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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção psicanalítica de sexualidade


como modo de constituição da subjetividade

Sandra Lourenço Corrêa

Dissertação apresentada à Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
da USP, como parte das exigências para a
obtenção do título de Mestre em Ciências,
Área: Psicologia.

RIBEIRÃO PRETO – SP

2006
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção psicanalítica de sexualidade


como modo de constituição da subjetividade

Sandra Lourenço Corrêa

Prof. Dr. Reinaldo Furlan

Dissertação apresentada à Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
da USP, como parte das exigências para a
obtenção do título de Mestre em Ciências,
Área: Psicologia.

RIBEIRÃO PRETO - SP

2006
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação na Publicação
Serviço de Documentação XXXXXXX
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

Corrêa, Sandra Lourenço


Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção
psicanalítica de sexualidade como modo de constituição
da subjetividade. Ribeirão Preto, 2006.
155 p.: il.; 30 cm

Dissertação, apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências


e Letras de Ribeirão Preto / USP – Dep. de Psicologia e
Educação.
Orientador: Dr. Furlan, Reinaldo

1. Psicanálise. 2. Sexualidade. 3. Subjetividade.


4. Esquizoanálise.
FOLHA DE APROVAÇÃO

Sandra Lourenço Corrêa


Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção psicanalítica de sexualidade como modo de
constituição da subjetividade

Dissertação apresentada à Faculdade


de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo para obtenção do título de
Mestre.
Área de Concentração: Psicologia

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. ______________________________________________________________________


Instituição:_______________________________Assinatura:____________________________

Prof. Dr. ______________________________________________________________________


Instituição:_______________________________Assinatura:____________________________

Prof. Dr. ______________________________________________________________________


Instituição:_______________________________Assinatura:_____________________________
DEDICATÓRIA

A todos que fazem parte das composições que pude produzir nos momentos de minha
existência e com as quais pude contar neste trabalho.
AGRADECIMENTOS

Aos meus filhos Vitor e Júlia, por serem fonte de inspiração para qualquer situação vivida.

Ao meu companheiro Clau, que sempre me incentiva na busca e realização de novos projetos.

Ao orientador Reinaldo Furlan, por ter possibilitado a continuidade dos meus estudos.

À Annie, pelo jeito manso e carinhoso que demonstrou em todas as vezes que precisei.

Aos professores Regina Benevides e Eduardo Passos, por fazerem do território acadêmico
uma máquina de pensamento e de luta, pela qual fui afetada.

A minha mãe querida, que ficaria “orgulhosa” por este trabalho...

Ao meu irmão Márcio, que encontrou um modo de me apoiar me presenteando com um


notebook.

A minha irmã Simone, pelos incentivos sempre tão bem vindos em qualquer momento.

Ao meu irmão Neuber, que sempre buscou modos de ampliar as possibilidades positivas da
vida.

Ao meu irmão Leonardo, que está sempre comigo em pensamento.

A minha sobrinha Gabriela, que ao nascer neste momento de produção, provcou em mim mais
interesse pelo tema da pesquisa.

Às amigas Mariana Garbim e Ana Luiza, pela amizade nos momentos de produção.

Aos alunos da FEA (Araçatuba) e FEF (Fernandópolis), pelo estímulo à investigação


constante.

A minha amiga Dodô, que me deu muita força para começar este trabalho.

À Renata Maia, pelas inesquecíveis viagens a Ribeirão Preto.

À Julinha Moita, que me faz acreditar na leitura e na possibilidade de usá-las.

À Vilminha, por fazer com que eu me sentisse mais em família.


RESUMO

CORRÊA, S.L. Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção psicanalítica de


sexualidade como modo de constituição da subjetividade . 2006. 155 f. Dissertação
(Mestrado) – Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo,
Ribeirão Perto, SP, 2006.

Este trabalho busca investigar os comprometimentos do conceito freudiano de sexualidade a


partir das críticas de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Segundo estes autores, o grande equívoco
de Freud foi ter fechado a sexualidade em uma instância interior rebatendo todo investimento
libidinal sobre uma determinação familiar típica da sociedade burguesa. Para que não se perca
as múltiplas possibilidades de análise dos processos inconscientes e sua relevância para os
estudos da subjetividade, faz-se necessário investigar o comprometimento desta noção com o
contexto capitalista, onde os processos de subjetivação estão submetidos a determinado
modelo de indivíduo. Estes processos não só estavam presentes nos tempos de Freud, como,
ainda hoje prevalecem em muitas noções de sujeito. Deleuze e Guattari não negam as
produções inconscientes, mas as definem pelo modo de funcionamento maquínico em
oposição a qualquer modelo representacional. O desejo será pensado em sua dimensão social,
e não apenas familiar. Trata-se de investigar as conexões possíveis dos investimentos
libidinais da produção desejante, sem que nenhuma triangulação apareça como
predeterminante. Os autores recusam qualquer lógica binária, dualística, identitária da noção
de subjetividade, compreendendo que esses aspectos correspondem a um domínio histórico-
filosófico específico. Assim, utilizam conceitos que tomam a subjetividade em sua
multiplicidade. Para tanto, serão analisados os conceitos de Corpo sem Órgãos e plano de
imanência, rizoma em oposição ao modelo arborescente, inconsciente maquínico versus
inconsciente figurativo, cartografia em oposição aos recursos interpretativos da psicanálise. A
subjetividade será estudada como processo constituído por múltiplas linhas de possibilidades
de existência típicas do devir, que pela experimentação pode produzir processos de
singularização. A idéia de agenciamento auxiliará nas desmontagens conceituais utilizadas
pela psicanálise. Além das críticas, este projeto busca encontrar em Deleuze e Guattari novas
maneiras de se pensar a sexualidade em sua dimensão clínica. O processo analítico será
afirmado em sua potência revolucionária e criadora, pois a esquizoanálise, ao proceder com a
análise do inconsciente, nada espera encontrar em termos de prefiguração do desejo.

Palavras-chave: Psicanálise. Sexualidade. Subjetividade. Esquizoanálise.


ABSTRACT

CORRÊA, S.L. Analysis of Deleuze and Guattari’s critical reviews concerning to the
psychoanalysis of sexuality as a model of constitution of subjectivity. 2006, 155.
Dissertation (Master) – Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São
Paulo, Ribeirão Preto, SP, 2006.

This work aims at investigating the compromise of Freud’s concept of sexuality from Gilles
Deleuze and Felix Guattari’s critical reviews. According to these authors Freud equivocated
the most when he reduced sexuality to an interior instance, refuting all the libidinal investment
in the familiar determination of the society of his time. In order not to lose all the multiple
analysis of the unconscious processes and its relevancies to the study of subjectivity, it is
necessary to investigate the compromise of this notion with the capitalist context when the
processes of subjectivity are under the influence of the individual models. These processes
were present not only in Freud’s time, but also in the present time, in many notions concerning
to subjectivity. Deleuze and Guattari do not deny the influence of the unconscious outcome,
but they define the way in which the machinic function works. Therefore, desire will be
analyzed in a social context. It is a matter of investigating the possible investment of the libido
without any predetermined function. Both authors refuse any binary, dualistic logic of notion
of subjectivity since these aspects correspond to a specific historic and philosophic dominium.
Thus, they make use of concepts that approach subjectivity in its multiple facets. It is a
machinic unconscious opposing to the figurative unconscious of Psychoanalysis. The notion of
body without organs is studied which remits to the idea of experimentation versus the
psychoanalytic concept of interpretation breaking with the identity perspectives. The concept
of rhizome helps to understand the performance of the wishing machines going beyond the
binary logic. Besides the critical reviews this project aims at finding in Deleuze and Guattari
new ways of thinking about sexuality in its clinical dimension. The analytical process will be
reassured in its revolutionary and creative power, since Schizoanalysis does not intent to find
anything in terms of predetermined aims of desire when analyzing the unconscious.

Key words: Psychoanalysis, Sexuality, Subjectivity, Schizoanalysis.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 09

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 A LIBIDO ENQUANTO INVESTIMENTO SOCIAL


2.1.1 LIBIDO E FAMILIALISMO.............................................................................................. 21
2.1.2 LIBIDO, RECALCAMENTO E REPRESSÃO SOCIAL...................................................... 31
2.1.3 IMPLICAÇÕES CAPITALÍSTICAS NA PRODUÇÃO DE ÉDIPO...................................... 42

2.2 O INCONSCIENTE MAQUÍNICO E A PRODUÇÃO DESEJANTE


2.2.1 REPÚDIO À NOÇÃO DE FALTA E AFIRMAÇÃO DA PRODUÇÃO.................................. 54
2.2.2 CORPO SEM ÓRGÃOS E O PRINCÍPIO DE IMANÊNCIA DO DESEJO........................... 64
2.2.3 DA INTERPRETAÇÃO À EXPERIMENTAÇÃO............................................................... 72

2.3 A NOÇÃO DE RIZOMA E AS MÁQUINAS DESEJANTES


2.3.1 AS LINHAS ..................................................................................................................... 83
2.3.2 SUBJETIVIDADE E AGENCIAMENTO ......... ................................................................ 97
2.3.3 OS FLUXOS DE SEXUALIDADE: OS DEVIRES.............................................................105

2.4 NOVAS POSSIBILIDADES DO DESEJO: SUBJETIVIDADE E SINGULARIDADE


2.4.1 ESQUIZOANÁLISE E SUBJETIVIDADE ........................................................................118
2.4.2 ESQUIZOANÁLISE E CLÍNICA .....................................................................................126
2.4.3 ESQUIZOANÁLISE E UM SUSPIRO ...............................................................................140

3. CONCLUSÃO.....................................................................................................................148

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 150
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1 INTRODUÇÃO

Porque se chamavam homens também se


chamavam sonhos e sonhos não envelhecem.
Lô Borges

A sexualidade encontra nos estudos da subjetividade um campo privilegiado

por ser um modo variado de produção da existência humana. Um desses modos é

descrito pela psicanálise a partir da visão edipiana do desenvolvimento sexual. É

justamente, de acordo com as críticas apresentadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari,

quanto às condições impostas por Édipo à constituição da subjetividade, que esse

trabalho buscará seu desenvolvimento central. Trata-se de uma investigação das obras

desses autores, onde aparece a problematização do determinismo edipiano. As obras que

serão investigadas são, inicialmente, “O Anti-Édipo” (1976) e “Mil Platôs” (1999-

2002), e outras que sustentarão as críticas e o desenvolvimento de novas abordagens

quanto à noção de sexualidade.

O problema maior é quanto à tese freudiana, segundo a qual Édipo é tomado

como referencial que reparte o desenvolvimento da sexualidade em fases pré-edipiana e

edipiana, dicotomia operada por Édipo como o grande divisor de águas. A psicanálise

não nega as variações “anedipianas” ou “para-edipianas” manifestadas, por exemplo, nas

esquizofrenias. Mas o problema que se coloca é que ela faz de Édipo um eixo de

referência tanto para as fases pré-edipianas, como também para as tais variações. As

psicoses são interpretadas pela psicanálise a partir da noção de ‘forclusão’, pensada

como uma lacuna estrutural em relação ao eixo estruturante de Édipo. Isto implica a
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edipianização até mesmo do esquizofrênico. Em “O Anti-Édipo” e em “Mil Platôs”,

Deleuze e Guattari questionam a tirania de Édipo na constituição da subjetividade. Trata-

se de uma ruptura com a edipianização imposta pela psicanálise, induzindo à idéia de

que toda a produção da sexualidade humana só se faz enquanto estruturada desse modo.

É isso que querem dizer esses autores quando afirmam que Freud não gostava dos

esquizofrênicos por não se deixarem edipianizar.

Que princípio é esse que reduz a sexualidade ao interjogo papai-mamãe

reproduzido pelas relações familiares? Segundo Deleuze e Guattari, esse é um processo

que esmaga as principais características dos investimentos libidinais: sua polivocidade e

sua multiplicidade. Édipo toma o lugar do representante do desejo, em que toda a

produção desejante cai na armadilha que captura seus investimentos com a pretensão de

interpretá-los a partir da óptica edipiana: “Édipo é a imagem falsificada à qual o desejo

se deixa prender (É isso que você queria! os fluxos decodificados! era o incesto!).

Começa então uma longa história, a da edipianização” (DELEUZE e GUATTARI, 1976,

p. 210).

Na leitura das obras aqui propostas, uma nova perspectiva pode ser elaborada,

outras possibilidades, novos territórios pelos quais a sexualidade pode se constituir. A

princípio será analisada a concepção de libido como investimento social, oposta à

concepção psicanalítica que a torna presa ao familialismo. O grande equívoco de Freud

foi ter fechado a sexualidade em uma instância interior, tendo Édipo como princípio

organizador. É “o pequeno segredo sujo, em vez do mar alto entrevisto. O rebatimento

familialista em vez da deriva do desejo” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 344). A


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libido como investimento social é a própria relação com a exterioridade ao invés de uma

interioridade (fantasma) forjada por Édipo.

Quando Deleuze e Guattari criticam a psicanálise por rebater todo o

investimento libidinal sobre uma determinação familiar, isso não significa que o pai, a

mãe, as experiências infantis vividas na situação familiar não façam parte da cadeia

“significante”, porém essas correlações são furtivas entre os agentes coletivos. A libido

não pode ser nunca separada de um campo social e dos fenômenos de grupo, sendo

sempre maquinada sobre um socius. O desejo está sempre investido num campo social,

de modo que não há operações abstratas autônomas individuais que obedeçam ao destino

que se repete ao longo da evolução humana por meio de articulações simbólicas movidas

pelo incesto e sua proibição. Trata-se de investigar as conexões possíveis dos

investimentos libidinais da produção desejante, em que nenhuma triangulação aparece.

Os investimentos libidinais são antes de tudo conexões, fluxos e intensidades que não

obedecem a uma regra binária entre objeto e sujeito.

Deleuze não nega que haja sexualidade edipiana, mas a distingue em um tipo

de operação da ordem dos objetos globais e egos específicos. Esta operação provoca a

ilusão de que toda a produção desejante está submetida a leis transcendentes e, mesmo

que iniciada por etapas pré-edipianas, se orientará para uma organização futura regida

por Édipo. É uma espécie de antecipação operada pelo eixo edipiano.

Para continuar a análise crítica da noção de sexualidade em Freud,

investigaremos a relação entre capitalismo e operações edipianas. O modelo psicanalítico

depende de um modelo econômico. A formação capitalista produz pessoas privadas que


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sustentam a noção de sexualidade a partir das imagens formadas por papai-mamãe-ego,

como afirmam Deleuze e Guattari (1976, p. 338):

Então é seu pai, então é sua mãe, então é você: a conjunção familiar resulta das
conjunções capitalistas, enquanto se aplicam a pessoas privatizadas. Papai-mamãe-
ego, tem-se certeza de encontrá -los em toda parte, porque se aplicou a tudo. O reino
das imagens, tal é a nova maneira pela qual o capitalismo utiliza as esquizas e desvia
os fluxos: imagens compósitas, imagens rebatidas sobre imagens, de tal maneira que,
ao fim da operação, o pequeno ego de cada um, referido a seu pai-mãe, seja
realmente o centro do mundo.

As operações próprias da formação capitalista, que correspondem aos

processos de re-territorialização (decodificações do desejo), fazem de Édipo seu modelo

central de funcionamento. As máquinas desejantes, segundo expressão específica de

Deleuze e Guattari, sofrem processos de decodificação voltados para os investimentos do

desejo restritos às imagens familiares. São processos que impõem aos fluxos do desejo

toda uma série de re-territorializações que serão tomadas como expressão da

subjetividade no seu sentido autônomo. É dessa forma que as produções teóricas da

psicanálise não podem ser analisadas separadamente das operações realizadas pela

máquina capitalista. Psicanálise e capitalismo fazem parte de um mesmo processo de

subjetivação. Para Deleuze e Guattari (1976, p. 463), Édipo parece inocente e exclusivo

das interpretações psicanalíticas.

Ora, Édipo tem o ar de uma coisa relativamente inocente, de uma determinação


privada que se trata no consultório do analista. Mas perguntamos justamente que tipo
de investimento social inconsciente Édipo supõe – já que não é a psicanálise que
inventa Édipo; ela se contenta em vivê-lo, desenvolvê-lo, confirmá-lo, em dar-lhe
uma forma mercantil. Enquanto o investimento paranóico sujeita a produção
desejante, interessa-lhe muito que o limite dessa produção seja deslocado, que passe
no interior do socius, como um limite entre dois conjuntos molares, o conjunto social
de partida e o subconjunto familiar de chegada que supostamente lhe corresponde, de
tal maneira que o desejo seja preso na armadilha de um recalcamento familiar que
vem duplicar a repressão social.
13

A noção de inconsciente será investigada, complementando a crítica de

Deleuze e Guattari. Na psicanálise, o inconsciente é reduzido a uma espécie de teatro

íntimo, que reproduz a tragédia e o mito grego. É um inconsciente da ordem da

representação e da expressão, sendo a produção desejante capturada na representação. O

desejo fica preso, alienado às representações pré-determinadas que, supostamente, são

tomadas como autônomas. Deleuze e Guattari questionam a noção de inconsciente como

cena, reduzido a um significante despótico (Édipo) e que só sabe expressar conteúdos

relacionados aos temas familiares, papai-mamãe, vagina, pênis, castração... Para tanto,

apresentarão outros modos de se pensar o inconsciente que escapam às unidades molares

de Freud. Em “Mil Platôs” (2000), Deleuze e Guattari referem-se à maior arte do

inconsciente: a arte das multiplicidades moleculares, a-significantes, que se produzem

por rizomas. Ao utilizar noções como rizoma, ou a idéia de que o inconsciente se

autoproduziria, o pensamento freudiano de inconsciente, cristalizado em complexos

codificados, pode ser combatido. Muitas das interpretações psicanalíticas das formações

do inconsciente serão consideradas por Deleuze e Guattari como formações que não

estão dadas a priori, pois as produções do inconsciente funcionam como usina, como

maquinação do desejo. São princípios que fazem a crítica do inconsciente figurativo e

simbólico da psicanálise. O desejo é concebido como produção de real que remete a uma

produção social que é extrínseca e não intrínseca como quer a psicanálise, quando

concebe esse desejo como falta que produz um imaginário que duplica a realidade

(idealismo). Conceber o desejo como falta é afirmar que este se dá como produção de

fantasmas, o que é extensamente proposto pela psicanálise quando se ocupa da dinâmica

inconsciente. O desejo é o que produz fantasmas a partir da falta, sendo que:


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Essa solda do desejo com a falta é, justamente, o que dá ao desejo fins, metas ou
intenções coletivas e pessoais – em lugar do desejo tomado na ordem real de sua
produção que se comporta como fenômeno molecular desprovido de meta e de
intenção. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 435)

Para a esquizoanálise, desenvolvida por Deleuze e Guattari, as produções

desejantes inconscientes não se fazem de modo estrutural, nem pessoal e muito menos

por simbolização ou figuração. O inconsciente é maquinístico, ele só sabe maquinar,

“ele é o Real em si mesmo...” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 73). Ao desejo nada

falta.

O corpo sem órgãos é um outro conceito utilizado por Deleuze e Guattari que,

quando associado a vários outros conceitos, contribui com os estudos da subjetividade.

Trata-se de um conceito limite que nos remete à di éia de experimentação, a um conjunto

de práticas, onde o corpo e o socius travam suas batalhas a partir de operações

totalmente distintas da perspectiva edipiana. No exame da noção de corpo sem órgãos,

persiste a crítica da redução psicanalítica operada pelo uso da interpretação. Deleuze e

Guattari (1999, p. 11) sugerem a substituição da interpretação pela experimentação.

Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: Vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso CsO1 , não desfizemos ainda suficientemente
nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela
experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de
vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se
decide.

O que é interpretado pela psicanálise é o fantasma, que corresponde a um

conjunto de significâncias e subjetivações, sendo, justamente, o que a esquizoanálise,

proposta por Deleuze e Guattari, pretende refutar. As desterritorializações dos modos de

subjetivação cristalizados em Édipo só podem ocorrer através da construção de um CsO,

1
Abreviatura utilizada pelos autores para corpo sem órgãos.
15

constituído por intensidades que não se reduzem a uma cena ou a um sentido prévio a

ser interpretado. Referir-se ao CsO é recorrer ao princípio de imanência do próprio

desejo, onde só circulam intensidades puras que, em seu entrecruzamento de fluxos,

terrritorializam estratificando índices de ambiente e organização, mas que também

desterritorializam desestratificando ao modificarem seu movimento e ordenação. A idéia

de entrecruzamento de intensidades que ora se territorializam, ora se desterritorializam,

poderá ser mais bem compreendida com a introdução do conceito de rizoma, tratado

posteriormente. O que se propõe é pensar o CsO como:

[...] o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali


onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer
instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo).
(DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 15)

Considerar a noção de CsO implica uma ruptura com qualquer perspectiva

identitária, causalista, constituída por continuidades. É a possibilidade de ampliação, ao

máximo, da disponibilidade em relação a toda espécie de ruptura de sentidos

aprisionados, é ampliar a fluidez e a liberdade de criação (ROLNIK, 1994, p. 8). O

desejo, quando articulado ao próprio campo de imanência, tomado em sua exterioridade,

onde tudo se dá na superfície, pode ser entendido independente do ideal transcendente,

do princípio da castração (falta) e também da relação com o prazer. Deleuze e Guattari

afirmam que é sempre um “padre” que amaldiçoa o desejo ao prendê-lo a tais princípios.

As idéias apresentadas em “Mil Platôs” partem da noção de rizoma, noção que

auxilia na compreensão do funcionamento das máquinas desejantes complementando o

que se quer dizer com CsO. Deleuze e Guattari (2000, p. 8) têm como projeto apresentar

uma teoria das multiplicidades, que questiona as idéias de unidade, totalidade e sujeito:
16

As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se


produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das
multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações,
que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer,
individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres;
a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a
seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos
vetores que atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.

A citação mostra de modo sintético o que se pretende com a noção de rizoma.

Em primeiro lugar, o que se coloca é a multiplicidade como realidade, em seu estado

substantivo, ou seja, as multiplicidades por elas mesmas, e, em segundo lugar, o modo

pelo qual as multiplicidades operam, superando distinções binárias de toda espécie

(Ics/Cs; natureza/história; corpo/alma; objeto/sujeito; manifesto/latente...), como

também desfazendo o conceito de organismo, significância e subjetivações. O conceito

de organismo remete a uma totalidade significante, que funciona de modo arborescente,

a partir de uma unidade superior de centro e segmentos. As multiplicidades não

comportam uma unidade principal ao seguir o modo rizomático de funcionamento. Isso

não significa que territorializações, unificações não ocorram, mas não servem como

regra universal e original para compreender todas as formas de manifestação da

subjetividade. Para Deleuze e Guattari, o sistema rizomático é o próprio modo de

funcionamento do CsO, sempre a se fazer, sempre operante. É a produção de

produção, a experimentação pelo “meio”, sem origem, sem fim prévio, sem hierarquias,

mas que comporta também “linhas de segmentaridade”, de significação e

territorialidades. Um rizoma é constituído pelas “linhas de segmentaridade”

(estratificação) e pelas “linhas de fuga” que desterritorializam. Em resumo, o rizoma é

constituído apenas por linhas que se alteram através de conexões efetuadas a partir de

qualquer ponto do processo, por velocidades que tomam força pelo meio, sem início e
17

nem conclusão. A multiplicidade rizomática se faz por alianças heterogêneas e não por

filiação como a árvore (genealogia). O rizoma é antigenealógico, “ele se encontra

sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (DELEUZE e GUATTARI,

2000, p. 37). O entrecruzamento de todas as linhas, das velocidades e a composição por

platôs (zonas de intensidade contínua), formam os agenciamentos:

Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa


multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas
conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa
estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas. (DELEUZE e
GUATTARI, 2000, p. 17)

De acordo com a noção de agenciamento, a subjetividade pode ser pensada

como agenciamento coletivo de enunciação que não corresponde a nenhum sistema

centrado, ou a processos de subjetivação e semiotização centrados em agentes

individuais. A subjetividade consistiria, então, a partir de processos descentrados, porém

não no sentido de indiferenciado, pois o sentido rizomático é sempre inovador, produtor

de novas modalidades que fogem às estruturas pré-determinadas ou figuras simbólicas.

Isso é o próprio desejo funcionando como produção, o desejo é sempre produção de

algo.

Enfim, o rizoma pode ser utilizado como operador conceitual que se contrapõe

ao modelo arborescente característico da psicanálise que funciona segundo princípios de

“decalque” que reduzem as produções do inconsciente a um álbum de família.

A sexualidade, segundo Deleuze e Guattari, torna-se perversa ou neurótica em

Freud por meio das operações edipianas em que o esquizo resiste. É por decalques que

as identidades perversas e neuróticas são formadas. E parece que é só isso que resta à

psicanálise: interpretar os sentidos que já estão pré-estabelecidos. A noção de


18

inconsciente na psicanálise fundamenta as reterritorializações tirânicas, ressentidas e

burocráticas de Édipo, sufocando a produção das máquinas desejantes em seu modo

rizomático de funcionamento.

A análise dos delírios de Schreber em “O Anti-Édipo” e o caso clínico do

pequeno Hans no “Mil Platôs” denunciam as capturas das interpretações psicanalíticas,

em que as produções desejantes tomam sentido a partir da triangulação edipiana. Os

delírios de Schreber, como qualquer outro fenômeno esquizo, não se deixam reduzir pela

edipianização, não coincidem somente com os códigos sociais pré-estabelecidos. “O

código delirante, ou desejante, apresenta uma extraordinária fluidez” (1976, p. 31);

mostra-se estranho às figuras familiares, explodindo em intensidades múltiplas que

rompem constantemente com o centro, que criam ilnhas de fuga onde aparece toda uma

relação com a exterioridade da história, das raças, das religiões... E em Hans, segundo

Deleuze e Guattari, nos deparamos com toda a sorte de bloqueios de sua produção

desejante.

Com o modelo de funcionamento rizomático, a esquizoanálise pretende

alcançar o inconsciente produtivo, em sua microfísica, em seu aspecto molecular a-

significante, que não representa nada. A sujeição da sexualidade à edipianização da

psicanálise corresponde, segundo Deleuze e Guattari, a processos de subjetivação que

limitam e distorcem a produção desejante. A sexualidade como máquina desejante se

distingue de toda representação, não sendo figurativa, nem projetiva. São intensidades

puras, embora possam ser representadas e sofrerem processo de significação como quer

a psicanálise. Trata-se de produção de estados intensivos, de estados afetivos

anedipianos.
19

A esquizoanálise é um conjunto de idéias desenvolvidas por Deleuze e Guattari

que tem por finalidade questionar a concepção de que o desejo e a subjetividade estariam

centrados no indivíduo: “Partimos mais da idéia de uma economia coletiva, de

agenciamentos coletivos de desejo e subjetividade que, em algumas circunstâncias,

alguns contextos sociais, podem se individualizar” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.

232).

A sexualidade será pensada em termos anedipianos, a partir de relações de

intensidades, de fluxos que operam devires de ordem expressamente distinta do uso

edipiano da sexualidade. A esquizoanálise propõe estudos que buscam novos caminhos

de compreensão dos investimentos libidinais. Para tanto, ela pretende “desfazer o

inconsciente expressivo edipiano, sempre artificial, repressivo e reprimido, mediatizado

pela família, para atingir o inconsciente produtivo imediato” (DELEUZE e GUATTARI,

1976, p. 130).

A esquizoanálise também apresenta um problema prático que tenta devolver às

sínteses do inconsciente a seu uso imanente, dezedipianizando, desfazendo crenças, para

se chegar à produção das máquinas desejantes como investimentos econômicos e sociais.

É uma proposta de análise militante, com princípios práticos em direção aos processos

de desterritorialização que engendrem novas possibilidades de territorializações

resistentes a tantas tiranias, ao mesmo tempo em que se descobrem os investimentos

inconscientes do campo social pelo desejo. Guattari (1987) propõe a militância como

ação contra as formas repressivas espalhadas em toda parte da sociedade. A

esquizoanálise visa à ultrapassagem dos grandes conjuntos molares, como a família, para

alcançar os elementos moleculares constitutivos das engrenagens das máquinas


20

desejantes, ocupando-se da investigação do modo de funcionamento dessas máquinas. É

nesse sentido que a sexualidade será estudada:

A sexualidade não é mais considerada como uma energia específica que une pessoas
derivadas dos grandes conjuntos, mas como a energia molecular que põe em conexão
moléculas-objetos parciais (libido)... Pois as máquinas desejantes são exatamente
isso: a microfísica do inconsciente... Mas, enquanto tais, elas não existem nunca
independentes dos conjuntos molares históricos... Sob os investimentos conscientes
das formações econômicas, políticas, religiosas, etc., há investimentos sexuais
inconscientes, microinvestimentos que testemunham a maneira pela qual o desejo
está presente num campo social... A sexualidade não é absolutamente uma
determinação molar representável num conjunto familiar, mas a subdeterminação
molecular, funcionando nos conjuntos sociais, e secundariamente familiares, que
traçam o campo de presença e de produção do desejo: todo um inconsciente não
edipiano, que produzirá Édipo apenas como uma de suas formações estatísticas
secundárias (‘complexos’), à saída de uma história que põe em jogo o devir das
máquinas sociais, seu regime comparado ao das máquinas desejantes. (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 232-233)

A esquizoanálise critica a sexualidade constituída antropomorficamente e

afirma que há em toda parte uma transexualidade microscópica, relações de produção de

desejo que subvertem a ordem molar, ou estatística dos sexos. É a sexualidade como

maquinação de um inconsciente libidinal da economia política, onde não há lugar para

simbolismo sexual e suas pseudo-interpretações.

Para concluir, este projeto pretende evidenciar produções de discursos de

verdade que colocam a sexualidade como algo a ser descoberto nas profundezas da

existência humana, perspectiva que a esquizoanálise procura inverter ao afirmar a sua

produção na superfície e na relação dos corpos no campo social. Ao realizar esta tarefa

está-se também produzindo novas formas de pensar a clínica, o social e a própria

existência humana.
21

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 A LIBIDO COMO INVESTIMENTO SOCIAL

2.1.1 LIBIDO E FAMILIALISMO

Uma das propostas mais intrigantes de Deleuze e Guattari é pensar a noção de

libido articulada à idéia de máquina. São as famosas máquinas desejantes que tanto

caracterizaram o pensamento desses dois-múltiplos autores. As máquinas desejantes não

podem ser pensadas de um modo metafórico. Não há metáfora neste campo de

pensamento. Tudo é máquina... E tudo maquina... O sentido não está relacionado à

mecânica, pois “a mecânica é relativamente fechada sobre si mesma: ela só mantém com

o exterior relações perfeitamente codificadas” (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 385).

As máquinas estão em uma relação de fluxos e cortes o tempo todo:

Não há mais nem homem nem natureza, mas apenas o processo que produz um no
outro e acopla as máquinas. Em toda parte, máquinas produtoras ou desejantes, as
máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior não
querem dizer mais nada. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 16)

As noções de fluxo e corte fazem parte de um mesmo conceito que não faz

referência a nenhum dualismo como também a nenhuma diferença de natureza – “o fluxo

não apenas é interceptado por uma máquina que o corta, sendo ele próprio emitido por

uma máquina” (ZOURABICHVILI, 2004, p.33).

A libido é maquinada sobre um socius, ou seja, sobre uma “superfície onde toda

a produção se registra” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 25) e jamais pode ser

pensada desarticulada dos fenômenos sociais. Mas, no pensamento freudiano, a libido é o


22

tempo todo definida a partir de relações binárias entre sujeito-objeto, específicas de uma

situação familiar. A libido e seus investimentos, segundo a psicanálise lacaniana,

formarão uma cadeia de significantes que estruturará o inconsciente, sobretudo, a partir

dos investimentos libidinais dos pais. Deste modo, toda uma cadeia plural de signos

ficaria reduzida ao significante. Diante de um totalitarismo do significante que submete

os signos à tirania da lei, Deleuze e Guattari reagem fortemente, afirmando a natureza

plural dos sistemas de signos, considerando que o signo do desejo não é a lei, sendo o

desejo signo de potência. Os signos de uma cadeia molecular, segundo Deleuze e

Guattari, não são absolutamente significantes, enquanto estão sob o regime das

“disjunções inclusivas”, onde tudo é possível. Eles são pontos de natureza qualquer,

figuras maquinísticas abstratas e não formam nenhuma configuração estruturada. A

princípio esta visão aparece na psicanálise, mas, posteriormente, ela irá supor uma cadeia

significante de uso molar, onde Édipo ocupará a posição de código do desejo e a

castração, o significante, tendo a estrutura familiar como territorialidade. Essa concepção

posterior da psicanálise acarretou um desconhecimento das possibilidades de sínteses do

inconsciente. A crítica recai, sobretudo, na suposição de um significante despótico –

Édipo:

A partir do momento que se faz depender o desejo do significante, recoloca-se o


desejo sob o jugo de um despotismo cujo efeito é a castração, aí onde se reconhece o
traço do próprio significante; mas o signo de desejo não é nunca significante, ele está
nos mil cortes-fluxos produtivos que não se deixam significar no traço unitário da
castração, sempre um ponto-signo com várias dimensões, a polivocidade como base
de uma semiologia pontual. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 146)

Deleuze e Guattari radicalizam o conceito de libido como força desconectiva e

disjuntiva que desmontam o princípio de totalidade-unidade, o que irá provocar um


23

redimensionamento da relação todo-partes2 . Não haveria nem uma totalidade original,

nem muito menos uma de destinação. É a afirmação das totalidades que se fazem ao

lado, rompendo com a idéia de uma dialética evolutiva do desenvolvimento humano.

Somente pela multiplicidade é possível recolocar o problema trazido pelo estruturalismo

francês que relaciona sempre as partes com o todo. As pulsões parciais não se somariam

para configurar um todo, que, aqui em questão, seria a estrutura edipiana. Trata-se de

produção de produção na qual as máquinas desejantes estão sempre operando fluxos-

cortes, onde uma máquina produz um corte de fluxo em outra máquina que,

supostamente, produz fluxo e que, em outra máquina, produzirá um corte e assim por

diante. Isto significa afirmar que toda máquina é máquina de máquina. Radicalizando,

Deleuze e Guattari afirmam que “a parte não tem nada a ver com o todo, ela representa

sozinha seu papel” (1976, p. 59).

Outra característica da relação entre as máquinas desejantes é a capacidade de

conexão heterogênea, ou seja, um órgão pode se associar a múltiplos fluxos a partir de

conexões diferentes que se transformam em cadeias polívocas, em total oposição a uma

concepção bi-univocizante e linearizada: “Não há uma evolução das pulsões que as faria

progredir, com seus objetos, para um todo de integração, assim como não há totalidade

primitiva da qual derivariam” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 63).

É neste sentido que surge uma crítica a Melanie Klein quanto à suposição de os

objetos parciais estarem relacionados a fantasmas (concepção idealista) e à idéia de

estarem remetidos a um todo. Mesmo considerada por Deleuze e Guattari a menos

edipianizante dos psicanalistas, Melanie Klein não concebe os objetos parciais em seu

2
BIRMAN, J. Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze. In: E. ALLIEZ (Org.). Gilles Deleuze: uma vida
filosófica. São Paulo: 34, 2000, p. 463-478.
24

processo de produção, no funcionamento das máquinas desejantes; eles são extraídos de

pessoas globais.

Deleuze e Guattari (1976, p. 62) buscam em Proust uma inspiração para o

problema entre as partes e o todo da seguinte forma:

Portanto, Proust dizia que o todo é produzido, que ele é ele próprio produzido como
uma parte ao lado das partes, que ele não unifica nem totaliza, mas que se aplica a
elas, instaurando somente comunicações aberrantes entre vasos não comunicantes,
unidades transversais entre elementos que guardam toda a sua diferença nas suas
dimensões próprias.

O problema é que, se se estabelece uma relação onde as partes estão em função

do todo, então se terá uma relação de hierarquia com um princípio de unidade, e esta é

uma das concepções combatidas pelos autores aqui estudados (esta discussão será mais

bem elaborada quando se tratar do conceito de rizoma).

O conceito de inconsciente será visto com mais detalhes posteriormente, mas

também já se pode adiantar que para os autores o inconsciente ignora pessoas e que os

objetos parciais não são representantes de pessoas, nem muito menos das parentais. Os

objetos parciais seriam peças na máquina desejante e são produzidos por extração sobre

um fluxo impessoal. A libido é sempre uma energia de máquina que não se deixa reduzir

por uma identidade imaginária nem por uma unidade estrutural. Na psicanálise ocorre

um esmagamento das máquinas desejantes por remetê-las às imagens dos pais. Deleuze e

Guattari indagam: “O que são as máquinas desejantes?” Eles respondem que para a

psicanálise é papai-mamãe. Isto significa reduzir toda a produção desejante do

inconsciente. Mas eles fazem outra aposta: a produção desejante é pura multiplicidade

irredutível à unidade. O que está em questão não é negar que haja uma sexualidade

edipiana, mas limitar a sexualidade em um campo dos objetos globais e egos específicos,
25

provocando a ilusão de que as máquinas desejantes estejam submetidas a leis

transcendentais. O que é questionável é conceber que os objetos parciais se direcionem,

mesmo em fases pré-edipianas, para uma organização futura determinada por Édipo. O

modelo edipiano é determinado secundariamente a partir de um campo social, e por esta

razão não pode ser concebido como fenôme no primário, causal e individual. Parece que,

segundo os autores, Melanie Klein percebeu a grande riqueza dos objetos parciais, mas

logo os capturou no eixo edipiano.

Como contraponto a esse modelo de pensamento, tem-se a idéia de um

inconsciente produzindo relações impessoais. Isto implica em acreditar que o

inconsciente não conhece pessoas, e que os objetos parciais investidos pela libido não

são os representantes dos pais, nem muito menos o que irá fundamentar as relações

familiares. Segundo os autores, está-se diante de um inconsciente órfão. Os objetos

parciais não “representam” nada. O que não quer dizer que para as crianças os pais não

tenham significado, mas o que está em discussão é:

[...] saber se tudo que ela toca é vivido como representando os pais. Desde o
nascimento, o berço, o seio, a chupeta e os excrementos são máquinas desejantes em
conexão com as partes de seu corpo. Achamos contraditório dizer, ao mesmo tempo,
que a criança vive no meio dos objetos parciais, e o que ela capta nos objetos parciais
são as pessoas parentais, mesmo que em pedaços. Que o seio seja extraído do corpo
da mãe, isso não é rigorosamente verdade, pois ele existe como peça de uma
máquina desejante, em conexão com a boca, e extraído de um fluxo de leite não
pessoal, ralo ou denso. Uma máquina desejante, um objeto parcial não representam
nada: não são representativos. São realmente suportes de relações de distribuidores
de agentes; mas estes agentes não são pessoas, e nem muito menos essas relações são
inter-subjetivas. São relações de produção como tais, agentes de produção e de
antiprodução. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 66)

A psicanálise deixou escapar experiências que não são da ordem familiar e

rebateu tudo em uma só ordem perdendo com isso o entendimento de outras ordens que
26

incluem conjuntos pré-pessoais – ordem das percepções, afetos; e extrapessoais – ordem

das máquinas econômicas, tecnológicas, ecológicas...

O grande perigo em se rebater todo o entendimento de algo tão complexo como

a dinâmica da sexualidade em uma suposta origem familiar consiste em uma idéia

limitada da origem dos fenômenos. Ainda se busca platonicamente a essência das coisas

e nesse empenho se cai em armadilhas naturalizantes e reducionistas. A psicanálise caiu

nessa armadilha, enquanto também foi uma armadilha, sobretudo pelo seu anseio em

buscar uma identidade primeira no seio da relação familiar. Foucault (1982, p. 18),

baseado em Nietzsche, afirma que “... o que se encontra no começo histórico das coisas

não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o

disparate”.

O problema do “freudismo” foi ter permanecido indiferente à luta de classes e a

todo um processo social determinante em suas produções, ou seja, não se deu conta

desses determinismos sociais em sua produção teórico-prática e, mesmo que tenha se

deparado com a produção desejante do inconsciente, não a relacionou a um certo tipo de

sociedade, conseguindo, deste modo, arrastá-la para um domínio das normas familiais e

sociais dominantes.

Portanto, o que é buscado neste trabalho são as linhas de fuga que

intensifiquem inquietações no campo aqui proposto forçando novas passagens. É uma

tentativa de compreensão do funcionamento de determinados modelos de pensamento, o

que o faz funcionar, como funcionam e que efeitos produzem.

Em Deleuze e Parnet (1998), existem muitas críticas quanto à redução operada

pela psicanálise em sua noção de desejo, principalmente por achar que os verdadeiros
27

conteúdos do desejo, que povoam o inconsciente, são as pulsões parciais (objetos

parciais), que só expressam Édipo e a castração (organizador psíquico). Para Deleuze, a

libido é a energia que move as máquinas desejantes de modo atual, sempre em um

sentido produtivo e não representativo. Os fluxos seriam a objetividade do desejo, não

existindo, portanto, um sujeito do desejo ou de objeto (DELEUZE e PARNET, 1998). A

libido operaria segundo um sistema a-significante produzindo fluxos inconscientes em

uma ordem social, onde os objetos parciais, ao invés de serem extraídos de pessoas

globais, se produziriam por fluxos não pessoais que se transferem de uns para outros.

Outra crítica contundente está direcionada para a interpretação tal como é

apresentada no campo psicanalítico. Esta é uma outra questão que também será tratada

mais adiante quanto ao conceito de inconsciente e sua relação com o desejo. O que é

importante adiantar, porém, é o determinismo familialista encontrado em tais

interpretações. Quando a psicanálise rebate todo o desejo sobre uma estrutura familiar,

ela desconecta deste processo todo um campo social que é investido pela própria libido.

A interpretação é o principal artifício redutor dos fluxos, sobretudo ao inferir: “então era

isso que isso queria dizer?” É sempre por formas representativas que, na psicanálise, o

desejo se expressa, ou seja, algo que significa outra coisa, que está em outro lugar.

Deleuze e Guattari não negam a existência de sexualidades edipianas, ou

mesmo uma castração edipiana correspondentes a imagens globais e egos específicos,

porém estas não são produções do inconsciente. Trata-se de disjunções não exclusivas,

de relações de intensidades que extrapolam o âmbito familiar percorrendo todo um

conteúdo político-cultural-histórico-mundial-racial...
28

É que se persiste em tratar a família como uma matriz, ou melhor, como um


microcosmo, um meio expressivo valendo por si mesmo, e que, tão capaz quanto
seja de exprimir a ação das forças alienantes, mediatiza essas forças precisamente ao
suprimir as verdadeiras categorias de produção nas máquinas do desejo. (DELEUZE
e GUATTARI, 1976, p. 126)

Para Foucault (1972), toda essa parafernália familialista da psicanálise foi

produzida e reproduzida em concordância com o movimento psiquiátrico do século XIX,

comprometido com os propósitos burgueses, científicos, correspondente de toda uma

nova organização social capitalista em expansão que, ao mesmo tempo em que rompia

com os procedimentos asilares, ampliava os poderes do médico e fortalecia os elos entre

família e loucura.

Deleuze e Guattari se referem ao caso Schreber para questionarem as

interpretações que colocam como derivados de Édipo suas produções delirantes. O

equívoco consistiria na determinação familiar desses conteúdos delirantes. Em todos os

delírios estão presentes conteúdos raciais, políticos e históricos que extrapolam o campo

individual. De acordo com esta visão, alguns exemplos de experiências esquizofrênicas,

relatadas pela psicanálise e pela literatura, são utilizados pelos autores para revelar a

insuficiência das interpretações familialistas. A psicanálise constantemente tenta

compreender essas experiências a partir de conjuntos de identificações imaginárias

dependentes de Édipo. O esquizofrênico “sofreria” de uma falta de Édipo ou de uma

edipianização insuportável?

Não há dúvida de que as determinações familiares exerçam um papel, mas, para

os autores aqui estudados, esse papel é de indução e não de organização. As figuras

familiares são como estímulos quaisquer que disparam processos sociais de raças,
29

continentes, que transbordam as determinações de uma unidade familiar. O problema

maior foi o de a psicanálise ter soldado a sexualidade ao complexo familiar:

A família se tornou o lugar de retenção e de ressonância de todas as determinações


sociais. Pertence ao investimento reacionário do campo social aplicar todas as
imagens sociais aos simulacros de uma família restrita, de tal maneira que, para onde
quer que se vire, não se encontra mais do que pai-mãe: essa podridão edipiana que
cola à nossa pele. Sim, eu desejei minha mãe e quis matar meu pai; um único sujeito
de enunciação, Édipo, para todos os enunciados capitalistas, e entre os dois, o corte
de rebatimento, a castração. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 343)

Donzelot (1980) concebe a estrutura familiar como uma formação social

complexa e composta por várias linhas de composição, que sofreu mutações importantes

a partir dos séculos XVIII e XIX. Deleuze comenta a obra deste autor enfatizando a

importância dos efeitos da ascensão da burguesia e a instauração de uma nova

organização – o Estado. Novas relações surgiram, não de modo homogêneo, entre

população e Estado. O modo pelo qual o corpo foi gerenciado, as relações institucionais,

os novos dispositivos de controle social fizeram da criança e da família o foco de

interesse que se estenderam desde as camadas burguesas até as classes sociais mais

pobres. É o surgimento do “social” e de suas dicotomias entre o privado e o público que

instauraram novas práticas e modos-indivíduo de subjetivação com intensa força de

proliferação, sempre de forma heterogênea. Com a formação do Estado representativo

moderno foram lançadas as sementes férteis para o desenvolvimento do que é chamado

aqui de processos de individualização e totalização que vingou e se frutificam até os dias

atuais. Esses processos foram intensificados pelo romantismo que valorizava, sobretudo,

as emoções pessoais. A leitura de Donzelot, em concordância com Deleuze, mostra que

tanto o indivíduo como a sociedade são atravessados simultaneamente por duas ordens: a

molar e a molecular. Isto significa dizer que tudo é, ao mesmo tempo, micro e macro
30

políticas. Na ordem molar, encontram-se pequenos fluxos de desejo, como na ordem

molecular se podem encontrar combinações de ordem molar.

Pode-se assim, concluir que economia política e economia libidinal fazem parte

de uma mesma economia, são economias de fluxos e suas conexões. Trata-se de

questionar as definições de desejo, colocando-o em uma nova dimensão, ou seja, em

uma dimensão de montagem, é o desejo na produção e a produção no desejo, para que se

possam pensar os modelos de subjetivação produzidos no e pelo socius. De acordo com

Guattari, o campo social não é formado por relações anteriores ao indivíduo, e a

concepção, segundo a qual se acredita que o individuo é constituído por relações

bipolares, faz parte de uma apropriação capitalista do desejo, que tem no familialismo

um dos seus princípios mais convincentes ao colocar a família como anterior à produção

social. Analisando alguns textos educativos para adolescentes, pode-se constatar a

dicotomia que ainda é feita de modo explícito entre família e Estado. A família é

colocada numa posição anterior ao Estado e é definida como célula-mãe da sociedade no

decorrer da história da humanidade. O conceito de família passa pela idéia de grupo

primário que antecede a criação do Estado. São idéias que afirmam a autonomia da

estrutura familiar tornando-a auto-suficiente e responsável pelo futuro da sociedade civil

e do próprio Estado. São concedidos à família poderes sem a menor visão crítica,

fazendo dela “a base” de estruturação do social, lugar de verdade e origem de desejos.

Para se estudar melhor a questão do desejo tal qual proposta pelos autores aqui

analisados, seguir-se-á para um próximo tópico, mas não sem antes citar Guattari (1987,

p. 77-78):
31

A propriedade privada dos meios de produção está intrinsecamente ligada à


apropriação do desejo pelo ego, pela família e pela ordem social. Começa-se
neutralizando no trabalhador todo e qualquer acesso ao desejo, pela castração
familialista, pelas ciladas do consumo, etc., para apoderar-se em seguida, sem
dificuldades, de sua força de trabalho. Cortar o desejo do trabalho, eis o imperativo
primeiro do capital. Separar a economia política da economia desejante: eis a missão
dos teóricos que se colocam a seu serviço.

2.1.2 LIBIDO, RECALCAMENTO E REPRESSÃO SOCIAL

Édipo supõe uma fantástica repressão das máquinas desejantes. E por quê, com que
fim? É realmente necessário ou desejável dobrar-se frente a ele? E com quê? O que
colocar no triângulo edipiano, com que formá-lo? (DELEUZE e GUATTARI, 1976,
p.17)

Para a psicanálise o sujeito só ingressaria no registro da cultura a partir de sua

sujeição à proibição do incesto e de sua identificação com os modelos impostos

socialmente. Esta sujeição sofreria recalcamento, sendo esta operação indispensável para

a estruturação normal da subjetividade. Édipo, então, seria o objeto do recalcamento que

determinaria a organização psíquica. O sujeito psicanalítico surgiria de uma interdição,

de uma lei. Esta hipótese supõe uma antinomia entre sexualidade e civilização, e grandes

esforços de Freud para explicá-la.

Ao longo do pensamento freudiano ocorrem algumas mudanças referentes à

compreensão do antagonismo entre sexualidade e sociedade. A princípio, Freud declara

ser a sociedade de sua época a principal responsável pelos malefícios causados pela

repressão sexual3 . Seria então a moral sexual civilizada a causadora dos transtornos

psíquicos. Esta hipótese inicial de Freud o aproxima de certa compreensão mais social e

histórica do comportamento sexual humano. Inclusive essa fase do pensamento

freudiano foi considerada como fase otimista quanto à possibilidade de conciliação entre

3
FREUD, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX, 1996.
32

a sexualidade e sociedade através de transformações das instituições sociais. Porém, ao

se deparar com a sua grande descoberta, a sexualidade infantil, começa a questionar se

não existiria na própria natureza da pulsão sexual um caráter ameaçador e perturbador

das relações sociais 4 . Freud, então, postula a irredutibilidade da natureza perversa do

desenvolvimento psicossexual – o pequeno perverso polimorfo. A sexualidade humana,

de modo paradoxal, seria o grande perigo da organização social e por isso a sociedade

produziria mecanismos para se defender desse perigo constante. Os principais perigos

seriam o impulso incestuoso e o agressivo. Enfim, a própria estrutura edipiana. Indo

mais adiante no pensamento freudiano, chega-se à hipótese filogenética que estabelece

de vez o determinismo estrutural de Édipo, que atravessa toda a história humana 5 . O

parricídio original seria a explicação para o antagonismo entre sexualidade e civilização.

Vê-se um distanciamento cada vez maior da compreensão social desses fenômenos e um

estabelecimento radical da estrutura universal de Édipo. É a ontogênese repetindo a

filogênese:

A humanidade, através de suas instituições, perpetuaria dessa maneira aquilo que


está em seu fundamento. A sociedade seria, de certo modo, a memória viva do crime
cuja lembrança foi recalcada. Cada ser humano teria que lidar com aquela dívida
original e aceitar, por sua vez, as renúncias que os irmãos da horda se auto-
impuseram. É através de sua passagem pelo complexo de Édipo que cada um é
levado a isso, sofrendo uma dupla determinação. Por um lado, a de uma herança
filogenética que faria parte de seu patrimônio genético – a “memória” desses
acontecimentos originais que o obrigaria a repeti-los; por outro lado, as condições de
atualização desse programa “inato” seriam dadas pela estrutura familiar na qual a
criança estaria inserida, estrutura esta que faria parte do retorno do recalcado, sendo
ela mesma a comemoração daqueles acontecimentos primitivos: [...] A estrutura
familiar, transmitida de geração em geração pelo complexo de Édipo, perpetuaria o
cenário original. (MILLOT, 1987, p. 82)

4
________ . (1905). Três ensaios sobre a sexualidade. In op. cit., vol. VII.
5
________ . (1913). Totem e tabu. In op. cit., vol. XII.
33

E, por fim, Freud ainda irá recorrer à formulação da teoria da pulsão de morte

como força primitiva transcendente, que se adere às pulsões de vida causando os piores

transtornos nas relações sociais 6 . É quando a psicanálise se torna, segundo Deleuze e

Guattari, um novo conjunto de padres, “animadores da má consciência”. É toda uma

concepção dualística que está em jogo, eliminando as multiplicidades funcionais das

máquinas desejantes.

Como proceder diante de um pensamento tão desarticulado das configurações

históricas do desejo e que toma a sexualidade de um modo tão reacionário? Foi com esta

finalidade que Deleuze e Guattari escreveram “O Anti-Édipo” e “Mil Platôs”. Nestas

obras, encontram-se densas críticas ao princípio estrutural filo-ontogenético de Édipo.

Quanto ao percurso freudiano descrito, Deleuze e Guattari (1976, p. 152)

concluem:

Que se considere o artigo de 1908 sobre ‘a moral sexual civilizada’: Édipo ainda não
está nomeado, o recalcamento é aí considerado em função da repressão, que suscita
um deslocamento, e que se exerce sobre as pulsões parciais enquanto elas
representam à sua maneira uma espécie de produção desejante, antes de exercer-se
contra as pulsões incestuosas ou outras que ameaçam o casamento legítimo. Mas, em
seguida, é evidente que, quanto mais o problema de Édipo e do incesto ocuparão o
primeiro plano, mais o recalcamento e seus correlatos, a supressão e a sublimação
serão fundados em exigências supostas transcendentes da civilização, ao mesmo
tempo em que a psicanálise se embrenhará cada vez mais em sua visão familialista e
ideológica.

Ainda que, em Reich, ou em Marcuse, se encontre, segundo Deleuze-Guattari,

a insistência em enfatizar a repressão social como principal campo de pesquisa e também

uma resistência aos modelos biologizantes e naturalizantes de Freud, mesmo assim, o

que se encontra em discussão é a natureza do que é recalcado e que continua sem uma

elaboração mais consistente.

6
FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. In op. cit., vol. XVIII.
34

Édipo é uma imagem falsificada e não é sobre ele que o recalcamento incide,

nem muito menos existiria um retorno do recalcado. A relação entre os desejos edipianos

e o recalcamento está em uma outra ordem. Os desejos sofrem recalcamento, mas porque

são revolucionários e sempre “agitam” a ordem estabelecida. Para Freud, existiria um

recalcamento primordial e a repressão seria secundária, o que significa afirmar uma

autonomia do recalcamento em relação à repressão social. Para Deleuze e Guattari,

Édipo é um representado forjado, é uma idéia inspirada pela teoria do recalcamento e

que, ao mesmo tempo, está a seu serviço.

Neste sentido, Reich é reconhecido por Deleuze e Guattari como o primeiro a

considerar uma relação de dependência entre recalcamento e repressão, o primeiro a

tentar fazer funcionar a máquina analítica e a revolucionária apesar de não ter concebido

a noção de produção desejante, onde o desejo está inserido na infra-estrutura econômica.

Reich, diante do determinismo resignado, característica cada vez mais forte de um

freudismo, foge para suas próprias máquinas desejantes (Orgono).

No “O Anti-édipo”, encontra-se a seguinte afirmação:

O recalcamento é tal que a repressão se torna desejada, deixando de ser consciente; e


ele induz um desejo de conseqüência, uma imagem falsificada daquilo sobre o que
ele incide, que lhe dá uma aparência de independência. O recalcamento propriamente
dito é um meio a serviço da repressão. Aquilo sobre o que ele incide é também o
objeto da repressão: a produção desejante. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 155)

Para Deleuze e Guattari, a psicanálise coloca a família no lugar de agente

delegado do recalcamento operando como substituto de um movimento social repressivo,

onde o recalcado é representado pelas pulsões familiares incestuosas. Esta dupla

operação atende as necessidades de uma produção social interessada em confiscar o

desejo, conjurando sua potência revolucionária. A família será a estratégia perfeita para
35

lançar o desejo na prisão papai-mamãe, e a psicanálise, dessa maneira, pôde avançar

rapidamente como produtora e reprodutora de uma formação social maior. Édipo só pôde

alcançar tamanha repercussão por causa de um contexto sócio-político comprometido na

produção de estratégias de dominação.

A operação que colocou a família no lugar da lei suprema conseguiu agir no

socius de modo sem precedente. Uma enorme teia repressora que, não só inibe

comportamentos anti-sociais, como produz o que é considerado anti-social, se proliferou.

A concepção de poder apresentada por Foucault é muito útil para o entendimento das

relações sociais, por ser, justamente, a definição pela positividade que ganha relevo. Para

Foucault, o poder é muito mais positivo do que negativo. Em contraposição com as

idéias dominantes de repressão social, Foucault irá analisar a produção e os efeitos dos

dispositivos de sexualidade como conjunto de estratégias sociais que possibilitam

relações de poder, desmontando, assim, qualquer possibilidade de naturalização da

sexualidade, sobretudo, dos processos de edipianização. Foucault, do mesmo modo

como os autores aqui investigados, faz relevantes críticas à psicanálise. Foucault (1977)

afirma que, a partir principalmente do século XVIII, o sexo passou a ser incitado

provocando uma espécie de “erotismo discursivo generalizado”. No século XIX, a

difusão do discurso sobre o sexo alcançou seu ápice, e esta intensificação não foi só de

ordem quantitativa, mas também qualitativa, tratando-se de uma multiplicidade

discursiva heterogênea. Extrapolando a ordem dos dispositivos de aliança baseados nos

contratos matrimoniais e de regulações de parentescos, surge o dispositivo de

sexualidade altamente complexo e polimorfo que “fez falar” o sexo da criança, da

mulher, do perverso e da população. Foram constituídos segredos, a repressão sexual,


36

onde o sexo, ao mesmo tempo em que obrigado a se esconder, também é solicitado a se

revelar – perseguição e confissão na medida em que se obriga a calar. Para Foucault,

essa dupla operação faz parte de uma mesma estratégia de poder-saber que teve início

com as práticas de confissão da pastoral cristã e colocou muito mais o sexo em discurso

do que o restringiu. O poder em seu aspecto positivo é capaz de produções inesgotáveis,

o que implica reconhecer nele não só um caráter coercitivo, tal qual as teorias a respeito

da sexualidade afirmaram, mas reconhecer seu aspecto primordialmente produtivo e

muito mais amplo a partir de relações de forças para além da dimensão individualizante

que todas essas teorias fizeram crer: “[...] o poder não é uma instituição e nem uma

estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam, dotados: é o nome dado a uma

situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 1977, p. 89).

Em Foucault (1982), encontra-se uma definição resumida da noção de

dispositivo na qual está evidente o caráter histórico da sexualidade, mas não como a

história tradicional a descreve nos moldes da hipótese repressiva. A sexualidade é um

dispositivo impessoal, sem origem ou instância determinante, fabricada por uma rede

heterogênea de elementos discursivos, teorias científicas, organizações administrativas,

sistemas filosóficos, morais, religiosos, estruturas arquitetônicas, conjunto de leis,

instituições etc. Todos esses elementos possuem flexibilidade e podem mudar de

posições e funções. Outro aspecto importante de um dispositivo é quanto à sua função

referente a um conjunto de estratégias dominantes, que busca o controle-dominação e, no

caso da sexualidade, esta é uma das áreas da vida humana que mais atende em termos de

controle e produção desta natureza. De um modo geral, as produções foucaultianas

servem aqui para pensar em como as grandes estratégias de poder se estabelecem e como
37

encontram condições de exercício em micro-relações de poder (FOUCAULT, 1982, p.

249). Está-se no campo das estratégias sem sujeito, o que não significa afirmar que não

exista representação, mas afirmar uma operação que ocorre de fora para dentro, ou

melhor:

Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar
que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno,
na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce
sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados,
treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados,
sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a
existência. (FOUCAULT, 1995, p. 31)

A psicanálise, na visão de Foucault, conseguiu juntar os dispositivos de aliança

e de sexualidade através da valorização da célula familiar como o lugar obrigatório dos

afetos, de intensificação dos sentimentos, de origem dos impulsos incestuosos, enfim, é

na família e pela família que os procedimentos de incitação ao sexo terão maior alcance.

É importante ressaltar novamente que este quadro social (solidificação da família no

Ocidente) estava em expansão e a psicanálise aparece como um dos episódios de suma

importância na instauração e difusão desse movimento. Muito mais que uma célula

monogâmica e conjugal, a família se constituiu por meio de práticas, regulações móveis

que extrapolam a função de inibição de comportamentos e controle social. É por esta

razão que Foucault rejeita a tese de que o sexo foi silenciado e censurado, principalmente

no século XIX, o que não significa afirmar que não tenha ocorrido censura, repressões,

mas esta tese não pode servir de ponto de apoio para uma análise do que aconteceu com

a sexualidade neste período histórico. Ao contrário, nunca se falou tanto em sexo e a

junção psicanálise-família foi uma das estratégias que mais intensificou a colo cação do

sexo em discurso configurando-se em dispositivo de intensa saturação sexual. Afirmar


38

também que o sexo foi reprimido é supor uma natureza instintiva, rebelde e obscura da

sexualidade humana. É supor um princípio de latência e de causalidade inerente ao sexo

que, para Foucault, nada mais é que uma suposição característica de uma rede de poder

que opera também através dessas suposições.

É neste sentido que se podem correlacionar as idéias de Foucault com as de

Deleuze/Guattari, por se constatar uma operação social que age por deslocamentos

falseando a produção desejante. E, sem dúvida, a psicanálise foi produtora e, ao mesmo

tempo, determinada por essa formação social que desencadeou toda uma relação com o

desejo por deslocamentos da produção desejante por operações de recalcamento. A

psicanálise não foi a autora exclusiva desse processo, ele já podia ser visto na literatura,

nas produções científicas, na organização econômica, na pedagogização e

disciplinarização dos corpos, nas políticas de saúde etc. Foram procedimentos

produzidos não de forma unificada e homogênea, que obtiveram na psicanálise respaldo,

como também a psicanálise encontrou neste plano social um campo fértil para suas

produções e efeitos, sobretudo nas práticas institucionais extrapolando o terreno privado

dos consultórios.

A edipianização extrapola o domínio da família. Ela já havia ocupado o

domínio social aprisionando os investimentos libidinais em uma triangulação que

favoreceu as produções psicanalíticas. Toda essa produção vai muito mais longe:

Os usos edipianos de síntese, a edipianização, a triangulação, a castração, tudo isso


remete a forças um pouco mais potentes, um pouco mais subterrâneas que a
psicanálise, que a família, que a ideologia, mesmo reunidas. Estão aí todas as forças
da produção, da reprodução e das repressões sociais. É que é preciso forças muito
potentes, na verdade, para vencer as do desejo, levá-las à resignação, e substituir em
toda parte reações do tipo papai-mamãe ao que era essencialmente ativo, agressivo,
artista, produtivo e conquistador no próprio inconsciente. (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p.158)
39

Para Deleuze e Guattari, é a partir de um movimento simultâneo que a

formação social repressiva consegue se fazer substituir pela família recalcante e, ao

mesmo tempo, impor à produção desejante uma imagem deslocada do recalcado

fazendo-o passar como pulsões familiares incestuosas. A produção desejante sofreria o

recalcamento originário e a produção social está no lugar da repressão. O que está em

jogo nesta perspectiva é uma operação de interesse da produção social, na qual está

incluída a psicanálise, que deforma o desejo ao reconhecê-lo como incestuoso, que o

coloca sob suspeita e ao mesmo tempo como lugar de mais profunda verdade. São

manobras de domesticação da libido que estão em toda parte, e as condições dessa

domesticação, evidentemente, não são dadas. Édipo é um limite deslocado no interior do

socius, é a imagem falsificada à qual o desejo se prende (DELEUZE e GUATTARI,

1976, p. 210). Na psicanálise, Édipo é a representação que sofreria o recalcamento, em

que a proibição do incesto seria a representação edipiana do recalcamento. Aquilo que é

proibido também é aquilo que é mais desejado. No entanto, para Deleuze e Guattari

(1976, p. 219), o recalcado não coincide com a representação edipiana e, sim, com a

produção desejante.

O que passa, ao contrário, da produção desejante à produção social forma um


investimento sexual direto dessa produção social, sem nenhum recalcamento do
caráter sexual do simbolismo e dos afetos correspondentes e, sobretudo, sem
referência a uma representação edipiana que se suporia originalmente recalcada ou
estruturalmente forcluida.

O incesto não remete a Édipo, mas aos fluxos intensivos do desejo. Édipo é

uma tentativa de codificação do desejo, uma tentativa de nomear aquilo que é da ordem

do impessoal. No eixo repressão-recalcamento há um direcionamento dos investimentos

libidinais para valores determinados por uma ordem social dominante, mas que, por
40

princípio, segundo Deleuze/Guattari, não correspondem em nada aos sistemas binários e

figurativos desta ordem. Considerando que a libido que investe a triangulação edipiana

não é um fenômeno em si, conclui-se que este arranjo corresponde a um modo de

colocar a questão do desejo em certo plano social. Existe uma manobra social que faz

com que o recalcado apareça travestido em desejo edipiano e o recalcante seja a família

em suas relações binárias, constituindo a sexualidade infantil. Para que ocorra Édipo é

necessário que ele ocupe o lugar do representante do desejo e que ocorra uma separação

entre social e família estabelecendo uma relação bi-unívoca entre esses dois campos, o

que é uma característica específica do sistema capitalista. Isso já não ocorre nos sistemas

primitivos de sociedade, porque a família é coextensiva ao campo social. Édipo não é

nunca uma causa, mas depende de investimentos produzidos em uma determinada

conjuntura social, que se deixa rebater sobre os determinantes familialistas. A relação

mais específica entre Édipo e sistema capitalista será vista mais adiante. Resta, aqui,

ressaltar o caráter primordial dos investimentos sociais, anteriores aos familiares, pois os

investimentos do desejo são em primeiro lugar, investimentos de um campo social e não

o contrário como a psicanálise fez parecer. A família nunca é determinante e, sim,

determinada, sendo uma aplicação dos investimentos inconscientes do social. Neste

sentido, Deleuze e Guattari (1976, p. 233) afirmam que a sexualidade não pode ser nunca

uma determinação molar correspondente a um sistema familiar, mas:

[...] a subdeterminação molecular, funcionando nos conjuntos sociais, e


secundariamente familiares, que traçam o campo de presença e de produção do
desejo: todo um inconsciente não-edipiano, que produzirá Édipo apenas como uma
de suas formações estatísticas secundárias (‘complexos’), à saída de história que põe
em jogo o devir das máquinas sociais, seu regime comparado ao das máquinas
desejantes.
41

O que dá o direito à psicanálise de cristalizar o desejo numa ordem da

representação, da lei e da proibição? Quem pode afirmar que esta seja realmente a forma

como o desejo constitui a subjetividade?

Tais perguntas têm a intenção de reforçar a idéia de redução artificial do desejo.

A repressão tem destino certo:

O campo social não é constituído por objetos que lhe preexistem. O indivíduo
tomado em sistemas bipolares do tipo homem/mulher, adulto/criança, genital/pré-
genital, vida/morte, etc., já é resultado de uma redução edipianizante do desejo sobre
a representação. A enunciação individuada do desejo já é uma condenação do desejo
à castração. Totalmente outra é a idéia de um agenciamento coletivo da libido em
partes do corpo, em grupos de indivíduos, em constelações de objetos e de
intensidades, em máquinas de toda espécie que fariam o desejo sair desta oscilação
entre o triângulo edipiano e seu desmoronamento na pulsão de morte, para conectá-lo
a multiplicidades cada vez mais abertas ao campo social. (GUATTARI, 1987, p. 31)

De acordo com Deleuze e Guattari, inicialmente, as “descobertas” freudianas

apontavam para as múltiplas possibilidades do desejo, provocando, inclusive, escândalos

nos meios científicos e sociais de um modo geral. Porém, em seu percurso, Freud

deixou-se capturar pelas armadilhas de um sistema social que aliena o desejo, que o

prende ao segredo sujo familiar. Esta é uma concepção altamente repressiva do desejo,

apoiada nas representações normalizadoras, que torna a criança e o indivíduo

responsáveis pelos seus impulsos incestuosos. É uma “tacada de mestre” afirmar neste

grande jogo das repressões sociais que o desejo é isso: Édipo. A esquizoanálise de

Deleuze e Guattari (1976, p. 130) pretende romper com este jogo propondo desmontar a

idéia de inconsciente expressivo e edipiano, “[...] sempre artificial repressivo e reprimido

mediatizado pela família, para atingir o inconsciente produtivo imediato”.


42

2.1.3 IMPLICAÇÕES CAPITALÍSTICAS NA PRODUÇÃO DE ÉDIPO

Deleuze e Guattari percorrem toda uma análise social que ofereceu as

condições necessárias para o nascimento de Édipo. Será feita uma delimitação desta

análise, complementando o que já foi visto até aqui, buscando uma maior compreensão

das produções psicanalíticas em seu processo de desfiguração dos investimentos

libidinais. Trata-se, na verdade, de uma mistificação do inconsciente datada e

comprometida com um sistema capitalístico em ascensão. A utilização da palavra

capitalístico, inventada por Guattari, serve para englobar os países que já são capitalistas

e setores do Terceiro Mundo, e também, de alguma forma, para evitar a idéia de um

capitalismo universal em si, pois ele existe apenas no atravessamento das forças sociais,

constituindo-se sempre numa espécie de neocapitalismo constante.

A intenção dos autores é fazer a análise a partir de Édipo não para considerá-lo

uma verdade a ser revelada, mas para mostrar como sua construção foi bem sucedida,

sobretudo a partir das peças de uma engrenagem social capitalística na qual tomou força

e corpo. É neste sistema social que a análise crítica se mostra mais forte. Édipo só existe

como desfiguração pela mistificação do inconsciente. Ao se referir às diversas

concepções psicanalíticas, tais como as que consideram Édipo em seu aspecto

imaginário ou estrutural, os autores afirmam que, na verdade, não existe diferença

alguma entre elas, pois todas são colonizações opressoras que operam com a suposição

de um inconsciente figurativo.
43

É na produção de subjetividade 7 que o capitalismo encontra sua maior

possibilidade de expansão. Sua maior estratégia foi a apropriação dos modos de

subjetivação, constituindo um inconsciente maquinado de modo capitalístico. Parece que

as forças capitalísticas entenderam que a produção de subjetividade é muito mais

importante que a produção em outros setores, como no energético, informá tico etc.

A produção de subjetividade pelo CMI (capitalismo mundial integral), é serializada,


normalizada, centralizada em torno de uma imagem, de um consenso subjetivo
referido e sobrecodificado por uma lei transcendental. Esse esquadrinhamento da
subjetividade é o que permite que ela se propague, a nível da produção e do consumo
das relações sociais, em todos os meios (intelectual, agrário, fabril, etc.) e em todos
os pontos do planeta. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 40)

A subjetividade no sistema capitalístico é produzida de modo industrial, em

escala mundial que não depende apenas de superestruturas. Ela é fabricada nas mais

diversas redes de consumo, de percepção de mundo, de relações de trabalho, de relações

de gênero, da moda, enfim, numa rede micropolítica. A produção de subjetividade não

ocorre separada da produção econômica. Não basta que a produção ocorra apenas na

esfera profissional, semiótica ou financeira, mas é uma confecção que começa desde a

infância, na escola, na família, que engloba todo um campo maquínico. Como afirma

Guattari (1986, p. 27), o sistema capitalista manipula as relações de produção e faz uso

da economia desejante no âmbito subjetivo: “Trata-se de sistemas de conexão direta

entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as

instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo”.

Para Guattari, a produção de subjetividade é a matéria prima de qualquer

produção, que não se difunde pela ideologia, mas pela modelização. A ideologia está na

7
As distinções entre as noções de produção de subjetividade e modos de subjetivação serão feitas nos dois
últimos capítulos.
44

ordem da representação e, portanto, não é suficiente para explicar os processos de

subjetivação, pois a modelização implica uma práxis social nas condições que a

determinam, e que estão para além de uma questão de idéia ou de identificações com

figuras familiares. Guattari chama de “função geral de equipamentos coletivos”, para se

referir à amplitude dos processos de modelização.

Segundo alguns autores da área de ciências políticas, podemos afirmar que:

A moderna ordem econômica capitalista penetra todas as esferas da vida social e


estende-se a outras instituições; a lógica do mercado torna-se a regra predominante
para a organização da vida política e social, e os comportamentos individuais
também são embutidos na lógica da produção econômica. (NUNES, 2003, p. 15)

É a partir de toda esta capacidade flexível e móvel do capitalismo, que se pode

afirmar sua natureza esquizofrênica, mas que, ao mesmo tempo, com alto rigor, repele

esta mesma tendência.

Dizemos do capitalismo, ao mesmo tempo, que ele não tem limite exterior, e que ele
tem um: tem um que é a esquizofrenia, isto é, a decodificação absoluta dos fluxos,
mas ele só funciona repelindo e conjurando esse limite. E também tem limites
interiores e não os tem: tem nas condições específicas da produção e da circulação
capitalistas, isto é, no próprio capital, mas só funciona, reproduzindo e alargando
esses limites a uma escala sempre mais vasta. E é realmente a potência do
capitalismo, que sua axiomática não seja nunca saturada, que ele seja sempre capaz
de acrescentar um novo axioma aos axiomas precedentes. (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 318)

É por decodificação e axiomatização dos fluxos que o capitalismo se expande

criando novas imagens flutuantes nas máquinas técnicas, científicas, sociais etc. São

movimentos de contínua desterritorialização por um lado e de reterritorialização por

outro. É assim que antigos códigos são decodificados e se tornam novas territorialidades.

No “O Anti-Édipo”, são analisadas as sociedades primitivas, as despóticas e a

capitalista. Esta análise não é feita num nível evolutivo, mas mostra como as relações

eram estabelecidas de modo diferente das relações edipianas do sistema capitalista. Para
45

os autores, na sociedade primitiva e despótica não existe Édipo tal como o proposto pela

psicanálise. Mesmo que de um modo totalmente diferente, os elementos da sociedade

primitiva e da despótica podem ser vistos na apropriação capitalística do desejo. Santos

(2000) mostra como Deleuze e Guattari perceberam os processos de desterritorialização

e reterritorialização que o capitalismo pode produzir através de pontos de articulação

entre as codificações primitivas e sobrecodificações despóticas. Trata-se de uma nova

inteligência política que opera com antigas categorias desfiguradas pelos movimentos de

desterritorialização e reterritorialização.

A finalidade do capitalismo não difere de outros sistemas no que diz respeito à

necessidade de controle social, mas seu modo de operação é inovador quanto à

capacidade de misturas, de re-apropriações de antiga s fórmulas, de criação de

pseudocódigos, de esquadrinhamento do socius.

Se é verdade que a função do Estado moderno é a regulação dos fluxos


decodificados, desterritorializados, um dos principais aspectos dessa função consiste
em re-territorializar, para impedir os fluxos decodificados de escaparem por todas as
extremidades da axiomática social. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 328)

O capitalismo apresenta um modo de produção esquizofrênico, que possibilita

infinitas manobras de decodificação dos fluxos, mas, ao mesmo tempo, recodifica, de um

modo ou de outro, a partir de quantidades abstratas (axiomatização). Esses são os três

elementos de manobra do desejo nas sociedades modernas: desterritorialização,

axiomática e reterritorialização. Nos sistemas primitivo e despótico não existe dicotomia

entre produção social e produção humana deste social. A família, por exemplo, é co-

extensiva ao social, sendo as relações de parentesco determinantes nas relações sociais.

Já no capitalismo, a família será privatizada, sendo desinvestida pelo Estado, tornando-se


46

autônoma. Não são mais as relações de aliança que constituem as relações sociais, mas o

capital e a própria atividade produtora.

Essa colocação fora do campo social da família é também sua maior chance social.
Porque é a condição sob a qual todo o campo social vai poder aplicar-se à família.
As pessoas individuais são primeiramente pessoas sociais, quer dizer, funções
derivadas das quantidades abstratas; tornam-se concretas elas mesmas na colocação
em relação ou na axiomática dessas quantidades, na sua conjunção. [...] O
capitalismo preenche assim com imagens seu campo de imanência... (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 336)

O capital torna-se o corpo pleno do social e é a partir dele que as imagens serão

construídas. Ele está em primeiro plano, e a família será o lugar de rebatimento dessas

imagens. A família como microcosmo torna-se a aplicação da axiomática social. É

quando surge Édipo a partir de operações de rebatimento das imagens sociais de primeira

ordem. Édipo, com todas as suas imagens privadas, é o ponto de chegada das forças

sociais primeiras. A triangulação edipiana é uma formação secundária só possível em um

sistema que cria a separação entre privado-público. A força dessa dicotomia está

presente na própria noção esfacelada de sujeito – sujeito de enunciação (pessoa privada),

e sujeito do enunciado (pessoa social). Édipo nasceria no sistema capitalista onde ocorre

a aplicação das imagens sociais de primeira ordem às imagens familiares privadas de

segunda ordem.

Ele é nossa formação colonial íntima que responde à forma de soberania social.
Somos todos pequenas colônias e é Édipo que nos coloniza. Quando a família deixa
de ser uma unidade de produção e de reprodução, quando a conjunção encontra nela
o sentido de uma simples unidade de consumo, é pai-mãe que consumimos.
(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 337)

A proposta desta pesquisa não é aprofundar a análise de todas estas mudanças,

mas não há como deixar de mencioná-las se se quer propor um Édipo produzido a partir

de condições sociais determinadas que sujeita a produção desejante. Uma série de


47

migrações do desejo ocorreu até se chegar ao Édipo psicanalítico. No capitalismo uma

nova relação com o desejo surgirá ligando-o a uma interioridade. Nietzsche chama de

“má-consciência” esta introdução da latência no desejo. Daí surge a produção modo-

indivíduo. Espaços foram produzidos e marcados, e toda uma relação entre um fora e um

dentro foi instaurada. Autores como Foucault, Lapassade, Althusser não se cansaram de

mostrar como uma nova subjetividade surge a partir de estratificações das instituições. A

instituição familiar, ao se privatizar, torna-se lugar de retenção e de rebatimento de todas

as determinações sociais – “papai-mamãe se aplica a tudo”. É neste cenário que a

psicanálise aparece, não se retirando do processo, mas engendrando e deixando-se

engendrar pelas decodificações e axiomatizações dos fluxos operadas pelo capitalismo.

Deleuze e Guattari afirmam que a psicanálise só funciona nas axiomáticas produzidas

por esta formação social, sobretudo a partir das novas configurações familiares. Freud

conseguiu reduzir Édipo à família exatamente por encontrar terreno fértil para isso. Se a

família não tivesse passado por todas essas mudanças, não seria possível rebater o desejo

na triangulação edipiana, torná-lo o centro da verdade humana. Freud cria o grande

teatro íntimo e, com isso, a ilusão de separação entre desejo-indivíduo e desejo-social. O

desejo como produção é, ao mesmo tempo, desejante e social e, de acordo, com Deleuze

e Guattari, não pode nunca se prender ao teatro intimista da representação.

Na psicanálise, a criança vem primeiro, enquanto que para Deleuze e Guattari

(1976, p. 347) Édipo nasce na cabeça do pai: “Édipo é primeiro uma idéia de paranóico

adulto, antes de ser um sentimento infantil de neurótico”.

Isto significa afirmar que os investimentos sociais são anteriores aos

investimentos familiares. O desejo é em primeiro lugar investimento de um campo


48

social: “Nunca o adulto é um por-depois da criança, mas ambos, na família, visam às

determinações do campo no qual ela e eles se banham simultaneamente” (DELEUZE e

GUATTARI, 1976, p. 349).

Não há dúvida de que o pai interfira no inconsciente da criança, mas não por

uma transmissão familiar expressiva que se faça de geração em geração. O pai funciona

como um agente de máquina e não como uma reprodução mítico-trágica, filogenética,

encarnada na triangulação familiar. “Por que ter concedido à representação mítica e

trágica esse privilégio insensato? Por que ter instalado formas expressivas, e todo um

teatro onde havia campos, oficinas, fábricas, unidades de produção?” (DELEUZE e

GUATTARI, 1976, p. 377).

De um lado, temos a representação familiar mítica e trágica, remetida à

natureza subjetiva e universal do desejo (libido) e, de um outro, a produção desejante e

as determinações sociais objetivas. Esta essência subjetiva que aparece na psicanálise na

forma de libido é característica e efeito do sistema capitalista que, ao mesmo tempo em

que “descobre” a essência abstrata e subjetiva do desejo e do trabalho, separa os dois,

através de uma máquina repressiva, alienando o desejo do trabalho. Para Deleuze e

Guattari é neste sentido que podemos afirmar a proximidade da psicanálise com o

sistema capitalista, pois os dois supõem os movimentos esquizofrênicos do desejo, suas

desterritorializações, seus fluxos-esquizas, seus cortes-fluxos, mas o aprisiona pelas re-

territorializações subjetivas e privadas, pelas figuras serializadas e expressivas. O

capitalismo faz da interioridade uma axiomática e a aplica à família privatizada, sendo

esta a mesma operação da psicanálise quando liga o desejo às representações subjetivas.


49

Imagens, nada mais que imagens. O que fica no final é um teatro íntimo e familiar, o
teatro do homem privado, que não é mais nem produção desejante nem representação
objetiva. O inconsciente como cena. Todo um teatro posto no lugar da produção, e
que a desfigura ainda mais do que podiam fazê-lo a tragédia e o mito reduzidos aos
seus únicos recursos antigos. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 386)

Édipo é uma reterritorialização feita por uma operação antropomórfica do

desejo que distribui figuras na unidade familiar. Édipo é uma máquina gregária que se

constituiu como último território do homem europeu. Com a edipianização o

inconsciente pode ser colonizado, pois ele é por natureza uma máquina subversiva que

está sempre escapando por todos os lados. Está-se diante de uma reprodução social

primeira que se “apavora” com a capacidade de produção de sínteses disjuntivas 8 do

inconsciente, que tenta capturá-la. Édipo também seria o grande significante despótico

que age como um arcaísmo preservado.

Deleuze e Guattari retornam a Reich afirmando que sua percepção da relação

entre psicanálise e repressão social é correta, porém, limitada por estabelecer esta relação

em termos ideológicos e por fazer distinção entre economia política e libidinal: “Não

menos do que o aparelho burocrático ou militar, a psicanálise é um mecanismo de

absorção da mais-valia; e ela não o é do exterior, extrinsecamente, mas sua própria

forma e sua própria finalidade estão marcadas por essa função social” (DELEUZE e

GUATTARI, 1976, p. 396).

São os movimentos de desterritorialização e reterritorialização que permitem

um deslocamento fazendo com que Édipo apareça como uma representação montada

pelas próprias máquinas repressivas do sistema capitalista. São movimentos artificiais

8
“A não-relação torna-se uma relação, a disjunção, uma relação” (ZOURABICHVILI , 2004, p. 104).
50

dos fluxos de desejo. A psicanálise e outros artifícios nos fazem crer quando não há mais

nada para crer, depois do repúdio às crenças em uma territorialidade privada.

Deleuze e Guattari deixam claro que não há desterritorialização da máquina

desejante sem uma reterritorialização, uma é o avesso da outra. Estes são movimentos

que ocorrem juntos e que desembocam sempre em uma representação. Não existe

desterritorialização em si, portanto, só pode ser constatada pelos seus indícios de

representação territorial. O que é mais intrigante de se detectar nessas idéias é a

afirmação de Édipo; sim, ele existe, mas como uma ficção coletiva. Ele não é nem uma

invenção da psicanálise nem, muito menos, uma ilusão de Freud. Ele está na máquina

social, sendo capaz de operações nos níveis conscientes, pré-conscientes, inconscientes.

Mas isto não significa uma operação do inconsciente legítima.

A grande diferença entre a proposta esquizoanalítica de Deleuze-Guattari

(1976, p. 401) e a psicanálise é a seguinte: “A psicanálise se fixa sobre os representantes

imaginários e estruturais de re-territorialização, enquanto a esquizoanálise segue os

índices maquinísticos de desterritorialização”.

O capitalismo conseguiu se tornar uma grande máquina repressiva, sobretudo,

ao instaurar a distância não só entre os regimes das produções subjetivas e sociais, como

também entre as identidades de natureza entre o molar e o molecular. Deleuze e Guattari

não negam as diferenças de regime entre as máquinas desejantes e as sociais, mas

afirmam uma identidade de natureza entre os conjuntos molares e os moleculares. Não

faz o menor sentido para esses autores fazer a distinção entre o molar e molecular pela

natureza dos investimentos desejantes, pois eles aparecem tanto no molar quanto no

molecular a tal ponto que:


51

Uma seqüência de desejo se acha prolongada por uma série social, ou, então, uma
máquina social tem nas suas engrenagens peças de máquinas desejantes. As
micromultiplicidades desejantes não são menos coletivas que os grandes conjuntos
sociais, propriamente inseparáveis e constituindo uma única e mesma produção.
Desse ponto de vista, a dualidade dos pólos passa menos entre o molar e o molecular
do que no interior dos investimentos sociais molares, porque de qualquer maneira as
formações moleculares são investimentos como estes. (DELEUZE e GUATTARI,
1976, p. 431-432)

Entre o molar e o molecular existe uma relação disjuntiva inclusiva, sendo que

onde está um, está o outro. A natureza dos dois conjuntos em termos de investimento de

um campo social é a mesma. Mas os regimes são diferentes. O conjunto molar forma

unidades, totalizações dos conjuntos moleculares de acordo com as leis dos grandes

números (espécies, estruturas sociais, organismos...). O segundo conjunto, o molecular, é

definido, a partir de sua tendência revolucionária, a-significante e nomádica. Nos

conjuntos molares são os corpos plenos que determinam os diferentes modos do socius:

terra (primitivo); déspota (bárbaro); capital (capitalismo). As metas e as intenções são

fixadas por estas formações sociais. Estas determinam o modo pelo qual homem-

natureza serão constituídos, a partir de pressupostos que estabelecem a agregação das

formações moleculares em condições socialmente determinadas. Assim, a questão é

menos uma oposição objetivo-subjetivo, do que investimentos libidinais inconscientes de

desejo em oposição aos investimentos pré-conscientes de interesse, de classes...

A distinção não está aí; a distinção a fazer passa na própria infra-estrutura econômica
e em seus investimentos. A economia libidinal não é menos objetiva que a economia
política, e a política não é menos subjetiva que a libidinal, embora as duas
correspondam a dois modos de investimento diferentes da mesma realidade social.
Há um investimento libidinal inconsciente de desejo que não coincide
necessariamente com os investimentos pré-conscientes de interesse, e que explica
como estes podem ser perturbados, pervertidos na ‘mais sombria organização’, sob
qualquer ideologia. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 438)

Voltamos novamente à definição de investimentos libidinais para tentar

compreender melhor suas características. Deleuze e Guattari fazem a distinção entre


52

investimentos libidinais de ordem inconsciente e os pré-conscientes de interesse. Os

investimentos libidinais não incidem sobre as metas ou fins sociais, porque eles são

anteriores e só podem incidir sobre os fluxos que passam pelo corpo pleno de cada

socius. Estes, os fluxos, são os verdadeiros objetos do desejo. O desejo como

investimento libidinal é parte da infra-estrutura social e não de sua ideologia. Ele está

sempre na produção como produção social e esta nele como produção desejante. O

desejo aparece em dois tipos de grupos: grupo sujeitado e grupo-sujeito. Tanto em um

quanto no outro não se trata de pessoas e, sim, de investimentos que coexistem. Trata-se

de uma questão de uso dos investimentos libidinais e, neste sentido, faz pouca diferença

entre um reformista, fascista ou revolucionário. No grupo sujeitado (máquina social),

existem investimentos de interesse pré-consciente que, mesmo conseguindo o poder

(aspecto revolucionário), continuam esmagando a produção desejante. No grupo-sujeito

(máquina desejante) existem investimentos libidinais revolucionários que fazem o desejo

entrar na máquina social provocando rupturas, onde não há hierarquias ou superego de

grupo. É importante frisar a coexistência dos dois tipos de grupo, ou seja, um grupo

sujeitado em algum momento pode se tornar grupo-sujeito e vice-versa. A psicanálise se

situou no primeiro tipo de grupo, embora, em seus primeiros passos, tenha funcionado

como um legítimo grupo-sujeito. Para a esquizoanálise de Deleuze e Guattari (1976, p.

444), o importante é: “[...] atingir os investimentos de desejo inconsciente do campo

social, enquanto eles se distinguem dos investimentos pré-conscientes de interesse, e

podem não apenas contrariá-los, mas coexistir com eles em modos opostos”.

Isto não é tarefa fácil, pois a situação sempre se mostra de modo muito

embaralhada. No campo da sexualidade, que é o campo privilegiado neste trabalho, a


53

situação não é menos complexa, e há urgência em denunciar os princípios repressivos

que se mostram na forma edipiana e que estrangulam a possibilidade de manifestação

dos fluxos de sexualidade. São fluxos que não se deixam edipianizar e que, ao investirem

o campo social, “delira a própria História”. A libido está no entrecruzamento dos fluxos

que atravessam os continentes, as raças, que não figuram nada, designando apenas zonas

de intensidade libidinal sobre o corpo sem órgãos.9

É deste modo que Deleuze e Guattari percorrem alguns dos estudos clínicos de

Freud mostrando o quanto as diferenças sociais foram negligenciadas, o quanto os

investimentos sexual-sociais da libido se tornaram dependentes de uma relação edipiana

familiar e, com isso, toda uma possibilidade de análise das relações com o exterior foram

impedidas. O fechamento produzido pela psicanálise fez com que a visão da libido em

seu aspecto não familiar ficasse perdida. A libido como índice do não humano no sexo

pode ser inserida no campo social e ultrapassar a visão familialista. O que está em jogo é

a afirmação de uma libido órfã que investe e contra-investe primordialmente um campo

social como índice das relações deste mesmo campo: “Um amor não é reacionário ou

revolucionário, mas é o índice do caráter reacionário ou revolucionário dos

investimentos sociais da libido” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 448).

Isto significa afirmar, ainda, a inexistência de papéis sociais autônomos e a

primazia dos investimentos libidinais do campo social sobre o familiar. A libido não

precisa de mediadores, pois ela investe diretamente o social. O pensamento oposto da

psicanálise serve para neurotizar o indivíduo pela edipianização, cujo resultado é a

repressão social aplicada à família, sem a qual o sistema capitalista teria muita

9
Este conceito será analisado nos capítulos seguintes.
54

dificuldade em se expandir, sobretudo em sua árdua tarefa de fechar as aberturas para as

linhas de fuga dos fluxos. O capitalismo conseguiu formar um conjunto gregário sob

forte sujeição por meio de um campo de imanência que está sempre se alargando,

multiplicando seus axiomas e produzindo imagens que fazem seus elementos desejarem

sua própria repressão (imperialismo). E sobre isto o próprio Guattari (1987, p. 26) alerta:

“os modelos repressivos são tão virulentos nos psicanalistas quanto nos militares”.

A mais-valia é o primeiro aspecto do campo de imanência do capitalismo

aumentando constantemente seus limites. Trata-se de uma máquina louca, que está

sempre alimentando-se dos fluxos decodificados e desterritorializados, mas que os faz

passar por uma axiomatização permanente produzindo as reterritorializações necessárias

à sua sobrevivência. A arte maior desse sistema é implantar a falta no desejo e, assim,

exacerbar a produção.

A tarefa da esquizoanálise é justamente descobrir a natureza dos investimentos

libidinais. Ela não busca valer-se pela revolução, mas, investigar:

[...] quais são os índices maquinísticos, sociais e técnicos, sobre um socius, que se
abrem sobre as máquinas desejantes, que entram nas peças, engrenagens e motores
destas, tanto quanto elas fazem com que estas entrem nas suas próprias peças,
engrenagens e motores. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 483)

2.2 O INCONSCIENTE MAQUÍNICO E A PRODUÇÃO DESEJANTE

2.2.1 REPÚDIO À NOÇÃO DE FALTA E AFIRMAÇÃO DA PRODUÇÃO

Serão analisadas duas definições de inconsciente, contrapostas de modo

enfático no pensamento deleuzo-guattariano. A primeira é a da psicanálise que, segundo

os autores, interpreta o inconsciente de modo neurótico-edipiano, estrutural, imaginário,


55

molar, ideológico, simbólico e expressivo. A outra é a da esquizoanálise que pensa o

inconsciente a partir de movimentos esquizofrênicos, não-figurativos, concreto,

maquinístico, molecular, material e produtivo.

Desde Platão que a noção de desejo é concebida de modo idealista, ao ser

suposto como aquisição. Daí surge a relação entre desejo e falta. Kant, segundo os

autores em estudo, concebeu o desejo como produção quando o definiu como “a

faculdade de ser por suas representações causa da realidade dos objetos destas

representações” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 42). Mas, na verdade, não há

mudança essencial entre as duas formas de conceber o desejo, pois, para se conceber o

desejo como produção, ainda se apóia na concepção clássica de falta ao se afirmar sua

realidade psíquica. Isto significa que, para Kant, o desejo era capaz de produzir seu

objeto, mas de modo irreal, fantasmado. Deleuze e Guattari concluem que para Kant “a

realidade do objeto enquanto produzido pelo desejo é, pois, a realidade psíquica” (1976,

p. 42). O desejo seria produção de fantasma em virtude da ausência do objeto. Este

princípio idealista está em total concordância com o proposto pela psicanálise. O desejo

como falta do objeto real produz um imaginário que duplica a realidade. É o desejo

concebido como encenação, e, nesta lacuna entre o que é encenado e o objeto, surge a

necessidade como base do desejo. Deleuze e Guattari fazem duras críticas a esta noção

de desejo como falta produzida por uma realidade psíquica. Eles afirmam: ao desejo

nada falta! Não existiria uma relação de falta entre sujeito e objeto, até porque, para eles,

não existiria realidade psíquica. O desejo só pode produzir real.

O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os


fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre
dele, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do
inconsciente. Ao desejo não falta nada, a ele não falta seu objeto. É antes o sujeito
56

que falta ao desejo, ou ao desejo que falta um sujeito fixo; só há sujeito fixo pela
repressão. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 43-44)

Enquanto a psicanálise não se cansou de atribuir uma falta ao centro do sujeito,

Deleuze e Guattari apostaram na possibilidade do ser objetivo. O desejo e o objeto se

dão numa relação de máquina de máquina. O desejo é potência produtora e nunca uma

falta. A noção de inconsciente como produção repele a negatividade, a falta como

constitutiva do desejo: “O desejo é sempre o modo de produção de algo, o desejo é

sempre o modo de construção de algo” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 216).

É um certo tipo de formação social que instaura a falta como fenômeno

subjetivo10 . Portanto, a falta não existe antes do social, nem muito menos é o que

instaura o sujeito. Como já foi mostrado, no pensamento de Deleuze e Guattari (1976, p.

46) não há separação entre produção social e produção de fantasma, pois: “Na verdade, a

produção social é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas”.

Não haveria operação psíquica responsável pela produção do desejo, no sentido descrito

na psicanálise, e mesmo as forças mais repressivas são produzidas pelo desejo. É

notável, mas o desejo pode ser também desejo de repressão, já que isso implica uma

produção que é real. Ainda que a repressão aja sobre a produção desejante, isto não

significa uma separação entre desejo e social, pois: “O desejo produz real, ou a produção

desejante não é outra coisa senão a produção social” (1976, p. 47). O desejo, mesmo

sendo revolucionário, pode se ligar às operações molares e constituir um estado real de

investimento de uma determinada ordem social. Os fantasmas são sempre secundários e

de grupo. Neste sentido, pode-se afirmar que o desejo tanto opera em regimes

10
Sabe-se que certos tipos de povos nômades da Mongólia não reconhecem o conceito de falta por considerarem
apenas o que possuem e o que fazem. A forma de concepção produtiva destes povos parece se aproximar do que
Deleuze e Guattari querem passar com a noção de desejo como produção.
57

moleculares como nos molares. Molar e molecular estão numa relação intrínseca e o

desejo percorre os dois campos. O que há na relação dessas máquinas não é uma

diferença de natureza do desejo, mas uma diferença de regimes que dizem respeito a

relações de grandeza. O regime molar (as máquinas técnicas/sociais) funciona por meio

de organizações não desarranjadas, enquanto o regime molecular (as máquinas

desejantes) funciona a partir de um processo de desarranjo constante. Parece mesmo a

relação descrita por Lapassade (1977), entre o instituído e instituinte. As máquinas

desejantes colocam sempre em perigo os sistemas molares pelas rupturas, pelas quebras

que produz. Essa relação está presente em todos os campos sociais: na literatura, na

música, na pintura, nos sistemas econômicos, filosóficos, religiosos, políticos... É um

movimento universal e contingente.

Para Deleuze e Guattari (1976, p. 140-143), importa pensar como funcionam as

máquinas desejantes.

O inconsciente não coloca nenhum problema de sentido, mas unicamente problemas


de uso. A questão do desejo não é ‘ o que isto quer dizer?’ Mas como isto funciona.
Como funcionam as máquinas desejantes, as suas, as minhas, com que falhas
fazendo parte de seu uso, como é que elas passam de um corpo a outro, como se
aferram sobre o corpo sem órgãos, como confrontam seu regime com as máquinas
sociais.

A psicanálise, ao invés de colocar o desejo na ordem da produção, colocou-o na

ordem da representação, reduzido a crenças de mitos e tragédias vividos na estrutura

familiar. A psicanálise estudou muito o inconsciente, tanto que Deleuze e Guattari (1976,

p. 40-41) chegam a afirmar que ela até mesmo o descobriu, mas esses estudos levaram a

um esmagamento das produções do desejo.

A grande descoberta da psicanálise foi a produção desejante, as produções do


inconsciente. Mas, com Édipo, essa descoberta foi logo ocultada por um novo
idealismo: no lugar de inconsciente como usina colocou-se um teatro antigo; no
58

lugar das unidades de produção colocou-se a representação; no lugar do inconsciente


produtivo colocou-se um inconsciente que só podia exprimir-se (o mito, a tragédia, o
sonho...).

Não há dúvida de que a psicanálise tenha funcionado no início como uma

verdadeira “máquina infernal” abalando todo um suposto conhecimento da mente ao

revelar as unidades de produção do inconsciente, mas não tardou em personificar essas

unidades: “[...] uma encenação teatral que substitui as verdadeiras forças produtivas do

inconsciente por simples valores representativos” (GUATTARI, 1992, p. 26).

Na verdade, Freud admitiu a positividade do inconsciente quando o definiu

como uma dimensão psíquica que não reconhece a negação nem a contradição, e que só

sabe desejar. Mas o próprio Freud perverteu as propriedades do inconsciente ao torná-lo

antropomórfico, representativo e reduzido aos fantasmas da castração. O inconsciente

sofre uma verdadeira domesticação quando reduzido aos efeitos edipianos em sua forma

individuada. Porém, não satisfeito, Freud afirma que Édipo institui não só o ser humano

no plano individual como também institui a própria civilização: “É sobre uma ausência

no âmago do gozo humano que a civilização se edificou” (MILLOT, 1987, p. 35).

Freud, em suas últimas obras, como em “O mal-estar na civilização” (1930)

apela cada vez mais para uma apologia do desejo ligado à falta e, conseqüentemente, à

culpa, para além de todo determinismo social. Édipo é suposto como um legado genético

constitutivo tanto do indivíduo quanto do social. Em “Totem e tabu” (1913), Freud tenta

explicar a origem da antinomia entre desejo e civilização e descobre que o

malthusianismo não seria suficiente para impor este antagonismo, recorrendo assim à

hipótese filogenética como determinante da renúncia que todo indivíduo tem de fazer

diante do desejo e que a própria civilização também teve que fazer durante sua evolução.
59

Em “História de uma neurose infantil” (1918), no caso clínico conhecido como o

homem dos lobos, Freud conclui que os sintomas de seu paciente são oriundos de

experiências da primeira infância acompanhadas de fantasias típicas, as quais estão

presentes em qualquer ser humano, pois são esquemas filogenéticos determinantes de

seu comportamento. Lacan recorrerá à ordem simbólica, que já existe antes mesmo de a

criança nascer, para explicar o fenômeno edipiano como um fenômeno que irá constituir

o sujeito pela linguagem, sem ter que recorrer à fixidez de um comportamento instintivo:

“É através do complexo de Édipo que a criança atinge um mundo especificamente

humano, ou seja, em termos lacanianos, a ordem simbólica” (MILLOT, 1987, p. 77).

Rolnik (2000) examina a relação desejo/falta feita pela psicanálise,

evidenciando a afirmativa de Deleuze e Guattari, quando estes, com muita dose de

humor, alegam que tudo isto não passa de coisa de “padre”. É a partir de um Ideal

transcendente que a concepção do desejo ligado à falta pode ser feita, que consiste,

justamente, numa operação onde o desejo é retirado de seu campo de imanência. O

campo de imanência do desejo está relacionado à noção de corpo sem órgãos, que será

estudada mais adiante, a qual permite que o desejo seja definido como processo de

produção.

Para Deleuze e Guattari, o desejo não carece de nada, não porque possa atingir a
plenitude de uma satisfação, mas porque a falta só pode ser pensada do ponto de
vista de um sujeito, que se orienta pela cartografia de um Ideal transcendente. É esse
sujeito que, ao ver sua figura desestabilizar-se pelos movimentos do desejo, o
interpretará como sinal de uma carência de completude. No entanto, se tiramos de
cena o Ideal transcendente e examinamos esses mesmos movimentos com a escuta
sintonizada no corpo sem órgãos, aquilo que para o sujeito é falta revela-se como
excesso de singularidades que transbordam e desmancham sua figura, levando-a a
tornar-se outra, se o processo seguir seu curso. (ROLNIK, 2000, p. 458)
60

As considerações feitas aqui por Rolnik serão revistas ao final deste trabalho

quando for abordado o tema esquizoanálise e clínica, sobretudo como novas

possibilidades da prática clínica. No entanto, o que é importante deixar claro na obra de

Deleuze e Guattari, e isso é feito muito bem por Rolnik, é a maldição que foi lançada

sobre o desejo quando capturado numa armadilha id entitária da castração, culposa e

concebida como altamente perigosa para a sanidade mental. Trata-se da colocação do

desejo na esfera do impossível gozo. Enfim, para que o indivíduo entre na cultura, ou

para que a sociedade se instaure, é necessária a renúncia ao gozo.

O que está em jogo também nesta forma de concepção do desejo é a sua

associação ao prazer que, para Deleuze e Guattari, faz parte do sacrifício ao qual foi

submetido. Para Lacan, a entrada no simbólico supõe a falta, ou seja, não há desejo antes

da lei. A maldição é que o desejo é definido como falta. O gozo é impossível porque

pretende suprir a falta, o que seria desfazer a própria condição humana – estamos

condenados para sempre. O prazer, por sua vez, é algo exterior porque é almejado pelo

desejo como supressão da falta, não é algo imanente ao próprio desejar, definido como

falta. Mas, para Deleuze e Guattari, isso continua sendo “coisa de padre”, pois o desejo

definido como busca de prazer é submetido a uma exterioridade alienante da ordem de

uma realidade natural e espontânea.

A figura mais recente do padre é o psicanalista com seus três princípios: Prazer,
Morte e Realidade. Sem dúvida, a psicanálise mostrou que o desejo não se submetia
à procriação nem mesmo à genitalidade. Foi este o seu modernismo. Mas ela
conservava o essencial, encontrando inclusive novos meios para inscrever no desejo
a lei negativa da falta, a regra exterior do prazer, o ideal transcendente do fantasma.
(DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 16)

É preciso, de acordo com a leitura de “O Anti-Édipo” e de “Mil Platôs”,

desconfiar dos conceitos encontrados na psicanálise e articulá-los com toda uma


61

construção moral, política, econômica, histórica, filosófica, sobretudo do conceito de

desejo aqui examinado. O desejo sempre foi uma questão política que a psicanálise, com

seus aliados, fez questão de desarticular pelas operações de subjugação. Trata-se, para

Deleuze e Guattari, de lançar o desejo em sua processualidade sempre construtivista, o

que é muito diferente de um espontaneísmo.

Machado (1990, p. 7), examinando as obras de Deleuze, faz menção à definição

psicanalítica de desejo, criticada em “O Anti-Édipo”, reforçando o que vem sendo

apresentado até agora:

L’anti-Oedipe é uma crítica à psicanálise, por ela reduzir e até mesmo abolir ou
destruir o desejo ao ligá-lo intrinsecamente à representação, à lei, à falta, à privação.
Para Deleuze, ao contrário, o desejo nem se liga à lei nem se define por uma falta
essencial, isto é, em vez de representação, é máquina, processo de produção –
processo de autoprodução do inconsciente – que não só não é interior a um sujeito,
como também não tende para um objeto.

Machado alerta para o descuido de uma conclusão precipitada que acha que o

“O Anti-Édipo” é uma recusa total da psicanálise. Isto não é verdade, pois, em vários

momentos, não só dessa obra, mas em muitas outras, a genialidade dos primórdios da

psicanálise é ressaltada, como também o seu valor como máquina analítica. Mas a

psicanálise, como qualquer outra abordagem, deve ser levada a uma autocrítica, pois,

quando isto não é feito, corre-se o risco de cair em armadilhas que naturalizam,

cristalizam e alienam os conceitos e a visão de mundo. É neste sentido que a filosofia se

torna uma grande aliada no estudo da fabricação dos conceitos e na criação de outros.

Trata-se de uma concepção de filosofia como criação de conceitos em oposição à

filosofia reflexiva que sempre esteve em busca de uma causalidade e sua finalidade.

Deleuze e Guattari (1997) acreditavam que entre a filosofia, a arte e a ciência poderia

haver uma relação de ressonância altamente produtiva para o conhecimento, até porque,
62

para eles, não há como separar em instâncias as experiências e o conhecimento dessas

experiências, formulando daí verdades transcendentes destituídas de qualquer análise

crítica de suas condições de surgimento. Deleuze e Guattari lutaram para devolver ao

pensamento seu aspecto imanente, contrapondo o transcendental ao transcendente e,

como escreveu Alliez (2000, p. 13), opondo-se:

[...] a toda forma dada no campo da consciência, à transcendência do sujeito, assim


como à do objeto. Uma imanência absoluta, ontológica, e não fenomenológica ou
crítica, que impede de conceber o campo transcendental à imagem e semelhança do
que se supõe que ele funda, e que, exprimindo sua determinabilidade como uma vida
singular em que a indeterminação da pessoa supõe a determinação pré-individual do
singular, exclui também toda transcendência do ser – ainda que imanente a uma
subjetividade transcendental.

O que se recusa é uma visão de desejo relacionada a qualquer transcendência

ou interioridade como essência da subjetividade. Deleuze e Guattari questionam os

artifícios e conseqüentes efeitos da filosofia reflexiva sobre o pensamento ocidental

reduzindo a subjetividade aos imperativos de uma idealidade, presentes também no

pensamento de René Descartes, um dos maiores filósofos da representação.

É com Nietzsche, Espinosa, Bergson, Foucault e tantos outros de outras áreas

do conhecimento, que esses dois autores irão criar uma nova concepção de desejo em seu

uso imanente e impessoal. Trata-se de colocar o desejo como constitutivo de um

diagrama formado por linhas irredutíveis a qualquer desígnio de uma transcendência do

sujeito ou do objeto de ordem teológica, estrutural, genética, política, evolucionista etc.

O desejo é máquina e, como tal, só pode ser pensado a partir de um plano de imanência

de um corpo sem órgãos, onde são distribuídas as intensidades pré-individuais e

impessoais que animam a vida. Mas esses conceitos serão vistos no próximo capítulo.
63

Não se trata, portanto, de nenhum sentido pré-determinado ou de algum

elemento que comporta a negatividade em sua definição pela necessidade ou imagem de

uma falta. É necessário desprender-se de uma imagem do pensamento que construiu um

plano fechado de lógicas dadas para a noção de desejo e construir uma outra que tem por

princípio a lógica das multiplicidades e das intensidades. Parafraseando Espinosa, cabe

se perguntar, ao invés do que pode um corpo, o que pode um desejo? Eteríamos como

resposta: tudo é afecção, tudo diz respeito ao poder e à potência de ser afetado. Mas isto

não significa que o desejo seja uma energia indiferenciada ou bestial que precisa ser

domada para que uma lei possa ser instaurada estabelecendo, assim, o seu controle. Para

Guattari, esta concepção de desejo é amplamente compartilhada por várias teorias, mas

não tanto pelos etólogos em seus estudos sobre o comportamento animal.

Até as sofisticadas teorias estruturalistas desenvolvem a premissa de que se deve


aceitar a castração simbólica, para que não só a sociedade seja possível, mas também
a própria fala, o próprio sujeito. Penso que essa concepção do desejo corresponde, e
muito bem, a uma determinada realidade: é o desejo tal como é construído,
produzido pelo CMI* . É o CMI em sua desterritorialização, que produz essa figura
bestial do desejo. Aliás, essa imagem nem é apropriada, pois a economia animal do
desejo não corresponde tampouco a esse modelo. Basta ler um pouco o testemunho
dos etólogos para ver que o instinto, a pulsão, o desejo – pouco importa o nome que
se use – no reino animal não tem absolutamente nada a ver com uma pulsão bruta.
Ele corresponde, ao contrário, a modos de semiotização altamente elaborados,
espécies de micropolíticas do espaço e de inter-relações entre os animais, as quais
implicam toda uma estratégia e até, segundo os etólogos, uma certa economia
estética. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 217)

Para combater estas teorias reacionárias do desejo, Deleuze e Guattari

recorrerão à noção de corpo sem órgãos para explicar o funcionamento das máquinas

desejantes e para afirmar sua positividade.

*
Sigla utilizada por Guattari para se referir ao Capitalismo Mundial Integrado.
64

2.2.2 CORPO SEM ÓRGÃOS E O PRINCÍPIO DE IMANÊNCIA DO DESEJO

O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o
fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações. A psicanálise faz o contrário:
ela traduz tudo em fantasmas, comercializa tudo em fantasmas, preserva o fantasma e
perde o real no mais alto grau, porque perde o CsO. (DELEUZE e GUATTARI,
1999, p. 12)

Para que se possa fugir das analíticas naturalizantes e repressivas do desejo é

necessário pensar a noção de inconsciente, proposta por Deleuze e Guattari, a partir da

idéia de usina. Esta forma de pensar o inconsciente possibilita refutar o modelo

reacionário da psicanálise. Isso não significa jogar fora os textos freudianos, mas

questionar o que foi feito deles, denunciar seus equívocos, suas armadilhas. Trata-se de

analisar o que foi feito da sexualidade no campo psicanalítico e como ela pode ser

considerada a partir de outras formas de pensamento. Segundo Guattari e Rolnik (2005),

não se deve fazer uma teoria geral das elaborações teóricas da psicanálise, aplicando

suas idéias a tudo que vemos, escutamos ou sentimos, considerando que isto implicaria

perderem-se de vista novas cartografias diante de situações inéditas, sobretudo no campo

da clínica. Ás vezes é necessário “engavetar” certas teorias para que encontremos outras

possibilidades de cartografar. Será que não foi exatamente isto que Freud fez em muitos

momentos de criação, indaga Guattari (GUATTARI e ROLNIK, 2005)?

Freud, sem dúvida, vislumbrou as intensidades do desejo em suas

multiplicidades e metamorfoses. Freud viu o fora do desejo. Mas tal vislumbre não durou

muito para logo cair em um fechamento mortificante, intimista, binário, representativo

de complexos codificados na lógica edipiana como modo de constituição da

subjetividade. É com a noção de corpo sem órgãos (CsO) que a idéia de sujeito será

revista, colocando-o na posição de resíduo, de borda: “Ele não está no centro, ocupado
65

pela máquina, mas na borda, sem identidade fixa, sempre descentrado, concluído a partir

dos estados pelos quais passa” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 36).

A tentativa de sempre querer ligar Édipo a tudo é totalmente incompatível com

as forças que operam pelas máquinas desejantes. Estas não reconhecem figuras

familiares – “são estranhas ao tecido edipiano”. Trata-se de pensar uma nova forma de

produção do inconsciente:

Mas, precisamente, nenhuma operação binária se produz aqui, que rebata a produção
sobre representantes; nenhuma triangulação aparece nesse nível, que refira os objetos
do desejo a pessoas globais, nem o desejo a um sujeito específico. O único sujeito é
o próprio desejo sobre o corpo sem órgãos, enquanto ele maquina objetos parciais e
fluxo, extraindo e cortando uns pelos outros, passando de um corpo a outro, segundo
conexões e apropriações que destroem cada vez a unidade factícia de um ego
possuidor ou proprietário (sexualidade anedipiana). (DELEUZE e GUATTARI,
1976, p. 97-98)

O sujeito seria um apêndice da máquina, o que desfaz de vez a idéia de unidade

da máquina, de pessoa, pois haveria ligação direta entre máquina e desejo: “Não é o

desejo que está no sujeito, mas a máquina no desejo” (DELEUZE e GUATTARI, 1976,

p. 362). Daí surge a idéia de um inconsciente em contínua atividade de inovação,

produzindo e não reproduzindo, não expressivo, sem uma origem, como um campo de

batalha a partir de um CsO. Neste caso, nenhuma questão de sentido é colocada, mas, o

que está em jogo são, especificamente, questões de uso. É a partir de um

desmoronamento total das figuras e das representações que a noção de CsO faz sua

entrada no pensamento de Deleuze e Guattari para se colocar como plano imanente do

inconsciente, povoado por relações de intensidades “através das quais o sujeito passa

sobre o corpo sem órgãos, e opera devires, quedas e altas, migrações e deslocamentos”

(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p.112).


66

Para definir inconsciente é necessário compreender melhor a noção de CsO,

não como um plano constituído por fluxos indiferenciados, porque é a própria teoria

edipiana que supõe um indiferenciado que ameaça o indivíduo caso este não entre na

ordem das diferenciações papai-mamãe-ego, caso não interiorize as funções diferenciais

que garantem a sanidade psíquica - “Édipo bem resolvido!”. Indiferenciações ou

diferenciações, não importa, tudo vem de Édipo.

Dizem-nos que Édipo é indispensável, fonte de toda diferenciação possível, e nos


salva da mãe terrível indiferenciada. Mas essa mãe terrível, a esfinge, faz parte, ela
própria, do Édipo; sua indiferenciação é apenas o avesso das diferenciações
exclusivas que Édipo cria, ela própria é criada por Édipo: Édipo funciona
necessariamente na forma desse duplo impasse. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p.
395)

Se o inconsciente é usina, então o desejo que o constitui não pode ser

apreendido fora de um agenciamento determinado. O inconsciente como máquina

desejante constrói e é construído a partir de um plano de imanência: “O plano de

imanência não tem nada a ver com uma interioridade; ele é como o De fora de onde vem

todo o desejo” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 112-113).

É a partir de um agenciamento que o desejo pode ser descrito e não a partir de

invariantes estruturais referidas a organizações libidinais. Isto não implica a aceitação de

um campo indiferenciado. Até mesmo na criança o que está em jogo é a relação do

desejo com o fora como possibilidade dos agenciamentos. Deleuze (DELEUZE e

PARNET, 1998, p. 113), referindo-se ao pequeno Hans, afirma que:

Há velocidades e lentidões, afetos e hecceidades: um cavalo um dia a rua. Não há


senão políticas de agenciamentos, até mesmo na criança: nesse sentido tudo é
política. Não há senão programas, ou, antes, diagramas ou planos, nada de
lembranças e tampouco fantasias. Não há senão devires e blocos, blocos de infância,
blocos de feminilidade, de animalidade, blocos de devires atuais, e nada de
memorial, de imaginário ou de simbólico.
67

Guattari afirma que não há nenhum tipo de relação natural entre as pessoas,

nem muito menos entre bebê e mãe ou pai... Portanto, a criança vive “programações”

com outros “equipamentos coletivos”, onde:

[...] não existe um processo de formação genética na criança que desemboque numa
maturação da economia desejante. Uma criança, por menor que seja, vive sua relação
com o mundo e sua relação com os outros de um modo exatamente produtor e
criativo. É a modelização de suas semióticas, através da escola, que a conduz a uma
espécie de processo de indiferenciação. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 216)

Mais adiante neste trabalho, a noção de agenciamento será mais bem elaborada.

Por enquanto, é a noção de CsO que será enfatizada. Repetindo, esta noção não está

relacionada a uma idéia de indiferenciado, pois é sempre produção de algo, sendo esta a

própria definição de inconsciente maquínico. Então, o desejo só pode ser pensado a

partir dos agenciamentos produzidos em um plano de consistência, ou seja, o plano de

imanência definido como um CsO. O CsO é constituído por linhas, por gradientes de

intensidades, por devires, por conjugações de partículas que formarão um tipo de

agenciamento. Deleuze e Guattari (1999, p, 13) descrevem o CsO da seguinte maneira:

Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por
intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma
cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um
fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as
distribui num ‘spatium’ ele mesmo intensivo, não extenso. Ele não é espaço e nem
está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau – grau que
corresponde às intensidades produzidas. Ele é a matéria intensa e não formada, não
estratificada, a matriz intensiva, a intensidade = 0, mas nada há de negativo neste
zero, não existem intensidades negativas nem contrárias.

O CsO é matéria e produz o real, mas como grandeza intensiva sem nenhuma

forma de real preexistente ou referência a qualquer sentido termodinâmico, tal como o

conceito de pulsão de morte é definido por Freud.


68

Esta é uma noção difícil de ser apreendida, primeiro, por se tratar de um

conhecimento que implica um saber filosófico, como leituras de Espinosa que inspiraram

a construção dessa noção e, segundo, pelos próprios paradoxos da noção por se referir a

algo que está sempre em construção11, mesmo que preexista de um certo modo, mas não

pode existir se não houver experimentação, ou seja, se não houver um empreendimento

iniciado por cada agenciamento. Os paradoxos estão espalhados por todos os lados: “Ele

é não-desejo, mas também desejo”. Ele não é um conceito, mas um conjunto de práticas

das quais a completude passa longe, pois “ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se

pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite” (DELEUZE e GUATTARI,

1999, p. 9-10):

Diz-se: que é isso – o CsO – mas já se está sobre ele – arrastando-se como um
verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e
nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lu tamos, lutamos e
somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades
inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que
amamos.

O termo CsO aparece em Antonin Artaud como um corpo sem imagem, onde o

organismo é inimigo do corpo, ou seja, determinada estratificação do corpo. Trata-se de

uma experiência onde o CsO é a superfície de toda maquinaria do desejo. Rompe-se com

toda idéia de organismo, de prefiguração do desejo ou de imagens humanizadas. Este

conceito se opõe muito mais à idéia de organismo do que à de órgãos, por estar o

primeiro relacionado a um “funcionamento organizado dos órgãos em que cada um está

em seu lugar, destinado a um papel que o identifica” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 32).

Inevitavelmente, toda triangulação perde seu sentido com esta noção, o que possibilita

11
Consultar a esse respeito: PRADO Jr. A idéia de ‘plano de imanência’. In: E. ALLIEZ (Org.). Gilles Deleuze:
uma vida filosófica. São Paulo: 34, 2000.
69

uma enorme proliferação de multiplicidades que formam os agenciamentos. Para Artaud,

do mesmo modo como o mundo possui suas geografias, assim também o homem possui

suas geografias internas. É justamente isto que Deleuze e Guattari (1999, p. 11)

propõem:

Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente
nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela
experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de
vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se
decide.

O CsO é a experimentação de um programa que, de modo algum tem a ver com

análises psicanalíticas que só sabem interpretar fantasmas. As interpretações

psicanalíticas do masoquismo, por exemplo, estão sempre se referindo a representações

arcaicas do desejo, enquanto que a esquizoanálise, ao invés de traduzir tudo em

fantasmas, irá partir da concepção de programas que se montam em decorrência do CsO.

Cada grupo ou cada indivíduo constrói um tipo de CsO e, por isso, o que interessa é

saber como cada um foi produzido, quais são suas sínteses para além de qualquer tipo de

regime identitário. Assim, o CsO é o próprio plano de imanência do desejo e, sobre isso,

Deleuze e Guattari (1999, p. 15) afirmam:

Os drogados, os masoquistas, os esquizofrênicos, os amantes, todos os CsO prestam


homenagem a Espinosa. O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de
consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de
produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco,
prazer que viria preenchê-lo).

Para Deleuze e Guattari, está-se diante de programas e não de fantasmas e

muito distante do Cogito cartesiano, onde a imanência não está remetida a um objeto

nem a um sujeito. Em outras palavras, a imanência para Deleuze e Guattari refere-se a

um campo transcendental em total oposição à idéia de transcendente, pois não considera


70

a noção de consciência, mas um campo que ultrapassa qualquer transcendência de sujeito

e de objeto. Trata-se de um plano pré-individual e impessoal que se contrapõe a toda

idéia de consciência desenvolvida pela filosofia moderna, a qual Deleuze descreve em

“Lógica do Sentido” (1974). Nesta obra, Deleuze define transcendental como uma

experiência sem consciência e sem sujeito, concebida como um empirismo

transcendental que, paradoxalmente, não inclui nem um objeto intencional, nem muito

menos um mundo das idéias puras. O princípio de imanência foi desenvolvido na teoria

deleuziana a partir das contribuições filosóficas de Espinoza, para quem os dualismos

são combatidos e todo um campo de afecção é afirmado a partir de planos de

intensidade. Portanto, não haveria dicotomia entre sujeito-objeto ou indivíduo-sociedade,

pois não haveria hierarquia de um sobre o outro ou uma relação de intersubjetividade

que supõe uma independência entre estes. Na imanência, sujeito e objeto não se

polarizam, isto é, ambos são constituídos ao mesmo tempo numa constante

processualidade sem fronteiras. A noção de transversalidade 12 cabe muito bem aqui para

desmontar as relações horizontais e verticais características de tantas teorias psicológicas

e filosóficas que explicam a relação sujeito-objeto.

A imanência só é em si mesma, portanto não é derivada de nenhuma causa

exterior a si mesma, nem se direciona para nenhum fim transcendente. Ela é o próprio

movimento da vida, onde é impossível qualquer tentativa de adequação: “A verdade, sob

todos os aspectos, tem a ver com a produção, não com adequação” (DELEUZE, 1988, p.

200). Contudo, não pode ser pensada nela mesma a não ser a partir de um mapeamento

12
Esta noção reaparecerá no último capítulo como uma das importantes noções para se pensar o plano clínico.
71

gerado pelos fluxos, isto é, o campo de imanência é o impensado e, ao mesmo tempo, o

que permite o pensável.

O plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado, e o que não pode
ser pensado. Ele seria o não-pensado no pensamento. É a base de todos os planos,
imanente a cada plano pensável que não chega a pensá-lo. É o mais íntimo do
pensamento e, todavia, o fora absoluto. (DELEUZE, 1993, p. 78)

As noções de CsO e imanência se conjugam pelas condições que oferecem ao

desejo como o próprio limite do corpo vivido – “limite imanente”. Não se trata de um

corpo próprio, pois, como já vimos, não estamos diante de uma interioridade de um eu,

mas, sim, diante de um campo impessoal que não impossibilita a experiência do nome

próprio. Isto significa que o estado vivido é primeiro em relação ao sujeito que o vive

(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 37), mas isto não implica um estado constante de

catatonia tal como a experiência esquizofrênica mencionada por Deleuze e Guattari.

Prado Jr. (2000, p. 314-315), comentando a obra “O que é a filosofia?”, distingue plano

de imanência de caos, além de afirmar sua pluralidade”:

[...] o plano de imanência não pode cobrir ou superpor-se ao caos (mesmo se se


afirma que seu horizonte é infinito). Deleuze diz que o plano de imanência é um
“corte” no caos (como um plano que corta um cone). “Cortar” só pode significar
captar (definir) uma “fatia”, por assim dizer, de um caos que permanece livre (e
infinitamente livre) em todas as outras direções ou dimensões. Mas, além de “corte”
no caos, o plano é também um “crivo” – cortar é selecionar e fixar – numa palavra,
determinar, conter o rio de Heráclito ou o Oceano mundo.

As noções de corpo sem órgãos e de plano de imanência do desejo serão úteis

para se investigar o plano clínico em sua dimensão construtivista e transdisciplinar, ao

mesmo tempo em que se afirma sua potência criadora. Isto significa que nesse plano não

se busca uma essência oculta que pela interpretação será revelada. O que interessa é

abordar as possibilidades de:


72

[...] incisões a serem feitas nos estratos, para que o invisível, já-presente, se torne
visível. Blocos de invisíveis buscam passagem e, ao fazê-lo, produzem rachaduras. O
que há para ser feito é investir nas rachaduras mais do que nas configurações
homogêneas com que uma realidade se apresenta. (BARROS, 1994, p. 258)

Trata-se de uma perspectiva em que o desejo, a partir do plano de imanência, se

define como produção, rompendo com quaisquer instâncias exteriores que se articulem

com a idéia de falta. Tal perspectiva faz do CsO o próprio anti-édipo. Ele é a própria

abertura para novas conexões e distribuições de intensidades.

2.2.3 DA INTERPRETAÇÃO À EXPERIMENTAÇÃO

[...] não há material inconsciente nem interpretação psicanalítica, mas somente usos,
usos analíticos das sínteses do inconsciente, que se deixam definir tão pouco pela
indicação de um significante quanto pela determinação de significados. (DELEUZE
e GUATTARI, 1976, p. 228)

A esquizoanálise de Deleuze e Guattari propõe uma nova abordagem do

inconsciente sem fazer uso da interpretação. Isso porque, se algo precisa ser interpretado,

é porque ele já tem um sentido a priori que só precisaria passar pelo trabalho

interpretativo. A esquizoanálise renuncia a qualquer idéia de representação inconsciente

e, conseqüentemente, não busca encontrar nenhum conteúdo que esteja latente e

determinando o comportamento, sobretudo se este conteúdo é concebido como desejo

edipiano e seus derivados. O que se propõe é um inconsciente como espaço de guerra e

não um teatro de cenas burguesas. A esquizoanálise busca descobrir o uso e o

funcionamento do inconsciente como máquina desejante. No inconsciente só existem

populações, grupos e máquinas, sempre as máquinas...

Ao rejeitar a hipótese de um inconsciente expressivo, Deleuze e Guattari (1976,

p. 35) afirmam que o inconsciente nada quer dizer: “Aqui nada é representativo, mas

tudo é vida e vivido [...]”.


73

Trata-se de fazer um outro uso das sínteses do inconsciente, pensá-lo de modo

afirmativo, ilimitado, operando pelas sínteses disjuntivas e não exclusivas como é feito

na psicanálise.

O próprio do registro edipiano é introduzir um uso exclusivo, limitativo, negativo, da


síntese disjuntiva. Somos tão formados por Édipo que não conseguimos imaginar um
outro uso; e até mesmo as três neuroses familiares não saem disso, embora sofram
por não poder mais aplicá-lo. Vimos exercer-se em toda a psicanálise, em Freud, esse
gosto pelas disjunções exclusivas. Parece, entretanto, que a esquizofrenia nos dá uma
singular lição extra-edipiana e nos revela uma força desconhecida da síntese
disjuntiva, um uso imanente que não seria mais exclusivo nem limitativo, mas
plenamente afirmativo, ilimitativo, inclusivo. Uma disjunção que permanece
disjuntiva e que, entretanto, afirma os termos disjungidos, afirma-os através de toda a
sua distância, sem limitar um pelo outro, nem excluir o outro de um, é talvez o maior
paradoxo. ‘Ou... ou’, em vez de ‘ou então’. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p.
102)

São disjunções livres, que não operam por meio de ligações ‘e’, mas, por ‘ou’,

sem que haja exclusão de um dos termos. Poderia se dizer então que o esquizo, no caso

de Schreber, por exemplo, não seria um homem e mulher, um bissexual, mas um

transexual. Está-se, então, numa ordem extra-edipiana. Para Deleuze e Guattari, o

presidente Schreber estava em todas as séries, usando todos os lugares de um modo

singular, sobrevoando distâncias que são indivisíveis ao mesmo tempo. As sínteses

disjuntivas podem ter dois usos: transcendente e imanente. O uso transcendente é o

proposto pela psicanálise freudiana, através das operações edipianas, e o uso imanente é

o proposto pela esquizoanálise deleuzo-guattariana, através das operações de

intensidades sem sujeito. O uso transcendente de Édipo fecha todas as saídas e entradas

do desejo ao rejeitar as possibilidades das disjunções inclusivas e ilimitativas. Deste

modo, estamos diante do uso edipiano das disjunções exclusivas e do uso anediapiano

das disjunções inclusivo-ilimitativas, onde tudo se mistura a partir do CsO, sem que,

com isso, os devires se confundam, muito pelo contrário, é daí que eles se instauram e
74

criam uma nova ordem - a ordem intensiva. As raças e as culturas se movem sobre o

CsO, no qual podem ocorrer fenômenos de individuação, ou de sexualização. Nos

delírios estão presentes esses devires que se movem por intensidades, e isto é muito

diferente de pensar por identificações.

Trata-se de algo totalmente diferente: identificar as raças, as culturas e os deuses a


campos de intensidade sobre o corpo sem órgãos, identificar os personagens a
estados que preenchem esses campos, a efeitos que fulguram e atravessam esses
campos. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 115)

A noção de um eu no centro, comandando a organização social e individual, é

amplamente refutada. São séries de singularidades que se formam em uma rede

disjuntiva. É a partir de variações de intensidades que tudo deve ser analisado

(esquizoanálise). Ao referir-se aos movimentos históricos/sociais, os autores afirmam

que se está diante de uma deriva histórica coletiva, nos entrecruzamentos de raças,

alianças, clãs, relações de poder, campos de força, toda uma complexa rede de relações

de cortes-fluxos, de aberturas que não são produzidas a partir dos fundamentos redutores

das figuras edipianas, servindo para a psicanálise, de eixo explicativo das relações

humanas ao longo da história. A libido investe o campo social de modo objetivo, sem

intermediários representados por papai-mamãe.

A clínica psicanalítica opera por intermédio de interpretações redutoras que,

arbitrariamente, subjugam as mais singulares ações humanas. São interpretações

(intervenções) que se apresentam com poderes mágicos de cura ao apelarem para a

reprodução do pequeno teatro individual e familiar. Os analistas retratam a cena clínica

de modo reprodutivo utilizando, por exemplo, no caso de análise infantil, brinquedos,

objetos que representam os pais, ou órgãos do corpo, que simbolizam as fantasias típicas

do inconsciente. São interpretações de falas e atitudes dos pacientes submetidas à


75

hegemonia do significante. Trata-se de uma verdadeira máquina de sujeição semióticas

que operam pelo princípio da decalcomania, operação que será investigada no próximo

capítulo. A espada representa o falo, a casinha a vagina, bichos que podem representar

figuras parentais, armários ou caixas que representam o útero materno, e por aí vai...

Todas essas interpretações são axiomas de domesticação do inconsciente que

anulam todas as saídas e entradas do desejo. Reduções que “tranqüilizam” a ignorância

dos analistas. São desconfortos travestidos em arrogâncias, provocados pelas

multiplicidades rizomáticas do inconsciente. As máquinas desejantes ficam

desacreditadas em sua capacidade inventiva, fazendo apenas reproduções de fantasmas,

ou reproduzindo um imaginário que duplica a realidade, “[...] como se houvesse ‘um

objeto sonhado atrás de cada objeto real’ ou uma produção mental atrás das produções

reais” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 43). “Ah, a miséria do imaginário e do

simbólico, o real sempre adiado para amanhã” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 64).

Para que se opere esta mudança de eixo – da interpretação à experimentação, é

necessário que a imanência seja colocada em tudo, conectando-a ao campo social

sempre. Só assim é possível evitar a “interpretose do sacerdote” (DELEUZE e

GUATTARI, 2002a, p. 68). Para compreender melhor esta questão há que se recorrer à

diferenciação entre conteúdo e expressão. Estes dois conjuntos não são de mesma

natureza, não se articulam de modo representativo, nem muito menos hierárquico.

É precisamente porque o conteúdo tem sua forma assim como a expressão, que não
se pode jamais atribuir à forma de expressão a simples função de representar, de
descrever ou de atestar um conteúdo correspondente: não há correspondência nem
conformidade. As duas formalizações não são de mesma natureza, e são
independentes, heterogêneas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002a, p. 26)
76

Trata-se de uma outra dimensão de linguagem que concebe os signos a partir

das desterritorializações inerentes aos dois conjuntos. Isto implica afirmar que o sistema

semiótico não pode ser reduzido a simples arte de representar, pois, em cada operação,

existe todo um processo de experimentação que interfere um no outro, ora

desterritorializando, ora reterritorializando, o que permite as infinitas variáveis de

conjugação entre os dois conjuntos.

Em resumo, não é ao descobrir ou representar um conteúdo que uma expressão entra


em relação com ele. É por conjugação de seus quanta de desterritorialização relativa
que as formas de expressão e de conteúdo se comunicam, umas intervindo nas
outras, estas interferindo naquelas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002a, p. 29)

Está-se novamente diante da relação entre significante e significado que, do

ponto de vista dos autores em estudo, é abordada a partir da natureza dos agenciamentos

que comportam dois conjuntos: agenciamento maquínico (de conteúdo) e agenciamento

coletivo de enunciação (de expressão). Estes fazem parte de um eixo horizontal dos

agenciamentos, enquanto que, no eixo vertical, têm-se as reterritorializações que

estabilizam os agenciamentos e os “picos de desterritorializações” que os modificam. As

características dos agenciamentos serão definidas mais adiante. O que importa destacar

no momento é a não determinação da expressão pelo conteúdo, nem o inverso. Neste

sentido, não se pode afirmar que os enunciados representam, ou que submetam as

máquinas, já que não haveria uma relação de causalidade entre os mesmos, nem de

superioridade. Deleuze e Guattari (2002a, p. 33) afirmam que “o conteúdo não é um

significado nem a expressão um significante, mas ambos são as variáveis do

agenciamento”. Trata-se de um novo território de pensamento a respeito da

subjetividade.
77

Nas noções filosóficas tradicionais de subjetividade aparecem dois tipos de

sujeito: sujeito de enunciação e sujeito de enunciado. Esta dicotomia, presente sobretudo

na filosofia cartesiana, define o primeiro como o sujeito que conhece o mundo pela sua

capacidade de pensá-lo, é o sujeito da representação, aí estaria a verdade do sujeito – no

cogito. O segundo seria o sujeito da ação, que experimenta o mundo. No primeiro estaria

a verdade do sujeito, pois o segundo sujeito, o de enunciado, está ligado ao corpo que

experimenta e, para Descartes, esse conhecimento não garante a verdade por ser do

domínio das paixões, passível de enganos. Para Descartes seria duvidosa a afirmação,

por exemplo, “eu caminho”. Isto porque todo enunciado tem que se submeter ao crivo de

um eu que pensa. A verdade se resume na máxima: “Penso, logo existo”. Então, o

correto para Descartes seria afirmar: “penso que caminho”. A filosofia cartesiana

instaura de vez a idéia de um sujeito individualizado que pensa. A verdade estaria, deste

modo, no interior de um indivíduo, em seu cogito e não na experiência em si.

Para Deleuze e Guattari existem ressonâncias entre a teoria edipiana e as

filosofias reflexivas, sobretudo quando se separa mundo interno e mundo externo, sendo

esta uma das principais tarefas do funcionamento psíquico. Os mecanismos de defesa do

ego traduzem bem esta distinção entre os dois mundos. Na dinâmica inconsciente do

psiquismo estariam as representações das pulsões, que buscam expressão de todas as

formas, passando por procedimentos de deformação causados pelas censuras internas.

No complexo de Édipo, descrito por Freud, o inconsciente fica refém dos impulsos

incestuosos e hostis (impulsos constituintes do complexo). Deste modo, as relações entre

inúmeras formações do inconsciente, tais como sintomas, sonhos, atos falhos,

esquecimentos, lapsos, nas ações ou nas falas, serão interpretadas como resultado dos
78

impulsos edipianos reprimidos. A verdade do indivíduo estaria escondida nesses

conteúdos inconscientes, latentes (sujeito de enunciação), que estão presentes, de forma

disfarçada, nas diferentes expressões deste mesmo indivíduo (sujeito de enunciado). O

processo que dá condições de conhecimento dos conteúdos latentes é a interpretação que,

em última análise, não pode nem ser pensada como processo, pois sua mecânica é

determinada por procedimentos de decodificação, de tradução, por atividades de

recognição.

O modo pelo qual Deleuze e Guattari pensam a constituição da subjetividade é

muito diferente. Eles refutam qualquer enunciação centrada na noção de sujeito. Para

eles o que existe são processos de subjetivação que ocorrem nos agenciamentos,

viabilizando processos de criação enquanto experimentação. A enunciação é sempre uma

experimentação.

É sempre um agenciamento que produz os enunciados. Os enunciados não têm por


causa um sujeito que agiria como sujeito da enunciação, tampouco não se referem a
sujeitos como sujeitos de enunciado. O enunciado é o produto de um agenciamento,
sempre coletivo, que põe em jogo, em nós e fora de nós, populações, multiplicidades,
territórios, devires, afetos, acontecimentos. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 65)

A subjetividade é constituída por processos de subjetivação (semiotização) que

funcionam de duas formas: pelos sistemas extrapessoais, que comportam todos os tipos

de máquinas tecnológicas, sociais, econômicas, ecológicas... e pelos sistemas pré-

pessoais, ou infrapessoal, que comportam percepções, sensibilidades, afetos, desejos,

memorizações, aspectos fisiológicos... Em resumo, toda a questão está em elucidar como

os agenciamentos de enunciação reais produzem conexões em diferentes instâncias.

De modo análogo, pode-se pensar a dicotomia entre superfície e profundidade,

sendo a primeira da ordem do manifesto (aparente) e a segunda, do latente (oculto).


79

Neste sentido, a interpretação busca, a partir do manifesto, compreender o latente. O

entendimento desta dicotomia está presente nas formas filosóficas desde a antigüidade,

que se atualizam no grande mercado das ciências humanas modernas. De um modo

sintético, pode-se afirmar que, para os autores aqui estudados, a superfície não pode ser

entendida como um plano pouco investigado, insuficiente, ou ilusório, em oposição aos

aspectos profundos da subjetividade, onde estariam escondidos os mais secretos e

verdadeiros desejos. A relação entre essas duas ordens é de outra natureza. A

profundidade não está referida a uma interioridade localizada no psiquismo de um

indivíduo, nem muito menos a superfície relacionada a um uma exterioridade, onde estão

presentes atos e falas indicativas de um conteúdo encoberto, pronto para ser revelado

pela interpretação. Em Barros (1994, p. 396-397), encontra-se com clareza a explicação

desta dicotomia e seus efeitos nos estudos da subjetividade:

A profundidade não é a da interioridade do indivíduo, aquela inacessível numa


primeira olhada ou reservada aos espaços privados de contato. Na profundidade o
que há são corpos que querem exercer suas potências [...] É na superfície que se
desenham as relações. A superfície é montada, portanto, pelas relações que os corpos
criam entre si. De um corpo, o que se pode saber, é aquilo que se expressa no
encontro. O que se produz na superfície é da ordem do incorporal, da ordem do
acontecimento, extra-ser que não é ser, mas uma maneira de ser.

Deleuze (2004b, p. 109) gostava da fórmula: “O mais profundo é a pele”.

Citando as idéias de Foucault, Deleuze define a superfície como plano de inscrição e a

contrapõe, não à profundidade, mas à interpretação. Ao invés de interpretar,

experimente! Este era o lema desses dois pensadores. A esquizoanálise faz uso da

experimentação na construção da subjetividade, tanto no aspecto histórico de sua

produção, como nos múltiplos agenciamentos possíveis na vida, sobretudo no plano

clínico, sendo este de maior interesse neste trabalho. Portanto, segundo Guattari,
80

trabalhar em uma perspectiva experimental é mudar completamente o sentido das

práticas voltadas para o estudo dos processos de subjetividade. É romper com as

estruturas personificadas do aparelho psíquico, apoiadas nas interpretações, que utilizam

os formatos identificatórios e serializados de subjetividade. Assim, o processo analítico

“não é mais interpretação transferencial de sintomas em função de um conteúdo latente

preexistente, mas invenção de novos focos catalíticos suscetíveis de fazer bifurcar a

existência” (GUATTARI, 1992, p. 30).

A noção de interpretação está vinculada à concepção linear de história presa à

dimensão psíquica organizada a partir das etapas do desenvolvimento psicossexual. Já a

noção de experimentação está vinculada à noção de cartografia, a qual busca percorrer as

múltiplas linhas, analisando suas possibilidades de engendramentos. Deleuze e Guattari

(2002b, p. 43) buscam compreender, a partir de Espinosa, os processos de subjetividade

do pequeno Hans, seus agenciamentos maquínicos, em oposição às interpretações

freudianas. As experiências de Hans são vistas por um outro ângulo, onde a interpretação

é substituída pelo ponto de vista da experimentação operada pelos afetos, devires e

fluxos. Hans faz parte de um campo de afecção produzido por intensidades ativas e

passivas, constitutivas de seu corpo sem órgãos.

O cavalo do pequeno Hans não é representativo, mas afectivo [...] Esses afetos
circulam e transformam-se no seio do agenciamento: o que ‘pode’ um cavalo. Eles
têm efetivamente um limite ótimo no topo da potência-cavalo, mas também um
limiar péssimo: um cavalo cai na rua! E não pode se reerguer sob a carga
demasiadamente pesada e as chicotadas demasiadamente duras; um cavalo vai
morrer! – espetáculo outrora ordinário (Nietzsche, Dostoievski, Nijinski o
lamentam). Então, o que é o devir-cavalo do pequeno Hans? Também Hans está
tomado num agenciamento, a cama de mamãe, o elemento paterno, a casa, o bar em
frente, o entreposto vizinho, a rua, o direito à rua, a conquista desse direito, o
orgulho, mas também os riscos dessa conquista, a queda, a vergonha [...] Não são
fantasmas ou devaneios subjetivos: não se trata de imitar o cavalo, de se ‘fazer’ de
cavalo, de identificar-se com ele, nem mesmo de experimentar sentimentos de
piedade ou simpatia.
81

Nesta citação é possível fazer algumas distinções entre as características dos

procedimentos de interpretação psicanalíticos e as propostas cartográficas da

esquizoanálise. Constata-se a distinção entre representação e afecção. Ao invés das

dualidades - os devires, a hecceidade13 . Onde havia representante das pulsões ou dos

pais, agora são agenciamentos produzidos pela experimentação, que ocorre no corpo sem

órgãos. Os autores apontam para a diagramatização individuada dos agenciamentos

coletivos, sem implicação com algo da ordem do indeterminado. Nas composições que

Hans faz com o cavalo, com a rua, quarto dos pais, com outras crianças, nada se

subjetiva pela ótica de um ego em formação ou pela determinação de um significante

despótico – Édipo. O que está em jogo são hecceidades que se formam nas relações de

movimento e repouso, onde nada se desenvolve ou se forma pela lógica personalista ou

subjetivista. Esta é a lógica do plano de imanência, descrita anteriormente, oposta ao

plano de organização e de desenvolvimento. Isto significa afirmar a potência dos

enunciados sem sujeitos e é por esta razão, que Deleuze e Guatari (2002b, p. 52) se

espantam com a psicanálise:

[...] que quer a todo preço, que, atrás dos indefinidos, haja um definido escondido,
um possessivo, um pessoal: quando a criança diz ‘um ventre’, ‘um cavalo’, ‘como as
pessoas crescem?’, ‘o pai’, ‘ficarei grande como meu papai?’. O psicanalista
pergunta: quem está sendo batido, e por quem?

Deleuze e Guattari (2002b, p. 46) criticam a psicanálise por sua negligência,

talvez proposital, dos devires-animais do homem e da criança, afinal, ela sempre

constatou a presença dos devires-animais. O animal cavalo como uma representação do

13
“Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma
substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade” (DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 47). “Uma
hecceidade não tem nem começo nem fim, nem origem nem destinação; está sempre no meio. Não é feita de
pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma”. (p. 50).
82

pai de Hans, ao invés do afeto em si mesmo, pois “não há outras pulsões que não os

próprios agenciamentos”. Trata-se de composições e não de representações. Estamos no

plano constituído por velocidades e lentidões, e não no fantasma. “A psicanálise não tem

o sentimento das participações anti-natureza, nem dos agenciamentos que uma criança

pode montar para resolver um problema cujas saídas lhe estão sendo barradas: um plano,

não um fantasma”.

É importante ressaltar a ligação entre experimentação e o CsO, pois sem um

não existe o outro. Na experimentação estão em jogo a produção de novos signos com o

campo enunciativo, diferindo radicalmente do ponto de vista interpretativo, no qual se

buscam as verdades semióticas instituídas. Na perspectiva psicanalítica, o dualismo

cartesiano é mantido quando se acredita na binarização entre um eu-sujeito pré-

determinado e um outro-objeto pré-existente. A esquizoanálise aposta numa enunciação

carente de sujeito sem, no entanto, afirmar uma desarticulação sem sentido. “Não o

desmanchamento abrupto e total, mas a abertura às conexões, aos agenciamentos, que

possibilitem novas formas de distribuição das intensidades...” (BARROS, 1994, p. 411).


83

2.3 A NOÇÃO DE RIZOMA E AS MÁQUINAS DESEJANTES

2.3.1 AS LINHAS

“Pois somos feitos de linhas” (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 66).

Para que se proponha um novo modo de produção do inconsciente é necessário


definir a noção de rizoma14 . Até aqui procurou-se mostrar como a psicanálise está
comprometida com o capitalismo e como suas idéias, sobretudo a teoria edipiana que
restringe os processos da subjetividade esmagando as inúmeras possibilidades de
constituição do sujeito.

Tão logo descobria a maior arte do inconsciente, a arte das multiplicidades


moleculares, Freud já retornava às unidades molares e reencontrava seus temas
familiares, o pai, o pênis, a vagina, a castração... etc. (Na iminência de descobrir um
rizoma, Freud retorna sempre às simples raízes.) (DELEUZE e GUATTARI, 2000,
p. 40)

A noção de rizoma é muito útil para que as lógicas binárias da psicanálise

sejam ultrapassadas em suas determinações dualísticas, compostas por unidades e

sistemas hierárquicos. A noção de rizoma é totalmente diferente do modelo clássico da

árvore, cuja tradição é de pensar os modos de subjetividade por meio de sistemas

centrados, hierárquicos e binários, sendo utilizado para explicar o funcionamento de

inúmeras produções, não só no domínio das ciências humanas, como também biológicas,

exatas etc. A psicanálise adotou este modelo em suas interpretações clínicas e, de um

modo geral, o adotou para compreender o próprio funcionamento do inconsciente

constituindo a subjetividade. O modelo arborescente é um circuito fechado, que

14
A noção de Rizoma é definida em Mil Platôs (2000, p. 32-33). A noção surgiu da botânica, onde é definido
como um caule subterrâneo responsável pela produção de ramos aéreos com características de raízes. Deleuze e
Guattari ampliam a noção articulando-a a uma rede conectiva de vários sentidos.
84

estabelece suas conexões a partir de centros hierarquicamente construídos. É um modelo

linear constituído por uma correspondência de relações que sustentam uma dimensão

totalizante de sujeito. Como contraponto a este modelo, surge a noção de rizoma como

possibilidade de não só pensar a constituição da subjetividade, como também

possibilidade de se pensarem as relações existentes em outros domínios. A idéia

principal para se compreender a noção de rizoma é a de multiplicidade, e é através dela

que Deleuze e Guattari se afastam cada vez mais da psicanálise.

Em Mil platôs, o comentário sobre o homem dos lobos (“Um só ou vários lobos”)
constitui nosso adeus à psicanálise, e tenta mostrar como as multiplicidades
ultrapassam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a
história, o corpo e a alma. As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem
nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um
sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos
que se produzem e aparecem nas multiplicidades. (DELEUZE e GUATTARI, 2000,
p. 8)

Pensar as multiplicidades implica um rompimento definitivo com os modelos

que estabelecem a lógica binária entre sujeito e objeto, bem como com todas as reduções

realizadas no campo psicanalítico, literário, científico, artístico etc. Deleuze e Guattari

iniciam o primeiro volume de “Mil Platôs” explicando os princípios gerais das

multiplicidades, usando como exemplo a produção de um livro em oposição ao livro

clássico romântico. Eles afirmam que jamais um livro é feito por um sujeito, mas por

vários. Um livro não é constituído por um objeto nem por um sujeito e, sim, por relações

de exterioridade, por velocidades e lentidões, por momentos históricos, por

singularidades. Afirmar que um livro seja uma multiplicidade não significa afirmar que

linhas de articulações não existam em sua configuração ou que não ocorram

estratificações e unificações. Deleuze e Guattari (2000, p. 12) aplicam o modelo

rizomático a todas as formas de produção, e esse modelo também comporta as


85

territorialidades, as segmentaridades que podem surgir em seu processo, sendo esta

noção muito próxima, ou mesmo característica, dos agenciamentos maquínicos.

Um agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem


dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma
determinação atribuível a um sujeito, mas ele não é menos direcionado para um
corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o organismo, de fazer passar e circular
partículas a-significantes, intensidades puras, e não pára de atribuir-se os sujeitos aos
quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade.

O processo de produção rizomático envolve agenciamentos maquínicos de

ordens muito diversas que se espalham em todos os sentidos, sem que haja um centro

organizador ou de significância. Esta ausência de uma unidade com um centro superior e

seus segmentos não significa a afirmação de uma dimensão indiferenciada. Isto não tem

sentido, pois o rizoma está sempre produzindo algo, ele se realiza pelas inovações

constantes que operam diferentemente das estruturas pré-determinadas. Trata-se de

produções que se dão pelo meio, sem um começo ou fim determinados. São conexões

que se fazem pelas vizinhanças e que obedecem a alguns princípios fundamentais. O

primeiro refere-se ao processamento das conexões que ocorrem de modo heterogêneo e

em qualquer ponto da produção. Este tipo de lógica vem é elaborada em diversos campos

do conhecimento como na informática, na compreensão dos processos de ensino-

aprendizagem, nos modos de produção literária, nas formas artísticas, na biologia, no

campo da linguagem etc. Será que já se está vivendo uma era deleuziana, como

profetizou Foucault? Por que não pensar em um devir deleuziano que se mistura a tantos

outros devires que se espalham, e estes outros devires contagiando Deleuze e Guattari?

Sem começo e sem fim. Até porque nunca se pode afirmar total autenticidade de uma

idéia, pois, segundo os próprios autores, não se está sozinho nem se é o único autor de

alguma coisa; há sempre muitos e é por esta razão que Guattari (GUATTARI e
86

ROLNIK, 1986, p. 31) prefere, ao invés de sujeito, falar em “agenciamento coletivo de

enunciação”: “O agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade

individuada, nem a uma entidade social predeterminada”.

Quando aplicada a noção de rizoma ao processo de constituição da

subjetividade, depara-se com uma nova aposta capaz de pensar o indivíduo como uma

das formas possíveis de manifestação da subjetividade que não implica, de modo algum,

um modelo definitivo e único. A produção de subjetividade requer o funcionamento das

multiplicidades que não estão pré-estabelecidas nem muito menos compõem um campo

individual. Trata-se de conexões pré-individuais e extrapessoais que não comportam

conexões serializadas ou identitárias. Embora o formato indivíduo se tenha tornado um

modo “fácil”, corrente de pensamento, isto não pode resumir, ou definir, um saber sobre

a subjetividade. Guattari afirma que:

A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma


coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos da
subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do
social. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 31)

Esta é uma referência também citada por Barros (1994), para dar conta dos

fenômenos grupais a partir da noção de subjetividade elaborada pelos autores aqui

estudados. O texto de Barros é claro quando, a respeito dos processos grupais, tenta

compreender o modo pelo qual o grupo acontece, não o “grupo-representação”, mas o

grupo constituído pelo meio, que funciona de modo rizomático e não como totalidade.

Deleuze e Guattari (2000, p. 18) afirmam que é sempre um plano de consistência social

que está em jogo e nele operam forças do tipo rizomático que podem tanto se individuar,

sem que com isso se pense em indivíduo, como podem formar organizações do tipo

molar ou arborescente:
87

Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de
reencontrar nela organizações que reestratificam o conjunto, formações que dão
novamente o poder a um significante, atribuições que reconstituem um sujeito – tudo
o que se quiser, desde as ressurgências edipianas até as concreções fascistas. Os
grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização. Sim,
a grama é também rizoma. O bom e o mau são somente o produto de uma seleção
ativa e temporária a ser recomeçada.

Os autores em estudo citam a gramaticalidade dicotômica de Chomsky para

criticarem o modelo-árvore adotado em sua lingüística. Adotar o rizoma para

compreender as cadeias semióticas é afirmar a coexistência de diversas conexões

funcionando diretamente entre os agenciamentos coletivos de enunciação e os

agenciamentos maquínicos. No método rizomático não existe dicotomia entre os regimes

de signos e seus objetos:

Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder,


ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica
é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, lingüísticos, mas também
perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem
universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de
línguas especiais. Não existe locutor-auditor ideal, como também não existe
comunidade lingüística homogênea. A língua é, segundo uma fórmula de Weinreich,
“uma realidade essencialmente heterogênea”. (Deleuze e Guattari, 2000, p. 16)

Para esses autores, na língua há inúmeras variedades de conexões heterogêneas,

o que impossibilita um fechamento da língua ou a ilusão da existência de uma estrutura

dominante com leis transcendentais. Esta visão se opõe às principais teorias lingüísticas

da enunciação que, mesmo considerando a essência social da língua, ainda fixam a

produção lingüística no sujeito individuado. O princípio das conexões heterogêneas está

correlacionado com o princípio de multiplicidade do rizoma que pode ser aplicado a

qualquer forma de relações, inclusive às relações lingüísticas. As conexões no rizoma se

fazem pelas multiplicidades, com ausência de unidade e de divisão entre sujeito e objeto.

“Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações,
88

grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de

combinação crescem então com a multiplicidade)” (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p.

16).

É importante distinguir as idéias de múltiplo e de multiplicidade, isto porque a

idéia de múltiplo está associada, por oposição, à idéia de unidade. Existiria entre o

múltiplo e o Uno não só uma relação de derivação como também de dualidade. E não é

disto que Deleuze e Guattari tratam quando se referem à idéia de multiplicidade, tendo

em vista que esta é de outra ordem, da ordem do informe, do pré-individual, “onde

nenhuma exterioridade totalizante dá qualquer significado”(BARROS, 1994, p. 385). A

noção de multiplicidade aparece também em um texto de Deleuze (1998), onde ele faz

um estudo sobre as obras de Foucault afirmando que, em seu livro “A Arqueologia do

Saber” (1972), Foucault realiza um passo decisivo com relação à teoria prática das

multiplicidades. Foucault rompe com as visões estruturalistas e lineares da história e

propõe uma nova maneira de estudá-la como multiplicidades que escapam aos modelos

identitários de sujeito e ao determinismo da estrutura. Para tanto, Deleuze distingue

claramente multiplicidade da idéia de múltiplo, para melhor entender esta teoria das

multiplicidades, também adotada por Foucault quando analisa os discursos ao longo da

história:

O essencial do conceito é, entretanto, a constituição de um substantivo tal que o


‘múltiplo’ deixe de ser um predicado que se pode opor ao Um, ou que se pode
atribuir a um sujeito referido como um. A multiplicidade permanece totalmente
indiferente aos problemas tradicionais do múltiplo e do um e, sobretudo, ao
problema de um sujeito que a condicionaria, pensaria, derivaria de uma origem, etc.
Não há nem um nem múltiplo, o que seria remeter-nos, em qualquer caso, a uma
consciência que seria retomada num e se desenvolveria no outro. Há apenas
multiplicidades raras, com pontos singulares, lugares vagos para aqueles que vêm,
por um instante, ocupar a função de sujeitos, regularidades acumuláveis, repetíveis e
que se conservam em si. A multiplicidade não é axiomática nem tipológica, é
topológica. (DELEUZE, 1998, p. 25)
89

As combinações rizomáticas não comportam um centro superior de comando,

isto porque o que está em funcionamento são relações entre linhas que formam uma

trama e que mudam de natureza à medida que aumentam suas combinações. Este modo

de relações é o que os autores chamam de agenciamento, onde não existem pontos de

comunicação pré-estabelecidos, como na estrutura arborescente, mas conexões

contingentes. Essas conexões se dão pelo meio, não existiria um ponto de início ou de

término, mas proliferação. Para tanto, faz-se necessário um plano sobre o qual as

conexões sejam possíveis. Esse plano é o plano de consistência das multiplicidades, sua

própria dimensão, ou melhor:

Todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas preenchem, ocupam todas as
suas dimensões: falar-se-á então de um plano de consistência das multiplicidades, se
bem que este ‘plano’ seja de dimensões crescentes segundo o número de conexões
que se estabelecem nele. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata,
linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se
conectarem às outras. O plano de consistência (grade) é o fora de todas as
multiplicidades. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 17)

Trata-se de um plano de exterioridade, e é por essa razão que não se pode supor

qualquer série pontual, estrutural nesse plano. Nele só haveria velocidades variáveis,

precipitações, que estão em contato com um fora. São “anéis abertos”.

Uma boa maneira de entender o tipo de relações que Deleuze e Guattari

querem estabelecer com a noção de rizoma é quando ambos fazem a distinção entre os

jogos de Xadrez e o Go, no último volume de “Mil Platôs”. As regras desses jogos são

bem diferentes quanto à posição, relações e espaços das peças do jogo. No xadrez tudo

está pré-determinado, enquanto que no go tudo é relativo, dependendo da situação, sendo

que as peças podem mudar suas características e funções de acordo com um espaço

aberto com movimentos que surgem de qualquer ponto.


90

Os peões do go são os elementos de um agenciamento maquínico não subjetivado,


sem propriedades intrínsecas, porém apenas de situação. Por isso as relações são
muito diferentes nos dois casos. No seu meio de interioridade, as peças de xadrez
entretêm relações biunívocas entre si e com as do adversário: suas funções são
estruturais. Um peão do go, ao contrário, tem apenas um meio de exterioridade, ou
relações extrínsecas com nebulosas, constelações, segundo as quais desempenha
funções de inserção ou de situação, como margear, cercar, arrebatar. (DELEUZE e
GUATTARI, 2002c, p. 13)

Existe uma situação de guerra nos dois jogos, mas no xadrez essa guerra é

institucionalizada e semiótica, enquanto que no go trata-se de pura estratégia. O xadrez

seria o Estado composto por uma interioridade que serve de padrão para todos, e o Go a

máquina de guerra que, na verdade, é pura exterioridade, lugar dos afetos em oposição

aos sentimentos característicos de um sujeito. As articulações do go são do tipo

rizomático, sem sujeito, apenas linhas que se fazem por velocidades e lentidões,

formando um modo dessubjetivado de relações.

Um outro exemplo utilizado pelos autores para melhor definir o modelo

rizomático, que aparece também nesse último volume, é o da formação de bandos.

Deleuze e Guattari (2002, p. 21) refutam a visão evolucionista que definem os bandos

como formações primitivas anteriores ao Estado, menos organizadas e desenvolvidas.

Para esses autores não se trata de formações inferiores, mas diferentes, que adotam

mecanismos complexos de formação social. Os bandos seriam grupos do tipo rizoma que

“procedem por difusão de prestígio, mais do que por referência a centros de poder”. Nos

bandos, a hierarquia está em constante ameaça exatamente por não comportar nenhum

centro de poder fixo, sendo o poder mantido por persuasão e pelo prestígio. É uma

dominação semelhante à do líder ou à da vedete, que corre sempre o risco de ser perdida.

No Estado, o importante é conservar a ordem e a dominação social pelas instituições de

poder, pelos chefes de Estado, ocorrendo assim uma cristalização de aparelhos separados
91

do campo social. O mecanismo da chefia nos bandos está sempre acoplado a

movimentos do próprio corpo social. Esses exemplos servem para mostrar uma outra

maneira de se pensar a comunicação, as relações sociais e a própria produção de

subjetividade.

Mas existem ainda outros princípios importantes para que se avance na

compreensão da noção de rizoma. Trata-se do princípio de ruptura a-significante, onde

os dualismos não servem mais para explicar os cortes que aparecem nas cadeias dos

fluxos. O rizoma é cortado pelas linhas de fuga que podem formar uma organização, ou

um território, em qualquer lugar do processo. A maior característica dessas formações é

a contingência. Nunca se sabe por quanto tempo pode durar uma organização, ou um

conjunto molar, enfim, quando novas linhas de fuga podem surgir e, com elas, novos

conjuntos molares. Este é o próprio movimento da história universal, que para Deleuze e

Guattari é sempre uma história universal das contingências produzida por movimentos,

por devires que se entrecruzam fazendo circular intensidades e provocando processos de

desterritorializações e reterritorializações cada vez mais heterogêneos. O princípio a-

significante supõe um tipo de relação que não comporta atribuições ou séries evolutivas

arborescentes. Ao citarem exemplos da biologia e da própria genética, como o modo de

funcionamento viral, Deleuze e Guattari (2000, p. 20) afirmam a possibilidade de cadeias

rizomáticas que produzem comunicações transversais entre linhas diferenciadas, o que

faz desmontar as árvores genealógicas: “Evoluímos e morremos devido a nossas gripes

polimórficas e rizomáticas mais do que devido a nossas doenças de descendência ou que

têm elas mesmas sua descendência. O rizoma é uma antigenealogia”.


92

Trata-se de evolução a-paralela, que cresce conjugando fluxos

desterritorializados, que aumenta seus limites pelas linhas de fuga capazes de

estabelecerem contatos com novos pontos sempre além de seus próprios territórios e em

outras direções. Os princípios descritos por Deleuze e Guattari para explicar o modo de

funcionamento do rizoma estão interligados a tal ponto que não podemos supor um sem

o outro.

Deleuze e Guattari contrapõem os princípios de cartografia e de decalcomania

quando criticam a noção psicanalítica de sexualidade, ou melhor, a noção edipiana

aplicada ao desenvolvimento da sexualidade humana. Está-se novamente diante da

oposição entre rizoma e modelo estrutural ou gerativo. Este último funciona a partir de

estados organizados que podem ser decompostos em unidades que estão em relação com

suas dimensões mais imediatas. Para Deleuze e Guattari (2000, p. 21), trata-se sempre de

um modelo representativo que funciona segundo uma lógica binária:

Do eixo genético ou da estrutura profunda, dizemos que eles são antes de tudo
princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito. Toda lógica da árvore é uma lógica
do decalque e da reprodução. Tanto na Lingüística quanto na Psicanálise, ela tem
como objeto um inconsciente ele mesmo representante, cristalizado em complexos
codificados, repartido sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura
sintagmática. Ela tem como finalidade a descrição de um estado de fato, o
reequilíbrio de correlações inter-subjetivas, ou a exploração de um inconsciente já
dado camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela consiste em
decalcar algo que se dá já feito, a partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um
eixo que suporta. A árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são
como folhas da árvore.

Como já foi visto, o inconsciente, para Deleuze e Guattari, é sempre uma

máquina não redutível a uma representação. Por esta razão, ao invés de decalque, o

termo mais apropriado para as produções do inconsciente será mapa. A idéia de mapa

traz em si a idéia de construção, o que, aplicado ao inconsciente, o torna muito mais um

modo rizomático do que uma representação por decalques, repetições que fecham as
93

múltiplas entradas do rizoma. Este foi o grande erro de Freud e de seus cúmplices,

segundo os autores – interpretar, por exemplo, as performances do pequeno Hans

relacionando toda sua produção desejante a uma foto de família:

Vejam o que acontece já ao pequeno Hans em pura Psicanálise de criança: não se


parou nunca de lhe QUEBRAR SEU RIZOMA, de lhe MANCHAR SEU MAPA, de
colocá-lo no bom lugar, de lhe bloquear qualquer saída, até que ele deseje sua
própria vergonha e sua culpa, FOBIA (impede-se-lhe o rizoma do prédio, depois, o
da rua, enraizando-o na cama dos pais, radiculando-o sobre seu próprio corpo e,
finalmente, bloqueando-o sobre o professor Freud. Freud considera explicitamente a
cartografia do pequeno Hans, mas sempre somente para rebatê-la sobre uma foto de
família. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 23)

Deleuze e Guattari (2000, p. 22) preferem acreditar que Hans produzia mapas

por meio de suas experimentações do e no real, como afirmam a seguir:

O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele
contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos,
para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma.

O mapa segue os princípios do rizoma, ou melhor, ele é um dos princípios do

rizoma, pois sua produção é aberta e suas conexões são feitas em qualquer ponto, o que

lhe permite ser reversível e modificado a qualquer momento. O mapa possui várias

entradas e por isso é rizomático, por se fazer pelo meio, podendo ser construído por um

indivíduo, ou grupo qualquer, nas máquinas sociais. A idéia de mapa se opõe à de

decalque, pois este sempre se faz pela redundância, negligenciando as multiplicidades. O

decalque estigmatiza o inconsciente ao bloquear suas múltiplas entradas e saídas.

Decalcar é tirar fotos. Foi isso que a psicanálise, segundo os autores, não parou de fazer

com os mapas que encontrou e com os rizomas que a impregnavam por todas as

direções. Melanie Klein também conseguiu desfazer o mapa de seu paciente, o pequeno

Richard, e, ignorando sua cartografia, desenvolveu todo um modelo estereotipado de

interpretações das figuras parentais como bons ou maus objetos. Para Deleuze e Guattari
94

(2000, p. 22), não é por interpretações das pulsões parciais que se podem descrever ou

explicar os processos inconscientes:

As pulsões e os objetos parciais não são nem estágios sobre o eixo genético, nem
posições numa estrutura profunda, são opções políticas para problemas, entradas e
saídas, impasses que a criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu
desejo.

Deixar de pensar o inconsciente como produção cartográfica é perder a

dimensão de diversidade do desejo, aliás, é convertê-lo numa espécie de vergonha e

culpa, operações que são da própria máquina social repressiva. Arborizar o desejo

implica a morte do mesmo, pois sua condição de expansão se faz pelo rizoma. É isto que

a esquizoanálise reivindica: a esquize revolucionária produtiva do inconsciente. Por

esquize entende-se: “Sistema de cortes que não são apenas interrupções de um processo,

mas encruzilhada de processos. A esquize traz em si um novo capital de potencialidade”

(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 383).

No caso do pequeno Hans, a esquizoanálise propõe uma visão rizomática, onde

o que importa é analisar não só como Hans faz rizomas com a rua, a família, com o

prédio, mas também analisar como seu rizoma foi impedido com as interpretações

familialistas, ou mesmo pela influência do pai e do professor Freud. Em Hans é possível

ver como de um rizoma podem surgir estratificações do desejo, enfim, como a produção

desejante pode ser estrangulada na estrutura familiar e nas interpretações psicanalíticas.

Mas, mesmo assim, o rizoma é um fenômeno implacável e continua se

ramificando, mesmo quando processos de massificação se instauram. É um movimento

contínuo de desterritorializações e reterritorializações.

Há, então, agenciamentos muito diferentes de mapas-decalques, rizomas -raízes, com


coeficientes variáveis de desterritorialização. Existem estruturas de árvore ou de
95

raízes nos rizomas, mas, inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz
podem recomeçar a brotar em rizoma. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 24)

É interessante observar, nestes novos conceitos, a importância que os dois

autores dão à pragmática, destituindo a prioridade da análise puramente teórica desses

processos. Trata-se de uma sucessão de processos intensivos, um condicionando o outro,

ou pela desterritorialização (rizomas), ou pela reterritorialização (árvores), que estão em

uma relação de vizinhança constante. Existiria um estado de tensão constante entre os

modos rizomático e arborescente, o que torna possível que do decalque surja um rizoma

e vice-versa. Não se deve pensar em um novo dualismo entre dois modelos e, sim, em

um processo constante de alongamentos, rupturas e retomadas, até porque, como

indagam Deleuze e Guattari (2000, p. 48), na análise que fazem do Homem dos lobos,

“como é que linhas de desterritorialização seriam assinaláveis fora de circuitos de

territorialidade?”

A finalidade da esquizoanálise é mostrar, seguir, ou mesmo inventar linhas de

fuga de um rizoma e fazer delas um caminho novo, atual e afirmativo da existência, o

que estaria em oposição ao modelo fechado da árvore psicanalítica, que faz das

produções desejantes um ritual do mesmo, regressivo e negativo da existência.

Como já foi afirmado antes, Deleuze e Guattari aplicam o modelo rizomático a

vários modos de funcionamento – da biologia à filosofia. Para eles, o cérebro, o

pensamento, a memória são rizomáticos, não funcionam de modo linear, mas a partir de

constantes rupturas e descontinuidades. Inclusive, ressaltam ser este um dos principais

problemas da informática ao se apoiar em sistemas centrados e hierárquicos de

comandos. Atualmente, busca-se uma nova forma de ligação entre informações,

estudadas em vários campos do conhecimento, onde a comunicação pode ocorrer de um


96

vizinho a outro, sem necessariamente passar por conjunções hierárquicas que obedecem

a uma ordem central unificadora.

Para Deleuze e Guattari (2000, p. 29), no Ocidente, o sistema arborescente é

dominante em todos os sentidos, inclusive, no próprio domínio sexual, que foi

freqüentemente submetido ao modelo da reprodução, enquanto que:

[...] o rizoma, ao contrário, é uma liberação da sexualidade, não somente em relação


à reprodução, mas também em relação à genitalidade. No Ocidente a árvore plantou-
se nos corpos, ela endureceu e estratificou até os sexos. Nós perdemos o rizoma ou a
erva.

Por fim, a noção de rizoma serve para se pensar a subjetividade constituída por

linhas: linhas de segmentaridade e linhas de fuga, as quais abordaremos com mais

detalhes no próximo capítulo. O rizoma como diagrama é uma circulação de intensidades

que formam os agenciamentos. O rizoma é formado por dimensões, isto é, por platôs que

formam, pelo meio, regiões de intensidades, sem um começo ou finalidade organizadora

e culminante.

O que está em questão no rizoma é uma relação com a sexualidade, mas também
com o animal, com o vegetal, com o mundo, com a política, com o livro, com as
coisas da natureza e do artifício, relação totalmente diferente da relação arborescente:
todo tipo de ‘devires’. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 33)

Para investigar de modo mais cuidadoso o processo de subjetividade fora do

alcance psicanalítico, é necessário avançar na análise de alguns conceitos que ainda

precisam de maior elaboração, como é o caso das noções de agenciamento, linha de fuga,

subjetividade, devir e outros, tendo em vista que todos estes conceitos, de um modo ou

de outro, estão estreitamente interligados, não sendo possível uma análise nos moldes

lineares.
97

2.3.2 SUBJETIVIDADE E AGENCIAMENTO

Ao invés de sujeito, de sujeito de enunciação ou das instâncias psíquicas de Freud,


prefiro falar em ‘agenciamento coletivo de enunciação’. O agenciamento coletivo
não corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social
predeterminada. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 39)

Até agora a relação entre subjetividade e agenciamento já foi várias vezes

sugerida. Contudo, não o suficiente para que se entendam, de modo mais claro, as

construções de uma nova imagem do pensamento sobre a subjetividade, tal qual proposta

por Deleuze e Guattari. Deleuze investigou, de modo muito próprio, as grandes imagens

do pensamento e encontrou, sobretudo no pensamento de Espinosa e de Nietzsche,

contribuições indispensáveis em suas elaborações sobre os conceitos de devir, de CsO,

de intensidades, de acontecimento... Deste modo, Deleuze junto com Guattari são

pensadores que procuram escapar das dualidades, dos planos de organização

(estratificados) e dos modelos individualizantes da subjetividade. Para eles, não há

enunciados individuais, sendo o indivíduo apenas uma das formas de subjetividade:

[...] a subjetividade, segundo os dois autores, não é dada; ela é objeto de uma
incansável produção que transborda o indivíduo por todos os lados. O que temos são
processos de individuação ou de subjetivação, que se fazem nas conexões entre
fluxos heterogêneos, dos quais o indivíduo e seu contorno seriam apenas uma
resultante. Assim, as figuras da subjetividade são por princípio efêmeras, e sua
formação pressupõe necessariamente agenciamentos coletivos e impessoais.
(ROLNIK, 2000, p. 453)

Quando Deleuze e Guattari propõem uma concepção dos agentes coletivos de

enunciação, eles pretendem ultrapassar a dicotomia entre sujeito de enunciação e sujeito

do enunciado. É importante frisar que este modo de definição da subjetividade está

fundamentado no pensamento ocidental, sobretudo cartesiano, que reduz o pensamento a

um encadeamento reflexivo. Este modo impede de tomar o pensamento como processo,

efeito da configuração de múltiplas linhas que compõem os agenciamentos. Portanto, o


98

que importa na concepção esquizoanalítica é saber como as produções da subjetividade

funcionam – “qual é a máquina”, quais agenciamentos a produziram de um determinado

modo e quais possibilidades de novos agenciamentos elas permitem. É neste sentido que

os autores se autodenominam funcionalistas, sempre interessados no modo de

funcionamento dos agenciamentos. Está-se muito longe dos recorrentes significantes

despóticos determinados pelo inconsciente psicanalítico e suas representações edipianas.

Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos,


um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de
corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de
outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações
incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o
agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o
estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem. (DELEUZE e
GUATTARI, 1977, p. 112)

Nesta citação, os autores voltam a explodir com a centralização da

subjetividade no indivíduo, sobretudo com a que foi produzida pela psicanálise, segundo

modos capitalísticos de subjetivação. Eles colocam toda a temática da subjetividade

como resultado dos agenciamentos molares e/ou moleculares. Guattari, em sua passagem

pelo Brasil, não cansou de questionar as noções de indivíduo como referencial geral dos

processos de subjetivação.

Parece oportuno partir de uma definição ampla da subjetividade, como a que estou
propondo, para, em seguida, considerar como casos particulares os modos de
individuação da subjetividade: momentos em que a subjetividade diz eu, ou super-eu
(ego ou superego), momentos em que a subjetividade se reconhece num corpo ou
numa parte de um corpo, ou num sistema de pertinência corporal coletiva. Mas aí
também estaremos diante de um pluralismo de abordagens do ego e, portanto, a
noção de indivíduo vai continuar a explodir. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 40-
41)

Como os agenciamentos são feitos de linhas, é necessário, então ,que se retorne

à elas. As noções de agenciamento, linhas, rizomas, corpo sem órgãos são muito

próximas, pois uma compõe a outra. Os agenciamentos se produzem por linhas


99

rizomáticas inscritas em um corpo sem órgãos . Tais linhas são de diferentes naturezas

que, segundo Deleuze e Guattari, se dividem em três conjuntos, sendo cada conjunto

constituído por múltiplas espécies de linhas. Em “Mi Platôs” (1999), os autores afirmam

que algumas linhas nos são determinadas de fora, outras surgem por acaso e outras

devem ser inventadas. Estas últimas são as mais interessantes do ponto de vista

esquizoanalítico, pois implicam a capacidade de o ser humano compor suas próprias

linhas, cada vez mais heterogêneas e singulares. Este modo de conceber a subjetividade

rompe com os sistemas centrados, significantes, binários e identitários. Trata-se de

perceber e de perseguir os traços de cada conjunto de linhas que, por princípio, nada

querem dizer ou significar.

É uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso
mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. Rizoma.
Certamente não tem nada a ver com a linguagem, é ao contrário a linguagem que
deve segui-las, é a escrita que deve se alimentar delas entre suas próprias linhas.
Certamente não têm nada a ver com um significante, com uma determinação de um
sujeito pelo significante; é, antes, o significante que surge no nível mais endurecido
de uma dessas linhas, o sujeito que nasce no nível ma is baixo. Certamente não têm
nada a ver com uma estrutura, que sempre se ocupou apenas de pontos e de posições,
de arborescências, e que sempre fechou um sistema, exatamente para impedi-lo de
fugir. (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 77)

Novamente a distinção entre a proposta psicanalítica e a esquizoanalítica

aparece. Na primeira, há um impedimento das linhas de fuga pelas determinações

edipianas (linhas endurecidas e de configuração molar). Na segunda, há uma busca das

linhas de fuga que se traçam num CsO, não submetidas à ordem imaginária ou

simbólica. Este é o caráter prático da esquizoanálise, que se ocupa em saber como um

CsO é constituído. Neste sentido, nenhuma linha tem primazia sobre a outra, diferente da

psicanálise que faz de Édipo sua “linha dura”, sua “linha costumeira”.
100

A esquizoanálise não tem outro objeto prático: qual é o seu corpo sem órgãos? Quais
são suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha
abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros? Sua própria linha de
fuga? Seu CsO que se confunde com ela? Você racha? Você rachará? Você se
desterritorializa? Qual linha você interrompe, qual você prolonga ou retoma, sem
figuras nem símbolos? (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 77)

As linhas que compõem cada agenciamento podem ser de segmentaridade

(dura, molar, de territorializações...) ou de fuga (flexível, molecular, de

desterritorializações...). É importante ressaltar que, para Deleuze e Guattari, as linhas de

segmentaridade não podem ser definidas a partir das determinações sociais e as linhas de

fuga a partir dos processos de um mundo interno, particular, onde cada indivíduo busca

subverter as primeiras. Estas classificações estariam equivocadas, pois poderiam supor

uma ordem subjetiva interior, identificada com o imaginário, capaz de “perverter” a

ordem social. Seria a própria relação entre superestrutura e infra-estrutura que, para os

autores, tem como pólo de atração as categorias do pensamento moderno sobre a

subjetividade. Inclusive, estas categorias estão presentes nos modos de referência

utilizados por Freud, quando este trata dos dualismos pulsionais. Os processos de

semiotização, propostos por Deleuze e Guattari, não consideram a noção de conflito

como principal elemento constituinte da produção de subjetividade, sobretudo pelo

desconhecimento que esta noção apresenta em relação aos processos de singularizarão.

Assim também foi o modo como Foucault (1977) investigou o dispositivo de

sexualidade contrapondo-o à tese repressiva. O trabalho de Foucault consistiu,

exatamente, em colocar os discursos da repressão e seus contra-discursos da liberação

numa mesma economia geral produtora e reprodutora de um socius.


101

Com a noção de agenciamento é possível substituir as instâncias psíquicas

freudianas, como também as predeterminações sociais pela perspectiva processual-

produtiva, em oposição à perspectiva estruturalista. Portanto:

Deleuze e Guattari propõem pensar o desejo como parte da infra-estrutura, já que ele
produz real. A revolução social seria, dessa forma, inseparável da revolução do
desejo, freqüentemente aprisionado em modos de subjetivação serializados. Tratar-
se-ia de fazer atravessar (e não articular) o molar e o molecular: lutas de classe e de
grupos (constituídos com produção de novas formas de subjetivação). A questão
primordial estaria em pensar/conectar/fazer funcionar as máquinas do desejo, e as
máquinas sociais em regime de imanência [...]. (BARROS, 1994, p. 374-375)

Está-se no plano dos agenciamentos sem sujeito, dos agenciamentos coletivos

de enunciação, onde não estão presentes dicotomias entre: superestrutura/infra-estrutura;

singular/coletivo; sujeito/objeto... Portanto, nenhum agenciamento é mais verdadeiro que

o outro, ou hierarquicamente mais importante. Os agenciamentos não são de mesma

natureza, enfim, não fazem parte de um mesmo sistema de semiotização. Guattari

(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 267) menciona as rupturas existentes nas passagens

de um agenciamento para um outro, recusando pensar em uma continuidade significativa

entre eles. O que existe para este pensador são fenômenos de ruptura que não se

relacionam dialeticamente, ou por dualismos, mas coexistem. “O que acontece são

blocos de possível que se substituem enquanto tais: cada nova constelação de universo

cria um novo bloco de possível, sem qualquer caráter de continuidade”. Aqui também é

refutada a noção de sublimação. Cada estado vivido implica um campo específico de

possibilidades que não são regidas por um princípio de constância. Qualquer situação

vivida, como caminhar, falar, sonhar, alucinar, pensar em algo tem a ver com tipos de

agenciamentos diferentes. Guattari (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 269) usa como

exemplo a produção onírica para mostrar como a prática interpretativa da psicanálise não
102

funciona, a não ser pela lógica de um sistema capitalista e por um tipo de princípio

filosófico.

Os lapsos, os atos falhos, os sintomas, são como pássaros que vêm bater seus bicos
no vidro da janela. Não se trata de ‘interpretá-los’. Trata-se, isto sim, de situar sua
trajetória para ver se eles têm condições de servir de indicadores de novos universos
de referência, os quais poderiam adquirir uma consistência suficiente para provocar
uma virada na situação.

É por esta razão que a esquizoanálise não trabalha com a noção de cura ou de

recuperação. Muitas práticas clínicas e institucionais são caracterizadas por certos tipos

de pensamento dominante que tomam o fenômeno-objeto como passível de intervenções

miraculosas, à espera de um saber, ou técnica sofisticada, capaz de revelar os ocultos e

modificar as inadequações, sejam elas quais forem. No âmbito acadêmico, as lutas ainda

são muito intensas, pois não só os discentes (futuros psicólogos), como docentes

trabalham incessantemente a partir desses dualismos e imagens do pensamento

dominante. As demandas sociais quanto ao “papel” do psicólogo também se expressam

neste sentido. Pode ser muito assustadora a sentença deleuzo-guattariana, que afirma não

existirem enunciados individuais e verdades a serem reveladas. Afirmar a inexistência de

leis universalizantes, ou de um princípio transcendente, ou ainda, a inexistência do

sujeito, pode trazer muito desconforto. A noção de agenciamento rompe com os

princípios do cogito cartesiano, vigente nas elaborações teóricas

(filosóficas/psicológicas) ocidentais, promovendo, dessa forma, o descentramento do

sujeito nas produções de subjetividade, onde inexiste a idéia de evolução do

desenvolvimento. Pensa-se muito freqüentemente que as etapas do desenvolvimento

ocorrem de modo evolutivo, ou seja, uma etapa localizada na fase oral, digamos, por

exemplo, seis meses de vida, é concebida como uma fase imatura quanto às etapas
103

seguintes. Por que não pensar de acordo com a noção de agenciamento, que se refere a

diferentes blocos de possíveis, sem referência à corrente concepção de maturidade e

adaptação?

A produção de subjetividade, para os autores aqui estudados, é pensada como

processo de subjetivação sem sujeito, sendo, então, puro processo de experimentação.

Trata-se de máquinas que operam a partir das diferentes linhas de produção, acionadas

na própria dimensão do real, sem intermediários da ordem da representação. O processo

de subjetivação ocorre no entrecruzamento das linhas molares e moleculares, num

incessante movimento de dobras. As dobras são definidas como um movimento regido

por um modo de conexão engendrado pela necessidade de solucionar problemas que o

mundo coloca. Para ilustrar tais movimentos, pode-se pensar no curso de um rio, que

pode dobrar-se formando seus remansos. Segundo Cardoso Jr. (2005, p. 189), esses

remansos podem ser entendidos como os processos de subjetivação e o rio como seu

plano de imanência. Um não pode existir sem o outro:

Deleuze denominou esses processos de subjetivação de “ser-se”. Neles, torna-se


possível a relação de si consigo mesmo, de mim comigo mesmo. A subjetivação é
como uma “dobra do lado de fora”, diz Deleuze. Se os remansos constituem um lado
de dentro e o rio é o lado de fora, então a subjetivação são dobras do rio. O ser-si,
portanto, é um lado de fora que se dobra.

É por esta razão que a noção de linha é útil, pois mostra que não há um

dualismo entre mundo interno e mundo externo e, sim, dobras que se fazem do fora, a

linha que se dobra (fita de Moébius): “[...] nada além do lado de fora, mas exatamente o

lado de dentro do lado de fora” (DELEUZE, 1998, p.104).

A subjetivação é um modo de existência, onde, inclusive os, processos

de individuação também podem ocorrer.


104

A noção de subjetividade implica, desse modo, o funcionamento de máquinas que


produzem tanto individuações do tipo ‘sujeito’, quanto do tipo ‘acontecimentos sem
sujeito’ (“um vento, uma atmosfera, uma hora do dia, uma batalha”, como nos diz
Deleuze em sua leitura de Foucault). (BARROS, 1994, p. 381)

Pelbart (2004) aborda a complicada temática da gênese dos processos de

subjetivação, referindo-se à noção de cisão e de dobra (operação de dobramento). Ainda

que não seja possível abordar com mais cuidado esta temática, é importante mostrar sua

relevância nos estudos da subjetividade que não estejam comprometidos com a filosofia

reflexiva. Neste sentido, Deleuze, que foi leitor de Foucault, contribui com a questão do

fora e do dentro como modo de constituição do sujeito em seu processo de individuação.

O dentro é uma dobra do fora. Trata-se de uma operação de duplicação muito

particular...

[...] um dobrar-se do ser pré-individual (fora) numa interioridade, ou seja, numa


memória, não memória dos fatos, como já o dissemos, mas duplicação do fora, do
pré-individual que ali permanece ativo, insistente, Memória absoluta. [...] a
subjetividade pode ser pensada ao mesmo tempo como cisão e como dobra. São
como que as duas faces da mesma moeda, uma moeda que só se constitui tendo essas
duas faces, duas fases, nelas se fazendo e se defasando, modulando-se. (PELBART,
2004, p. 57)

Do que se trata então? Modos de subjetivação que criam campos de visibilidade

e de dizibilidades, constituindo o que os autores denominaram de agenciamento coletivo

de enunciação. Não há nenhuma causa transcendente, absoluta responsável pelos

agenciamentos. Na origem de um agenciamento está sempre uma desterritorialização.

Sem dúvida, um agenciamento jamais comporta uma infra-estrutura causal. Ele


comporta, no entanto, e no mais alto ponto, uma linha abstrata de causalidade
específica ou criadora, sua linha de fuga, de desterritorialização, que só pode efetuar-
se em relação com causalidades gerais ou de uma outra natureza, mas que não se
explica absolutamente por elas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 78)

Deste modo, podemos afirmar que, se existe primado, este é o da relação, sem

qualquer posição de hierarquia, onde sujeito e objeto se formam num mesmo tempo de
105

coexistência no real. Aqui também voltamos à noção de desejo, pois este só existe se

agenciado, ou maquinado. Como já foi definido anteriormente: agenciamentos são

máquinas desejantes. Um agenciamento nunca é da ordem do espontaneísmo. Isto

significa dizer que a principal característica dos agenciamentos é sua construtividade.

Trata-se de dois tipos distintos de agenciamentos: os construídos pela reprodução

estratificada, segundo a visão edipiana, e os construídos por linhas de fuga, segundo a

esquizoanálise. O primeiro tipo funciona por meio de repetições do mesmo, enquanto o

segundo segue a ordem dos fluxos e do devir. Assim, de acordo com a esquizoanálise, os

processos de singularização, os quais serão discutidos com mais detalhes posteriormente,

estão relacionados à esfera da ruptura, àquilo que escapa, àquilo que se desterritorializa e

se territorializa em outro lugar, dos nomadismos...

Quanto aos agenciamentos produzidos pela psicanálise, estes prenderam a

sexualidade na idéia reducionista de infra-estrutura:

Não acreditamos, em geral, que a sexualidade tenha o papel de uma infra-estrutura


nos agenciamentos de desejo, nem que ela forme uma energia capaz de
transformação, ou então de neutralização e sublimação. A sexualidade não pode ser
pensada senão como um fluxo entre outros, entrando em conjunção com outros
fluxos, emitindo partículas que entram elas próprias sob esta ou aquela relação de
velocidade e lentidão na vizinhança de outras partículas. Agenciamento algum pode
ser qualificado segundo um fluxo exclusivo. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 117)

2.3.3 OS FLUXOS DE SEXUALIDADE: OS DEVIRES

Um fluxo é algo intensivo, instantâneo e mu tante, entre uma criação e uma


destruição. Somente quando um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua
conjugação com outros fluxos, que o desterritorializam por sua vez e vice-versa. Em
um devir-animal, conjugam-se um homem e um animal, sendo que nenhum deles se
assemelha ao outro, nenhum imita o outro, cada um desterritorializando o outro e
levando para mais longe a linha. Sistema de substituição e de mutações pelo meio. A
linha de fuga é criadora desses devires. As linhas de fuga não têm território.
(DELEUZE e PARNET, 1998, p. 63)
106

Orlandi (2000) afirma que Deleuze elaborou uma filosofia da diferença em

oposição a uma filosofia do idêntico. Esta sempre foi uma característica do pensamento

deleuziano, mas que, em parceria com Guattari, se torna extremamente produtiva na

elaboração de uma verdadeira teoria das multiplicidades. Podemos afirmar que esses

dois pensadores montaram máquinas de fazer pensar, utilizando, para isto, linhas de ação

da diferença.

Como pensar a sexualidade a partir de outros domínios diferentes dos domínios

identitários da psicanálise? No “O Anti-Édipo”, Deleuze e Guattari (1976, p. 232) fazem

um grande esforço analítico das forças molares determinantes de um conjunto familiar

que limitam os investimentos libidinais a uma relação binária e da ordem da

representação. Os autores buscam compreender o que está em jogo neste primeiro

quadro de relações. Um outro esforço consiste na ultrapassagem desse sistema molar em

busca de um outro campo de relações: o campo das engrenagens moleculares que

formam as máquinas desejantes. É neste campo que a sexualidade será pensada – onde

ela não “representa” mais nada.

A sexualidade não é mais considerada como uma energia específica que une pessoas
derivadas dos grandes conjuntos, mas como a energia molecular que põe em conexão
moléculas-objetos parciais (libido), que organiza disjunções inclusivas sobre a
molécula gigante do corpo sem órgãos (numen), e distribui estados, segundo
domínios de presença ou zonas de intensidade (voluptas). Pois as máquinas
desejantes são exatamente isso: a microfísica do inconsciente, os elementos do
micro-inconsciente.

Mas, como já foi visto, todo este campo molecular não pode ser pensado

separado do molar como modos de constituição do desejo no social. Os micro-

investimentos sexuais investem o macro-social, e vice-versa, manifestando toda ordem

de comportamentos, inclusive a produção edipiana.


107

Mas é em “Mil Platôs” (1999-2002) que os contornos desta investigação se

mostram mais visíveis, sobretudo quando a noção de devir é conectada à noção de

desejo, distinguindo-se de qualquer idéia de imitação ou de generalidade. Vejamos estas

características respectivamente:

Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é
certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder,
instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir
por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não
nos conduz a “parecer”, nem “equivaler”, nem “produzir”. (2002b, p. 19)

Deleuze (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 10) apresenta uma definição de devir

ainda mais completa:

Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de
justiça ou de verdade, não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega
ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão “o que você está
se tornando?” é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que
ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de
imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela,
núpcias entre dois reinos. As núpcias são sempre contra natureza. As núpcias são o
contrário de um casal. Já não há máquinas binárias: questão-resposta, masculino-
feminino, homem-animal etc.

Nestas citações estão descritas algumas das características que o devir não

possui. Devir não é imitação. Devir não tem uma origem. Devir não é relação binária de

troca, nem evolução por filiação. Isto não quer dizer que imitações não possam ocorrer,

só que estas não são da ordem do devir, nem o podem explicar. Alguns exemplos são

utilizados para explicar a noção de devir. Um desses exemplos é o da orquídea e da

vespa. A princípio “a orquídea parece formar uma imagem de vespa, mas, na verdade, há

um devir-vespa da orquídea, um devir-orquídea da vespa, uma dupla captura, pois ‘o

que’ cada um se torna não muda menos do que ‘aquele’ que se torna” (DELEUZE e

PARNET, 1998 p. 10). Não se trata de metáforas, de analogias, nem de estados


108

significados, ou de relações significantes. Têm-se com a noção de devir movimentos da

ordem das vizinhanças entre moléculas compostas, emissões corpusculares... Outro

exemplo diz respeito ao devir-animal no humano. Não se trata de imitar um animal,

como aparece em vários momentos literários, no Hans, em filmes, mas de compor com o

animal. Composição que se dá pelas velocidades e lentidões em zonas de vizinhanças

específicas.

Ninguém se torna animal senão molecular. Ninguém se torna cachorro molar latindo,
mas, ao latir, se isso é feito com bastante coração, necessidade e composição, emite-
se um cachorro molecular. O homem não se torna lobo, nem vampiro, como se
mudasse de espécie molar; mas o vampiro, o lobisomem são devires do homem, isto
é vizinhança entre moléculas compostas, relações de movimento e repouso, de
velocidade e lentidão, entre partículas emitidas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002b,
p. 67)

Neste caso, Deleuze e Guattari estão falando do devir animal em ato, de uma

produção do animal molecular, ainda que o animal real seja tomado em sua forma molar.

Em outro exemplo, devir-planta, onde os autores comentam a Albertine de Proust, o que

está em jogo são conjugações moleculares distintas das formas molares que são

caracterizadas pelas relações duais e pela ordem estratificada socialmente. Não se trata

de figuras rígidas do plano das identidades.

Sim, todos os devires são moleculares; o animal, a flor ou a pedra que nos tornamos
são coletividades moleculares, hecceidades, e não formas, objetos ou sujeitos
molares que conhecemos fora de nós, e que reconhecemos à força de experiência, de
ciência ou de hábito. Ora, se isso é verdade, é preciso dizê -lo das coisas humanas
também: há um devir-mulher, um devir-criança, que não se parecem com a mulher
ou com a criança como entidades molares bem distintas (ainda que a mulher ou a
criança possam ter posições privilegiadas possíveis, mas somente possíveis, em
função de tais devires). (DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 67)

Quando se fala em devir, está-se referindo a todos os devires-minoritários do

mundo, com todas as suas conexões de intensidades, de fluxos instantâneos e mutantes

constitutivos tanto dos processos de criação como de destruição. Esses processos estão
109

estreitamente ligados, pois só há construção onde há uma desconstrução, e vice-versa.

São os processos de desterritorializações e reterritorializações, já comentados neste

trabalho, que correspondem, de modo muito particular, ao vocabulário deleuzo-

guattariano, inaugurados no “Anti-Édipo”. Tais processos caracterizam os movimentos

dos devires que estão em constante engendramento. A desterritorialização ocorre quando

um determinado território é desmanchado pela composição de seus fluxos com outros

fluxos heterogêneos. Segundo Barros (1994, p. 274), nesta comp osição ocorre “um

aumento de massa ocasionado pelo deslocamento de partículas dos fluxos numa

determinada unidade de tempo”. Produzem-se, então, mudanças de um estado intensivo

para um outro 15 .

Somente quando um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua conjugação


com outros fluxos, que o desterritorializam por sua vez e vice-versa. Em um devir-
animal, conjugam-se um homem e um animal, sendo que nenhum deles se assemelha
ao outro e levando para mais longe a linha. Sistema de substituição e de mutações
pelo meio. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 63)

O que caracteriza as desterritorializações são as linhas de fuga, pois estas não

têm território, que produzem um constante movimento de destruição de antigos

territórios. Os territórios são passíveis de desmanchamentos. É importante que se

esclareça que a noção de território é muito ampla para os autores, mas freqüentemente se

refere ao sentido existencial, onde operações de circunscrição recortam a existência. Os

mecanismos de territorializações são apropriações que tornam o mundo

“compreensível”, a partir de definições cristalizadas, de relações de propriedade – sem

sujeito, mas que operam por agenciamentos do tipo molar, sistemas de identificações

subjetivas. “O território é, portanto a dimensão subjetivante do agenciamento – na

15
A autora refere -se à noção de quanta para denominar a passagem de um estado intensivo para outro (BARROS,
1994, p. 274).
110

medida em que não há intimidade senão do lado de fora, vinculada a um exterior,

oriunda de uma contemplação prévia a qualquer divisão de um sujeito e de um objeto”

(ZOURABICHVILI, 2004, p. 47).

Mas as desterritorializações, os abandonos de territórios não podem ocorrer

sem os processos de reterritorialização. Estes processos são definidos como uma espécie

de reconfiguração de novos territórios, onde ocorrem empréstimos de códigos de um

território para outro – sobrecodificações. Tais processos caracterizam os sistemas

capitalistas pelas constantes tentativas de reapropriações que fazem dos processos de

desterritorializações.

O capitalismo é um bom exemplo de sistema permanente de reterritorialização: as


classes capitalistas estão constantemente tentando “recapturar” os processos de
desterritorialização na ordem da produção e das relações sociais. Ele tenta, com isso,
controlar todas as pulsões processuais (ou phylum maquínico) que trabalham a
sociedade. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p . 388)

As linhas de fuga são responsáveis, como já foi mencionado, pelas

desterritorializações, destruições de territórios pelas novas seqüências de fatos,

desestabilizando sistemas estabelecidos. A história da humanidade é feita por constantes

movimentos de desterritorializações e reterritorializações. São lutas intermináveis, toda

uma maquinaria de apropriações e resistências, construção de hegemonias e quedas de

impérios, máquinas despóticas e revolucionárias, verdadeiras batalhas, engenhocas de

guerra... Deleuze (2004b, p. 43) afirma que, na história, é mais importante observar os

devires, onde as linhas de fuga produzem as desterritorializações. Certamente que a

história é importante, porém, existem processos a-históricos ou trans-históricos.

Em Mille Plateaux, os ‘devires’ têm muito mais importância que a história. Não é
absolutamente a mesma coisa. Tentamos, por exemplo, construir um conceito de
máquina de guerra; ele implica antes de mais nada um certo tipo de espaço, uma
composição muito particular dos homens, dos elementos tecnológicos e afetivos
111

(armas e jóias...). Um agenciamento só é histórico secundariamente, quando entra em


relações muito variáveis com os aparelhos de Estado.

Deleuze afirma que as linhas são produzidas nas rupturas: “Partir, se evadir, é

traçar uma linha”. E, ainda, descreve os diferentes tipos de cultura e suas formas de

desterritorialização e reterritorialização, seus modos de relação com os territórios, suas

cartografias. “Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobrem

mundos através de uma longa fuga quebrada” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 49).

Levando os conceitos até aqui analisados para o campo psicanalítico, podemos

deduzir que a teoria edipiana de sexualidade consiste em reterritorializações do desejo e,

conseqüentemente, em modos de bloqueio do devir. Não há dúvida de que Édipo seja

uma dobra, mas uma dobra indevida. Ele é uma linha, mas uma linha de segmentaridade

dura, de ordem molar. “Mas a psicanálise corta e achata todas as conexões, todos os

agenciamentos, ela odeia o desejo, odeia a política” (DELEUZE e PARNTET, 1998, p.

95). Deleuze critica a psicanálise por sua ignorância quanto aos procedimentos lógicos

da lingüística, sobretudo da lógica do artigo indefinido.

A psicanálise quer a qualquer preço que, atrás dos indefinidos haja um definido
oculto, um possessivo, um pessoal. Quando as crianças de Melanie Klein dizem “um
ventre”, “como as pessoas crescem”, Melanie Klein ouve “o ventre de minha
mamãe”, “será que serei grande como meu papai?”. Quando dizem “um Hitler”, “um
Churchill”, Melanie Klein vê nisso o da mãe ruim ou do bom pai. Os militares e os
meteorologistas, mais do que os psicanalistas, têm, ao menos, o sentido do nome
próprio quando dele se servem para designar uma operação estratégica ou um
processo geográfico: operação Tufão. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 96)

Com a noção de sexualidade percebem-se melhor as críticas que Deleuze e

Guattari fazem aos procedimentos psicanalíticos que obstruem o desejo em seu processo

maquínico. Em Hans, as interpretações freudianas produzem, pelos mecanismos de

deslocamento e condensação, toda uma deformação e captação dos agenciamentos


112

maquínicos. No lugar do devir, sobrecodificações. Freud consegue, no caso clínico de

Hans, chegar ao ápice das interpretações dos fluxos de desejo, operando decodificações

de toda sorte, tornando o desejo impotente. No lugar de um devir-animal, um pai

deslocado. No lugar dos agenciamentos coletivos de enunciação, relações de

significância determinadas pela Lei – as repetições infinitas. De acordo com a

psicanálise, todos serão eternamente perseguidos pela ameaça de castração e,

conseqüentemente, pelos seus efeitos de culpabilização inconscientes.

Bem outra é a concepção esquizoanalítica quando tenta descolar o desejo das

soldas edipianas. O desejo só pode ser apreendido a partir de agenciamentos

determinados por condições sociais; afinal, todo agenciamento é coletivo. A

esquizoanálise se pergunta o que foi feito do desejo de Hans e responde afirmando que

ele foi colocado na ordem das exigências capitalistas – familialistas, transformado em

retrato de família. Perde-se, desse modo, a fluidez de sua produção desejante quando

todo seu comportamento é interpretado segundo cadeias figurativas. Para Deleuze

(DELEUZE e PARNET, 1998, p. 113), os agenciamentos não podem ser reduzidos a

meras repetições de conteúdo identificatórios, em que as pulsões se submetem a

invariantes estruturais.

Mas jamais invocaremos pulsões que remetessem a invariantes estruturais, ou a


variáveis gerais. Bucal, anal, genital etc., perguntamos, a cada vez, em que
agenciamentos esses componentes entram: não a que pulsões eles correspondem,
nem a que lembranças ou fixações eles devem sua prevalência, nem a que incidentes
elas remetem, mas com que elementos ext rínsecos eles compõem para fazer um
desejo, para fazer desejo. Já é assim na criança, que maquina seu desejo como o de
fora, com a conquista do de fora, não em seus estágios interiores, nem sob estruturas
transcendentes.

O devir em Hans passa por uma série de procedimentos de confinamento, até

que todas as suas experiências são sugadas para uma espécie de buraco negro do
113

Complexo de Édipo. Com ele o professor Freud explicou como o desejo pode ser

domesticado, organizado pela ótica familialista, arborificado e organizado segundo

mecanismos de imitação identificatórios. A noção edipiana tornou o pensamento

freudiano empobrecido ao reforçar o que em Nietzsche foi chamado de forças reativas do

humano. Pelbart (2004, p. 110) foi buscar na obra “Mil Platôs” (2002b), no capítulo que

os autores tratam do devir, a seguinte definição:

O devir é aí pensado como um entre dois: entre dois significa entre dois termos, entre
dois pontos (por exemplo, a abelha e a orquídea, o homem e o lobo, Albertina e a
planta, eu e minha infância). O devir não é a operação pela qual um termo se
transforma num outro, por imitação ou analogia. Conforme o princípio emprestado a
Hume, toda relação é concebida como exterior aos seus termos. Assim, entre um
termo e outro cria-se uma zona de indiscernibilidade, de vizinhança, um no man’s
land para onde são arrastados os dois termos; ou melhor, para onde são emitidas as
partículas que por sua vez entram numa relação determinada de movimento e
repouso.

Deleuze e Guattari (2000, p. 24) tomam outro rumo na leitura que fazem não só

do pequeno Hans, mas também dos delírios do presidente Shcreber, do caso clínico

Homem dos lobos, e concluem que:

Estudar o inconsciente, no caso do pequeno Hans, seria mostrar como ele tenta
constituir um rizoma, com a casa da família, mas também com a linha de fuga do
prédio, da rua, etc.; como estas linhas são obstruídas, como o menino é enraizado na
família, fotografado sob o pai, decalcado sobre a cama materna; depois, como a
intervenção do professor Freud assegura u ma tomada de poder do significante como
subjetivação dos afetos; como o menino não pode mais fugir senão sob a forma de
um devir-animal apreendido como vergonhoso e culpado (o devir-cavalo do pequeno
Hans, verdadeira opção política).

Os rizomas de Hans mostram-se estranhos às figuras familiares e suas linhas de

fuga explodem em intensidades múltiplas que rompem constantemente com o centro,

desterritorializando-se insistentemente sobre o plano do devir. As linhas de fuga são

linhas de desterritorializações produzidas em uma multiplicidade de devir: devir-animal,

devir-humano, devir-criança, devir-mulher, devir-bicha, devir-negro, devir-vegetal... E


114

todo devir só tem condições de sê-lo a partir das condições existenciais, ou seja, o devir

não pode ser confundido com o caos, mas compreendido em sua relação com ele. O

devir existe como experiência molecular, em uma relação de multiplicidade, rizomática,

características dos agenciamentos maquínicos.

Surpreendente é o que fizeram do devir-criança quando o transformaram em

um universo infantil preso ao mundo adulto. Ariès (1978) mostra bem essa captura da

criança por uma engrenagem sócio-histórico-econômico-política. A sexualidade infantil,

de características perversas, teorizadas pelo pensamento freudiano, fomentou ainda mais

a necessidade de esquadrinhar e expandir os poderes da família nuclear, tornando a

sexualidade, desde muito cedo, um alvo da atenção das práticas médicas e pedagógicas.

A sexualidade, como considerou Foucault (1977), fornece elementos altamente eficientes

para o exercício dos processos de desterritorializações e reterritorializações. A

sexualidade torna-se um importante dispositivo de captura das possibilidades

revolucionárias do desejo. Ainda mais por ser concebida por Deleuze e Guattari (2002b,

p. 72), como multiplicidades libidinais rizomáticas, inconscientes, moleculares,

constituída de partículas intensivas: “A sexualidade é uma produção de mil sexos que

são igualmente devires incontroláveis. A sexualidade passa pelo devir-mulher do homem

e pelo devir-animal do humano: emissão de partículas”.

A noção de devir produz uma ruptura com as noções psicanalíticas de

sexualidade, sobretudo quando desqualifica as categorias, ou personagens familialistas,

utilizados para entender a constituição da subjetividade. Certamente que Deleuze e

Guattari não se referem a essas categorias quando utilizam a noção de devir. Guattari
115

(1987, p. 36) usa como exemplos vários tipos de devir e, quanto ao devir-mulher, afirma

categoricamente:

Se insisto neste ponto é porque o devir corpo feminino não deve ser assimilado à
categoria “mulher” tal como ela é considerada no casal, na família, etc. Tal categoria,
aliás, só existe num campo social particular que a define! Não há mulher em si! Não
há pólo materno, nem eterno feminino[...]

A psicanálise “substancializou” essas figuras parentais, identificou o devir-

mulher com a mulher, ou com a mãe propriamente ditas, como também o devir-criança

com a criança edipiana, e assim por diante, toda vez que se deparou com um devir.

Como insistiu Guattari, precisa-se de um devir outro, para que se torne diferente do que

o corpo social repressivo obriga a ser constantemente. E é neste sentido que a

micropolítica dos devires acontece, por se tratar, necessariamente, de lutas de minoria,

resistentes ao modo molar de pensar. Assim, poder-se-ia resumir que o devir é a própria

passagem, é o que faz passar, a desterritorialização em ato, a transmutação pelas linhas

de fuga. É por isso que a idéia de continuidade não pode ser aplicada ao devir, pois só

existem blocos de devir. O termo bloco está intimamente ligado à noção de

agenciamento e totalmente distante das idéias de fixação, complexos infantis, onde se

buscam origens ou estruturas determinantes. É uma outra relação com espaços e com o

tempo que se estabelece. Em resumo, reforçam-se os principais contrapontos entre o

pensamento psicanalítico e o esquizoanalítico: ao invés de fixação em fases – blocos de

intensidades; no lugar de um organismo – o corpo sem órgãos; ao invés de relação entre

dois termos – um entre-dois; ao invés de origens – a afirmação da potência de um meio;

no lugar de imaginário/fantasma – agenciamentos; ao invés de estruturas – linhas de

fuga; no lugar do mito – um devir real.


116

A relação entre devir e tempo encontra-se muito bem elaborada no texto de

Pelbart (2004, p. 112), no capítulo sobre história e devir.

É um tempo sem antes nem depois, flutuante, não pulsado, Aion. E se há algum
relógio cabível para uma tal multiplicidade, é um “relógio que daria toda uma
variedade de velocidades”, que as afirmasse todas. Mesmo Proust é valorizado nesse
sentido: mais do que reencontrar o tempo ou recobrar a memória, busca apreender as
múltiplas velocidades coexistentes.

Pelbart baseia-se em “Mil Platôs”, quando trata a questão do tempo do devir

em sua relação com a teoria das multiplicidades (Aion versus Cronos). Por motivo de

delimitação desta pesquisa, essa relação não poderá ser detalhada. Porém, é muito

relevante a investigação das possibilidades de conexão entre alguns aspectos desta

questão e o plano clínico.

A principal tarefa da esquizoanálise consiste em desfazer as infantilizações dos

fluxos esquizo, romper com as análises de um sujeito da representação, possessivo,

individuado, que estaria em constante busca de um objeto perdido.

Já a esquizoanálise, é precisamente para estes “fluxos esquizo” que ela busca abrir
caminhos. Atualidade dos “fluxos esquizo” como construção de novos
“agenciamentos coletivos de enunciação”. Coleta dos traços de singularidade de um
processo de produção de agenciamentos de desejo no interior dos quais se analisa o
que emperra e o que possibilita sua potencialidade transformadora. Análise de uma
individuação dinâmica sem sujeito, de uma constelação funcional de fluxos sociais,
materiais e de signos que são a objetividade do desejo. Análise de um devir.
(GUATTARI, 1987, p. 8)

No próximo capítulo serão discutidas as possibilidades de uso dessas idéias, até

aqui apresentadas, em sua interface com o plano clínico, considerando, também, os seus

riscos e perigos, ainda mais por não se ter nenhum caminho que possa ser

preestabelecido. Diante de uma linha de fuga, jamais se pode afirmar por onde ela irá,

quais cartografias fará, sendo possível, inclusive, que ela recaia nas figuras edipianas e

em seus conflitos.
117

A economia da castração, a economia edipiana não funciona da mesma maneira, não


veicula os mesmos universos de possibilidade, em todo tipo de situação. Assim
sendo, o importante não é instaurar uma espécie de pequeno sistema de chave
universal de significante, mas ao contrário preservar sempre esses capitais de
possível de que cada um desses diferentes universos considerados são portadores.
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 284)
118

2.4 NOVAS POSSIBILIDADES DO DESEJO: SUBJETIVIDADE E

SINGULARIDADE

2.4.1 ESQUIZOANÁLISE E SUBJETIVIDADE

O homem sublime ou superior vence os monstros, expõe os enigmas, porém ignora o


enigma e o monstro que ele próprio é. Ignora que afirmar não é carregar, atrelar-se,
assumir o que é, mas, ao contrário, desatrelar-se, livrar, descarregar o que vive. Não
carregar a vida com o peso dos valores superiores, mesmo heróicos, porém criar
valores novos que façam a vida leve ou afirmativa. (DELEUZE, 1997, p. 115)

Se foi possível modular a subjetividade pelos princípios edipianos do desejo em

um determinado momento histórico, é possível também deduzir que novas modulações

não só estão ocorrendo na sociedade contemporânea, como também são inevitáveis. É

necessária, segundo a esquizoanálise, a investigação desses processos de subjetivação,

para que se conheçam os processos pelos quais se é modelizado e para que se invista em

movimentos de singularidade que possam liberar as cristalizações impostas.

A subjetividade, como foi mostrado anteriormente, não pode ser reduzida à

noção de indivíduo. O modo-indivíduo é um procedimento de serialização da

subjetividade, sendo apenas mais um dos modos pelos quais a subjetividade é concebida.

A subjetividade abarca todas as possibilidades de produção social e material. A noção de

produção de subjetividade coloca em jogo:

[...] as relações de luta na pluralidade de forças que constituem cada acontecimento,


a cada momento. Coloca-se como contrária à constância, às totalidades bem
fechadas, à continuidade dos fatos. Essa subjetividade, múltipla, circulando nos
conjuntos sociais, poderá ser apropriada de forma criativa, produzindo
singularizações. (BARROS, 1994, p. 381)

Produção de subjetividade diz respeito às multiplicidades existentes nos

agenciamentos maquínicos que, de modo algum, podem ser associados a povos ou

sociedades, pois não se trata de somatório de pessoas ou de uma noção de massa


119

homogênica determinada previamente. Se assim fosse, ter-se-ia que supor uma tensão

entre coletivo e singular em uma relação de polaridade. Esta idéia estaria em contradição

com a noção de agenciamento, proposta pelos autores, pois esta apresenta uma

concepção plástica da subjetividade constituída por linhas de fuga incansáveis em seu

processo de mutação.

A subjetividade é pensada como um sistema aberto:

Há hoje, nas ciências ou em lógica, todo o princípio de uma teoria dos sistemas ditos
abertos, fundados sobre as interações, e que repudiam somente as causalidades
lineares e transformam a noção de tempo. Admiro Maurice Blanchot: sua obra não
são pequenos pedaços ou aforismos, é um sistema aberto, que construía,
antecipadamente, um ‘espaço literário’ capaz de se opor ao que nos acontece hoje. O
que Guattari e eu chamamos de rizoma é precisamente um caso de sistema aberto.
(DELEUZE, 2004b, p. 45)

Portanto, a esquizoanálise tem como finalidade a análise desses sistemas

abertos, compostos por linhas, por devires. O que se quer analisar são as diferentes

cartografias, mesmo que em alguns momentos se tornem endurecidas, verdadeiros

decalques, ao invés de mapa. O que importa é seguir seus vetores, pois nada garante

que, em um processo de singularização, não possa ocorrer processo de individuação e

vice-versa. Quanto ao processo de singularização, este nunca pode ser entendido como

um movimento totalmente novo – singularidade pura. Trata-se de um constante

entrecruzamento desses tais processos. Nada vem do nada, ou do totalmente original. O

que é original é a possibilidade das conexões, que se tornam criativas em alguns

cruzamentos de linhas. De igual modo, os processos de individuação não podem ser

confundidos com a noção de indivíduo, pois; “atrás da aparência da subjetividade

individuada, convém procurar situar o que são os reais processos de subjetivação”


120

(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 387). Mas, de um modo ou de outro, constata-se

que em nenhum momento a noção de indivíduo é utilizada:

Quando falo em ‘processo de subjetivação’, de ‘ singularização’, isso não tem nada a


ver com o indivíduo. A meu ver, não existe unidade evidente da pessoa: o indivíduo,
o ego ou a política do ego, a política da individuação da subjetividade, são
correlativos de sistemas de identificação os quais são modelizantes. (GUATTARI e
ROLNIK, 2005, p. 47)

O indivíduo é uma invenção do modelo capitalista, esta é sua principal máquina

de subjetivação, é a ferramenta que faz girar suas engrenagens, sobretudo pela colocação

que faz do desejo no domínio do indivíduo. Mas, para a esquizoanálise, a subjetividade é

definida de uma outra maneira: “A subjetividade não é passível de totalização ou de

centralização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a

multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente

fabricada e modelada no registro social” (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 40).

Contudo, os processos de singularização estão no centro de interesse da

esquizoanálise, afinal, singularizar é afirmar a potência, o sentido positivo da ruptura, a

criação de outros modos de existência pela experimentação. Esses processos são os

únicos capazes de romper com os modos de subjetivação capitalísticos. Trata-se de uma

verdadeira lógica dos devires – lógica das multiplicidades que estão sempre colocando

em xeque qualquer tentativa de eternidade pelas universalizações. No entanto, no plano

da organização, são empreendidas constantes buscas de figuras eternas que dêem um

certo alívio às angústias provocadas pelas desterritorializações. É muito dolorosa a perda

de um território. Em cada mudança surgem novas possibilidades, novos ritmos... Somos

máquinas desejantes constituídas por múltiplas linhas. Não existe um fluxo único. E esta

é a maior arte do inconsciente – sua multiplicidade. Quanto a isso, a psicanálise tentou


121

resolver por meio de suas interpretações domesticadoras do desejo em sua potência

criadora. Tal tarefa obteve êxito, sobretudo pelo modo como articulou desejo a um

impulso bestial, perigoso.

As sucessivas formulações de Freud nunca se afastaram desta posição. A energia


libidinal deve converter-se no sistema maniqueísta dos valores dominantes, ela deve
investir as representações formais, nada de ter prazer fazendo cocô na cama sem
desencadear um investimento culposo. (GUATTARI, 1987, p. 30)

A noção de transversalidade aparece como uma das possíveis saídas para os

impasses produzidos e reproduzidos pelas relações sociais dominantes. Com ela,

Guattari trabalhou anos a fio, conseguindo superar as relações de verticalidade e

horizontalidade que se tornaram modos de elucidação dos fenômenos institucionais em

diversos domínios teóricos. Na verticalidade se localizariam as relações hierarquizadas,

tais como expressas em um organograma institucional (relações de chefias,

departamentos etc.). Na horizontalidade estariam as relações extras institucionalizadas,

não mediatizadas pela instituição (relações informais, imediatas etc.). São perspectivas

que interpretam as relações sociais a partir de noções dicotômicas e representativas.

Com a transversalidade é possível se pensar a subjetividade em seu sentido

processual escapando ao “clássico dilema entre o Cilas da verticalidade burocrática e o

Caribde da horizontalidade atomizante” (VIDAL, 1994, p. 49). Guattari em sua

perspectiva grupalista, trabalhou com esta noção fazendo dela o próprio objeto de

investigação das relações grupais (grupos sujeitados/grupos sujeitos) que coloca em

evidência as determinações sociais implícitas no processo grupal, como também mostra

as possibilidades de subversão dessas determinações (processo de singularização).

A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela


é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências
particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre
122

dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete


à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual
o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um
processo que eu chamaria de singularização. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 42)

A noção de transversalidade está em sintonia com a noção de máquina, ou

melhor, com a noção de produção de subjetividade, já que não haveria distinção entre os

domínios do social e do indivíduo. Ambos estariam em um mesmo plano de conexões

heterogêneas, engendrados numa co-produção, distintos apenas pelos modos de relação

dos termos – submissão/singularização. Barros (1994, p. 267) resume claramente os

processos que, pelos coeficientes de transversalidades16 podem ser evidenciados.

Há processos, conexões incessantes e permanentes, pedaços de sujeitos-objetos que


criam outros, pedaços que se cortam e não mais se conectam. Há redes de relações
que se montam não mais por horizontalidades e verticalidades, mas por
transversalidades. Atravessamentos que não param de desmontar as linearidades e
causalidades explicativas dos atos-sujeitos-objetos. Atos de expansão, atos de
implosão, atos-corte-de-fluxos. Estamos no ‘meio’ o tempo inteiro. No ‘meio’,
‘entre’, onde não há mais identidades que se sustentem, a não ser na sua evidente
provisoriedade. Estamos numa onda, que vem sabe-se lá de que movimento de água,
faz outro movimento, desemboca ainda em um outro e já flui para outras paragens.

Trata-se de processualidade, onde não há dualismo entre sujeito-objeto, mas

devires com todas as suas possibilidades de conexões. Assim ocorrem os modos de

subjetivação que, em sua processualidade, constituem a subjetividade. Mais exatamente,

a produção de subjetividade se constitui como matéria-prima para qualquer produção

social sem qualquer transcendência. Em resumo, por modos de subjetivação entende-se:

[...] processos que tanto construirão certos objetos de interesse, quanto conformarão
modos de existir. Quando nos referimos, portanto, a modos de subjetivação, os
estamos tomando em seu sentido intensivo, isto é, enquanto maneira pela qual, a
cada momento da história, prevalecem certas relações de poder-saber que produzem
objetos-sujeitos, necessidades e desejos. (BARROS, 1994, p. 28)

16
A esse respeito Barros (1994, p. 342), seguindo a definição dada por Guattari, explica que o coeficiente de
transversalidade pode ser entendido como “grau de abertura à alteridade do próprio grupo e, portanto, à
emergência da diferença”. Seu aumento é proporcional ao aumento de comunicação, ou de abertura para outros
tipos de grupo.
123

A dimensão social está presente em todas as instâncias tais como família,

grupos formais e informais, no indivíduo, nas teorias psicológicas, filosóficas etc.

Portanto, com o aumento do grau de transversalidade, é possível aumentar a percepção

desses entrecruzamentos. Se para Guattari a transversalidade tende a aumentar com a

maximização da comunicação nos diferentes níveis e sentidos de uma instituição, pode-

se pensar que, também no plano clínico, o aumento do coeficiente de transversalidade

pode ser uma importante ferramenta na produção de novas dimensões singulares. A

prática clínica se beneficiaria com este procedimento, sendo ela mesma um modo de

exercício das transversalidades, na qual pudessem ser combatidos os territórios alienados

da subjetividade (pontos de subjetivação fixados), como também os programas limitados

a territórios mortos (pontos de subjetivação destrutivos).

Quando a transversalidade aumenta, todo um diagrama é reconfigurado,

abrem-se novas saídas, flexibilizam-se os agenciamentos, constroem-se pelo meio novas

singularidades... “Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para baixo, da

esquerda para a direita ou inversamente: tentem e verão que tudo muda” (DELEUZE e

GUATTARI, 2000, p. 35).

No próximo capítulo o conceito de transversalidade será associado ao de

transdisciplinaridade, quando serão discutidas as possibilidades que o plano clínico

oferece de produzir novos agenciamentos destituídos de qualquer idéia de organização

psíquica-identitária, ou alusão aos procedimentos de interpretação ocorridos na

transferência. Neste sentido, a clínica será pensada como sistema aberto, lugar dos

rizomas, e não mais das essências, mas pura variação de intensidades.


124

Em resumo, a subjetividade para a esquizoanálise não pode ser encarada como

uma coisa em si, ou preestabelecida, pois ela depende sempre de um agenciamento de

enunciação que a produz ou não. Além disso, não existe um nível indiferenciado de

subjetividade.

A subjetividade está sempre tomada em rizomas, em fluxos, em máquinas, etc.; ela é


sempre altamente diferenciada, sempre processual. Portanto, um empreendimento,
digamos, esquizoanalítico, um agenciamento criador, produtor de sentido, produtor
de atos, produtor de novas realidades, é algo que conjuga, associa, neutraliza, monta
outros processos. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 332)

Ainda para finalizar, a maior crítica da esquizoanálise à psicanálise é quanto

aos recursos interpretativos que esta utilizou para elucidar o que seriam os aspectos

“mais verdadeiros” da subjetividade – as vicissitudes das pulsões parciais, Édipo, a

castração, a morte... Para a psicanálise, as principais verdades de uma subjetividade

estão escondidas, reprimidas em seus desejos inconscientes. Foi toda uma montagem

feita a partir das relações familiares, da conjugalidade, que serviu de base para explicar o

funcionamento psíquico (sistema de representações) e seu principal centro de comando

do comportamento humano – o inconsciente. No final de tudo é sempre papai-mamãe

que se encontra.

Assim, a crítica esquizoanalítica da produção de sexualidade em Freud consiste

em rebater os vícios provocados pelos mo dos identitários de interpretação. É a lógica

binária e a edipianização do sujeito que dominam a psicanálise. Os afetos, os

sentimentos, todos estão englobados numa interiorização compondo o grande segredo da

alma humana. A esquizoanálise, ao proceder com a análise do inconsciente, nada espera

encontrar em termos de prefiguração do desejo.

A análise do inconsciente deveria seguir – com seus riscos e perigos – todas as linhas
do rizoma que constituem um agenciamento, sejam quais forem as matérias de
125

expressão de seus componentes e os efeitos de buraco negro que eles desencadeiem,


sejam quais forem as rupturas ou as reações em cadeia que um tal processo pode
implicar[...] (GUATTARI, 1987, p. 152)

A subjetividade é produzida a partir das forças de uma exterioridade e não de

uma interioridade como afirma a psicanálise. Deleuze e Guattari (2002c, p. 18) não

acreditam em sentimentos internos de um sujeito: “amor ou ódio já não são em absoluto

sentimentos, mas afectos. E esses afectos são outros tantos devir-mulher, devir-animal

do guerreiro (o urso, as cadelas). Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas

de guerra”. Assim, os fenômenos de sublimação, projeção, introjeção etc. não são

utilizados na esquizoanálise como modos autênticos de funcionamento egóico.

Portanto, a clínica, ao colocar em funcionamento processos analíticos, deve

proceder pela lógica dos agenciamentos, tanto para compreender os que são

determinados previamente pelas condições sociais, como também para favorecer os que

serão gerados a partir de tais processos analíticos. Para Guattari (GUATTARI e

ROLNIK, 2005), a clínica não serve de nada se não for capaz de compreender as

dificuldades pessoais, ou grupais, à luz de seus investimentos sociais, afinal são estes

que constituem a subjetividade de um modo ou de outro. Na mesma direção, está uma

síntese que ROLNIK (2000, p. 454-455) faz sobre a finalidade da esquizoanálise como

possibilidade de saída dos modelos psicanalíticos e capitalísticos de subjetividade.

A esquizoanálise pode nos ajudar a sair desse círculo vicioso. A incorporação do


plano intensivo que é o corpo sem órgãos, na cartografia da subjetividade, indica
uma pista: é o próprio tabuleiro do regime identitário o que está para ser posto em
questão. Não em nome de um fascínio niilista do caos, mas para viabilizar a
produção de uma subjetividade heterogenética. No lugar de imagens a priori em
torno das quais se reconfiguram as subjetividades desterritorializadas, o que se pode
vislumbrar são modos de existência singulares e heterogêneos. Tais modos se criam
em função do mapa de intensidades que vai se traçando nesse denso processo de
hibridações a que assistimos em nossos dias. Isto requer, no entanto, que se escute o
corpo sem órgãos, o que implica desenvolver um ouvido atento à eme rgência das
126

formas de expressão, um ouvido que consiga não ficar sintonizado exclusivamente


seja com os significados, seja com os significantes, seja com ambos.

2.4.2 ESQUIZOANÁLISE E CLÍNICA

A esquizoanálise não se propõe resolver Édipo, ela não pretende resolvê-lo melhor
do que é feito na psicanálise edipiana. Ela se propõe desedipianizar o inconsciente,
para atingir essas regiões do inconsciente órfão, precisamente ‘além de toda lei’,
onde o problema não pode mais nem mesmo ser colocado. Ao mesmo tempo, nós
também não partilhamos o pessimismo que consiste em crer que essa mudança, essa
liberação só pode ser realizada fora da psicanálise. Acreditamos, ao contrário, na
possibilidade de uma reversão interna, que faz da máquina analítica uma peça
indispensável do aparelho revolucionário. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 109)

A esquizoanálise propõe pensar a clínica a partir de suas possibilidades de

agenciamentos, pois acredita em sua capacidade de operar transformações para além das

formas instituídas. Isto não significa ignorá-las, pelo contrário, a esquizoanálise trabalha

conhecendo esses modos de subjetivação instituídos. Para Guattari, a clínica deve operar

na ordem das micropolíticas, sabendo que os aspectos da macropolítica sempre estarão

presentes e passíveis de transformação. No âmbito clínico, estaríamos muito mais na

ordem estética do que na ordem interpretativa. Neste sentido, são fundamentais os

seguintes questionamentos que envolvem a prática clínica: Que tipo de agenciamentos

podem ser construídos? E que visão de sujeito permeia esta prática?

As respostas para estas questões têm início com a aposta que se faz na

contribuição da esquizoanálise para o plano clínico, que já se configura com uma certa

noção de sujeito que se pretende desconstruir, produzido a partir de perspectivas

identitárias, causalistas, em que a natureza de sua essência está dada, faltando apenas um

modo de investigação mais precisa que rompa com os enigmas e desvende seus mistérios

mais profundos. É desta forma que a noção de sexualidade se torna uma importante

ferramenta para que se dê início aos processos de desconstrução, inaugurando, assim,


127

outros sentidos ainda por serem cartografados pelo desejo em sua conjunção com as

ordens macro e micromoleculares. Para tanto, busca-se romper com as interpretações

fundamentadas em princípios psicológicos e demasiadamente “humanos”. Deleuze

(2004a, p. 114), comentando Nietzsche, afirma que não se está diante de pessoas, mas de

forças e quereres: “Sabe-se que, em Nietzsche, a teoria do home m superior é uma crítica

que se propõe denunciar a mistificação mais profunda ou perigosa do humanismo”.

Do mesmo modo, este trabalho investiga as obras de Deleuze e Guattari para

desmistificar a noção edipiana como princípio fundamental da constituição da

subjetividade. Relacionar as críticas desses autores com o exercício clínico se faz

necessário a partir do momento em que se acredita em um fazer clínico fundamentado na

diferença e não em princípios do idêntico. Nesta nova proposta clínica não se busca um

eu, um indivíduo e seus conflitos edipianos. Trata-se de uma noção de clínica não

comprometida com as figuras familialistas da psicanálise. Não se buscam encontrar os

elos perdidos de um tempo passado estruturado miticamente. A clínica, então, passa a ser

lugar da diferença, do novo, do intempestivo 17. Não haveria história para se remontar,

nem um conflito para se superar, nem muito menos uma memória para se resgatar.

A tarefa da esquizoanálise é desfazer incansavelmente os egos e seus pressupostos,


libertar as singularidades pré-pessoais que eles encerram e recalcam, fazer escorrer
os fluxos que eles seriam capazes de emitir, de receber ou de interceptar, estabelecer
sempre mais finamente as esquizas e os cortes, bem acima das condições de
identidade, mo ntar as máquinas desejantes que recortam cada um e o agrupam com
outros. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 460)

É possível que, no exercício clínico, movimentos de desterritorialização,

juntamente com o surgimento de novos territórios, sejam produzidos em sua absoluta

17
Sobre esta noção, Deleuze e Guattari (2002b, p. 95), apoiados em Nietzsche, definiram: “[...] o intempestivo,
outro nome para a hecceidade, o devir, a inocência do devir (isto é, o esquecimento contra a memória, a geografia
contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a arborescência)”.
128

imanência, sem que se perca de vista a força e a especificidade deste exercício. O que a

psicanálise iniciou deve ser perseguido em sua forma estratégica, ampliando seus

espectros de transformação social. Inclusive, o próprio Guattari (1987, p. 166) acreditava

no processo analítico pela natureza desse processo, ou seja, ele pode se constituir como

lugar de passagem, de visitar outras paragens, sendo o próprio movimento nômade tão

necessário à tarefa do viver.

Após longos anos de formação e de prática, fui chegando à conclusão de que a


psicanálise devia reformar radicalmente seus métodos e suas referências teóricas,
caso contrário estaria condenada a vegetar na esclerose e no conformismo que a
caracterizam atualmente, ou até mesmo a perder toda credibilidade e a desaparecer.
O que, eu insisto, me pareceria prejudicial por muitas razões. Pouco importa, creio
eu, que as sociedades, as escolas psicanalíticas e a própria profissão de psicanalistas
desapareçam, contanto que a análise do inconsciente subsista enquanto prática,
segundo novas modalidades.

Não há como investigar a subjetividade na clínica sem que esta não se coloque

na interface com outros domínios do conhecimento, domínios compostos por diversas

linhas que:

[...] vêm ora da arte, ora da política, ora da filosofia, ora de outro domínio qualquer
que esteja em processo de nomadização, transmutando-se em devir, sendo
minoritário, rompendo-se enquanto totalidade, abandonando seus sujeitos-objetos
disciplinados em prol da criação. (PASSOS e BARROS, 2000, p. 78)

Passos e Barros (2000) referem-se ao projeto transdisciplinar de clínica, onde o

analista, além de criar “intercessores”, ou seja, novos elementos para as eventuais

desterritorializações, provocando passagens de um território a outro, ele mesmo, o

analista, se faz um intercessor. Por clínica transdisciplinar os autores entendem um certo

tipo de plano, onde ocorrem constantes ressonâncias entre sistemas de toda ordem.

Não se trata de abandonar o movimento criador de cada disciplina, mas de fabricar


intercessores, fazer série, agenciar, interferir. Frente às ficções preestabelecidas, opor
o discurso que se faz com os intercessores. Não uma verdade a ser preservada e/ou
descoberta, mas que deverá ser criada a cada novo domínio. Os intercessores se
fazem, então, em torno dos movimentos, esta é a aliança possível de ser construída
129

quando falamos de transdisciplinaridade, quando falamos de clínica. (PASSOS e


BARROS, 2000, p. 77)

Trata-se de produzir e manter uma tensão constante entre os processos de

subjetivação molares e moleculares, até porque é impossível qualquer prática sem tais

comprometimentos, ainda que não explícitos. Portanto, este plano clínico não é o plano

das universalidades, nem muito menos das constâncias, mas um plano sempre instável –

o plano do devir, o que torna possível os processos de criação, ou de singularização.

Quanto aos componentes sexuais da vida psíquica, que, segundo a psicanálise,

compõem o inconsciente, são vistos pela esquizoanálise como modos de subjetivação

operados por um tipo de máquina social. Assim, sua finalidade é romper com o modelo

psíquico em sua autonomia e com os conceitos que visam explicar como os aspectos

sexuais, sobretudo os edípicos, são responsáveis pela sanidade ou insanidade psíquicas.

Pensar a clínica sob a perspectiva de Deleuze e Guattari é, sem dúvida alguma,

permitir-se a novos modos de semiotização que requerem movimentos de fluxos de toda

natureza, sem, no entanto, cair em um campo clínico indiferenciado, apesar de todas as

perturbações que a perspectiva desses dois pensadores provoca em certas familiaridades

do pensamento.

De acordo com Rolnik (2000), a esquizoanálise vem ocupando um espaço

significativo de interesse nos âmbitos da clínica psicanalítica, institucional e nos

acadêmicos, sobretudo por aqueles que procuram desenvolver uma dimensão crítica da

clínica. Considerando que para a esquizoanálise a subjetividade sofre modulações ao

longo da história e que uma das últimas invenções do homem moderno foi a

subjetividade centrada no indivíduo, pode-se supor, então, a possibilidade de criar

formas heterogêneas e singulares totalmente diferentes dos regimes identitários desses


130

últimos tempos. Rolnik (2000, p. 458) afirma que para Deleuze e Guattari só o CsO nos

possibilita esta façanha.

Mas se escutarmos o corpo sem órgãos, descobriremos que o tempo como realização
do possível é apenas uma de suas figuras; vislumbraremos que o tempo é também
invenção. A partir daí, a questão do desejo não mais se coloca em termos de uma
escolha entre o possível e o impossível, e sim de uma viabilização do trânsito em
mão dupla entre o plano virtual das intensidades e o plano atual das formas. Trata-se
de estar atento às rachaduras das formas vigentes no atual, para escutar o burburinho
das singularidades pré-individuais ou proto-subjetivas que se agitam no virtual corpo
sem órgãos; trata-se igualmente de farejar a pista de agenciamentos que favoreçam a
atualização de tais singularidades como matérias de expressão. E, assim,
infinitamente.

É neste sentido que a esquizoanálise pode ser pensada como resistência aos

modelos individualizantes da subjetividade que a normalizaram através de técnicas de

conhecimento, controle e poder. A resistência traz o novo e provoca efeitos de toda

sorte. Mas, como operacionalizar, ou melhor, como fazer uso de uma máquina

(esquizoanálise) que não possui “manual de instrução”? Como se permitir, no exercício

clínico, a experiência do devir, sem cair no rótulo da “loucura ultrapassada” da década

de 60? Ou de ainda viver “sem lenço e sem documento?” Ou ser identificado como

“bicho-grilo”? Ou talvez, ainda pior, como parte da categoria de profissionais que não

fazem a menor diferença por não apresentar um caminho útil, metodologicamente

científico, que dê conta dos transtornos psíquicos?

Estes questionamentos retratam algumas das idéias que aparecem com

freqüência diante da proposta esquizoanalítica de clínica, manifestadas nas faculdades de

psicologia, ou no próprio campo de trabalho “interdisciplinar”. Como respondê-los sem,

necessariamente, usar recursos dos tempos da ditadura, ou da “geração do desbunde”?

Tal como Cazuza se autodenominou afirmando que, “pra mudar alguma coisa a gente

teve que gritar, se drogar, ir pra rua enfrentar a nossa própria fraqueza”.
131

Não há dúvida de que Deleuze e Guattari são ícones de um tempo de

beligerância dos anos 60, marcados pelos movimentos dos anos contraculturais, quando

a forma de luta se manifestava, sobretudo, por uma posição anti. Vive-se um outro

momento que requer modulações coerentes com este novo plano de consistência.

Pelbart (2004, p. 19), investigando as transformações do tempo 17 , afirma:

Há aqui uma topologia que lembra a Deleuze o que os matemáticos chamam de ‘a


transformação do padeiro’. Dois pontos, por mais próximos que estejam num
quadrado, resultarão distantes ao cabo de algumas transformações em que o
quadrado é estirado em retângulo, dividido em duas metades, formando novamente
um quadrado etc. É assim que um acontecimento é constantemente remanejado na
‘massa do tempo’, como um ponto aí assinalado que se divide em dois,
fragmentando-se, distendendo-se, conforme o lençol de passado em que é jogado, ou
no qual nos colocamos, abrindo-se a uma variação infinita.

Ainda que a questão do tempo não possa ser discutida mais amplamente neste

trabalho, ela perpassa, de um modo ou de outro, todos os questionamentos apresentados

até aqui. Isto porque, mesmo com as modulações operadas, não é de um tempo

cronológico a que se está reportando neste trabalho, mas de um tempo do devir em

oposição ao tempo arborescente, hierarquizado e genealógico.

Contrariamente à história, o devir não se pensa em termos de passado e futuro. Um


devir-revolucionário permanece indiferente às questões de um futuro e de um
passado da revolução; ele passa entre dois. Todo devir é um bloco de coexistência.
(DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 89)

A resistência aparece onde os imperialismos reinam, e ela tem sempre a mesma

natureza: desestabilizar a hegemonia. Portanto, mesmo que os tempos sejam outros, é

importante ressaltar que não se pode nos situar-se num tempo linear da história. Trata-se

de combater as perspectivas dominantes de subjetividade, que não só ignoram os

processos de singularização, como os rechaça, e isto em qualquer momento da história.


17
Pelbart (2004, p. 19) investiga uma outra dinâmica do tempo, o tempo como massa modulável, onde “uma
perpétua mistura vai tornar próximo o que estava afastado e longínquo o que era próximo, num tempo não-
cronológico”.
132

Como Pelbart (2004) afirma, os remanejamentos são feitos, e o que parece

longínquo se torna próximo e vice-versa. E é sempre de um certo lugar que se reporta ao

passado. Nem Deleuze nem Guattari negligenciaram estas “críticas temporais”,

inclusive, distinguiram o momento do “O Anti-Édipo” do trabalho realizado em “Mil

Platôs”.

Do mesmo modo, pode-se pensar a questão do tempo na clínica que, de acordo

com as idéias esquizoanalíticas, não se prende ao princípio cronológico de passado,

presente e futuro. Tal como a arte, na visão deleuziana, a clínica não obedece ao tempo

organizado, estratificado, pois não haveria “um passado a descobrir, mas a inventar

segundo o dobramento a que estará submetido e que o irá situar num feixe de relações

insuspeitado” (PELBART, 2004, p.19).

Se está diante de novos tempos, como se fazer uso das idéias de Deleuze e

Guattari no plano clínico? É evidente que os aspectos históricos e os agenciamentos são

diferentes, mas só o fato de se ter esta compreensão já justifica as contribuições desses

dois pensadores. É sempre de uma lógica dos fluxos que um acontecimento é produzido.

E quando se trata de máquina e de devir, também a questão temporal linear é colocada de

lado.

Trata-se então de propor uma escuta apoiada no pensamento da diferença, no

qual a noção de subjetividade é pensada desde o início deste trabalho. Está-se diante de

um novo olhar sobre a subjetividade que produz novos desafios e possibilidades na

clínica. O trabalho analítico, então, consistiria, em linhas gerais, em escapar dos

reducionismos psicanalíticos, criar linhas de fuga capazes de produzirem novas

cartografias, resistir aos confinamentos teóricos que cegam os olhos de quem procura
133

compreender as construções dos universais e suas conseqüências no comportamento

humano. Barros (1994, p. 379) esclarece:

Aí estaria o trabalho que chamamos de analítico, aquele que não nega a molaridade
dos modos de funcionamento, mas põe a funcionar outros modos, inventa fugas,
penetra no plano molecular de constituição de outras formas. O singular emergiria,
assim, do coletivo-multiplicidade, as identidades seriam convidadas ao mergulho na
agitação das diferenças.

A clínica esquizoanalítica visa favorecer a vida (subjetividade), que não cabe

nos estratos (organismo, significância, subjetivação), sem que se perca um plano que, ao

mesmo tempo em que existe, também precisa ser construído. Esta é a própria noção de

plano de imanência do corpo sem órgãos, já analisada anteriormente. Isto não significa

que o processo analítico na esquizoanálise não tenha nenhuma direção e, por isso, seja

classificado como um trabalho inconsistente e ilógico, como é caracterizado ainda por

algumas pessoas. Trata-se de uma outra perspectiva – uma outra lógica – uma lógica

máxima, mas que não reconduz à razão, ou ao exercício de uma pura recognição.

O pensador é antes de tudo clínico, decifrador sensível e paciente dos regimes de


signos produzidos pela existência, e segundo os quais ela se produz. Seu ofício é
construir os objetos lógicos capazes de dar conta dessa produção e levar assim a
questão crítica a seu mais alto ponto de paradoxo [...] (ZOURABICHVILI, 2004, p.
107)

A máquina analítica é louca sim, mas por refutar qualquer fundamento

transcendente, por buscar o inesperado de um encontro e por afirmar a lógica das

contradições e dos paradoxos. Está-se diante de um outro domínio que comporta as

sínteses disjuntivas, ou seja, a positividade da coexistência de elementos que,

aparentemente (na ordem molar das identidades), seriam classificados como

excludentes. Aqui se afirma a diferença e não a negação.

Consideremos os pares vida-morte, pai-filho, homem-mulher: os termos aí só têm


relação diferencial, a relação é primordial, é ela que distribui os termos entre os quais
134

se estabelece. Por conseguinte, a experiência do sentido está no duplo percurso da


distância que os liga: não se é homem sem devir-mulher etc.; e ali onde a psicanálise
vê uma doença, trata-se, ao contrário, da aventura viva do sentido ou do desejo sobre
o ‘corpo sem órgãos’, da saúde superior da criança, da histérica, do esquizofrênico.
(ZOURABICHVILI, 2004, p. 104)

A noção de multiplicidade acompanha todo o raciocínio desta nova lógica,

onde as dualidades não são negadas, mas recolocadas em uma outra ordem – ordem

molar. O processo analítico, então, é produzido no plano molecular, no qual as linhas de

fuga são inventadas e novas cartografias percorridas. Assim, não se buscam curas nem

recuperação de algum estado por não se considerarem estruturas preestabelecidas. É por

esta razão que não se podem definir neuroses, perversões e esquizofrenias pelo destino

das pulsões, mas pelo modo e espaço que elas ocupam num determinado campo social.

Seria inexato guardar para as neuroses uma interpretação edipiana, e reservar às


psicoses uma explicação extra-edipiana. Não há dois grupos, não há diferença de
natureza entre neuroses e psicoses. Porque de qualquer maneira é a produção
desejante que é causa, causa última, seja das subversões psicóticas que quebram
Édipo ou o submergem, seja das ressonâncias neuróticas que o constituem.
(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 164)

Tudo depende do modo pelo qual cada um se posiciona diante dos códigos.

Especificamente, quanto à esquizofrenia e à neurose, parece que o esquizofrênico não

suporta a edipianização enquanto o neurótico se deixa edipianizar.

A esquizoanálise é ao mesmo tempo uma análise transcendental e materialista. Ela é


crítica, no sentido em que efetua a crítica de Édipo, ou leva Édipo até o ponto de sua
própria autocrítica. Ela se propõe a explorar um inconsciente transcendental, em vez
de metafísico; material, em vez de ideológico; esquizofrênico, em vez de edipiano;
não figurativo, em vez de imaginário; real, em vez de simbólico; maquinístico, em
vez de estrutural; molecular, microfísico e micrológico, em vez de molar ou gregário;
produtivo, em vez de expressivo. Trata-se aqui de princípios práticos como direções
da ‘cura’. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 143)

Há, pois, uma esquizofrenia que diz respeito ao fracasso da construção de um

CsO, isto é, alguém que não suportou o regime existente, mas não encontrou saída,

malogrou, assim como o drogado pode se precipitar à morte ou a uma repetição


135

improdutiva por querer desfazer os estratos apenas com a droga, por desestratificar muito

rápido. Daí a prudência, a arte de viver, de manter doses de estratificação que permitam

a experiência e a passagem para outros estados ou territórios. Perguntou-se a Guattari,

quando ele esteve no Brasil, sobre a idéia de prudência referida em “Mil Platôs”. Esta

pergunta diz respeito aos riscos do trabalho esquizoanalítico, pois poderia levar a

viagens18 perigosas que desembocassem em territórios improdutivos ou indiferenciados.

Um trabalho que, mesmo muito criativo, não levaria ninguém a lugar algum. A resposta

dada por Guattari é muita clara e simples:

Então, ao invés de viagem, eu falaria, de um modo mais prosaico, de processo. Não


existe, a meu ver, nível indiferenciado da subjetividade. A subjetividade está sempre
tomada em rizomas, em fluxos, em máquinas, etc.; ela é sempre altamente
diferenciada, sempre proces sual. Portanto, um empreendimento, digamos,
esquizoanalítico, um agenciamento criador, produtor de sentido, produtor de atos,
produtor de novas realidades, é algo que conjuga, associa, neutraliza, monta outros
processos. Mas os efeitos não são necessariamente cumulativos. Processos podem se
apoiar uns aos outros para chegar em territórios mortos. É infelizmente o que
costuma acontecer muito, o que acontece freqüentemente, na economia conjugal, na
economia doméstica. Duas pessoas estão envolvidas num process o amoroso e esse
processo acaba desembocando num fechamento territorial, que neutraliza toda e
qualquer possibilidade de riqueza (inclusive o desejo sexual), todas as aberturas. O
mesmo pode acontecer com todos os outros modos de processo de expressão.
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 332)

É neste sentido que a clínica esquizoanalítica não pode ser pensada como uma

prática espontaneísta, ou o oposto, uma nova abordagem em clínica com

procedimentos metodológicos fechados, uma nova identidade de procedimentos. Trata-

se de um exercício clínico rizomático. Ele é perigoso? Sim, mas não por ser a

improvisação de qualquer coisa, um “libere-se”. Se assim fosse, poder-se-iam temer os

procedimentos estratificados, pois os regimes despóticos também trazem seus perigos

de manipulação, de exploração, de mais-valia. O problema é lidar com as rupturas, e

18
A noção de viagem referida é aquela típica dos movimentos anticulturais – trip americana, “com todo o pano
de fundo quase místico que essa noção de viagem tomou, digamos, em toda a Nova cultura” (GUATTARI e
ROLNIK, 2005, p. 332).
136

estas são inevitáveis. Elas são sempre produzidas por processos moleculares,

maleáveis, destituídos de implicações meramente pessoais, psicológicos, mas que

também não ocorrem em um profundo abismo da indiferenciação. Quando um novo

agenciamento é produzido tudo muda, é da natureza dos processos rizomáticos: em

cada rizoma ocorrem agenciamentos de naturezas, ou regimes distintos. As rupturas

são irreversíveis e não estão restritas a cadeias semióticas, ou seja, está-se falando de

planos, de diferentes platôs19 . O problema é se sempre o que se encontra em cada platô

é o Édipo despótico da psicanálise. Deleuze e Guattari esclarecem em “Mil Platôs”

(1999, p. 72) que não estão falando de cadeias de significantes. Referindo-se à noção

de ruptura para Fitzgerald, afirmam:

Fitzgerald opõe aqui a ruptura aos pseudo-cortes estruturais nas cadeias ditas
significantes. Mas ele igualmente a distingue das ligações ou dos talos mais
maleáveis, mais subterrâneos, do tipo ‘viagem’ ou mesmo transportes moleculares
[...] será possível que as viagens sejam sempre um retorno à segmentaridade dura? É
sempre papai e mamãe que se reencontram na viagem e, como Melville, até mesmo
nos mares do Sul? Músculos endurecidos? Será preciso acreditar que a própria
segmentaridade flexível torna a formar no microscópio, e miniaturizadas, as grandes
figuras das quais pretendiam escapar? Sobre todas as viagens, pesa a frase
inesquecível de Beckett: “Que eu saiba, não viajamos pelo prazer de viajar; somos
idiotas, mas não a esse ponto”.

Trata-se de pensar na capacidade que se tem de produzir novos territórios, não

em qualquer lugar ou com qualquer idéia ou ação, mas agenciamentos maquínicos, que

estão sempre em conexões com novas possibilidades de sentido. Então, a prudência diz

respeito a uma certa distinção entre o que pode ser construtivo e liberador de

cristalizações do que pode neutralizar as potências. O problema maior consiste em

diferenciar os desejos fascistas daqueles que levam aos processos de lutas singulares.

19
“Um platô é um pedaço de imanência. Cada CsO é feito de platôs. Cada CsO é ele mesmo um platô, que
comunica com os outros platôs sobre o plano de consistência. É um componente de passagem” (DELEUZE e
GUATTARI, 1999, p. 20).
137

Quando a esquizoanálise pretende banir as interpretações edipianizantes do

desejo, ela o faz não para desmentir essas produções, mas para recolocá-las num modo

típico de agenciamento (modo de subjetivação capitalístico) e para empreender novos

agenciamentos.

Se há uma interpretação a ser feita a partir de uma análise do inconsciente, ela


consistiria em detectar o que são os esboços, os índices, os cristais de produtividade
molecular. Se há uma micropolítica a ser praticada, ela consistiria em fazer com que
esses níveis moleculares não caíssem sempre em sistemas de recuperação, em
sistemas de neutralização, em processos de implosão ou de autodestruição.
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 278)

As idéias dos autores aqui mencionados servem para se pensar o plano clínico

como máquina de operar novas possibilidades. Este é o desafio da esquizoanálise:

[...] desnaturalizar a caminho de novas produções de subjetividade, de


singularizações, de produções de diferença. Caminho em que possamos romper com
o modo hegemônico de pensar a realidade, para que, mergulhando no devir-
acontecimento-clínica, possam ser produzidas diferenças-em-nós.(BRASIL, 1995, p.
27)

Para Deleuze e Guattari, toda vez que se depara com modos endurecidos,

mesmo que divergentes do ideal de normalidade das grandes estruturas determinadas

por um tipo de sociedade, está-se diante de programas (processos de individuação do

desejo). A questão é se este programa traça uma armadilha para o sujeito, da qual não

consegue escapar – as linhas ficam presas nesta forma de programa impedindo a

implosão das paixões de morte. Os programas são postos em ação a partir de um corpo

sem órgãos. Poder-se-ia perguntar: o que passa nos corpos esquizos, masoquistas,

drogados, paranóicos etc.? O CsO não seria pleno de alegria ou de êxtase? A princípio,

Deleuze e Guattari (1999, p. 12) fazem a oposição programa-fantasma quanto às

produções desses tipos de corpos.


138

Isto não é um fantasma, é um programa: há diferença essencial entre a interpretação


psicanalítica do fantasma e a experimentação antipsicanalítica do programa; entre o
fantasma, interpretação a ser ela própria interpretada, e o programa, motor de
experimentação. O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é
justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações. A psicanálise
faz o contrário: ela traduz tudo em fantasmas, comercializa tudo em fantasmas,
preserva o fantasma e perde o real no mais alto grau, porque perde o CsO.

O que passa nos corpos são fluxos de toda ordem que podem resultar em

grandes alegrias, mas também em grandes tristezas, sofrimento, dor... O programa

masoquista, por exemplo, consiste na repetição de um modo intensivo, em que

circulem ondas de dor: “o masoquista fez para si um CsO em tais condições que este,

desde então, só pode ser povoado por intensidades de dor, ondas doloríferas”

(DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 12). Existiriam fracassos na produção de um CsO,

mas que, segundo esses autores, não podem ser vistos como referentes a essências, ou

estruturas psíquicas. Tratar-se-ia de modos muito particulares de existência que

requerem, de igual modo, análises específicas e infinitas. A questão é: “o que povoa, o

que passa e o que bloqueia?” (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 13). Tudo está em

torno da forma como um CsO é produzido.

Outro exemplo que Deleuze e Guattari (2002b, p. 80-81) apresentam é o do

corpo drogado. O que acontece porquanto o que se procura?

Os drogados não param de recair naquilo de que eles queriam fugir: uma
segmentaridade mais dura à força de ser marginal, uma territorialização mais
artificial ainda porque ela se faz sobre substâncias químicas, formas alucinatórias e
subjetivações fantasmáticas. Os drogados podem ser considerados como precursores
ou experimentadores que retraçam incansavelmente um novo caminho de vida; mas
mesmo sua prudência não tem as condições de prudência. Então, ou eles recaem na
coorte de falsos heróis que seguem o caminho conformista de uma pequena morte e
um longo cansaço. Ou então, pior ainda, eles só terão servido para lançar uma
tentativa que só pode ser retomada e aproveitada por aqueles que não se drogam ou
que não se drogam mais, que retificam secundariamente o plano sempre abortado da
droga, e descobrem pela droga o que falta à droga para construir um plano de
consistência [...] Não é a droga que assegura a imanência, é a imanência da droga
que permite ficar sem ela [...] Os drogados não escolheram a boa molécula ou a boa
linha.
139

Como pensar nas formas conhecidas como esquizofrenias, histerias,

masoquismos, drogados, paranóias sem utilizar as interpretações psicanalíticas? Como

pensá-las sem o referencial do EU? O que nelas existem de singularidade e o que pode

ser vivido como destruição e territorializações sem saídas?

Estas investigações necessitariam de uma maior elaboração, o que não foi

possível neste trabalho. Finalizá-lo com a questão da clínica em sua interface com as

idéias deleuzo-guattarianas mostra a necessidade de continuidade desta investigação

específica, com todos os seus contornos e efeitos possíveis, em que noções como as de

programas, transversalidade, transdisciplinaridade são algumas das que, em seus

contrastes com a clínica psicanalítica, merecem espaço distinto.

Por enquanto, o que compete a este trabalho já foi de algum modo traçado,

mesmo que com todas as suas limitações, restando, então, uma breve finalização sobre

os nomadismos e seus efeitos de inovação, provocando, assim, toda uma frescura do

tempo, mas que não ignora suas fortes batalhas.


140

2.4.3 ESQUIZOANÁLISE E UM SUSPIRO

A esquizoanálise não esconde, portanto, que é uma psicanálise política e social, uma
análise militante: não porque generalize Édipo na cultura, sob as condições ridículas
que tiveram curso até agora. Mas, ao contrário, porque se propõe mostrar a existência
de um investimento libidinal inconsciente da produção social histórica, distinto dos
investimentos conscientes que coexistem com ele. (DELEUZE e GUATTARI, 1976,
p. 130)

As idéias propostas até aqui não se resumem a uma questão de modismo

intelectual. É uma questão de “ar do tempo”, que se faz sentir em vários domínios do

conhecimento. Não se trata, tampouco, de afirmação da esquizofrenia como entidade

clínica, mas afirmação da esquizofrenia como desterritorialização de códigos redutores,

afirmação das máquinas revolucionárias do desejo. Procurou-se mostrar a estreita relação

entre psicanálise e capitalismo e suas implicações na teoria edipiana do desejo. Com o

intuito de romper com as prisões provocadas por Édipo é que se pode fazer da

esquizoanálise uma possibilidade de respirar ar novo. Trata-se de uma verdadeira

desintoxicação de Édipo e isso só pode ser feito buscando linhas de fuga que desfaçam

os pressupostos repressivos da psicanálise. Isto não implica renunciar à máquina

analítica, mas voltá-la para os fluxos que escapam à leitura edipiana do desejo, buscando

novas alianças com outras máquinas. Montar uma verdadeira máquina de guerra20 que

liberte as singularidades, fazendo escorrer os fluxos que não se reduzem às condições de

identidade. Esquizofrenizar ao invés de neurotizar como a psicanálise fez e ainda faz.

Pode-se considerar pelo menos um dos aspectos, dentre os muitos, em torno da

noção de máquina de guerra: sua produção pelos agenciamentos sociais que estão em

20
Este conceito não está relacionado à guerra propriamente dita, nem a uma metáfora, como já foi definido no
conceito de máquina descrito no primeiro capítulo. É do desejo que os autores se referem, em sua constituição
pelas linhas de fuga que levam as desterritorializações ao seu ponto máximo. Por máquina de guerra consultar
Mil Platôs, 2002c (Tratado de nomadologia: a máquina de guerra).
141

total oposição à idéia de conflitos sob a forma de interioridade. Assim, trata-se de uma

característica nômade do desejo, não reduzida à noção de guerra em seu sentido

institucionalizado, nem muito menos ao aparelho de Estado. A máquina de guerra vem

de fora, “seria antes como a multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do

efêmero e potência da metamorfose” (DELEUZE e GUATTARI, 2002c, p. 12-13).

Portanto, a máquina de guerra traz um outro plano de batalha muito diferente das

batalhas binárias do plano molar. Aqui, os elementos, como no jogo do go, são

elementos não subjetivados, desprovidos de características intrínsecas, nos quais o que

está em jogo são as posições dos agenciamentos numa determinada situação. Assim,

tudo irá depender da situação e não das propriedades intrínsecas dos elementos. São

novos ares, novos planos para além do campo de guerra viciado e sufocado das

interpretações psicanalíticas dos conflitos (dualismos pulsionais). A máquina de guerra

para Deleuze e Guattari (2002c, p. 13):

Dá provas, sobretudo, de outras relações com as mulheres, com os animais, pois vive
cada coisa em relações de devir, em vez de operar repartições binárias entre
“estados”: todo um devir-animal do guerreiro, todo um devir-mulher, que ultrapassa
tanto as dualidades de termos como as correspondências de relações. Sob todos os
aspectos, a máquina de guerra é de uma outra espécie, de uma outra natureza, de uma
outra origem que o aparelho do Estado.

É com a máquina de guerra que os procedimentos biunivocizantes do desejo

podem ser desafiados e vencidos. Há que se perguntar se não se está vivendo um período

de refinamentos das formas de captura da subjetividade pelas modelizações impostas

pela mídia, pela obrigatoriedade de ser bem sucedido em todos os sentidos da vida, ou

pelos procedimentos de incentivo à liberdade e à diversidade globalizada, que só fazem

disfarçar táticas de dominação.


142

Para que a clínica não respire e inspire esse tipo de ar contaminado da

exploração pela dominação da subjetividade, é necessário que ela, com sua principal

arma – o processo analítico, se transforme em máquina de guerra. Para tanto, as idéias

dos autores aqui investigadas servem como ferramentas de forte potência, se propagadas

enquanto tais, antes mesmo de serem capturadas na máquina alienante das estratégias

capitalistas. A esquizoanálise corre esse perigo se for compreendida como um novo

modelo estruturante dos procedimentos clínicos, como um novo idealismo a ser seguido.

Neste sentido, pode-se afirmar que a esquizoanálise não tem um território definido, já

que sua proposta é exatamente levar as linhas para mais longe, pois “somente quando

um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua conjugação com outros fluxos, que

desterritorializam por sua vez e vice e versa” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 63). Na

esquizoanálise não se representa nada, engendra-se e percorre.

Seria preciso opor dois tipos de ciências, ou de procedimentos científicos: um que


consiste em ‘reproduzir’, o outro que consiste em ‘seguir’. Um seria de reprodução,
de iteração e reiteração; o outro, de itineração, seria o conjunto das ciências
itinerantes, ambulantes. Reduz-se com demasiada facilidade a itineraçao a uma
condição da técnica, ou da aplicação e da verificação da ciência. Mas isto não é
assim: seguir não é o me smo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reproduzir.
(DELEUZE e GUATTARI, 2002c, p. 39)

Nas obras que foram mais investigadas neste trabalho, “O Anti-Édipo” e “Mil

Platôs”, constata-se um dualismo21 no pensamento deleuzo-guattariano, onde são

dispostos dois modos antagônicos de pensamento. Um comprometido com a tradição

filosófica da representação, transcendente, com características de binarização, sobretudo

entre sujeito/objeto, arborescente, da ordem do Estado, segmentarizado, do nível da

reprodução, regime identitário-causalista. Outro comprometido com a lógica das

21
Sobre o dualismo em Deleuze, consultar Machado (1990, p. 9-10). Ressalta-se que este dualismo não
compromete a crítica deleuziana do pensamento dualista.
143

multiplicidades, dos fluxos, do devir, do nível da produção, constitutivo das máquinas de

guerra. No entanto, tais formas de pensamento estão sempre se entrecruzando, por isso

não se pode afirmar, segundo Guattari (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 284), que haja

total garantia de estabilidade ou permanência de um ou de outro.

Não há receita alguma que garanta o desenvolvimento de um processo autêntico de


autonomia, de desejo, pouco importa como o chamemos. Se é verdade que o desejo
pode se reorientar para a construção de outros territórios, de outras maneiras de sentir
as coisas, é igualmente verdade que ele pode, ao contrário, se orientar em cada um de
nós numa direção microfascista.

A vida se dá nesses entrecruzamentos, não há planos moleculares se não houver

os molares. O que está em jogo, então? Segundo os autores, é procurar sempre traçar

novas linhas, pois, mesmo que a ordem molar queira se eternizar por inúmeros recursos

de dominação, não adianta: o molecular, o que é do devir e das forças das linhas de fuga

explode, intempestivamente, virando toda uma ordem. Este é o movimento contínuo das

desterritorializações e reterritorializações. O ser humano é ser de fuga.

Está-se diante de produção de cartografias que, segundo Deleuze (2004, p. 75),

não está presa às memórias nem muito menos há intenção de buscá-las ou recuperá-las:

Uma concepção cartográfica é muito distinta da concepção arqueológica da


psicanálise. Esta última vincula profundamente o inconsciente à memória; é uma
concepção memorial, comemorativa ou monumental, que incide sobre as pessoas e
objetos, sendo os meios apenas terrenos capazes de conservá-los, identificá-los,
autentificá-los.

Muito diferente é o modo de funcionamento dos mapas que, ao invés de

procurar as origens nas experiências anteriores, ao contrário, busca avaliar os

remanejamentos, deslocamentos que cada mapa produz. Em cada mapa, ou cartografia,

há uma nova redistribuição de vetores e de condições, o que faz com que novas

aberturas apareçam. Neste caso, “o inconsciente já não lida com pessoas e objetos, mas
144

com trajetos e devires; já não é um inconsciente de comemoração, porém de

mobilização, cujos objetos, mais do que permanecerem afundados na terra, levantam

vôo” (DELEUZE, 2004a, p. 75).

O projeto esquizoanalítico não procura interpretar por meio de identificações os

diferentes tipos de comportamento. Para Deleuze, interpretar o cavalo de Hans como

uma identificação com o pai traduz o desconhecimento que Freud tinha do devir-animal

no humano e de suas implicações com o inconsciente. Neste projeto não se pensa em

derivações pulsionais ou extensões que ocorram devido às identificações, ou outro

mecanismo de deslocamento por sublimação. A libido não precisa de intermediários,

pois está investida diretamente na economia social: “A libido não tem metamorfoses,

mas trajetórias histórico-mundiais” (DELEUZE, 2004a, p. 74).

Deleuze e Guattari abolem os artigos definidos em prol dos artigos indefinidos

por serem da ordem do devir e por indicarem trajetos que podem afetar ou ser afetados

na medida de suas experimentações. Pessoas podem facilitar os trajetos como também

bloqueá-los, sem que com isso ocorra uma relação de pessoalidade, são afetações.

As crianças se exprimem assim, um pai, um corpo, um cavalo. Esses indefinidos


freqüentemente parecem resultar de uma falta de determinação devida às defesas da
consciência. Para a psicanálise, trata-se sempre de meu pai, de mim, de meu corpo. É
um furor possessivo e pessoal, e a interpretação consiste em reencontrar pessoas e
posses. “Bate-se numa criança” deve significar “meu pai bate em mim”, mesmo se
essa transformação permanece abstrata; e “um cavalo cai e mexe as patas” significa
que meu pai faz amor com minha mãe. Contudo, o indefinido não carece de nada,
sobretudo de determinação. Ele é a determinação do devir, sua potência própria, a
potência de um impessoal que não é uma generalidade, mas uma singularidade no
mais alto grau: por exemplo, ninguém imita o cavalo, assim como não se imita tal
cavalo, mas tornamo -nos um cavalo, atingindo uma zona de vizinhança em que já
não podemos distinguir-nos daquilo que nos tornamos. (DELEUZE, 2004a, p. 77-78)

A propósito, Deleuze e Guattari fazem do processo analítico o lugar do devir-

minoritário em oposição às figuras estratificadas da ordem molar social, pois se está no


145

terreno das micropolíticas, onde as mudanças só podem ocorrer por meio dos processos

de singularização e estes sempre são minoritários, diferentes dos regimes identitários. É

sempre das multiplicidades que novos agenciamentos são produzidos. A diferença com a

psicanálise consiste no modo pelo qual o devir é tratado ou ignorado no processo

analítico.

[...] ela encontrou freqüentemente, e desde o começo, a questão dos devires-animais


do homem. Na criança, que não pára de atravessar tais devires. No fetichismo e
sobretudo no masoquismo, que não param de enfrentar este problema. O que se pode
dizer, no mínimo, é que os psicanalistas não entenderam, Jung inclusive, ou que
quiseram não compreender. Eles massacraram o devir-animal, no homem e na
criança. Não viram nada. No animal, vêem um representante das pulsões ou uma
representação dos pais. Não vêem a realidade de um devir-animal, como ele é o
afecto em si mesmo, a pulsão em pessoa, e não representa nada. (DELEUZE e
GUATTARI, 2002b, p. 45)

Tudo depende dos agenciamentos e não das vicissitudes pulsionais. É neste

sentido que o devir-minoritário diz respeito às mulheres, às crianças, aos animais, aos

vegetais, constituídos por relações moleculares em oposição aos padrões de identidades.

O processo analítico, então, não faz interpretações das identidades molares, nem muito

menos compreende os comportamentos numa ordem evolutiva, ou a partir de uma cadeia

de significantes. O devir existe nos blocos de existência, nos agenciamentos, diferente da

idéia de complexos, de fixações, regressões. Ele é o próprio movimento desses blocos.

“Não se trata de complexos infantis, mas de cristalizações de sistemas de intensidades

que atravessam as fases psicogenéticas e que são suscetíveis de operar através dos mais

variados sistemas perceptivos, cognitivos, afetivos ” (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p.

381).

Mas, ao buscar novas possibilidades no plano clínico, correm-se alguns riscos

em decorrência dos deslocamentos de sentidos provocados pelos rizomas e suas linhas


146

de fuga. Seria como um “ato-perigoso”, tal qual alertou Foucault em “As palavras e as

coisas” (1999, p. 453):

Antes mesmo de prescrever, de esforçar um futuro, de dizer o que é preciso fazer,


antes mesmo de exortar ou somente alertar, o pensamento, ao nível de sua existência,
desde sua forma mais matinal, é, em si mesmo, uma ação-um ato perigoso. Sade,
Nietzsche, Artaud e Bataille o souberam, por todos aqueles que o quiseram ignorar;
mas é certo também que Hegel, Marx e Freud o sabiam.

Guattari e Rolnik (2005) afirmaram ter encontrado no pensamento freudiano

momentos surpreendentes, “golfadas de oxigênio”. O problema consiste na

institucionalização de fórmulas redutoras reproduzidas pelos psicanalistas em geral.

Portanto, a esquizoanálise não propõe a destruição dos movimentos analíticos do desejo,

mas propõe a crítica de alguns conceitos, como foi apresentada nesse trabalho, por se

fundamentarem em aspectos universais, por ignorarem as determinações sociais, por

utilizarem sistemas binários de pensamento, por fazerem uso de referenciais a-históricos,

e por limitarem a capacidade criativa dos agenciamentos. Birman (2000, p. 472) cita as

duas distinções que Deleuze faz de clínica:

No que se refere à concepção do sujeito e à realidade da experiência clínica, chega-se


assim a uma distinção forte entre uma clínica centrada na pessoalidade e uma outra
fundada na singularidade [...] Nessa perspectiva, a singularidade implicaria
necessariamente a ruptura dos limites e das fronteiras do Eu, com o rompimento do
território restrito da individualidade e a inserção do sujeito em outras
territorialidades. O sujeito se inscreveria assim enquanto singularidade impessoal
por sua inevitável dispersão nas máquinas desejantes do tecido social.

Emfim, o que se pretende é supor a subjetividade em sua relação com o Fora,

encontrar novos ares na exterioridade, e não na interioridade, onde o ar, por não circular,

está envenenado e condenado, assim, à morte.

A esquizoanálise ou a pragmática não tem outro sentido: faça rizoma, mas você não
sabe com o que você pode fazer rizoma, que haste subterrânea irá fazer efetivamente
rizoma, ou fazer devir, fazer população no teu deserto. Experimente. (DELEUZE e
GUATTARI, 2002b, p. 35)
147

Guattari, quando esteve em visita ao Brasil, falou de uma nova suavidade que

deveria compor o plano analítico. Para ele, o psicanalista não tem que romper com sua

prática, mas com a neutralidade, com os corporativismos, com o distanciamento que faz

entre sua prática e os agenciamentos políticos, históricos e plenamente finitos. Trata-se

de inventar para o plano clínico novas modalidades:

[...] que é o da invenção de uma outra relação – com o corpo, por exemplo –, relação
esta presente nos devires-animais. Sair de todos esses modos de subjetivação do
corpo nu, do território conjugal, da vontade de poder sobre o corpo do outro, da
posse de uma faixa etária por outra, etc. Portanto, para mim, a nova suavidade é o
fato de que, efetivamente, um devir-mulher, um devir-planta, um devir-animal, um
devir-cosmos podem inserir-se nos rizomas de modos de semiotização, sem por isso
comprometer o desenvolvimento de uma sociedade, o desenvolvimento das forças
produtivas e coisas assim. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 341).

Portanto, a clínica, para os autores, pode e deve se constituir em plano de

desterritorialização e produção de novos territórios, onde novas subjetividades podem

emergir longe dos apelos falocráticos, das interpretações redutoras, das semióticas

endurecidas. Isto seria absolutamente possível quando se aumentam os coeficientes de

transversalidade, quando o pensamento é liberado dos grilhões da representação: “É

preciso pensar o pensamento como irregularidade intensiva. Dissolução do eu”

(FOUCAULT, 2005, p. 100). Para tanto, é necessária alta dose de coragem, não para

uma aventura qualquer, mas para romper com as simbioses, com os familialismos, com

a clausura sufocante dos códigos fascistas.

A subjetividade, através de chaves transversais, se instaura ao mesmo tempo no


mundo do meio ambiente, dos grandes Agenciamentos sociais e institucionais e,
simetricamente, no seio das paisagens e dos fantasmas que habitam as mais íntimas
esferas do indivíduo. A reconquista de um grau de autonomia criativa num campo
particular invoca outras reconquistas em outros campos. Assim, toda uma catálise da
retomada de confiança da humanidade em si mesma está para ser forjada passo a
passo e, às vezes, a partir dos meios os mais minúsculos. (GUATTARI, 1990, p. 56)
148

3 CONCLUSÃO
[...] e mais imp ortante do que o pensamento é “aquilo que faz pensar”. (DELEUZE,
1987, p. 30)

As idéias de Deleuze e Guattari se transformam em verdadeiras máquinas de

guerra não só no sentido conceitual como prático; na verdade, esta é uma dicotomia com

a qual os autores não trabalham. Todo conceito tem seu sentido prático, ele afeta, ele é

capaz de traçar novos rumos. Portanto este trabalho não se ocupou de apresentar tão

somente os conceitos deleuzo-guattarianos, mas pensá-los em seus aspectos práticos.

Desde o início, quando se afirmou a característica maquínica da libido e sua total

conexão com o social, até o repúdio das interpretações psicanalíticas, sobretudo as

edipianas, em total oposição à lógica das multiplicidades, dos rizomas, como também a

afirmação de um corpo sem órgãos como o plano das intensidades puras, é de vida que

os autores falam. Da vida que explode em múltiplas direções: biológica, material, social

[...] cósmica [...]. Não se trata de ideologias, ou idéias puras, mas de problemas que a

vida coloca em seus diferentes planos. Assim, pensar com Deleuze e Guattari é procurar

compreender a força do pensamento naquilo que ele pode diferir, como também naquilo

que o faz repetir. Todo pensamento está agenciado a um certo plano histórico, filosófico,

político etc. A relevância desse trabalho de análise da crítica de Deleuze e Guattari à

noção edipiana é que, com ele, se abrem infinitas linhas de pensamento; percebem-se

planos de consistência de diferentes tipos, suas transformações quando passam de um a

outro. Criticar as interpretações psicanalíticas de sexualidade é mostrar como estas se

baseiam em uma determinada concepção de subjetividade, construída em um dado

momento histórico com todos os seus elementos correspondentes. Ao distinguir o porvir

da psicanálise do devir da esquizoanálise, está-se afirmando a diferença entre dois modos


149

de concepção da subjetividade. A primeira, da ordem da representação, centrada no

indivíduo, e a outra da ordem do devir, sem nenhum centro de comando – rizomática.

Portanto, ao tomar contato com as idéias esquizoanalíticas, inevitavelmente

surge a seguinte questão: quer-se manter a ordem molar nos procedimentos clínicos

quando se permanece nos estratos organizados pelas imposições sociais, ou queremos

experimentar, inventar linhas de fuga, fazer circular os fluxos que compõem os

processos de singularização? Dessa decisão não se pode escapar.

Assim, o que se tentou mostrar nessa dissertação foi a possibilidade de abertura

que um movimento do pensamento pode produzir na vida prática, sobretudo na prática

clínica. Sobre o binômio teoria e prática, é importante evidenciar que tanto uma quanto a

outra se produzem em suas interfaces. Pensar a clínica, forçar passagens pelo processo

analítico são forças que coexistem o tempo todo. Este é o desafio da esquizoanálise:

manter a prudência e a suavidade mesmo que enfrentando as batalhas e as resistências

dos modos cristalizados de subjetivação.

Parece que Deleuze e Guattari concordam plenamente com Fernando Pessoa

quando afirma: “navegar é preciso, viver não é preciso!”


150

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