutura, já que ele
produz real. A revolução social seria, dessa forma, inseparável da revolução do
desejo, freqüentemente aprisionado em modos de subjetivação serializados. Tratar-
se-ia de fazer atravessar (e não articular) o molar e o molecular: lutas de classe e de
grupos (constituídos com produção de novas formas de subjetivação). A questão
primordial estaria em pensar/conectar/fazer funcionar as máquinas do desejo, e as
máquinas sociais em regime de imanência [...]. (BARROS, 1994, p. 374-375)
entre eles. O que existe para este pensador são fenômenos de ruptura que não se
blocos de possível que se substituem enquanto tais: cada nova constelação de universo
cria um novo bloco de possível, sem qualquer caráter de continuidade”. Aqui também é
possibilidades que não são regidas por um princípio de constância. Qualquer situação
vivida, como caminhar, falar, sonhar, alucinar, pensar em algo tem a ver com tipos de
exemplo a produção onírica para mostrar como a prática interpretativa da psicanálise não
102
funciona, a não ser pela lógica de um sistema capitalista e por um tipo de princípio
filosófico.
Os lapsos, os atos falhos, os sintomas, são como pássaros que vêm bater seus bicos
no vidro da janela. Não se trata de ‘interpretá-los’. Trata-se, isto sim, de situar sua
trajetória para ver se eles têm condições de servir de indicadores de novos universos
de referência, os quais poderiam adquirir uma consistência suficiente para provocar
uma virada na situação.
É por esta razão que a esquizoanálise não trabalha com a noção de cura ou de
recuperação. Muitas práticas clínicas e institucionais são caracterizadas por certos tipos
modificar as inadequações, sejam elas quais forem. No âmbito acadêmico, as lutas ainda
são muito intensas, pois não só os discentes (futuros psicólogos), como docentes
neste sentido. Pode ser muito assustadora a sentença deleuzo-guattariana, que afirma não
ocorrem de modo evolutivo, ou seja, uma etapa localizada na fase oral, digamos, por
exemplo, seis meses de vida, é concebida como uma fase imatura quanto às etapas
103
seguintes. Por que não pensar de acordo com a noção de agenciamento, que se refere a
adaptação?
Trata-se de máquinas que operam a partir das diferentes linhas de produção, acionadas
mundo coloca. Para ilustrar tais movimentos, pode-se pensar no curso de um rio, que
pode dobrar-se formando seus remansos. Segundo Cardoso Jr. (2005, p. 189), esses
remansos podem ser entendidos como os processos de subjetivação e o rio como seu
É por esta razão que a noção de linha é útil, pois mostra que não há um
dualismo entre mundo interno e mundo externo e, sim, dobras que se fazem do fora, a
linha que se dobra (fita de Moébius): “[...] nada além do lado de fora, mas exatamente o
que não seja possível abordar com mais cuidado esta temática, é importante mostrar sua
relevância nos estudos da subjetividade que não estejam comprometidos com a filosofia
reflexiva. Neste sentido, Deleuze, que foi leitor de Foucault, contribui com a questão do
particular...
Deste modo, podemos afirmar que, se existe primado, este é o da relação, sem
qualquer posição de hierarquia, onde sujeito e objeto se formam num mesmo tempo de
105
coexistência no real. Aqui também voltamos à noção de desejo, pois este só existe se
segundo segue a ordem dos fluxos e do devir. Assim, de acordo com a esquizoanálise, os
estão relacionados à esfera da ruptura, àquilo que escapa, àquilo que se desterritorializa e
oposição a uma filosofia do idêntico. Esta sempre foi uma característica do pensamento
elaboração de uma verdadeira teoria das multiplicidades. Podemos afirmar que esses
dois pensadores montaram máquinas de fazer pensar, utilizando, para isto, linhas de ação
da diferença.
formam as máquinas desejantes. É neste campo que a sexualidade será pensada – onde
A sexualidade não é mais considerada como uma energia específica que une pessoas
derivadas dos grandes conjuntos, mas como a energia molecular que põe em conexão
moléculas-objetos parciais (libido), que organiza disjunções inclusivas sobre a
molécula gigante do corpo sem órgãos (numen), e distribui estados, segundo
domínios de presença ou zonas de intensidade (voluptas). Pois as máquinas
desejantes são exatamente isso: a microfísica do inconsciente, os elementos do
micro-inconsciente.
Mas, como já foi visto, todo este campo molecular não pode ser pensado
características respectivamente:
Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é
certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder,
instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir
por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não
nos conduz a “parecer”, nem “equivaler”, nem “produzir”. (2002b, p. 19)
Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de
justiça ou de verdade, não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega
ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão “o que você está
se tornando?” é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que
ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de
imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela,
núpcias entre dois reinos. As núpcias são sempre contra natureza. As núpcias são o
contrário de um casal. Já não há máquinas binárias: questão-resposta, masculino-
feminino, homem-animal etc.
Nestas citações estão descritas algumas das características que o devir não
possui. Devir não é imitação. Devir não tem uma origem. Devir não é relação binária de
troca, nem evolução por filiação. Isto não quer dizer que imitações não possam ocorrer,
só que estas não são da ordem do devir, nem o podem explicar. Alguns exemplos são
vespa. A princípio “a orquídea parece formar uma imagem de vespa, mas, na verdade, há
que’ cada um se torna não muda menos do que ‘aquele’ que se torna” (DELEUZE e
como aparece em vários momentos literários, no Hans, em filmes, mas de compor com o
específicas.
Ninguém se torna animal senão molecular. Ninguém se torna cachorro molar latindo,
mas, ao latir, se isso é feito com bastante coração, necessidade e composição, emite-
se um cachorro molecular. O homem não se torna lobo, nem vampiro, como se
mudasse de espécie molar; mas o vampiro, o lobisomem são devires do homem, isto
é vizinhança entre moléculas compostas, relações de movimento e repouso, de
velocidade e lentidão, entre partículas emitidas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002b,
p. 67)
Neste caso, Deleuze e Guattari estão falando do devir animal em ato, de uma
produção do animal molecular, ainda que o animal real seja tomado em sua forma molar.
está em jogo são conjugações moleculares distintas das formas molares que são
caracterizadas pelas relações duais e pela ordem estratificada socialmente. Não se trata
Sim, todos os devires são moleculares; o animal, a flor ou a pedra que nos tornamos
são coletividades moleculares, hecceidades, e não formas, objetos ou sujeitos
molares que conhecemos fora de nós, e que reconhecemos à força de experiência, de
ciência ou de hábito. Ora, se isso é verdade, é preciso dizê -lo das coisas humanas
também: há um devir-mulher, um devir-criança, que não se parecem com a mulher
ou com a criança como entidades molares bem distintas (ainda que a mulher ou a
criança possam ter posições privilegiadas possíveis, mas somente possíveis, em
função de tais devires). (DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 67)
constitutivos tanto dos processos de criação como de destruição. Esses processos estão
109
fluxos heterogêneos. Segundo Barros (1994, p. 274), nesta comp osição ocorre “um
para um outro 15 .
esclareça que a noção de território é muito ampla para os autores, mas freqüentemente se
sujeito, mas que operam por agenciamentos do tipo molar, sistemas de identificações
15
A autora refere -se à noção de quanta para denominar a passagem de um estado intensivo para outro (BARROS,
1994, p. 274).
110
sem os processos de reterritorialização. Estes processos são definidos como uma espécie
desterritorializações.
guerra... Deleuze (2004b, p. 43) afirma que, na história, é mais importante observar os
Em Mille Plateaux, os ‘devires’ têm muito mais importância que a história. Não é
absolutamente a mesma coisa. Tentamos, por exemplo, construir um conceito de
máquina de guerra; ele implica antes de mais nada um certo tipo de espaço, uma
composição muito particular dos homens, dos elementos tecnológicos e afetivos
111
Deleuze afirma que as linhas são produzidas nas rupturas: “Partir, se evadir, é
traçar uma linha”. E, ainda, descreve os diferentes tipos de cultura e suas formas de
cartografias. “Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobrem
mundos através de uma longa fuga quebrada” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 49).
uma dobra, mas uma dobra indevida. Ele é uma linha, mas uma linha de segmentaridade
dura, de ordem molar. “Mas a psicanálise corta e achata todas as conexões, todos os
95). Deleuze critica a psicanálise por sua ignorância quanto aos procedimentos lógicos
A psicanálise quer a qualquer preço que, atrás dos indefinidos haja um definido
oculto, um possessivo, um pessoal. Quando as crianças de Melanie Klein dizem “um
ventre”, “como as pessoas crescem”, Melanie Klein ouve “o ventre de minha
mamãe”, “será que serei grande como meu papai?”. Quando dizem “um Hitler”, “um
Churchill”, Melanie Klein vê nisso o da mãe ruim ou do bom pai. Os militares e os
meteorologistas, mais do que os psicanalistas, têm, ao menos, o sentido do nome
próprio quando dele se servem para designar uma operação estratégica ou um
processo geográfico: operação Tufão. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 96)
Guattari fazem aos procedimentos psicanalíticos que obstruem o desejo em seu processo
Hans, chegar ao ápice das interpretações dos fluxos de desejo, operando decodificações
esquizoanálise se pergunta o que foi feito do desejo de Hans e responde afirmando que
retrato de família. Perde-se, desse modo, a fluidez de sua produção desejante quando
invariantes estruturais.
que todas as suas experiências são sugadas para uma espécie de buraco negro do
113
Complexo de Édipo. Com ele o professor Freud explicou como o desejo pode ser
humano. Pelbart (2004, p. 110) foi buscar na obra “Mil Platôs” (2002b), no capítulo que
O devir é aí pensado como um entre dois: entre dois significa entre dois termos, entre
dois pontos (por exemplo, a abelha e a orquídea, o homem e o lobo, Albertina e a
planta, eu e minha infância). O devir não é a operação pela qual um termo se
transforma num outro, por imitação ou analogia. Conforme o princípio emprestado a
Hume, toda relação é concebida como exterior aos seus termos. Assim, entre um
termo e outro cria-se uma zona de indiscernibilidade, de vizinhança, um no man’s
land para onde são arrastados os dois termos; ou melhor, para onde são emitidas as
partículas que por sua vez entram numa relação determinada de movimento e
repouso.
Deleuze e Guattari (2000, p. 24) tomam outro rumo na leitura que fazem não só
do pequeno Hans, mas também dos delírios do presidente Shcreber, do caso clínico
Estudar o inconsciente, no caso do pequeno Hans, seria mostrar como ele tenta
constituir um rizoma, com a casa da família, mas também com a linha de fuga do
prédio, da rua, etc.; como estas linhas são obstruídas, como o menino é enraizado na
família, fotografado sob o pai, decalcado sobre a cama materna; depois, como a
intervenção do professor Freud assegura u ma tomada de poder do significante como
subjetivação dos afetos; como o menino não pode mais fugir senão sob a forma de
um devir-animal apreendido como vergonhoso e culpado (o devir-cavalo do pequeno
Hans, verdadeira opção política).
todo devir só tem condições de sê-lo a partir das condições existenciais, ou seja, o devir
não pode ser confundido com o caos, mas compreendido em sua relação com ele. O
um universo infantil preso ao mundo adulto. Ariès (1978) mostra bem essa captura da
sexualidade, desde muito cedo, um alvo da atenção das práticas médicas e pedagógicas.
revolucionárias do desejo. Ainda mais por ser concebida por Deleuze e Guattari (2002b,
Guattari não se referem a essas categorias quando utilizam a noção de devir. Guattari
115
(1987, p. 36) usa como exemplos vários tipos de devir e, quanto ao devir-mulher, afirma
categoricamente:
Se insisto neste ponto é porque o devir corpo feminino não deve ser assimilado à
categoria “mulher” tal como ela é considerada no casal, na família, etc. Tal categoria,
aliás, só existe num campo social particular que a define! Não há mulher em si! Não
há pólo materno, nem eterno feminino[...]
mulher com a mulher, ou com a mãe propriamente ditas, como também o devir-criança
com a criança edipiana, e assim por diante, toda vez que se deparou com um devir.
Como insistiu Guattari, precisa-se de um devir outro, para que se torne diferente do que
resistentes ao modo molar de pensar. Assim, poder-se-ia resumir que o devir é a própria
de fuga. É por isso que a idéia de continuidade não pode ser aplicada ao devir, pois só
buscam origens ou estruturas determinantes. É uma outra relação com espaços e com o
É um tempo sem antes nem depois, flutuante, não pulsado, Aion. E se há algum
relógio cabível para uma tal multiplicidade, é um “relógio que daria toda uma
variedade de velocidades”, que as afirmasse todas. Mesmo Proust é valorizado nesse
sentido: mais do que reencontrar o tempo ou recobrar a memória, busca apreender as
múltiplas velocidades coexistentes.
em sua relação com a teoria das multiplicidades (Aion versus Cronos). Por motivo de
delimitação desta pesquisa, essa relação não poderá ser detalhada. Porém, é muito
Já a esquizoanálise, é precisamente para estes “fluxos esquizo” que ela busca abrir
caminhos. Atualidade dos “fluxos esquizo” como construção de novos
“agenciamentos coletivos de enunciação”. Coleta dos traços de singularidade de um
processo de produção de agenciamentos de desejo no interior dos quais se analisa o
que emperra e o que possibilita sua potencialidade transformadora. Análise de uma
individuação dinâmica sem sujeito, de uma constelação funcional de fluxos sociais,
materiais e de signos que são a objetividade do desejo. Análise de um devir.
(GUATTARI, 1987, p. 8)
aqui apresentadas, em sua interface com o plano clínico, considerando, também, os seus
riscos e perigos, ainda mais por não se ter nenhum caminho que possa ser
preestabelecido. Diante de uma linha de fuga, jamais se pode afirmar por onde ela irá,
quais cartografias fará, sendo possível, inclusive, que ela recaia nas figuras edipianas e
em seus conflitos.
117
SINGULARIDADE
para que se conheçam os processos pelos quais se é modelizado e para que se invista em
subjetividade, sendo apenas mais um dos modos pelos quais a subjetividade é concebida.
homogênica determinada previamente. Se assim fosse, ter-se-ia que supor uma tensão
entre coletivo e singular em uma relação de polaridade. Esta idéia estaria em contradição
com a noção de agenciamento, proposta pelos autores, pois esta apresenta uma
processo de mutação.
Há hoje, nas ciências ou em lógica, todo o princípio de uma teoria dos sistemas ditos
abertos, fundados sobre as interações, e que repudiam somente as causalidades
lineares e transformam a noção de tempo. Admiro Maurice Blanchot: sua obra não
são pequenos pedaços ou aforismos, é um sistema aberto, que construía,
antecipadamente, um ‘espaço literário’ capaz de se opor ao que nos acontece hoje. O
que Guattari e eu chamamos de rizoma é precisamente um caso de sistema aberto.
(DELEUZE, 2004b, p. 45)
abertos, compostos por linhas, por devires. O que se quer analisar são as diferentes
decalques, ao invés de mapa. O que importa é seguir seus vetores, pois nada garante
vice-versa. Quanto ao processo de singularização, este nunca pode ser entendido como
de subjetivação, é a ferramenta que faz girar suas engrenagens, sobretudo pela colocação
verdadeira lógica dos devires – lógica das multiplicidades que estão sempre colocando
máquinas desejantes constituídas por múltiplas linhas. Não existe um fluxo único. E esta
criadora. Tal tarefa obteve êxito, sobretudo pelo modo como articulou desejo a um
não mediatizadas pela instituição (relações informais, imediatas etc.). São perspectivas
perspectiva grupalista, trabalhou com esta noção fazendo dela o próprio objeto de
melhor, com a noção de produção de subjetividade, já que não haveria distinção entre os
[...] processos que tanto construirão certos objetos de interesse, quanto conformarão
modos de existir. Quando nos referimos, portanto, a modos de subjetivação, os
estamos tomando em seu sentido intensivo, isto é, enquanto maneira pela qual, a
cada momento da história, prevalecem certas relações de poder-saber que produzem
objetos-sujeitos, necessidades e desejos. (BARROS, 1994, p. 28)
16
A esse respeito Barros (1994, p. 342), seguindo a definição dada por Guattari, explica que o coeficiente de
transversalidade pode ser entendido como “grau de abertura à alteridade do próprio grupo e, portanto, à
emergência da diferença”. Seu aumento é proporcional ao aumento de comunicação, ou de abertura para outros
tipos de grupo.
123
prática clínica se beneficiaria com este procedimento, sendo ela mesma um modo de
singularidades... “Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para baixo, da
esquerda para a direita ou inversamente: tentem e verão que tudo muda” (DELEUZE e
transferência. Neste sentido, a clínica será pensada como sistema aberto, lugar dos
enunciação que a produz ou não. Além disso, não existe um nível indiferenciado de
subjetividade.
aos recursos interpretativos que esta utilizou para elucidar o que seriam os aspectos
estão escondidas, reprimidas em seus desejos inconscientes. Foi toda uma montagem
feita a partir das relações familiares, da conjugalidade, que serviu de base para explicar o
que se encontra.
A análise do inconsciente deveria seguir – com seus riscos e perigos – todas as linhas
do rizoma que constituem um agenciamento, sejam quais forem as matérias de
125
uma interioridade como afirma a psicanálise. Deleuze e Guattari (2002c, p. 18) não
sentimentos, mas afectos. E esses afectos são outros tantos devir-mulher, devir-animal
do guerreiro (o urso, as cadelas). Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas
proceder pela lógica dos agenciamentos, tanto para compreender os que são
determinados previamente pelas condições sociais, como também para favorecer os que
ROLNIK, 2005), a clínica não serve de nada se não for capaz de compreender as
dificuldades pessoais, ou grupais, à luz de seus investimentos sociais, afinal são estes
síntese que ROLNIK (2000, p. 454-455) faz sobre a finalidade da esquizoanálise como
A esquizoanálise não se propõe resolver Édipo, ela não pretende resolvê-lo melhor
do que é feito na psicanálise edipiana. Ela se propõe desedipianizar o inconsciente,
para atingir essas regiões do inconsciente órfão, precisamente ‘além de toda lei’,
onde o problema não pode mais nem mesmo ser colocado. Ao mesmo tempo, nós
também não partilhamos o pessimismo que consiste em crer que essa mudança, essa
liberação só pode ser realizada fora da psicanálise. Acreditamos, ao contrário, na
possibilidade de uma reversão interna, que faz da máquina analítica uma peça
indispensável do aparelho revolucionário. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 109)
agenciamentos, pois acredita em sua capacidade de operar transformações para além das
formas instituídas. Isto não significa ignorá-las, pelo contrário, a esquizoanálise trabalha
conhecendo esses modos de subjetivação instituídos. Para Guattari, a clínica deve operar
As respostas para estas questões têm início com a aposta que se faz na
contribuição da esquizoanálise para o plano clínico, que já se configura com uma certa
identitárias, causalistas, em que a natureza de sua essência está dada, faltando apenas um
modo de investigação mais precisa que rompa com os enigmas e desvende seus mistérios
mais profundos. É desta forma que a noção de sexualidade se torna uma importante
outros sentidos ainda por serem cartografados pelo desejo em sua conjunção com as
(2004a, p. 114), comentando Nietzsche, afirma que não se está diante de pessoas, mas de
forças e quereres: “Sabe-se que, em Nietzsche, a teoria do home m superior é uma crítica
diferença e não em princípios do idêntico. Nesta nova proposta clínica não se busca um
eu, um indivíduo e seus conflitos edipianos. Trata-se de uma noção de clínica não
elos perdidos de um tempo passado estruturado miticamente. A clínica, então, passa a ser
lugar da diferença, do novo, do intempestivo 17. Não haveria história para se remontar,
nem um conflito para se superar, nem muito menos uma memória para se resgatar.
17
Sobre esta noção, Deleuze e Guattari (2002b, p. 95), apoiados em Nietzsche, definiram: “[...] o intempestivo,
outro nome para a hecceidade, o devir, a inocência do devir (isto é, o esquecimento contra a memória, a geografia
contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a arborescência)”.
128
imanência, sem que se perca de vista a força e a especificidade deste exercício. O que a
psicanálise iniciou deve ser perseguido em sua forma estratégica, ampliando seus
no processo analítico pela natureza desse processo, ou seja, ele pode se constituir como
lugar de passagem, de visitar outras paragens, sendo o próprio movimento nômade tão
Não há como investigar a subjetividade na clínica sem que esta não se coloque
linhas que:
[...] vêm ora da arte, ora da política, ora da filosofia, ora de outro domínio qualquer
que esteja em processo de nomadização, transmutando-se em devir, sendo
minoritário, rompendo-se enquanto totalidade, abandonando seus sujeitos-objetos
disciplinados em prol da criação. (PASSOS e BARROS, 2000, p. 78)
tipo de plano, onde ocorrem constantes ressonâncias entre sistemas de toda ordem.
subjetivação molares e moleculares, até porque é impossível qualquer prática sem tais
comprometimentos, ainda que não explícitos. Portanto, este plano clínico não é o plano
das universalidades, nem muito menos das constâncias, mas um plano sempre instável –
operados por um tipo de máquina social. Assim, sua finalidade é romper com o modelo
psíquico em sua autonomia e com os conceitos que visam explicar como os aspectos
do pensamento.
acadêmicos, sobretudo por aqueles que procuram desenvolver uma dimensão crítica da
longo da história e que uma das últimas invenções do homem moderno foi a
últimos tempos. Rolnik (2000, p. 458) afirma que para Deleuze e Guattari só o CsO nos
Mas se escutarmos o corpo sem órgãos, descobriremos que o tempo como realização
do possível é apenas uma de suas figuras; vislumbraremos que o tempo é também
invenção. A partir daí, a questão do desejo não mais se coloca em termos de uma
escolha entre o possível e o impossível, e sim de uma viabilização do trânsito em
mão dupla entre o plano virtual das intensidades e o plano atual das formas. Trata-se
de estar atento às rachaduras das formas vigentes no atual, para escutar o burburinho
das singularidades pré-individuais ou proto-subjetivas que se agitam no virtual corpo
sem órgãos; trata-se igualmente de farejar a pista de agenciamentos que favoreçam a
atualização de tais singularidades como matérias de expressão. E, assim,
infinitamente.
É neste sentido que a esquizoanálise pode ser pensada como resistência aos
sorte. Mas, como operacionalizar, ou melhor, como fazer uso de uma máquina
de 60? Ou de ainda viver “sem lenço e sem documento?” Ou ser identificado como
“bicho-grilo”? Ou talvez, ainda pior, como parte da categoria de profissionais que não
Tal como Cazuza se autodenominou afirmando que, “pra mudar alguma coisa a gente
teve que gritar, se drogar, ir pra rua enfrentar a nossa própria fraqueza”.
131
beligerância dos anos 60, marcados pelos movimentos dos anos contraculturais, quando
a forma de luta se manifestava, sobretudo, por uma posição anti. Vive-se um outro
momento que requer modulações coerentes com este novo plano de consistência.
Ainda que a questão do tempo não possa ser discutida mais amplamente neste
até aqui. Isto porque, mesmo com as modulações operadas, não é de um tempo
importante ressaltar que não se pode nos situar-se num tempo linear da história. Trata-se
Platôs”.
presente e futuro. Tal como a arte, na visão deleuziana, a clínica não obedece ao tempo
organizado, estratificado, pois não haveria “um passado a descobrir, mas a inventar
segundo o dobramento a que estará submetido e que o irá situar num feixe de relações
Se está diante de novos tempos, como se fazer uso das idéias de Deleuze e
dois pensadores. É sempre de uma lógica dos fluxos que um acontecimento é produzido.
lado.
qual a noção de subjetividade é pensada desde o início deste trabalho. Está-se diante de
cartografias, resistir aos confinamentos teóricos que cegam os olhos de quem procura
133
Aí estaria o trabalho que chamamos de analítico, aquele que não nega a molaridade
dos modos de funcionamento, mas põe a funcionar outros modos, inventa fugas,
penetra no plano molecular de constituição de outras formas. O singular emergiria,
assim, do coletivo-multiplicidade, as identidades seriam convidadas ao mergulho na
agitação das diferenças.
nos estratos (organismo, significância, subjetivação), sem que se perca um plano que, ao
mesmo tempo em que existe, também precisa ser construído. Esta é a própria noção de
plano de imanência do corpo sem órgãos, já analisada anteriormente. Isto não significa
que o processo analítico na esquizoanálise não tenha nenhuma direção e, por isso, seja
algumas pessoas. Trata-se de uma outra perspectiva – uma outra lógica – uma lógica
máxima, mas que não reconduz à razão, ou ao exercício de uma pura recognição.
onde as dualidades não são negadas, mas recolocadas em uma outra ordem – ordem
fuga são inventadas e novas cartografias percorridas. Assim, não se buscam curas nem
esta razão que não se podem definir neuroses, perversões e esquizofrenias pelo destino
das pulsões, mas pelo modo e espaço que elas ocupam num determinado campo social.
Tudo depende do modo pelo qual cada um se posiciona diante dos códigos.
CsO, isto é, alguém que não suportou o regime existente, mas não encontrou saída,
improdutiva por querer desfazer os estratos apenas com a droga, por desestratificar muito
rápido. Daí a prudência, a arte de viver, de manter doses de estratificação que permitam
quando ele esteve no Brasil, sobre a idéia de prudência referida em “Mil Platôs”. Esta
pergunta diz respeito aos riscos do trabalho esquizoanalítico, pois poderia levar a
Um trabalho que, mesmo muito criativo, não levaria ninguém a lugar algum. A resposta
É neste sentido que a clínica esquizoanalítica não pode ser pensada como uma
se de um exercício clínico rizomático. Ele é perigoso? Sim, mas não por ser a
18
A noção de viagem referida é aquela típica dos movimentos anticulturais – trip americana, “com todo o pano
de fundo quase místico que essa noção de viagem tomou, digamos, em toda a Nova cultura” (GUATTARI e
ROLNIK, 2005, p. 332).
136
estas são inevitáveis. Elas são sempre produzidas por processos moleculares,
são irreversíveis e não estão restritas a cadeias semióticas, ou seja, está-se falando de
(1999, p. 72) que não estão falando de cadeias de significantes. Referindo-se à noção
Fitzgerald opõe aqui a ruptura aos pseudo-cortes estruturais nas cadeias ditas
significantes. Mas ele igualmente a distingue das ligações ou dos talos mais
maleáveis, mais subterrâneos, do tipo ‘viagem’ ou mesmo transportes moleculares
[...] será possível que as viagens sejam sempre um retorno à segmentaridade dura? É
sempre papai e mamãe que se reencontram na viagem e, como Melville, até mesmo
nos mares do Sul? Músculos endurecidos? Será preciso acreditar que a própria
segmentaridade flexível torna a formar no microscópio, e miniaturizadas, as grandes
figuras das quais pretendiam escapar? Sobre todas as viagens, pesa a frase
inesquecível de Beckett: “Que eu saiba, não viajamos pelo prazer de viajar; somos
idiotas, mas não a esse ponto”.
em qualquer lugar ou com qualquer idéia ou ação, mas agenciamentos maquínicos, que
estão sempre em conexões com novas possibilidades de sentido. Então, a prudência diz
respeito a uma certa distinção entre o que pode ser construtivo e liberador de
diferenciar os desejos fascistas daqueles que levam aos processos de lutas singulares.
19
“Um platô é um pedaço de imanência. Cada CsO é feito de platôs. Cada CsO é ele mesmo um platô, que
comunica com os outros platôs sobre o plano de consistência. É um componente de passagem” (DELEUZE e
GUATTARI, 1999, p. 20).
137
desejo, ela o faz não para desmentir essas produções, mas para recolocá-las num modo
agenciamentos.
As idéias dos autores aqui mencionados servem para se pensar o plano clínico
Para Deleuze e Guattari, toda vez que se depara com modos endurecidos,
desejo). A questão é se este programa traça uma armadilha para o sujeito, da qual não
implosão das paixões de morte. Os programas são postos em ação a partir de um corpo
sem órgãos. Poder-se-ia perguntar: o que passa nos corpos esquizos, masoquistas,
drogados, paranóicos etc.? O CsO não seria pleno de alegria ou de êxtase? A princípio,
O que passa nos corpos são fluxos de toda ordem que podem resultar em
circulem ondas de dor: “o masoquista fez para si um CsO em tais condições que este,
desde então, só pode ser povoado por intensidades de dor, ondas doloríferas”
mas que, segundo esses autores, não podem ser vistos como referentes a essências, ou
que passa e o que bloqueia?” (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 13). Tudo está em
Os drogados não param de recair naquilo de que eles queriam fugir: uma
segmentaridade mais dura à força de ser marginal, uma territorialização mais
artificial ainda porque ela se faz sobre substâncias químicas, formas alucinatórias e
subjetivações fantasmáticas. Os drogados podem ser considerados como precursores
ou experimentadores que retraçam incansavelmente um novo caminho de vida; mas
mesmo sua prudência não tem as condições de prudência. Então, ou eles recaem na
coorte de falsos heróis que seguem o caminho conformista de uma pequena morte e
um longo cansaço. Ou então, pior ainda, eles só terão servido para lançar uma
tentativa que só pode ser retomada e aproveitada por aqueles que não se drogam ou
que não se drogam mais, que retificam secundariamente o plano sempre abortado da
droga, e descobrem pela droga o que falta à droga para construir um plano de
consistência [...] Não é a droga que assegura a imanência, é a imanência da droga
que permite ficar sem ela [...] Os drogados não escolheram a boa molécula ou a boa
linha.
139
pensá-las sem o referencial do EU? O que nelas existem de singularidade e o que pode
possível neste trabalho. Finalizá-lo com a questão da clínica em sua interface com as
específica, com todos os seus contornos e efeitos possíveis, em que noções como as de
Por enquanto, o que compete a este trabalho já foi de algum modo traçado,
mesmo que com todas as suas limitações, restando, então, uma breve finalização sobre
A esquizoanálise não esconde, portanto, que é uma psicanálise política e social, uma
análise militante: não porque generalize Édipo na cultura, sob as condições ridículas
que tiveram curso até agora. Mas, ao contrário, porque se propõe mostrar a existência
de um investimento libidinal inconsciente da produção social histórica, distinto dos
investimentos conscientes que coexistem com ele. (DELEUZE e GUATTARI, 1976,
p. 130)
intelectual. É uma questão de “ar do tempo”, que se faz sentir em vários domínios do
intuito de romper com as prisões provocadas por Édipo é que se pode fazer da
desintoxicação de Édipo e isso só pode ser feito buscando linhas de fuga que desfaçam
analítica, mas voltá-la para os fluxos que escapam à leitura edipiana do desejo, buscando
novas alianças com outras máquinas. Montar uma verdadeira máquina de guerra20 que
noção de máquina de guerra: sua produção pelos agenciamentos sociais que estão em
20
Este conceito não está relacionado à guerra propriamente dita, nem a uma metáfora, como já foi definido no
conceito de máquina descrito no primeiro capítulo. É do desejo que os autores se referem, em sua constituição
pelas linhas de fuga que levam as desterritorializações ao seu ponto máximo. Por máquina de guerra consultar
Mil Platôs, 2002c (Tratado de nomadologia: a máquina de guerra).
141
total oposição à idéia de conflitos sob a forma de interioridade. Assim, trata-se de uma
de fora, “seria antes como a multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do
Portanto, a máquina de guerra traz um outro plano de batalha muito diferente das
batalhas binárias do plano molar. Aqui, os elementos, como no jogo do go, são
está em jogo são as posições dos agenciamentos numa determinada situação. Assim,
tudo irá depender da situação e não das propriedades intrínsecas dos elementos. São
novos ares, novos planos para além do campo de guerra viciado e sufocado das
Dá provas, sobretudo, de outras relações com as mulheres, com os animais, pois vive
cada coisa em relações de devir, em vez de operar repartições binárias entre
“estados”: todo um devir-animal do guerreiro, todo um devir-mulher, que ultrapassa
tanto as dualidades de termos como as correspondências de relações. Sob todos os
aspectos, a máquina de guerra é de uma outra espécie, de uma outra natureza, de uma
outra origem que o aparelho do Estado.
podem ser desafiados e vencidos. Há que se perguntar se não se está vivendo um período
pela mídia, pela obrigatoriedade de ser bem sucedido em todos os sentidos da vida, ou
exploração pela dominação da subjetividade, é necessário que ela, com sua principal
dos autores aqui investigadas servem como ferramentas de forte potência, se propagadas
enquanto tais, antes mesmo de serem capturadas na máquina alienante das estratégias
modelo estruturante dos procedimentos clínicos, como um novo idealismo a ser seguido.
Neste sentido, pode-se afirmar que a esquizoanálise não tem um território definido, já
que sua proposta é exatamente levar as linhas para mais longe, pois “somente quando
um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua conjugação com outros fluxos, que
desterritorializam por sua vez e vice e versa” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 63). Na
Nas obras que foram mais investigadas neste trabalho, “O Anti-Édipo” e “Mil
21
Sobre o dualismo em Deleuze, consultar Machado (1990, p. 9-10). Ressalta-se que este dualismo não
compromete a crítica deleuziana do pensamento dualista.
143
guerra. No entanto, tais formas de pensamento estão sempre se entrecruzando, por isso
não se pode afirmar, segundo Guattari (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 284), que haja
os molares. O que está em jogo, então? Segundo os autores, é procurar sempre traçar
novas linhas, pois, mesmo que a ordem molar queira se eternizar por inúmeros recursos
de dominação, não adianta: o molecular, o que é do devir e das forças das linhas de fuga
explode, intempestivamente, virando toda uma ordem. Este é o movimento contínuo das
não está presa às memórias nem muito menos há intenção de buscá-las ou recuperá-las:
há uma nova redistribuição de vetores e de condições, o que faz com que novas
aberturas apareçam. Neste caso, “o inconsciente já não lida com pessoas e objetos, mas
144
uma identificação com o pai traduz o desconhecimento que Freud tinha do devir-animal
pois está investida diretamente na economia social: “A libido não tem metamorfoses,
por serem da ordem do devir e por indicarem trajetos que podem afetar ou ser afetados
bloqueá-los, sem que com isso ocorra uma relação de pessoalidade, são afetações.
terreno das micropolíticas, onde as mudanças só podem ocorrer por meio dos processos
sempre das multiplicidades que novos agenciamentos são produzidos. A diferença com a
analítico.
sentido que o devir-minoritário diz respeito às mulheres, às crianças, aos animais, aos
O processo analítico, então, não faz interpretações das identidades molares, nem muito
que atravessam as fases psicogenéticas e que são suscetíveis de operar através dos mais
381).
de fuga. Seria como um “ato-perigoso”, tal qual alertou Foucault em “As palavras e as
mas propõe a crítica de alguns conceitos, como foi apresentada nesse trabalho, por se
e por limitarem a capacidade criativa dos agenciamentos. Birman (2000, p. 472) cita as
encontrar novos ares na exterioridade, e não na interioridade, onde o ar, por não circular,
A esquizoanálise ou a pragmática não tem outro sentido: faça rizoma, mas você não
sabe com o que você pode fazer rizoma, que haste subterrânea irá fazer efetivamente
rizoma, ou fazer devir, fazer população no teu deserto. Experimente. (DELEUZE e
GUATTARI, 2002b, p. 35)
147
Guattari, quando esteve em visita ao Brasil, falou de uma nova suavidade que
deveria compor o plano analítico. Para ele, o psicanalista não tem que romper com sua
prática, mas com a neutralidade, com os corporativismos, com o distanciamento que faz
[...] que é o da invenção de uma outra relação – com o corpo, por exemplo –, relação
esta presente nos devires-animais. Sair de todos esses modos de subjetivação do
corpo nu, do território conjugal, da vontade de poder sobre o corpo do outro, da
posse de uma faixa etária por outra, etc. Portanto, para mim, a nova suavidade é o
fato de que, efetivamente, um devir-mulher, um devir-planta, um devir-animal, um
devir-cosmos podem inserir-se nos rizomas de modos de semiotização, sem por isso
comprometer o desenvolvimento de uma sociedade, o desenvolvimento das forças
produtivas e coisas assim. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 341).
emergir longe dos apelos falocráticos, das interpretações redutoras, das semióticas
(FOUCAULT, 2005, p. 100). Para tanto, é necessária alta dose de coragem, não para
uma aventura qualquer, mas para romper com as simbioses, com os familialismos, com
3 CONCLUSÃO
[...] e mais imp ortante do que o pensamento é “aquilo que faz pensar”. (DELEUZE,
1987, p. 30)
guerra não só no sentido conceitual como prático; na verdade, esta é uma dicotomia com
a qual os autores não trabalham. Todo conceito tem seu sentido prático, ele afeta, ele é
capaz de traçar novos rumos. Portanto este trabalho não se ocupou de apresentar tão
edipianas, em total oposição à lógica das multiplicidades, dos rizomas, como também a
afirmação de um corpo sem órgãos como o plano das intensidades puras, é de vida que
os autores falam. Da vida que explode em múltiplas direções: biológica, material, social
[...] cósmica [...]. Não se trata de ideologias, ou idéias puras, mas de problemas que a
vida coloca em seus diferentes planos. Assim, pensar com Deleuze e Guattari é procurar
compreender a força do pensamento naquilo que ele pode diferir, como também naquilo
que o faz repetir. Todo pensamento está agenciado a um certo plano histórico, filosófico,
noção edipiana é que, com ele, se abrem infinitas linhas de pensamento; percebem-se
surge a seguinte questão: quer-se manter a ordem molar nos procedimentos clínicos
clínica. Sobre o binômio teoria e prática, é importante evidenciar que tanto uma quanto a
outra se produzem em suas interfaces. Pensar a clínica, forçar passagens pelo processo
analítico são forças que coexistem o tempo todo. Este é o desafio da esquizoanálise:
REFERÊNCIAS
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vida filosófica. São Paulo: 34, 2000, p. 307-322.
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filosófica. São Paulo: 34, 2000.