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Fransuel Lima de Barros

Ronyere Ferreira
Márcio Douglas de Carvalho e Silva
Organizadores

História: objetos, fontes e escritas


Editora Mentes Abertas

Conselho editorial
Profa. Dra. Cristiane Navarrete Tolomei (UFMA)
Prof. Dr. Fábio Marques de Souza (UEPB)
Prof. Dr. Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE)

Comitê científico da obra


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transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direitos dos autores.

Fransuel Lima de Barros; Ronyere Ferreira da Silva; Márcio Douglas de


Carvalho e Silva. [Organizadores]

História: objetos, fontes e escritas. São Paulo, Mentes Abertas, 2019.


414 p.

ISBN: 978-65-80266-32-6

1. História. 2. Historiografia. I. Título.


CDD 792

Preparação dos originais: Fransuel Lima de Barros; Márcio Douglas de Carvalho e


Silva.
Diagramação: Ronyere Ferreira
Sumário

Apresentação

Parte I – História e Historiografia

Notas sobre a Inquisição no Piauí Colonial...................................... 17


Ferdinand Almeida de Moura Filho

“É carta, é fundo, é tráfico [...]”: os fatores que contribuíram para


diminuir o número de escravos no Piauí (1872-1887)...................... 35
Rodrigo Caetano Silva

“Retiremos para o Piauhy”: as migrações cearenses na


seca de 1877-1879............................................................................. 49
Márcio Douglas de Carvalho e Silva

Entre a cidade e o sertão: as epidemias de bexigas no


Grão-pará colonial (1755-1820)........................................................ 65
Benedito Carlos Costa Barbosa

As instruções de são Carlos Borromeu para a construção das


igrejas após o Concílio de Trento....................................................... 85
Natália Maria da Conceição Oliveira.
“Como se deve escrever a história do Brasil”: panorama e perspectivas... 107
Jônatas Lincoln Rocha Franco
Fernanda da Costa Sousa Santos

Amazônia oriental brasileira: história e historiografia.................... 125


Lucilvana Ferreira Barros
Roberg Januário dos Santos

O Rio Grande do Norte no limite: história e espaços nas


páginas da RIHGRN (1903)............................................................. 133
Patrícia da Silva Azevedo

“Servirá este livro para o registro dos óbitos dos filhos da mulher
escrava”: o reflexo da lei n° 2.040 de 28 de setembro de 1871 na vila
de Campo Maior (1873-1883)........................................................... 145
Jéssica Gadelha Morais

Em busca do estado-nação: devires do pensamento social e


forças da tradição nas ideias de Júlio de Mesquita Filho.................... 157
Francisco Adriano Leal Macêdo
Shirley Pereira Cardoso

Família e política no legislativo piauiense: um estudo sobre a


sucessão política (1998-2014)............................................................ 177
Lívia Maria Silva Alves

Teresina: história, educação e estado – subsídios para o


entendimento da descentralização/centralização............................. 197
Pedro Tiago Costa Melo
Luis Carlos Sales

A construção do sujeito (professor), diante do mercado


de trabalho......................................................................................... 205
Cleide Maria de Carvalho Silva
Parte II – História, cidade e memória

A instalação da Comissão Mista Ferroviária


Brasileiro-boliviana no Porto do Distrito do Ladário e a
construção do primeiro ramal (1937-1939)....................................... 219
Daiane Lima dos Santos

Lugares de trabalho e memória: patrimônio industrial


ferroviário em Parnaíba-PI, 1916-1980............................................. 229
Lêda Rodrigues Vieira

Memórias da cidade: apontamentos históricos sobre a


feira livre de Dourados/MS.............................................................. 237
Camila de Brito Quadros Lara

Tecendo histórias e memórias sobre a o processo de


modernização de Campo Maior entre 1930-1945............................... 249
Pauliana Maria de Jesus

Agricultores maranhenses em busca de terras no Pará:


a lei 2.979 e suas consequências na vida de trabalhadores
rurais do Maranhão........................................................................... 259
Bruno de Souza Silva
Antônia Silvestre do Nascimento Maia

‘Quem foi de aço nos anos de chumbo? Brasil chegou a vez de


ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês’: as disputas
em torno do ensino de história no Brasil hoje................................. 267
Davison Hugo Rocha Alves

Antropologia e arqueologia religiosa: religião


afro-brasileira no Piauí..................................................................... 277
Francisca Verônica Cavalcante
Parte III – História, gênero, literatura e arte

Eduquem os homens! e as mulheres? Casas de recolhimento como


primeiras formas de educação para o sexo feminino no
Maranhão setecentismo.................................................................... 299
Joabe Rocha de Almeide
Ana Leticia Araujo Goes

Distrito industrial de Manaus: a construção da luta operária


feminina na década de 80................................................................. 313
Vanessa Cristina da Silva Sampaio

Um palavreado inicial: no rastro da crônica, possibilidades de


se historicizar.................................................................................... 319
Jakson dos Santos Ribeiro

No ritmo da folia: o carnaval teresinense e suas


transformações históricas no começo do século XX........................ 331
Fransuel Lima de Barros

Jane Austen & os espaços: cotidiano de Bath representado em


“A abadia de Northanger” – 1817..................................................... 343
Camila Rafaela Pereira de Souza

Uma literatura menor: as reminiscências de um Brasil


escravocrata na música Negro drama, de Racionais MC’s............. 365
Davi Benvindo de Oliveira

Entrevista com a professora e escritora Eva Paulino Bueno: um 385


estudo sobre a Carolina Maria de Jesus
Valderlany Mendes Dantas
A indianização cosmopolítica da história sob “lentes não
modernas”: novos colonialismos e a crítica decolonial na
perspectiva de atores e cineastas indígenas..................................... 401
Ismatônio de Castro Sousa Sarmento
Apresentação

Para o historiador alemão Jörn Rüsen, a história pode ser entendida


como o resultado produzido das ações do homem após a sua realização; de
modo direto, a história é fruto do que é extraído das fontes pelos historiadores,
tornando o passado em história, apenas quando interpretado.
Segundo Rüsen, o que o historiador produz ao final da pesquisa, é o
resultado da análise das fontes dentro de um contexto, pois a versão de um fato
pode sofrer alterações, ou até ser substituída por novos discursos. Embora haja
a possibilidade de múltiplas “versões” na história, a regulamentação metódica
é elemento crucial no ofício do historiador, pois ela é estabelecida partindo das
informações contidas nos registros documentais, o que permite uma pondera-
ção das informações, permitido que “o testemunho empírico atual do passado”
verifique o fato de uma tal forma que ele tenha ocorrido.
Nessa discussão, o espanhol Josep Fontana, propõe três de formas que
o historiador deve seguir para conduzir o seu ofício: eliminando o modelo úni-
co de evolução humana, que traz consigo as concepções mecânicas acerca da
ideia de progresso; buscando “uma nova forma de aproximação do estudo do
acontecimento - a relação entre o fato concreto e o contexto teórico em que o
situamos; [...] e uma reproposição das explicações habituais dos atos humanos,
que pecaram uma sobrevalorização da sua racionalidade” (FONTANA, 1998,
p. 272).
Seguindo esse raciocínio, na sua atividade, o pesquisador deve buscar
respostas para as perguntas lançadas, que transitando entre a empiria e a teoria,
são respondidas por meio do procedimento regulado, estes divididos em três
fases, de acordo com Rüsen: a pergunta histórica, a pergunta à fonte e a formu-

9
lação das respostas a partir das fontes. A pesquisa é neste sentido, um complexo
amplo que não deve ser presa às teorias no seu ato interpretativo, mas sim está
atenta aos seus resultados, pois segundo Rüsen, as teorias postas no ramo da
história, estão sujeitas a serem “moldadas” ou modificadas a partir dos dados
contidos nas fontes.
Empreende-se que o uso do método, faz a “ponte” entre o pesquisador
e a fonte, para se chegar a resposta da pergunta lançada. Rüsen, entende a pes-
quisa histórica não como um fim em si mesma, pois está conectada a critérios
narrativos que dão sentido ao trabalho do historiador, sendo a pesquisa, “de-
finida por sua relação estrita à experiência histórica metodicamente regulada”,
através do diálogo com o passado, dando enfoque, assim, a constituição da
historiografia, concebida como um “ato cognitivo próprio”. A ideia de Rüsen,
diante disso, é que não há necessariamente uma dependência direta entre a pes-
quisa, a interpretação do historiador e as teorias, pois, tanto a teoria é formu-
lada a partir de novas concepções de pesquisa, como os resultados da pesquisa
podem ser superados, não sendo algo estaques.
É partindo das concepções de Rüsen, que apresentamos esta coletânea.
Formada por textos que contemplam uma gama diversa de objetos de pesquisa
em história, estes trabalhos foram constituídos a partir de fontes variadas, e
traduzem os modelos de escrever dos autores de diferentes Universidades bra-
sileiras, sejam eles mestrandos, mestres, doutorandos ou doutores. Ao fazerem
usos de metodologias, teorias, conceitos e fontes diversificadas, os trabalhos
aqui publicados, revelam as possibilidades de investigações existentes dentro
do ramo da história, abrindo espaço para a divulgação de pesquisas plurais que
podem servir de referências e inspiração para outros pesquisadores.
Os artigos estão agrupados de acordo com eixos temáticos, que no seu
interior, foram distribuídos de forma que seja possível um diálogo mútuo em
cada seção, seja por proximidade temática, metodológica, teórica-conceitual,
temporal ou geográfica. No primeira parte, intitulada “História e historiogra-
fia”, organizamos doze trabalhos, que abordam temas como: inquisição, es-
cravidão e migração, tendo como recorte geográfico, o Piauí. Além disso, esta
seção traz trabalhos sobre as epidemias no Grão-Pará colonial, arquitetura reli-
giosa após o Concílio de Trento e textos relacionados ao debate historiográfico
e educacional brasileiro, seja na Amazônia ou no Nordeste.
“História, cidade e memória”, segunda parte do livro, formada por sete

10
textos, traz um debate que se funda a partir da análise da memória de diferentes
sujeitos inseridos no processo histórico, seja ele transcorrido na cidades, no
trabalho, nos discursos modernizadores do espaço, no ensino de história, na
luta por direitos, ou na vivência religiosa do brasileiro.
A terceira seção desta obra, é formada por dez artigos que contemplam
a relação da “História, gênero, literatura e arte”. As três primeiras pesquisas, que
abordam em diferentes séculos a condição feminina na sociedade, contemplam
aspectos referentes a educação feminina no Maranhão setecentista, as narrati-
vas sobre a mulher no jornal “O artista”, em Paraíba-PI, no século XX, e por
último, a luta operária feminina no distrito industrial de Manaus, na década de
1980.
Ao ser utilizada como fonte histórica, a literatura é capaz de fornecer ao
historiador possibilidades de análises de fatos, lugares, memórias, manifesta-
ções artísticas, políticas, costumes, além de ser capaz de fornecer detalhes que a
fonte comumente utilizada pelo historiador pode não revelar, pois, assim como
o discurso histórico, o discurso literário traz “representações construídas sobre
o mundo e que traduzem, ambos, sentidos e significados inscritos no tempo e
[...] guardam com a realidade distintos níveis de aproximação” (PESAVENTO,
2006, p. 06). No âmbito dessas possibilidades, podemos citar a crônica, que é
objeto de debate em dois textos trazidos nessa parte do livro.
Além desses, a literatura também está presente na análise do romance
“A abadia de Northanger” de Jane Austen, onde é analisado “como se deu o de-
senvolvimento da cidade a partir dos usos dos seus espaços’. Citamos também,
a entrevista acerca produção literária de Carolina Maia de Jesus, concedida pela
professora Eva. P. Bueno. Os demais trabalhos que formam essa seção, contem-
plam o debate voltado para o campo da arte, como a pesquisa acerca da missão
cultural de Jônatas Batista, a história adaptada para os quadrinhos, a análise
da música “Negro Drama”, que traz um debate sobre racismo no Brasil atual, e
crítica decolonial, na perspectivas de autores e cineastas indígenas.
Desejamos que os trabalhos aqui publicados despertem o incentivo
a novas pesquisas no âmbito da história, não só nos objetos que aqui foram
analisados, mas também em outros campos das especialidades da disciplina.
Além disso, esperamos que permita aos leitores formularem interpretações da
dinâmica dos processos históricos, e das relações entre homem sociedade e
processos históricos.

11
Referências
FONTANA, Josep. “Reflexões sobre a História, do além do fim da História”. In:
História: análise do passado e projeto social. São Paulo: Edusc, 1998, pp. 267-
281.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história.


Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Débats, mis en ligne le 28 janvier 2006.

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Teoria da História II: os princípios da


pesquisa histórica. Brasília: UNB, 2007.

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica. Teoria da História [I]: os fundamentos da Ciên-


cia Histórica. Brasília, UnB, 2011.

12
13
Parte I
História e historiografia
16
Notas sobre a Inquisição no Piauí Colonial1

Ferdinand Almeida de Moura Filho


Doutorando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do
Pará (UFPA), e membro do Grupo de Pesquisa População, Família e Migração
na Amazônia (RUMA CNPq). E-mail: ferdinandhistoria@yahoo.com.br

Introdução
Na alvorada do setecentos, um homem temente a Deus caminha sem
titubear pelas ruas de Salvador, na Bahia de Todos os Santos, em direção à
casa do comissário do Santo Ofício. Estava desejoso a denunciar “por serviço
de Deus e descargo de sua consciência”2, um caso que ocorreu dois anos antes
e distante por aproximadamente 200 léguas. Tratava-se de um incêndio cri-
minoso contra várias casas, recentemente levantadas, no sertão do Piauí3, em
agosto de 1706. O incêndio em si, sob qualquer circunstância ou gravidade,
não era importante aos olhos do comissário, tampouco aos inquisidores. Mas
1 A presente conferência é resultado dos desdobramentos de um projeto maior intitulado Tra-
jetórias entre Maranhão e Portugal: Inquisição e Justiça Eclesiásticas no setecentos, coordenado
pela Dra. Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz, no edital Estágio Internacional financiado pela
FAPEMA. Este projeto me permitiu pesquisar in situ na Torre do Tombo, em Lisboa, sob a tutela
da Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste». Atualmente esta pesquisa é financiada
pela CAPES, a nível de doutorado pelo programa de Pós-graduação em História Social da Ama-
zônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). O autor oferece esta conferência a Luiz Mott.
Um pesquisador incansável que foi o primeiro a dar voz aos sujeitos que tiveram suas vidas atra-
vessadas pelo Santo Ofício “nestes longínquos sertões”.
2 Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor, Liv. 270, f. 186.
3 TSO, IL, CP, Liv. 270, f. 186.

17
queimou-se uma cruz de “[…] pau grande, que tinha de frente de sua porta
estilo observado em todo o sertão; todos os moradores [tinham] uma cruz a
sua porta”4. Acresce, para piorar o sacrilégio, que na ocasião de um segundo
incêndio, a cruz fora retirada pelos supostos criminosos e arremessada ao pasto
dos gados. Tamanho desacato era uma afronta à Igreja Católica, e a punição era
responsabilidade do Santo Ofício.
Trata-se não de um caso incomum, pelo contrário. Denúncias desse
tipo à Inquisição eram bastante recorrentes. O que traz sobressalto é o local do
suposto crime: a recém-batizada freguesia de Nossa Senhora da Vitória, loca-
lizada no sertão do Piauí. Observa-se este o primeiro registro nos documentos
inquisitoriais em que se menciona a região do Piauí, pois há um pouco mais de
10 anos, o Padre Miguel de Carvalho, perscrutando aquelas terras e observan-
do enorme crescimento em tão pouco tempo, notifica ao bispo de Pernambuco,
dom Frei Francisco de Lima, a necessidade do desdobramento da freguesia5.
Assim, no dia 11 de fevereiro de 1697, desmembrando-se da paróquia de Nossa
Senhora da Conceição do Rodelas, ou Cabrobó, situada a margem esquerda
do rio São Francisco, é fundada a freguesia de Nossa Senhora da Vitória6. É a
primeira freguesia criada “nestes longínquos sertões” do Piauí.
O “devoto” denunciante se chamava João Rodrigues Moreira, vaquei-
ro, natural da Ilha de São Miguel e residente na freguesia de Nossa Senhora
da Vitória. Os supostos criminosos eram identificados como André Gomes da
Costa, natural de Guimarães, e André Ribeiros, ambos moradores na mesma
freguesia que o depoente. João Rodrigues Moreira conta que os dois supostos
delitos – o incêndio, no âmbito temporal e o desacato contra as imagens san-
tas no âmbito espiritual somente este último, como visto, interessava ao Santo
Ofício – tinham razões diversas. Enquanto o incêndio era pelo fato de uma
4 TSO, IL, CP, Liv. 270, f. 186.
5 O Padre Miguel de Carvalho é também responsável (advindo de sua peregrinação à região do
Piauí, a partir de 1694) pelo relatório intitulado Descrição do Sertão do Piauí, que segundo Odi-
lon Nunes, é o mais precioso documento referente ao Piauí seiscentista. Trata-se aqui um pouco
deste relatório, bem como os primeiros anos da ocupação do território piauiense em minha
dissertação. Sobre isso, consultar: MOURA FILHO, Ferdinand Almeida. Dionísio da Silva: um
criptojudeu nas garras da Inquisição no Piauí colonial. Dissertação. Programa de Pós-graduação
em História. São Luís: Universidade Federal do Maranhão, 2018, p. 56 – 73.
6 A região do Piauí estava inicialmente subordinada à administração espiritual do bispado de
Pernambuco. A transferência a jurisdição espiritual do Maranhão ocorreu, ao que parece, em
fevereiro de 1724. MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiás-
tica e desvio do clero no Maranhão Colonial. Tese. Programa de Pós-graduação em História. Rio
de Janeiro: Universidade Federal Fluminense. 2011, p. 29.

18
contenda, está não explicitada, entre André Gomes da Costa e o dono das re-
sidências Vicente Rodrigues Ramos; o desacato a “cruz de pau grande” dava-se
pelo fato de os denunciados serem Cristãos-novos7.
Não é sabido o que se sucedeu deste imbróglio. Mas é essencial pontuar
o fato de João Rodrigues Moreira ter ido à Bahia denunciar o ocorrido. Este
afirma que preferiu ir à Bahia a Pernambuco, região que administrava espiri-
tualmente o distrito onde ocorreu o delito, por ser mais perto e, especialmente,
por ser menos “dificultoso” as conduções dos gados8. Uniu o útil ao agradável.
Não podendo denunciar o ocorrido na sua própria freguesia, aproveitou as suas
tratativas com o comércio do gado nas partes da Bahia para ir à residência de
um funcionário do Santo Ofício relatar o acontecido de dois anos atrás.
Neste registro não está evidente se denunciante recorreu a algum reli-
gioso na freguesia da Vitória, tampouco se tem notícia de outro documento que
o relate. É razoável acreditar na improbabilidade de que ele tenha recorrido a
um religioso, posto que a freguesia de Nossa Senhora da Vitória naquele perío-
do, seguramente, teria, por exemplo, mais de 129 fazendas de gado instaladas9
e somente um único pároco: Tomé de Carvalho. Mesmo após a transferência de
competência da administração espiritual ao bispado do Maranhão, a região do
Piauí ainda estaria bastante fragilizada de religiosos capazes de resolver essas
tratativas, nesse caso, em especial, referentes ao Santo Ofício – já aventado.
Nesse sentido, e pensando no próprio corpo burocrático da Inquisição,
é muito pouco provável que tenha tido algum residente destes sertões habili-
tado a este “Santo Tribunal”. A exceção seria o leigo Antônio Gonçalves Neiva,
habilitado ao cargo de Familiar do Santo Ofício em 1715 – como se verá adian-
te. No contexto nacional é somente a partir de 1740 que se estrutura e consolida
a rede de agentes inquisitoriais10. Portanto, para procurar preservar a ortodoxia
na região do Piauí durante o setecentos, a Inquisição hipertrofiou as conexões
a outras instituições eclesiásticas, nesse caso, prioritariamente, o bispado. O
estudo desses fatos e do encadeamento deles descortina-se como cada vez mais

7 TSO, IL, CP, Liv. 270, f. 186.


8 TSO, IL, CP, Liv. 270, f. 186.
9 Este dado é apresentado pelo Miguel de Carvalho em seu relatório intitulado Descrição do
Sertão do Piauí, redigido aos findos do seiscentos. Sobre Isso, consultar nota 6.
10 Sobre isso ver: FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil.
Nordeste 1640 – 1750. São Paulo: Alameda: Phoebus, 2007; RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja
e Inquisição no Brasil: agentes. Carreiras e mecanismos de promoção social, século XVII. São
Paulo: Alameda, 2014.

19
essencial.
O antropólogo e historiador Luiz Mott foi o primeiro a escrever sobre a
presença do Santo Ofício nas terras do Piauí. Publicou, inicialmente, no Jornal
Diário do Povo, no ano de 1987, o artigo intitulado A Inquisição no Piauí, re-
publicando, em 2006, com alguns acréscimos e modificações, no livro História
e Historiografia11. Ao redigir este artigo, seu objetivo principal não era fazer
uma análise aprofundada, mas possibilitar e suscitar o interesse de futuros pes-
quisadores. Conseguiu. A produção de trabalhos que, pelo menos, tangencie a
atuação da Inquisição no Piauí cresceu vertiginosamente12. Aqui me incluo. No
entanto, ainda faltam trabalhos que se proponham a perceber, em linhas gerais,
a atuação do Tribunal do Santo Ofício nessa região.
Talvez, se faça, mas não nestas linhas que se seguirão. O objetivo deste
trabalho não será fazer uma análise minuciosa do dinamismo da Inquisição nas
terras do Piauí. Desde a publicação de Mott, cresceram os números de sujeitos
denunciados, processados ou que serviram, ou pelo menos tentaram servir, em
nome do Santo Ofício, passando da casa de 60 sujeitos13. E, portanto, impossí-
veis de serem analisados de forma satisfatória nestas poucas páginas. Assim, o
objetivo será analisar alguns casos inéditos, que deem a imagem gráfica do te-
cido social e aspectos da efetiva atuação do Santo Ofício na sociedade piauiense

11 MOTT, Luiz. A Inquisição no Piauí. In: NASCIMENTO, Alcides; VAINFAS, Ronaldo. (org.)
Historia e Historiografia. Recife: Bagaço, 2006.
12 Além dos trabalhos que já, ou serão, citados. Temos: CARVALHO, Wirlanne N. L. Inquisi-
ção e os filhos de Israel: denúncias de práticas judaicas no nordeste brasileiro do século XVIII.
Trabalho de Conclusão de Curso. Teresina: Universidade Federal do Piauí, 2013; MOTT, Luiz.
Transgressão na calada da noite: Um sabá de feiticeiras e demônios no Piauí colonial. Revista do
Programa de Pós-graduação em História da UnB, Brasília, v.14, n. 1-2, 2006; MUNIZ, Pollyanna
Gouveia Mendonça. Réus da Batina: Justiça Eclesiástica e clero secular no bispado do Maranhão
Colonial. São Paulo: Alameda, 2017; MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. O vigário geral
forense que foi processado pela Inquisição’: Frei Damião da Costa Medeiros no Piauí Colonial.
In: ALMEIDA, S; SILVA, G.C.M; RIBEIRO, M de Azamburja. (Org.). Cultura e Sociabilidades no
Mundo Atlântico. Recife: Editora da UFPE, 2012; MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Jus-
tiça Eclesiástica e Inquisição no bispado do Maranhão: notas sobre um vigário-geral forense no
Piauí colonial. In. MATTOS, Yllan; MUNIZ, Pollyanna G. Mendonça. (Org.). Inquisição & Justi-
ça Eclesiástica. Jundiaí: Paco Editorial, 2013; SILVA, Carolina Rocha. O sabá do sertão: feiticeiras,
demônios e jesuítas no Piauí Colonial (1750-58). Dissertação. Programa de Pós-graduação em
História. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2013.
13 Luiz Mott, no século passado, localizou 23 sujeitos residentes no Piauí que foram, de alguma
forma, tisnados pelo Santo Ofício. Este número pôde crescer consideralmente (quase triplicando)
em razão da facilidade ao acesso as documentações da Torre do Tombo que estão praticamente
todas digitalizadas,

20
setecentista14.

“A Fama pública de Cristã Novice”

O inaugural caso descrito anteriormente objeta com que argumentei


em outras ocasiões. Afirmou-se, ainda, utilizando de palavras como “provavel-
mente “ou “supostamente”, que Dionísio da Silva teria sido o primeiro e úni-
co cristão-novo residindo no Piauí colonial a ser denunciado e/ou processado
pelo Santo Ofício. Dionísio também figura como o primeiro residente nas ter-
ras piauienses a ser processado pelo Santo Ofício, mas, seguramente, não foi o
único a ser denunciado15. É bem verdade que Antônio Ribeiro e André Gomes
da Costa não são denunciados por judaizarem, mas a “fama pública” de serem
cristãos-novos agrava e potencializa a convicção da sociedade, bem como dos
responsáveis pela manutenção da ortodoxia, de que eles eram, de fato, culpados
por transgredirem as “leis de Cristo”. E isso não pode ser ignorado, tampouco
enclausurado à tipologia criminal.
Manoel Soares é outro exemplo. Solteiro, natural da Paraíba, residente
na freguesia de Nossa Senhora do Monte do Carmo da Piracuruca, onde era
assistente na fazenda de São João dos Matos. Em 27 de outubro de 1742 foi
denunciado por 11 pessoas ao bispo Dom Frei Manuel da Cruz, que estava
realizando visita pastoral naquelas regiões. Era acusado por blasfêmias “contra
Deus e seus Santos”. Considerado um herege, a maioria das testemunhas afir-
mava, “por ouvir dizer”, que Manoel dizia não ter fé e que também não acredi-
tava em Deus, nos santos, nos sacramentos, tampouco, na igreja. O vaqueiro
Antônio Pacheco de Araújo narra que o denunciado “[…] não se benze e nem
dá graças a Deus com as mãos erguidas, que as põem sempre inclinadas para
baixo”. Além de não acreditar, atacava ainda os preceitos católicos e que quando
se “[…] confessava e dava Graças a Deus era com medo do Pároco”16.
Contavam, também “por ouvir dizer”, que Manoel era judeu; filho de
judia; cristão-novo e louco. Quanto ao último, João Nunes Ferreira, uma das
14 Por opção, devido, principalmente, estarmos no início das investigações, não serão analisados
os casos que renderam processo. Estes serão acrescidos, bem como outras documentações “avul-
sas”, em outra oportunidade.
15 Sobre sua trajetória: MOURA FILHO, 2018. A fim de consultar seu processo, ver: Tribunal do
Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 3754.
16 TSO, IL, CP, Liv. 297, f. 6 e seguintes.

21
poucas pessoas que o denunciaram por presenciar atos contra a fé católica por
parte do denunciado, afirma que “[…] o julga ser homem louco pelos sinais que
mostra […]”. Já Miguel de Paiva disse que Manoel “[…] em presença dele por
testemunha, disse que não acreditava, não cria em Deus, nem nos sacramentos
da igreja”. Quanto ao fato de ser cristão-novo, disse ainda “[…] que sua mãe era
judia, e que o sangue corria pelas veias”, e nessas ocasiões a testemunha julgava
que ele estava em seu juízo perfeito e nunca o viu por louco ou mentecapto17.
De fato, várias pessoas, seja por presenciar, seja por ouvir dizer, afirmavam ser
“fama pública” a cristã novice de Manoel Soares.
Assim, o bispo determina que “se passe as ordens necessárias para ser
preso e remetido ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, ao qual privativamente
pertence conhecer culpa de heresia”18. Não se tem informações de que se con-
sumou a ordem de prisão, tampouco que se abriu um processo contra ele. Se
Manoel tiver sido preso e encaminhado a Lisboa, possivelmente o bispo tenha
ficado em maus lençóis. A Inquisição não admitia prisões indevidas, tampou-
co sobreposição de poderes. O regime de colaboração entre a Inquisição e as
demais justiças eclesiásticas previa que estas encaminhassem denúncias que
fossem da alçada do Santo Ofício. Eram os inquisidores que julgavam o mérito
das denúncias e assim encaminhavam o mandado de prisão para, só assim,
iniciar o processo – a exceção seria em caso eminente de fuga do delatado, o
que não parecia ser o caso. É importante ressaltar que o escrivão desta visita era
o famigerado José Ayres que, como bem analisado pela professora Pollyanna
Gouveia Mendonça Muniz, foi preso e processado pelo Santo Ofício por afir-
mar ser comissário sem sê-lo19.
De todo modo, Manoel Soares é novamente denunciado 11 anos de-
pois. Em 26 de outubro de 1753, perante o padre Inácio Xavier, Ana Mendes
dos Santos, viúva de Nuno Alves Pereira, contando à época, 30 anos, mais ou
menos, afirma por “ouvir dizer” que Manoel Soares, agora residindo no rio
Itapecuru, em casa de Pedro Carrilho, afirmava corriqueiramente que Deus era
um pedaço de pau20.

17 TSO, IL, CP, Liv. 297, f. 65


18 TSO, IL, CP, Liv. 297, f. 65
19 MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. O falso comissário do Santo Ofício: padre José Ai-
res nos sertões do Piauí Colonial. In: Novos olhares a Amazônia Colonial. (Org.). CHAMBOU-
LEYRON, Rafael; JUNIOR, José Alves de Sousa. Belém, PA: Paka-Tatu, 2016.
20 TSO, IL, CP, Liv. 308, f. 6

22
Manoel Soares mudara-se para outra região, mas a fama de herege e
blasfemador seguia com ele. Convicto de seus posicionamentos, deve ter dito
várias e longas conversas bastante heterodoxas com seu amigo Pedro Carrilho,
que também era denunciado. Felizmente, e apesar de ser fartamente denuncia-
do, eles ficaram livres das garras disciplinadoras do Santo Ofício e, sabe-se lá
por quanto tempo, continuaram sendo “blasfemadores perfeitos”.

Desvios à conduta moral21

Em seguimento à exposição, detém-se agora sobre o delito que foi mais


recorrentemente noticiado ao Santo Ofício: bigamia. Até o presente momento,
acham-se por nós localizadas 21 pessoas denunciadas, sendo uma delas pro-
cessada. Trata-se de Manoel Duro22. A esmagadora maioria das denúncias con-
centra-se entre as décadas de 40 e 50 do século XVIII23 e, novamente, a grande
maioria chegou ao conhecimento da Inquisição a partir do regime de colabora-
ção com as outras estruturas eclesiásticas, nesse caso, os bispos24. Corroboran-
do, portanto, com o que já foi dito.
Comecemos com as exceções. Trata-se de Domingas da Costa, filha da
Antônia da Costa, casada com Francisco Xavier, natural da Vila da Mocha e,
ao tempo da denúncia moradora da fazenda da Prata, na Freguesia de Aldeias

21 Consideram-se desvios à conduta moral e que eram da alçada do Santo Ofício os crimes de
bigamia, sodomia e solicitação. Em razão do pouco espaço e, principalmente, a pesquisa que
está em fase inicial, nos concentraremos somente quanto aos sujeitos denunciados pelo delito
da bigamia. Como já apontado por Luiz Mott, e a um prévio levantamento sistemático, vários
foram os padres denunciados por solicitarem. Com relação ao crime de sodomia, até o presente
momento não se localiza registros de sujeito residente no Piauí foi denunciado e/ou processado
por crime.
22 TSO, IL, Proc. 4401
23 Foi sob administração espiritual do bispado do Maranhão, a partir de 1724, que se aumen-
tou a vigilância quanto à manutenção da ortodoxia na região do Piauí. No entanto, apesar de
aumentar, esta ainda se tornou bastante incipiente. Toca-se um pouco nessa questão em nossa
dissertação. Sobre isso: MOURA FILHO, 2018, p. 76 – 85.
24 Durante a primeira metade do século XVIII, o bispado do Maranhão ficou vacante por 30
anos. O maior período de estabilidade deu-se no governo do bispo Dom Frei Manuel da Cruz
(1738 – 1745) e Dom Frei Francisco de São Tiago (1745 – 1752), ou seja, foram 15 anos ininter-
ruptos de bispos governando o bispado. Essa continuidade talvez explique uma maior vigilância
e, por conseguinte, mais denúncias ao Tribunal do Santo Ofício, através das visitas pastorais. So-
bre isso: MUNIZ, 2011, p. 28 – 35; LIMA, Antônio Lacerda Lima. Pessoas de vida e costumes com-
provados: clero secular e Inquisição na Amazônia setecentista. Dissertação. Programa de Pós-
-Graduação em História Social da Amazónia. Belém: Universidade Federal do Pará, 2016, p. 38

23
Altas. O Padre Fernandes foi quem a denunciou e ele mesmo quem remeteu
a notícia-crime ao Santo Ofício. O citado clérigo afirmou que a denunciada
fora casada com o já citado Francisco Xavier, mas que em 1732, resolveu ela
amancebar-se com o pernambucano Manuel Martins Neves, mudando-se, en-
tão, para a freguesia das Aldeias Altas. O denunciante segue informando que
no ano de 1742, o vigário local os casou e que Domingas da Costa e Manuel
Martins Neves tiveram um filho chamado Marcos. No registro, o padre Fernan-
des não menciona a data da denúncia. A falta de tato com correspondências
dessa natureza, a nosso juízo, pode ser um motivo para tal esquecimento, mas
se pode supor que a denúncia aconteceu após 174225, última data mencionada.
Um caso curioso aconteceu nas terras da freguesia da Piracuruca.
É frei Miguel da Vitória quem toma nota da denúncia. Em 18 de fevereiro de
1749, o capitão Antônio Gomes Bitencourt, morador na Freguesia de Nossa Se-
nhora do Acaracu, na matriz e ribeira das Jaibaras, em sua fazenda do Coroatá,
denuncia, na freguesia de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca, Dionísio
Pereira, homem pardo e morador na mesma freguesia. Afirma ser o denun-
ciado pouco temente a Deus e à igreja, e que, jurado com Maria de Barros era
“notório em toda esta freguesia” o desejo de querer casar-se pela segunda vez,
tendo em vista já ser casado em Pernambuco. Sendo a sua primeira mulher ain-
da viva e a fim de realizar seu desejo de se casar com Maria de Barros, Dionísio
manda matar a sua esposa, fazendo outra vítima, por engano26.
Certamente intrigado com esse mirabolante e desastroso plano, Miguel
de Carvalho procura informar-se mais sobre o denunciado e, principalmente,
acerca do ocorrido. Assim, consulta o Reverendo Cura Antônio de Carvalho
Albuquerque. Este afirma que Dionísio era um homem mau, de maus costu-
mes, pois vivia escandalosamente com várias concubinas. Em seguida, confir-
ma o depoimento de Antônio Gomes “[…] que mandara a Pernambuco matar
a primeira mulher, depois de receber jurado, mas que mataram outra por erro”,
escapando assim a esposa viva. Frei Miguel de Carvalho encaminha, no dia 27
de fevereiro de 1749, uma correspondência ao Santo Ofício informando sobre
ocorrido, mas infelizmente não sabemos se este Santo Tribunal tomou alguma
providência. Possivelmente não, malgrado hediondo crime, este não era, efeti-
vamente, da alçada do Santo Ofício.

25 TSO, IL, CP, Liv. 309, f. 437.


26 TSO, IL, CP, Liv. 301, f. 237v

24
A última exceção é Joaquim de Santa Ana27. Em 26 de fevereiro de
1760, o bispo dom frei Antônio de São José, realizando a visita pastoral na Vila
da Mocha, tomou conhecimento, através de três sujeitos, que Joaquim de Santa
Ana, natural da Bahia e casado pela primeira vez nas margens do rio São Fran-
cisco, casou-se novamente naquela vila com Inácia. Homem pardo e exercendo
o ofício de sapateiro, Joaquim já não mais estava na região quando da chegada
do bispo. As testemunhas afirmam que ele fugiu “[…] por dizerem que era já
casado em outra parte”28. Não sabemos o real motivo, mas, provavelmente de-
vido à “fama pública” e a iminente chegada do bispo, Joaquim tenha resolvido
fugir, evitando complicar-se. Talvez tenha resolvido voltar a sua terra natal e
aos braços de sua primeira mulher. Não saberemos.
Findo o ano de 1743, o já qualificador do Santo Ofício frei João da Puri-
ficação, comunica ao Santo Ofício que Francisco Gonçalves, natural da Fregue-
sia de São Miguel de Pojuca, bispado de Pernambuco, casou-se a primeira vez
nesta mesma freguesia. Sozinho, embrenhou-se pelo sertão e no ano de 1727, já
no Maranhão, casou-se novamente com Ana de Oliveira, filha de Francisco de
Aguiar e Joana de Andrade, tendo três filhos. Ao afirmarem que era casado em
Pernambuco, resolveu fugir para as bandas de São Francisco e Terras Novas.
A fim de averiguar a veracidade do primeiro casamento, João da Purificação
solicita que o Santo Ofício encaminhe uma diligência a Pernambuco, pois “[…]
daqui não pode ser por não haver embarcações e por terra gastar-se em ir e vir
um ano, indo em uma seca e vindo em outra”29. Não sabemos se o Santo Ofí-
cio respondeu à solicitação de seu qualificador e, portanto, encaminhou uma
diligência a Pernambuco. Aliás, o nome de Francisco Gonçalves permanece
desparecido até o ano de 1750 quando é denunciado por bigamia na freguesia
de Nossa Senhora do Livramento de Parnaguá. Por isso lhes apresento.
Em 13 de junho de 1750, em Parnaguá, o bispo Francisco de São Tiago
interroga duas pessoas que afirmam ter Francisco Gonçalves casado em Per-
nambuco com uma mulata e era “fama publica” que se casou novamente no
Maranhão. De fato, numa época em que as comunicações eram dificultadas
pelas longas distâncias, a fama de Francisco era surpreendente. Francisco Car-
doso da Costa afirma que o suspeito tinha 57 anos. A outra testemunha, o ca-

27 A exceção é em parte, pois a denúncia é advinda de um bispo, ou seja, somente a data foge do
que afirmamos. A outra exceção, essa por completo, é novamente Manoel Duro.
28 TSO, IL, CP, Liv. 317, f. 149.
29 TSO, IL, CP, Liv. 297, f. 47.

25
pitão João de Faria Coutinho afirma que somente tinha “trinta e poucos anos,
mais ou menos” e acrescenta que o Francisco Gonçalves tinha “[…] estatura
mediana, cor branca e cabelo crespo”30.
No ano anterior, em 11 de novembro de 1749, a crioula Maria Tei-
xeira era denunciada ao bispo Francisco de São Tiago na ocasião de sua visi-
ta pastoral à Freguesia de Nossa Senhora de Santo Antônio do Surubim31. O
denunciante chamava-se Gonçalo Barbalho, natural da Bahia, morador nesta
freguesia e com idade de aproximadamente 35 anos. Afirmou “que Maria Tei-
xeira, crioula, casada no Rio Grande do Sul com um crioulo chamado Diogo,
escravos que foram de Capitão Antônio Machado, viera para esta freguesia com
um Cipriano da Cruz, com quem dizia ser casada”32. Ao indagar Maria sobre
seu primeiro marido, está lhe disse que já era falecido e que, por isso, casara-se
novamente. Passados pouco mais de dois meses, Gonçalo encontra-se com An-
tônio Machado, filho dos antigos senhores de Maria e Diogo, e pergunta sobre
o paradeiro deste último. Antônio responde-lhe que era vivo e ainda residia no
Rio Grande do Sul33. É somente Gonçalo Barbalho que denuncia a crioula Ma-
ria, talvez por isso o Santo Ofício não tenha dado atenção e prosseguido com
as investigações.
Oito dias depois, ainda na mesma visita, era a vez de sair denunciada
a índia Grácia. Natural do Ceará, onde era cativa de Antônio Martins, Grácia
fugiu para a Freguesia do Surubim. O denunciante, Jerónimo Teixeira da Fon-
seca, natural de Braga e morador na mesma freguesia, com idade de 27 anos,
afirma que Grácia era casada na Freguesia de São José do Ribamar, Capitania
do Ceará Grande, com o mestiço Inácio da Silva e, após fugir para as terras do
Piauí, casou-se com João dos Soutos. A razão de conhecimento do primeiro
casamento se dava pelo de Jerónimo já ter feito algumas viagens com Inácio. Tal
como ocorreu no caso anterior, o depoente perguntou pelo paradeiro do seu
primeiro marido e ela lhe respondeu que ele faleceu na serra, em casa de Tho-
mas Homem. Contudo, informando-se com João Valente, este lhe respondeu
que Inácio ainda estava vivo34. Novamente, tal como no caso anterior, a índia
Grácia foi denunciada por somente uma pessoa e, talvez por isso, não tenha
30 TSO, IL, CP, Liv. 308, f. 1.
31 TSO, IL, CP, Liv. 309, f. 374
32 TSO, IL, CP, Liv. 309, f. 374
33 TSO, IL, CP, Liv. 309, f. 374.
34 TSO, IL, CP, Liv. 309, f. 374

26
despertado atenção dos inquisidores.
Encerramos este tópico com mais duas denúncias, ambas ocorridas no
ano de 1750 e oriundas, ainda, da visita realizada pelo bispo dom Frei de São
Tiago. A primeira ocorreu em 31 de março de 1750, na freguesia de Nossa
Senhora da Vitória da Vila da Mocha, onde saiu denunciado Cosme Bezerra
Cavalcante, natural de Pernambuco e tinha, ao tempo da denúncia, 40 anos de
idade, aproximadamente. Foi denunciado por Manoel Gonçalves da Rocha e
Gaspar de Abreu Valadares, o primeiro natural do Porto e morador nesta Vila,
no Riacho do Fidalgo, solteiro, exercia o ofício de vaqueiro e tinha 43 anos. Ou-
tro denunciante, Gaspar de Abreu Valadares, declarava ser natural e morador
desta freguesia na fazenda Barra do Piauí e tinha 32 anos. Ambos afirmaram
que era “fama pública” que “sendo casado nas partes de Pernambuco, casara-se
pela segunda vez nesta freguesia com a mestiça Francisca Dias, sendo ainda
viva a primeira mulher”35. Manoel Gonçalves também acrescenta que o denun-
ciado fugira da Mocha três anos antes para retornar à sua primeira mulher.
Ambos afirmam, em termos mais ou menos parecidos, que Cosme tinha a cor
branca, estatura ordinária, magro, pouca barba, cabelo “corredio” preto36.
O mameluco Damião Cardoso Moreno, natural do Ceará e residente
na Freguesia de Nossa Senhora do Livramento do Parnaguá, tinha, mais ou
menos, 47 anos de idade e exercia o ofício de alfaiate quando denunciado, em
13 de junho de 1750, por um único sujeito. Este se chamava Francisco Cardoso
da Costa, natural da Vila de Viana, morador nesta freguesia, com 56 anos. O
delator afirma, segundo o capitão Cláudio de Sousa Brito, que o mameluco era
casado no Ceará com uma mameluca escrava e que ela “se vendeu” e foi para
Pernambuco. Damião, por sua vez, foi para a Freguesia de Parnaguá e, ainda
que sendo viva sua primeira esposa, casou-se pela segunda vez com a mestiça
Inácia “[…] escrava, que foi do defunto capitão-mor Manoel Ribeiro Talião”
e, após tanto se falar que ele era casado em Pernambuco, fugiu para a região
das Minas. Finaliza seu depoimento afirmando que denunciado tinha estatu-
ra ordinária tendendo para alto, curvado e tinha “cabelo crespo atirando para
mulato”37
O interessante destas denúncias é que as testemunhas dão informações
quanto aos sinais, ou seja, a fisionomia física do delatado. Numa região onde
35 TSO, IL, CP, Liv. 309, f. 368
36 TSO, IL, CP, Liv. 309, f. 372
37 TSO, IL, CP, Liv. 309, f. 369v

27
as denúncias eram feitas mais “por ouvir dizer”, informações dessa natureza
não eram tão comuns e, portanto, quando apresentadas oferecem uma riqueza
maior de detalhes.

Blasfêmia e sacrilégio

Poucos são os sujeitos denunciados por blasfemarem, seja por convic-


ção, seja em momentos de raiva – que era bastante comum, contra a fé católica.
Felizmente, nenhum deles foi processado.
Além de denunciar Dionísio Pereira – em 18 de fevereiro de 1749, re-
cordemos –, o capitão Antônio Gomes Bitencourt também delata Manoel de
Barros, morador na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca, ca-
sado com Antônia do Nascimento Araújo. O capitão afirma ouvir de Maria da
Silva, sogra de Dionísio, que:

Ele costumava trazer ao pescoço e lhe achava dentro da mesma, uma imagem
de Nosso Senhor Jesus Cristo Crucificado de metal sem cruz e com os braços
quebrados; e pelo mais corpo com alguns golpes de faca; esta mesma imagem
estava dentro da bolsa com a cabeça para baixo, e assim mais uma imagem de
Santo Antônio dentro da mesma bolsa, sem cabeça e também com os pés para
cima, e o corpo para baixo e um papel com várias figuras e pinturas que por
não saberem ler não entenderam o que queria dizer38

Em uma replicação do procedimento aberto a despeito da denúncia


acerca de Dionísio, o padre Miguel de Carvalho foi à caça de mais informações
sobre o ocorrido e intimou o próprio Manoel de Barros a prestar depoimento.
Este não apareceu. Assim, o padre mandou dar notícia à esposa de Manoel, em
casa de seu pai, João de Araújo Xavier e finaliza informando ao Santo Ofício
sobre todo processo, reportando aguardar ordens de como proceder39. Neste
segundo registro, datado de 27 de fevereiro de 1749, o padre faz-nos saber que
Manoel de Barros e a sua esposa Antônia do Nascimento Araújo eram pri-
mos40. Evidenciando, portanto, um casamento consanguíneo. Estes arranjos
matrimoniais eram bastante comuns na colônia não só entre cristãos-novos,
como vemos. Mostra ainda que a própria tia de Manoel, Maria da Silva, denun-
38 TSO, IL, CP, Liv. 301, f. 237
39 TSO, IL, CP, Liv. 301, f. 238
40 TSO, IL, CP, Liv. 301, f. 238

28
cia seu sobrinho. O que também não era incomum no Brasil Colonial, mas que
pode ter vários significados, perpassando o agenciamento de cada sujeito e que,
portanto, só pode ser entendido caso a caso.
No dia 9 de maio de 1759, no colégio da Companhia de Jesus da cidade
de São Luís do Maranhão, Francisco de Sá Osório41 denuncia Calisto Grace e
Manoel Lopes perante ao “Vice-reitor do Colégio e Comissário do Santo Ofí-
cio”42, Bernardo de Aguiar. Declara que na ocasião de ir, no ano anterior, a
Ribeira da Parnaíba, na função de escrivão substituto do desembargador e cor-
regedor Gaspar Gonçalves várias pessoas depuseram (doze para sermos mais
exatos), uns por “ouvir dizer”, outros por presenciar, que Calisto Grace, mora-
dor da Parnaíba, dizia que,

depois de comer e beber aguardente, fazia saúde ao Diabo e que só daria Graça
ao Diabo, e não a Deus; porque Deus o enganava, e o Diabo nunca o enganava;
e que era seu verdadeiro amigo, e que se ele imaginava que o Diabo havia de o
enganar, ele [Calisto] havia de se enforcar, e que Deus não lhe dava de comer,
somente o Diabo é que lhe dava43

Seguindo à risca os procedimento do Santo Ofício, talvez devido às
instruções que os reitores do Colégio Jesuíta receberam no ano de 168844, Ber-
nardo Aguiar pergunta a Francisco se “se quando o dito denunciado disse as
sobreditas coisas estava em seu perfeito juízo ou pelo contrário fora dele, to-
mado de vinho, ou de outra paixão que lhe perturbasse”45, respondeu que “as
pessoas que lhe contaram disseram só que tinha comido e bebido aguardente
mas que lhe não disseram que estivesse fora do seu juízo ou com outra paixão
que lhe perturbasse”.46 Apesar de Calisto ser denunciado por várias pessoas, os
inquisidores não acharam por bem se abrir um processo e averiguar os fatos,
muito provavelmente pelo fato de o denunciado estar “tomado de aguardente”.
A loucura, embriaguez ou inimizade eram razões, previstas no Regimento, que
41 Este declara ser “[…] Cristão-velho, escrivão da provedoria dos defuntos e ausentes, solteiro,
filho de Manuel Francisco de Sá e de Maria Ozorio de Carvalho, natural da vila de Britiande,
Comarca de Lamengo e morador na cidade de São Luís do Maranhão de 32 anos de idade”. TSO,
IL, CP, Liv. 313, f. 270
42 TSO, IL, CP, Liv. 313, f. 270
43 TSO, IL, CP, Liv. 313, f. 270v
44 A fim de ler sobre as instruções. Consultar: FEITLER, 2007, p. 245.
45 TSO, IL, CP, Liv. 313, f. 270v
46 TSO, IL, CP, Liv. 313, f. 270v

29
impugnaria qualquer testemunho. Por sua vez, Manoel Lopes foi denunciado
somente por duas pessoas. Estas afirmavam que ele pôs fogo em sua própria
casa e que dentro dela estava um Cristo crucificado47. Novamente o incêndio e
o desrespeito as imagens santas voltam à baila nessas páginas. Situações corri-
queiras como essas, advindas de denúncias vagas e imprecisas certamente não
chamariam atenção do Santo Ofício, ainda mais que a sua preocupação central
eram os cristãos-novos.

Agentes inquisitoriais

Nem só de suspeitos e réus que figuram os sujeitos residentes do Piauí


nas documentações inquisitoriais. Na pioneira pesquisa sobre a Inquisição no
Piauí, Luiz Mott afirma que não encontrou nenhum sujeito residente nas ter-
ras piauienses que tenha ocupado algum cargo do Santo Ofício. No entanto,
mostra que houve tentativas para ingressar nessa rede de agentes. Trata-se de
Antônio do Rego Castelo Branco e seu irmão Félix do Rego Castelo Branco48.
Mais recentemente, Bruno Feitler localiza um sujeito habilitado ao cargo de
Familiar do Santo Ofício. Chamava-se Antônio Gonçalves Neiva. Requereu no
dia 15 de julho de 1702, recebendo a resposta positiva treze anos depois, em
1715.49 Até o presente momento não foi localizado nenhum outro sujeito que
tenha se habilitado a algum cargo do Santo Ofício enquanto residia no Piauí.
Tão-somente outro processo de habilitação que não teve o desfecho completo.
Chama-se Paulo Carvalho da Cunha “morador há muitos anos no sítio
de Parnaguá, Freguesia de Nossa Senhora do Livramento que é da Capitania
do Piauí, distrito do Maranhão”50. Deseja servir ao Tribunal do Santo Ofício
na posição de Familiar. Justifica seu pedindo afirmando ter “todos os requisi-
tos e capacidades necessárias assim da pessoa por se achar em boa idade e ter
servido muitos anos de Capitão-mor do dito distrito de Parnaguá com inteira
satisfação”51. Seu pedido é datado de 26 de setembro de 1740.
Filho de João Gonçalves e de Mariana carvalho, já falecidos, Paulo
47 TSO, IL, CP, Liv. 313, f. 271v
48 TT, Inquisição de Lisboa, Habilitações do Santo Ofício, processo 3157. Estes sujeitos já foram
dissertados por mim. Sobre isso: MOURA FILHO, 2018, p. 91-94.
49 DGA/TT, Inquisição de Lisboa, Habilitações do Santo Ofício, processo 1203. Este sujeito já foi
dissertado por mim. Sobre isso: MOURA FILHO, 2018, p. 94 - 97
50 Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações Incompletas, doc. 4975, fl 1.
51 TSO, CG, HI, doc. 4975, fl 1.

30
Carvalho é natural da Freguesia de Santo André de Molares – termo da vila de
Bastos, comarca de Guimarães, Arcebispado de Braga, de onde saiu com apro-
ximadamente 17 anos para a Freguesia de Parnagua.52
É sabido que os custos exigidos à realização das diligências necessá-
rias para atestar a capacidade do requerente a um cargo no Santo Ofício é do
próprio candidato. Por isso, a habilitação de Paulo Carvalho é incompleta. A
Inquisição encaminha uma carta, não datada, ao candidato solicitando que
seja feito mais um depósito, pois era necessário realizar inquirições de Genere
para saber a origem dos pais e avós que são quase todas da Vila de Basto, que
pertencia à Santa Inquisição de Coimbra53. Não tivemos acesso a resposta de
Paulo Carvalho, se é que esta foi feita. Talvez o requerente tenha desistido desse
prestigioso cargo de Familiar. Talvez não tivesse mais condições para financiar
as diligências. Não sabemos. O que podemos inferir é que sua habilitação não
teve prosseguimento e ele não se tornou um agente inquisitorial. Sendo assim,
somente Antônio Gonçalves Neiva o único familiar habilitado a um cargo do
Santo Ofício sendo residente nas terras do Piauí.

Conclusão

Mesmo a Inquisição voltada, principalmente, às áreas mais prósperas


do Novo Mundo, áreas mais povoadas, economicamente mais ricas54, a região
do Piauí não ficou livre da atuação inquisitorial, comprovando o quão eficiente
era a articulação do Santo Ofício no Brasil, mesmo com a ausência de um tribu-
nal sedimentado aqui. Os tentáculos inquisitoriais conseguiam chegar às mais
variadas distâncias. Em uma região na qual não havia agentes inquisitoriais,
as estratégias do Santo Ofício para conseguir captar denúncias (sem as quais o
tribunal não sobreviveria), enviar diligências, inquirições, ou seja, todo o orga-
nicismo burocrático desta instituição, foi através da imbricada relação com as
instituições eclesiástica do poder regular e secular, principalmente este último,
tendo as visitas pastorais o ponto máximo desse auxílio, como vimos.
A Inquisição esteve presente no Piauí. Ela tisnou, diretamente ou in-
diretamente, a vida de significativa quantidade de pessoas. Muitas, denuncia-
das, outras tantas, processadas. A vida delas dificilmente seria a mesma após os
52 TSO, CG, HI, doc. 4975, fl 1.
53 Tribunal do Santo Ofício, mç. 40, doc. 64, fl 1.
54 MOTT, 2006, p. 210

31
eventos de inquérito e processo inquisitorial. Viveram daí em diante estigmati-
zadas. Os sujeitos apresentados nestas linhas eram gente de carne e osso, gente
simples, comumente descurados. Aqui procuramos dar sentido e notoriedade a
eles, mas não só. Suas trajetórias guiam-nos a alcançar tanto quanto os trâmites
processuais, a prática inquisitorial propriamente dita e, porque não dizer, a so-
ciedade colonial do Piauí no século XVIII. Tudo estava conectado, não poderia
ser diferente.

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História. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2013.

Documentação primaria
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor, Liv. 270;
297; 301; 308; 309; 313; 317

Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo nº 4401

Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 3754

Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Habilitações do Santo Ofício,


processo 1203

Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações Incompletas, doc. 4975.

Tribunal do Santo Ofício, Maço, 40, doc. 64

33
34
É carta, é fundo, é tráfico [...]: os fatores
que contribuíram para diminuir o número
de escravos no Piauí (1872-1887)1

Rodrigo Caetano Silva


Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Membro consultor da Comissão da Verdade da Escravidão no Brasil,
comissão ligada à Ordem dos Advogados do Brasil, seção Piauí – OAB-PI.

À luz de uma introdução


Os anos pós 1850, no que diz respeito à abolição da escravidão no Bra-
sil, foram momentos da ocorrência de um processo lento e gradual que coloca-
ria fim oficial na instituição escravista nestas plagas. Foi na segunda metade da
década de sessenta do século XIX, quando o tráfico interprovincial de escravos
já havia se intensificado, que as ações em prol da abolição da escravatura no
país tornaram-se mais acentuadas. Dentro desse processo de extinção da es-
cravidão houve vários fatores que contribuíram, cada um ao seu modo, para
libertar os cativos. As sociedades emancipadoras foram um desses elementos
que ajudaram no processo de libertação de escravos.
1 A pesquisa feita para desenvolver este capítulo foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoa-
mento de Pessoal de Nível Superior- (CAPES). Este texto é uma forma reduzida da pesquisa que
fizemos para elaborar nossa dissertação e tese. A dissertação encontra-se depositada no banco
de teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História do Brasil, da Universidade
Federal do Piauí- UFPI, a tese ainda estamos finalizando. Após finalizada será depositada no
banco de teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia,
da Universidade Federal do Pará- UFPA.

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Na Bahia, por exemplo, existiam algumas dessas instituições. Em Sal-
vador, capital da província, puderam ser identificadas as seguintes associações:
a Sociedade Libertadora Sete de Setembro, fundada no mesmo dia e mês do
ano de 1869; a Sociedade Humanitária Abolicionista, fundada em 26 de setem-
bro de 1869; e a Abolicionista Comercial, criada em setembro de 1870. Pelo in-
terior da província baiana, havia ainda a Libertadora dos Lençóis, na Chapada
Diamantina (SILVA, 2009, p. 3).
Assim como na província baiana, no Ceará também existiram essas
associações, que da mesma forma agiam para pôr fim à escravidão. Em 29 de
junho de 1870, na cidade de Baturité, província cearense, foi fundada uma so-
ciedade abolicionista com intuito de libertar escravos (GAZETILHA, 1870, p.
1). Outras sociedades emancipacionistas foram fundadas no decorrer dos anos
naquela província; elas estavam amparadas num pensamento e desejo que per-
meava a cabeça de muitos cearenses daquele período: o progresso.
O desejo pela emancipação dos escravos se agrupou ao redor de vários
indivíduos (políticos, advogados, comerciantes, libertos). Princípios de vitali-
dade e elementos de força, esses foram alguns dos predicativos utilizados para
estabelecer as bases da criação de algumas sociedades abolicionistas no Brasil.
Nesse aspecto, no dia 8 de setembro de 1879 iniciava-se a ideia patente de uma
associação que desse força e prestígio aos seus membros, que às vezes tendiam
à profundidade de seus esforços no vasto campo da luta pela libertação dos
escravos. A ideia se cristalizou e, em 28 de setembro de 1879, na província
do Ceará, estava definitivamente fundada uma nova sociedade abolicionista.
Seu nome parecia denunciar as lutas existentes naquele presente e anunciar as
modificações para seu futuro. Seu nome era Perseverança e Porvir. Em 25 de
outubro de 1879 os membros da Sociedade Perseverança e Porvir estabeleceram
no livro de atas a criação de um fundo para a libertação de escravos (PERSE-
VERANÇA E PORVIR, 1881, p. 1). A criação de fundo foi algo comum a todas
as sociedades abolicionistas que existiram no Brasil. O fundo era formado, em
vários casos, por meio de doações que os próprios membros das sociedades
faziam. Outras vezes, organizavam-se festas para conseguir recursos para o
fundo.
Da Sociedade Perseverança e Porvir derivou outra sociedade. Em 8 de
dezembro de 1880 nasceu, então, a Sociedade Cearense Libertadora. Realizou-
-se naquele dia, no salão de honra da Assembleia Provincial do Ceará, com
presença de inúmeras testemunhas, a sessão inaugural da Sociedade Cearense
Libertadora, promovida sob os auspícios dos membros da Sociedade Perseve-

36
rança e Porvir. O ato solene começou ao meio-dia e terminou às 15 horas da
tarde. Os membros da Sociedade Perseverança e Porvir apresentavam satisfa-
ção, pois, segundo Antônio Martins, que era membro da Sociedade Cearense
Libertadora, levaram a cabo a sua mais querida ambição, nascida do seu pensa-
mento e concretizada em 8 de dezembro de 1880, quando foi fundação a Socie-
dade Cearense Libertadora (INAUGURAÇÃO DA SOCIEDADE CEARENSE,
1881, p. 5).
A fundação de sociedades emancipadoras foi ato importante para a
história do Ceará e para a província enquanto local de luta pelo fim da escravi-
dão no Brasil. Naquele 8 de dezembro, às 11 horas do dia, quando se achavam
prontos os trabalhos para a inauguração da Sociedade Cearense Libertadora,
chegou às mãos de alguns de seus líderes uma nota do então presidente da
província, André Augusto de Pádua, que informava que naquela mesma hora
estaria numa audiência. Ao tomar ciência do comunicado, os líderes da socie-
dade Perseverança e Porvir e da Sociedade Cearense Libertadora foram ao en-
contro de André Augusto de Pádua. Segundo Antônio Martins, ao encontrar o
presidente da província, os representantes das sociedades foram bem recebidos
e todos receberam significativa atenção (INAUGURAÇÃO DA SOCIEDADE
CEARENSE, 1881, p. 5).
De acordo com Antônio Martins, o presidente da província cearense
mostrou-se familiar à causa abolicionista e ressaltou que era importante pres-
tar atenção para o ponto moral da ideia a proteção e educação dos libertos,
especialmente às crianças e às mulheres, “e que estas deveriam ser muito mais
cuidadas como pontos preliminares da educação da família” (INAUGURA-
ÇÃO DA SOCIEDADE CEARENSE, 1881, p. 5). Segundo Antônio Martins,
os líderes da Perseverança e Porvir e os líderes escolhidos para administrar a
Sociedade Cearense Libertadora, que seria inaugurada naquele dia, disseram
ao presidente que aquelas preocupações já estavam nos estatutos da Sociedade
Cearense Libertadora (INAUGURAÇÃO DA SOCIEDADE CEARENSE, 1881,
p. 5).
O presidente da província do Ceará fez outras considerações aos líde-
res da Sociedade Cearense Libertadora, lembrou a eles os “métodos adaptados
na Inglaterra por pequenas associações na criação de pequenos estabelecimen-
tos de instrução literária ou profissional que bem e sabiamente organizados vão
progressivamente alargando a produzir resultados vantajosos para a sociedade”
(INAUGURAÇÃO DA SOCIEDADE CEARENSE, 1881, p. 5).
Ou seja, ao que parece havia interesse tanto por parte do presidente da

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província, André Augusto de Pádua, quanto dos líderes da Sociedade Cearense
Libertadora em organizar normas que estabelecessem um preparo para intro-
dução dos libertos na sociedade. O presidente André Augusto de Pádua acre-
ditava que os líderes da Sociedade Cearense Libertadora fossem fazer trabalho
necessário para que o Ceará fosse a primeira província do país a emancipar
todos seus escravos (INAUGURAÇÃO DA SOCIEDADE CEARENSE, 1881,
p. 5).
Para alguns membros de algumas sociedades abolicionistas fundadas
na província cearense, a extinção da propriedade sérvio na cidade de Fortale-
za tinha efeito decisivo para o desaparecimento total do sistema escravista no
Ceará, “que bem se podia dizer que o dia 24 de maio de 1881 firmou na história
do Ceará a data da obrogação da negra instituição tão velha quanto a província”
(A LIBERTAÇÃO DE FORTALEZA, 1883, p. 1). Alguns dos deputados que
discursavam na Assembleia Provincial do Ceará, a exemplo de Justiniano de
Serpa, indicavam que a década de oitenta do século XIX se configurou como
um momento importante de transformação, pois a luta em favor da abolição
da escravidão em várias províncias ia se operando pelo influxo violento, mas
às vezes pacífico de uma ideia civilizadora “inspirada nas ideias da Revolução
Francesa e da filosofia positivista” (A LIBERTAÇÃO DE FORTALEZA, 1883,
p. 1).
As sociedades emancipadoras estavam amparadas num pensamento
fecundo como a inspiração da liberdade, mesmo que ela fosse feita aos poucos,
em sistema controlado de libertação. Ressalte-se que o movimento abolicionis-
ta não se restringiu apenas às ações das sociedades emancipadoras. Ele foi bem
mais amplo. E de acordo com Angela Alonso (2012, p. 101, “o antiescravismo
contou com volumosa mobilização popular, que articulou níveis local, nacio-
nal e internacional”; nesse sentindo, não foi por acaso que líderes de algumas
sociedades abolicionistas fizeram menção à Revolução Francesa e aos métodos
adotados na Inglaterra por pequenas associações na criação de pequenos esta-
belecimentos de instrução literária e/ou profissional.
O processo de libertação de escravos na província cearense foi seme-
lhante, em alguns aspectos, ao processo de abolição da escravidão que ocorreu
no Piauí. Essas semelhanças ocorrem principalmente por parte de ambas as po-
pulações almejarem o progresso e, verem o fim da instituição escravista como
um meio de se chegar ao pretendido. Além disso, tanto no Ceará quanto no
Piauí houve sociedades abolicionistas2.

2 O terceiro capítulo de nossa Dissertação de Mestrado é sobre as sociedades emancipadoras que

38
Na realidade, elas estiveram presentes em várias províncias do Brasil.
Além delas, outros mecanismos de libertação de escravos foram importantes
no processo de abolição da escravidão no Piauí. Ressalte-se que não somente os
mecanismos de libertação foram importantes para extirpar a escravidão no ter-
ritório piauiense, os mecanismos de diminuição da população escrava também
ajudaram no processo de decrescimento do número de escravos que viviam no
Piauí. O que virá a seguir é um pequeno comentário sobre nossa trajetória de
pesquisa sobre os mecanismos que contribuíram para diminuir o número de
escravos que viviam nas terras da província piauiense. Além disso, este texto
tem como um de seus objetivos indicar caminhos a serem aprofundados sobre
o tema escravidão.

Argumentações de pesquisa
O trabalho que apresentaremos faz parte de nosso projeto de pesquisa
que começou ainda na graduação; ele é também um convite aos leitores que
se interessam pelo tema para ler nossos trabalhos mais amplos e que já forma
publicados em revistas eletrônicas e em capítulos de livros.
Durante a pesquisa para escrever nosso Trabalho de Conclusão de Cur-
so em Licenciatura em História, encontramos documentos que nos possibili-
taram observar o processo do crescimento e diminuição da população escrava
que vivia no Piauí. A princípio não tivemos interesse em aprofundar análise,
tampouco de escrever algo sobre o observado, pois naquele momento nosso
interesse era outro. Estávamos aprofundando pesquisa e escrevendo sobre o
sistema escravista que ocorreu na cidade de Parnaíba, cidade que fica ao Norte
do estado do Piauí, à época província piauiense.
Naquele momento, estávamos preocupados principalmente em saber
como tinha ocorrido o sistema escravista urbano naquela cidade. Esse método
de priorizar os temas e as fontes que serão utilizadas é importante, pois pode
evitar a agrupação na mesma redoma de argumentações e enforque distintos.
Foi isso que fizemos. Mantivemos cautela e naquele momento pesquisamos e
construímos nosso Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre o sistema
escravista urbano em Parnaíba.
Ao terminar a monografia, voltamos ao Arquivo Público do Estado do
atuavam para libertar escravos no território piauiense. Identificamos quatro dessas instituições
agindo no Piauí. Cf. SILVA, Rodrigo Caetano. O escravizado e o senhor nos últimos anos de es-
cravidão no Piauí. 2018. 185 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Piauí- UFPI.
Teresina: 2018.

39
Piauí para, então, aprofundar pesquisa sobre o crescimento e diminuição do
número de escravos nas plagas piauienses. A princípio, nossa atenção se con-
centrou mais sobre o processo de diminuição. Isso ocorreu porque em pesquisa
feita preliminarmente, mas ainda sem fazer grande análise, observamos que o
processo de decrescimento ocorreu mais rápido do que o processo de cresci-
mento da população escrava.
Entretanto, em momento posterior, aprofundamos análise sobre o pro-
cesso de crescimento da população cativa. Neste momento, procuramos saber
como ocorreu o crescimento daquela população. Identificamos que tal cres-
cimento se deu mediante fatores endógenos e exógenos; ambos os processos
foram importantes para o crescimento da população escrava no Piauí. Mas, ob-
servamos que a partir da década de setenta do século XIX o crescimento exó-
geno diminuiu, isso porque naquele momento saiam mais escravos do Piauí do
que entravam na província. A saída ocorreu devido ao tráfico interprovincial3.
É importante salientar que as fontes que permitiram observar o cresci-
mento do número de escravos foram, basicamente, os relatórios dos presiden-
tes da província4. No relatório apresentado à Assembleia do Piauí, no ano de
1868, o presidente José Manuel de Freitas apontou que a população escrava, no
ano de 1762, época em que a capitania era governada por- João Pereiras Caldas
- era de 4.644 escravos, entre homens e mulheres (FREITAS, 1868, TABELA
DE NÚMERO 6). O processo de crescimento ocorreu desde os primórdios da
ocupação do território piauiense até 18725, momento em que observamos o
declínio da população cativa. Repetimos, o crescimento da população escrava
do Piauí ocorreu devido a dois fatores: crescimento endógeno (cativos que nas-
ciam no Piauí) e crescimento exógeno, proveniente dos tráficos transatlântico
e provincial.

3 Os livros de Registros e Notas são importantes vestígios para observar esse processo de redução
da população cativa via tráfico interprovincial, visto que quando ocorria a venda legal de um
escravo para senhor de outra província a negociação comercial era registrada em cartório, em
documento lavrado nos livros de Registros e Notas daquele estabelecimento.
4 Destaca-se que os registros de batismo de escravos também são vestígios importantes para
observar o crescimento endógeno dessa população.
5 Foi possível observar através das fontes que no território piauiense, segundo o recenseamento
procedido no dia 1 de agosto de 1872, havia um total de 23. 795 escravos. Cf. APEPI- Fundo: Po-
der Executivo. Série: Falas, Mensagens e Relatórios do Executivo Provincial e Estadual. Período:
1845-2002. Caixa: 04. Envelopes: 43 a 52 de 1872 até 1877.

40
Ano Número de escravos entre homens e mulheres

1762 4.644
1798 13.250
1830 12.534
1865 19.204
1871 19.015
1872 23.795

Fonte: FREITAS, José Manuel de. Relatório do presidente da província do Piauí. Ano:
1868. Tabela de número 6; SOUZA LEÃO, Manuel do Rego Barros. Relatório do pre-
sidente da província do Piauí. Ano: 1871. Anexo D, e CENSO GERAL DO IMPÉRIO,
1872.

A partir do ano de 1872, verificou-se que o número da população


escrava que vivia no Piauí diminuiu consideravelmente e rapidamente (Cf.
SILVA, 2018). Se no ano de 1872 havia no Piauí, aproximadamente, 23. 795
cativos, em 1887, segundo o Resumo Geral dos Escravos Matriculados na
Província do Piauí, existiam apenas 8. 970 pessoas na condição de escravas
(ESCRAVOS. [S. d.], CAIXA- 417). Ou seja, em apenas 15 anos, período que
corresponde ao espaço de tempo entre os anos 1872 e 1887, houve uma redução
de aproximadamente 14.825 cativos, no Piauí. Os 8.970 escravos que sobraram
em 1887 representam 37.6% do total de escravos que havia em 1872. Uma
queda considerável.
Por que utilizamos a palavra diminuição e seus sinônimos ao invés
das expressões libertação e/ou abolição da escravidão? Porque o processo de
diminuição da população é mais abrangente e envolve mais mecanismos. E
nem todos os mecanismos de diminuição são mecanismo de libertação.
Dos mecanismos identificados que ajudaram no processo de dimi-
nuição do número de escravos que viviam no Piauí há fatores que apenas
contribuíram para reduzir o número de cativos que viviam no território
piauiense como, por exemplo, o tráfico interprovincial de cativos, as mortes
e as fugas6. Mas, também, havia fatores que libertaram e, assim, contribuíram

6 Concordamos com a historiadora Miridan Britto Konox Falci quando ela afirma que, “nem a
morte, nem a venda, nem a fuga libertavam o escravo das amarras da escravidão. Morria como
escravo, era vendido como escravo e sua fuga era assinalada com detalhes sobre a sua condição
e seu próprio modo de ser”. Cf. FALCI, Miridan Britto Knox. Escravos do Sertão: Demografia,
Trabalho e Relações Sociais. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995, p. 191.

41
para o decréscimo do número de escravos que viviam nessas plagas. Podemos
citar como exemplo as ações das sociedades emancipadoras; as ações dos se-
nhores através das concessões das cartas de alforria e as ações dos escravos que
conquistaram suas próprias cartas de alforria ou a carta de alforria de outro
cativo, além das ações estabelecidas pelas leis, sejam elas nacionais, a exemplo
da Lei do Ventre Livre, ou provinciais, a exemplo das leis provinciais de 18 de
agosto de 1868 e a de 4 de dezembro daquele mesmo ano (PEREIRA DA COS-
TA, 2010, p. 388).
Nossa pesquisa já foi muito criticada. E essas críticas são principal-
mente sobre o fato de nós abordarmos tantos elementos/fatos que ocorreram
dentro do sistema escravista piauiense. Para meus críticos, deveríamos escolher
apenas um desses elementos/fatos como, por exemplo, as cartas de alforria e, a
partir disso, produzirmos um texto apenas sobre esse aspecto. Todavia, nossa
visão é outra. É ampla. Nosso objetivo de pesquisa desde o mestrado foi e é
analisar o processo de diminuição do número de escravos que viviam nas ter-
ras piauienses. Esse desejo surgiu, pois observamos um sistema complexo no
processo de decrescimento da população escrava que vivia no Piauí. Não seria
equivocado analisar apenas um desses aspectos, mas é sem dúvida desacerta-
do analisar somente um desses fatores e dizer que compreendeu o processo
de redução do número de escravos que vivia nas plagas piauienses. É também
enganoso dizer que no processo de extinção da instituição escravista piauiense
houve apenas fatores de libertação de escravos.
Não temos a pretensão de produzir um trabalho indicando apenas os
fatores da emancipação. Nosso objetivo é maior. Assim, seguimos caminhos
que nos levaram aos elementos/fatos que libertaram escravos e aos elementos/
fatos que apenas contribuíram para diminuir o número de cativos que viviam
no Piauí. Fazer uma análise dos mecanismos de libertação e dos mecanismos
de decréscimo do número de cativos permite termos compreensão melhor e
mais ampla da sociedade e do processo que ocorreu para pôr fim à escravidão
no Brasil, especialmente no Piauí.
É importante diferenciar o mecanismo de libertação do mecanismo de
diminuição. Mecanismo de libertação são aqueles elementos que contribuíram
para emancipar cativos. O Fundo Emancipador foi um elemento de libertação,
assim como as ações das sociedades emancipadoras, que aos seus modos
concediam cartas de alforria (SILVA, 2018). Algumas ações dos próprios
cativos podem ser consideradas como elementos de libertação, a exemplo da
compra da carta de alforria por eles. Ao defendermos isso, estamos partindo de

42
pressuposto já defendido (SILVA, 2018), pois acreditamos que supostamente
atender ou se sujeitar aos ditames do senhor era uma forma de resistência
ao sistema escravista por meio não violento e isso poderia favorecer algo ao
cativo; não necessariamente sua liberdade, mas em vários casos a obediência
do escravo possibilitava a ele sua carta de alforria.
A partir do termo devido aos bons serviços prestados, encontrado em
diversas cartas de alforria, criamos as bases para defendemos que os cativos
sabiam lutar de forma consciente e inteligente pela sua liberdade. Prestar bons
serviços não necessariamente significava que o cativo fosse “bonzinho”, mas
significava que ele era sábio, que sabia pensar e criar estratégias para conseguir
sua libertação, pois dificilmente um cativo arredio teria sua carta de alforria
adquirida sem pagar recurso financeiro ao seu senhor.
Em síntese, os mecanismos de libertação tiravam o cativo da condição
de escravizado e o colocavam na condição de liberto, havendo documento re-
gistrado em cartório para confirmar essa mudança de status. O documento ao
qual estamos nos referindo é a carta de alforria, mas nem todas, pois as cartas
de alforria concedidas mediante condição não transferiam de imediato o cativo
para o status de liberto, mas sim o deixavam sobre uma linha tênue entre a es-
cravidão e a liberdade (SILVA, 2018).
Acreditamos que o alforriado condicionalmente não estava liberto em
sua plenitude, isso devido à (s) condição (ções) imposta (s) a ele no ato de re-
gistro de sua carta de alforria. Ele poderia até ser identificado como liberto, mas
para os grilhões da escravidão serem quebrados, o cativo deveria cumprir a (s)
condição (ções) imposta (s) a ele. Não estamos questionando sua liberdade do
ponto de vista da natureza humana, pois acreditamos que, por mais cruel que
tenha sido a instituição escravista brasileira, ela não tirou em nenhum momen-
to a liberdade natural humana da pessoa mesmo ela estando na condição de
escravizada, porém estamos questionando os poderes, os direitos que o senhor
ainda tinha sobre aquela pessoa na situação de alforriada condicionalmente
(SILVA, 2018).
Por seu turno, os mecanismos de diminuição eram aqueles que apenas
contribuíram para o decrescimento do número de cativos de uma determinada
região, no caso em questão, da província do Piauí. São exemplos desses me-
canismos: o tráfico interprovincial, as mortes de cativos e as fugas7. Ou seja, o
7 É importante destacar que mesmo quando o escravo estava fugido ele era assinalado na lista
de registro de cativos pertencentes a determinado senhor. Por exemplo, na lista dos escravos
pertencente a Joaquim Gonsalves de Alencar, residente no município de Amarante, datada do
ano de 1877, o escravo José, mesmo fugido, foi arrolado no documento. Cf. ARQUIVO PÚBLICO

43
cativo era vendido como escravo, morria como escravo e sua fuga era assinala-
da nos mínimos detalhes para facilitar a captura do escravo fujão. Em síntese,
esses mecanismos não davam ao escravo o status de liberto.
A prática do tráfico interprovincial de escravos foi intensificada na se-
gunda metade do século XIX, a partir do ano de 1860, durando até as vésperas
da abolição da escravidão no Brasil. Essa prática foi uma alternativa para suprir
as necessidades de mão de obra em algumas partes do país. O comércio interno
de cativos foi muitas vezes utilizado como explicação para os desequilíbrios,
redução ou transferência de cativos entre regiões, sendo seu estudo essencial
para uma melhor compreensão histórica do período (segunda metade do sé-
culo XIX) e das variáveis de cada região, além de contribuir para o entendi-
mento do processo de decrescimento do número de escravos em determinadas
províncias do Brasil, a exemplo do Piauí. Contudo, como destacado, os cativos
eram vendidos como escravos e permaneciam como tais; ou seja, não havia
mudança no status social, continuavam na mesma condição jurídico-social de
bem pertencente a alguém.
As mortes também se configuravam como elemento de decréscimo da
população cativa, isso porque contribuíram para reduzir o percentual de escra-
vos no Brasil e no Piauí, mas eles morriam como cativos, morriam como bens
pertencentes a outrem.
Como já ressaltado, dois fatores contribuíram para o crescimento da
população cativa no Piauí, entre os anos de 1762 e 1872: o crescimento endóge-
no e o crescimento exógeno, via tráfico transatlântico e provincial. Mas, quais
são os mecanismos que contribuíram para diminuir o número de cativos no
Piauí?
É importante salientar que no processo de decréscimo do número da
população escrava piauiense, os fatores que denominamos de elementos de
diminuição e os fatores que denominamos de elementos de libertação fazem
parte de um objetivo comum e amplo; ou seja, ambos diminuíram o número
de escravos no território piauiense. Nesse aspecto, para o processo de decresci-
mento dessa população, encontramos várias causas:
DO ESTADO DO PIAUÍ. Sala do poder executivo. Tesouraria da Fazenda. Caixa- Escravos. [S.
a.]. Ou seja, em termo relativo, a fuga contribuiu no processo de diminuição do número da
população escrava que vivia no Piauí, visto que, possivelmente, o escravo fisicamente não estava
na província. Entretanto, no que diz respeito ao aspecto formal, isso levando em consideração
o arrolamento dos escravos fugidos nos registros de cativo pertencente a determinado senhor,
as fugas não contribuíram na diminuição do número de cativos. Além disso, devemos levar
em consideração, também, que a fuga não acontecia apenas quando o escravo fugia para outra
província, pois alguns cativos fugiam apenas para outro município, por exemplo.

44
a) tráfico interprovincial;
b) as ações dos senhores através das concessões das cartas de alforria;
c) a ação dos escravizados em conquistar sua carta de alforria ou a carta
de alforria de outro cativo;
d) as fugas;
e) as ações das sociedades emancipadoras;
f) as mortes de escravizados;
g) as leis: sejam elas nacionais como, por exemplo, a Lei do Ventre Livre
e a Lei dos Sexagenários, seja de caráter provincial como, por exemplo, a Lei de
4 de dezembro de 1869.
Encontraram-se sete fatores importantes para o processo de decresci-
mento do número de escravos. Acrescenta-se que os fatores: a) tráfico interpro-
vincial; b) as ações dos senhores através das concessões das cartas de alforria; c)
as ações dos escravos em conquistar sua carta de alforria ou a carta de alforria
de outro cativo e, d) as ações das sociedades emancipadoras, já foram analisa-
dos por nós em nossa Dissertação de Mestrado.
Em nossa tese, estamos analisando o processo de decrescimento da re-
ferida população através dos mecanismos, a saber: as leis (a Lei do Ventre Livre,
a Lei dos Sexagenários e a Lei Provincial de 4 de dezembro de 1869), as fugas
e as mortes.

Considerações finais
A busca pelo progresso do país fez o desejo pela abolição da escravidão
ficar cada vez mais iluminado principalmente na segunda metade do século
XIX. Assim, a existência de sociedades emancipadoras ganhou força, principal-
mente na década de setenta dos oitocentos. Com a análise das variadas fontes
sobre as sociedades emancipadoras, parece nítido para nós que elas tinham
como principais objetivos libertar os escravos, mas de forma lenta e gradual.
Essa era de fato a lógica estabelecida para a abolição da escravidão no Brasil.
Todavia, a despeito de as sociedades emancipadoras terem contribuído para
libertar cativos, o posicionamento dessas entidades frente ao processo de liber-
tação dos escravos foi importante.
Além disso, percebemos que pessoas na condição de escravas, mesmo
carregando o estigma de serem tidas como mercadorias, propriedades de ou-
trem, retiraram da sociedade o conhecimento necessário, lutaram e conquis-
taram sua liberdade ou a liberdade de um filho, ou de outro cativo. As cartas

45
de alforria utilizadas para fazermos nossa dissertação, com recorte espacial e
temporal definidos, permitiram-nos fazer uma nova ilação sobre a escravidão
no Piauí. Ao trazer a lume cento e sessenta e oito cartas de alforria8, dispusemos
também de informações decisivas para melhor elucidação quanto à população
escrava de nossa amostragem. Através das cartas de alforria percebemos que as
mulheres escravas foram libertadas em maior número. Isso reforçou a confir-
mação de pesquisas já realizadas em outras províncias do Brasil, como aquelas
realizadas sobre a província do Rio de Janeiro, onde os pesquisadores também
utilizaram como fontes as cartas de alforria.
Contudo, acreditamos que essa atitude de libertar preferencialmente as
mulheres escondia interesses escusos por parte dos senhores, mas importante
no processo de extinção da instituição escravista, visto que legalmente o que
determinava a escravidão era o ventre da mãe. Libertando as escravas elas assu-
miriam o status de libertas, logo seus filhos nasceriam livres.
As cartas de alforria foram preciosas fontes, pois elas também possibili-
taram enxergar o ativismo dos escravos frente a uma instituição brutal. Apesar
de tudo que passavam e sofriam, os escravos aprenderam na experiência do
cotidiano a negociar, barganhar melhores condições de vida, sendo a alforria
apenas uma destas instâncias de protagonismo do escravo no processo emanci-
patório. Notamos ainda que suas percepções tinham de estar em sintonia com
as pretensões senhoriais. Por essa razão, defendemos que as cartas de alforria
destinadas por livre e espontânea vontade eram uma negociação implícita entre
senhor e escravo. Mais: para conseguir a liberdade mediante alforria era neces-
sário não entrar em choque ou ameaçar a violação da vontade senhorial, caso
contrário dificilmente o escravo teria permissão para comprar sua liberdade.
Assim sendo, entendemos que o escravo que comprava sua própria
carta de alforria pagava ao seu senhor de duas formas distintas: em trabalho
(prestando bons serviços) e em vantagens pecuniárias. Nesse mote, ante um
protagonismo perceptível em pesquisas, durante muito tempo esteve escon-
dida, opaca ou excluída da historiografia brasileira a figura do escravo como
sujeito lutador e conquistador de sua própria liberdade.
A negação ao protagonismo do escravo, porém, tem sido posta em che-
que. Nos últimos anos pudemos perceber o surgimento de trabalhos acadêmi-
cos que ressaltam as iniciativas dos cativos em prol de seus direitos e liberdade.

8 Esta foi a quantidade de registros de cartas de alforria que analisamos para fazer nossa disser-
tação. Entretanto, localizamos no Arquivo Público do Estado do Piauí mais de trezentos desses
documentos.

46
Esse também tem sido um dos nossos objetivos: mostrar o protagonismo do
escravo e da escrava na construção de suas histórias.
Nossa proposta é, além de criar argumentação de pesquisa que indi-
ca como ocorreu o processo de decréscimo da população escrava piauiense,
sugerir caminhos de pesquisa sobre o tema escravidão no Piauí oitocentista.
Uma vez que cada mecanismo que apontamos como responsável no processo
de diminuição pode ser investigado separadamente e, assim, com olhar díspar
do nosso será possível aprofundar pesquisa e ampliar as argumentações sobre a
instituição escravista que ocorreu nas plagas piauienses.

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SOUZA LEÃO, Manuel do Rego Barros. Relatório do presidente da província do
Piauí. Ano: 1871. Anexo D.

48
“Retiremos para o Piauhy”: as migrações
cearenses na seca de 1877-1879

Márcio Douglas de Carvalho e Silva


Doutorando em História-UFPA
Mestre em Antropologia-UFPI

Introdução

O tema que norteia esta pesquisa é a migração de cearenses para terras


piauienses, ocorrida durante a seca que iniciou em 1877, e afetou o Ceará e o
Piauí, terminando somente em 1879. Embora o fluxo de migrantes cearenses
para o Piauí preceda o recorte cronológico aqui proposto, foi a partir de 1877
que se observou um acentuado processo migratório. A seca que se prolongou
por três anos, deixou como marcas o agravamento da pobreza, da fome, e a
morte nas regiões afetadas, inclusive no Piauí, para onde cearenses iam em bus-
ca de sobrevivência.
Atingidos pela seca em vários períodos, Ceará e Piauí tinham esse pro-
blema a ser combatido pelos governos locais, que recorriam ao governo central
solicitando recursos financeiros. Para os habitantes dessas regiões, “as secas ge-
raram consequências duradouras. [...] O tempo de seca passou a fazer parte do
próprio horizonte de expectativa dessa sociedade, na medida em que se reco-
nhecia a inevitabilidade de uma nova grande estiagem vir a ocorrer mais cedo

49
ou mais tarde” (CÂNDIDO, 2014, p. 88).
O governo imperial procurava solucionar esse problema nas épocas em
que ele se tornava mais aparente, não levando em conta que as migrações eram
permanentes e avolumavam-se em épocas de secas prolongadas, não bastando
só o assistencialismo momentâneo para solucionar essa questão, mas sim ações
que provocariam resultados em longo prazo.
Durante o Império, apenas algumas sugestões foram estudadas para
ser implementadas no Ceará, como represas nos rios e açudes, porém a Comis-
são responsável por esses estudos foi dissolvida pelo governo ainda em 1878,
voltando este assunto a ser debatido somente em 1800, dando início em 1884 à
construção do açude Cedro I, que, devido à paralização das obras, só foi con-
cluído em 1906 (MEDEIROS FILHO e SOUZA, 1983). Nesse período, também
foi proposta a construção de “três linhas férreas [...] no Ceará, Alagoas e Per-
nambuco, para absorver a massa de retirantes e fixá-los no Nordeste, evitando
o agravamento da migração interna” (AGUIAR, 1983, p. 57).
Dentro desse contexto, destacamos que os objetivos principais deste
trabalho é: conhecer os impactos sociais e econômicos para o Piauí oriundos
da migração de cearenses, e identificar as ações do governo do Piauí para ad-
ministrar essas migrações entre 1877 e 1879. Utilizamos como fontes, jornais,
relatórios, ofícios e documentos expedidos pela Comissão de Socorros Públi-
cos de Teresina, disponíveis na e Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional e
no Arquivo Público do Estado do Piauí (APEPI).

A seca e as migrações

O romance de Rodolfo Teófilo narra as cenas de abandono em que fi-


caram algumas regiões do Ceará durante as secas prolongadas: “a cidade estava
quase deserta. Apenas o vigário e muito poucas famílias tinham ficado. [...]
A travessia entretanto, ia-se tornando impraticável [...] decidindo a emigrar
[...] deveria seguir enquanto havia alguma probabilidade de vencer a distância”
(TEÓFILO, 2011, p. 27).
Atentamos que o migrante saía em busca de uma vida melhor não só
em períodos de seca. Esse fenômeno se acentuava nas épocas mais críticas e,
por isso, nesses períodos ganhava mais visibilidade na imprensa. Daí, alguns
pesquisadores tecerem críticas à visão que caracteriza os migrantes quase sem-

50
pre como vítimas da ação da natureza e do Estado em épocas de secas, enten-
dendo que “nem sempre seus caminhos foram feitos ao acaso, sem nenhuma
reflexão sobre as possibilidades da travessia” (CARDOSO, 2014, p. 40). Partin-
do dessa abordagem, verificamos que a migração pode ser entendida a partir
de muitos sentidos, pois

migrar, [...] tem sempre sentido ambíguo – como uma imposição das condi-
ções econômicas e sociais ou ambientais – e, nesse caso, ela aparece no mais
das vezes como um dos fortes elementos que aproxima uma destinação do ser
nordestino, mas também como uma escolha contra a miséria e a pobreza da
vida no sertão. Migrar é, em última instância, dizer não à situação em que se
vive, é pegar o destino com as próprias mãos. Resgatar sonhos e esperanças de
vida melhor ou mesmo diferente (GUILLEN, 2006, p. 228-229).

Migrar era, portanto, uma experiência que os tornava ativos dentro


desse processo. Deslocar-se para a Amazônia ou para o Piauí, durante as secas
prolongadas, representava a esperança de livrar-se não só da seca, mas também
dos problemas resultantes da estrutura social-político-econômica do Ceará.
Para Franciane Gomes Lacerda, “mesmo nas situações mais adversas, os fla-
gelados pela seca buscavam gerir seu próprio destino, pagando a própria pas-
sagem e deslocando-se do Ceará sem auxílio do Estado” (LACERDA, 2010, p.
163).
Apesar de ser apontada como a causadora da saída de cearenses para
outras regiões do Brasil, a seca, para alguns historiadores, não pode ser vista
como a única motivação dessas migrações, fatores como “(des)mandos polí-
tico e econômico locais, [...] regime de centralização da propriedade dos re-
cursos hídricos por parte da elite secular que comandava as relações de man-
do locais e a sucessão política a nível de Estados” (BURITI e AGUIAR, 2008,
p. 08), também possibilitaram os deslocamentos, levando-nos a entender que
as migrações, embora avolumadas pelos efeitos da seca, possuem na sua raiz
causas multifatoriais,1 que davam “a maleabilidade necessária para escapar da
penúria e da fome, da violência que se entrelaçava ao mandonismo local e aos
recrutamentos forçados [...] fugir das intempéries que inviabilizavam o sobre-
1 Arruda Furtado é um dos autores que apresentam mais de um fator para a migração de cearen-
ses, principalmente para a região amazônica, além das já citadas aqui, Furtado apresenta outras
três: a provocada pelas secas, especialmente a de 1877-1879, a atração do eldorado amazônico e o
espírito aventureiro cearense. FURTADO, Arruda. Causas da migração de cearenses para o Acre
e o processo de colonização. Fortaleza: Instituto Histórico e Geográfico do Ceará, 1977.

51
viver (WISSENBARCH, 1998, p. 59). Optamos pela abordagem que elege a
seca como motivadora das migrações, porque os documentos pesquisados para
percorrer os caminhos que propomos aqui evidenciam uma entrada maior de
migrantes no Piauí nos períodos de seca.
Embora o processo migratório seja provocado também por outros mo-
tivos, como a concentração fundiária e a dominação política, a seca atravessa
a nossa temática, assim como os migrantes atravessaram a fronteira para fugir
dela. Ao analisar os “rastros” dos migrantes cearenses entre 1877 e 1879, veri-
ficamos que elas aparecem como fenômeno impulsionador das transumâncias
à medida que inviabilizavam o desenvolvimento dos mecanismos de sobrevi-
vência no Ceará.
Para compreendermos a seca no Nordeste, primeiro se faz necessário
entender como este espaço surgiu enquanto região do país. Segundo Durval
Muniz de Albuquerque Júnior, o despertar para a seca do Norte foi desenca-
deado pela imprensa local e nacional. A partir daí, a própria elite dominante
viu que as cenas de morte e desespero que ocorriam na região eram capazes
de provocar comoção nacional, elaborando-se o discurso de que a seca era um
problema do Norte, à medida que se soma a uma crise econômica, social, polí-
tica e ideológica (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1987).
Durante a República, estudos realizados por órgãos do governo, como
IOCS, e o IFOCS, identificaram que o fenômeno da seca não atingia todo o
Norte, mas apenas parte dele, a parte que começava a ser chamada de Nor-
deste. As secas do começo do século XX, que provocaram a continuidade da
migração dos locais mais secos, para regiões do Norte que não sofriam com
esse fenômeno (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011), foram decisivas para o aca-
bamento desse desenho.
O autor adverte que a partir daí a elite começou a ver a seca como uma
oportunidade de lucros, pois esta desviava parte do dinheiro destinado pelo
governo imperial para aliviar o problema dos flagelados.

O despertar da consciência da elite [...] para a gravidade da situação que vi-


via é acompanhada de um despertar nacional para a existência do fenômeno
da seca [...] antes conhecida apenas como “seca do Ceará”, graças a intensa
campanha que é desenvolvida pela imprensa local, inicialmente, e nacional,
posteriormente, que explora a imagem da miséria, de desespero, morte e dor
que estava ocorrendo nessa área, durante a estiagem. [...] A imprensa con-

52
tribui, portanto, para demonstrar à própria elite nortista que a seca era um
tema capaz de mobilizar a opinião pública não só das províncias por ela dire-
tamente afetada, como todo país. Ela vai também iniciar a sistematização de
um conjunto de imagens e enunciados que transformarão o “discurso da seca”
numa das armas mais poderosas a serviço da elite decadente. (ALBUQUER-
QUE JUNIOR, 1995, p. 177).

Essas imagens citadas pelo autor, cunhadas ao longo do tempo pela im-
prensa, pela literatura e pela história, colocaram o migrante nordestino em um
patamar de sempre estar fugindo da seca em busca da sobrevivência. No Piauí,
o Jornal A Época publicava em 20 de abril de 1878, em um tópico denominado
“Ceará”, a situação em que se encontrava essa província, em um tom de penúria
e desespero: “A seca continua a flagelar esta infeliz província. A população da
capital vive desesperada e prestes a abandoná-la – ricos e pobres. Há falta de
tudo” (CEARÁ. A Época, Teresina, a. I, n. 03, 20 abr. 1878, p. 04)
O Nordeste seria “em grande medida, filho das secas; produto imagé-
tico discursivo de toda uma série de imagens e textos, produzidos a respeito
desse fenômeno, desde que a grande seca de 1877, veio colocá-lo como pro-
blema mais importante desta área” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p. 68),
conferindo-lhe homogeneidade, legitimando-a como recorte espacial.
Há, diante disso, a “invenção” da seca enquanto discurso criado com a
finalidade de perpetuar o domínio daqueles que estavam no poder fazendo uso
da pobreza e do sofrimento dos menos abastados financeiramente, para anga-
riar recursos com a finalidade de aliviar o drama vivido por essas pessoas, po-
rém, parte dessas verbas acabava sendo desviada por aqueles que tanto diziam
lutar pela redução dos impactos da seca (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1995).

A partida e a chegada: as migrações cearenses para o Piauí

Entre as áreas do Nordeste, o Ceará foi a que apresentou um maior


índice migratório durante a segunda metade do século XIX, aparecendo com
números em torno de 18,87%, entre 1872-1890, e 8,96% entre 1890-1900
(GRAHAM e HOLANDA FILHO, 1984). Nas duas primeiras décadas do sé-
culo XX, o saldo ainda era negativo, migrava para diferentes regiões do Brasil
8,74% da população cearense. Parte dos migrantes foi para a região amazônica

53
durante o ciclo da borracha ou para o Sul2 do Brasil. A diáspora cearense é tra-
tada em livros, dissertações e teses enfocando principalmente esses dois fluxos
migratórios, até então mais conhecidos na historiografia, embora os cearenses
tenham seguido por outros caminhos, como as veredas e estradas que levavam
ao Piauí. Um dos fatores apontados como facilitador da entrada de migrantes
fugindo da seca foi o comércio do gado que o Piauí mantinha com outras re-
giões, pois “muitos compradores de gado residentes em outras províncias do
Nordeste negociavam com os fazendeiros piauienses, e para facilitar o deslo-
camento do gado eram construídos caminhos”, (SILVA, 2008, p. 78) migrando
por esses caminhos abertos os cearenses em épocas de secas.
Como já destacamos, durante os anos do nosso recorte, em anos pre-
decessores e posteriores, a emigração provocou o deslocamento de milhares
de nordestinos para algumas regiões do Brasil. Muitos para a Amazônia, para
províncias menos afetadas pela seca, como o Piauí, ou para o Sul do país, que
passou a representar um movimento demográfico de maior expressão no sécu-
lo XX (VILLA, 2001).
Embora a emigração fosse quase impossível de ser barrada, principal-
mente a partir das últimas décadas do século XIX, “os governantes cearenses,
[...] não se mostravam favoráveis à saída de grande número de pessoas, pois
esse deslocamento implicava em retirar do Ceará parte da mão de obra que
deveria ser empregada ali nos trabalhos da lavoura” (LACERDA, 2010, p. 165)
e, por isso, dificultavam as viagens para regiões mais distantes através de em-
barcações. Muitas vezes, “conseguir uma passagem não era algo tão fácil” (LA-
CERDA, 2010, p. 171), havendo a necessidade de comprovar um motivo para
a partida e, entre os aceitos, a seca contínua. Com isso, a migração a pé em
direção ao Piauí ou para outras regiões mais distantes, atravessando as terras
piauienses, era uma constante.
Mesmo que a maioria desses migrantes, ao chegar nos seus locais de
destino, não tenha encontrado o que idealizaram, a migração significava uma
esperança, a realização do sonho distante de escapar da seca. O que para alguns
poderia ser visto como um ato de desespero, “para os migrantes figurava como
possibilidade referenciada por um horizonte de expectativas, cuja raiz segura-
2 Quando nos referimos ao Sul, nesta e nas demais ocorrências que virão ao longo texto, estamos
aludindo de forma mais direta aos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, localizados hoje na
região Sudeste. O termo Sudeste só aparece como parte da divisão geográfica do Brasil a partir
de 1970. No período que compreende o nosso recorte de pesquisa, a região que comporta esses
dois Estados era denominada Sul.

54
mente se distanciava das representações de agruras, de mazelas superiores às
enfrentadas na província do Ceará” (CARDOSO, 2012, p. 74).
De tempos em tempos, a migração aparecia como uma alternativa para
os emigrantes e ao próprio Ceará, que ora buscava controlar a emigração, ora
a incentivava através da concessão de passagens. A solução para esse problema
passava por uma caminhada bem mais longa, cheia de curvas, que se arrastou
(e se arrasta), ficando para trás, ao contrário das migrações, que continuaram.
Se a saída para as consequências da seca era uma caminhada longa, o que res-
tou foi “pegar” os caminhos que surgiam como possibilidade de escapar da
fome. O Piauí foi o destino a que muitas dessas veredas levaram os cearenses.
Em 1877, ano do início da seca, no Ceará, já começavam “a aparecer
propostas defendendo a emigração dos flagelados para outras províncias [...]
manifestava-se o temor pela concentração de milhares de retirantes nas maio-
res cidades do Ceará, especialmente Fortaleza” (VILLA, 2001, p. 57). Nos anos
seguintes, tornaram-se comuns as cenas de pessoas deixando o Ceará, sobre-
tudo para as províncias mais ao Norte do Brasil. Pela documentação que já
tivemos acesso, identificamos que, para o Piauí, esse fluxo de cearenses também
foi intenso e contínuo durante os três anos em que durou a seca.
Dezoito de abril de 1877. Já havia passado o dia de São José, “...E as
chuvas oh! Deus, não aparecem!!! De Pajehú de Flores a Ibiapaba e Sete-alagoas
a Serra da Joaninha, um só braso se faz ouvir – Retiremos para o Piauhy” (SÃO
HOJE 18 DE ABRIL (...). A Imprensa, Teresina, a. XII, n. 508, jun. 1877, p. 02).
Após perder a última esperança de chuva depois de passado o 19 de março, dia
de São José, muitos cearenses recorriam ao Piauí para escapar das agruras da
seca.
A entrada de migrantes em terras piauienses era constante. De Oeiras,
ainda em 1877, chegava em Teresina a notícia da presença maciça de migrantes.
O jornal A Imprensa publicou em 09 de junho daquele ano uma correspon-
dência intitulada “A respeito da seca”, tema que ganharia as páginas deste e dos
demais jornais do Piauí dali em diante:

Existem actualmente nesta cidade e pelos subúrbios, para mais de três mil
emigrantes: e segundo informações fidedignas, muito maior é o número d’elles
que ainda veem em caminho, luctando com toda sorte de sua longa e penosa
viagem. [...] Não é só a pobreza que tem emigrado: diversas famílias abastadas
da Parahyba e Ceará tem feito, e aqui estão (A RESPEITO DA SECA. A Im-

55
prensa, Teresina, a. XII, n. 508, 05 09 jun. 1877, p. 04).

É notória a preocupação com a chegada de pessoas em grande


quantidade na antiga capital do Piauí. Famintos, pobres e ricos, cearenses e
paraibanos já apontavam como parte desses migrantes que fugiam da seca. Fal-
tava chuva no Piauí, e chegavam os migrantes cearenses. Em abril de 1878, o
jornal A Época noticiava: “não se pode ao certo afirmar, porém nos parece que
não exageramos calculando em vinte mil almas a emigração que recebemos do
Ceará” (A SECA E OS EMIGRANTES. A Época, Teresina, a. I, n. 02, abr. 1878,
p. 01).
Os que migraram do Ceará para o Piauí, durante a seca de 1877-1879,
encontraram um cenário muito parecido com o que levavam na memória. No
dia 2 de maio de 1877, o jornal A Imprensa descrevia “com vivas cores” a seca
no Piauí, na vila de Independência, que se encontrava fortemente ameaçada
pelas consequências de uma seca prolongada, onde “tanto o lavrador como o
criador tem [...] diante de si a medonha perspectiva de incalculáveis prejuízos,
imediatamente seguidos de fome, da miséria extrema [...] e de uma morte cer-
ta” (SECCA. A Imprensa, Teresina, a. XII, n. 505, 02 mai. 1877, p. 04).
A fome continuava presente na vida desses migrantes, por isso, muitos
recorriam à Comissão de Socorros Públicos na esperança de conseguir gêneros
básicos para alimentar suas famílias, quase sempre numerosas. Em um pedido
de ajuda à Comissão de Socorros Públicos de Teresina, em 18 de março de
1878, era relatada a situação de mais um migrante cearense e sua família:

Diz Bento Joaquim Bandeira, imigrante vindo da Província do Ceará, chega-


do a pouco nesta capital, cazado, tem em sua companhia numeroza família
composta de nove pessoas e como não podem enfrentar a fome, [...] que aten-
dendo o deplorável estado em que se achão, pede a V. Ex.ª ser fornecido de
generos e fazendas para subizistencia de sua família, visto ainda não ter sido
socorrido pelo governo e no estado em que se achão tem quatro pessoas doen-
tes (OFÍCIO nº 87 de 18/03/1878, Teresina, caixa 01, Comissão de Socorros
Públicos de Teresina, Arquivo Público do Estado do Piauí ).

Bento Joaquim e seus familiares não eram os únicos. Migrar para o


Piauí, ou por lá se estabelecer após não prosseguir uma caminhada até as pro-
víncias mais ao Norte do Brasil, foi a alternativa existente para muitos homens
e mulheres durante os períodos de seca no Ceará.

56
Embora levemos em consideração esta afirmação, nem todos os mi-
grantes estavam no Piauí de passagem, como mostra o Jornal A Imprensa de
31 de agosto de 1877, ao relatar a chegada de um cearense com sua família em
Oeiras, primeira capital da província:

O Dr. Francisco Rodrigues de Lima Bastos, que não podendo resistir a seca em
sua província – o Ceará – para aqui emigrou com sua numerosíssima família.
É casado e tem 13 filhos, inclusive uma paralítica. Calcule pois as difficuldades
com que tem lutado esse homem, que já tem feito três quadriênios de juiz mu-
nicipal a fôra outros de promotor (OEIRAS. A Imprensa, Teresina, a. XIII, n.
516, 31 ago. 1877, p. 04).

Com este exemplo, além de outros que encontramos, podemos afir-


mar que o Piauí não era só local de passagem, visto que, tanto os considerados
sertanejos pobres como pessoas de maior instrução formal, com mão de obra
qualificada, procuravam o Piauí para residir, “famílias abastadas vieram fugin-
do dos horrores da seca, trazendo móveis até na cabeça dos escravos, por falta
de animais de carga!” (VILLA, 2001, p. 55).
Ao entrarem no Piauí, os migrantes cearenses buscavam um lugar que
lhes proporcionasse alguma forma de sobrevivência e, não encontrando esses
meios em cidades menores, a maioria deslocava-se em direção a Teresina. Nas
estimativas de Maria Mafalda Baldoino de Araújo, em 1878, os cearenses repre-
sentavam 96% dos migrantes de outras províncias que chegavam à capital do
Piauí, fato que fez com que a cidade tivesse um vertiginoso crescimento popu-
lacional nas décadas seguintes. De 1872 a 1900, sua população teve um saldo
positivo de 45,3%, passando de 21.692 habitantes para 31.523. Em 1910, esse
número chegava a 48.614, fato que a autora atribui tanto à migração interna
como também em grande medida à entrada de cearenses nos períodos de seca
(ARAUJO, 2010).
O Piauí enquanto polo receptor de migrantes cearenses, atendia a dois
fluxos: os migrantes que iam diretamente para o Piauí e os que, durante a tra-
vessia, ficavam nessas terras por não poderem seguir viagem para o Maranhão
ou Pará, por exemplo. Os vários artigos dos jornais e relatórios do governo que
analisamos indicam que, antes de 1877, a seca atingia o Piauí, assim como o
Ceará, porém, este primeiro de forma mais branda. Os cearenses migravam
para o Piauí porque buscavam terras onde as secas eram menos intensas. Em

57
relação a sua localização geográfica, o Piauí é considerado uma área de tran-
sição (conhecida atualmente como Meio-Norte) entre a região amazônica e o
semiárido, portanto, menos afetada pelas secas acentuadas que atingem outras
regiões do Nordeste.
Em anos repetidos, após findada a seca no Ceará, fazendeiros cearen-
ses buscavam “semente de gado” em solo piauiense para reativar sua criação.
Quando a seca se agravava, era comum que muitos cearenses buscassem não
só refúgio através da migração, mas aqueles que permaneciam no Ceará recor-
riam ao Piauí para comprar alimentos, algo visto na seca de 1878 quando era
“imensa sahida de viveres, que a província do Ceará manda comprar a qual-
quer preço que custem” (PIAUÍ. Relatório com que o presidente da província,
Graciliano de Paula Baptista, passou a administração da província do Piauí
para Francisco Bernardino Rodrigues Silva em 15 de agosto de 1877. Teresina,
Tipografia da Imprensa, 1878, p.17).
No ano de 1879, quando as primeiras chuvas já caíam no Piauí e a seca
ainda castigava o Ceará, o fluxo de migrantes continuava intenso, sendo expli-
cada pelo fato de que, “mesmo nessas condições sendo o nosso estado actual
mais animador e próspero, pois já há abundância de gêneros alimentícios, que
estão se vendendo a preços mui modicos, quasi iguaes aos dos annos anteriores
(facto este devido ao inverno, que foi mais ou menos regular)” (ENFERMA-
RIA DO MORRO DE S. ANTONIO. A Imprensa, Teresina, a. XIV, n. 599, jun.
1879).
A presença dos cearenses no Piauí, em diferentes épocas, revela um
certo protagonismo deles, pois, em vários períodos, a migração de cearenses
para a Amazônia foi estimulada pelo governo do Ceará, que pagava “as passa-
gens para os flagelados e suas famílias” (VILLA, 2001, p. 63). Em outras épocas,
tentava inibir, como em 1890, quando “o Estado do Ceará, juntamente com
seus representantes no Congresso e alguns grupos da sociedade civil, deseja-
vam a todo custo, [...] manter os retirantes no seu território” (BRAGA NETO,
2012, p. 120-121), transformando a migração em “objeto da construção de um
sem-número de saberes e práticas que objetivavam evita-la, impedi-la ou neu-
tralizar os seus efeitos” (NEVES, 1995, p. 93).
No momento em que migrava a pé para o Piauí, como uma alternati-
va a outros destinos “convencionais” na época, o cearense transformava a sua
condição até então “passiva” de um fenômeno, em um migrante ativo nesse

58
processo, porquanto ele podia escolher o seu local de destino. Exemplo disso
são as várias notícias da chegada de migrantes nas diferentes cidades do Piauí
dentro do nosso recorte.
Acreditamos que, muitos cearenses, ao decidirem desenhar de forma
independente o seu rastro na cruzada da fronteira, exerciam um certo prota-
gonismo, pois a migração era feita de forma independente, sem esperar pela
ação do governo do Ceará, não dependendo da passagem subsidiada para ir à
Amazônia ou para o Sul; essa migração era uma forma de resistência, não só à
seca, mas às ações do governo do Ceará.
Embora a migração para o Piauí possa ser interpretada sob esse enfo-
que, percebemos que esse protagonismo tinha limites, pois, ao chegarem em
território piauiense, centenas de migrantes pediam ajuda ao governo para suprir
as suas necessidades e as de suas famílias, como é possível identificar em vários
ofícios da Comissão de Socorros Públicos de Teresina e de outros municípios
como Piripiri, Piracuruca, Parnaíba, Campo Maior, Jaicós, Príncipe Imperial e
Oeiras. Ademais, em momentos precisos, as ações governamentais determina-
vam para onde levar esses migrantes, haja vista a instituição dos Núcleos Co-
loniais, que, assim como os “abarracamentos” e Campos de Concentração no
Ceará (NEVES, 1995), tinham como finalidade evitar a entrada maciça desses
migrantes na capital. Com isso, podemos dessumir que os migrantes tinham
consciência de suas atitudes ao escolherem o Piauí como opção de migração,
ou talvez fossem ficando por essas terras, quando na verdade buscavam outros
destinos, mas dependiam de ações do governo para se manter.
Mesmo sendo opção de refúgio para muitos cearenses, o Piauí também
sofrera em diferentes épocas com episódios de secas, embora não tão intensos
como os do Ceará. Os jornais da época alertavam para a falta de chuvas em di-
ferentes regiões do seu território, como em Príncipe Imperial, no ano de 1877:
“o estado da secca aqui é terrível, com um aspecto ainda mais terrível, devendo
continuar se não tivermos inverno cedo, até março e abril do anno vindouro”
(SECCA. A Imprensa, Teresina, a. XII, n. 505, mai. 1877, p. 04).
É certo que o Piauí não pode ser eliminado da abrangência das secas
que atingiram as áreas da região Nordeste em períodos distintos, mas, como
já afirmamos, as plagas piauienses até então eram menos afetadas por esse
fenômeno. A partir da intensificação das migrações do Ceará, a seca tornou-se
mais visível, agora também enquanto fenômeno econômico e social, trazendo

59
para o Piauí elementos até então pouco experimentados pelos governantes
locais – e principalmente pela população, diga-se: fome, migração interna,
doenças e morte provocada pela falta de alimento, chegando a afirmar o jornal
A Imprensa em artigo divulgado no ano 1879, que a emigração prejudicou o
Piauí mais que a seca (A EMIGRAÇÃO E A SECCA. A Imprensa, Teresina, a.
XIV, n. 599, jun. 1879).
Os documentos apontam que essas migrações, quando ocorreram de
forma mais intensa, impactaram a economia do Piauí de forma negativa, po-
dendo ser identificadas, pelos menos, três consequências imediatas: aumento
dos preços dos alimentos, desabastecimento e migração interna. Em matéria
divulgada no jornal A Imprensa, este primeiro fenômeno pode ser percebido:
“Não há dia em que deixe de chegar a este logar crescido numero de emigran-
tes cearenses, extenuados e mortos de fome e cansaço. [...] A farinha, que em
epochas normaes vendia-se a 20 reis o litro, custa hoje 200, da pouca que vem
ao mercado!!” (OEIRAS. A Imprensa, Teresina, a. XIII, n. 516, ago. 1877, p. 04).
O desabastecimento surgia como consequência do número maior de
pessoas para se alimentar: “O arroz e o feijão desarapecerão completamente.
[...] Os fazendeiros do município não tem gado para abastecer o mercado; por-
que não conservão bois e as vaccas, em estado adiantado de prenhez e magrís-
simas como se achão, não podem servir para o talho” (OEIRAS. A Imprensa,
Teresina, a. XIII, n. 516, ago. 1877, p. 04).
A falta de gêneros alimentícios básicos nos municípios provocou o
esvaziamento demográfico de muitas regiões do Piauí com o surgimento da
migração interna, como em Príncipe Imperial e Jaicós, onde “sua população,
não encontrando mais ali meios de subsistência, se internará pelo interior em
demanda de outros municípios e especialmente desta capital [Teresina] em
procura de recursos para sustêr a vida.
Diante dessa situação, verificamos, dentro no nosso recorte tempo-
ral, que o governo do Piauí agiu de maneiras distintas para gerir essa massa
migratória: através do assistencialismo, enviando recursos para as Comissões
de Socorros de diversos municípios; deslocando os migrantes para frentes de
trabalho, como nos Núcleos Coloniais e em construções de estradas de roda-
gem, prédios públicos, açudes, igrejas e prolongamentos de fios telegráficos;
e enviando parte desses migrantes, principalmente os que se localizavam em
Teresina, para a cidade de Parnaíba, no litoral, de onde eram embarcados para

60
outras partes do Brasil, expulsando-os do solo piauiense.
Como vimos, a forma mais ampla de o governo do Piauí administrar a
presença da grande massa de emigrantes em Teresina e nos demais municípios
foi instituindo a Comissão de Socorros Públicos, que lhes fornecia alimentos
básicos e atendimento médico, e criando os Núcleos Coloniais. Em 1878, os
sete Núcleos que existiam, acomodavam cerca de 7.000 emigrantes, que se de-
dicavam ao trabalho da plantação. (PIAUÍ. Relatório apresentado à Câmara Le-
gislativa pelo presidente da Província do Piauí, Sancho de Barros Pimentel em
01 de junho de 1878. Teresina: Tipografia da Imprensa, 1878).
Esse tipo de medida visava não apenas combater os efeitos da seca,
mas, principalmente evitar a penetração em massa dos migrantes em Teresina,
algo que foi identificado por Frederico de Castro Neves, ao referir-se à seca de
1915 no Ceará, segundo o autor, marcada pelo “relacionamento entre retirantes
e habitantes, de isolamento e reclusão daqueles para o alívio destes (...). A cida-
de procura proteger-se do contato com os miseráveis e fazer retornar a seca ao
seu cenário anterior, o campo” (NEVES, 2000, p. 86).

Referências

Fontes
A EMIGRAÇÃO E A SECCA. A Imprensa, Teresina, a. XIV, n. 599, jun. 1879.

A RESPEITO DA SECA. A Imprensa, Teresina, a. XII, n. 508, 05 09 jun. 1877,


p. 4.

A SECA E OS EMIGRANTES. A Época, Teresina, a. I, n. 02, abr. 1878, p. 1.

CEARÁ. A Época, Teresina, a. I, n. 03, 20 abr. 1878, p. 4.

ENFERMARIA DO MORRO DE S. ANTONIO. A Imprensa, Teresina, a. XIV,


n. 599, jun. 1879.

OEIRAS. A Imprensa, Teresina, a. XIII, n. 516, ago. 1877, p. 4.

OFÍCIO nº 87 de 18/03/1878, Teresina, caixa 01, Comissão de Socorros Públi-


cos de Teresina, Arquivo Público do Estado do Piauí.

PIAUÍ. Relatório apresentado à Câmara Legislativa pelo presidente da Provín-

61
cia do Piauí, Sancho de Barros Pimentel em 01 de junho de 1878. Teresina:
Tipografia da Imprensa, 1878.

PIAUÍ. Relatório com que o presidente da província, Graciliano de Paula


Baptista, passou a administração da província do Piauí para Francisco
Bernardino Rodrigues Silva em 15 de agosto de 1877. Teresina, Tipografia da
Imprensa, 1878, p. 17.

SÃO HOJE 18 DE ABRIL (...). A Imprensa, Teresina, a. XII, n. 508, jun. 1877,
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SECCA. A Imprensa, Teresina, a. XII, n. 505, 02 mai. 1877, p. 4.

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63
64
Entre a Cidade e o Sertão: as epidemias de
bexigas no Grão-Pará Colonial (1755-1820)

Benedito Carlos Costa Barbosa


Doutorando em História das Ciências e da Saúde – Casa de Oswaldo Cruz/
Fundação Oswaldo Cruz

Introdução

A história da Amazônia foi marcada pela dizimação dos povos indí-


genas durante o processo de colonização. Diversas doenças trazidas pelos eu-
ropeus, entre as quais, as bexigas (varíola) se propagaram no Grão-Pará desde
o século XVII e se intensificaram ao longo dos séculos XVIII e XIX, causando
problemas socioeconômicos e demográficos, sobretudo nos povos indígenas,
como assinalam as cartas trocadas entre autoridades coloniais e metropolita-
nas, e os diários dos viajantes. A precária estrutura médica e sanitária contri-
buíram para a propagação das bexigas principalmente na parte mais afastada
de Belém, isto é, nas vilas, no sertão e na área de fronteira, atingindo os povos
indígenas sobretudo após o estabelecimento do Diretório do Índios, em 1757.
No rastro das políticas de colonização implantadas na região amazô-
nica, a partir da segunda metade do século XVIII, este artigo busca investigar
o contágio e o impacto das bexigas no Grão-Pará no período de 1755 a 1820,
momento em que houve um crescimento dos surtos epidêmico tanto na cidade

65
de Belém, quanto no interior, no sertão e na fronteira amazônica. O artigo será
analisado com base nos documentos coloniais do Arquivo Histórico Ultrama-
rino (AHU), Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) e também nas obras
de naturalistas e missionários que permitem entender um pouco da propaga-
ção e consequência das epidemias de bexigas nas terras paraenses.

O contágio das bexigas na cidade de Belém

A cidade de Belém do Grão-Pará, fundada no século XVII à margem


da baia de Guajará, gradativamente cresceu em torno do Forte do Presépio,
construção feita sob as ordens de Francisco Caldeira Castello Branco para
demarcar a presença lusitana no norte da América portuguesa. O espaço de
ocupação que se formou nas imediações desse forte constituiu a freguesia da
Sé, com casas residenciais, prédios administrativos, igrejas e estabelecimentos
comerciais. Com o processo de povoamento, surgiu a freguesia de Sant’Anna
da Campina e no início do século XIX, a freguesia da Trindade, que agregava
parte da população menos abonada na zona periférica. Nesse espaço, homens,
mulheres e crianças conviveram com os problemas de Belém no século XVIII e
começo do XIX, sobretudo com a propagação de variadas doenças endêmicas
e epidêmicas, como as bexigas e sarampo, que durante muito tempo constituí-
ram flagelos na região amazônica.
No governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1750-1758)
houve dois contágios de bexigas e sarampo, que fizeram estragos entre a po-
pulação indígena e africana na condição de livre e escravizada. No governo de
Fernando da Costa de Ataíde Teive (1763-1772) os contágios das doenças con-
tinuaram, sendo mais forte no interior, sobretudo na vila de São José do Ma-
capá (FEREEIRA, 2007, p. 49). Em 1776, uma grande epidemia de bexigas viti-
mou “mais de mil e tantas pessoas”. Atingiu índios, escravos, soldados e outras
pessoas que residiam nos diferentes espaços da cidade. Ainda no mesmo ano, o
governador João Pereira Caldas preocupado com a diminuição no número de
soldados mortos pela epidemia comunicou o secretário de Estado da Marinha
e Ultramar, Martinho de Melo e Castro “contudo ao presente se acham dimi-
nuídos de algumas praças pertencentes ao Estado completo, pelos muitos sol-
dados, que tem morrido da lamentável epidemia de perniciosíssimas bexigas,
que se tem aqui padecido, e está ainda padecendo com grande força” (AHU,

66
Cx.76, D. 6350). Provavelmente, mais soldados morreram. Nos mapas inclusos
na carta constam 44 soldados hospitalizados, sendo 22 soldados referentes as
Praças do Regimento de Infantaria do Macapá e 22 soldados referentes as Pra-
ças do Regimento de Infantaria da cidade do Pará (AHU, Cx.76, D. 6350).
Essa epidemia vitimou sobretudo índios, negros e soldados, não so-
mente em Belém, mas em várias partes do Grão-Pará, pois a doença grassou
para o interior e o sertão amazônico. A documentação analisada não permite
saber o tempo do contágio, é provável que se prolongou em Belém. No começo
de 1778, o governador João Pereira Caldas noticia o secretário de Estado da
Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, a “ocorrência de um cruel
contágio de bexigas, e de mais algum incômodo de parte destas gentes, que fez,
e havia feito indispensável a fiel execução da soberana ordem de Sua Majestade”
(AHU, Cx. 79, D. 6536). As autoridades de Belém, tomavam providências, mas
nem sempre foi possível evitar o contágio. A doença se disseminava de maneira
funesta, causando vários danos entre a população, principalmente mortes de
indígenas e escravizados que ocupavam mão de obras nos serviços coloniais.
Em 1793 houve outro contágio em Belém que se estendeu, segundo Ar-
tur Vianna, até o começo de 1800, não diretamente, mas em sucessivos surtos.
O primeiro surto começou no mês de junho. O governador Francisco de Souza
Coutinho tomou algumas providências, mas não conseguiu conter o avanço da
peste que rapidamente tomou conta da cidade, vitimando muita gente, “com
uma porcentagem atroz sobre os índios e mestiços; os batalhões milicianos, em
sua quase totalidade compostos destes indivíduos, sofreram um tal ataque que
a bem dizer, perderam todo o seu efetivo” (VIANNA, 1975, p. 39, 44).
Segundo o substituto do Físico-Mor do estado do Grão-Pará ao tratar
da inoculação das bexigas, “por mais de uma vez tem sofrido horríveis contá-
gios, dos quais o último de 94 como é constante, foi dos mais espantosos, pela
grande mortandade que houve” (AHU, Cx. 124 D. 9561). As cenas de tristeza
causadas pela mortandade foram lembradas no primeiro Círio de Nossa Se-
nhora de Nazaré em Belém, ocorrido em 8 de setembro de 1793. No decorrer
da procissão da santa, os romeiros ao passarem pelo cemitério se depararam
com a lembrança da epidemia iniciada a pouco tempo na cidade. Este cemité-
rio, talvez seja o mesmo construído no governo de João Pereira Caldas para en-
terrar os mortos da epidemia de 1776. O medo, provavelmente, estava presente
na memória do povo paraense que após vinte anos enfrentava os problemas de

67
mais uma epidemia de bexigas (VIANNA, 1904, p. 236-237).
Após ceifar a vida da população, principalmente indígenas e mesti-
ços, a doença deu uma trégua, no inverno de 1795, mas retornou pouco tem-
po depois, no verão de 1796 (VIANNA, 1975, p. 42). Em fevereiro de 1797, o
governador e D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho noticiou o secretário
de Estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, Luís Pinto de Sousa Coutinho,
sobre o surto de bexigas que a meses iniciou na capital paraense. Embora preo-
cupado, relata que, “até agora não me consta que tenha passado além da cidade
e nela é disposto que termine ao presente por ser chegada a estação das águas
que comumente faz cessar este, e outros flagelos semelhantes” (AHU, Cx. 108,
D. 8538).
O contágio supostamente se estendeu até 1798, momento em que os
oficiais da Câmara de Belém preocupados com o contágio das bexigas e de
outras doenças que tomavam conta da cidade solicitaram a rainha D. Maria
I a nomeação de dois médicos para prestarem socorros a população de Be-
lém (AHU, Cx. 113, D. 8788). A epidemia, igualmente a ocorrida nos anos de
1793-1794, vitimou muita gente. Segundo Valetim Antonio de Oliveira e Silva,
secretário do Estado, “sendo presente a Sua Majestade a grande e lamentável
mortandade que tem causado nos Povos deste Estado a cruel epidemia de bexi-
gas, não só nestes cinco anos em que incessantemente os tem perseguido, mas
em outros anteriores” (VIANNA, 1975, p. 43-44).
Após a epidemia que abateu a população belenense no final do século
XVIII, certamente outros casos surgiram no início do século XIX, posto que
houve uma preocupação do soberano português com a inoculação no Grão-
-Pará. Domingos Correa Diniz que trabalhou como substituto do Físico-Mor
do Estado, em cópia do parecer sobre a inoculação das bexigas em fevereiro de
1803, argumentou: “Há pouco mais de dois anos que estou nesta capital com
o emprego de Médico substituto do atual Físico-Mor do Hospital Real, neste
espaço de tempo só em Novembro do ano próximo passado tive ocasião de
assistir a quatro pessoas bexigosas, que vindo infectadas do Maranhão, estavam
em São Jozé retiradas por ordem de V.Exª” (AHU, Cx.124, D. 9561).
Os trabalhos de inoculação foram intensificados no final do século
XVIII e início do XIX, sob ordens do governo português que mandou inocular
principalmente os meninos índios e negros, certamente por serem as maiores
vítimas do contágio. O comércio negreiro, nesse momento, estava com todo

68
vigor entre as costas amazônica e africana. De acordo com Arthur Vianna, no
ano de 1806 houve novamente um surto da doença, consequência da chegada
do navio Sertório no porto de Belém. O navio trazia escravizados contamina-
dos pelas bexigas. Consultando a trajetória do navio Sertório no slave voayages
percebi uma grande diferença entre os números de escravizados embarcados
e desembarcados. Provavelmente que os números estejam relacionados aos
contaminados indicados por ArthurVianna. Depois de perder parte dos escra-
vizados em viagens, a embarcação aportou em Belém trazendo escravizados
“vindos da Costa, d’Africa Occidental, principalmente o último denominado
Sertorio, que não, obstante ser logo acautelado e posto de quarentena na Ilha
do Arapiranga, para ahi se purificar e promover como era necessário o curativo
dos muitos enfermos (VIANNA, 1975, p. 45-47).
Ainda que o governador José Narciso de Magalhães de Menezes te-
nha tomado providências, o contágio foi inevitável e em poucos dias a doença
atingiu a cidade. Os escravizados, segundo o governador, já entraram doentes
e infeccionaram a cidade, “que imediatamente fiz passar para a Fazenda Pinhei-
ro” (VIANNA, 1975, p. 45-47). Após o contágio de 1806 em Belém, embora a
historiografia não faça referência a outros casos de bexigas à região paraense,
certamente houve outros casos que não foi possível identificar nas fontes con-
sultadas. Treze anos após o contágio do navio Sertório, outra epidemia tomou
conta da cidade, conforme Arthur Vianna, provocada pela embarcação de es-
cravizados provenientes do continente africano. Em abril de 1819, a doença
ressurgiu em Belém. Em razão da estação do inverno, a doença não teve um
crescimento significativo, mas de junho em diante, período em que as chuvas
cessam com a chegada do verão, a doença se propagou de maneira epidêmica
na cidade. Belém ficou em estado de calamidade “minada de doentes em todos
os bairros”. Possivelmente dois terços da população foi afetada pela epidemia
(VIANNA, 1975, p. 46-48).
Arthur Vianna que esboçou um estudo sobre as epidemias no Pará,
aponta que são registrados do mês de abril a setembro de 1819, 2.200 mortes.
O estudante de medicina, baseado no censo, argumenta “se levarmos em conta
que um recenseamento de 1801 dera para Belém 12.500 habitantes, constata-
remos que sucumbiu quase uma sexta parte da população” (VIANNA, 1975,
p. 50). Os alemães Spix e Martius que viajaram para o Brasil no início do sé-
culo XIX, na expedição cientifica no período de 1817 a 1820, visitaram várias

69
regiões brasileira. Em Belém registraram o contágio das bexigas e de outras
doenças exantemáticas. Sobre as bexigas, argumentam “grassava juntamente ao
tempo de nossa estada, constituindo maligna epidemia, que no auge sacrificava
diariamente 30 a 40 pessoas, e durante meio ano arrebatou mais de 3.000 in-
divíduos, de todas as raças e condições” (SPIX e MARTIUS, 1976, p. 20, tomo
3). Os serviços municipais de enterramento foram negligenciados tanto pela
Câmara de Belém, quanto pelos coveiros, este não colocavam os cadáveres “em
sepulturas pouco profundas”. Essa falta de cuidado do poder público para com
os mortos, vitimados pela epidemia, certamente comprometeu a saúde dos
moradores, principalmente os que moravam em áreas próximas do cemitério,
pois dele “exalava um fétido insuportável” (VIANNA, 1975, p. 48).
Embora sem dados estatísticos sobre o número de mortos nas diversas
epidemias ocorridas durante a segunda metade do século XVIII e início do
XIX, de um modo geral, considero grande a mortandade em Belém. Baseado
no quadro “População do Grão-Pará”, que mostra um indicativo dos dados po-
pulacionais no período de 1765 a 1820, percebo que o número de habitantes de
Belém desde a segunda metade do século XVIII cresceu, com exceção em al-
guns anos, por conta certamente das epidemias de bexigas. Entre os anos 1777-
1788 existe um decréscimo nos dados demográficos, período que coincide com
a epidemia que atingiu não somente Belém, mas o interior e o sertão. Entre os
anos 1788-1792 a diferença populacional também pode estar relacionada com
outras epidemias ocorridas que embora não seja possível verificar na docu-
mentação, é pronunciada por Alexandre Rodrigues Ferreira, quando esteve na
região. Entre os anos de 1792-1797-1801 não houve decréscimo populacional,
pelo contrário houve uma aumento, mas muito lento, considerando uma média
de cinco anos a diferença entre os anos. Esse baixo crescimento populacional
está relacionado diretamente com as consequências das funestas epidemias que
abateram a população de Belém no período de 1794-1800. Mas, a peste não
ficou somente em Belém, propagou-se para o interior (missões, vilas e povoa-
dos) até o sertão amazônico e área de fronteira, causando sérios problemas para
a população, como mostrarei na próxima parte.

70
População do Grão-Pará
Ano Belém Grão-Pará
1765 33.565
1777 8.028 -
1778 10.074 54.914
1782 55.315
1783 6.978 -
1787 - -
1788 10.620 -
1792 8.573 -
1797 11.745 70.604
1801 12.500 80.000
1816 - 94.120
1820 24.500 68.190
Fonte: AHU, cx: 76, D. 6368; SALLES, 2005, p. 96; AUGUSTO, 2007, p. 47-48.

O contágio das bexigas no vasto interior e nos confins do


sertão

A política pombalina culminou com a expulsão dos jesuítas da região


amazônica e retirou dos missionários a tutela dos índios entregando aos direto-
res. Segundo a carta régia de 6 de junho de 1757, os aldeamentos que apresen-
tassem condições passariam a categoria de vilas ou lugares com a substituição
dos nomes indígenas pelos nomes portugueses (RODRIGUES, 1968). Esses po-
voados pombalinos passaram para administração dos diretores, que exerceram
importante papel na seleção e utilização da mão de obra indígena destinadas
aos trabalhos na região. Gradativamente as aldeias tornaram-se vilas e lugares.
No período de 1755 e 1759, o governador do Grão-Pará Francisco Xavier de
Mendonça Furtado implantou nas Capitanias do Pará e Rio Negro, muitas vilas
e lugares, que provocou grandes modificações na distribuição da população.
Colonos e indígenas deveriam se estabelecer no mesmo espaço geográfico, com
o objetivo de integrarem-se no universo da colônia. As vilas e lugares seguiam
aos propósitos de povoamento, de irradiação da cultura portuguesa e de orde-
nação de índios e colonos, segundo as regras da metrópole (ALVES, 2010, p. 24).

71
As transformações socioeconômicas e culturais, consequências das
políticas pombalinas, contribuíram para o contágio de bexigas ao longo da se-
gunda metade do século XVIII e início do XIX, que afetaram mormente, os po-
vos indígenas dispersos nas aldeias, nas vilas e nos povoados. Segundo Carlos
Fausto, após a expulsão dos jesuítas, em 1757, as epidemias voltaram a assolar
a região amazônica, de 1762 a 1800 (FAUSTO, 2001, p. 50). No extremo norte
da Amazônia, as bexigas se disseminaram nas terras do Cabo Norte,1 espe-
cialmente no contexto da construção de São José de Macapá (1764-1782). Em
fevereiro de 1765, José Antônio Salgado, inspetor da obra de fortificação, co-
municou Fernando da Costa de Ataíde Teive, governador do Grão-Pará e Ma-
ranhão: “no mapa incluso verá V. Exª todos os operários que trabalham nesta
fortificação e os doentes que há tantos índios como pretos e todas as províncias
que tem havido” (VERGOLINO-HENRY & FIGUEIREDO, 1990, p. 77 e 78).
As doenças constituíam um problema para o andamento da obra, sobretudo
pelas bexigas e sarampo que abateram os operários nas dependências da obra e
nos espaços provedores de matéria prima. Ainda nesse mês, o comandante da
Praça de Macapá, Nuno da Cunha de Atayde Verona relatou ao governador do
Grão-Pará a situação dos trabalhadores: “com incansável cuidado e vigilância,
continuo no trato e com modo dos cento e setenta e quatro pretos do Senado
da Câmara dessa cidade, sem que possa conseguir o evitar-lhes as doenças e
as fugidas achando-se no hospital 48 e tendo falecido nele um e ausentes 17”
(VERGOLINO-HENRY & FIGUEIREDO, 1990, p. 79 e 80).
Em março de 1765, o contágio da bexigas juntamente com o sarampo
comprometeu o estado de saúde dos trabalhadores, como mostra Atayde Ve-
rona, em carta ao governador do Pará: “este grande número de doentes não só
pretos, mas também de índios da fortificação, da serraria e Anauerapocú, com
alguns soldados, me obrigou indispensavelmente a lhe fazer mais uma casa de
palha”, para separar os doentes de bexigas dos doentes de sarampo que vieram
em calcetas dessa cidade (VERGOLINO-HENRY & FIGUEIREDO, 1990, p.
80). No segundo semestre de 1765, 36 trabalhadores encontravam-se no hospi-
tal, consequência dos duros trabalhos e das inúmeras doenças que imperavam
na região. O cenário de enfermidade não se diferenciou anos depois, mais pre-
cisamente em 1767, que mostra o aumento no número de mortes e doentes: 24

1 O Cabo Norte era uma capitania ligada diretamente a capitania do Grão-Pará, atualmente a
região corresponde em termos geográficos ao estado do Amapá. A vila de São José de Macapá
pertencia ao Cabo Norte.

72
no hospital, 58 falecidos e 90 ausentes. Os falecidos, provavelmente de doenças
(VERGOLINO-HENRY & FIGUEIREDO, 1990, p. 90).
O contágio das bexigas decerto estava relacionado com as péssimas
condição de trabalho, a precária alimentação servida aos operários e a insa-
lubridade “atribuída ao ritmo das marés e a proliferação de insetos”, transmis-
sor de doenças. Os pântanos contribuíam para a insalubridade do clima e as
“sessõens” vitimavam grande número de trabalhadores indígenas, desnutri-
dos e sem imunidades às novas doenças (ACEVEDO MARIN, 1998, p. 67).
Macapá situava-se em uma região insalubre que tornava propício às doenças,
como bexigas, sarampo, diarreias e febres catarrais (BRITO, 1998, p. 131). Os
trabalhadores, não raramente, chegavam doentes em Macapá, sobretudo os in-
dígenas que vinham de vilas e povoados situados ao longo do rio Amazonas e
seus afluentes e também de lugares distantes da região do Cabo Norte (APEP,
cód:153, doc.38, ano.1765). Os povoados pombalinos, independentes da dis-
tância, constantemente sofriam surtos de bexigas. Dessa maneira, os povoa-
dos, as condições de trabalho e a insalubridade, sem dúvida, explicam parte da
disseminação de inúmeras doenças como as bexigas, que contribuíram para o
adoecimento e a dizimação de trabalhadores da fortificação.
As bexigas grassaram para outras partes da Vila de Macapá. Em maio
de 1778, Antônio José em oficio para João Pereira Caldas por meio de um re-
querimento solicitou “três índias para [...] colher uma avultada lavoura de ar-
roz para comprar as minhas despesas, e por alguns dos ditos escravos estarem
enfermos das bexigas” (APEP, cód. 326 In: Relatos de Fronteira, 160). Em Ju-
lho do ano seguinte, um ofício de Manoel Gama Lobo Almada, Sargento-mor
comandante da Fortaleza de Macapá enviado para Governador do estado do
Grão-Pará e Rio Negro relata sobre o estado de saúde dos vinte negros que vie-
ram para Macapá, entre os escravos doentes, “veio com bexigas confluentes, de
que já faleceu” (APEP, cód. 195. In: Relatos de Fronteira, 143).
Apesar das informações, não se tem dados estatísticos sobre o número
de mortos. Alexandre Rodrigues Ferreira, baseado nas memórias de Teodósio
Constantino Chermont, menciona em seu diário que no governo de Fernando
da Costa de Ataíde Teive a epidemia que abateu o Estado foi mais acentuada
nesta vila do que em Belém. O número de habitantes na vila era menor do que
na capital paraense, logo o estrago foi maior em Macapá (FERREIRA, 2007, p.
521). Ainda na região do Cabo Norte, as bexigas atacaram também os mora-

73
dores de Mazagão, antiga aldeia de Santana. Em 1770 esta aldeia foi elevada à
condição de vila e visava proteger a região da invasão de estrangeiros, sobretu-
do os franceses, com quem os portugueses divergiam o Cabo Norte. Em 1776,
o governador João Pereira Caldas comunica o comissário da Vila de Mazagão
sobre “a deserção dos índios, que aí se experimenta na ocasião presente, pode
ter alguma desculpa pelo pavor que justamente lhes deve causar a geral epi-
demia de bexigas, que em todo o Estado se está experimentando, digo se está
padecendo e tem já feito uma lamentável, e consideradíssima derrota” (APEP,
cód. 306, doc. 181).
Na região das ilhas e dos furos, situada entre no interflúvio dos rios
amazonas e Xingu, o contágio atingiu várias áreas. Em 1758 a missão Aracurá,
instalada em 1653, tornou-se vila de Portel. No ano seguinte uma epidemia de
bexiga se propagou na vila, causando vários transtornos nos moradores, como
o atraso na remessa de índios ao serviço. Segundo José de Sá Lemos: “com a
brevidade que desejava por se acharem refugiados no mato os moradores desta
povoação, temerosos das bexigas que bastantemente os tem perseguido, este o
motivo porque a mais tempo não tenho feito a remessa do número de índios”
(APEP, cód. 95 doc. 16).
Na vila de Carrazedo, antiga Aldeia de Arapijó, localizada na margem
direita do baixo Amazonas, na região de Gurupá, a doença atacou os índios.
Em 1758, com a implantação das políticas pombalinas, a aldeia de Arapijó,
administrada pelos missionários franciscanos da Piedade, foi elevada à cate-
goria de vila, sob a jurisdição da Vila de Gurupá próximo ao arquipélago do
Marajó. Em 1762, as bexigas atacaram alguns índios da vila (APEP, cód. 118,
doc. 06). Outra correspondência endereçada do Rio Gurupá, de Bazilio José de
Almeida para José de Nápoles Telo de Meneses, governador do Grão-Pará dava
conta sobre o hospital dos bexigosos. Segundo o remetente, “em dia oito deste
presente mês me foi preciso para bem de minha jornada tomar uma canoa
pequena de trinta e três palmos [ir ao] recinto de Hospital de bexigosos pois
não querendo o dito capitão [Antonio Albino] que em seu recinto ficasse o dito
doente” (APEP, cód. 65, doc.127, ano.1780).
Em Breves também houve casos de bexigas, tratava-se de um doente
da expedição de Spix e Martius. Os viajantes em suas andanças pela região das
Ilhas e dos Furos diagnosticaram que o piloto da embarcação que os condu-
ziam apresentava os sintomas da doença. De acordo com os viajantes, “passava

74
do meio-dia, quando uma chuvinha fina e nevoeiro começaram a encobrir-nos
o singular arquipélago, e ao mesmo tempo o nosso piloto se queixou de mal-es-
tar, aterrando-nos secretamente, ao reconhecimento nele sintomas de varíola”.
Diante da situação que o piloto apresentava, “demos-lhe ordem de deitar-se
embaixo, no convés e tomamos a direção do leme (SPIX e MARTIUS, 1976, p.
67, tomo 3). Os naturalistas, sem condições de tratarem o doente, navegaram
até chegarem no dia 3 de setembro de 1819 na vila de Breves (Engenho dos Bre-
ves) para trocar o dito piloto que padecia da varíola. Após deixarem o doente,
partiram para outras vilas da região das ilhas e furos. Depois de oito meses,
ao retornarem à vila de Breves tiveram conhecimento da morte do piloto. Na
região do rio Xingú, segundo Spix e Martius, as bexigas, juntamente com o
sarampo constituíam as únicas doenças endêmicas agudas, que atacavam os
indígenas (SPIX e MARTIUS, 1976, p. 97, tomo 3).
A doença também se disseminou à região do Rio Negro, localizada
no oeste amazônico. Com a intenção de colonizar e ao mesmo tempo afastar
a ameaça estrangeira na fronteira com os domínios espanhóis, o governador
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, criou em 1755 a Capitania do Rio
Negro, desmembrada da capitania do Pará e formada pelas terras que hoje
equivalem aos estados do Amazonas e Roraima (ANDRELLO, 2010, p. 111).
A capitania do Rio Negro tornou-se base para a ocupação portuguesa no no-
roeste da Amazônia. Várias vilas foram criadas com esse objetivo. Ao longo
dos anos vilas e aldeias indígenas sofreram severamente com a propagação das
bexigas. Na vila de Olivença houve o contágio das bexigas. Em 1759, a antiga
missão jesuítica São Paulo dos Cambebas estabelecida pelo padre Samuel Fritz
no Rio Solimões, na Capitania do Rio Negro transformou-se em vila. Em 1763,
a doença se proliferou matando muitos índios, como atesta Fernando Correa
Pestana em carta para o governador da Capitania do Grão-Pará. Conta que,
chegou “a esta vila em quatro de janeiro e venci o fim da viagem com muito tra-
balho causado da peste das bexigas”. Nessa epidemia, “morreram cinco pessoas
de minha casa e quatro índios da vila, as mais escapa [corroído] da morte, mas
não da bexiga, só a canoa grande escapou do fatal contágio por que [corroído]
o primeiro índio em que seu tal contágio os mais escaparam pela bondade de
Deus” (APEP, cód. 128, doc. 41).
Na Vila de Barcelos, antigo aldeamento indígena de Mariuá, também
se disseminou o contágio das bexigas. Em 1758, este aldeamento missionário,

75
administrados pelos missionários carmelitas foi elevado à categoria de Vila,
com o nome de Barcelos. Nela, “as bexigas que tanto pegam e tantos estragos
fazem nos índios, particularmente nos de há pouco descidos, pelo ordinário
se tratam na enfermaria geral” (FERREIRA, 2007, p. 214). Em Airão, antigo
povoado de Santo Elias do Jaú, também houve o contágio das bexigas. Este
povoado, localizado na margem direita do Rio Negro, foi fundado em 1694
pelos missionários mercedários e carmelitanos que adentraram o oeste ama-
zônico para evangelizar primeiramente os índios Tarumã e posteriormente ou-
tros grupos indígenas que migraram para a região nos séculos XVII e XVIII.
A ação evangelizadora dos carmelitanos foi mais duradoura e contribuiu para
o crescimento gradativo do povoado. Em 1759, Santo Elias do Jaú ascendeu a
condição de Lugar com a denominação portuguesa Airão, exigência de Joa-
quim de Mello e Póvoas, para atender os interesses das políticas pombalinas.
O estabelecimento da política pombalina acirrou as guerras com os índios que
não se submetiam a colonização na região do Rio Negro. Deste modo, alguns
grupos indígenas migraram de Airão, principalmente para o alto Rio Negro e
colônias espanholas nas imediações da região, o que certamente provocou a
decadência de Airão (LEONARDI, 2013, p. 25-32).
Os povos indígenas de Airão, constantemente sofriam com doenças.
Alexandre Rodrigues Ferreira quando passou pela região do Rio Negro, des-
creveu os repetidos contágios das bexigas e do sarampo que concorreram à
depopulação. Segundo este naturalista, “os repetidos contágios de bexigas e de
sarampo têm diminuído muito a sua população. Conta-se que constando de 37
pessoas a família do principal Ambrósio de Santa Ana, só ele e um filho seu es-
caparam da morte em um desses contágios”. Argumenta ainda que, “há 12 anos
a esta parte, que tem quatro descimentos”, sendo que “o primeiro deles constou
de 150 almas da nação aroaqui, das quais têm morrido umas e outras se ausen-
taram”, já “o segundo descimento constou de 37 almas da mesma nação, e delas
ainda se conservam 15 (FERREIRA, 2007, p. 304). Os indígenas habitantes em
Airão, assentados na margem direita do Rio Negro, foram assolados por epi-
demias nos séculos XVII e XVIII, sobretudo pelas bexigas que durante anos
fizeram estragos na região do Rio Negro.
A aldeia Coari, no Rio Solimões, em 1759 tornou-se Lugar de Alvelos2,
que também sofreu o contágio das bexigas. O ouvidor Francisco Xavier Ribeiro

2 Atualmente é o município de Coari, localizado no estado do Amazonas.

76
de Sampaio registrou que “tem tido esta povoação argumento em vários des-
cimentos; mas no ano presente tinha padecido grave diminuição, por causa do
contágio das bexigas, morrendo dele muitos índios, e desertando outros para
os matos, como costumam nessas ocasiões” (SAMPAIO, 1985, p. 156-157).
Anos mais tarde, os viajantes Spix e Martius ao passar por Arvelos, fazem refe-
rência as bexigas. Segundo os viajantes, “as bexigas e muito recentemente febres
intermitentes malignas, causadas pelo transbordamento do lago, dizimam de
quando em quando a população, que sem o socorro médico, ainda mais depres-
sa sucumbe (infelizmente, em toda a província do Rio Negro não há médico
diplomado)” (SPIX e MARTIUS, 1976, p. 155, tomo 3).
Ega, originalmente missão Tefé ou Santa Tereza de Tapé, em 1759 foi
elevada à condição de Lugar, por Joaquim de Melo e Povoas. Os naturalistas
Spix e Martius registraram que na região do Rio Negro houve intensos contá-
gios de bexigas: “antes, haviam as bexigas despovoando o lugarejo, assim como,
desde 1803, as febres intermitentes anualmente ali reinantes” (SPIX e MAR-
TIUS, 1976, p. 162, tomo 3).
Mas o contágio das bexigas nos século XVIII e XIX, sem dúvida, se
propagou para outros espaços do Rio Negro. As autoridades se preocupavam
com as bexigas e outras doenças que tantos problemas causavam não somente
à população, mas ao processo de colonização. O governador do Rio Negro, de
acordo com os viajantes alemães “assustado pelo boato de perigosa epidemia de
bexigas, que grassaria na província inferior, havia posto ali um destacamento
de soldados da milícia, com o encargo de exercer estrita vigilância sobre a en-
trada de quaisquer viajantes naquelas alturas (SPIX e MARTIUS, 1976, p. 104,
tomo 3).
Além do interior, o sertão, sobretudo a área de fronteira do Grão-Pará
tornou constantemente uma preocupação aos colonizadores da Amazônia por-
tuguesa. Os limites fronteiriços do ponto de vista político e geográfico da Ama-
zônia, ainda não estavam totalmente definidos e mudavam constantemente.
Desde os início da ocupação e do povoamento, a Coroa portuguesa procurou
demarcar a região e defendê-la de incursões estrangeiras no estuário brasilei-
ro. Realizou vários tratados e acordos com os espanhóis e franceses. Antes da
colonização, o continente americano já havia sido dividido entre portugueses
e espanhóis pelo Tratado de Tordesilhas (REIS, 1960, p. 23). Apesar dos espa-
nhóis receberem a maioria das terras amazônicas, houve certo descaso com a

77
região, ficando a cargo dos ingleses e holandeses a tarefa de iniciar a explora-
ção. A ocupação da Amazônia, dessa maneira, esteve estritamente relacionada
com as invasões estrangeiras, pois não participaram do acordo de Tordesilhas
(REIS, 1949, p. 17).
Na fronteira do Pará com o Tocantins houve contágio da doença, espe-
cialmente no interflúvio dos rios Pacajá-Tocantins que alcançou os índios Api-
najés, contatados com a sociedade de maneira permanente, somente em 1797.
Vinte anos depois desse contato, os Apinajés foram assolados pelas bexigas que
grassaram a região (FAUSTO, 2001, p. 51). Na fronteira com o Maranhão, tam-
bém houve a disseminação das bexigas. Spix e Martius observaram que São
Luís, da mesma forma que toda a ilha maranhense, estava livre de doenças
endêmicas e epidêmicas, com exceção das bexigas (SPIX e MARTIUS, 1976, p.
247, Tomo 2). A população maranhense, igualmente a paraense, desde o século
XVII foi acometida pelas constantes epidemias de bexigas. Mário Meireles, ba-
seado em Teodósio Constantino Chermont, argumenta que entre 1724 a 1776,
a doença fizera praticamente endêmica em todo o Estado, e não apenas em São
Luís. Em 1784 o governador José Teles da Silva montou postos para atender
soldados contaminados pela peste na cadeia pública. Em 1787, outra epidemia
tomou conta da cidade, causando muitas mortes (MEIRELES, 1994, p. 177 e
212). No século XIX, novas epidemias ocorreram nas terras maranhenses. Em
1817 a doença se disseminou de Caxias para o oeste atingindo os índios Apina-
jés, drasticamente devastados (HEMMING, 2009, p. 247).
É muito provável que alguns contágios de bexigas ocorreram nas terras
paraenses devido a entrada de doentes pela fronteira do Grão-Pará com outras
capitanias portuguesas e espanholas. As autoridades coloniais preocupavam-
-se com a militarização da área não somente pelos constantes surtos de doen-
ças, mas por qualquer motivo que colocasse em risco a segurança da região.
Indígenas, escravizados e mocambeiros regularmente cruzavam as fronteiras
coloniais em fugas ou deserção, práticas que concorreram para o contágio de
doenças. É importante lembrar que, o comércio negreiro tornou-se também
importante para o contágio de bexigas no Grão-Pará. As epidemias vitimaram,
sobretudo africanos e indígenas na condição de livres e escravizados que atua-
vam no interior e sertão amazônico, fato que agravou o processo de coloniza-
ção, como mostrarei na próxima parte.

78
O contágio e os meandros da colonização

O contágio das bexigas trouxe graves consequências à região, não ape-


nas pela redução da população do Grão-Pará que morreu e fugiu para as ma-
tas, mas pela carência da mão de obra suscitada. Os sucessivos contágios com-
prometeram seriamente o crescimento econômico da região amazônica. Com
frequência muitos trabalhos paralisavam. As epidemias desencadeavam graves
problemas de abastecimento de mão de obra. Em 1759, em Portel, a epidemia
de bexiga constituiu o motivo do atraso na remessa de índios para o serviço na
vila de Oeiras “por se acharem refugiados no mato os moradores desta povoa-
ção, temerosos das bexigas [...], este o motivo porque a mais tempo não tenho
feito a remessa do número de índios que continha a dita portaria” (APEP, cód.
95, doc. 16). Da mesma forma, outras vilas sofreram com a carência de mão de
obra para os trabalhos da colonização. Alexandre Rodrigues Ferreira, baseado
nas memórias de Teodósio Constantino Chermont, argumenta que, a agricul-
tura foi prejudicada com a mortandade de índios causada pelas epidemias de
bexigas. O governador Manuel Bernardo de Melo e Castro (1759 – 1763), não
teve condições de fazer nada, pois “tomou posse do cadáver de um estado, fa-
lido de gente, atacado de horrorosa epidemia das bexigas e, para dizer tudo em
pouco, ameaçado dos três flagelos da peste, da fome e da guerra” (FERREIRA,
2007, p. 530).
As epidemias comprometeram as atividades que dependiam dos tra-
balhos de indígenas e escravizados, como os pequenos estaleiros, localizados
às proximidades de Belém, para a fabricação de canoas e também o Arsenal do
Pará, fundado em 1761, no governo de Manoel Bernardo de Mello e Castro,
para a construção de embarcações maiores. Em 1794, a epidemia de bexigas
afetou os trabalhos de construção das novas charruas: “não se pode dar princí-
pio ao trabalho em quanto não cessar a epidemia das bexigas, visto que chamar
índios para a cidade é o mesmo que condená-los a morrer da peste, a que não
resistem quaisquer que sejam os socorros, que se lhe apliquem” (AHU, Cx. 104,
D. 8248). Outras construções de embarcações ficaram comprometidas pela ca-
rência de trabalhadores. Em 1795, os navios que estavam sendo construídos
no estaleiro de Belém atrasaram, pois “seis meses que a epidemia das bexigas
me obrigou a inação espero ressarcir esforçando-me com o rigor que posso em
que se adiantem estas obras, e espero que em menos de seis meses estejam nos

79
termos de se lançarem ao mar não sobrevindo incidente imprevisto” (AHU, Cx.
105, D. 8305).
Outras culturas também foram prejudicadas por falta de braços. Se-
gundo Alexandre Rodrigues Ferreira, por carência de trabalhadores, vitimados
pelas epidemias de bexigas, houve problema com a colheita do cacau (FRER-
REIRA, 2007, p. 540), que apesar de ser considerado o principal produto eco-
nômico na segunda metade do século XVIII, teve uma queda em relação aos
anos anteriores, em decorrência da constante morte de indígenas no baixo
Amazonas. (ALDEN, 1974, p. 32 e 85). No entanto, o governo tentou resolver
a carência de mão de obra com constituição da Companhia de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão, que segundo Dauril Alden estimulou o aumento da
exportação do produto e impulsionou o tráfico de africanos para a Amazônia.
Deste modo, o governo português, durante os funestos contágios de bexigas,
prosseguiu com a colonização intensificando o comércio negreiro na região
amazônica, sobretudo após o monopólio da Companhia Geral de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão que imprimiu uma nova possibilidade de mão de obra
para os colonos amazônicos. O término do exclusivo comercial da companhia
coincidiu com uma grande epidemia de bexigas no final da década de 1770, que
assolou todo o estado do Grão-Pará. Mesmo perdendo o monopólio, a Com-
panhia de Comércio continuou traficando africanos para a região amazônica.
O governo continuou incentivando o comércio negreiro. Em 1794, estabelece o
Indulto do Perdão dos Direitos, imposto que concedia isenção aos comercian-
tes que traficassem africanos para a região amazônica, momento que a região
foi assolada por sucessivos surtos epidêmicos de bexigas, sobretudo nos anos
de 1794-1800.
Com essa política, o governo português estimulou o comércio negrei-
ro, para usar a mão de obra africana em seus empreendimentos, sem contudo,
abrir mão do trabalho indígena, como previa a legislação. Dessa maneira, a
partir da segunda metade do século XVIII, os indígenas continuaram desen-
volvendo trabalhos em todos os espaços, de maneira individual ou na compa-
nhia dos africanos escravizados. Ainda que estes tenham contribuído intensa-
mente com a colonização nas diversas atividades, a mão de obra indígena foi
determinante para a manutenção e prosseguimento da colonização da região
amazônica. Após a instalação do Diretório, os pedidos de descimentos indíge-
nas passaram a ser feitos, diretamente, aos diretores das vilas e lugares, como

80
ocorreu com os contínuos pedidos de indígenas das vilas e povoados para
trabalharem nas obras da fortificação de São José de Macapá (APEP, cód:153,
doc.38, ano.1765). Segundo Cecilia Chaves Brito, o Diretório apenas “aparen-
temente rompia” com a escravização incompleta que existia nas missões e com
a escravidão dita de fato. O indígena continuou expropriado de sua força de
trabalho ao ser submetido ao trabalho compulsório3, pois a partir do momento
em que há uma determinação direcionando os índios para diferentes frentes
de trabalho e lugares, de acordo com as corporações, a liberdade dos mesmos,
conforme previa a legislação, foi suprimida (BRITO, 1998, p. 121-125).
Embora o governo tenha incentivado o comércio negreiro e ao mesmo
tempo decretado uma legislação que previa a liberdade irrestrita, os indígenas
predominaram no mundo do trabalho na Amazônia. Não quero desconsiderar
a importância da mão de obra africana para o crescimento da economia pa-
raense, principalmente nos anos que as bexigas grassaram a região. Pelo con-
trário, quero mostrar que os indígenas também atuaram ao lado de negros em
um período que a legislação indígena previa a liberdade, mas constantemente
suprimida sobretudo no trabalho compulsório. Dessa maneira, podemos en-
tender a atuação dos povos indígenas na companhia de africanos trabalhando
nas diversas ocupações durante os contágios de bexigas no Grão-Pará. Como
sugere Patrícia Sampaio, as experiências envolvendo indígenas e africanos tan-
to livres quanto escravos tornam-se importantes para se analisar as formas de
trabalho compulsório utilizado pelos portugueses ao longo do processo de co-
lonização da Amazônia (SAMPAIO, 2003, p. 9).

Considerações Finais

Na segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das políti-


cas pombalinas, sucessivos casos de epidemias de bexigas ocorreram no Grão-
-Pará, motivados provavelmente pela entrada de doentes na fronteira amazô-
nica e também pelas embarcações negreiras que aportavam na região trazendo
africanos, que não raramente vinham infectados com a doença. No decorrer
do período ativo do comércio negreiro um avultado número de seres humanos
3 Pelo trabalho compulsório, Ceciclia Chaves entende que os indígenas ocuparam praticamente
todos os setores produtivos da sociedade ao serem controlados pelas “Corporações de índios”,
registros que determinavam o tempo e a permanência nos locais de trabalho (BRITO, 1998, p.
121-125).

81
morreu vítima dos constantes surtos de bexigas que atingiram sobretudo os
povos indígenas e africanos escravizados, que viviam geralmente em estado
insalubre, sem recursos de higiene e saúde.
Com medo da doença não raramente indígenas e africanos abando-
navam suas moradas e fugiam para os matos da redondeza ou distantes dos
infectados em busca de proteção. Mas é importante destacar que, as fugas não
ocorriam somente em tempos de epidemias, pelo contrário, eram constantes
na região amazônica e faziam parte do cotidiano dessas populações que em-
preendiam fugas individuais ou coletivas, mas no período de epidemias torna-
vam mais frequentes. Houve aldeias devastadas pelo contágio das bexigas ou
esvaziadas com as frequentes fugas de índios que apavorados embrenhavam-se
nos matos, implicando seriamente no crescimento das diversas culturas que
dependiam exclusivamente da mão de obra indígena. As epidemias de bexigas,
dessa maneira, não apenas contribuíram para o desequilíbrio demográfico, mas
afetaram sobretudo o processo de colonização com a falta de mão de obra para
o andamento da colonização portuguesa no Grão-Pará.

Referências bibliográficas
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84
As instruções de São Carlos Borromeu
para a construção das Igrejas após o
Concílio de Trento

Natália Maria da Conceição Oliveira.


Mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itá-
lia; Mestre em História do Brasil pela UFPI.

Introdução

São muitas as formas de escrita da História, as quais surgem a partir de


diferentes campos, temas, fontes e metodologias. Diante deste leque de possi-
bilidades este artigo, parte da dissertação de mestrado realizada na Pontíficia
Universidade Gregoriana em Roma, em 2018, desenvolve uma temática que
possui como objeto de estudo as Instructionum fabricae et supellectilis ecclesias-
ticae libri II, publicadas em 1577, de Carlos Borromeu. Esse texto também é
conhecido por seu título abreviado: Instructiones fabricae.
Esta fonte aparece como protagonista, no entanto, é por meio dela que
se apresentam o seu autor, o contexto em que elas surgem, bem como a in-
trínseca relação existente entre o documento e a influência que ele exerceria
ao longo dos séculos sucessivos. Esta pesquisa buscou apresentar como elas
interferem diretamente na história da Igreja, pois influenciaram e continuam
influenciando a Religião Católica na questão da construção dos edifícios sacros
e do cuidado com os objetos litúrgicos.

85
Este estudo tem, vale dizer, como corte cronológico o período que vai
de 1538 até 1610, período no qual Carlos Borromeu nasceu, tornou-se cardeal,
participou da reabertura e finalização do Concílio de Trento e exerceu seu epis-
copado na Diocese de Milão. Nessa fase da história, as Instructiones fabricae
foram elaboradas e executadas na diocese em 1577, por ocasião do III Concílio
Provincial.
De acordo com Le Goff, o dever principal de um historiador “é a crítica
do documento” (LE GOFF, 1978, p. 41). Este deve ser visto como um produto
da sociedade que o fabricou, segundo as relações de poder. Portanto, somente
a análise do documento em quanto documento consente a memória coletiva
de recuperá-lo e, ao historiador, a capacidade de poder utilizá-lo de maneira
científica, com plena noção de causa.
Segundo este autor, o documento deve ser analisado como o produto
de um centro de poder, que deve ser estudado em uma prospectiva religiosa,
social, econômica, política, cultural, ou seja, como um instrumento de poder.
Para a operacionalização dessa fonte, Instructiones fabricae, era necessário ha-
ver a consciência, que ela não deveria ser isolada de seu contexto, mas que
devia ser percebida como algo que exprimia a superioridade não do seu teste-
munho em si, mas da sociedade que a produziu e daquela que ainda a divulga
como modelo a ser seguido, ou seja, como um instrumento cultural de peso.
Para afrontar a retomada de um texto do passado como um “mito” para
os tempos hodiernos é necessário compreender que não existe história que não
busque o encontro entre o passado e o presente, que não mendigue a resistência
dos outros e que não prove ou provoque esta “heresia” do passado em relação
ao presente. No entanto, esta função da história corresponde e deve corres-
ponder a paixão do historiador. Portanto, se o pesquisador tem por objetivo
fornecer aos seus contemporâneos esta parte da sua imagem social que integra
um passado a um presente, ele descobre uma missão mais difícil, que consis-
te em revelar a negação desta mesma imagem em um momento do passado.
Ele, pouco a pouco, deve evitar a redução dos homens do passado a símiles do
presente. Deve impedir que tudo seja visto pelos olhos de sua cultura. Ele deve
perceber a razão longínqua e profunda que atribui ao mínimo fato da história:
“Aconteceu; esteve”. Para Certeau, isso é um grão de areia, que liga um sistema
social, que gera um espelho coletivo (CERTEAU, 2006, p. 53-54).
Contudo, não é possível chegar até os homens do passado sem passar

86
pelos homens do presente. Esse percurso, a mediação dos outros, hoje, é a con-
dição para atingir a alteridade do passado. As escolhas feitas pelo pesquisador
do presente, permite a determinação de um objeto, que se distinguirá pelas
várias formas de olhar.
Sendo assim, pode-se dizer que mesmo repreendendo às fontes mais
primitivas, os sistemas históricos e linguísticos, a experiência que escondem
ao se desenvolverem, o historiador nunca alcança a sua origem, mas apenas
os estágios sucessivos da sua perda. Segundo Certeau as fontes analisadas e
descritas são relativas à resposta que cada autor dá às questões análogas do
presente, é uma leitura do passado (CERTEAU, 2011, p. 73). No entanto, por
mais controlada que seja essa análise dos documentos, ela é sempre dirigida
em função de problemáticas impostas por uma situação. Elas são conformadas
por premissas, quer dizer, por modelos de interpretação ligados a uma situação
presente do cristianismo.
As ideias de Certeau, serviram para que se criasse a consciência que as
Instructiones fabricae e Carlos Borromeu faziam parte de uma sociedade que
deixava de ser religiosamente homogênea: o crente passava a se diferenciar do
incrédulo, ou católico do protestante, pelas práticas. Tornando-se assim um
elemento social de diferenciação religiosa, a prática ganhou uma pertinência
nova. Além disso, as diferenças de saberes tornaram-se decisivas, pois aquilo
que se conhecia, quando se era Católico ou Reformado, fornecia à comunidade
seu modo de identificação e distinção. A sociedade mudou, remodelada pela
urgência dessas definições que circunscreviam ao mesmo tempo os conteúdos
intelectuais e os limites sócio institucionais. O século XVI foi marcado pela re-
lação entre dois sistemas de compreensão: a passagem de uma sociedade ainda
religiosa a uma sociedade, a nossa, que se secularizou.
Para melhor sintetizar as análises sobre as Instructiones fabricae (1577),
optou-se por dividir este trabalho em três tópicos, assim intitulados: São Carlos
Borromeu; O Concílio de Trento; As Instructiones fabricae e a construção das
igrejas.

São Carlos Borromeu

O historiador que estuda Carlos Borromeu, encontra-se sempre diante


de considerações e afirmações, que formam um “monumento”, pois sobre ele

87
existem inumeráveis obras e documentos. Porém, diante disso, deve-se buscar
compreender a estratificação ocorrida no tempo e no espaço, deve-se observar
os documentos como um monumento. O documento é um produto da socie-
dade que o fabricou, segundo as relações entre aqueles que detinham o poder
(LE GOFF, 1978, p. 38-43). Portanto, ele serve para recuperar a memória cole-
tiva de determinado período e assim, propiciar a sua análise científica.
Carlos Borromeu, nascido em dois de outubro de 1538 no castelo de
Arona, terceiro filho de Gilberto e de Margarida Médici, irmã de Pio IV. Aos
sete anos, em treze de outubro de 1545, foi agregado ao clero milanês. Com
a idade de nove anos perdeu a mãe. Carlos viveu seus primeiros anos entre
Angera e Pávia. Depois dos primeiros estudos realizados em Milão, foi inscrito
na Universidade de Pávia, esta era menos expressiva que outros centros uni-
versitários do momento, como Pádua e Bolonha. Durante os anos de estudo
acadêmicos perdeu o pai, em 27 de julho de 1558.
Na segunda fase de sua vida, como cardeal, surge como o protagonista
de uma transição na qual tradição e novidade encontram uma expressão criati-
va. A eleição de Pio IV, como sucessor de Paulo IV, constituiu uma reviravolta
na vida de Carlos. Apenas eleito, uma grande quantidade de parentes do novo
pontífice se dirigiu a Roma, buscando cargos e vantagens. Dentre estes, estava
Borromeu, conforme Pastor, um dos favoritos (PASTOR, 1943, p. 82).
Sobre essa temática, Armando Guidetti, apresenta a imagem de um
jovem cardeal que conduzia uma vida de príncipe, em um «splendore plane
regio». (GUIDETTI, 1984, p. 13-14). Neste tempo, mesmo diante da pouca ida-
de e de anseios comuns aos demais cardeais do renascimento, de acordo com
Pastor, o Papa Pio IV teria encontrado no sobrinho tudo o que ele necessitava:
um auxílio abnegado, perseverante, assíduo e paciente para seguir as suas ins-
truções (PASTOR, 1943, p. 82).
Outra fase significativa para os biógrafos de Carlos Borromeu, foi a
morte de seu irmão, pois, segundo estes, nesse momento trágico ocorreu a sua
“conversão”. Diante dessas afirmações, pode-se refletir sobre um acúmulo de
fatos, que somados a morte repentina do irmão provocaram uma mudança nos
ideais do jovem cardeal. Dentre estes, aparece a influência dos jesuítas e as reu-
niões nas Noites Vaticanas. Estas reuniões da Academia das Noites Vaticanas,
foram iniciadas em vinte de abril de 1562.
Michel De Certeau, descrevendo essa “conversão”, também comparti-

88
lha da ideia quando afirma que vários elementos influenciaram essa decisão.
Ele cita a morte do irmão, Frederico Borromeu, mas acrescenta as relações pes-
soais com os jesuítas e com os teatinos. Além disso, faz referência ao encontro
com o português Bartolomeu Martyribus. Por desejo de Pio IV, o prelado por-
tuguês encontrou Carlos e, a partir desse momento, surgiu uma intensa troca
de experiências, especialmente devido a apresentação de seu texto: Stimulus
pastorum. (CERTEAU, 1977, p. 263). O encontro entre Martyribus e Carlos
Borromeu, associado a importância do concilio e a urgência das reformas, tor-
nou-se um marco crucial para o cardeal, que poucos dias após a conclusão do
Concílio de Trento recebeu a consagração episcopal. Essa decisão foi sucessiva
a este encontro com o prelado português.
No contexto do seu empenho episcopal, manifestou-se um empenho
ascético. A partir de 1564, ele iniciou uma série de mudanças em seus hábitos,
que influenciaram diretamente a vida de sua família cardinalícia. A corte se
mostrou insatisfeita, por esse motivo alguns o definiram como uma “pessoa
friíssima”. (PASCHINI, 1958, p. 107-123).
Carlos com o avançar dos meses e dos anos adquiriu experiência e
maturidade, formou uma visão pessoal dos problemas afrontados no Concílio
de Trento, encontrou coragem de aconselhar o papa e de fazê-lo refletir sobre
algumas decisões repentinas. Porém, segundo Fois as decisões, a vontade pro-
gramática não era sua. Ele transmitia as decisões do papa. (FOIS, 1989, p. 10).
Diante dessas discussões, há necessidade de prudência crítica, pois
pensá-lo como um personagem imprescindível para a conclusão do concílio,
remonta a uma ideia simplória. Porém, aderir a visão negativa de Jedin que
afirma que Carlos foi passível diante das decisões de seu tio (JEDIN, 1971, p.
09-10), é igualmente ingênuo. Diversamente, é necessário refletir se a posição
de Carlos Borromeu passiva ou ativa, tenha suscitado nele uma experiência
conciliar, que futuramente seria relevante para a sua ação pastoral na Diocese
de Milão.
Sendo assim, em vinte e cinco de março, ele comunicou a Diocese de
Milão a sua decisão de convocar um concílio provincial, como previa o Con-
cílio de Trento. Diante disso, percebe-se que o desejo do serviço episcopal em
Carlos era algo que começava a consolidar-se. Nesse período ele anunciou o
nome de seu vigário, Nicolau Ormaneto1, sacerdote da Diocese de Verona.
1 Michel de Certeau, citando a figura de Ormaneto, destaca que ele fez milagres na Diocese
de Milão, pois organizou um sínodo diocesano, com um programa de aplicação dos decretos

89
(CERTEAU, 1977, p. 263).
O período romano foi concluído em dezembro de 1565; Pio IV mor-
reu mais ou menos dois meses da sua entrada em Milão. O clima no mundo
católico era permeado pelo desejo de aplicação dos decretos de Trento, nesse
ambiente a figura de Carlo Borromeu, como homem de iniciativas de reforma,
gerou referimentos cada vez mais espontâneos.
Uma terceira fase na vida de Carlos Borromeu, 1566 a 1584, inicia-se
com a decisão de exercer na Diocese de Milão, de forma concreta, o seu episco-
pado. A sua vida era orientada por preocupações eclesiológicas, pela experiên-
cia ascética e por intensa atividade pastoral.
Partindo desse pressuposto, Alberigo ressalta que Carlos, iniciava uma
experiência não somente nova para ele mesmo, mas inédita para a Igreja (JE-
DIN; ALBERIGO, 1964, p. 127). Sob o mesmo ponto de vista, Jedin defende
que ele entrou para a história da Igreja, não por ser sobrinho de Pio IV, mas
justamente por sua atividade como arcebispo de Milão (JEDIN, 1971, p. 13).
Carlos entrou na Diocese de Milão em setembro de 1565, era chegada a
hora de confrontar-se com a diocese. Após a morte do tio, em nove de dezem-
bro de 1565, sairá da sua diocese em raras ocasiões: conclaves, peregrinações e
visitas a Suíça e Veneza. Foram dezoito anos empenhados no serviço pastoral
daquela província eclesiástica. As suas ações encontraram incentivo nas oposi-
ções das autoridades civis e políticas, das ordens religiosas, de parte do clero e,
contudo, foi solicitação de um crescente consenso popular.
O bispo, neste contexto demonstrava, mediante suas ações, uma cons-
ciência a respeito da necessidade de uma organização coerente da sua diocese,
especialmente para poder resistir diante das interferências do poder temporal.
Partindo desse pressuposto, percebe-se que o seu objetivo era transformar o
clero em um “corpo”, articulando uma organização e uma ideologia religiosa
mobilizadora, o primeiro elemento deveria ser uma administração eficaz, o ou-
tro seria a pregação com autoridade. Através desses elementos, ele foi capaz de
promover uma conexão entre gestão institucional e uma capacidade de crer e
de fazer com que o povo a ele confiado, também cresse. Durante o seu episco-
pado ele soube associar política e espiritualidade.
A pastoral de Carlos Borromeu se consolidou através dos sínodos, estes
foram cerca de onze, dos concílios provinciais (1565, 1569, 1573, 1576, 1579,
tridentinos. No entanto, Carlos Borromeu conduzia juntamente com ele essas ações pioneiras,
mesmo estando a Roma.

90
1582), das visitas apostólicas realizadas nas dioceses sufragâneas (Cremona,
Bergamo, Vigevano e Brescia), da centralização milanesa e da restauração do
rito ambrosiano. Todos esses elementos propiciaram uma unificação do terri-
tório.
Borromeu foi construindo uma imagem que o fez ser “emido e admi-
rado”, seja pelos conflitos com o governo espanhol, seja a propósito do rito am-
brosiano ou por quaisquer de suas decisões a frente de seu governo episcopal.
Sobre isso, Carlos Bascapé, um de seus biógrafos e colaboradores, descrevendo
a ação inicial de Borromeu, afirmou que muitos de seus amigos eram preo-
cupados com a reforma de costumes que ele propunha, pois era vista como
extraordinária para aquele tempo. Estes temiam que tais ideais fossem frus-
trados, pois, eram vistos como muito difíceis de serem colocados em prática
(BASCAPÉ, 1965, p. 74-75).
Carlos Borromeu emanou inúmeros editos em execução dos decretos
tridentinos, dos concílios provinciais e dos sínodos diocesanos. Pode-se citar
como exemplo, aqueles sobre os livros proibidos, sobre a observância das fes-
tas, sobre o modo de fazer peregrinação aos santuários.
Certeau chama atenção para a caridade e a dedicação extraordinária
de Carlos, durante a peste de 1576, demonstrando que o bispo adquiriu uma
popularidade em resposta ao serviço em relação ao povo. Essa notoriedade não
era tanto devido a sua pessoa, mas fazia referência a sua função e as suas atitu-
des (CERTEAU, 1977, p. 267).
Partindo dessa perspectiva, pode-se perceber como Carlos Borromeu,
através de seus gestos, até mesmo de piedade, conseguiu suprimir certos bailes
e “superstições”. A sua religião era unida com a espiritualidade italiana, que não
era abstrata, mas se manifestava na piedade popular. Sendo assim, quando ele
guiava procissões de relíquias, professava-se devoto de santos, realizava pere-
grinações, conseguia atingir os seus diocesanos mediante essa integração da
religiosidade popular.
O cardeal, que não passaria despercebido pela história da Igreja, deu
início a seus passos finais em outubro de 1584, quando se encontrava a Sacro
Monte de Varallo para os seus exercícios espirituais. Sofrendo de ataques de
febre, em vinte e oito de outubro inaugurou o colégio Papio, no dia primeiro de
novembro celebrou sua última missa a Arona e no dia seguinte foi transportado
para Milão. Sua morte ocorreu no dia seguinte, foi sepultado no dia sete de no-

91
vembro próximo ao altar maior da catedral de Milão. No entanto, a sua vocação
ainda iria ser levada adiante, pois posteriormente seria canonizado em 1610, e
ao longo dos séculos sucessivos, seria relembrado como um modelo de bispo,
exigente e vigoroso, que levou a frente a reforma da Igreja em tempos difíceis.

O Concílio de Trento

Esta pesquisa, busca observar as Instructiones fabricae de Carlos Bor-


romeu lançadas em um período posterior ao Concílio de Trento, porém, pro-
fundamente marcado pelas discussões ocorridas nesta assembleia conciliar.
Portanto, antes de realizar uma análise crítica sobre essa fonte e seu uso, é ne-
cessário conhecer o cenário eclesiástico que a gerou.
O Concílio de Trento, foi convocado pelo papa Paulo III em treze de
dezembro de 1545, ele teve início aparentando uma certa fragilidade, devido as
circunstâncias difíceis e contraditórias, como a constante tensão entre impera-
dor e pontífice, a oposição ativa dos protestantes, um certo ceticismo da parte
das Igrejas nacionais, todos estes receios foram sentidos pela Cúria romana
(PROSPERI, 2001, p. 44-50).
No entanto, apesar das conturbadas sessões, as mudanças de sede, as
fervorosas discussões, conseguiram criar uma personalidade para a Igreja, que
influenciaria até os próximos concílios.
O primeiro período tridentino (1545-1548) foi caracterizado por dez
sessões iniciais, nas quais foram discutidos os decretos sobre a doutrina católi-
ca que aborda a inspiração da Sagrada Escritura, o valor da tradição, o pecado
original, a justificação e os sacramentos, em particular o batismo e a crisma.
Após a votação sobre a justificação, Gerônimo Fracastoro, o médico do
concílio, anunciou o perigo de uma epidemia a Trento, defendendo a necessi-
dade de transferência da assembleia conciliar, sendo assim, esta foi transferida
para Bolonha. No entanto, de acordo com Sérgio Pagano, esse fato teria gerado
dúvidas sobre o real motivo da mudança, colocando em questão se a motivação
fosse realmente a saúde pública (PAGANO, 2014, p. 407).
Em Bolonha os poucos padres conciliares e teólogos presentes empe-
nharam-se em discussões que não produziram decisões concretas, porém, estas
não foram inúteis. Posteriomente as discussões sobre os sacramentos, debati-
das neste período, seriam retomadas nas próximas sessões. Esta primeira fase
92
concluiu-se entre poucos aplausos, com a desilusão do mundo protestante e
com algumas dúvidas no âmbito católico.
Com a morte do papa Paulo III, assume o pontificado Júlio III, que
guiou o segundo período tridentino (1551-1552). No dia primeiro de maio de
1551 teve início a XI sessão, porém, as discussões foram retomadas na XII ses-
são e se partiu do ponto em que tinham sido interrompidos os trabalhos em
1547: o decreto sobre a eucaristia. Devido as discussões realizadas em Bolonha
foi possível definir a doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia, contra
as teses protestantes. Na sessão XIV foi discutida a doutrina católica sobre os
sacramentos da penitência e da extrema unção. Na sessão XV foi aprovado o
decreto de prorrogação da publicação dos cânones e foi rebatida a validade do
salvo-conduto concedido aos protestantes alemães. Durante a sessão XVI, mo-
vidos pela insegurança que a situação política da Alemanha gerou, decidiu-se
suspender os trabalhos pelos próximos dois anos, ou até que se estabelecesse a
paz nas terras alemãs.
Com a morte de Júlio III, depois do breve pontificado de Marcelo II,
assume, como novo Papa, Paulo IV. Ele, depois de ter tentado reformar a Igreja
com o trabalho de comissões reunidas em Roma, sobretudo em função anti-
protestante, teve que reconhecer que o cenário político mudava e tornava mais
difícil a reforma da Igreja, mesmo tendo sido ativo na reforma dos costumes
dos eclesiásticos e do povo, pouco pode fazer para a reconvocação do Concílio.
Pio IV, sucessor de Paulo IV, comandou o terceiro e último período do
Concílio de Trento (1561-1563). Na Páscoa de 1561 o pontífice convocou nova-
mente para a cidade de Trento o Concílio, com a bula Ad Ecclesia regimen, de-
pois de enfrentar a resistência do imperador da França. Enquanto nos períodos
anteriores, houve uma grande influência da Alemanha, nessa terceira fase foi a
França, motivada pelo calvinismo e ação de Catarina Médici, que interferiu em
várias circunstâncias.
No entanto, mesmo diante da convocação papal para a primavera de
1561 e a presença de seus delegados em Trento, devido os vários conflitos com
a coroa francesa e espanhola, os trabalhos da assembleia conciliar tiveram iní-
cio somente em janeiro de 1562; esta fase compreendeu as sessões XVII - XXV.
O terceiro período foi aberto com as discussões em torno do Index librorum
prohibitorum (Índice dos livros proibidos) de Paulo IV.
Na XXI sessão, discutiu-se sobre temas cruciais para a reforma, quais

93
como a comunhão eucarística para os leigos, a doutrina sobre a eucaristia, o
sacramento da ordem, o sacramento do matrimônio, o purgatório, a invocação
dos santos, a reforma dos religiosos, as indulgências e a residência dos bispos.
Importante destacar que, no que se refere a reforma do clero, os câno-
nes que apresentavam a figura do bispo e do sacerdote, chamavam a vivência da
cura animarum e demonstravam a íntima união entre o sacramento da ordem
e da eucaristia. Nesse contexto, as funções pastorais do bispo, assumem uma
relevância superior àquelas jurisdicionais e administrativas, a imagem episco-
pal passou a ser unida a residência e ao cuidado com os seus diocesanos. Nes-
sas discussões, houve grande participação e influência a figura de Bartolomeu
Martyribus, como já foi apresentado no capítulo anterior, que influenciou a
imagem de bispo que Carlos Borromeu assumiria na diocese.
A última sessão do concílio deveria ocorrer na metade de dezembro,
mas com a chegada da notícia da doença de Pio IV, ela foi celebrada entre o dia
três e quatro de dezembro de 1563.
Aprovados os decretos tridentinos em junho de 1564, no mesmo ano
foi lançado o Index librorum prohibitorum. Dois anos depois publicou-se o ca-
tecismo, o breviário em 1568, o missal em 1570 e, enfim, a nova versão latina
da bíblia, a Vulgata sisto-clementina, entre 1590 e 1604.
Os estudiosos que abordam a temática do Concílio de Trento, mesmo
que façam um juízo positivo ou negativo, não ignoram o grande impulso que os
decretos tridentinos propiciaram a vida católica nas várias igrejas locais, tanto
da Europa como em outros países. Outro aspecto relevante, é que os vários
pontífices que sucederam se empenharam para difundir os decretos e preocu-
param-se com sua aplicação.
Martina, abordando o significado histórico do Concílio de Trento,
apresenta os três motivos essenciais para considerá-lo como um fato importan-
te para a história da Igreja:

Esse colocou em evidência a forte capacidade de recuperação da Igreja, vito-


riosa em uma grandíssima crise; reforçou aquela unidade dogmática e dis-
ciplinar que, mesmo minada muitas vezes pelas forças do galicanismo e dos
fenômenos afins, sobretudo se comparada a oposta, todavia, contemporânea
evolução das correntes protestantes; enfim, esse abriu uma nova época na his-
tória da Igreja, e em certo modo determinou os traços essenciais do século

94
XVI até os nossos dias2. (Tradução nossa).

Partindo de um juízo símile, Sérgio Pagano, destacou que o concílio


esclareceu os principais dogmas de fé, então controversos, com tal autoridade
que não deixou espaços para dúvidas, quais fossem as posições pessoais dos
teólogos ou de alguns bispos (PAGANO, 2014, p. 416). Partindo desse pres-
suposto, pode-se perceber que com os seus numerosos decretos de reforma, o
Concílio de Trento reforçou a prática cristã dos sacramentos, a autoridade dos
bispos e declarou necessária a formação do clero e a exigência de uma nova
conduta moral.
Contudo, o que este tópico busca apresentar, é que Trento foi, no seu
complexo, um dos concílios mais reformadores da história da Igreja, mesmo
com suas fragilidades e limites, talvez inevitáveis pelo tempo em que foi cele-
brado. Para a realização de tal objetivo, o Concílio defendeu que a pastoral se
sustentaria em dois pilares: os bispos a frente das suas dioceses e os párocos nas
suas paróquias.
Partindo dessa perspectiva, ao abordar uma temática ampla como
Concílio de Trento, bem como, as suas decisões e aplicação, é necessário com-
preender como as Instructiones fabricae de Carlos Borromeu surgiram nesse
contexto, observando que dentre os vários decretos tridentinos, não há um es-
pecífico para a construção das igrejas.
Entretanto, em alguns cânones, por exemplo, os que se referem ao sa-
cramento da Eucaristia, os padres conciliares chamaram atenção para a ne-
cessidade de preocupar-se com a dignidade do lugar onde se realiza os ofícios
divinos. Os cânones V e VII, emanados durante a XXI sessão, defendem a ne-
cessidade de que as igrejas sejam mantidas em uma condição decorosa, além
disso, incentiva os bispos a repararem e restaurarem as igrejas paroquiais que
estivessem em ruínas.
Partindo desse pressuposto, é preciso perceber a importância do decre-
to: De invocationes, veneratione et reliquiis sanctorum, et de sacris imaginibus
(A invocação, a veneração às relíquias dos santos e as imagens sacras). Este foi

2 Esso mise in evidenza la forte capacità di ripresa della Chiesa, vittoriosa di una grandissima cri-
si; rafforzò quell’unità dogmatica e disciplinare che, seppur minacciata più volte in seguito dalle
forze centrifughe del gallicanesimo e dei fenomeni affini, spicca soprattutto se paragonata all’op-
posta eppure contemporanea evoluzione delle correnti protestanti; infine, esso aprì una nuova
epoca nella storia della Chiesa, e in certo modo ne determinò i tratti essenziali dal Cinquecento
ai giorni nostri. (MARTINA, 1993, p. 254).

95
emanado na última sessão do Concílio e, impulsionou a arte, mas também a ar-
quitetura. Os padres conciliares, respondendo a objeções antigas e reformistas,
precisaram que a natureza de tal veneração, afirmando que, esta não ocorria
porque se cresse que elas fossem uma divindade, mas para honorar aqueles que
as imagens representam.
Em um contexto posterior as Instructiones fabricae, em 1582, o bispo
de Bolonha, Gabriel Paleotti, confirmando o posicionamento iconográfico da
Igreja, produziu uma obra intitulada: «Discurso em torno às imagens sacras e
profanas». Essa obra traduz as disposições conciliares tridentinas sobre a expo-
sição de imagens sacras nas igrejas para a veneração dos fiéis, porém, inspirado
na obra Borromaica. Um texto que respirava os temores de uma época, e por
isso, concentrou sua atenção sobre os abusos iconográficos.
Prosperi citando Paulo Prodi, afirma que uma interpretação do espírito
tridentino, em um uso didático das imagens, foi a obra composta por Gabriel
Paleotti, pois a ele deve-se o projeto de um verdadeiro e próprio índice das
imagens proibidas e daquelas consentidas. (PRODI, 2014, p. 163).
Esta obra deve ser ressaltada, porque insere-se em um contexto próxi-
mo as Instructiones fabricae, que assim como as indicações de Paleotti, foram
parte do programa radical de interpretação dos decretos tridentinos realizados
pelo arcebispo de Milão. Paleotti, assim como Borromeu, demonstrou através
dos Discursos, o desejo de realizar a reforma interna da sua diocese. Os encon-
tros entre os dois bispos, se tornaram mais frequentes especialmente no ano de
publicação dos Discursos.
De acordo com Francisco Repishti, se para Carlos Borromeu o seu
objetivo era proclamar a exaltação da magnificência das igrejas em todos os
seus aspectos, uma das questões mais duramente atacadas pelos protestantes,
Paleotti destacava e legitimava sobretudo o aspecto doutrinal da pintura, pro-
curando na história da igreja as justificações para essas escolhas. Diante disso,
pode-se observar que o concílio obteve uma grande influência sobre a arte eu-
ropeia (NICCOLI, 2015, p. 445-480).
Mesmo diante dos decretos gerais emanados pelos padres conciliares
sobre o uso das imagens, a arte do século XVI sentiu as mudanças religiosas,
especialmente a nova pastoral.
Nesse contexto, segundo Anthony Blunt, Carlos Borromeu foi o único
autor que aplicou ao problema da arquitetura o decreto tridentino. Ele apre-

96
senta as Instructiones fabricae como algo extraordinário, pois tratou meticulo-
samente todos os problemas relativos ao edifício eclesiástico (BLUNT, 1966, p.
138).
Deste modo, pode-se dizer que o Concílio procurou dar uma resposta
a Reforma, antes de tudo no campo dogmático com os cânones específicos,
sobre os sacramentos e a sua eficácia, o valor da fé e das obras em relação a
justificação e a salvação eterna, a doutrina do purgatório, o valor da Sagrada
Escritura e do magistério da tradição, o culto dos santos. No que se refere ao
campo pastoral, a aplicação da legislação tridentina em todas as dioceses, desde
as menores paróquias até os monastérios e conventos, construiu aquilo que é
conhecido como “disciplina” tridentina (PAGANO, 2014, p. 413)
As Instructiones fabricae de Borromeu devem ser consideradas dentro
desta perspectiva histórica, marcada pelo contexto tridentino e pela reforma
protestante. A sua publicação e aplicação oferece a oportunidade de reler a evo-
lução de um sistema que se movimenta, pois, o arcebispo de Milão as aplicou
em confronto com uma segunda geração protestante. No entanto, as ideias da
primeira geração influenciariam as decisões do Concílio de Trento, mas tam-
bém as ações de Borromeu.

As Instructiones fabricae e a construção das igrejas

As Istructiones fabricae foram publicadas por Carlos Borromeu em Mi-


lão, no norte da Itália. Este lugar vivenciava um problema comum, a fronteira
entre as convicções católicas e protestantes que se opunham e se relativizavam.
Elas também estavam inseridas em um mundo intermediado por algo que de-
saparecia e algo que iniciava. Essa situação gerava uma sensação de incerteza e
insegurança, portanto, pode-se dizer que elas foram elaboradas em um contex-
to de passagem. As suas indicações para a construção dos templos, bem como,
o zelo pelos objetos eclesiásticos definidos nos mínimos detalhes, são fixadas
em angústias e desejos inseparáveis da influência social.
Neste contexto, após um reconhecimento minucioso da Diocese de
Milão realizado por Carlos Borromeu, apresentados nos sínodos e concílios
provinciais, o texto das Instructiones fabricae et supellectilis ecclesiasticae, com-
posta por dois livros, transcritos por Ludovico Moneta durante as convocações
provinciais de 1572 e 1576, revistos e traduzidos em latim por Pedro Galesino,

97
foram publicadas em 1577.
As Instructiones fabricae3 possuem duas partes, a primeira é compos-
ta por trinta e quatro capítulos que, se referem a construção das igrejas e os
objetos necessários: posição da igreja; sua forma; os muros externos; o átrio,
pórtico; o teto; o pavimento; as portas; as janelas; a escada e os degraus da igre-
ja; a capela mor; o altar mor; o coro; o tabernáculo; capelas e altares menores;
elementos comuns às capelas e altares maiores e menores; os lugares e vasos nos
quais são colocados as relíquias; as imagens e as pinturas sacras; as lâmpadas e o
lampadário; o batistério; o sacrário; pia para água benta; o ambão e o púlpito; o
confessionário; a divisão da igreja; o posto para as mulheres; os campanários e
os sinos; os sepulcros e os cemitérios; a sacristia; um lugar para guardar objetos
diversos; o oratório onde às vezes se deve celebrar a missa; os oratórios onde
não se celebra a missa; a igreja das monjas; o monastério feminino; algumas
precauções sobre o edifício eclesiástico.
A segunda parte refere-se as alfaias eclesiásticas, ou seja, os objetos ne-
cessários para os sacros ministérios, ela é composta de cinco capítulos: a alfaia
da igreja catedral; alfaia da igreja colegiada; alfaia da igreja paroquial; a alfaia
da igreja simples e da sua sacristia; homogeneidade dos paramentos e dos or-
namentos; a forma das alfaias.
Em síntese, pode-se dizer que as Instructiones fabricae iniciam com a
recomendação que a Igreja seja construída em um lugar elevado, em todo caso
que seja munida de uma escalinata de acesso para que possa se sobrepor em
relação ao seu em torno imediato (I capítulo). A fachada deve ser adornada de
figuras de santos e de modestos ornamentos. (III capítulo). No interno, se deve
dar muita atenção ao altar mor, que deve ser elevado e haver degraus (X capí-
tulo) e situado em um presbitério bastante espaçoso para que o sacerdote possa
realizar os ofícios divinos dignamente (XI capítulo). A sacristia deve estar liga-
da com a parte principal da igreja, não diretamente com presbitério, para que o
sacerdote possa realizar uma verdadeira e própria procissão em direção ao altar
mor (XVIII capítulo). Os transeptos podem ser transformados em capelas com
outros grandes altares para funções particulares (II capítulo). Ricos paramentos
sacerdotais devem acrescentar dignidade a função religiosa (II livro) e, porque
essa deve ser convenientemente iluminada, os vitrais da igreja necessitam em
geral serem munidos de vidros não coloridos (VIII capítulo). Tudo deve ser
3 Cf. Borromeo, Carlos. Instructionum fabricae et supellectilis ecclesiasticae, libri II in Monumen-
ta Studia Instrumenta Liturgica, vol. VIII, Milano: Editrice Vaticana, 2000.

98
obtido com meios apropriados, sem uma pompa vã e sobretudo sem nada de
profano ou pagão (XXXIV capítulo). Tudo deve estar em consonância com a
tradição cristã: a planta da igreja deve ser em forma de cruz, não circular se-
gundo o uso pagão. (II capítulo).
Para a execução destas prescrições, o arcebispo de Milão possuía entre
os seus colaboradores: pintores, escultores, arquitetos, musicistas, teólogos, his-
tóricos, tradutores, linguistas, diplomáticos e muitos outros. Conforme Fabío-
la Giancotti, se Carlos não tivesse convocado todos estes profissionais, muitos
edifícios não teriam sido construídos. Para esta autora, as Instructiones fabricae
não são um tratado de arquitetura, mas um dispositivo para o trabalho. (GIAN-
COTTI, 2010, p. 163).
Os construtores deviam seguir as normas e as indicações para que es-
tes objetivos fossem atingidos. Todos estes profissionais contribuíram para a
magnificência dos edifícios sacros, e, para a manutenção do bom andamento
das obras, pois uma questão não articulada, um problema reenviado, poderia
comprometer todo o projeto. Recomendações úteis, simples no seu uso. Quem
sabia ler encontrava, indicações para a oração, para o acolhimento, quem não
sabia ler, se surpreendia diante de uma pintura, de uma estátua, que fazia refletir
sobre os mistérios da fé, além disso, reconhecia-se os lugares dos sacramentos.
Stefano Della Torre, também rebate a ideia que as Instructiones fabricae
sejam um tratado de arte, mesmo que seu conteúdo trate da “fabricae eccle-
siasticae” e faça referência a escritos de arquitetura. Segundo este autor, um
bispo redigir instruções voltadas para seu clero era algo previsível e coerente
com a ideia do bispo, que depois de Trento, passou a ocupar-se da sua diocese
(DELLA TORRE, 1997, p. 218).
O objetivo do arcebispo de Milão converge para a arquitetura enquan-
to lugar de celebração litúrgica reformada pelo espírito tridentino. A leitura
do texto em si, porta a percepção de um conjunto extremamente consistente
de princípios e normas que, ao visarem a funcionalidade da ordem do culto,
criam consequentemente uma maior clareza e ordenação do espaço eclesiástico
para o desenvolvimento dos ritos. No entanto, trata-se de um texto simples, em
virtude da pouquíssima formação cultural, que a maioria do clero, possuía em
1577.
As visitas pastorais realizadas por Carlos, juntamente com outros fato-
res, estão na gênese destas indicações, pois a observação sobre estes atos induz

99
ao reconhecimento de um dos principais objetivos da reforma da “fabricae ec-
clesiasticae”: a concessão de um mínimo de decoro as igrejas.
De acordo com Della Torre, os casos mais frequentes eram aqueles
em que o edifício sacro era absorvido, pela união entre a prática econômica
e a natureza: paredes cobertas de árvores trepadeiras, que muitas vezes, pro-
duziam frutos; os cemitérios serviam de passagem para os animais; existiam
estábulos, poleiros, curral de porcos, tudo isto anexado às igrejas. Além disso,
muitas delas eram infestadas de ninhos de passarinhos e serviam de depósito
para mercadorias diversas ou redes de pesca. As visitas, por outro lado, ainda
demonstram que muitos antigos edifícios sacros estavam em ruínas, com o teto
por terra e as paredes em estado de alerta (DELLA TORRE, 1997, p. 218). Com
base nisso, pode-se dizer que muitas das instruções de Carlos Borromeu são
referências a um nível de gestão racional, ou seja, uma tecnologia. Porém, ob-
servá-las somente do ponto de vista prático é, de certo modo, redutivo.
As relações das visitas pastorais, bem como, seus decretos demonstram
a situação em que se encontravam as igrejas da Diocese de Milão no século
XVI. Em suas visitas ele pode constatar como o culto, e o edifício onde este se
realizava, em algumas áreas encontrava-se em situação lastimável.
Sendo assim, pode-se dizer que para entender as Instructiones fabricae
é necessário observar vários elementos, como: as visitas, a liturgia ambrosiana,
a celebração dos sacramentos, a celebração da missa, as cartas pastorais, as
indicações aos confessores.
A construção da igreja é circundada por várias questões que envolvem
a celebração eucarística. Por consequência, os pontos mais significativos deste
documento são aqueles que se referem a relação entre a nave e o presbitério, a
conformidade entre o altar e o tabernáculo. No centro das atenções é colocado
o altar, não tanto como monumental na sua forma, quanto a sua união com
o tabernáculo, pois este, era custode permanente da eucaristia. Por isso, esta
fusão é um dos elementos caracterizantes dos templos. A estrutura que acolhe,
deveria ser integrada com o que ocorre; Carlos Borromeu era defensor e guar-
dião da ideia de que na igreja, ocorria um milagre. Portanto, tudo que cercava
a celebração devia provocar essa percepção.
As obras dos pintores, escultores, arquitetos, pregadores, não deviam
somente recordar o milagre, mas propô-lo na sua unicidade. Essas ações sur-
giram no contexto das polêmicas entre católicos e os protestantes, discutidas

100
no Concílio de Trento, que não aceitavam a doutrina da transubstanciação,
que defendiam a consubstanciação, ou os sacramentais - ideia calvinista. Além
disso, existiam entre os católicos aqueles que eram contrários a comunhão fre-
quente (PROSPERI, 2001, p. 117).
Danilo Zardin, abordando a temática da fé de Carlos Borromeu, en-
fatiza que esta possuía duas finalidades: reafirmar a sua centralidade, porém,
destacando a superioridade do poder sacerdotal em relação a sociedade cristã
que, naquele contexto, absorvia a pluralidade das instituições e dos âmbitos
jurisdicionais, através da dialética entre espaço sagrado e momento profano
(ZARDIN, 2010, p. 25).
Partindo dessa perspectiva, é relevante ressaltar que na igreja, como
edifício, se reflete a hierarquia da Igreja como instituição, de tal forma que, se
distingue o povo do clero, mas também, os fiéis dos catecúmenos: determinada
pela posição do batistério. A igreja pós-tridentina se torna um espaço unitário,
o lugar da celebração eucarística, e as divisões entre suas várias partes não de-
vem impedir ao fiel de contemplar a celebração e de escutar a pregação.
Além do aspecto prático e litúrgico, do mesmo modo, é relevante ob-
servar os elementos simbólicos presentes no texto, pois algumas destas instru-
ções, demonstram um retorno as tradições: a planta em cruz latina, o pórtico
em fachada, a cobertura em bronze, o teto aconselhado tem como base as anti-
gas basílicas. O convite a inspirar-se nos vestígios dos antigos edifícios sacros,
presente no fim da página introdutiva, é um dos elementos mais caracterizantes
do texto Borromaico (ACKERMAN, 1986, p. 577).
O impacto da reforma de Carlos Borromeu foi expressivo, mesmo que
os decretos não fossem prontamente executados, e a sua influência foi decisiva.
Existia uma veneração pelos antigos testemunhos de culto, em especial pelas
basílicas dos tempos antigos.
O arquiteto que percebe os anseios de Borromeu, não era um milanês,
mas de Bolonha, conhecido por suas obras de arte: Pellegrino Tibaldi, chamado
comumente como Pellegrino Pellegrini.
Partindo desse pressuposto, é válido destacar que apesar da raciona-
lidade que guiou a obra de Carlos Borromeu na reforma dos edifícios sacros,
deve-se recordar que seu gosto artístico foi formado em Roma como cardeal de
Pio IV. Ali, pôde ter contato com eclesiásticos e homens de cultura, foi quando
surgiu uma admiração pelas obras de Michelangelo. Conforme Della Torre, é

101
notório que Borromeu, ao confiar a Pellegrino a realização de tantas obras e
o escolhendo como arquiteto pessoal, pensasse nele como o homem capaz de
reviver o esplendor de Michelangelo nas terras lombardas (DELLA TORRE,
1997, p. 224).
Conforme Della Torre Carlos Borromeu foi o principal incentivador
de Pellegrino, sendo este conhecido pela crítica como o “arquiteto de São Car-
los”, devido ao fato que, os dois personagens teriam vivenciado uma sintonia,
aproximados ora pela severa introspecção, ora pela busca comum de inovar em
contraste com modelos mundanos, ora somente pelo projeto de uma imagem
persuasiva do poder religioso (DELLA TORRE, 1994, p. 317).
As igrejas paroquiais eram objetos de cuidado dos bispos, por isso, não
se tratava somente de verificar a execução da norma, mas também de promover
o decoro e a funcionalidade necessária. Nesse sentido, Borromeu, na conclusão
do primeiro livro, afirma que: “os prefeitos das fábricas e os arquitetos, antes
de iniciar os trabalhos, consultarão todas estas prescrições, mas sobretudo será
responsabilidade do Bispo velar para que esses, na construção da igreja, não
cometam aqueles erros”4 (Tradução nossa).
As Instructiones fabricae se distinguem em duas esferas de competên-
cia, deixando ao arquiteto a sua especificidade disciplinar, enquanto se evoca ao
controle da ordem eclesiástica os aspectos práticos e, em parte, também aqueles
simbólicos. Sendo assim, em primeiro lugar, a autoridade religiosa deveria estar
atenta, para evitar que coisas profanas estivessem efetivamente dentro dos tem-
plos, o modelo deveria ser encontrado no cristianismo primitivo. Essas indica-
ções disciplinares, colocava em jogo a competência do artista. De acordo com
Della Torre aquilo que Carlos Borromeu queria era o panorama da segunda
Roma, reformando-a, concretizá-la em Milão (DELLA TORRE, 1997, p. 225).
Diante de todas as questões observadas até o momento, deve-se con-
tinuamente questionar-se se é correto utilizar a figura de Carlos Borromeu e
suas Instructiones fabricae, como um denominador único de uma época, de
uma sociedade, de um fenômeno histórico. Contudo, existe a consciência que
a sua ação reformadora encontrou fortes resistências e muitos colaboradores,
e que, no final, tornou-se aceitável pois não refutou por completo a cultura de
seu tempo, logo porque, ele era um homem dentro de um sistema social que se

4 I prefetti della fabbrica e gli architetti, prima di iniziare i lavori, si consulteranno su tutte queste
prescrizioni, ma soprattutto sarà cura del Vescovo sorvegliare che essi, nella costruzione della
chiesa, non incorrano in simili errori. (Borromeo, 2000, p. 195)

102
transformava.

Conclusão

Ao refletir sobre o complexo da documentação acessível, oferecida pela


pastoral de Carlos Borromeu, pode haver uma tendência de transcrever em
termos antagônicos o seu governo, sem perceber ou ressaltar que ele agia em-
basado em um primado da autoridade sacerdotal e que guiava uma sociedade
que era cristã e que queria permanecer assim, independente da divisão que a
reforma produzira.
Portanto, mediante as leituras e observações realizadas, tomando como
base a vida e obra de Borromeu, especialmente as suas Instructiones fabricae,
compreende-se aquilo que Certeau destaca, quando afirma que “o discurso so-
bre o passado tem como estatuto ser o discurso do morto” (CERTEAU, 2011, p.
51), porquanto o que circula não é senão o ausente, enquanto que o seu sentido
é o de ser uma linguagem entre o narrador e os seus leitores, quer dizer, entre
os presentes, pois, nem o arcebispo de Milão nem as pessoas que pensaram e
aplicaram as Instructiones fabricae no século XVI estão presentes.
As Instructiones fabricae operam a comunicação dos homens de hoje
com elas pela recuperação que se faz do passado. Elas juntamente com seu au-
tor são as imagens de uma troca entre os vivos. Elas, como objeto desta pes-
quisa puderam demonstrar toda uma latência, presente na sua idealização, pu-
blicação e aplicação, que muitas vezes não aparece explicitamente, pois é uma
interlocução que salta fora do discurso emitido.
Nesse sentido, pode-se perceber que as Instructiones fabricae adquiri-
ram um papel importante para a Igreja, sobretudo para o sistema social em que
elas foram publicadas, pois aparecem como um ponto no qual se ramificam as
artes, a arquitetura, a economia, as disputas religiosas e políticas. Elas fazem
parte de um contexto de trocas simbólicas, que influenciadas pelos novos ares
que fomentavam desejos de ordenação e superação dos conflitos vivenciados
no período, desenvolveram um cenário de disciplinamento da sociedade, o que
ajudou a alterar não somente as estruturas físicas, mas as tradições e relações
pessoais.
Contudo, pode-se concluir que a interferência da Instructiones fabri-
cae na Diocese de Milão, por meio de seu arcebispo, não se resumiu à questão

103
religiosa, mas se estendeu ao cotidiano e às suas subjetividades. Diante disso,
percebe-se estas orientações como uma marca que se estende no tempo, espe-
cialmente a partir das suas reedições, pois ela passou a ser vista como referência
para a liturgia e arquitetura religiosa tanto do período como dos tempos atuais.
A trajetória aqui apresentada desejou oferecer caminhos para novas
indagações, através das questões a serem mais bem exploradas e pelos pontos
ainda não suficientemente aprofundados. São inúmeros os temas abordados, já
que Carlos Borromeu atuou em praticamente todos os setores da ação pastoral
da Igreja. Apesar das variadas dimensões deste trabalho, almejou-se oferecer
não conclusões rígidas, mas suscitar críticas e dúvidas que criem outros cami-
nhos para essa história contada a partir de um tempo e um lugar social.

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106
“Como se deve escrever a
História do Brasil”: panorama e perspectivas

Jônatas Lincoln Rocha Franco


Graduado em História pela Universidade Federal do Piauí. Especialista em
História pela FACEC. Mestrando em História na UFPI.

Fernanda da Costa Sousa Santos


Graduada em História pela Universidade Federal do Piauí. Especialização em
andamento pela Faculdade Metropolitana.

Introdução
Para analisar a historiografia brasileira, é necessário antes estabelecer
questionamentos que direcionem a narrativa, indagações como: quais as ma-
trizes de pensamento que influenciaram a produção de um conhecimento his-
tórico sobre o Brasil? Quais os historiadores que tentaram construir sentindo à
história do Brasil? Quais os meios que esses intelectuais estão produzindo, ou
produziram historicamente? Que modelo de escrita de história foi estabeleci-
do? Por quais instituições? Quais vozes se sagraram vencedoras? Quais foram
silenciadas? Essas inquietações, entre muitos outras, auxiliam na promoção de
análises em torno da historiografia e as sucessivas tentativas de construção de
identidade para a nação.
Como resultado destas reflexões é urgente que se pontue, a partir de

107
um olhar panorâmico sobre a escrita institucionalizada da história no Brasil, as
razões que levaram diversos intelectuais a produzir um conhecimento sobre a
nação. Nesse exercício é fundamental partir da constituição do Instituto His-
tórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, como primeiro empreendimento insti-
tucionalizado de se escrever História no Brasil. Como que, a partir de seus an-
seios, figuras localizadas em um determinado extrato temporal se propuseram
a pensar a respeito das origens históricas da nação; como o país foi constituído
politicamente, socialmente, etnicamente, eticamente, e de que modo a escrita
da história auxiliou nesse processo de elaboração do conceito de nação.
Com a marcha inexorável do tempo, novas questões surgiram; indaga-
ções e problemas específicos de outros recortes. E nesse prisma, a produção de
um conhecimento histórico foi paulatinamente sendo alterado e gradativamen-
te promovidas novas interpretações em diferentes lugares sociais que se propu-
seram a refletir sobre a identidade do Brasil. Quem era, afinal, o povo brasilei-
ro? Seria a miscigenação em bases afetivas propostas por Gilberto Freyre em
sua clássica obra Casa Grande & Senzala ou o homem cordial apresentado por
Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil?
A partir desse olhar panorâmico, propõe-se refletir sobre a escrita da
história no chamado tempo presente. Novos objetos, novas análises, novas
perspectivas e antigas questões. Por que escrever história? Quais os motivos
que impulsionam o historiador a continuar a refletir sobre sujeitos, temporali-
dades, metodologias, teorias, abordagens? Por que se predispor a pensar sobre
história em tempos de ebulição? O presente artigo se dispõe a realizar esse exer-
cício de situar o oficio do historiador e ao mesmo tempo o pôr em perspectiva,
buscando compreender os pretextos que inspiram a se escrever história.

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a escrita da


História do Brasil
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro representou na historio-
grafia a primeira tentativa de estabelecer uma identidade nacional a partir da
escrita da história. O próprio “estabelecimento de um laço entre o trabalho do
instituto e a afirmação de um patriotismo, ou seja, de uma identidade nacio-
nal, não parece algo excepcional” (GUIMARÃES, 1988, p.2). No período em
que o IHGB foi criado, os debates acerca das ideias de nação e de civilização
estavam a pleno vigor na Europa e isso foi traduzido em direcionamentos para
108
os inúmeros intelectuais que passaram a pensar e escrever sobre o Brasil. Essas
influências são analisadas como fatores determinantes nesse modelo de produ-
zir história:

Assim, é no bojo do processo de consolidação do Estado Nacional que se via-


biliza um projeto de pensar a história brasileira de forma sistematizada. A
criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) vem
apontar em direção à materialização deste empreendimento, que mantém
profundas relações com proposta ideológica em curso (GUIMARÃES, 1988,
p. 2).

O desejo de escrever uma história do Brasil, com um projeto de nação,


valorizando e buscando avidamente conceber uma identidade nacional, fez do
IHGB um espaço que validou os discursos históricos acerca dessas noções. O
conceito criado era entendido como consequência do processo de civilização,
e a escrita da história, legitimada por um lugar social de produção, acabara por
validar a própria ideia de nação. A partir disso, os historiadores ligados ao Ins-
tituto passaram a produzir suas pesquisas. Era necessário laborar uma história
de caráter nacional que:

A partir da constatação do “caos obscuros” planejava o IHGB trazer “luz e or-


dem” à história. A metáfora utilizada correspondia perfeitamente ao espírito
da época. “Ordem” era também a meta dos estadistas e políticos, ocupados em
fortalecer o Estado monarquista e constitucional, a fim de manter distância
em relação ao caos das nações republicanas. O presente era entendido como
uma época que carecia de luz, clareza e, finalmente, identidade. Trata-se como
expressou Januário da Cunha Barbosa, da revelação do nosso “verdadeiro ca-
ráter nacional”. E o IHGB deveria contribuir nesse sentindo (GUIMARÃES,
2011, p. 116).

O trecho do texto de Salgado Guimarães (2011) apontava para a in-


tenção de se escrever uma história que estabelecesse sentidos para o conceito
de nação, tirando o Brasil da época de um obscurantismo, de uma “falta de
ordem” e principalmente da ausência de uma “identidade brasileira”, ou seja,
as contribuições do Instituto deveriam se concentrar em torno da formação
da identidade nacional. Nesse sentindo, é possível inferir que a produção de
conhecimento histórico foi instrumentalizada com interesses específicos de um

109
tempo, e esse aparelhamento se deu a partir de um lugar social de fala que legi-
timava os discursos ali produzidos.
Cabe ressaltar os interesses de se lançar “luz” e “ordem” ao “caos” es-
tabelecido até então. A modernidade europeia, baseada intelectualmente no
iluminismo, tinha claro em seus fundamentos teóricos que só a partir da ra-
zão histórica (HEGEL, 2011) o homem seria distanciado gradativamente das
“amarras da escuridão” que o prenderam no período medieval e seria lançado
para o progresso. As influências das escolas metódicas, ditas positivistas, são
percebidas durante esse recorte.
Esse exercício de escrita da história contou com características par-
ticulares, em especial quando se tratou dos primeiros textos produzidos para
o IHGB. O desejo de consolidar a ideia de nação era exportado da Europa da
época, assim como o conceito de história, que era entendido como Magistra
vitae (KOSELLECK, 2006). Essa perspectiva de história pode ser percebida a
partir da análise do texto de Von Martius: “por fim devo ainda ajuntar uma
observação sobre a posição do historiador do Brasil para com a sua pátria. A
história é uma mestra, não somente do futuro, como também do passado. Ela
pode difundir entre os contemporâneos sentimentos e pensamentos do mais
nobre patriotismo” (VON MARTIUS, 1845, p.19).
Essas particularidades ocorriam pela singularidade da construção de
uma identidade brasileira que se diferia das nações europeias, pois o corpo
social nos trópicos era até então marcada pelo trabalho escravo e a presença
de populações indígenas (CARVALHO, 2002). Para se escrever uma história
que abarcasse todas essas peculiaridades era necessário entender que essa “[...]
amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo como bran-
cos, mulatos, pretos livres e escravos, índios etc. etc. etc., em um corpo sólido e
político” (DIAS, 1972, p.174) ou seja, seria necessário colocar em pauta as três
matrizes étnicas que compunham o Brasil: os índios, os africanos e os portu-
gueses.

E, portanto, à tarefa de pensar o Brasil segundo os postulados próprios de


uma história comprometida com o desvendamento do processo de gênese da
Nação que se entregam os letrados reunidos em tomo do IHGB. A fisionomia
esboçada para a Nação brasileira e que a historiografia do lHGB cuidará de
reforçar visa a produzir uma homogeneização da visão de Brasil no interior
das elites brasileiras. E de novo uma certa postura iluminista - O esclareci-

110
mento, em primeiro lugar, daqueles que ocupam o topo da pirâmide social,
que por sua vez encarregar-se-ão do esclarecimento do resto da sociedade -
que preside o pensar a questão da Nação no espaço brasileiro. E aqui tocamos
em um ponto que nos parece central para a discussão da questão nacional no
Brasil e do papel que a escrita da história desempenha neste processo: trata-se
de precisar com clareza como esta historiografia definirá a Nação brasileira,
dando-lhe uma identidade própria capaz de atuar tanto externa quanto inter-
namente. Historiografia enquanto um instrumento de legitimação da nação
(GUIMARÃES, 1988, p 4).

Salgado Guimarães (1988) indica que os intelectuais em torno da or-


ganização do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro eram notadamente in-
fluenciados pelos ideais de nação promanadas da Europa, com destaque para os
franceses. É possível depreender os desejos de escrever uma história do Brasil
que reforçava a homogeneização da elite política, econômica e social naquele
extrato temporal. Este aspecto deve ser problematizado, em especial porque
esses comportamentos excluíram gradativamente dos debates diversos grupos
sociais promovendo um alijamento que já se dava na prática, desde o doloroso
processo de colonização brasileira. Esse exercício significou um procedimento
de marginalização simbólica, ou seja, uma exclusão também na ordem discur-
siva. Provavelmente essa tenha sido a principal função do IHGB: a partir da
pesquisa e escrita da história definir o que seria a nação brasileira, atribuindo a
ela uma identidade.

A estas perspectivas acrescentaríamos duas observações, que procuraremos


justificar: a) o IHGB resultou da ação de uma elite política “moderada” que
procurou institucionalizar o novo país, em meio a graves problemas; b) o pen-
samento político e histórico que norteou esta elite foi nitidamente historicista
(WEHLING, 1982, p. 7).

É no contexto desses “graves problemas” indicados por Arno Wehling


que o Instituto nasceu e iniciou suas produções e pesquisas. As influências es-
trangeiras sobre a formação de um pensamento social brasileiro, moldou as
narrativas de nação que foram desenvolvidas a partir desse lugar de fala. A vista
disso, é possível assinalar que essa produção discursiva suavizou a gravidade
dos problemas sociais que acompanhavam o país desde o início do processo de
colonização. Cabe destacar que, segundo a interpretação desses intelectuais que

111
formavam o corpo editorial do IHGB, o conceito de Brasil só passou a existir
após a invasão portuguesa nos trópicos. Esse entendimento, ignorou uma his-
tória vista de baixo (THOMPSON, 1966), o que decerto não fosse permitido
pelas condições históricas próprias daquele extrato temporal, contudo, as con-
sequências dessas análises podem ser notadas até o tempo presente.
Para que esse desejo de elaboração de uma escrita da história do Brasil
fosse posto em prática foi lançado um concurso que promovia a produção de
monografias que versassem sobre temas relacionados a constituição e origem
da nação brasileira, estimulando a “pesquisa e o recolhimento, nas províncias e
no exterior, de documentos relativos a formação brasileira” (WEHLING, 1982,
p. 11) dentre elas, a que ganhou destaque e foi publicada pelo Instituto em
janeiro de 1845, foi escrita pelo intelectual alemão Carlos Frederico Von Mar-
tius intitulada “Como se deve escrever a história do Brasil” (VON MARTIUS,
1845).
Não nos alongaremos em uma análise detalhada da dissertação que foi
premiada enquanto um dos primeiros textos publicitados pelo IGHB. Contu-
do, vale destacar pontos pertinentes para a escrita deste artigo. Um deles é de
onde parte a voz que diz “como se deve escrever a história do Brasil”? Ironica-
mente Carlos Frederico Von Martius era um alemão, que se propôs a pensar o
que era o país, onde e como se deu o processo de formação da nação. Caracte-
rística relevante, pois, coloca em evidência que essa aspiração de conceber uma
história brasileira não estava necessariamente ligado a um nacionalismo, pois o
texto premiado não era de um intelectual local.
Von Martius percorreu o Brasil durante três anos, o que, segundo ele,
lhe permitiu colher dados necessários para construir sua obra. Percorreu pelos
sertões entrando em contato com os tipos nacionais. Sua narrativa tem aspec-
tos científicos, com análises voltadas para o naturalismo. Martius escreveu em
sua dissertação uma espécie de mapa. Um mantra de um europeu para os de-
mais intelectuais brasileiros, ou de outros países que se propusessem a pensar
a nação nos trópicos, informando-os que para se escrever a história do Brasil
seria necessária uma pesquisa que respeitasse as diversidades dos espaços e que
essa produção cientifica valorizasse a variedade dos fatos. Essas características,
segundo o autor anteriormente mencionado, seriam de especial interesse para
os leitores europeus.
Martius descreveu em sua narrativa que a mistura de três raças compu-

112
nha os elementos da diversidade natural do Brasil. No seu esforço de pensar em
linhas gerais a História do Brasil ele elege o português, europeu, branco como a
chave mestra dessa engrenagem indicando-o como “descobridor, conquistador
e senhor”, como pode ser inferido no trecho a seguir:

Cada uma das particularidades físicas e morais, que distinguem as diversas


raças, oferece a este respeito um motor especial: e tanto maior será a sua in-
fluência para o desenvolvimento comum, quanto maior for a energia, número
e dignidade de cada uma das dessas raças. Disso necessariamente se segue
o português, que, como descobridor, conquistador e senhor, poderosamente
influiu naquele desenvolvimento (VON MARTIUS, 1845, p. 2).

Cabe destacar que o próprio Instituto tinha ligações políticas diretas


com a monarquia brasileira e isso explica o tom elogioso com os colonizadores.
Von Martius fez uma apologia ao império, fixando que o historiador patriota,
deveria escrever uma história que convencesse os seus leitores da “inexequibi-
lidade dos projetos utópicos” (VON MARTIUS, 1845, p. 19) dos republicanos
para a nação. Salientava que naquele momento era “verdadeira a necessidade
de uma monarquia em um país onde havia um grande número de escravos”
(VON MARTIUS, 1845, p. 19). Somente o imperador seria capaz de unificar
uma nação tão plural e diferente. Martius continuava com seus direcionamen-
tos para os futuros textos dos historiadores sobre o Brasil:

[...] deve o historiador patriótico aproveitar e toda e qualquer ocasião a fim


de mostrar que todas as províncias do Império por lei orgânica se pertencem
mutuamente, que seu próprio adiantamento se pode ser mais garantido pela
mais intima união entre elas. Justamente na vasta extensão do país, na varie-
dade de seus produtos, ao mesmo tempo que seus habitantes tem a mesma
origem, o mesmo fundo histórico, e as mesmas esperanças para um futuro
lisonjeiro, acha-se fundado o poder e grandeza do país. Nunca esqueça, pois,
o historiador do Brasil, que para prestar um verdadeiro serviço a sua pátria
deverá escrever como autor monárquico-institucional, como unitário no mais
puro sentido da palavra (VON MARTIUS, 1845, p. 19).

O historiador que quisesse prestar um serviço para a sua pátria ti-


nha que, necessariamente, na visão de Martius, assim como na perspectiva do
IHGB, ser um monarquista e em suas pesquisas defender a união do Império

113
brasileiro, ou seja, nesse aspecto, a escrita da história teria uma finalidade em
si: serviria a objetivos pragmáticos das elites políticas nacionais, conviria ao es-
tado e quem o governasse, e ascenderia nos corações dos cidadãos brasileiros o
fervor patriótico, unindo a nação e os direcionando para as rotas do progresso.

Como qualquer história que este nome merece, deve parecer-se com Epos! Só
de um lado verdadeiro que a Epos popular só é composto onde o povo ainda
se acha em desenvolvimento progressivo, então do outro lado não pudemos
duvidar que atualmente o Brasil é um objeto digno de uma história verdadei-
ramente popular, tendo o país entrado em uma fase que exige um progresso
poderoso; por isso, uma história popular do país vem muito a proposto, e
possa seu autor, nas muitas conjecturas favoráveis, que o Brasil oferece, achar
um feliz estimulo, para que imprima a sua obra todo o seu amor, todo zelo
patriótico, e aquele fogo poético próprio da juventude, ao mesmo passo que
desenvolva a aplicação e profundidade de juízo e firmeza de caráter, perten-
centes a idade juvenil e varonil. Munique, 10 de janeiro de 1843 (VON MAR-
TIUS, 1845, p. 20).

Em busca de uma identidade para o povo brasileiro: da


Casa Grande as Raízes do Brasil
Na virada do século XIX para o XX, novas questões foram sendo colo-
cadas em pauta. Obras de consideráveis proporções foram produzidas no Brasil
no início do século XX, cabendo destaque para Casa Grande & Senzala escrita
pelo intelectual pernambucano Gilberto Freyre, obra de sucesso incontestável,
não apenas nos círculos acadêmicos brasileiros, mas sendo publicada em mais
de oitenta países. Um outro texto foi Raízes do Brasil, que se tornou também
um clássico da historiografia nacional, produzida pelo intelectual paulista Sér-
gio Buarque de Holanda. No presente tópico, buscaremos compreender como
a produção dessas obras serviram para a elaboração de noções em torno da
identidade brasileira.
Afinal, qual seria a identidade nacional brasileira? O IHGB não con-
seguiu fechar essa questão que ainda se encontra em aberto. Quem seriam os
brasileiros? Von Martius já tinha alertado os intelectuais no final do século XIX
que quem se propusesse a pensar a respeito das discussões étnicas/raciais teria
que, necessariamente, levar em consideração as três matrizes que formavam
a identidade nacional. Cabe ressaltar que esse indicativo teve relevância para

114
a obra de Gilberto Freyre, que tem como ponto central de sua tese o entendi-
mento que a formação da identidade brasileira passaria, necessariamente, pelo
amplo processo de miscigenação étnico que o país foi submetido a partir da
colonização.

Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escra-


vocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde
de negro – na composição. Sociedade que se desenvolveria menos pela cons-
ciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do que
pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de profilaxia social e po-
lítica. Menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada do particular
(FREYRE, 2013, p. 65).

Foi a partir da mistura dessas três matrizes étnicas que se formou o


brasileiro. O português, senhor do engenho, político, detentor dos meios de
produção econômico e cultural exercera, segundo Freyre, uma influência deci-
siva nesse processo de amalgamação, pois havia uma “indecisão étnica e cultu-
ral entre a Europa e a África” (FREYRE, 2013, p.67) e que Portugal representava
bem esse equilíbrio de antagonismos. O diferencial da obra de Freyre naquele
recorte temporal, foi perceber os diversos elementos culturais que se somaram
a esse processo: as múltiplas influências dos povos indígenas na identidade na-
cional, elementos da cultura alimentar, entre outros.

Hibrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se


constituiu mais harmoniosamente quanto as relações de raça: dentro de um
ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de apro-
veitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado;
no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do
conquistador com a do conquistado (FREYRE, 2013, p. 160).

É perceptível que, a partir do lugar de fala de Freyre, esse processo de


mistura das matrizes étnicas brasileiras teria se dado de maneira “harmoniosa”,
essa perspectiva foi duramente criticada pela academia brasileira desde o lan-
çamento de Casa Grande & Senzala até recentemente. Pode-se entender que
houve um alijamento da obra de Freyre resultante dessa interpretação de sua
obra. Se por um lado pode-se perceber uma suavização do autor ao enxergar
uma harmonia entre as trocas culturais que houve no processo de miscigena-

115
ção, é inegável as contribuições historiográficas, literárias e sociológicas dessa
obra.
Freyre elegeu a sexualidade na colônia enquanto um dos seus princi-
pais objetos de análises para descomplexificar a compreensão do processo de
miscigenação brasileiro. Segundo o autor os nativos não se opuseram de ma-
neira decisiva no que se trata do “ambiente sexual na colônia”. Freyre assinala
que “o ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação
sexual”:

O europeu soltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da


Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne.
Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mu-
lheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo
esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu
por um pense ou um caco de espelho (FREYRE, 2013, p. 161).

A partir de uma perspectiva antropológica, influenciada pelos estudos


do seu mentor intelectual Franz Boas, Gilberto Freyre passou a analisar dife-
rentes elementos que outros intelectuais não tinham levado em consideração
quando se propuseram a escrever a história do Brasil. Com base nessa interpre-
tação, outro elemento fundamental no processo de formação da identidade na-
cional, foi a participação do negro na vida sexual na colônia, que, para Freyre, é
um dos fundamentos para se compreender a miscigenação que as três matrizes
étnicas brasileiras foram submetidas:

Na ternura, na química excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos


sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em
tudo que é expressão sincera de vida, trazemos rodos a marca da influência
negra. Da escrava ou sinhá que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que
nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da
negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e mal-assombrado.
Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da
que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a
primeira sensação completa de homem (FREYRE, 2013, p. 367).

Freyre apontou caminhos para se compreender como se gestou essa identida-


de. O Brasil seria a mistura alegre de três etnias que se complementariam, de
116
maneira quase que uniforme. “Nessa ilha cantante chamada Brasil” (BRITO,
2015, p.17), índios, negros e portugueses, se deram a todo tipo de amores, e é
nesse processo que nasce o ser brasileiro, miscigenado. Misturando não apenas
as cores, os fenótipos, mas também as culturas, as religiões, as maneiras de se
fazer e se pensar a política, as diversas relações com o trabalho, as culinárias
entre outros inúmeros elementos que, conciliados por uma afetividade própria
dos trópicos, resultariam no povo brasileiro.
Propondo uma reflexão sobre a identidade nacional, outro intelectual
que se colocou a pensar sobre tais questões e produziu um dos clássicos da
literatura e da historiografia brasileira foi Sérgio Buarque de Holanda com sua
obra Raízes do Brasil, que figura até hoje como uma das interpretações mais
sólidas sobre a nação. S.B de Holanda desenvolveu conceitos como o “homem
cordial”, “organicismo” entre outros que delineiam de maneira perene uma
identidade para o Brasil e para o ser brasileiro. É importante que se destaque
que essas obras são fundamentais para historiografia pois direcionam diversos
outros esforços de pesquisas.
Sérgio Buarque de Holanda, teria sofrido grande influência do pen-
samento alemão moderno. Pensamento que ressaltaria o particular, o único, a
especificidade temporal de cada realidade histórica, ou seja, nessa obra o autor
esteve interessado em conhecer o Brasil em sua singularidade. O que nos di-
feriria do outro? Holanda procurou em sua narrativa destacar através da com-
paração, da criação de tipos ideais, os traços peculiares do Brasil, reconstruiu
aspectos do processo de formação da sociedade e da mentalidade dos brasilei-
ros em suas mudanças, em seu devir, libertando-se de esquemas teóricos que
não davam contam de explicar a nação. Essa influência da sociologia alemã no
pensamento teórico de Holanda se dá principalmente a partir de seu contato
com a obra de Max Weber. O intelectual brasileiro tomou emprestado as estru-
turas formuladoras do pensamento weberiano e os aplica a realidade nacional:

Enquanto produção historiográfica, Raízes do Brasil inclui-se na sociologia


compreensiva de Max Weber: Interpreta sinais, articula os meios e fins de uma
ação, recria a situação em que as escolhas foram feitas, procura pôr-se no lugar
dos seus personagens. (REIS, 2006, p. 119)

A influência weberiana na obra de Holanda é perceptível no decorrer


de todo o texto. O conceito de organicismo desenvolvido pelo o autor é funda-

117
mental para que possa haver uma compreensão mais ampla da cultura brasilei-
ra. Para ele a cultura precisaria passar por um processo de combinação entre as
suas “raízes e inovações, tradição e experimentação”. Pois, dentro da perspectiva
organicista, a cultura seria como uma espécie de:

[...] organismos vivos, que crescem segundo uma lei interna, mas adaptando-
-se à realidade envolvente, a cultura precisa se realizar segundo um padrão
intrínseco, mas adaptando-se ao contexto geral; ela precisa entrelaçar tradição
cultural e modernidade, Volkgeist e Zeitgeist, physis (caráter) e nomos (norma),
espírito e vida, em um acordo de antagonismos que seria a lei da vida (EUGÊ-
NIO, 2010, p. 7).

Para Holanda, somente a partir da combinação desses contrários have-


ria a possibilidade de compreender como foi e/ou como deveria ser gestada a
noção de cultura brasileira. Só poderia haver um “desenvolvimento” se houves-
se espaços para as inovações, sempre buscando as raízes culturais, fazendo uma
associação entre antagonismos como tradição e experimentação. O intelectual
paulista elaborou um tipo ideal da identidade nacional. O brasileiro seria o ho-
mem cordial. Dentro de um capítulo específico do livro Raízes do Brasil o autor
aborda as diversas características que formariam o perfil desse homem cordial.
Apontando traços formadores a partir das estruturas familiares nacionais, re-
cebendo, os “pesos das relações de simpatia” os quais impediriam esse sujeito
de lidar com impessoalidade com os problemas públicos, trazendo sempre para
dimensão privadas, das relações afetivas:

No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira


libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre
si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão
para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periféri-
ca, que no brasileiro — como bom americano — tende a ser a que mais impor-
ta. Ela é antes um viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Niet-
zsche, quando disse: “Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento
um cativeiro”. Nada mais significativo dessa aversão ao ritualismo social, que
exige, por vezes, uma personalidade fortemente homogênea e equilibrada em
todas as suas partes, do que a dificuldade em que se sentem, geralmente, os
brasileiros, de uma reverência prolongada ante um superior. Nosso tempera-
mento admite fórmulas de reverência, e até de bom grado, mas quase somente

118
enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar. A
manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em
regra geral, no desejo de estabelecer intimidade. E isso é tanto mais específico,
quanto se sabe do apego frequente dos portugueses, tão próximos de nós em
tantos aspectos, aos títulos e sinais de reverência. No domínio da linguística,
para citar um exemplo, esse modo de ser parece refletir-se em nosso pendor
acentuado para o emprego dos diminutivos. A terminação “inho” aposta às
palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao
mesmo tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos
sentidos e também de aproximá-los do coração. Sabemos como é frequente,
entre portugueses, o zombarem de certos abusos desse nosso apego aos di-
minutivos, abusos tão ridículos para eles quanto o é para nós, muitas vezes,
a pieguice lusitana, lacrimosa e amarga. Um estudo atento das nossas formas
sintáxicas traria, sem dúvida, revelações preciosas a esse respeito (HOLAN-
DA, 1995, p. 147-148).

Holanda desenha em sua narrativa a identidade do homem brasileiro.


A carga afetiva seria um fator de desequilíbrio, no que se refere as coisas pú-
blicas, uma vez que se deseja sempre “estabelecer intimidade” como manifes-
tação de respeito. As terminações no diminutivo são demonstrações de afago
desse homem cordial que teria sérias dificuldades de estabelecer uma fronteira
entre o público e o privado, o que para Holanda, dentro de uma perspectiva
weberiana de análise social, impediria de chegar a um estado moderno, de
desenvolvimento social.

A escrita da história no tempo presente: perspectivas


Depois de um olhar panorâmico sobre as tentativas de se escrever a
história do Brasil com destaque para o Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro - IHGB, passando pelo desejo de compreender as identidades do Brasil
nas obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, volta-se o olhar
para a escrita da história no chamado tempo presente. Quais os problemas que
ainda impulsionam os historiadores a promover suas pesquisas? É importante
ponderarmos que desde a década de 1930 com a chamada Escola dos Annales,
e um fortalecimento da história social, ou a história vista de baixo, houve uma
considerável ampliação nos objetos históricos.
A constituição em larga escala de novos problemas, requereu dos his-

119
toriadores novas metodologias, novas abordagens, ampliando assim as áreas
de atuação. Poucos trabalhos no tempo presente têm uma amplitude temática,
de objetos e temporalidades como a obra de Gilberto Freyre, por exemplo. Os
temas históricos estão cada vez mais recortados, em menores temporalidades
e espacialidades. Essa ampliação no metiê dos historiadores fez com que a pro-
dução de conhecimento histórico se proliferasse e sujeitos que antes eram ex-
cluídos das análises historiográficas fossem tomados cada vez mais enquanto
objetos de análises pelos pesquisadores do tempo presente.
Sobre a história da historiografia, Oliveira e Gontijo (2016) indicam
que a renovação do campo de pesquisa nos últimos 15 anos só foi possível gra-
ças a criação de diversos grupos e linhas de pesquisas dentro dos programas de
pós-graduação em diferentes lugares no Brasil como na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Universidade Federal de Ouro Preto, Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio de Janeiro, entre outras. Assim como a criação de even-
tos que se propuseram a colocar em perspectiva a historiografia brasileira como
o “Seminário Nacional de História da Historiografia” que vem realizando seus
eventos desde o ano 2008. Para além disso, as autoras destacam a criação da So-
ciedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia no ano de 2009, assim
como revistas especializadas no tema, o que favoreceu o aumento de pesquisas
sobre a temática, ampliando os espaços para publicitação dessas pesquisas.
Em destaque, duas questões para encaminharmos a conclusão do tó-
pico. A primeira delas são os esforços para se construir uma história da his-
toriografia na atualidade. A segunda são os próprios desafios de se escrever
história no tempo presente. Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo
auxiliam a refletir como foi se constituindo uma tradição de se escrever uma
história da historiografia brasileira da década de 1980 até as primeiras décadas
do século XXI. Em seu artigo intitulado “Sobre a história da historiografia bra-
sileira: um breve panorama”, as historiadoras apontam que:

[...] Observa-se o interesse por problemas relacionados à escrita e à narrati-


va históricas, às práticas e lugares institucionais de investigação em estudos
que, de modo geral, mantêm os referenciais da história política e da “questão
nacional”, mas também despontam com outras preocupações, por vezes rela-
cionadas à cultura histórica, à experiência do tempo e a recepção das obras
historiográficas, assim como os problemas da teoria da história ou da história
dos conceitos (OLIVEIRA, GONTIJO, 2016, p. 29-30).

120
Como indicam as autoras anteriormente citadas, a história da histo-
riografia ganhou fôlego em especial nas obras que fazem uma revisão histo-
riográfica, analisando os lugares de produção e os seus respectivos problemas.
As questões em torno das narrativas históricas que se tornaram referências na
historiografia nacional foram paulatinamente passando por um processo de re-
visionismo. Essas revisões se dão por demandas, como a recepção dessas obras,
bem como questões teóricas e metodológicas. Como exemplos desses exercí-
cios, Oliveira e Gontijo acentuam que:

O livro de Ricardo Benzaquen de Araújo, Guerra e Paz: Casa-Grande & Sen-


zala e a obra de Gilberto Freyre nos últimos 30 anos (1994) é exemplar nesse
sentido. Cabe lembrar que o artigo do autor, “Ronda noturna: narrativa, cri-
tica e verdade em Capistrano de Abreu”, foi publicado em 1988, no primeiro
número da revista Estudos Históricos, como parte do dossiê: “Caminhos da
historiografia” (OLIVEIRA, GONTIJO, 2016, p. 30).

A respeito dos desafios de se escrever história no tempo presente, pon-


tua-se que a mesma está na ordem do dia. Depois de tantos contratempos, os
debates acerca da epistemologia desse campo de saber se firmaram, fortale-
cendo-se não apenas nos aportes teóricos, como também no que se trata de
questões metodológicas, impulsionado especialmente pelo revigoramento dos
estudos acerca da história política, ampliação do escopo de fontes, interdisci-
plinaridade entre outros fatores que propulsaram e fortaleceram a produção do
saber histórico no Brasil e no mundo.

A eleição do tempo presente como temporalidade nuclear de pesquisas e aná-


lises é recente e, portanto, fértil em suas possibilidades de construção de uma
forma inovada de conhecimento histórico que pressupõe redimensionamento
do campo da história, da construção de abordagens, das noções de espaciali-
dade, além de fértil construção de estratégias dialogais com diferentes áreas do
conhecimento (DELGADO, FERREIRA, 2014, p. 7).

Considerações Finais
O presente artigo buscou refletir sobre as primeiras tentativas de se es-
crever uma história do Brasil, analisando em especial a constituição do IHGB,

121
a partir do texto de Von Martius, com o intuito de obter uma compreensão
de como a historiografia foi pensada para servir a interesses nacionais de um
determinado tempo histórico. Assimilando que o discurso histórico produzido
a partir de um lugar social de fala que o legitima tem um grande poder influen-
ciador, quiçá determinante para os rumos e direcionamentos da história de
uma nação.
Considera-se também as diversas tentativas de se elaborar, a partir de
um exercício historiográfico, identidades para o Brasil. Foi analisado de manei-
ra sintética obras como Casa Grande & Senzala pontuando questões relevantes
acerca do processo de miscigenação das matrizes étnicas experienciadas nos
trópicos. Foi também analisado conceitos como o “homem cordial” e “organi-
cismo” manifestos na obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, e de
como estes podem ser entendidos como tentativas de elaborar um tipo ideal de
homem brasileiro.
Por fim, foi feito um breve balanço sobre a história da historiografia
brasileira, pontuando o fortalecimento desse campo em especial nos últimos 15
anos. Essa constatação revisionista é relevante pois o recorte temporal coincide
com o vertiginoso crescimento dos programas de pós-graduação no Brasil, e
um grande investimento no ensino superior no país a partir do ano de 2002.
Consideramos pertinentes as análises realizadas e as perspectivas apresentadas,
pois os problemas históricos e historiográficos continuam presentes, cabendo
aos historiadores, refletir continuamente sobre eles.

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brasilidades deslizirantes em Jomard Muniz de Britto e seus contemporâneos.
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municação feita a CEPHAS, 1982.

123
124
Amazônia oriental brasileira:
História e Historiografia

Lucilvana Ferreira Barros


Professora do curso de História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do
Pará/UNIFESSPA. Doutoranda em História Social da Amazônia -UFPA.

Roberg Januário dos Santos


Professor do curso de História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do
Pará/UNIFESSPA. Doutorando em História Social da Amazônia - UFPA.

Introdução

Este texto objetiva debater sobre a história e a historiografia do espa-


ço regional Amazônia oriental brasileira. Justifica-se este estudo consideran-
do que esse espaço regional ainda se encontra em fase de definição histórico
e geográfica, dada sua condição de fronteira, pois, situa-se na confluência de
três Estados, a saber: Pará, Tocantins e Maranhão. É importante, antes de mais
nada, a compreensão da ideia de região, pois, ajudará no entendimento deste
texto. Para Pierre Bourdieu a região representa a força de quem a define e revela
ser um ato de conhecimento, a qual estaria firmada em um poder simbólico,
notadamente no reconhecimento de sua existência. Bourdieu sustenta que a
região nada tem de natural, pois, é fruto de lutas no campo de delimitação dela
própria. Para Albuquerque Júnior (2011, p. 37):
125
A região não é uma unidade que contém uma diversidade, mas é produto de
uma operação de homogeneização, que se dá na luta com as forças que domi-
nam outros espaços regionais, por isso ela é aberta, móvel e atravessada por
diferentes relações de poder”.

Além do mais, para Stein e Olinto (2010, p.71), a categoria região “[...]
foi e é empregada como instrumento de legitimação de grupos e de suas reivin-
dicações. Especialmente como ferramenta na elaboração de projetos políticos,
econômicos e na construção de identidades coletivas”. Para este texto, chama-
-se a atenção do leitor para a compreensão da Amazônia oriental brasileira a
partir do âmbito das produções acadêmicas, ou seja, a proposta aqui é mapear
certa historiografia que contribuiu para a produção da ideia de região atrelada
ao espaço acima citado. Historiografia aqui no sentido amplo, uma escrita da
história da região realizada não só no campo da História, mas de outras áreas
correlatas.
No âmbito da Geografia, podemos rastrear o debate sobre a região ama-
zônica a partir do estudo de Saint-Clair Cordeiro Trindade Júnior, quando exa-
minou a Amazônia no pensamento geográfico brasileiro a partir das produções
acadêmicas da chamada Escola Uspiana de Geografia (EUG) da Universidade
de São Paulo, já citada neste texto. O autor elenca três grandes momentos de
produção mais destacados, a saber: primeiro, entre as décadas de 1960 e 1970,
a Amazônia foi estudada por categorias como paisagem, espaço e região, uma
mescla entre natureza e condicionantes históricos, uma percepção de integra-
ção entre o homem e a natureza. Ainda neste primeiro momento, registram-se
os trabalhos sobre a Amazônia na perspectiva da Geografia Humana. Segun-
do, a partir de 1980, com base na Geografia Crítica, a Amazônia foi estudada
a partir dos novos eixos de circulação, da estrutura capitalista na região, do
planejamento estatal e as políticas desenvolvimentistas, dos grandes projetos
agropecuários e minerador, visto o contexto em que o regime militar ditatorial
desenvolveu várias ações na região dentro da ideia de segurança nacional e
integração da região ao território brasileiro. Terceiro, na segunda metade da
década de 1990, com a intensificação interdisciplinar na EUG, a Amazônia foi
debatida a partir do diálogo com a Sociologia, Economia, Ciência Política, Ar-
quitetura, entre outras áreas de conhecimento. Vários trabalhos da Escola Us-
piana de Geografia (EUG) se debruçaram sobre o Sul e Sudeste paraense.

126
De modo semelhante ao Nordeste, a Amazônia possui histórico de dis-
cussões a seu respeito, considerando sua natureza e hidrografia como vetores
destacados da ideia de região natural. Outro campo de estudos regionais ama-
zônicos recai sobre a ideia de região produzida a partir da intervenção esta-
tal e do capital, pois, considera-se que desde o plano de defesa econômica da
borracha, de 1912, até a criação da Superintendência do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia (SPEVEA), em 1953, e da Superintendência do De-
senvolvimento da Amazônia (SUDAM), em 1966, a região teria sido fundada
e refundada a partir das intervenções estatais e das adequações de sua posição
na discussão econômica sobre subdesenvolvimento e desenvolvimento. Por
exemplo, o conceito de Amazônia Legal reinventa a região geograficamente,
compreendendo “os Estados do Pará e do Amazonas, pelos territórios federais
do Acre, Amapá, Guaporé e Rio Branco, e ainda, a parte do Estado de Mato
Grosso a norte do paralelo 16º, a do Estado de Goiás a norte do paralelo 13º e
do Maranhão a oeste do meridiano de 44º” (LEI Nº 1.806 DE 06.01.1953). Ain-
da no que tange a formatação da região amazônica pelos critérios de interven-
ção estatal, deve-se lembrar das subdivisões denominadas Amazônia Ocidental
e Amazônia Oriental. Conforme o Decreto-lei Nº 356 DE 15.08.1968, “Art. 1º
§ 1 A Amazônia Ocidental é constituída pela área abrangida pelos Estados do
Amazonas e Acre e os territórios federais de Rondônia e Roraima”. Logo, os
Estados que passaram a compor a Amazônia Oriental1 foram: Pará, Maranhão,
Amapá, Tocantins e Mato Grosso.

Desenvolvimento

Em relação ao conceito de Amazônia Oriental brasileira, pode-se ob-


servar que vários estudos, de diferentes áreas do conhecimento, desenvolvidos
por pesquisadores diversos, com variadas teorias e metodologias seguem uti-
lizando o conceito operando delimitações regionais na grande área amazônica

1 Uma referência ao recorte regional da Amazônia Oriental pode ligar-se a Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A Embrapa Amazônia Oriental originou-se do Instituto
Agronômico do Norte (IAN), fundado em 1939. O IAN foi transformado no Instituto de Pesqui-
sa e Experimentação Agropecuária do Norte (IPEAN), em 1962. Com a criação da Embrapa, em
1973, passou a ser denominar Centro de Pesquisa Agropecuária do Trópico Úmido (CPATU),
em 1976 e, posteriormente, Centro de Pesquisa Agroflorestal da Amazônia Oriental, atualmente
denominada Embrapa Amazônia Oriental.

127
citada acima e composta por cinco Estados, especialmente o Pará. Em 1972, o
antropólogo Otavio Guilherme Cardoso Alves Velho publicava sua dissertação
de mestrado defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, sob o
título Frentes de Expansão e Estrutura Agrária, tomando como recorte espacial
a Amazônia Oriental brasileira, citada pelo autor como um dos espaços de suas
viagens de campo. O trabalho analisou o inter-relacionamento entre frentes
diversas de ocupação, bem como o estudo da frente de expansão agropecuá-
ria em uma região, segundo Velho, pouco conhecida e visibilizada no cenário
nacional à época, especialmente a “microrregião de Marabá, constituída dos
municípios paraenses de Tucuruí, Itupiranga, Jacundá, Marabá e São João do
Araguaia” (VELHO, 2009, p.10). O recorte Amazônia Oriental é citado na obra,
mas ainda dividia a posição de recorte regional com outros referenciais, como
área da Transamazônica e o Sul do Pará.
Se observarmos pelo filtro de publicações em periódicos, consultando
o principal portal de acesso à periódicos no Brasil, o Portal de Periódicos da
CAPES2, entre 1980 e 19993, nota-se uma tendência de registro da utilização
do conceito de Amazônia Oriental brasileira, enquanto delimitação regional, a
partir da transição da década de 1980 para a década de 1990. Pode-se perceber
menções a esse recorte regional e sua presença em alguns títulos de trabalhos,
a exemplo do artigo Efeito do desmatamento e do cultivo sobre as características
físicas e químicas do solo sob floresta natural na Amazônia oriental4, publicado
em 1990, pela Revista IG, por uma equipe de pesquisadores do projeto Ama-
zônia I, estudando o desmatamento e o cultivo nas proximidades do nordeste
paraense, munícipio de Capitão Poço - PA.
Também em 1990 registra-se o artigo da professora do curso de Geo-
grafia da USP, Regina Sader, que publicava pela revista Tempo Social, em 1990,
o trabalho intitulado Lutas e Imaginário Camponês5, estudando o imaginário
do campesinato da fronteira agrícola da Amazônia Oriental brasileira. A autora
tinha defendido sua tese de doutorado em 1987, na USP, estudando pratica-

2 Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), fundação do Minis-


tério da Educação (MEC).
3 Após os anos 2000 o recorte espacial Amazônia Oriental brasileira passou a ser utilizado com
mais frequência em títulos de periódicos de várias áreas do conhecimento.
4 Disponível em: http://www.igeologico.sp.gov.br/downloads/revista_ig/v8-11n1a03.pdf
5 Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v2n1/0103-2070-ts-02-01-0115.pdf

128
mente a mesma região, a tese intitulada Espaço e luta no Bico do Papagaio6.
No artigo de 1990, o recorte regional Amazônia Oriental brasileira aparecia
em destaque na apresentação do mesmo. Ainda em relação aos trabalhos da
professora Regina Sader, é importante mencionar que a operacionalização do
conceito de Amazônia Oriental brasileira se aproximava de um território entre
os Estados do Maranhão e Sul do Pará, visto suas discussões que perpassavam
a Guerrilha do Araguaia7 na região paraense. A partir desta situação, aventa-
mos que esta produção ao lado de outras formataram um campo de estudos
que convergiram para o Sul e Sudeste paraense enquanto região da Amazônia
Oriental brasileira. Dentro da grande espacialidade formada por cerca de cinco
Estados, foi sendo delineada uma Amazônia Oriental sul paraense. Esta deli-
mitação não incorre em nenhum problema, visto que a configuração de uma
região, conforme Barros (2013, p.178), “[....] é construída dentro das coorde-
nadas de uma determinada pesquisa ou de certa análise sociológica ou histo-
riográfica”. Assim, ao longo do tempo, O espaço do Sudeste paraense tem sido
examinado por alguns estudos que o considera como Amazônia oriental, que
de brasileira passa a ser entendida quase como paraense em conexão com o
Tocantins e o Maranhão.
Em 1990 a geógrafa Bertha Koifmann Becker publicava o livro intitu-
lado Amazônia, um dos seus primeiros livros sobre o espaço que ocuparia boa
parte da sua produção intelectual. Nesta obra, Becker define, de maneira mais
precisa, o que veio a ser configurar como Amazônia Oriental brasileira, quando
ao discutir sobre o fracionamento do espaço e a formação de novas regiões na
Amazônia, elenca que:

Situada estrategicamente no contato entre os centros dinâmicos do Centro-


-Sul e a bacia de mão de obra do Nordeste, a Amazônia Oriental foi a primeira
a ser povoada na expansão recente da fronteira, tendo como eixo de penetra-
ção a rodovia Belém-Brasília. Compreende hoje o Leste e o Sul do Estado do
Pará, o norte de Goiás e o Oeste do Maranhão.

Segundo Becker, cinco tipos de apropriação territorial fragmentam a

6 A região do Bico do Papagaio é um território entre os estados do Tocantins, Maranhão e Pará.


7 Conflito ocorrido na Amazônia, entre 1972 e 1974, envolvendo membros do Partido Comu-
nista do Brasil, grupos amazônicos (índios, camponeses, entre outras) e as forças armadas da
ditadura militar.

129
Amazônia Oriental, em resumo : primeiro, a apropriação induzida pelo Estado,
criando certa infraestrutura, como rodovias e concedendo créditos para pe-
cuaristas; segundo, apropriação subsidiada por incentivos fiscais para empre-
sas do agronegócio pertencentes a grupos monopolizadores de capital; terceiro,
apropriação conduzida pela rota da rodovia Transamazônica, com a presença
de colonos e produção agrícola; quarto, apropriação tradicional em vias de de-
saparecimento, caracterizada pela ocupação por posseiros; quinto, território de
grandes projetos minerais, com destaque para o “Programa Grande Carajás”.
Algumas produções no âmbito da Amazônia têm contribuído para
delimitar a Amazônia Oriental brasileira/paraense, a saber: primeiro, consi-
derando o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), uma das unidades
acadêmicas da Universidade Federal do Pará (UFPA), como um dos centros de
excelência da produção do conhecimento amazônico, observamos que entre
1981 e 2008 (Catálogo de teses e dissertações do NAEA ), a primeira disser-
tação de mestrado defendida no Programa que continha no título a delimita-
ção Amazônia Oriental brasileira relacionada ao sudeste paraense, intitula-se
Frentes pioneiras e campesinato na Amazônia Oriental Brasileira, defendida por
Fábio Carlos da Silva, em 1982, e a segunda dissertação que expressamente
utilizou a definição regional em tela foi intitulada Sídero-metalurgia na Ama-
zônia Oriental Brasileira, defendida em 1996 por Maurílio de Abreu Montei-
ro. A primeira tese de doutorado que utilizou a expressão regional Amazônia
Oriental brasileira no título foi o trabalho Crise ecológica e mudança técnica da
agricultura camponesa de derruba e queima da Amazônia oriental, defendida
em 2005 por Antônio Carlos Reis Freitas. Registra-se que até o ano de 2008, o
apontamento do uso desta delimitação da região ainda é modesto.
Ainda na Universidade Federal do Pará8, desta feita, no Programa de
Pós-Graduação em História, localizamos a dissertação de mestrado intitula-
da Nas Correntezas e Contra-Correntezas do Rio Carapuru: memória e histó-

8 Em 2006 o Campus de Altamira, Universidade Federal do Pará, promoveu o I Seminário de


História da Transamazônica/Xingu, sendo fruto deste evento o livro História do Xingu: fronteiras,
Espaços e Territorialidades, publicado em 2008, uma coletânea de textos escritos por professores
e pesquisadores de várias Instituições do Norte do país, como a própria UFPA, Universidade
Federal do Amapá, Federal do Maranhão, entre outras. Com um recorte cronológico entre os sé-
culos XVII e XXI, a coletânea demonstra um esforço por compreender uma certa espacialidade
da grande Amazônia, notadamente o que os organizadores chamaram de região do Xingu, o que
marca uma outra percepção do espaço entre os rios Xingu e Araguaia, revelando o que Rogério
Haesbaert (2010) (considera como a “diversidade de situações e de propostas conceituais de re-
gião, especialmente nas últimas décadas [...]”.

130
ria em comunidades tradicionais na Amazônia oriental (1912-1950), defendida
em 2012 por Raimundo Franciel Paz. Observa-se neste caso que a Amazônia
Oriental delimita um recorte fora do recorte do Sudeste paraense, pois, a referi-
da dissertação de mestrado analisa o processo de formação e desenvolvimento
de povoados ao longo do curso do rio Caraparu, entre 1912 a 1950, localizados
ao sul do atual Município de Santa Izabel do Pará.
Segundo, também se nota as produções do grupo de pesquisa “Cultu-
ras, identidades e dinâmicas sociais na Amazônia oriental brasileira” (CNPq/
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - Unifesspa), com destaque para
os livros Culturas e dinâmicas sociais na Amazônia Oriental brasileira (2017) e
“Mulheres em Perspectiva: trajetórias, saberes, resistências na Amazônia Orien-
tal” (2017).

Considerações finais
Por fim, este levantamento da utilização do recorte regional em títulos
de trabalhos acadêmicos em nível de mestrado, doutorado e produções de pes-
quisadores permite aventar que o espaço regional Amazônia Oriental se encon-
tra em permanente processo de associação a exames sociais, culturais, econô-
micos e ambientais, um recorte aberto para configurações e pesquisas. Além de
uma delimitação estatal ampla, constata-se a formação de um conjunto de re-
ferências acadêmicas sobre a região advindas de várias áreas do conhecimento,
especialmente das ciências humanas que configuram uma Amazônia oriental
de modo mais especifica, circunscrevendo-a mais ao sul paraense em ligação
com a fronteira dos Estados do Tocantins e Maranhão, portanto, diferente da
delimitação governamental que abarca praticamente os estados do Pará, Mara-
nhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso.

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132
O Rio Grande do Norte no limite: História
e Espaços nas páginas da Rihgrn (1903)


Patrícia da Silva Azevedo
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História e Espaços da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Integrante do Grupo
de Pesquisa Teoria da História, Historiografia e História Dos Espaços.
E-mail: patríciaodeveza@gmail.com;

Introdução

O presente trabalho tem o objetivo de analisar a publicação Revista


do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (RIHGRN) em
seu primeiro ano de publicação, 1903. Esse estudo parte da constatação de que
essa fonte é uma peça importante para os estudos da historiografia potiguar,
da necessidade de promover uma renovação dos estudos sobre a História do
Estado, e da escassez de trabalhos que utilizem as revistas como fonte. Adota
a noção de espaço abordada por Georges Perec e, a relação da escrita e da me-
mória explorada por Aleida Assmam, como referenciais teóricos. Observando
a forma de escrita, as fontes e a metodologia utilizada para compor a temática
das questões dos limites e como essa abordagem possibilita uma aproximação
entre história e espaços.
Depois da instalação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em

133
1838, outros institutos se espalharam pelo país. Durante o século XIX e XX esse
processo foi ocorrendo nos demais estados dando origem a instituições congê-
neres que mantinham relações com o IGHB. No norte do país, hoje nordeste,
essas instituições se formaram cada uma a partir de suas demandas.
No ano de 1902 é fundado o Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte (IHGRN). Sendo essa instalação um fruto do contexto re-
publicano que possibilitou a formação e a manifestação de grupos políticos,
culturais e intelectuais que promovem a implantação da instituição no estado
do Rio Grande do Norte (RN).
Em 29 março de 1902, “na cidade de Natal, capital do estado do Rio
Grande do Norte, no salão do Atheneu Rio Grandense que funcionava a Bi-
bliotheca Estadual” (RIHGRN, 1903, P.6) reunidos políticos, intelectuais e per-
sonalidades potiguares (doutores, coronéis e cidadãos) fundaram o IHGRN
e, seguindo os moldes do IHGB, projetam uma revista para a circulação dos
ideais do instituto.
A Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
passa a circular logo após a fundação do instituto, no ano de 1903, a circulação
do periódico faz parte do conjunto das principais ações do IHGRN, que esta-
vam entre os objetivos pré-estabelecidos pelo grupo de intelectuais. No intuito
de escrever a história potiguar, buscavam deixar registrado as pesquisas que
eram realizadas, a exibição de documentos e as discussões promovidas pelo
grupo editorial e seu rol de membros, e assim, mantinham relações e diálogos
com as outras instituições semelhantes por meio das publicações e da troca de
informações. Se desenvolveu um caminho para os diálogos intelectuais através
das publicações semestrais com áreas em comum, referentes a História e a Geo-
grafia do estado do Rio Grande do Norte e em geral do Brasil.
A RIHGRN funcionava como um catálogo expositivo das discussões
realizadas pelos membros para uma parte da sociedade norte-rio-grandense
(pensar em uma elite que tinha acesso a essas publicações) os assuntos ligados
à história e à geografia – a partir dos interesses do contexto e do grupo editorial.
Dessa forma, passa a se ampliar, no presente, uma valorização pelos
acontecimentos do passado que se deram no espaço do RN e com personagens
nascidos e instalados no estado, produzindo o sentimento de importância em
deixar documentado os eventos estavam localizados espacialmente no estado
e com os personagens que nasceram ou “lutaram” pela conquista e desenvolvi-

134
mento do território potiguar, promovendo uma legitimidade e uma identidade
potiguar. Localizar os fatos num tempo e, principalmente, no espaço do Rio
Grande do Norte produzia sentidos, notadamente, era uma forma de pensar
a história potiguar, vivida por pessoas nativas e/ou dentro do seu território, o
desenvolvimento de uma história e de um espaço.
Nessa comunicação buscamos investigar, conhecer e compreender um
pouco mais sobre a produção da história potiguar, a fim de refletir sobre os
processos que envolvem a escrita da história e a organização do espaço no Rio
Grande do Norte vinculada ao IHGRN. Defino, como objeto de análise docu-
mental a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte o
número I de circulação do ano de 1903.
A escolha do recorte temporal se deu em conjunto com o início da cir-
culação do periódico, o primeiro exemplar lançado, 1903 foi o ano de instala-
ção e publicação da revista. Foi a partir desse momento que o IHGRN, efetiva-
mente, inaugura seu projeto de escrita. Por isso, com a análise desse periódico
procuro pesquisar as motivações para a produção e entender como se estrutura
a escrita nas páginas RIHGRN, para identificar como essa escrita passa a orga-
nizar uma história para o RN e perceber como o estado estava sendo descrito,
produzido, narrado, e quais significados eram atribuídos ao espaço potiguar
através das escolhas do grupo editorial da revista.
As revistas são fontes que apresentam uma periodicidade e que ma-
nifestam os interesses e pensamentos de um determinado grupo, o corpo edi-
torial, que se articula, nesse caso, com o sistema de governo da época já que o
advento da república possibilita a implantação de uma instituição (IHGRN) e
através dela a veiculação do periódico.
Numa edição da revista do IHGRN é possível observar os temas ci-
tados e reincidentes; atas e informes; artigos com caráter autoral. Portanto,
temos, nessa fonte, uma diversidade da escrita que se compacta no mesmo
documento. São compostas de dois números que circulam anualmente, sendo
lançado um número (I) no primeiro semestre – março – e um outro número
(II) no segundo do semestre de cada ano – julho –, ao final, com os números I
e II tinha-se, então, uma edição anual.
Identificamos que as revistas ainda são pouco utilizadas como objeto
de pesquisa e que compõe parte importante para a compreensão da formação
historiográfica potiguar; que existe uma classificação dessa produção que a co-

135
loca como parte de uma historiografia tradicional do RN vinculada ao IHGRN
(Monteiro, 2005; Mariz, 2005) que foi pioneira no estado por introduzir uma
escrita sistematiza com desenvolvimento de pesquisa e escrita e, ainda conce-
bida pelos padrões institucionais. E que por isso realizar um balanço historio-
gráfico1 dessas fontes tem o intuito de refletir sobre a produção de uma história
norte-rio-grandense e refletir sobre os processos do desenvolvimento dessa
escrita. Investigando as questões e os interesses que motivam essa produção.

Discussão e Resultados

Observamos o processo de escrita como um abrigo para a preservação


da memória, a manutenção da história e a conservação das fontes, esta desem-
penhada pela função do arquivo. Essa análise busca perceber a relação desses
fatores, e como esses processos possibilitam uma aproximação da escrita da
história estadual com a organização do espaço, percebendo o espaço como um
processo humano de construir símbolos e sentidos. Partindo da abordagem
proposta por Georges Perec (Perec, 2001), onde o processo da escrita cristaliza
a memória e ao mesmo tempo estabelece estruturas para a dominação do es-
paço através da: imposição de limites, localizações, pontos de referência. Nesse
sentido, dando arguição para a defesa da posse do território em uma dualidade:
na escrita e na produção da espacialidade.
O que teria acontecido ao território do Rio Grande do Norte se um
grupo de políticos, intelectuais e personalidades não tivessem intervindo e to-
mado a iniciativa de tentar provar, a todo custo, que as terras que fazem frontei-
ra com o estado do Ceará, que permaneceram em constantes disputas durante
séculos pertenciam ao RN e não ao CE?
Certamente a definição dessa resposta não é o objetivo deste ensaio,
porém, o que se tem conhecimento é que o grupo de sócios vinculados ao IH-
GRN se reuniu afim de “proteger” a posse dessas terras e para chegar ao seu
objetivo se fez necessário comprovar o direito ao território, e esse processo está
registrado através da escrita na RIHGRN. Mas, o que pretendemos aqui não é
falar sobre as “Questões de Limites” (existe uma diversidade de trabalhos de-
dicados a essa temática)2, diretamente, e sim, investigar os procedimentos e as
1 (TAKEYA, 1994, P. 9)
2 (FERNANDES, 2012)

136
fontes utilizadas por esse grupo para conquistar o objetivo que almejavam, a
posse efetiva das terras.
Seguindo passos, após a instalação do IHGRN em 1902 – passaram a
coletar o maior número de fontes possíveis para as pesquisas e estruturação do
arquivo da instituição –, e com o desenvolvimento das pesquisas iniciaram as
publicações na RIHGRN, a partir de 1903. No primeiro número as publicações
sobre as questões de limites é a temática mais citada, dentro do conjunto docu-
mental utilizado, segue o sumário da RIHGRN em análise:

Quadro Nº1
Sumário da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
DO RIO GRANDE DO NORTE
ANO: 1903 VOLUME: I NÚMERO: I
SUMÁRIO:
I. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
II. Ata da Instalação
III. Estatutos
IV. O Rio Grande do Norte antes da conquista
V. Resposta ao questionário preliminar sobre os limites do Rio Grande do
Norte com o Ceará
VI. Resumos das actas das sessões do Instituto
VII. Veríssimo de Toledo.

Com a apresentação se torna possível perceber a presença da temática


da sobre os limites do estado do RN e do CE, e com base nessa publicação será
a configuração dessa comunicação. A disputa do território através da questão
dos limites do estado aparece desde o primeiro exemplar do periódico.
A revista que estamos utilizando é composta por 99 páginas, das quais
43 páginas são dedicadas ao tema dos limites, a publicação das perguntas e
“Respostas ao questionário preliminar sobre os limites do Rio Grande do Norte
com o Ceará” ocupa quase metade do conteúdo total. A metodologia utilizada
pelos editores da RIHGRN é a aplicação de um questionário “aberto” que é
respondido por um árbitro que busca elucidar a “peleja”, por mais que possa-
mos utilizar esse termo “aberto” as respostas que estão colocadas sugerem a
construção de uma defesa, com o objeto de fechar qualquer oportunidade de
contra argumentação.

137
O questionário é composto de nove perguntas direcionadas para que o
árbitro possa ir construindo ao longo de sua narrativa uma argumentação de
defesa que utiliza documentos oficiais e históricos para comprovar a posse do
território, vai apresentando, aos poucos, diante de cada pergunta novos argu-
mentos e fontes que o possibilite a chegar ao fim do questionário com um con-
junto de informações que juntas formam uma estratégia para deferir a posição,
as bases para julgar e apresentar as possíveis soluções para a resolução desse
problema. Dentre as perguntas “problemas” estão os seguintes quesitos:

1º. Os limites entre o Ceará e o Rio Grande do Norte forão primitivamente


fixados da costa para o centro, ou vice versa?
2º. Haverá na costa algum ponto saliente, que possa dividir em zonas distinc-
tas a parte de cada um daqueles Estados e, se ha onde póde ser fixado?
3º. Se os limites forão fixados do centro para a costa, até onde são eles inques-
tionaveis, e qual o ponto de duvida para as duas partes, ou para uma delas?
4º. A fixação dos limites inquestionaveis teve por base o divortium aquarum
ou alguma linha geographica?
5º. Qual desses dous meios pretende o Ceará para fixar os limites duvidosos, e
quaes os títulos da sua pretensão?
6º. Esses titulos referem-se ao Jaguaribe e ao Mossoró como ribeiras ou rios;
e, em ambos os casos o que se deve entender por esta, e por aquella denomi-
nação?
7º. D’onde e desde quando o rio Apody (ou a ribeira) tomou o nome de Mos-
soró?
8º. Haverá naquella região outro riacho ou ribeira com o nome de Mossoró, e
se há, onde existe?
9º. Onde existio e desde quando desappareceu o marco que estava na praia e
servia de limites ás duas Capitanias (hoje Estados), segundo os docs. de fls.
121, e 122 offerecidos pelo Procurador Geral do Ceará, nos autos do conflito
que elle suscitou perante o Supremo Tribunal Federal? (RIHGRN, 1903, Pp.
41-79).

O questionário apresenta as principais demandas que envolve a ques-


tão dos limites, por meio dessa metodologia de perguntas e respostas é possível
identificar uma construção do espaço por meio da narrativa, é exposto um
espaço em constante disputa, que precisa ser “questionado” para ser melhor
compreendido, as demandas sobre as ações humanas de transformação da pai-
sagem e de ocupação são utilizados no processo como “provas” de posse terri-
torial junto da documentação oficial.
Em um primeiro momento as relações entre homem e o espaço são

138
apresentadas pelos recursos naturais, as serras, os rios, os lajedos, as terras de
planícies, os morros, a cor da terra, do litoral para o centro (interior) e como a
natureza pode responder as demandas colocadas pela disputa. Os espaços são
alterados, habitados e são testemunhas (ou verificados pelos olhos humanos),
esse processo de contato do homem com o lugar além de povoar exerce uma
construção de sentidos, os espaços são transformados.
O espaço é constantemente alterado pelo homem, o espaço é fruto
das transformações que o homem opera, dando sentido e significado, através
da produção material e imaterial, e no processo da escrita essa transformação
ocorre de forma “intelectual” através da documentação consultada (fontes) e
produzida (os textos da revista podem ser um exemplo).
As referências a partir do qual são estabelecidas distâncias e localiza-
ções, são importantes em nosso estudo pois o texto produzido pela RIHGRN
tem como preocupação na questão dos limites. Para que se possa determinar
qual área pertence a cada estado, parte-se de um lugar, um marco, localizar esse
marco no espaço é uma necessidade para resolver a questão. Porém, temos um
ponto de partida teórico-metodológico que com base no primeiro (o marco
físico) se construirá a escrita sobre volta do tema, o marco para a essa discussão
é o um início que marca toda a formação do espaço, nesse sentido, os editores
da RIHGRN avançam por meio da documentação, expondo através das publi-
cações, resultados das pesquisas, e com arguição será possível justificar a posse
das terras, nesse processo o limites serão “localizados”, ocorrendo, então, para
Perec, “domesticação do espaço” esse processo pode ser percebidos na produ-
ção textual, são pensadas as medidas, as localizações, as distâncias são meios
perceber e conceber o espaço.
Nesse processo de escrita, o constante retorno e verificação dos docu-
mentos já produzidos, a função do arquivo e propriedade de fontes, nos reve-
lam a importância de transferir e colocar a memória no papel, escrever é uma
forma de fazer permanecer vivo, o que já está “morto nas mentes [...] para que
se possa então se erguer como ciência” (Assmam, 2011), arquivar é manter essa
vida em segurança. “Tudo isso gira em torno fundamentalmente do contexto
de lembrança e identidade”.
Existe uma relação entre a escrita e a memória, a escrita se estabeleceu
desde o início até os dias atuais como um meio capaz de garantir a permanên-
cia da memória no tempo – principalmente se aqui for associado a função que

139
tem os arquivos – perpetuando-a para as gerações futuras, por isso a escrita
se torna a mídia preferencial para a efetivação do desejo de permanecer para
“sempre”3. O uso da escrita se entrelaça com a necessidade do permanecer, o
medo do esquecimento e a tentativa de se manter para as gerações futuras, re-
tendo a memória e com isso deixar o registro dos eventos no tempo, no espaço
e na história.
A perpetuação de uma história ligada a uma instituição, que se apoia
em várias outras, trazendo uma ideia de oficialidade para essa produção desen-
volvida pelo IHGRN, implementando no estado as bases para a pesquisa histó-
rica. Uma escrita que buscava se consolidar por meios dos documentos e textos
já existentes, valorizando assim, a fonte e o próprio papel da história, utilizando
não só os textos narrativos acerca de seu tema (já que vão utilizar outros com
temáticas diferentes), mas construindo argumentos que justifiquem seu ponto
de interesse e sirva como embasamento teórico, a apresentação de outros textos
servia para dar credibilidade a defesa apresentada pelo grupo editorial.
Como fontes para a composição desse artigo de “defesa” estamos diante
de uma enorme diversidade suportes, demonstrando um trabalho dedicação
na pesquisa, fontes numeradas e citadas em notas de rodapé dando a possibi-
lidade uma verificação das mesmas, dentre as fontes podemos pontuar, citadas
pelo autor: Documentos antigos; Livros - como a História do Brasil de Varnha-
gen, History of Brazil Soathey, Elementos da Geografia, Breve notícia sobre
o Rio Grande do Norte de Ferreira Nobre (citada muitas vezes), História do
Ceará de dr. Studarth, Índios do Brasil de Fernão Cardim edição Capistrano de
Abreu; Sobre “Chorographia” do Ceará, Chorografia do Brazil ; Compêndios
– de Geografia Universal, do senador Pompeo – ; Leis – estaduais, de cada co-
marca, regenciais, provinciais –; Roteiros – da costa do Brasil – ; Dicionários –
de Geografia do Brazil (verbis), topográfico e estatístico da província do Ceará,
jurídico de Pereira e Souza, – ; Ofícios – dirigidos aos governos do Rio Grande
do Norte, do Ceará, a câmara dos estados – ; Petições; Cartas Régias; Cartas
na Revista do Cearense (das revistas se extraíram diversas passagens); Actos
antigos, nomeações de cargos e concessões de sesmarias; Cartas Paulet (são en-
contradas em formas de mapas); Documentos da Procuradoria do Rio Grande;
Tractado descriptivo do Brasil; Chronicas; Relatos de expedições; Anexos de
Conferências; Relatórios, apontamentos, anotações do desembargador Lemos;

3 (ASSMANN, 2011)

140
Documentos avulsos; Certidões; Editais; Pareceres; Revista do Instituto Histó-
rico e Geográfico do Ceará; Notas; Cartas do Barão Roussin; Cartas do Barão
Homem de Melo; Documentos da alfandega e de inspeção do algodão; Officio
de Vigario em Mossoró. Essas são algumas das fontes citadas pelo autor do ar-
tigo, árbitro na questões do limites A. Coelho Rodrigues, que sai em defesa do
Rio Grande do Norte. (RIHGRN, 1903, Pp.41-79)

Considerações finais

Visto que esse artigo funciona como um ensaio inicial para trabalhar e
desenvolver o contato com as fontes e objeto de pesquisa visando o desenvolvi-
mento da dissertação de mestrado, as conclusões são preliminares.
As investigações iniciais demonstram que existe uma potencialidade
na relação entre arquivo e fontes como base na efetivação da produção histo-
riográfica, suprindo os interesses de uma instituição, que documentava através
da escrita, e consecutivamente, construía a defesa do espaço potiguar. A imple-
mentação dos limites através de um marco, o vale, ou o resgate dos marcos pos-
síveis, naturais e construídos pelo homem, como o de Touros, são maneiras de
demarcar o espaço e a partir disso se localizar e, consequentemente, legitimar
efetivamente junto aos documentos oficiais e de ordem da ocupação humana a
defesa do território impedindo que outras jurisdições possam “tomar” o terri-
tório do outro. O período em discussão abrange a partir de 1793 marcado pelo
contexto da colônia no Brasil, partindo dessa carta régia para a legitimação do
espaço na época de produção da revista, o ano de 1903.
O processo de escrita contribui diretamente para o desenvolvimento
de uma história estadualizante, mesmo existindo outros trabalhos anteriores
sobre o a História do Rio Grande do Norte, a vinculação com uma instituição e
o pensar o estado como um “todo” é o diferencial da escrita do IHGRN. A es-
crita da revista do IGHRN faz parte de uma produção pensada coletivamente,
com objetivos sistematizados e organizados a partir da demanda institucional
para dar conta dos acontecimentos de forma a cobrir o espaço denominado
como Rio Grande do Norte. Nesse caso, a escrita passa a representar os desejos
de um grupo editorial que passa a atuar como agente de transformação, onde
a implementação de métodos utilizados e as formas de desenvolvimento para
a produção do periódico estão inseridas em um conjunto de ações que “conce-

141
be” a história, inserindo as narrativas, documentando os escritos e trazendo ao
conhecimento o que estava guardado nos arquivos. Atuando de forma diversa
e representativa.
Esse processo de escrita também ajuda a perceber o espaço, além de
revelar como um grupo de intelectuais, político e personalidades pensam e nar-
ram esse espaço, por mais que esse conceito não esteja centrado diretamente
nas discussões, o espaço é constantemente pensado, vivido, imposto e transfor-
mado, quando escrito sobre ele se torna “cristalizado” uma existência em cons-
tantes transformações, mas que permanece através do tempo e da história pois
está documentado, quando localizado – em nossa discussão o espaço se locali-
za no “vale” entre o Apody e o Jaguaribe e passa a ser construído também nos
textos – se torna demarcado, e em nosso contexto a palavra “dominado” tem
um amplo sentido, acima de tudo o processo de escrita promove uma pratica
de experienciar sobre o espaço pelo o grupo editorial e os demais os membros
do IHGRN.

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144
“Servirá este livro para O Registro dos
Óbitos dos Filhos da Mulher Escrava”: o
reflexo da Lei n° 2.040 de 28 de setembro de
1871 na Vila de Campo Maior (1873-1883)

Jéssica Gadelha Morais


Mestra em Arqueologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI),
Especialista em História e Cultura Afro Brasileira. Graduada em Licenciatura
Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Email:
moraisjg07@gmail.com

Introdução

As inquietações aqui trabalhadas se referem aos filhos da mulher es-


crava ou filhos do ventre livre cujos registros de óbitos, localizados na Secretá-
ria da Paróquia da Catedral de Santo Antônio em Campo Maior-PI, apontam
como local de sepultamento o cemitério Santo Antônio, em contrapartida ne-
nhum indicio arqueológico desse grupo foi encontrado no acervo funerário em
questão. Dessa forma o objetivo é analisar os registros eclesiásticos de óbitos de
crianças após a Lei n° 2.040 de 28 de setembro de 1871 almejando identificar as
experiências por elas vividas. O recorte temporal coincide com o primeiro e o

145
último registro efetuado, respectivamente de 1873 a 1883. O percurso metodo-
lógico da elaboração do trabalho contou com a pesquisa bibliográfica sobre a
escravidão. Para ajudar na identificação dos senhores da mulher escrava foram
utilizadas as lápides do cemitério Santo Antônio que esteve em atividade para
sepultamentos entre os séculos XIX e XX. O resultado aponta que foi em de-
corrência da condição criada pela Lei que as crianças em questão puderam ser
sepultadas na referida necrópole ainda que com sepulturas temporárias. Dessa
forma a ausência de vestígios materiais do grupo social investigado no cemité-
rio está ligada a rotatividade de sepultamentos. Em relação às condições de vida
a lei pouco refletiu na amenização do cativeiro, e assim seguiram até a morte
sendo propriedade de um senhor, os mesmos donos de suas mães.
A Lei n° 2040 de 28 de setembro de 1871 também conhecida como Lei
do Rio Branco ou Lei do Ventre Livre é um dos diversos mecanismos elabo-
rados para protelar o fim da escravidão. Essa lei declarava que a partir dessa
data as crianças de escravas que nascessem “não seguiria mais o ventre” (CAR-
DOSO; MOREIRA, 2015, p.82). Trata-se do surgimento de uma nova figura
social no interior da sociedade escravocrata, o ingênuo, que habita em um
limbo social, pois não tem a condição de livre nem de escravo. “Os filhos do
ventre escravo não teriam mais a condição social de suas mães, mas também
não teriam a possibilidade de ser livres” (CARDOSO; MOREIRA, 2015, p.92)
até a idade de 21 anos, à época essa idade considerada maioridade. A referida
lei limitava a liberdade das crianças, que se libertavam da escravidão, mas na
maioria das vezes seguiam sob a tutela estatal ou de particulares, esses por sua
vez podiam ser os próprios senhores de suas mães. No caso de haver reivindica-
ção da indenização por parte do senhor da mãe do filho que atingira os 8 anos
o Estado perdia dinheiro e ainda tinha que ter um local para recepcioná-los,
denominada por Maria Claudia de Oliveira Martins e Renilda Vicenzi (2013)
de instituições asilares.
Em seu artigo 8° parágrafo cinco a lei estabelecia que os párocos eram
obrigados a ter livros especiais para os registros dos nascimentos e óbitos das
crianças nascidas desde a data desta lei. O pároco que se omitisse pagaria uma
multa de 100$000 (MOREIRA, 2013). Atendendo a esse disposto, em 31 de
janeiro de 1872, o presidente da província do Piauí Dr. Manoel do Rego Barros
Sousa Leão rubricou os livros necessários para tais registros, a fim de serem
convenientemente distribuídos pelos párocos da província (COSTA, 2010).

146
Livro de óbito destinados aos filhos da mulher escrava na
Vila Campo Maior
“Servirá este livro para o registro dos óbitos dos filhos da mulher escrava e
corridas da data da lei nº 2040 de 28 de setembro do anno passado.Palácio do
Governo do Piauhy, 19 de janeiro de 1872”. [***] Manoel do Rego Barros Leão.

O livro trás alguns aspectos que merecem ser evidenciados. O termo


de abertura do livro data de 19 de janeiro de 1872. Dessa data para o primeiro
registro de óbito transcorre 1 ano e 3 meses, e do primeiro para o último se
passaram mais 10 anos. Cada termo menciona apenas o nome (pré-nome) da
mãe, o nome do proprietário das mães das crianças, e todos os registros apontam
como local de sepultamento o Cemitério da Irmandade Santo Antônio. No
total, o livro possui 50 registros de óbito em duplicatas, entre os quais 49 são
descritos como filhos naturais e um (1) é descrito como filho ilegítimo. Um
desses 50 assentos o pároco menciona a cor da pele da criança:

No dia quatro de setembro de mil oito centos setenta e oito falleceu Icipião,
pardo, nascido a vinte nove de maio do dicto anno, filho natural de Theodora,
solteira, escrava de Jozeph Fernando Alves morador nesta Villa de Campo
Maior: seu cadáver foi sepultado no dia cinco do mesmo mez e anno no
Cemitério da Irmandade de Santo Antônio. E para constar faço este assento,
que assigno.

Dessa colocação cabe se perguntar: Por que só o registro de Icipião traz


a descrição da cor da pele e os outros assentos de óbito não? “Pardo” seria uma
designação utilizada com intuito de registrar uma diferenciação social, digo
uma condição social e jurídica? O Piauí ainda não possui um estudo especifico
para essas tipificações de cor de pele nos registros. Preto era sempre escravo,
os demais não temos como afirmar. Icipião, filho de Theodora, faleceu com 3
meses de idade. O senhor de sua mãe, Jozeph Fernando Alves, era morador da
Vila de Campo Maior o que deixa abertura para inferir que o mesmo poderia
ser natural de outra localidade da mesma província ou até mesmo de outra
província. Outro aspecto observado no registro de óbito diz respeito às práticas

147
do enterramento, sempre um dia após a data do óbito. Durante esse intervalo
de tempo é possível a realização de outras práticas funerárias, ressaltando que
o enterramento é apenas uma delas.
Barros, o vigário que assina os assentos, também era proprietário de
escravas, mães das crianças que tiveram vida curta. Logo não era somente
tenente coronel, coronéis, fazendeiros que possuía escravos, mais ainda o
homem religioso. Cardolina e Maria aparecem citadas como sendo escravas da
propriedade de Barros.

No dia onze de julho de mil oito centos setenta e quatro faliceu da vida
presente Paulo, Nascido a dez de dezembro de mil oito centos setenta e dois,
filho natural de Cardolina, solteira, escrava do Padre Manoel Félix Cavalcante
de Barros [...].

No dia quatorze de agosto de mil oito centos setenta e quatro faliceu da vida
presente Pedro, nascido a dez de dezembro de mil oito centos setenta e dois,
filho natural de Cardolina, solteira, escrava do Padre Manoel Félix Cavalcante
de Barros [...].

No dia desesseis de novembro de mil oito centos e oitenta e três faleceu pelas
onze horas da noite Antonio, nascido a dez de maio do dicto anno, filho natural
de Maria, solteira, escrava do Padre Manoel Félix Cavalcante de Barros [...]

As duas primeiras passagens trazem o mesmo nome de escrava, Car-


dolina. Era ela a mesma pessoa? Digo a mesma escrava? Se sim é possível que
Paulo e Pedro fossem gêmeos. Ambos nasceram no mesmo dia, partilharam do
mesmo ventre, no entanto a morte ceifou primeiro a vida de Paulo vindo Pedro
falecer um (1) mês depois. Embora nos assentos não constem a causa da morte
é possível refutar “o mal de sete dias” mencionado por Falci(2004), já que na
data do óbito a idade com que faleceram (quase 2 anos) excede o número de
dias pelo qual ficou conhecido o mal (7 dias). Nos registros de óbito de Pedro
e Paulo destaca-se ainda a presença de uma crença em uma outra vida a partir
do momento em que menciona que ambos os meninos “faleceram da vida
presente” o que não inviabiliza a existência de outra vida. Outra observação é a
de que apesar dos registros possuírem a mesma estrutura algumas informações
estão presentes em uns e outras não como, por exemplo, a hora aproximada em
que veio a falecer Antonio filho de Maria, a outra escrava de Barros.

148
Antônia, filha de Caetana escrava de propriedade de Olympia Caval-
cante Barros essa provavelmente irmã do referido padre Barros, em sua breve
infância gozou de pouco tempo de convivência com a mãe uma vez que essa é
mencionada como já falecida à época do registro de óbito da pequena. Em se-
melhante caso está a pequena Joanaa que faleceu aos 14 meses e já não contava
mais com a mãe Raimunda escrava de Roberto Joze Muniz. Teria a mãe fale-
cido em decorrência de parto? É uma possibilidade. E Antônia e Joanna como
viveram suas breves vidas sem suas mães? Nascida em dezoito de fevereiro de
mil oitocentos e setenta e sete e falecida em dez de novembro do mesmo ano,
sob que cuidados Antonia vingou até quase seus 9 meses de vida? E Joanna seus
14 meses?
Estudos que abordam estratégias tecidas por escravos para estabelece-
rem vínculos de parentesco demonstram que três eram os caminhos possíveis:
padrinhos escolhidos entre membros da escravaria; da própria família de seu
senhor ou pessoas livres de outras famílias; ou ainda a escolha de um santo. de
devoção. Ambas com a ausência das mães tão prematuramente necessitaram de
cuidados materiais, físicos, logo se exclui o seu apadrinhamento por santo de
devoção. Portanto as madrinhas, elegidos entre os escravos ou de pessoas livres
devem ter sido sua cuidadoras. Débora Gonçalves Silva citando Falci (2012) diz
que o apadrinhamento ligado a espiritualidade não foi prática comum.
Em um dos assentos de óbitos pesquisados o batizado é contemplado

No dia vinte um de abril de mil oitocentos e setenta e trez , tendo nascido


uma criança filha natural de Teresa, solteira, escrava do Tenente Coronel
Honório Jose Nunes Bona foi baptisada em casa por necessidade com o nome
de Manoel, e tendo falecido no mesmo dia, foi sepultado no dia vinte dois no
cemitério da Irmandade de santo Antônio desta Villa de Campo Maior.

A efetivação do batismo estava ligado a duas necessidades: a


preocupação de cumprir os princípios cristãos; ou o interesse de estabelecer
laços de proteção e solidariedade através de compadrio. No contexto da
citação é possível que a necessidade ocorresse por conta da percepção de uma
morte iminente. Era necessário morrer cristão, e nesse contexto por que não
o apadrinhamento espiritual? O local da realização do batismo também deve
dizer algo. Entende-se casa como a propriedade do senhor ou do escravo?
Acredita-se que seja uma referência a casa do escravo, já que conforme Melo

149
(1983) havia uma quadra destinada para a residência dos mesmos, “rua dos
negros” (MELO, 1983, p.100)
A análise do livro em questão aponta para o Tenente Coronel Honório
José Nunes Bona1 como o proprietário com o maior número de escravos. O Te-
nente nasceu em dezembro de 1823 casou-se com dona Maria Joaquina e com
ela teve 5 (cinco) filhos, dos quais apenas três (3) foram identificados: Antônio
José Nunes Bonna, José Nunes Bona e Isaú José Nunes Bona. A família Bona
Primo é uma das famílias naturais e tradicionais da cidade de Campo Maior.
Dos 50 assentos 11 o menciona como o proprietário das escravas.

Proprietário Mulher Filho da Nasceu em Faleceu em Idade


escrava escrava
Teresa Manoel 21/04/1873 21/04/1873 Mesmo
dia em
nasceu
Florencia Constancia 26/08/1872 18/01/1876 3 anos
e4
meses
Tenente Co- Florencia Elizia 24/05/1874 26/01/1876 1 ano e
ronel Honório 8 meses
José Nunes Teresa Luiza 01/07/1875 30/01/1876 6 meses
Bona Florencia Manoel 01/02/1876 RN
(RN)
Maria Maria 19/05/1881( RN
RN)
Brígida Jozé 02/05/1881 01/1882 8 meses
Teresa Rosa 16/02/1883 4 anos
Teresa Antonino 01/03/1883 7 anos
Teresa Constancia 05/03/1883 3 anos
Joaquina Jorge 15/03/1883 1 ano
Tabela 1: Escravas do Tenente Coronel Honorio J. Nunes Bona
Fonte: Livro de óbito dos filhos da mulher escrava

É provável que Teresa e Florencia, cada qual, fosse uma pessoa só, a
repetição dos nomes ocorre em virtude do número de filhos que essas mulheres

1 Lápide 47

150
tinham e perdiam tão logo eles nasciam. Dessa forma o fato do tenente aparecer
onze vezes não indica que ele tinha onze escravas, mas somente cinco (Teresa,
Florencia, Maria, Brigida e Joaquina) ainda assim o maior número encontrado.
Além do Tenente Coronel Honório José Nunes Bona e do Manoel Felix
Cavalcante de Barros outros proprietários de escravas foram identificados. O
senhor Joze Rodrigues de Miranda, o major Antonio da Costa Araújo Filho e
D. Ignes da Costa Araujo. As informações sobre Joze Rodrigues de Miranda
provem de sua laje tumular (435) e de seu registro de óbito. Segundo a docu-
mentação escrita, o falecido era natural de Torem, Reino de Portugal, filho de
Domingos Rodrigues de Azevedo e Maria Rodrigues de Azevedo. Era residente
em Campo Maior e casado com D. Candida Rosa de Miranda. Ele faleceu de
hidropesia aos 64 anos. Um aspecto interessante em sua laje tumular refere-
-se ao termo “legítimo” atribuído à esposa, mas não aos filhos, como apareceu
em outras lápides. No entanto, se a esposa era legítima, consequentemente os
filhos também seriam. Verifica-se ainda que mesmo sendo Luiz Rodrigues de
Miranda casado, ele foi sepultado junto de sua família de origem, ou seja, jun-
to de seu pai e de sua mãe, reconstituindo e atualizando simbolicamente sua
casa, de identificação comum e de permanência e reprodução post mortem do
grupo. Os filhos da mulher escrava não puderam reconstituir simbolicamente
sua família, ainda que desprovida de pai, era sua família sua mãe e seus irmãos
(MOTTA, 2012).
Dentre os pequenos sepultados no Cemitério da Irmandade de Santo
Antônio um (1) não era da Freguesia, mas por aqui morreu e logo ficou regis-
trado no referido livro. Trata-se do caso de Francisca, filha de Luiza escrava de
Francisco Lopes Frago.

No dia oito de abril de mil oito centos setenta e nove falleceu Francisca, de seis
annos de idade, natural da Freguesia de Santa Quiteria da província do Ceará,
e de presente nesta Villa de Campo Maior, filha de Luiza, solteira, escrava de
Francisco Lopes Frago [...]

O que fazia Francisca nesta Villa de Campo Maior? Com quem veio?
De que faleceu? Essas são perguntas cujas respostas se perderam com ela.
No que se refere às enfermidades que levavam a sepultura, não co-
nhecedores das doenças que matavam muitas vezes os padres registravam um
nome descritivo para a causa da morte. Reis (1991, p. 36) referindo-se aos

151
livros de óbito por ele consultado, comenta que a expressão moléstia interior
“era usada quando não se podiam associar os sintomas do moribundo a uma
enfermidade conhecida”. No livro pesquisado sete (7) morreram recém nas-
cidos, cinco (5) viveram somente alguns dias. E apenas 5 apontam as causas
das mortes: em um (1) registro de 1880 foi febre; e quatro (4) assentos de 1883
apontam a causa bexigas.
Adentrando nas causas das mortes contempladas em alguns assentos
de óbito presente no livro constatamos o falecimento de Joaquina:

No dia três de maio de mil oito centos e oitenta falleceu de febres pelas quatro
horas da tarde Joaquina, nascida a vinte quatro de desembro de mil oitocentos
setenta e sete, filha natural de Francisca, solteira, escrava de Geraldo Francisco
Braga [...]

Joaquina tem sua causa da morte atribuída a febres. Muitas são as


causas que podem ocasionar febres, ou seja, ao certo não sabe o que ceifou
sua vida. Quanto às bexigas levaram a sepultura Constância de três anos de
idade (filha de Teresa escrava do Tenente Coronel Honório Jose Nunes Bonna),
Jorge de um ano de idade (filho natural de Joaquina escrava do Tenente
Coronel Honório Jose Nunes Bonna), Antonia de cinco anos de idade (filha
de Athanasia escrava de Antonio de Sousa) e Antonino de sete anos de idade
( filho de Teresa escrava do Tenente Coronel Honório Jose Nunes Bonna )[...]
bexigas” era o nome popular como era, à época, conhecida a varíola. A varíola
é causada pelo vírus Orthopoxvirusvariolae. Ainda permanece desconhecido
o período em que o vírus pode permanecer ativo dentro do corpo de um
indivíduo por isso todas pessoas infectadas foram isoladas ou incineradas para
evitar a contaminação de outras pessoas (SMITH, 2013). Sua transmissão pode
ser de várias formas, mas a principal é por gotículas de salivas expelidas por
pessoas infectadas ao falar, tossir ou espirrar. Existe a possibilidade de o vírus
se espalhar pelo ar infectando as pessoas ao seu redor ou por meio de roupas
ou outros objetos contaminados. A intensificação mais comum dos sintomas
são: diarreias, vômitos, convulsões, delírios, pústulas purulentas pelo corpo
provocando dores e pruridos. As vesículas são as características essenciais na
identificação da doença, pois sua evolução provoca ulceras na pele formando
crostas de tecidos mortos (THEVES; BIAGINI; CRUBEZY, 2014). A prevenção
é a forma mais certa de evitar essa doença. No século XIX o conhecimento que

152
se tinha da mesma era limitado com o avanço da medicina é que ela pôde ser
melhor conhecida.
Retornando aos assentos de óbito verifica-se que a maior expectativa
de vida constatada foi a de 7 anos, dois(2) casos, e 5 anos, com três (3) casos.
Em alguns dos assentos que data do ano de 18832 a necrópole aparece men-
cionada como Cemitério provisório da Irmandade de Santo Antônio. Ou seja,
esses assentos de óbito ajudam a problematizar sobre o funcionamento do se-
pulcrário. Por que o cemitério nesse ano é mencionado como provisório? Seria
isso já uma evidência de sua superlotação? Ou seria algo relacionado à sua
localização? Se o cemitério começou a funcionar, conforme se supõe a partir
da cultura material, em 1804, no ano de 1883 (época em que é citado como
provisório), ele já contava com 79 anos de atividade. No entanto, funcionou até
1978 (data do último sepultamento). Portanto, de 1883 até 1978 foram 95 anos
de uso estendido. Se em 1883 ele já estivesse lotado, como se pressupõe, como
teria funcionado por mais 95 anos? Essa demora pode estar associada a alguma
resistência da população? Ou na demora da escolha de um novo endereço para
os mortos? Infelizmente esses questionamentos não puderam ser respondidos.
Faltam fontes para elucidar melhor essas questões (MORAIS, 2016).
Diante dos vestígios materiais e das fontes escritas se acredita que
quanto ao uso estendido do sepulcrario uma alternativa adotada pode ter sido
a rotatividade de sepulturas o que explica o silêncio da cultura material quanto
a presença dos filhos da mulher escrava no cemitério Santo Antônio. Diante
das características da doença varíola essa rotatividade pode ter sido um risco a
saúde pública, em virtude do desconhecimento de até quando o vírus perma-
necia ativo no corpo do indivíduo.
O livro de registro de óbito termina com várias páginas em branco,
demonstrando uma interrupção abrupta nos lançamentos. Não há o termo de
encerramento como previsto. Tal interrupção nos leva a crer que os registros de
óbito dessas crianças também se fizeram em meio ao dos escravos ou dos livres,
portanto não seguindo a determinação da lei n 2.040 de 28 de setembro de 1871
em fazê-lo em livro específico.

2 De acordo com os assentos de óbito de Rosa ( filha natural de Teresa), Antonino (filho natural
de Teresa), Constância (filha natural de Teresa) e Jorge (filho natural de Joaquina) encontrados
no Livro de óbito dos filhos da mulher escrava da Freguesia de Campo Maior (1873 a 1883) já em
1883 o cemitério aparece mencionado como provisório, embora não cite as causas.

153
Considerações finais

Os filhos da mulher escrava foram um dos sujeitos que


repousaram na necrópole denominada Cemitério (da Irmandade) Santo
Antônio, ainda que temporariamente. Eram crianças identificadas tão
somente pelo pré-nome, criadas por suas mães e que tiveram irmãos
que não chegaram a conhecer ou que desfrutaram de pouco tempo para
compartilhar com eles o amor fraternal. Pode-se dizer que o reflexo da
lei na vida das crianças foi pouco já que tal como suas mães continuaram
ligadas a um senhor e, portanto viveram suas breves vidas no âmbito da
escravidão. Na morte a lei propiciou a eles um livro especial, o que não os
dava de fato uma definição, uma história ou até mesmo uma identidade.
O que não os tornava especial, mas marginalizados. A existência do
livro exigido por lei cumpria uma determinação legal e que a julgar
pelas páginas em branco não foram fielmente cumpridas. Dessa forma
o fato dessas crianças serem enterradas no espaço mortuário citado e de
possuírem um registro de óbito especificado para eles, permite dizer que
os mesmos gozavam de uma condição social diferenciada de suas mães,
mas que livres eles não foram. A análise dos assentos de óbitos permite
afirmar que nenhum deles chegou a completar a idade de 8 anos e
conforme a Lei do Ventre livre até essa idade eles eram responsabilidade
dos senhores de suas mãe que deveriam criá-los e tratá-los. A propósito
diante das baixas expectativas de vida, da breve infância dos pequenos
fica o questionamento de tais cuidados recebidos por seus senhores.
Tudo isso só confirma o pensamento de Rui Barbosa que calculava que,
se fosse esperado os efeitos da lei, a escravidão só estaria extinta nos
meados do século XX (COSTA, 2007, p.337).

Referências
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dos: o batismo dos filhos de ventre livre (Porto Alegre RS-1871/1888). Revista
Brasileira de História & Ciências sociais. vol.7, n.13, Porto Alegre RS, jul. 2015

154
,p. 82, p. 92.

COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 8ª


Ed.São Paulo: Fundação editora UNESP,2007. p.337.

COSTA, F.A. Pereira. Cronologia Histórica do Estado do Piauí. 2° Ed.Teresina:


APL; FUNDAC; DETRAN, 2010.

MARTINS, Maria Claudia de Oliveira; VICENZI, Renilda. Crianças de cor:


os (des) rumos dos filhos do ventre livre. Cadernos do CEOM- ano 27, n.40.
2013.

MELO, Pe Claudio. Os primórdios de nossa história. Texto não publicado. Ar-


quivo Público do Piauí. Sala de reservas relativas ao poder executivo e legisla-
tivo. 1983.p.100

MORAIS, Jessica Gadelha. Aqui jazem muitas histórias: estudo arqueológico do


acervo histórico do cemitério Santo Antônio em Campo Maior – Piauí (1804-
1978). Teresina, 2016. Dissertação (Arqueologia Histórica) - Universidade Fe-
deral do Piauí, 2016.

MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Ingênuas mortes negras: doenças e óbitos


dos filhos do ventre livre (Porto Alegre RS-1871/1888). Revista territórios &
Fronteiras. vol.6, n.2, Cuiabá ,jul/dez, 2013.

MOTTA, Antônio. Pessoas, genealogias e lugares mortuários: lógicas de nomi-


nação, de distinção e de reconhecimento entre elites brasileiras e portuguesas
em cemitérios oitocentistas. In: TRAJANO FILHO, Wilson (Org.). Lugares,
pessoas e grupos: as lógicas de pertencimento em perspectiva internacional. 2.
ed. Brasília: ABA publicações, 2012.

SILVA, Déborah Gonsalves. Família escrava e compadrio na freguesia de São


Raimundo Nonato-PI (1872-1888). Anais do VI Simpósio Nacional de História
Cultural. Escritas da História: Ver- Sentir-Narrar. Teresina, 2012. Disponível
em http://www.gthistoriacultural.com.br/VIsimposio/

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.36

SMITH, K.l A. Smallpox: canwe still learnfromthejourneytoeradication. Indian


Journalof MedicalResearch, v. 137, n. 5, p. 895–899, 2013.

155
THEVES, C.; BIAGINI, P.; CRUBEZY, E. The rediscoveryofsmallpox. Clinical-
MicrobiologyInfection, v. 20, p. 210–218, 2014.

Fontes:
Lápide 47 do Cemitério (da Irmandade) de Santo Antônio

Lápide 435(1982-1908-1948) do Cemitério (da Irmandade) de Santo Antônio

Livro de óbito dos filhos da mulher escrava.

156
Em busca do Estado-Nação: devires do
pensamento social e forças da tradição
nas ideias de Júlio de Mesquita Filho

Francisco Adriano Leal Macêdo


Mestrando PPGHB – UFPI

Shirley Pereira Cardoso


Mestranda – UFAM

Intelectuais como fios de compreensão da História



Este objeto de pesquisa se insere no horizonte de estudos em que a
historiografia tem se enveredado com frequência desde a década de 19801. A
escrita contemporânea da História, que outrora privilegiou modelos históri-
co-estruturais, passou a refletir também sobre o pensamento social de sujei-
tos de épocas anteriores. A História Intelectual, por vezes nomeada História
das Ideias, define esses indivíduos como “intérpretes do Brasil”, portadores de

1 Angela de Castro Gomes argumentou que as novas abordagens da historiografia depois da


década de 1980 lançou novos objetos e fundou novas interpretações da História do Brasil. Um
exemplo dessa tendência é a história intelectual, ou história das teorias e dos sistemas de pen-
samento que manejavam a visão de mundo de sujeitos que se propuseram pensar a realidade
nacional. Ver: GOMES, Angela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980:
notas para debate. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.34, jul-dez, 2004. p. 157-186.

157
“diagnósticos” e “projetos” para a Nação2. Essa preocupação com o que pensa-
vam e desejavam esses personagens do mundo intelectual é tal que, na virada
do milênio, ganhou status comemorativo, com a Folha de S. Paulo lançando a
coleção de livros Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro. Conforme explici-
tado na apresentação de cada volume, o leitor deveria “entender como o Brasil
se tornou o que é” (SILVA, 2000). Esse mote ambicioso, para além dos símbolos
e conflitos epistemológicos envolvidos, não demonstra sinais de esgotamento.
Os esforços em estudar os intelectuais que atuaram na cena política e
social brasileira tomam como objeto de análise indivíduos dos séculos XIX e
XX. As conclusões apresentadas possuem semelhanças e diferenças sutis, va-
riando conforme a temporalidade e os conceitos que os preocuparam. O per-
sonagem aqui estudado foi um intelectual paulista que atuou no século XX
através de livros publicados e editoriais em seu próprio jornal, a saber, O Estado
de São Paulo. Trata-se de Júlio de Mesquita Filho, indivíduo cuja notoriedade
familiar já vinha sendo consolidada desde o século XIX. Frente às fontes pes-
quisadas sobre o sujeito em questão, encontramos a “possibilidade metodológi-
ca de se trabalhar com a dimensão social do pensamento e das ideias dos atores,
explorando-se fontes que indicam ‘pistas’ e ‘indícios’” (GOMES, 2004, p. 161).
Os regimes de historicidade em que estão inseridos os textos do pas-
sado possuem características sociais, éticas e políticas que os definem. São ou-
tras ordens de tempo, se quisermos usar o termo de François Hartog. Busca-se
perceber qual historicidade atravessava aquelas tentativas de interpretação da
sociedade através da historiografia, também passível de ser transplantada para
textos de intelectuais que não foram especificamente historiadores. Júlio de
Mesquita Filho pode ser identificado como um homem das letras, não sendo
um historiador de fato. O seu local de difusão de ideias era o jornal O Estado
de São Paulo, do qual foi proprietário por quase toda a vida, a partir de 1927.
Em confronto com ideias que o precederam, textos de fundação do IHGB são
interessantes para refletir sobre quais demandas esses escritos buscaram suprir,
bem como quais perspectivas de análise assumiram.
O moderno Estado-Nação é Europeu. Traduz-se em referências mile-
nares, ancoradas em mitos de origem e passado étnico comum. Essa memória
2 Para elencar uma bibliografia sobre este tema, podemos citar os estudos empreendidos pelas
historiadoras Tânia Regina de Lucca e Maria Stella Bresciani, respectivamente. Ver: BRESCIANI,
Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre
intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2007. DE LUCA, Tania Regina. A Revista do
Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

158
histórica é como um lago assentado, e a identificação com ser inglês, francês ou
alemão é mais estável, menos conflituosa. Dentro da lógica da América Latina,
os conflitos são prementes. Os intelectuais, de diversos locus, se apressam em
apresentar – a partir de certos métodos e teorias – um ser das novas nações.
Dentro da lógica metódica própria do século XIX, o IHGB se constituiu como
mecanismo imperial de produzir uma História comemorativa. Em 1925, o jor-
nalista Júlio de Mesquita Filho – proprietário e diretor do Jornal O Estado de
São Paulo se colocava como um hommes de lettres e empreendia uma escri-
ta que pode ser vista como manifesto. Tratava-se de um trabalho intitulado
A crise nacional, publicado originalmente no seu jornal e diagramado poste-
riormente em formato de livro. Traçaremos um paralelo de como os textos de
intelectuais podem ser vistos em complementaridades, mesmo separados por
durações longas.
Ideias de cultura e sociedade se efetuam como prioridade numa tarefa
de tal grandiosidade, como a retórica de uma Nação. Logo, essas noções serão
centrais e complementares. Pretende-se problematizar lugares-comuns, ideias
que sutilmente se inserem nos nossos tempos numa genealogia desavisada. E,
como não poderia deixar de ser num texto de História, buscamos a palavra
ferina, que incomoda e abala ídolos.

Esboços de um personagem e seu(s) tempo(s): reflexão


prévia sobre clima e contexto

Júlio de Mesquita Filho nasceu na cidade de São Paulo no dia 14 de


fevereiro de 1892, filho de Júlio César de Mesquita e de Lucila Cerqueira César
de Mesquita. Seu pai foi advogado, deputado estadual na “República Velha” e
proprietário do jornal O Estado de São Paulo, fundado originalmente com o
nome de A Província de São Paulo por seu avô materno, José Alves de Cerquei-
ra César, grande proprietário rural representante da lavoura cafeeira do Oeste
Novo paulista. Sua irmã, Raquel Mesquita, casou-se com Armando de Sales
Oliveira, interventor federal em São Paulo de 1933 a 1935, governador de 1935
a 1936 e candidato à presidência da República nas frustradas eleições de 19383.
Pertencente a uma família cujo pioneirismo no jornalismo – ofício conhecido
por eleger os temas de discussão e definir suas relevâncias – Mesquita Filho se
3 Ver: FERREIRA. Marieta de Moraes. Júlio de Mesquita Filho. Verbete Biográfico. Disponível
em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo> acessado em 10 de jul. de 2019.

159
enveredaria ao longo de sua trajetória de vida pelos terrenos da política brasi-
leira, sendo não apenas um observador passivo, mas também um participante,
militante em seus escritos e, em determinados momentos, como homem de
armas (SEVCENKO, 1983).
Na década de 1930, foi obrigado a sair do Brasil duas vezes pelo gover-
no de Getúlio Vargas. O primeiro desterro se deu em outubro de 1932, firman-
do uma estadia em Portugal, de onde retornaria no final do ano seguinte. O
motivo do primeiro exílio fora a sua participação destacada na guerra civil que
os seus correligionários chamaram de “Revolução Constitucionalista”. Quando
compôs as trincheiras para enfrentar a União das demais unidades da federa-
ção, Mesquita Filho canaliza os anseios paulistas pelo retorno da Constitui-
ção, suspensa desde 1930. Poucos anos mais tarde, com o advento do “Estado
Novo”, o jornalista é mais uma vez forçado a deixar o país. Essas duas situações
de ostracismo demonstram a relação conflituosa de um sujeito com o poder
político, cujos flertes ora se aproximam, ora se distanciam do status quo. Os
lugares políticos e teóricos que o atravessaram no decorrer de sua trajetória são
escorregadios, repletos de alianças e rupturas.
Fazendo as vezes de cientista social, publicou livros que, notadamente,
tinham ambições diagnósticas sobre o Brasil e os seus pretensos problemas. Seu
primeiro livro publicado, ainda em 1925, tinha o título sugestivo de A crise Na-
cional. No texto, é elaborado um perfil da Nação brasileira, argumentando que
se fazia necessária uma análise apurada “para elucidar o problema da adaptação
definitiva da democracia ao Brasil” e conclui listando “soluções para o caso bra-
sileiro”4. Encarnando um intelectual polissêmico, que afirmava não separar o
pensamento da ação, Mesquita Filho se inscreve numa tradição de pensadores
que deram sua versão sobre os problemas existentes na sociedade, bem como
suas possíveis soluções. As vontades de verdade presentes nos seus textos, se
cruzadas com outras informações deixadas pelo seu escritor, podem fornecer
valiosas pistas sobre suas prioridades.
Essa complementaridade entre pensamento e ação na atuação do per-
sonagem é tomada como ponto de partida do fio condutor da pesquisa que
se propôs pensar dimensões da política e da sociedade entre 1932 – ano do

4 Ver: MESQUITA FILHO, Júlio de. A crise nacional: reflexões em torno de uma data. Secção de
obras d’O Estado de São Paulo, 1925. Outras obras que publicaria, como A Europa que vi, Nor-
deste, Ensaios sul-americanos, Memórias de um revolucionário e Política e cultura, seguiam uma
proposta semelhante, engajada em torno de ideais e, em certo sentido, utopias.

160
movimento constitucionalista e primeiro exílio – e 1964, quando Mesquita Fi-
lho participou como um dos conspiradores em torno do golpe militar, então
dito “Revolução” (MACÊDO, 2018). Entre as considerações que esse trabalho
permitiu, é notável a característica do intelectual em deslocar o seu centro de
interesse na matriz explicativa do Brasil para o seu lugar de fala/escrita, região
territorial em que erigiu sua própria identidade. Esse é um fenômeno recor-
rente apontado por Stella Bresciani sobre os chamados “intérpretes do Bra-
sil”, no sentido de que onde eles estão é o epicentro da cultura, do saber e da
brasilidade (BRESCIANI, 2007, p. 227). Esse é o tipo de argumento que leva
em consideração determinismos mesológicos, ilustrado por Nicolau Sevcenko
quando escreve que Júlio de Mesquita Filho era um dos homens das letras que
pretendiam tornar São Paulo o maior centro científico da américa latina (SE-
VCENKO, 1992, p. 231). Nos seus escritos e nas páginas do jornal, como disse
a historiadora Maria Helena Capelato, “o saber sociológico era tido como im-
prescindível para a análise da sociedade e das soluções adequadas a seus pro-
blemas” (CAPELATO, 1989, p. 22).
Dentro das questões que se desdobram no interior do trabalho mono-
gráfico supracitado, a partir da tomada dessas noções aparentemente inconci-
liáveis, podemos refletir sobre como os projetos dos engajados “por uma ideia
de Brasil” trazem consigo uma série de paradoxos5. Uma hipótese nascida do
texto produzido sobre Júlio de Mesquita Filho foi que os conceitos que compu-
seram as paisagens políticas nos tempos em que esteve mergulhado possuíam
acentuada influência do passado, que se definiria no desejo de criação de fu-
turos que espelhasse os tempos pretéritos (KOSELLECK, 2006, p. 102). Uma
questão que nos inquieta a realizar essa pesquisa é refletir em que medida a
ideia transcendente de “Nação” se aproximava do sujeito imanente, que parecia
querer se colocar como arauto de um país futuro. Em que medida a força das
tradições operavam – no caso brasileiro, um regime escravocrata que durou por
três séculos – nos sujeitos que encarnavam os projetos de Estado-Nação? Pode-
mos encontrar pistas estudando três textos escritos por Mesquita Filho: A crise
nacional, Nordeste – com pretensões intelectuais – e um relato autobiográfico,
nunca levado a publicação integral.

5 Como exemplo de engajamentos por uma projeção de Brasil, citamos Monteiro Lobato e Júlio
Mesquita – pai de Júlio de Mesquita Filho – que tiveram sua atuação em torno da Revista do Bra-
sil analisada pela historiadora Tania Regina de Luca. Ver: DE LUCA, Tania Regina. A Revista do
Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

161
Grandes causas e grandes efeitos: a dialética mecânica da
crise em 1925

Para situar qual era o projeto de Nação que Mesquita Filho pensara
antes do início de sua carreira como jornalista, utilizaremos a sua primeira obra
publicada, A Crise nacional (1925). Esse livro marca o início das suas atividades
intelectuais, e, como sugere seu título, atesta que existe uma crise generalizada
no Brasil e estabelece suas causas e possíveis soluções. Em sua escrita, fala des-
de os “efeitos da lei de 13 de maio”, dá sua posição sobre modelos de governo,
economia e demonstra interesse pela criação das universidades. Nesse ponto, a
ideia de crise manifesta posição de discordância conflituosa com o status quo.
Essa é a primeira relação notada na qual são confrontados o intelectual e a rea-
lidade nacional.
Os manifestos estiveram em evidência naquela década que seria a úl-
tima da chamada “República Velha”. Como comburente desses ditos e escritos,
uma certa vontade de resolver as coisas. Mas não apenas isto. Implicitamente, o
desejo de vanguarda e de preconizar os tempos vindouros fazia-se presente em
cada palavra. O Manifesto do Pau Brasil de Oswald de Andrade e O Manifesto
regionalista de Gilberto Freyre são exemplares clássicos de tentativas de fun-
dação de ética e estéticas nacionais. Em São Paulo, em quinze de novembro de
1925, um intelectual que fazia carreira como dono do matutino O Estado de São
Paulo ensaiava o seu projeto vanguardista para a Nação. O texto de debute de
Júlio de Mesquita Filho possui um título forte, mostrando a que veio – A crise
Nacional. O Estado havia lançado nomes como Euclides da Cunha, a saber, pelo
próprio membro fundador, Júlio Mesquita. A sede desse empreendimento de
imprensa era assiduamente frequentada por intelectuais e homens das letras já
proeminentes como Monteiro Lobato e Olavo Bilac, sequiosos pela divulgação
que um noticioso de ampla circulação poderia proporcionar. Talvez encorajado
por esses sujeitos, Mesquita Filho lança o primeiro livro, fortemente engajado
em torno da ideia de República.
O texto integral foi publicado originalmente na edição do jornal na
data em que se comemorava a proclamação da República – daí o subtítulo “re-
flexões em torno de uma data”. Esse escrito ganharia formato de livro prova-

162
velmente pelo fato do seu autor tê-lo considerado merecedor de um formato
menos efêmero. A “secção de obras d’O Estado de São Paulo” diagramou o livro
de tal modo que trazia uma citação de Goethe na capa: “Onde vejo grandes
effeitos, sempre supponho grandes causas”. Essa epígrafe reforça a ideia de uma
visão dialética de sociedade que revela o pensamento do autor. Em sua análise
de “grandes causas” que geraram “grandes efeitos” – a crise –, o primeiro tema
é a monarquia. Com os tempos do Segundo Reinado descrito com palavras
otimistas – saudosas, até – essa é uma das primeiras evidências do passado de
tradição que Mesquita Filho atribui como sendo um período em que se havia
neutralizado “os males que mais tarde tão grandes proporções assumiriam, ine-
rentes a tendência autocrática do brasileiro”. O que teria mantido esses “males”
distantes: “a presença de Pedro II, espírito culto [...] figura serena do soberano”
(MESQUITA FILHO, 1925, p. 8).
Esse tempo de suposta estabilidade política cairia por terra por ocasião
do “decreto de 13 de maio, [quando] entrou a circular no sistema arterial do
nosso organismo político a massa impura e formidável de dois milhões de ne-
gros” [Sic!] (MESQUITA FILHO, 1925, p. 9). Esse brusco diagnóstico remete a
notas de um pensamento sociológico amplamente difundido nas academias a
partir do século XIX, cujas pistas mais veladas puderam ser parcialmente des-
vendadas apenas nos estudos antropológicos recentes. As referências a “massa
impura e formidável” dos antigos escravos na sociedade possui fundamentos
e lugares-comuns sobre cultura. A historicidade da ideia de cultura perpassa
pela construção dos Estados-Nacionais e, nesse caso, instrumentaliza um inte-
lectual a refletir sobre “a crise nacional” brasileira na terceira década do século
XX. Mesquita Filho demonstra estar entre aqueles que epistemologicamente
“proclamam a necessidade de um período de incubação ética para preparar
homens e mulheres para a cidadania política” e que, por outro lado “negam aos
povos coloniais o direito à autodeterminação até serem suficientemente «civili-
zados» para o exercício das suas responsabilidades” (EAGLETON, 2003, p. 18).
Em termos crus, acrescenta que “o afluxo repentino de toxinas” – em
referência a inserção dos antigos escravos como cidadãos – levou a “consciência
nacional” que estaria se fortalecendo nos tempos imperiais a apresentar ime-
diatamente “os mais alarmantes sintomas de decadência moral” (MESQUITA
FILHO, 1925, p. 11). Os fundamentos dessa dialética, onde grandes causas e
grandes efeitos são axiomas de processos mecanicistas, não usa eufemismos ou

163
subterfúgios. Afirma peremptoriamente: a abolição da escravidão tem como
desfecho o que chamou de “crise nacional”. O fatalismo em torno de ideias que
remete a esse “mal” traz um obscuro determinismo. Através de algumas analo-
gias e termos médicos, Júlio de Mesquita Filho afirma que a “doença” política e
cultural do Brasil vem de uma “vibração sempre maior do elemento patógeno”.
A catástrofe política que ele observava no Brasil nos anos derradeiros da Pri-
meira República seria outra manifestação da visão epistemológica de mundo
que pensava o globo terrestre como um continuum de tempos diferentes e um
desenvolvimento unilinear (LANDER, 2005).
A partir dessas afirmações tautológicas em seu livro inaugural, salta
aos olhos uma lógica de sentido transcendente e exterior. Não existe traços de
hesitação nesses argumentos. Um sólido construto teórico amparava aquelas
conclusões, a exemplo da bibliografia europeia que se fazia presente na sua bi-
blioteca pessoal. Dentre as concepções de Estado-nação moderno, se avultou na
Europa a ideia de homogeneidade étnica e cultural da população, tema de estu-
do de Benedict Anderson em Comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008).
Esse pressuposto terminaria ecoando pelo mundo, chegando com grande rapi-
dez na América Latina. Esse fenômeno de intelectuais engajados em construir
nações latinas articulado em torno da ideia de raça já conta com excelentes
análises, como a de Jeane Delaney sobre as tentativas da intelligentsia e ações
de Estado para consolidar uma nacionalidade argentina (DELANEY, 2014). No
caso da retórica de Mesquita Filho Sobre a Nação, o fim da escravidão e a súbita
transformação de “coisas” em cidadãos deitaria por terra as esperanças de um
país aos moldes etnicamente “civilizados”.
De acordo com a volumosa quantidade de informação deixada por
este intelectual que exerceu uma atuação sui generis em empreitadas tão he-
terogêneas, pode ser percebida uma atmosfera de tradição, como uma busca
constante por recuperar “o chão sob seus pés”. Dentro daquilo que Michel Fou-
cault chamou de “crise da representação”, o sujeito que escreve A crise nacional
dedica sua eloquência ao estudo de um objeto ao qual ele próprio se mistura.
Na mise en scène da sociedade brasileira representada nesse livro – que localizo
com tons de manifesto, apesar de não ter se colocado claramente com esse ob-
jetivo –, a nostalgia de um tempo perdido é o elemento sensível. Uma lista de
mazelas começa a ser apontada, ainda sob a fórmula de “grandes causas e gran-
des efeitos”. O sistema de oligarquias, por exemplo, é localizado como causa

164
direta da “mentalidade primitiva” a circular no metabolismo político do país, já
que estava convencido de que a nação havia “entrado para a categoria daqueles
povos que ‘preferem um governo qualquer a se governarem por si mesmos’”
(MESQUITA FILHO, 1925, p. 16).
Se considerarmos o autor de A crise nacional dentro do que estudiosos
críticos como Stella Bresciani e Carlos Guilherme Mota chamaram de intér-
pretes ou ideólogos do Brasil – visto que além desse livro diagnóstico, escreveu
outros com escopo semelhante –, vemos alguns ineditismos em suas análises,
pelo menos acerca do que é mais divulgado. Em termos de circulação, talvez
devido a concepções hoje claramente inadmissíveis nos círculos intelectuais,
seus livros não são mais publicados. Todavia, sujeitos como Monteiro Lobato e
Oliveira Vianna leram e elogiaram os escritos de Mesquita Filho, sendo Vianna
chegou a publicar uma resenha elogiosa a um artigo escrito por Mesquita (OLI-
VEIRA VIANNA, 1923). Dentro do que pode ser considerado em suas análises
como ineditismo nessa sua “interpretação” é o fato de que, ao falar de crise, não
retorna à colonização (BRESCIANI, p. 406), mas se detém na abolição da escra-
vidão como “mal de origem”. Compartilhava com outros pensadores da época,
a abordagem intelectual de um dos chamados universais – O Estado –, que
implicava em vários outros, como Verdade, Justiça e Lei, investidos igualmente
de teor meta-histórico.

“Um sistema de representação e valores”: indivíduo e


sociedade entrelaçados em 1962

Saltemos para a década de 1960, quando duas informações se tornam


material privilegiado de observação das ideias de Júlio de Mesquita Filho na
quarta década após a publicação de A crise nacional: o relato autobiográfico
de Mesquita Filho e a visita que recebeu do filósofo Jean-Paul Sartre, narra-
da por Jorge Amado no livro Navegação de Cabotagem. Podemos aqui atestar
a sua concepção de civilização como algo que o demarcava enquanto sujeito,
apresentando muitas semelhanças às concepções que tinha ao redigir A crise
nacional. As suas ideias do lugar social da “raça” negra o insere numa linha de
pensamento que já estava, em alguma medida, sendo abandonada por outros
dos seus contemporâneos – a exemplo de Gilberto Freyre.
O paradigma epistemológico tomado por Júlio de Mesquita Filho para

165
pensar o lugar do negro na sociedade brasileira, caso tivesse sido levado ao
conhecimento de Sartre, seguramente poderia ser um motivo para chamá-lo
de “reacionário” e “conservador”, como o teria sido, segundo o relato de Jorge
Amado em seu livro. O esforço memorialístico feito por Mesquita Filho em
seu relato é bastante significativo: “Que é uma civilização, senão um sistema de
representação e valores? Ora, a nossa civilização é cada vez mais tributária da
civilização ocidental e cada vez menos dos elementos ameríndios e africanos”.
Essas palavras fornecem sinais preliminares da sua ideia do que compõe uma
“civilização”, legando um lugar de privilégios para “o elemento branco ociden-
tal”.

O negro trouxe uma contribuição realmente interessante, quanto ao colorido


e ao pitoresco, para os nossos usos e costumes, para o nosso folclore e para a
nossa música. Quanto à pureza da mentalidade primitiva dos descendentes de
africanos, a sua influência não pode deixar de prejudicar a homogeneidade
que seria de desejar para o pensamento nacional. Estou convencido de que a
eficiência cultural e mental de uma nação está na razão inversa da soma de ele-
mentos místicos que por ventura ainda possam atuar na mentalidade de suas
massas. A capacidade política, a solidez moral e, portanto, das instituições de
um povo são, evidentemente, uma função da predominância de uma ou de
outra das duas mentalidades6.

Em uma abordagem que já vinha caindo em descrédito no seio do pen-


samento social desde os anos de 1930, com obras como Casa Grande & Senzala
de Gilberto Freyre, esse trecho afirma que para além do folclore e ao “colorido
e pitoresco”, a contribuição das etnias africanas no Brasil não era outra senão
uma mentalidade primitiva – ecoando seu pensamento em A crise nacional.
Dentro do “sistema de representações e valores” que compunham uma civili-
zação, indivíduos “nos albores da mentalidade ocidental propriamente dita” só
teria a contribuir com “elementos místicos” que envenenariam as instituições, a
moral e a capacidade política do povo. É como se não houvesse lugar para o ne-
gro na sociedade brasileira, e que o moderno Estado Nação não fosse possível
onde o misticismo de elementos de graus anteriores da evolução desse as cartas
(Sic). Para reforçar essa ideia, trago o trecho do livro de Júlio de Mesquita Filho
Nordeste, cujos argumentos se ancoram em perspectiva semelhante:
6 MESQUITA FILHO, Júlio de. Escritos avulsos, datilografados e rabiscados pelo autor. p. 1.
Fonte cedida por Ruy Mesquita Filho, do seu arquivo particular. p. 17. Não publicado.

166
A porcentagem de homens de cor – pretos e mulatos – que na Bahia atinge
mais de 60% da população, segundo o censo demográfico de 1955, entra, em
nossa opinião, como fator preponderante na explicação do atraso em que se
encontra ali a agricultura. Não pretendemos, com isto, diminuir a capacidade
da raça negra; mas é evidente na grande maioria dos seus componentes aquilo
que a sociologia denomina de “mentalidade primitiva” a torna praticamente
inadaptável às atividades agrícolas (MESQUITA FILHO, 1963, p. 14).

A sua visão de Sociologia na década de 1960 baseava-se em categorias


de raças. A publicação desse livro nesses termos torna evidente que, em um
indivíduo, podem conviver ideias que, em tese, seriam antagônicas. O libera-
lismo, renomeado pelo personagem como uma “magnífica doutrina”, absolu-
tamente democrático; por outro lado, uma perspectiva sociológica que exclui
uma grande parcela do povo de um país como o Brasil, posto ela ser prejudicial
para seu “sistema de representação e valores”. A sua concepção de sociedade
infiltrava-se, também, na sua vida privada. Sobre isso, as linhas finais do seu es-
crito autobiográfico são reveladoras. Segundo ele, existia uma mania da “maio-
ria dos pretos de combater a carapinha”, categorizando o suposto costume dos
negros de alisarem os cabelos como “terríveis recalques que fazem da maioria
dos mulatos indisfarçáveis seres desgraçados e, de quase todo preto, um mar-
ginal em choque permanente com o seu meio”.7 Encerrando o seu pensamento
nessa escrita de si, declara: “por todas essas razões é obvio que eu não aceitaria
jamais, voluntariamente, o casamento de qualquer membro de minha família
com gente indisfarçavelmente de cor”.8
É possível imaginar qual efeito teriam tido essas declarações, caso che-
gassem aos ouvidos do filósofo francês. Buscamos compreender por que Júlio
de Mesquita Filho, o sujeito que pertenceu ao seu tempo, é definido em polos
como reacionário e conservador. Nessa senda, no exercício de perceber o per-
sonagem para além das certezas e coerências, o que me aproximo a defini-lo é
como alguém que vivenciou os “perigos” da vida; dessa forma, não escaparia da
vontade dos indivíduos em imprimir sua marca na História e, simultaneamen-
te, seria marcado e demarcado por ela. Nesses termos, as palavras cumprem sua
7 MESQUITA FILHO, Júlio de. Escritos avulsos, datilografados e rabiscados pelo autor. p. 1.
Fonte cedida por Ruy Mesquita Filho, do seu arquivo particular. Não publicado.
8 MESQUITA FILHO, Júlio de. Escritos avulsos, datilografados e rabiscados pelo autor. p. 1.
Fonte cedida por Ruy Mesquita Filho, do seu arquivo particular. Não publicado.

167
tarefa, pintando quimeras e dividindo os sujeitos e suas ideias em categorias
éticas e morais, enquanto os indivíduos marcham por entre regimes de histo-
ricidade que os caracterizam e, de maneira simultânea, os influenciam (HAR-
TOG, 2014). No próximo tópico, examinamos as permanências da ideia sobre
raça nas publicações seguintes, usando como baliza comparativa um trabalho
do seu contemporâneo Gilberto Freyre.

Dois livros-engrenagem: os “Nordestes” de Júlio de Mes-


quita Filho e Gilberto Freyre
Cada atualidade reúne movimentos de origem e de ritmo diferente: o tempo de
hoje data simultaneamente de ontem, de anteontem, de antanho.
(Fernand Braudel)

Essa seção lança um olhar sobre as intermitências do pensamento so-


cial brasileiro a partir de escritos de Gilberto Freyre e Júlio de Mesquita Filho,
dois indivíduos que ocuparam posições diferentes no debate intelectual do país
entre a terceira e a sétima década do século XX. Buscar-se-á a partir da análise
empírica de dois livros homônimos – ambos intitulados Nordeste, cada qual de
um dos pensadores supracitados – perceber as rupturas e permanências epis-
temológicas na criação/invenção e interpretação de espaços e lugares sociais do
Brasil pela intelectualidade. Nas trilhas deixadas pelas ideias destes dois inter-
pretes/ideólogos da cultura e da sociedade brasileira, é possível perceber certos
engajamentos e visões de mundo particulares, bem como pinceladas de para-
digmas que dão tons aos devires científicos de época. O interesse especial pelo
signo “Nordeste” indica elementos em disputa para definição, circunscrição e
simbolização. Para compor os referenciais teórico-metodológicos, autores tais
como Fernand Braudel e Claude-Lévi Strauss, para pensarmos noções de du-
ração e evolução histórica. Os elementos e componentes em análise se mostra-
ram não ser monocromáticos, tampouco unânimes; Freyre e Mesquita Filho,
ainda que habitem atmosferas históricas semelhantes, se afastam em diversos
segmentos.
Os escritos a serem utilizados como âncora dessa reflexão possuem o
mesmo título – Nordeste –, um de autoria do proprietário do Jornal O Estado de
São Paulo – Júlio de Mesquita Filho – no início da década de 1960 (MESQUITA
FILHO, 1963) e o outro do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, publica-

168
do a primeira vez em 1937 (FREYRE, 1967). A edição aqui trabalhada é, toda-
via, do ano de 1967 – que traz consigo um prefácio lavrado em 1961. A análise
comparada desses textos indicam os percursos das ideias que germinaram de
um significante comum, possibilitando escrutinar em que medida as noções de
evolução e progresso no terreno do pensamento social se aplicam.
No caso de Gilberto Freyre, o seu Nordeste é caracterizado por um
intenso e contraditório processo de rupturas epistemológicas, com algumas
permanências que faz o enunciado do livro ser quase paradoxal. A confluência
de paradigmas das ciências sociais e mesmo da ecologia produzem uma forte
verossimilhança, demonstrando a força da narrativa das obras dos chamados
“intérpretes do Brasil” – título atribuído aos intelectuais que se aventuraram em
nomear o que era o Brasil. Júlio de Mesquita Filho escreveu os textos reunidos
sob o título de “Nordeste” originalmente como editorial do próprio jornal, mais
de duas décadas depois do lançamento da primeira edição do livro de Freyre.
A chave da leitura panorâmica aqui proposta é guiada pela ideia for-
necida por Gilles Deleuze que não nos perguntaremos o que os livros “querem
dizer”, mas observaremos em conexão com o que ele funciona: “Não há nada
a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica”.
Esses livros são como engrenagens que tornam possível a apreensão de pedaços
de mundo e das ideias que o povoam. Eles podem envelhecer ou ganhar novas
vidas. Esse crivo torna possível perceber esses dois livros como documentos
históricos, bem como estudos interessantes para compreensão da região que foi
inventada durante o século XX.
Claude Lévi Strauss, antropólogo que curiosamente esteve no Brasil
nos anos 1930 a convite do grupo de Júlio de Mesquita Filho na USP, escreveu
em Raça e história que o chamado “progresso” humano e cultural não é linear
ou cumulativo. Essa acepção teórica dá a ver que as temporalidades não teleoló-
gicas que norteiam a produção e circulação de ideias (LÉVI-STRAUSS, 1980).
Nos interciclos das durações históricas é possível notar a curvatura e
profundidade de metamorfoses no pensamento e na circulação de ideias. Os
sulcos cavados pelo rio das novas ou velhas ideias nas margens das ciências
sociais também são elementos passíveis de análise histórica. Para empreender
um estudo desse tipo, é importante manter os olhos na advertência braudeliana
sobre pontos de inflexão abruptos serem, em grande medida, elementos enga-
nadores (BRAUDEL, 1976, p. 14). Partindo dessa formulação do historiador

169
francês, encontramos um caminho possível para conhecer as transformações
no pensamento de estudiosos brasileiros do século XX, que inseridos em pers-
pectivas diferentes, chegam a conclusões algumas vezes opostas.
Mesquita Filho fala de uma “incontestável inferioridade do trabalha-
dor rural baiano [...] trata-se de uma questão de mentalidade, que faz com que
o camponês da Bahia permaneça de mais próximo das suas origens sociais afri-
canas” [sic]. Segue ele argumentando que esse fenômeno torna “o elemento
humano dessa região num ser híbrido que ainda está longe de se integrar defi-
nitivamente na estrutura essencialmente econômica da civilização contempo-
rânea” (MESQUITA FILHO, 1963, p. 16).
Nordeste de Freyre é confessadamente impressionista, buscando retra-
tar uma presença sobre o assim chamado Nordeste, em suas essências senso-
riais e subjetivas. O movimento de vanguarda impressionista pretendia apelar
para a dimensão subjetiva em busca de “criar” uma realidade, sempre aliado
com traços científicos que forneceram ao texto um “charme de ciência”. Freyre
alia isso a elementos empíricos e de pesquisa, resultando num texto fortemente
sedutor. Os elementos centrais abordados: a monocultura da Cana-de-açúcar e
sua relação com a terra, água, mata, animais e homens, tendo sempre em vista
como as suas análises irão romper ou dar continuidade com elementos episte-
mológicos da época.
Ocupando locus privilegiados durante regimes políticos como a di-
tadura civil-militar brasileira, Freyre se inseriu na ordem do discurso para a
invenção e cimentação desse Brasil, com o seu esforço interpretativo que, ao
mesmo tempo que valorizava o elemento negro em certos aspectos, também
narrava o “Brasil profundo” a partir da ideia do “mundo que o português criou”.
Apesar disso, e deixando escapar em diversos pontos que a escravidão foi um
meio que terminou justificando seu fim – insistindo na suposta inabilidade do
africano em se rebelar, silenciando as resistências miúdas e o escravizado como
sujeito político – Gilberto Freyre trouxe pontos de um argumento inovador que
trinta anos depois Mesquita Filho pareceu ignorar.
A saber, Freyre escreve que a atribuição recorrente de preguiça e in-
competência do negro para atividade ditas civilizadas “seria torcer um fenô-
meno de causas nitidamente sociais para acomodá-lo a um ‘racismo’ muito
suspeito”, acrescentando ainda que isso se manifesta “quase sem nenhum cheiro
de ciência e com um odor cada dia mais carregado de intenção política”. Refor-

170
ço: o texto de Gilberto Freyre foi editado a primeira vez em 1937; o de Júlio de
Mesquita Filho, em 1963.

Isso significa duas coisas: em primeiro lugar, que o “progresso” (se este termo
ainda é adequado para designar uma realidade muito diferente daquela a que
se tinha primeiramente aplicado) não é nem necessário nem contínuo; pro-
cede por saltos, ou, tal como diriam os biólogos, por mutações. Estes saltos
não consistem em ir sempre mais longe na mesma direção; são acompanha-
dos por mudanças de orientação, um pouco à maneira dos cavalos do xadrez
que têm sempre à sua disposição várias progressões mas nunca no mesmo
sentido. A humanidade em progresso nunca se assemelha a uma pessoa que
sobe uma escada, acrescentando para cada um dos seus movimentos um novo
degrau a todos aqueles já anteriormente conquistados, evoca antes o jogador
cuja sorte é repartida por vários dados e que, de cada vez que os lança, os vê
espalharem-se no tabuleiro, formando outras tantas somas diferentes. O que
ganhamos num, arriscamo-nos a perdê-lo noutro e é só de tempos a tempos
que a história é cumulativa, isto é, que as somas se adicionam para formar
uma combinação favorável (LÉVI-STRAUSS, 1980, p. 9).

Compreendendo suas motivações intelectuais, podemos vislumbrar


esquematicamente os “cheiros de ciência” ao lado das “intenções políticas”. Se-
gundo a assertiva de Lévi-Strauss acima transcrita, os tempos das ideias não
seguem um progresso linear. Questões que parecem superadas e obvias, re-
tornam de maneira “tardia” e anacronicamente. Ao retomarmos a epígrafe de
Fernand Braudel, essa questão fica bastante clara.

Palavras de ordem e tradição: considerações finais

Esses signos produzem enunciados difusos. Narrado por si mesmo,


aparece dotado de linearidade, um sujeito que nascera nos últimos suspiros
do século XIX e que mantivera consigo uma incorruptível coerência. A tocha
de “uma certa ideia de Brasil” seguiria em suas mãos; em suas palavras, es-
forçadas por escrever a si mesmo, estão impressas certas palavras de ordem
das quais se convencera. Em alguma medida, esses enunciados apareciam em
textos públicos, também. Esse fenômeno redunda no que Koselleck chamou de
“batalha semântica para definir, manter ou impor posições políticas e sociais”
(KOSELLECK, 2006, p. 102). Inseridos no esforço de traduzir esses conceitos
para as nossas concepções, limita a dimensão semiótica a olhar em contexto.

171
As palavras não desejam apenas convencer, mas ordenar, imperativamente, as
coisas e suas arestas.
As compreensões buscadas no passado brasileiro traziam para aque-
le presente uma ideia que se chocava com as visões cosmopolitas. Em 1955,
a UNESCO havia definido que “raça” era uma invenção social. Nessa época,
Martin Luther King enfrentava o apartheid racial então reinante nos Estados
Unidos – que, coincidência ou não, era a Nação liberal em que Júlio de Mesqui-
ta Filho ancorava sua inspiração ideológica. Em meio a essa efervescência de
conflitos com ressonância mundial, premente de ideias nem sempre coerentes,
podemos notar semelhanças do discurso segregacionista à sua determinação
em não misturar sua família com “gente indisfarçavelmente de cor”. É difícil
compreender que um projeto político pensado por alguém com tais ideias pu-
desse ser inclusivo.
A partir da tomada dessas noções aparentemente inconciliáveis, po-
demos refletir sobre como os projetos dos engajados “por uma ideia de Brasil”
trazem consigo uma série de paradoxos. Os conceitos que compõem as paisa-
gens políticas de um tempo, possuem a influência de tempos passados. Esse
pitoresco cruzamento de contemporâneos, possuem continuidades dividindo
o palco com fragmentações. Avoluma-se a força das tradições anteriores, que
permanece instalada nos sujeitos que participam da História. O tempo aparece
como o elo que conecta estruturas, acontecimentos e indivíduos. As realidades
que se desdobraram diante dos olhos de Mesquita Filho só eram possíveis de
conectar ao que já havia sido vivido, em retrospectiva – pois “as coisas só são
previsíveis quando já aconteceram”.
Nas vicissitudes da vida de um indivíduo que mantivera sua infância
na “atmosfera sadia e revigorante” de uma casa abastada do final do século XIX,
passa a carregar consigo certas idiossincrasias. A partir dessa ilusão biográfica,
a sua utopia remete àqueles momentos; é uma vontade de verdade, que como
tal, não é falsificada. Essa espécie de “paraíso perdido”, somado a uma ilusão de
identidade, se aglutinam em torno da sua pretensa razão objetiva. O próprio
filósofo Sartre, dentre outras ideias, defende que a “existência precede a essên-
cia”, ou que as experiências do sujeito é o que o define (SARTRE, 1973); este
encontro parece o lançar rumo à sua própria filosofia, numa conversa com um
defensor tão aguerrido de sua essência, ou mesmo de uma essência brasileira.
Júlio de Mesquita Filho, este adepto de uma mística da identidade – seja pau-

172
lista, ou brasileira – se manifestava como uma espantosa ironia. Jorge Amado
narra que, após uma visita aos cafezais da fazenda dos Mesquitas, já na viagem
de volta à cidade, o filósofo pareceu-lhe “perturbado como se sentisse abalado
o seu saber” (AMADO, 1992, p. 113).
Em meio a essa perturbação, Sartre teria dito: “– Este Brasil é um país
absurdo, surrealista tu dizes, mas isso não diz tudo, não explica nada, o Brasil
não tem lógica, nunca se pode ter certeza” (Idem, ibidem). A presença que
esse trecho produz é de alguém que tivera um estalo, percebendo subitamente
que os próprios conceitos não podiam dar a ordem desejada à realidade. “[...]
Quando se pensa ter entendido logo nos damos conta que cometemos um erro,
que o certo é diferente, um disparate”. Ao olhar do seu visitante, a contradição
de Júlio de Mesquita Filho se manifestava da seguinte maneira: “[...] como é
que um homem tão reacionário, tão estreito como Monsieur Mesquitá de re-
pente, ao falar dos cafezais, se transforma num poeta, o mais terno e amoroso?
O que ele me disse foi pura poesia, estou feliz de tê-lo conhecido” (Idem, ibi-
dem). Aqui, nesse texto, as contradições presentes são análogas – projetos de
Nação marcados pelo signo do liberalismo, um desejo de projetar um futuro
utópico mas que nele não haveria espaço para multidões fora da ordem imagi-
nada. Segundo essa teleologia, inscrita na ordem natural das coisas, o destino
da Nação seria o triunfo do liberalismo e o desaparecimento ou assimilação dos
negros, mulatos e indígenas. Nunca se pode ter certeza, e, certamente, não per-
tence a uma lógica unívoca. Isso não nos impede de entrever a figura insistente
de um sujeito de privilégios remexendo seu passado nostálgico para projetá-lo
no futuro almejado.
A vida e a obra se misturam. Mesquita Filho entra na disputa pelas
realidades da Nação brasileira, que encontrava contendores desde o período
imperial, com a criação do IHGB (HRUBY, 2009). As concepções providencia-
listas do conhecimento social costumeiramente se atracavam na força do indi-
víduo. Os argumentos presentes em A Crise nacional e no relato autobiográfico
aqui estudado sugerem que o personagem, durante pelo menos quatro déca-
das, buscou ser o arquiteto de uma comunidade forjada na Tradição (MAYER,
1987, p. 269). Essa articulação fornece pistas das lógicas de organização social
pretendida por esse sujeito. As disputas em torno da constituição do Estado
mostram o conflito entre prioridades, dilemas e paradoxos, vetores recorrentes
na forja artificial dos sentidos dos países – em especial daqueles que, como o

173
Brasil, partem de matrizes étnicas plurais e portadores de memórias históricas
controversas. Mesquita Filho aproxima-se da definição de Sérgio Buarque de
Holanda sobre partidários de um retorno à tradição como a única defesa contra
a desordem (HOLANDA, 1992, p. 5). Na perspectiva que discutimos, percebe-
mos as fortes marcas de elementos tradicionais no pensamento social brasileiro
das mais diversas estirpes.

Referências

Fontes

Ensaios

FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a


paisagem do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1967.
MESQUITA FILHO, Júlio de. Nordeste. São Paulo: Anhambi, 1963.
_______. A crise nacional: reflexões em torno de uma data. Secção de obras d’O
Estado de São Paulo, 1925.
_______. Escritos avulsos, datilografados e rabiscados pelo autor. Fonte cedida
por Ruy Mesquita Filho do seu arquivo particular.
OLIVEIRA VIANNA, F. J. A comunhão paulista. Resenha. RBR, v.24, n.92,
p.326-8, ago. 1923.

Literatura
AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de me-
mória que jamais escreverei. Rio de Janeiro: Record, 1992.

Bibliografia
Monografias
MACÊDO, Francisco Adriano Leal. Nação como retórica: a construção da ideia
de Brasil por Júlio de Mesquita Filho (1932-1964). 2018. 115 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Licenciatura Plena em História) – Universidade Federal
do Piauí, Picos, 2018.

Livros e capítulos de livros

174
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e
a difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença,
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176
Família e política no legislativo
piauiense: um estudo sobre a sucessão
política (1998-2014)

Lívia Maria Silva Alves


Mestra em História do Brasil (PPHB-UFPI)
E-mail: liviamariaalves29@gmail.com

Introdução

Considera-se a dualidade significativa que o conceito oligarquia apre-


senta, estando ora relacionado a um sistema de dominação de um grupo polí-
tico minoritário dentro da Assembleia Legislativa do Piauí, ora relacionado à
permanência da dominação política de poucas famílias no cenário político es-
tadual. Assim, fez-se a análise do impacto das relações familiares ou da própria
estrutura familiar e o poder político dentro da Assembleia Legislativa do Piauí
(Alepi) entre os anos de 1998 e 2014.
Este artigo torna-se importante para o debate acerca das reflexões
sobre o papel, a dinâmica e a história da elite política piauiense. O presente
texto propôs analisar a estrutura familiar que detém o poder e a dominação
oligárquica no interior político, bem como compreensão da resistência e da
influência de algumas famílias tradicionais piauienses na política. Para que se

177
compreenda a estrutura social e econômica que confere a estrutura de poder
político no Estado, foi necessária a menção à genealogia de algumas famílias
tradicionais do Piauí.
Dessa forma, a análise e o desenvolvimento deste artigo estão relacio-
nados à contextualização teórica sobre as relações de parentesco e a constitui-
ção do sistema político; das principais linhagens familiares que sobreviveram
no cenário político estadual por quase três décadas; das estratégias de sobrevi-
vência, manutenção e ampliação dos laços familiares que refletem diretamente
na sobrevida política e econômica e da transmissão de poder político para as
novas gerações. Esses são procedimentos utilizados para dar continuidade e
vida às oligarquias consagradas, mas que são revestidas por materiais e formas
novas.
A ideia principal desta pesquisa foi estudar as influências e o impacto
desse processo na dinâmica política do estado piauiense e a configuração das
bancadas que foram eleitas durante o recorte temporal estabelecido. A escolha
deste objeto de estudo justifica-se pelo fato de grupos familiares constituem
predominantemente o tecido político da Alepi e ocupam o maior número de
cadeiras a cada pleito eleitoral. O estudo das relações familiares e política não
servem apenas para explicar a continuidade e a perpetuação das mesmas no ce-
nário político, mas oferece à sociedade a oportunidade de compreensão sobre
as relações históricas e de funcionamento da política piauiense.
No que diz respeito à organização deste artigo, encontra-se dividido
em seis partes. Além desta introdução, a seção seguinte apresenta os conceitos
de Oligarquia, coronelismo e clientelismo que foram formulados por estudio-
sos do assunto, para contextualizar a problemática. A segunda seção analisa as
interações e atuação da família sobre as estruturas socioeconômicas encontra-
das tanto nas relações de parentesco como na relação da família com o sistema
político. A terceira parte apresenta as famílias mais influentes no Legislativo
Piauiense. A quarta parte aborda sobre a herança familiar na política contem-
porânea piauiense. A quinta parte discute sobre as famílias políticas e suas es-
tratégias para permanecer no poder. A última parte refere-se às conclusões.

Um breve passeio pelos conceitos e suas contextualizações

Para análise das relações familiares e o poder político e, consequen-

178
temente, as dinâmicas de constituição dos grupos dirigentes para o caso bra-
sileiro, fez-se necessária a compreensão da existência do coronelismo ou da
parentela na sociedade brasileira do século XIX, que deu conta de explicar essas
dinâmicas de emergência e reprodução dos grupos dirigentes no país. Mes-
mo se tratando de épocas distantes, esse assunto não pode ser esquecido ou
desassociado da análise das relações entre grupos familiares e a política atual
(PETRARCA; OLIVEIRA, 2016). A análise recaiu sobre o sistema de relações
sociais que se tornou realizável e que fundamentou sua existência no decorrer
dos anos.
A relação parental e o poder no Brasil foi tema do estudo feito por
Cláudio Bastos, que observou a íntima relação entre a genealogia e o poder
político em Estados brasileiros, evidenciando que esse fenômeno promoveu
uma sucessão hereditária do poder político em todo o país (BASTOS, 1991, p.
59). Nesse raciocínio, foi aceitável a ideia da natureza familiar do poder políti-
co, tendo em vista o poder que as famílias políticas ou as oligarquias estaduais
exibiam. No caso do Piauí, observamos que a política se renova internamente
de geração em geração.
O poder político construído pelas famílias foi decorrente da sua im-
portância social, econômica e cultural fornecida pelas suas bases eleitorais. Esse
poder foi solidificado pelas formas tradicionais de se fazer política: patrimonia-
lismo, clientelismo e coronelismo. Tais formas são práticas que não existem
mais em sua forma pura dentro do atual sistema político e eleitoral vigentes no
nosso país, mas ainda observamos traços significativos dessas práticas no fazer
político, na conquista e manutenção do poder de algumas famílias.
As relações entre o poder local e o Estado Nacional do Brasil, até os pri-
meiros anos do século XX, eram marcadas por práticas utilizadas pelos chefes
políticos locais para controlar e fornecer votos para o Governo. O Coronelismo
foi uma dessas práticas. A maior referência para os estudos acerca do poder
local foi a obra de Victor Nunes Leal (1997), Coronelismo, Enxada e Voto, na
qual o autor examina principalmente o sistema e a figura do coronel como par-
te deste sistema. Ao estudar a estrutura e a maneira pelas quais as relações de
poder desenvolviam-se na Primeira República, Leal desenvolveu o conceito de
coronelismo.
Segundo o autor, coronelismo era um sistema político característico da
Primeira República, sendo uma complexa rede de relações que vai desde o co-

179
ronel, que detinha grande influência, poder e atuação política em suas respec-
tivas áreas de domínio nas quais conseguiam votos e elegiam candidatos, até o
presidente da República. Essas relações envolviam compromissos recíprocos,
ou seja, uma troca de benefícios entre o poder público e a influência social dos
chefes políticos (LEAL, 1997, p. 39-41).
Assim, o coronelismo era um tipo de dominação sobre as popula-
ções rurais, surgindo da confluência de um fato político com uma conjuntura
econômica. O fato político era o federalismo implantado pela República em
substituição ao centralismo imperial e o fato econômico era a decadência dos
fazendeiros (CARVALHO, 1997). Para José Murilo de Carvalho, coronelismo:

É um sistema político nacional, baseado em barganhas entre o governo e os


coronéis. O governo estadual garante, para baixo, o poder do coronel sobre
seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos
públicos. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma de
votos. Para cima, os governadores dão seu apoio ao presidente da República
em troca do reconhecimento deste de seu domínio no estado. O coronelismo
é fase de processo mais longo de relacionamento entre os fazendeiros e o
governo (CARVALHO, 1997).

É notório que, enquanto fenômeno e sistema político, o coronelismo


é algo datado na história política brasileira. Para Carvalho, o coronelismo
“‘morreu’ simbolicamente quando se deu a prisão dos grandes coronéis baianos,
em 1930 e foi definitivamente enterrado em 1937, em seguida à implantação do
Estado Novo” (CARVALHO, 1997). As suas bases foram corroídas pela grada-
tiva inserção de elementos que favoreceram seu desaparecimento, como o voto
secreto, o avanço da economia e o progresso da urbanização e industrialização
da sociedade brasileira.
O clientelismo, de modo geral, indica um “tipo de relação entre atores
políticos que envolvem a concessão de benefícios públicos, na forma de empre-
gos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio político, sobretudo na forma
de voto” (CARVALHO, 1997). O coronelismo não pode ser identificado pelo
clientelismo, pois este foi um fenômeno mais amplo. De acordo com Carvalho,
o clientelismo está presente em toda a história política brasileira no momento
em que autores e pesquisadores veem o coronelismo no meio urbano e em eta-
pas recentes da nossa história.

180
A discussão não se limita a comprovar se existe ou se existiu, de fato,
o coronelismo no Piauí. A questão é perceber que, ao falar de um coronelismo
recente e urbano, estamos falando simplesmente de práticas políticas voltadas
para o clientelismo. Neste, deputados trocam votos por favores, empregos ou
serviços públicos que conseguem devido à sua habilidade de agir sobre os Po-
deres Executivo e Legislativo, como na própria administração pública do Es-
tado, objetivando a dominação do poder político Estadual. Tais práticas tra-
dicionais são aplicadas e realizadas na política recente do nosso país, e não
diferentemente no Piauí, em meio a um regime democrático.

Família e o Poder Político na Alepi

A relação histórica entre famílias e o poder político tem enfatizado a


importância da família como uma instituição ou um princípio básico e que o
núcleo familiar vem moldando os padrões sociais e políticos no Brasil desde
o período Colonial (LEWIN, 1993). Além disso, esses estudos apontam para
relação entre família e poder político como explicação da organização social
e política, bem como linguagem para entender as bases das relações sociais
das famílias dirigentes do século XIX e XX (PETRARCA; OLIVEIRA, 2016, p.
141-167).
Os resultados da atuação da família sobre as estruturas social e econô-
mica podem ser encontrados tanto nas relações de parentesco como na relação
da família com o sistema político. Este fenômeno pode ser denominado sistema
de parentela, caracterizado pela habilidade de extensão das relações familiares,
constituindo-se como o alicerce das alianças entre a elite (PETRARCA; OLI-
VEIRA, 2016, p. 151).
O sistema de parentela estava relacionado com as bases das relações so-
ciais das famílias que detém o poder e da sua relação com a política. Sua impor-
tância resiste para além dos séculos XIX e XX por dois motivos: primeiro, pela
sua forma de organização social e econômica que se opõe à noção de “grande
família”;1 segundo, a relação entre política e família revela o processo de expan-
1 Segundo Petrarca e Oliveira, a expressão “grande família” está diretamente associada a um
grupo coeso e homogêneo e à exigência de uma “herança” familiar pelos seus membros. Nessa
lógica, os pertencentes das “grandes famílias” são definidos pelos laços de consanguinidade e
visam estabelecer vínculos com o lugar de origem da família. Além disso, elas visam preservar
a homogeneidade do grupo, garantir sua condição de “família” e assegurar o pertencimento ao
grupo dentro de uma linhagem. Cf.: PETRARCA; OLIVEIRA, 2016, p. 144.

181
são e diversificação dos elos de natureza pessoal nas alianças políticas. Para que
se compreenda o que representa a força da parentela na organização familiar
brasileira, foi necessário olhar tanto para sua dinâmica estrutural e funcional
quanto para sua relação com a política (PETRARCA; OLIVEIRA, 2016, p. 151).
No meio eleitoral, os grupos familiares intentam a conquista do poder
público, mas não se satisfazem somente com ela, já que a manutenção e a am-
pliação da sua força econômica são fundamentais. Por causa dessas condições,
as famílias de elite possuem uma lógica própria e uma habilidade de integrar os
membros que não são parentes ao sistema familiar. Elizabeth Kuznesof eviden-
cia o papel da família enquanto instituição política e social no Brasil asseguran-
do que, nesse meio social, o parentesco, a ajuda mútua, a troca e o clientelismo
eram “as bases da estrutura oligárquica e que a lealdade dos membros do clã era
dirigida de um para outro, e não incluía o reconhecimento de outra autoridade
além dos líderes dos clãs” (KUZNESOF, 1989, p.48).
Ainda para Kuznesof, o papel político da família no Brasil foi crucial
enquanto força motriz existente por trás de empreendimentos estruturais e
econômicos e, principalmente, do sistema político do Brasil no século XIX.
Portanto, as redes familiares e as “oligarquias foram os principais meios através
dos quais as economias regionais conquistaram o reconhecimento e desenvol-
vimento nacionais, e os partidos locais se transformaram em partidos nacio-
nais” (KUZNESOF, 1989, p. 62).
Em meados do século XIX o cenário político local era controlado pelos
chefes políticos, ou seja, pelos coronéis (LEAL, 1997) que, por seu grande po-
der econômico e latifundiário, influenciavam na atuação política, angariavam
votos e elegiam seus candidatos. No século XXI, essa prática, que era comum
em todo o território brasileiro, deixou de existir, perdeu sua força e seu sentido.
Porém, ainda persiste camuflado, modificado e revestido por novas práticas e
rearranjos, adaptado às novas realidades. O processo da continuidade histórica
das oligarquias no poder atingiu os quadros do legislativo piauiense.
A historiadora Tânya Brandão (1995), ao fazer o resgate histórico da
origem da sociedade piauiense, evidencia que, desde o início, o núcleo familiar
era a unidade essencial na organização política do Piauí. Nesse sentido, o poder
político das famílias dirigentes era um mecanismo relevante no momento da
configuração da estrutura da elite política e nos resultados eleitorais. Essa Elite
Política estava inserida em uma estrutura de relações de diversos estágios de

182
competição ou conflito entre si. Enfim, na história política piauiense, algumas
famílias estabeleceram sua hegemonia sobre a economia e a política local. Des-
sa maneira, as elites mantinham o recrutamento sob seu controle e, nesse meio,
a cooptação constituiu um mecanismo importante para restringir o acesso ao
poder (ARRAES, 2000, p. 76).

As famílias políticas mais influentes no Legislativo


Piauiense

Até final no século XIX, precisamente no início das décadas de 1980 e


1990, a linha de reprodução e recrutamento das bancadas políticas no Legis-
lativo piauiense tinha passado pelos principais clãs familiares do Piauí. Du-
rante as décadas citadas, dois clãs familiares se destacavam no provimento de
consecutivas linhagens que possuíam números significativos de representantes
diretos no Legislativo do Estado: as famílias Almendra Freitas e Portella (AR-
RAES, 2000, p. 81). Outra de grande destaque era a família Castelo Branco, tida
como “uma oligarquia velha do Piauí, onde seu tronco, Francisco da Cunha de
Castelo Branco, fixou-se em começos do século XVIII; era irmão do primeiro
conde de Pombeiro” (DORIA, 1994, p. 28). Esta apresentou representantes para
o Legislativo até o final dos anos 1990.
Desde o início dos anos 1950 até os anos 1990, a família Freitas possuía
representatividade significativa no cenário político piauiense, assumindo car-
gos de prefeituras municipais até cargos de autoridade máxima do poder exe-
cutivo. Os membros dessa família foram eleitos pelo PFL e, cronologicamente,
pelo PSD, Arena e PDS. A família Freitas formava no estado o cenário político
oligárquico típico e confirmava a ideia de governo de poucos.
As conquistas políticas da família Freitas afirmavam a ideia de que o
sistema familiar era um importante indício da manutenção da política oligár-
quica dominante no Piauí. A condição de oligarquia não era vista com bons
olhos por alguns políticos descendentes deste grupo familiar, pois, para eles,
o processo eleitoral era a única fonte de acesso ao poder. Tal ideia poderia ser
contrariada diante de um grande número de políticos descendentes desse gru-
po familiar no cenário político naquela época (ARRAES, 2000, p. 88).
Petrônio Portella era o político notório da família Portella. Trata-se de
um indivíduo que conquistou destaque tanto no cenário estadual quanto no

183
Nacional. Foi de vereador a governador do estado, presidiu a Arena e o Con-
gresso Nacional e foi Ministro da Justiça. Com capacidade política na direção
das alianças e nas negociações, ele conduziu o projeto político UDN-PSD por
vinte anos, que permaneceu unido e vitorioso por vinte e dois anos no Piauí.
Somando-se à ascensão da família Freitas, com o casamento de Petrônio Por-
tella com uma filha do então governador piauiense, Pedro Freitas, ainda na
década de 1950, as duas oligarquias passaram 35 anos ininterruptos no controle
do Poder Executivo do Estado (ARRAES, 2000, p. 88).
A família Portella, guiada por Petrônio Portella, comandou uma das
maiores e vitoriosas oligarquias, conquistando cargos do alto escalão da polí-
tica nacional. Esse clã familiar conquistou inúmeros postos políticos que, até
1999, somavam-se quatro governadores, dois senadores e onze deputados. A
oligarquia Portella viveu seu apogeu e hegemonia durante as décadas de 1960
e 1970. A partir dos anos 1980, quando a elite local desmembrou-se em duas
partes, a família viu seu poder declinar. No entanto, ainda há resquícios de seu
poder no atual cenário político federal (ARRAES, 2000).
O quadro político piauiense foi espaço historicamente de predomínio e
hegemonia de basicamente duas famílias, levando a concluir que o recrutamen-
to das bancadas parlamentares ocorria no interior das representações oligár-
quicas hegemônicas e das famílias tradicionais piauienses. As relações familia-
res e seus arranjos com o poder político não deixaram de existir, pois as práticas
são basicamente as mesmas. No entanto, a mudança ocorre nas concepções de
não se limitar na ideia da família nuclear e, a partir disso, tornarem-se mais
extensas e com alianças mais diversificadas, mirando no controle e na manu-
tenção do poder político.
Com isso, até às eleições de 1998 observou-se resquícios do poder
e influência da família Freitas na composição da bancada parlamentar. Nesse
mesmo pleito, o clã familiar elegeu o deputado Robert Freitas que, ainda liga-
do ao PFL, acumulava mandatos na Alepi desde 1986 e seguiu para exercer o
cargo de prefeito de sua cidade natal nos anos seguintes. Dentro desse mesmo
grupo familiar, encontramos os políticos Átila Lira e Hugo Napoleão Neto que
resistiram ao tempo e conseguiram ocupar postos políticos durante os anos
1990 e 2000.
Wilson Martins (PSDB) e Homero Castelo Branco Neto (PFL) foram
outros dois deputados de linhagens familiares tradicionais do estado. Ambos

184
são ligados por entrelaçamento familiar e originários dos primeiros políticos
a construir a história política do estado: o primeiro ligado ao Presidente da
Província do Piauí, Manuel de Sousa Martins, e o segundo pertence à família
dos Castelo Branco.
A família Portella tem mantido uma cadeira na Câmara Federal, com a
deputada Iracema Portella (PP). A manutenção do poder político dessa família
contou com a ajuda de outra família tradicional do estado: os Nogueira. Ciro
Nogueira é o atual líder político dessa família, senador e presidente nacional
do Partido Progressista e casado com a deputada supracitada. No Parlamento
estadual, também houve outros representantes: o ex-deputado Marcelo Coelho
(PPB) e sua esposa Margarete Coelho (PP).
As seguintes legislaturas apresentaram um leque mais diversificado de
famílias políticas. A diversificação familiar na composição das bancadas eleitas
entre os anos eleitorais de 2002 e 2014, não nos assegura dizer que são famílias
frágeis no cenário político piauiense ou que seu poder político está mais frag-
mentado. Isto evidenciou que as famílias tradicionais, coesas, homogêneas e
controladoras de todo o poder político, precisavam arquitetar novas táticas de
sobrevivência. Para isso, elas se relacionaram com outras famílias que também
eram importantes no meio político, mas com poder político mais regionaliza-
do.
Durante essas legislaturas, houve quatorze famílias influentes que es-
tiveram presentes no Legislativo nas últimas três décadas, como as famílias
Dantas Eulálio, da família Monteiro, Paes Landim, Leite, Brandão, Xavier, Pau-
lo, Santos, Castro, Neiva, Ferreira, Moraes Souza, Tapety e Marques. Isso nos
levar a considerar que os arranjos realizados pelas famílias políticas servem
para controlar uma das vias mais significativas de intermediação entre o poder
político e suas zonas de influência eleitorais.

A herança familiar na Política Contemporânea Piauiense

No Brasil, a herança familiar é algo elementar da política, o que acaba


definindo a composição do poder parlamentar. O pertencimento às famílias
tradicionais na política proporcionava o ingresso dos aspirantes à política no
mundo do poder. Segundo a socióloga Maria Cristina de Queiroz o exercício
da política capitalista tem como determinação suprir as necessidades do capital

185
em uma sociedade. A política limita-se pelas novas necessidades do capital.
Nesse sentido, se há mudanças na política, estas refletem no sistema eleitoral
(NOBRE, 2017).
Consequentemente, as eleições sofrem restrições legais e políticas que
tornam as disputas eleitorais desiguais entre partidos e candidatos. A desigual-
dade que Queiroz se refere está associada ao capital político construído por fa-
mílias que formam verdadeiros clãs políticos. O poder decorre da importância
econômica que tem suas bases eleitorais, em geral, resultantes de formas tradi-
cionais de fazer política: clientelismo e o personalismo.2 Isso quer dizer que o
subsistema político ainda se reproduz à sombra destas práticas. Isto se realiza
dentro do processo político democrático e institucional, ou seja, práticas que
participam e respeitam o jogo eleitoral livre e regular. De acordo com a autora,
a realização dessas práticas está relacionada à força do poder local que mostra
sua importância na política a cada eleição (NOBRE, 2017, p 432).
Assim, este tópico enfatiza a herança política como um elemento im-
portante no sistema político do estado, acarretando uma sucessão de algumas
famílias na política. Mesmo se tratado de tempos atuais, a herança familiar
constitui elemento chave para a compreensão do recrutamento e da circulação
das elites políticas no Legislativo, servindo como instrumento determinante
para impulsionar uma carreira política no Piauí. Os números mostraram que,
dentro do Legislativo, a estrutura de poder político se pereniza através das
sucessivas linhagens de parentesco, qualificando “um negócio entre famílias”
(VARGAS, 2010).
Considera-se o sistema de parentela sem desprezar a influência da ideia
das grandes famílias para a estruturação da composição do grupo familiar, na
qual a coesão e a homogeneidade são características fundamentais. No entanto,
a noção dos princípios e das estruturas que organizam as famílias de elite no
Brasil possuíam uma lógica própria e uma habilidade de incluir os “de fora”, que
são os membros não parentes, para o interior do sistema familiar (PETRARCA;
OLIVEIRA, 2016, p. 151). Nesse juízo, a peculiaridade central desse sistema era
sua “organização em torno de uma reciprocidade e de lealdade que ultrapassava
a família nuclear (pai + mãe = filhos) e que envolvia tios, primos, sobrinhos,

2 O clientelismo era um subsistema de relação política. Para José Murilo de Carvalho, clientelis-
mo é uma relação entre atores político pela qual uns concedem benefícios públicos e empregos
em troca de apoio político, sobretudo, na forma de voto, isto é, uma política de troca de favores
entre político e eleitor. Cf.: CARVALHO, 1997.

186
sogros, netos e agregados” (PETRARCA; OLIVEIRA, 2016, p.151).
O sistema acima representou uma forma específica de “solidariedade e
que deu origem a uma ‘nova moral’, marca central da formação da família diri-
gente” (PETRARCA; OLIVEIRA, 2016, p. 152). De acordo com os sociólogos
Fernanda Petrarca e Wilson Oliveira, considerando as elites dirigentes, a ideia
de “família ia além do núcleo consanguíneo e tornava-se cada vez mais extensa,
incluindo parentes lineares e colaterais, parentes não consanguíneos ligados
pelo casamento e os afilhados, resultando na fórmula: ‘parentes + afins’” (PE-
TRARCA; OLIVEIRA, 2016, p. 152).
Quanto ao caso piauiense, a ideia de herança política (ARRAES, 2000,
p. 92) possui um sentido que vai além do fato de qualquer cidadão poder trans-
mitir meios políticos para outros. Na política do estado, se aplica o ato de her-
dar ou transmitir determinados patrimônios, redutos e bases eleitorais a uma
pessoa que pertença à mesma família, quer por laço de sangue, quer por casa-
mento ou por compadrio.3
O sentido de herança política, nessa pesquisa, configurou-se na subs-
tituição de um político por um parente mais próximo e que, através desses pa-
rentes políticos, se mantêm e se dá continuidade à permanência de troncos
familiares politicamente importantes no cenário estadual, ampliando e diver-
sificando seu grupo. Considera-se pretendentes a herdeiros políticos aqueles
deputados que tenham parentes políticos em linha direta ou colateralmente
ou originam-se de lideranças com poder e influência política. É dessa maneira
que se dá seguimento às carreiras políticas dos seus ascendentes e força aos
sobrenomes familiares. Nesta pesquisa são considerados herdeiros diretos: fi-
lhos, sobrinhos, primos, netos, irmão e esposas; e parentes colaterais: genros,
cunhados e sogro (ARRAES, 2000, p. 92).
Por meio da análise do material que foi coletado sobre os perfis bio-
gráficos dos deputados estaduais, constatou-se ampla relação de políticos que
herdaram o prestígio político, sobrenome famoso e as bases eleitorais. Os gru-
pos familiares dominantes na política piauiense se encaixam nessa perspecti-
va e, hereditariamente, vêm transmitindo, mantendo e fortalecendo seu poder
político.
Os resultados apresentaram que as relações de parentesco são um fator
importante na composição do legislativo piauiense e uma prática cada vez mais
3 O entendimento de compadrio é a relação social que advém da ideia do afilhado. Cf.: PETRAR-
CA; OLIVEIRA, 2016, p. 152.

187
frequente na sequência dos pleitos analisados. Pela análise foi possível observar
o fenômeno da continuidade política de vários deputados eleitos em todos os
pleitos com “filhos e netos de políticos que tiveram atuação destacada na vida
social, política e administrativa do Estado” (ARRAES, 2000, p. 93). A análise
indica o continuísmo político dos deputados estaduais, evidenciado em cada
um dos pleitos, pois encontramos os deputados que foram/são parentes de po-
líticos que tiveram grande importância no cenário social, econômico e político
no Piauí.
Com dados coletados verificou-se que em média de 2/3 da composi-
ção das bancadas eleitas entre 1998 e 2014 foram formadas por representan-
tes ou herdeiros dos grupos familiares de grande poder econômico e político.
Uma vez que chega ao Parlamento, o clã familiar busca recrutar seus parentes
de confiança com objetivo de perpetuar o sobrenome familiar na política do
estado. Portanto, a herança política é uma forma pela qual o grupo familiar
consegue manter-se vivo no cenário político local, utilizando-se dos privilégios
de sua influência para transferir aos seus sucessores o acesso ao poder político.
No interior das famílias e das redes de parentesco se transmitem as
vocações, as convicções ideológicas e o posicionamento partidário (CANE-
DO, 1995). O impacto da herança dos grupos oligárquicos no palco da política
piauiense foi caracterizado pela produção de um quadro político marcadamen-
te concentrado, considerando a ocupação e o controle das organizações par-
tidárias e do Parlamento (ARRAES, 2000, p. 94). Queiroz afirma que: “[Na]
Política contemporânea os ritos eleitorais estão condicionados pela força eco-
nômica do candidato em associação às práticas tradicionais de fazer política,
além do pertencimento a clãs tradicionais na política local” (NOBRE, 2017, p. 432).
A maior parte dos deputados eleitos (71%), entrou na política basica-
mente pela influência da longa história política de suas famílias. Dessa manei-
ra, o número expressivo de deputados ligados por algum tipo de parentesco e
com objetivos comuns transforma o Parlamento Estadual num ambiente assi-
nalado pela participação e competição bastante limitadas (ARRAES, 2000, p. 96).
De acordo com Queiroz a legitimação de um grupo familiar na políti-
ca de uma região vai além da tradição familiar, pois: “Em combinação com o
prestígio do sobrenome, a legitimidade que é revertida em votos se alimenta de
métodos de coerção e convencimento, incluso as relações de troca de favores,
herança de nossa história” (NOBRE, 2017, p. 434). Durante a análise dos cinco

188
pleitos, há muito deputados com relações de parentesco com alguma família
tradicional.
Isso se configura como uma vantagem adicional na competição das
eleições estaduais, porque essas famílias construíram, ao longo do tempo, capi-
tal político e econômico capazes de exercer influência no meio social e cultural
das regiões de onde atuam. A herança política dentro do Legislativo Piauiense
é traço característico da política oligárquica e manifesta-se de forma visível no
estado, reforçando o peso das relações familiares e/ou a importância do clã fa-
miliar na construção do cenário político no Parlamento estadual.

Famílias e as estratégias políticas

A importância do núcleo familiar ou das relações familiares é decisi-


va para impulsionar a carreira dos deputados estaduais. Esse item apresenta e
discute sobre procedimentos ou estratégias de poder utilizadas pelos grupos
dominantes, que são próprios da persistência das elites quanto à entrada de
atores políticos de fora desses meios característicos, promovendo o enclausu-
ramento da arena político-partidária. As estratégicas básicas utilizadas pelos
grupos dominantes são os matrimônios entre famílias próximas ligadas por
laços consanguíneos ou por afinidade de interesses, as relações partidárias e a
escolha pela adoção dos sobrenomes.
Os matrimônios reforçam os laços de parentesco e ampliam as alian-
ças familiares. O investimento dessa estratégia pelos clãs familiares contribuiu
para a valorização dessas alianças e para manutenção do sobrenome familiar
no poder político local. A referida estratégia é um traço histórico, já que vem se
estabelecendo desde o período colonial piauiense (BRANDÃO, 1995), e traduz
uma forma pela qual as famílias constituíam sua supremacia política, social e
cultural, utilizando, em muitos casos, os casamentos entre parentes próximos
ou entre famílias do mesmo nível social, econômico e político.
Outro principal fator nas relações de casamentos correspondia à for-
mação interna desses grupos, visto que sua composição e suas imbricações
eram igualitárias ao longo da história política piauiense. As famílias aliadas
estão no mesmo nível social, econômico e político. Por meio da ligação de nú-
cleos familiares e suas sucessivas gerações, a Alepi foi dirigida e representada
por este restrito grupo social.

189
Como supracitado, a consequência da presença dessas famílias no Le-
gislativo é a quantidade significativa de parentes consanguíneos no meio polí-
tico do estado. Assim, concentrar o poder político nas mãos de um grupo de
elite é um mecanismo estratégico que os clãs familiares utilizam para manter e
ampliar seu poder socioeconômico e político (ARRAES, 2000, p. 98).
O principal casamento, que concedeu uma sólida aliança política e que
favoreceu a união das famílias, ocorreu entre os Portella e os Almendra Frei-
tas, conseguindo coesas vitoriosas até década de 1990, como já mencionado.
O que restou das táticas da família Portella foi o primeiro casamento da her-
deira Iracema Portella, deputada federal, com o ex-deputado e ex-governador
Guilherme Melo (PDS) e o segundo com Ciro Filho (PFL), unindo sua família
ao clã Nogueira Lima (ARRAES, 2000, p. 99). Nas legislaturas de 1998 e 2014,
Wilson Martins e Juraci Leite foram os deputados que se beneficiaram destas
práticas de forma indireta. É possível constatar que essas práticas são estímulos
dos processos de continuidade e manutenção de quadros na Alepi.
A dispersão entre várias legendas ou entre os partidos políticos foi ou-
tra estratégia utilizada pelas famílias políticas ao redor do poder. Com a pes-
quisa percebeu-se uma fragmentação ou dispersão de algumas famílias políti-
cas, o que pode ser apenas uma estratégia do jogo político em que os membros
de uma mesma família dividem-se em mais de um partido ou seguem a lógica
da possibilidade de um ou mais candidatos se elegerem mantendo o sobrenome
da família em destaque.
A distribuição de candidatos escolhidos pelas famílias políticas para
a conquista de vagas no Parlamento Estadual significa uma estratégia política
adotada pelos grupos familiares e não uma quebra ou divisão na estrutura in-
terna familiar. Foi o que aconteceu com as famílias Brandão (Wilson Brandão,
antes filiado ao PFL e agora ao PSB), Ferreira (Edson Ferreira, antes vinculado
ao PFL-DEM e hoje ao PSD), Martins (Wilson Martins e descendentes, antes
ligado ao PSDB e agora ao PSB), Moraes Souza (Antônio José de Moraes Souza
Filho e descendentes, que foi para o PSDB e retornou para o PMDB) e Montei-
ro (Fernando Monteiro antes filiado ao PFL e depois ao PTB).
A dispersão foi um método utilizado pelas famílias políticas para
abrandar o desgaste político atribuído ao sobrenome da família ao longo do
tempo. Logo, são redes densas consolidadas por relações de parentesco, ser-
vindo nestes casos como órgãos mantenedores de alianças e espaço alternativo

190
para outros indivíduos dos mesmos níveis sociais e econômicos para exercerem
o poder político do Estado (VARGAS, 2010, p. 107).
A adoção de sobrenomes que desempenham papel importante nessa
configuração é outra prática percebida pelos deputados estaduais, tais como
os deputados Sebastião Rocha Leal Júnior (PFL), Themístocles de Sampaio Pe-
reira Filho (PMDB), Luciano Nunes Filho (PSDB), Antônio José de Moraes
Souza Filho (PSDB), Homero Castelo Branco Neto (PFL), Flávio Nogueira Jú-
nior (PDT), Severo Maria Eulálio Neto (PMDB), Lilian Martins (PSB), Reja-
ne Dias (PT), Margarete Coelho (PP) e Juliana Moraes Souza (PMDB). Estes
foram filhos, netos e esposas que herdaram ou adotaram o sobrenome do clã
familiar com objetivos políticos e econômicos, utilizando-se da carga simbólica
que possui o sobrenome da família como suporte e segurança no momento da
conquista dos votos.
Ainda sobre as alianças matrimoniais, havia na tradição histórica da
política brasileira, a prática de os políticos serem substituídos por parentes pró-
ximos ou pessoas de confiança. A transferência de mandatos eletivos passava
de pai para filho e netos, de irmão para irmão ou de tio para sobrinho. A partir
do pleito de 2010, a oligarquia persistiu, mas transformada em parcerias vito-
riosas que resultavam na modificação da oligarquia piauiense, evidenciada no
receptor do mandato de seu antecessor.
Essa dinâmica foi realizada na transferência de mandatos, isto é, os
maridos disputavam mandatos e colocavam suas esposas na disputa por cargos
exercidos por ele anteriormente. Em 2010 essa prática foi confirmada com o
mandato do ex-deputado Wellington Dias (PT), com carreira política ascen-
dente, sendo senador e governador do Piauí enquanto sua esposa, Rejane Dias
(PT), conquistou uma vaga na Alepi. O ex-deputado estadual José Moraes Sou-
za Filho (PMDB) candidatou-se e venceu como vice-governador do estado na-
quele pleito ao passo que sua esposa Juliana Moraes Souza (PMDB) obteve uma
cadeira na Alepi. Na mesma chapa vitoriosa naquele pleito para governador do
estado, a deputada estadual Lilian Martins se reelegeu para mais um mandato
ao lado de seu esposo, o então governador eleito Wilson Martins (PSB). Ainda
nesse pleito, a deputado estadual Margarete Coelho (PP) assumiu a vaga deixa-
da pelo seu esposo Marcelo Coelho (PPB).
O efeito se repete nas eleições de 2014, exceto para o casal Martins.
Wilson Martins (PSB) concorreu a uma vaga no senado e perdeu, ao passo que

191
sua esposa Lilian Martins obteve uma cadeira vitalícia no Tribunal de Contas
do Estado (TCE). O ex-senador Wellington Dias (PT) concorreu novamente
e venceu a disputa pelo governo do estado, cargo que ocupara pela terceira
vez. Simultaneamente, sua esposa Rejane Dias (PT) conquistou uma cadeira na
Câmara Federal. Já a deputada estadual Margarete Coelho candidatou-se e ven-
ceu como vice-governadora do estado na chapa vitoriosa que disputava pelo
governo do estado naquele pleito. A inovação deste efeito aconteceu de modo
inverso, visto que a deputada Ana Paula (PMDB) foi quem cedeu sua vaga ao
seu esposo José Ribamar Noleto de Santana (PMDB).
As estratégias políticas são artifícios ou manobras utilizadas pelos gru-
pos familiares em períodos passados, mas que ainda são práticas infalíveis na
política local. Tais grupos não hesitam em utilizar esses métodos para a ma-
nutenção do mando, seja através das práticas políticas tradicionais, seja pela
argumentação baseada na suposta experiência e competência administrativa à
frente do Poder Legislativo (ARRAES, 2000, p. 99-101). Essas estratégias asse-
guram o caráter extenso das relações familiares, manifestando a capacidade de
incluir novos membros e incluindo as amplas alianças como parte indispensá-
vel desse processo. Além disso, essas estratégias evidenciam práticas que não se
limitam à família nuclear, tornando as alianças mais diversificadas (PETRAR-
CA; OLIVEIRA, 2016, p. 154).
As famílias políticas antigas do Piauí, com o poder político desde o
período colonial, estão ligadas pelos fatores históricos, econômicos e sociais,
tendo produzido várias gerações de políticos com destaque no estado piauien-
se. O continuísmo político visa, enquanto estratégia, a perenidade, sendo que a
permanência das práticas políticas tradicionais mostra como as elites dirigem o
Piauí, visto que as elites produzem instrumentos que favorecem a consolidação
do seu domínio político ou socioeconômico. A “persistência de herança fami-
liar na política é uma das dimensões limitadoras da cidadania política por es-
tabelecer condições diferenciadas na disputa de votos” (NOBRE, 2017, p.434).
Enfim, o histórico e o exercício dessa dominação marca a vida política do es-
tado e evidencia quão frágil e oscilante é nossa democracia, impossibilitando
o dinamismo econômico e o processo de democratização no estado piauiense.

192
Conclusão

O presente artigo propôs-se a discutir sobre a herança familiar e sua


relação com a política legislativa piauiense durante o período de 1998 a 2014.
Mostraram-se os elementos essenciais à compreensão da herança política como
um elemento importante no sistema político piauiense, o que acarretou a su-
cessão de algumas famílias no Legislativo. A herança familiar constitui-se ele-
mento chave para a compreensão do recrutamento e da circulação das elites
políticas dentro da Alepi e serviu como instrumento determinante para impul-
sionar a carreira política de um determinado candidato.
Os números mostraram que, dentro do Legislativo, a estrutura de po-
der político se pereniza através das sucessivas linhagens de parentesco e confi-
gurou-se na substituição de um político por um parente mais próximo e que,
através desses parentes, se manteve e se deu continuidade à permanência de
troncos familiares politicamente importantes no cenário estadual. Nesse con-
texto, os sobrenomes familiares e as carreiras políticas dos seus ascendentes
ganharam força e impulso.
Dessa maneira, o subsistema político piauiense é resultado de uma si-
tuação típica oligárquica que perpassa pela história política estadual. Notou-se,
no Piauí, a hereditariedade na composição das bancadas eleitas. Em números,
isso significa que, em 1998, dos 30 deputados eleitos, 24 possuíam algum grau
de parentesco com as oligarquias tradicionais, bem como em 2002, 2006, 2010
e 2014 com respectivamente 22, 19, 21 e 20 deputados que tinham parentesco
com as oligarquias antigas. Isto é, no caso do Piauí, a política se renova inter-
namente de geração em geração. Assim como, as estratégicas básicas utilizadas
pelos grupos dominantes foram os matrimônios entre famílias próximas liga-
das por laços consanguíneos ou por afinidade de interesses, as relações partidá-
rias e a escolha pela adoção dos sobrenomes.
Logo, o espectro político piauiense transformou-se numa prioridade
nas mãos das famílias mais importantes, passando de pai para filhos, irmãos,
esposas e parentes. Os herdeiros aparecem como uma reserva política, criada e
preparada para assumir o poder político na ausência dos antigos líderes. Assim,
a substituição política dentro da família tende a impedir a instabilidade dentro
dos grupos oligárquicos que dominam os partidos políticos.
Este fato fica nítido com a grande influência de famílias como Bar-

193
ros Araújo, Paes Landim, Tapety, Dantas Eulálio, da região Sul do estado; as
famílias Almendra Freitas, Bona Medeiros, da região centro-norte do Piauí,
e os Moraes Souza e Sampaio Pereira da região norte do estado. Todas essas
oligarquias têm apoio de outras oligarquias menores e mais restritas política e
geograficamente. A manutenção do corpo político-partidário no Parlamento
pode ser constatada pela permanência de vários mandatos dos parlamentares,
o que propicia longas carreiras políticas. Como consequência, a extensa ex-
periência acumulada pelos deputados estaduais é utilizada para empreender
alianças úteis e necessárias na correlação de forças políticas e para o aumento
de sua influência.
Enfim, a permanência desses elementos produz relativa estabilidade no
quadro político piauiense. O controle de grupos de famílias políticas no palco
da política piauiense foi caracterizado pela produção de um quadro político
marcadamente concentrado, considerando a ocupação e o controle das orga-
nizações partidárias e do Parlamento. O continuísmo político visa, enquanto
estratégia, a perenidade, sendo que a permanência das práticas políticas tra-
dicionais mostra como as elites dirigem o Piauí, visto que as elites produzem
instrumentos que favorecem a consolidação do seu domínio político ou so-
cioeconômico. Os resultados expostos ao longo deste trabalho indicaram que
as legislaturas têm se constituído em uma renovação de gerações pela qual os
antigos caciques são substituídos por seus filhos, irmãos, esposas, tios, enfim,
por parentes próximos assumindo os postos políticos deixados pelos seus an-
tecedentes.

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196
Teresina: História, Educação e
Estado do Piauí

Pedro Thiago Costa Melo


Mestrando em Educação da Universidade Federal do Piauí PPGEd/UFPI

Luís Carlos Sales


Professor Doutor Titular da Universidade Federal do Piauí PPGEd/UFPI

Introdução
Este artigo tem por objetivo apresentar subsídios para a compreensão
da História, Educação no estado do Piauí Para isso, toma a cidade de Teresina
como caso específico dessa relação entre o período Imperial e o início da Re-
pública. Os resultados dessa descrição evidenciam que ao longo do tempo a
educação se fez de forma precária, consequência de um Estado sem recursos e
pouco articulado.
Os condicionantes locais, como a história e as condições econômicas,
políticas e culturais têm trazido importantes contribuições para a análise de
políticas educacionais, Partindo dessa compreensão, neste texto (que é parte da
dissertação A municipalização da educação infantil pública de teresina: História,
Educação e Memória (1996-2007), de autoria de Pedro Thiago Costa Melo, sob
orientação Dr. Luís Carlos Sales, do Programa de Pós-Graduação em Educação,

197
Centro de Ciência da Educação, Universidade Federal do Piauí, 2019), apresen-
tamos subsídios para a compreensão da História e especialmente da Educação
de Teresina, no contexto de suas relações com estado do Piauí. Para isso, toma
a educação da capital como caso específico dessa relação entre o período Impe-
rial e o início da República.

Teresina entre o Império e a República: História,


Educação e Estado
A história do surgimento da cidade de Teresina pode ser também en-
tendida como um elo na educação. Pois desde sua instalação, as instituições
educacionais se fazem presente, como ressalta Carvalho (2013), ao afirmar que
a transferência da capital de Oeiras para Teresina trouxe não somente o presi-
dente da província e a burocracia que lhe acompanhava, mas também novos
moradores e repartições públicas. Dentre essas repartições estão duas de ca-
ráter educacional: o Liceu e a Escola Profissional dos Educandos Artífices,
ambos criados na cidade de Oeiras, 1845 e 1849, respectivamente. Segundo
Reis (2017),

[...] tão logo o Liceu começou a entrar num ritmo de funcionamento mais re-
gular, o presidente da Província, Conselheiro Antônio Saraiva, em 1852, apro-
vou a sua transferência para Teresina, a nova capital, levando todos os mó-
veis, materiais didáticos e outros utensílios da escola (p. 84, grifos nossos).

Apesar disso, foram estabelecimentos que igualmente aos outros ti-


veram dificuldades de funcionar na nova capital, conforme destaca Carvalho
(2013) ao asseverar que à nova capital impôs-se a urgente necessidade de in-
vestimento para criar uma infraestrutura básica, pois estavam cientes da “[...]
limitação dos recursos provinciais para promover a construção simultânea
de diversos prédios e abrigar os diferentes órgãos públicos (p. 52, grifos nos-
sos).
Nesse sentido, “[...] Teresina, não obstante ter sido construída para ca-
pital da província, cresceu com todos os defeitos inerentes a um desenvolvi-
mento prematuro e apressado” (CHAVES, 1998, p.33). Tudo a se fazer: início
da construção do quartel para o corpo de polícia (1851); o cemitério em cons-
trução ainda em (1854); quartel de linha (1853) e as repartições do governo
em casas alugadas. O próprio Liceu, “[...] no princípio, funcionou nas casas
particulares dos professores” (CHAVES, 1998, p. 29) e Escola Profissional dos
198
Educandos Artífices em casas pequenas e insalubres.
Entretanto, em meios as dificuldades e na medida do possível, “[...]
desde a fundação da cidade que o Governo da Província dedicou sérios cui-
dados à instrução primária, principalmente na capital” (CHAVES, 1998, p.33).
Nesse sentido, o autor em referência destaca que:

Havia quatro escolas públicas primárias em Teresina, pois, por regulamento,


cada paróquia na Província deveria possuir duas escolas, uma para cada sexo,
e em 1866 já estava criada a paróquia das Dores. [...] os meninos ricos estuda-
vam de preferência nas escolas particulares, onde o aproveitamento era mais
rápido e sensível (CHAVES, 1998, p.33, grifos nossos).

Essa vocação de Teresina para com a educação faz surgir em 1869 uma
tentativa de alfabetização de adultos, inaugurando-se aula noturna para rapa-
zes e homens feitos (CHAVES, 1998). A vocação, no sentido de vontade e ten-
tativas, não exclui a precariedade e dificuldades na educação, que se transfor-
mavam em baixa oferta de vagas, não oportunizando uma escola para todos.
Em texto intitulado INSTRUÇÃO EDUCACIONAL EM TERESINA: período
de poucos alunos (1852-1888), Silva (2017) coloca essa situação em evidência,
destacando que:

Deficiências, falta de prédios, professores mal pagos e mal qualificados eram


uma regra na nascente capital do Piauí, que sequer tinha escolas públicas em
prédios adequados quando de sua instalação, o que nos permite dizer que, se
houve uma preocupação em deslocar a capital para enfrentar questões econô-
mica, igual zelo não se revelou concernente ao ensino (p. 23, grifos nossos).

Isso é percebido com o Liceu, que oferecia ensino secundário, com


muitas dificuldades, que “não compensou até 1872” (CHAVES, 1998, p.35).
Sendo que, “[...] o único estabelecimento de ensino permanente e estável de
Teresina era a Escola Profissional dos Educandos Artífices” (CHAVES, 1998,
p. 37).
Acompanhando tudo isso, estava a questão pedagógica dos professores
que, para Chaves (1998), já não era mais correspondente ao de uma capital na
segunda metade do século XIX.

O ensino público em Teresina carecia de reformas não só na estrutura, mas


também no método pedagógico. A metodologia pedagógica utilizada estava

199
pautada no modelo de intimidação; este “método com um processo todo es-
pecial de intimidação ia desde a humilhação premeditada, por meio de gritos,
até a intervenção desapiedada e frequente da palmatória” (CHAVES, 1988, p.
33, grifos nossos).

Este método pedagógico era herança do período colonial e imperial,


no Piauí, que agora deveria ser resolvido, pelo menos era isso que se colocavam
nos discursos com a chegada do período republicano (1889), pois a partir daí:

A educação começa a se firmar como um valor positivo e de fundamen-


tal importância na sociedade brasileira. A ignorância agora era vista como a
causa de todas as crises e de todo o atraso, educar a população seria a chave
para resolver todos os problemas sociais, econômicos e políticos (CASTE-
LO BRANCO, 1996, p. 76, grifos nossos).

Evidentemente deveria ser enfrentado todos estes problemas: professo-


res semi-analfabetos ou até analfabetos, “[...] concursos em geral fraudulentos;
ordenados miseráveis e frequentemente atrasados; inexistência de prédios es-
colares [...] inexistência de material didático” (QUEIROZ, 2008, p. 12). Diante
deste cenário, a quem caberia a solução no alvorecer da República? A este res-
peito, Queiroz (1984), afirma que:

A falta de uma definição mais rigorosa das esferas de atuação das diferen-
tes instâncias político-administrativas, aliada às dificuldades iniciais de es-
tabelecimento da organização nova e desconhecida e, ainda às crises políticas
e financeiras sucessivas, induziam à discussão, com certa intensidade, dos li-
mites e da própria natureza dessa autonomia e independência (QUEIROZ,
1984, p. 46, grifos nossos).

Porém, devemos lembrar que, após a República, a instrução primária


ficou sob a responsabilidade dos “[...] governos estaduais e municipais. O ônus,
na prática, caberia ao governo do Estado. Essa era a justificativa dada para o
fracasso atribuído a esse ramo da administração pública” (QUEIROZ, 2008,
p. 12). Nesse sentido, a “[...] década de 1890 pode ser caracterizada, ao nível
político, como a fase de ajustamento ou transição do centralismo imperial para
a de organização do Estado, nos moldes federativos” (QUEIROZ, 1984, p. 45).
Para o Estado do Piauí, os princípios federalistas eram criticados, con-
fome enfatiza Fontineles Filho (2008), a partir da fala do governador Raymun-
200
do Arthur de Vasconcelos:

Raymundo Arthur de Vasconcelos ainda salienta que em razão das grandes


despesas com as escolas existentes à época, fazia-se necessário reduzir o nú-
mero de tais escolas. Sugere que fosse feita uma distribuição mais propor-
cional, enfatizando que caberia ao município “fundar escolas auxiliares em
benefício de suas circunscrições”. As disputas em torno de quem seria a res-
ponsabilidade pela manutenção do ensino público justifica-se pelo fato de
que somente o Estado era o principal responsável pelo funcionamento das
escolas do período (p. 79-80, grifos nossos).

Como explicita a citação acima, questionava-se o então pacto federati-


vo e a consequente distribuição de encargos sem os respectivos retornos finan-
ceiros do erário, persistindo a mesma crítica:

Em muitas mensagens governamentais há menções sobre a realidade do


regime republicano, destacando seu valor, mas, ao mesmo tempo, afirmando
que o Piauí acabou sofrendo perdas com os princípios federalistas, pois o
Estado estaria à parte da maioria dos benefícios orçamentários, que ficavam
centrados nas regiões Centro-Sul do país (FONTINELES FILHO, 2008, p. 52,
grifos nossos).

Nesse caso, era necessário o Estado buscar recursos por meios pró-
prios, tendo como consequências mudanças significativas na educação, em
particular, nos governos de João Luís Ferreira (1920 a 1924) e Matias Olím-
pio (1924 a 1928). No primeiro governo, deu-se a construção dos primeiros
prédios escolares e, no segundo, houve a intensificação da expansão física de
escolas, em boa medida devido o salto quantitativo nas finanças do Estado por
meio do extrativismo, como nos descreve Queiroz (1984):

A conjuntura favorável da economia do Estado, nos primeiros anos do século


XX, teria sido determinada pela borracha de maniçoba que, a despeito de não
ter provocado alterações fundamentais no sistema de propriedade da terra
ou nas relações de trabalho, teria contribuído para a efetiva autonomia do
Estado na fase de consolidação do sistema republicano (p. 3, grifos nossos).

Tendo consciência de que educação escolar não se faz somente com


boa vontade e que a conjuntura econômica influencia uma sociedade regida
201
pelo capital, a educação de Teresina cresce em momentos de salto positivo nas
finanças do Estado, que entrava num período de modernização (QUEIROZ,
1998), pelo fato de que os projetos modernizantes da cidade iriam se afirmar
nesse momento, “[...] devido ao impulso da nova configuração histórica oriun-
da das transformações econômicas do extrativismo e pelos primeiros passos do
novo regime político recém instalado no país” (FONTINELES FILHO, 2008,
p. 14).
Tudo isso nos coloca frente à mesma constatação de Ferro (1996), (po-
rém, diminuindo o espaço geográfico), ao afirmar que a escola se firmou em
Teresina no período republicano mediante dificuldades e reclamos desde sua
instalação, devido às dificuldades financeiras, cabendo na prática o ente federa-
tivo, governo do Estado, conforme legislação (de teor descentralizante), bancar
a escolarização pública em Teresina. Daí, constatamos os “[...] problemas que
hoje surgem acerca da dinâmica federativa educacional no país, na verdade
tem sido produzidos ao longo dos anos, a partir de contradições e conflitos
historicamente não resolvidos, entre diferentes interesses e demandas sociais
[...]” (GRINKRAUT, 2012, p. 3, grifos nossos) do Estado.
No caso de Teresina, a história da educação nesta cidade, no período
em tela, fins século XIX, legatário do período Imperial e início da República, é
bem exígua, tributária até das relações de produção e demais relações sociais
pouco desenvolvidas, carentes, como vimos.
Estes conflitos e contradições são expressos de diferentes formas tanto
nas relações entre as classes sociais (falta escola), como na própria estrutura
do Estado (falta recursos) que, no caso em questão, foi organizada de forma
federativa (GRINKRAUT, 2012), que [...] se desenvolveram no país em função
das correlações de forças entre os diferentes interesses sociais, econômicos e
políticos” (CRUZ, 2009, p. 144).

Considerações Finais
Como ficou observado neste exercício de historiografia da cidade
de Teresina, a história, educação e a relação com o estado do Piauí foi
tecida com a influência de instituições (a escola, Estado, bem como das
condicionantes locais, como a economia. Pode-se concluir que as rela-
ções de adequação entre os entes político-administrativos na transição
do período Imperial para a República se deu de forma precária, tensa,
conflituosa.
Este exercício de reflexão traz subsídios para um entendimen-
202
to da história da educação, oferecendo importante contribuições para
a análise de políticas educacionais, bem como as relações de poder em
torno do Estado.

Referências
CARVALHO, Genimar Machado Resende de. Escravizados da Nação e educan-
dos artífices nas obras públicas destinadas à construção de Teresina (1850-1873).
Dissertação de Mestrado em História do Brasil. Universidade Federal do Piauí,
2013.

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Doutorado- Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

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1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.

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zação e os discursos modernizadores em Teresina, nas duas primeiras décadas
do século XX. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Piauí, 2008.

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Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2012.

QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. Educação no Piauí. Imperatriz (MA):


Ética, 2008.
203
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Freitas, Higino Cunha e as tiranias do tempo. 2. ed. Teresina: EDUFPI; João
Pessoa: EDUFPB, 1998.

QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. A Importância da Borracha de Mani-


çoba na Economia do Piauí: 1900 - 1920. Dissertação de mestrado em História
do Brasil. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1984.

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cano: revelando a cultura escolar do ginásio municipal oeirense (1952-1969).
Tese de Doutorado- Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2017.

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cos alunos (1852-1888). In: PASSOS, Guiomar de Oliveira. SEMEC: Cinquenta
anos – educação de qualidade em Teresina. Teresina: UPJ Produções, 2017.

204
A construção do sujeito (professor),
diante do mercado de trabalho

Cleide Maria de Carvalho Silva


Doutoranda em Ciências da Educação –PY, Mestra em Ciências da Educação,
graduada em História e Pedagogia, especialista em: História Política do Piauí,
Psicopedagogia Clinica e Institucional, LIBRAS, Docência do Ensino Superior
e Políticas Públicas em Gênero e Raça.

Introdução

A identidade do professor, inicia desde o primeiro momento da gra-


duação, onde passa a construir, desconstruir e reconstruir conceitos, confor-
me adquire saberes, conhecimentos e experiências para sua prática docente.
Moldando sua personalidade docente para construir sua identidade, que nunca
estar pronta e acabada. É uma formação contínua, segue o curso do desenvol-
vimento e mudanças da sociedade ou melhor, grupo social que sua profissão
exerce para eles que é a educação-discente.
A formação docente é contínua como já foi citado e nessa construção
da identidade não tem finalidade só com o discente. Más a sua carreira e posi-
ção no mundo académico. Diante das exigências do mercado de trabalho, o do-
cente vive uma verdadeira maratona para enriquecer o seu currículo lattes com
os criterios dos baremas dos concursos e seletivos docentes de nível superior.
Diante dessa problemática para inserir-se no mundo docente superior,

205
fez-se uma pesquisa sobre análise de currículo docente, intitulada: “A constru-
ção do sujeito (professor), diante do mercado de trabalho”, tem como objetivo
geral: analisar a influencia do barema nas provas de títulos docente. Os especí-
ficos: a) apresentar o barema como construtor do currículo docente, b) iden-
tificar os criterios contidos nos baremas para análise de currículo docente, c)
mostrar a importancia de enriquecer o currículo docente, diante das exigencias
do mercado de trabalho, com os objetivos formulados, construiu-se a pergunta
central da pesquisa que é: Qual a influencia dos baremas na analise de currículo
docente nos cuncursos e seletivos de nível superior? Com base nos escritos de
Ferreira (2014),Ghedin, Almeida e Leite (2008), Falsarella (2004), Imbernón
(2011), Libâneo (2011), Nóvoa (1995), Marconi; Lakatos (2009), além de ou-
tros antecedentes que sustentam essa pesquisa tanto na ideia principal, quanto
as secundárias.
Essa pesquisa justifica-se com o objetivo de uma discursão e reflexão
de um tema problemático no momento da análise do currículo docente com
criterios nos baremas que muitas vezes os participantes não possuem em seus
currículos. O método escolhido para o desenvolvimento deste trabalho foi a
pesquisa bibliográfica que a torna qualitativa, feito um levantamento dos ante-
cedentes do tema da pesquisa, sua seleção conforme os objetivos específicos e
dar-se a análise do material selecionado, construído-se a pesquisa onde não a
torna finda e nem acabada, faz-se uma forma de instigar os leitores que dese-
jam dar continuidade e servindo de antecedentes para outras pesquisas.

Identidade docente

De origem latina (iden) identidade, seu significado é igualdade e con-


tinuidade, por isso a identidade do docente é uma formação contínua, sempre
em desenvolvimento. E muitas vezes o docente chega a ter crise de identidade
diante das questões sociais da atualiadade que mudam a todo momento.
A construção da identidade do docente é permeada pelo mercado de
trabalho vigente do século XXI, tanto pela concepção de trabalho quanto pelo
status que ostentam na sociedade em geral. Percebe-se que a construção da
identidade do docente não possui exclusivamente fins pedagógico, mais de for-
ma explícita a acessão profissional. É uma corrida para definir quem é o profis-
sional e para quê este estar preparado.

206
Os docentes muitas vezes chegam a pensarem que são incapases de
exercerem seu trabalho diante de tanto descaso com o ensinar, porém, cobram
por demais o currículo de títulos dos mesmos. Por isso, o docente precisa cons-
truir sua identidade com capacitações que conferem mais títulos do que ensi-
no-aprendizagem. Como diz Pimenta: “É na leitura crítica da profissão diante
das realidades sociais que se buscam os referenciais para modificá-los” (PI-
MENTA, 1999,p.19). O docente não pode nos días atuais limitar somente aos
conteúdos programáticos da institutição e livros didáticos, precisa-se integrar
dos temas e conteúdos conforme a sociedade que vive, estar inserido.

Formação continuada

Hoje as IES em geral estão oferencendo varios tipos de cursos de ca-


pacitações para docentes, assim o docente constroi sua identidade profissional,
instrumentaliza o docente para que use na sua prática o conjunto de conheci-
mentos e saberes adquiridos. Na nova conjuntura da educação, para o profes-
sor ter só conhecimentos de terminada área de sua formação não conseguirá
acompanhar os apredizes e mesmo as IES não incorporam a seu corpo docente
professores que não tenha uma formação atualizada, contínua e diversificada
(pisco, línguas, inclusão ).
Segundo Libâneo:

[...] provê formação cultural e científica, que possibilita o contato dos alunos
com a cultura, aquela cultura provida pela ciência, pela técnica, pela
linguagem, pela estética, pela ética. Especialmente, uma escola de qualidade
é aquela que inclui, uma escola contra a exclusão econômica, política,
cultural, pedagógica (LIBÂNEO, 2004, p. 35).

Os conhecimentos, adquiridos durante a sua formação de docente pre-


cisam serem alimentados para que ganhe significado durante o exercício de
sua profissão. E é com a formação continuada que o docente alimenta a sua
profissão. Essa necessidade de títulos com criterios de pontuação elevado faz
com quê o docente passe a fazer cursos e participar de evento académicos e
científicos com o intuito únicamente de certificado.
Para o exercício profissional precisa dos saberes e práticas, as qualida-
des são as competências, junto precisa também de habilidades, capacidades e
207
atitudes relacionadas aos conhecimentos teóricos que são exercidos na prática.
Como diz Libâneo (2004), o professor competente é aquele que é capaz
de resolver situações problemáticas, tenha capacidade de movilizar recursos
cognitivos, capacidade de se relacionar e possui procedimentos técnicos. Ou
seja, o polivalente que hoje é denominado de interdisciplinariedade.
Para que esse professor seja cada dia mais competente, ele preci-
sa buscar mais e mais conhecimentos, que le torne-se um sujeito pensante
e crítico. Libâneo (2004) diz sobre o professor: Ser especialista no conteúdo
que vai ensinar, ter dominio de métodos e procedimentos de ensino, desen-
volver visão crítica, saber aplicar variados instrumentos de avaliação, li-
dar com a tecnologia, conhecer varias formas culturais, ser ativo e pro ativo.
Para exercer o seu trabalho de docente o profissional precisa desenvolver com-
petências profissionais específicas, como foi citado anteriormente: conhecer
outras línguas, saber trabalhar com a psico e a diversidade. Precisa saber traba-
lhar o todo para manter-se na excelencia profissional.

A influência do barema

Segundo o dicionário Aurélio (2002) barema é o conjunto de critérios


de avaliação acompanhados da respectiva pontuação. E esse é o sujeito que nos
dias atuais estar direcionando o docente para a contrução de sua identidade
profissional. Pois diante dos concursos e seletivos do século XXI o docente pes-
quisa e analisa os baremas das provas de títulos de nível superior para poder
planejar qual o direção que deve tomar na construção de sua identidade, como
palestras e participações em simpósio nacionais e internacionais, publicações
de artigos e livros só e em parcerias, são os ISBN e ISSN.
A função do docente hoje não estar só com transmissão de conheci-
mentos teóricos, mais ter uma consciência crítica e emancipatória como um
profissional competente. E é ai que entrar a corrida pelo enriquecimento do
currículo lattes que definirá a sua identidade docente. Para as famosas pro-
vas de títulos, onde os baremas vão contar cada 0,5 ponto que você tem mais
que o seu concorrente. Porém os baremas não tem consenso nem na mesma
instituição imagine em instituições diferentes. Cada edital tem seus critérios
completamente diferente e a sua experiência, capacitações e construção de
identidade docente com as produções acadêmicas.
208
Alguns editais diz que a prova de titulo é de caráter classificatório, sabe-
se que a pontuação da prova de títulos muda não só a classificação, mais tira
muita gente da lista de classificados. Nos editais constumam constar os seguin-
tes trechos na área de prova de títulos: A prova de títulos, de caráter classifica-
tório, consistirá da apreciação e valoração pela banca examinadora dos títulos
apresentados pelo candidato no seu curriculum vitae atualizado no formato da
Plataforma Lattes, essa é uma das justificativas do que seja uma prova de titulo
que permeiam hoje nos concursos e seletivos de nível superior, assim como, as
classificações das produções que são todas iguais nos editais: Será considerada
toda a produção científica, filosófica, bibliográfica, técnica, artística e, ou, cul-
tural, publicados, independentemente da área de conhecimento do concurso.
Em seguida os editais de nível superior divide o barema em grupo de
títulos com as devidas pontuações correspondentes:
I – grupo de títulos acadêmicos;
II – grupo de atividades de ensino;
III – grupo de produção científica, tecnológica, literária, filosófica
ou artística;
IV – grupo de funções administrativas universitárias;
V – grupo de atividades de extensão.
O quadro abaixo é uma simulação dos baremas dos editáis pesquisa-
dos que constam no nivel superior de 2019.

Produção Científica/Técnica/Cultural e/ou Artística – na área do Concur-


so (últimos cinco anos anteriores à data do Edital)

Pontos por Componente Máximo de Pontos a


NA ÁREA DO CONCURSO
Curricular serem Atribuídos
Publicação:
de livro técnico-didático-científico com ISBN ou ISSN
(impresso ou eletrônico):
a) autoria individual 10,0 50,0
b) co-autoria 5,0 25,0
c) coordenação/organização 10,0 50,0
2,0 10,0

209
de artigo técnico-didático-científico em revista ou outro periódico especializado de
circulação nacional ou estrangeira (indexada)
a) autoria individual 10,0 50,0
b) co-autoria 5,0 25,0
de artigo técnico-didático-científico em revista ou outro periódico especializado de
circulação nacional ou estrangeira (não indexada)
a) autoria individual ou prin-
40,0 20,0
cipal
b) co-autoria 1,0 5,0
Pesquisa executada e divulgada por meio de relatório impresso que explicite objetivo,
metodologia, procedimentos e resultado alcançado não pontuado de outra forma:
a) coordenador 5,0 25,0
b) participante 3,0 15,0
Apresentação de trabalho, indi-
vidual ou coletivo em reunião
científica, em âmbito regional
2,0 10,0
ou nacional (congresso, seminá-
rio, simpósio ou evento similar).
Apresentação de trabalho pro-
duzido individual ou coletiva-
mente em reunião científica,
em âmbito internacional (con- 3,0 15,0
gresso, seminário, simpósio ou
evento similar).
Registro de patente ou licença
relativa a trabalho, produto ou
aparelho resultante de invenção
10,0 50,0
ou desenvolvimento ou aperfei-
çoamento tecnológico.
Prêmio ou láurea científico,
técnico, artístico-cultural ou
profissional de caráter nacional
7,0 35,0
ou internacional (não honorífi-
co).
Obra artística, técnica ou cul-
5,0 25,0
tural
Quadro elaborado pela pesquisadora, 2019.

210
Construção do currículo docente

Percebe-se que o currículo docente não faz-se só, precisa da dinâmica


do professor para que ocorra essa construção. Quando o professor estar na sua
formação contínua existem varios beneficiarios nesse processo, desde a refle-
xão sobre as suas práticas pedagógicas com o objetivo de melhorar de forma
eficiente e significativa, como a melhoria da ação educativa no ambiente esco-
lar. Tudo pode ser redirecionado e reorganizando para que os objetivos postos
na educação sejam alcançados com sua formação contínua que beneficia a edu-
cação como um todo.
Assim como, a formação continuada pode possibilitar a construção da
identidade docente, também enriquece seu currículo lattes e aprimora conhe-
cimentos louvável a prática educativa. Pois a formação continuada instrumen-
taliza o docente com um conjunto de conhecimentos e experiências para serem
utilizadas na sua práxis. Nessa construção denominada capacitação, estar as
palestras em eventos académicos, simposios, seminários, oficinas, mesas re-
dondas, wordshop, feiras culturais, organizador de eventos académicos, pro-
duções e publicações em revistas impressas, virtuais, libros impressos e e-book.
Tudo que seja possível para enriquecer seu currículo lattes, a socialização se-
gundo Gadotti (2000) é um processo de aprendizagem conforme a situação das
pessoas envolvidas.
Destaca-se ainda, conforme Frozino (2006, p. 52), que “[...] é preciso
observar os desejos, as necessidades e as motivações de cada um [...] as estru-
turas socioeconômicas, as características de mercado de trabalho, os valores
dominantes [...] o contexto histórico dentro do qual os encaminhamentos pro-
fissionais se inscrevem”. O percebe-se no contexto atual é que a corrida para
a formação do currículo versos contrução da identidade do docente é a mo-
tivação que a sociedade acadêmica e comercial (mercado de trabalho) exige
na atualidade. O docente é possuidor de conhecimentos, de ideias, crenças e
opiniões que o leva ao desempenho de suas atividades conforme a mudança de
seu comportamento e definição de sua carreira.

211
Concursos e seletivos docente

O século XXI fica conhecido como o século dos concursos, nem sem-
pre visto com bons olhos, porém torna acessível ao maior número de pessoas.
E a partir dos concursos e seletivos os docentes passam a ver que não basta
somente ter conhecimentos teóricos, saber repassar conteúdos e ter dominio
de sala de aula, mais precisa possuir um currículo lattes cheio de produções
científicas e publicações.
Conforme relata Diniz (2012, p. 15):

[...] a década de 1990 passa a valorizar os saberes da experiência, a partir das


discussões sobre os saberes que um educador e uma educadora precisam ter
para se constituírem como profissionais da educação. Surge uma complexi-
dade de teorias e práticas marcadas por rupturas com modelos ou pensamen-
tos sobre o trabalho docente e formação de profissionais da educação
estabelecidos anteriormente as quais são compatíveis com um sujeito que
também produz saberes, sempre induzido pelas relações de poder fabricadas
no ato de educar.

A construção do currículo docente configura-se em um processo de


mudanças que não são percebidas apenas na prática pedagógica não, mais no
currículo do professor e na sua acessão profissional, ou seja, em toda a dimen-
são social que do professor estar inserido. Como diz Libâneo ( 2004, p. 75),
“conjunto de requisitos profissionais que tornam alguém um professor”, esse
é o portfolio do profissional da educação.
Com a corrida para enriquecer o currículo docente diante do mercado
de trabalho e os criterios dos baremas nos editáis de nível superior o professor
precisa ter ética e compromisso com a profissão para não terminar andando
pelos caminos contrarios ao seu exercício profissional. Participar de eventos
só com o objetivo de adquirir certificados para seu currículo, sem nenhum
conhecimento que possa ser utilizado na educação é correr o risco de pasar a
ser um demagogo.

Ao desempenho competente e compromissado dos deveres e responsabili-


dades que constituem a especificidade de ser professor e ao comportamento
ético e político expresso nas atitudes relacionadas à prática profissional (LI-

212
BÂNEO, 2004, p. 75).

Percebe-se que as provas de títulos é para ter uma função coadjuvante,


não podem sobrepor a prova escrita de conhecimentos específicos, pois rom-
pería com a regra constitucional. Porém sabe-se que a prova de titulo tira muita
gente da lista de concorrencia na fila do mercado de trabalho. Diz ser só para
orden de classificação, mais você que ficou em terceiro lugar em uma lista de
chamada imediata de cinco e teve dois que tem currículo com mais títulos que
você é claro que você ficará para a segunda chamada.

Metodologia

Esta pesquisa tem como objetivo analisar a influência do barema nas


provas de títulos docente e para cumprir com o objetivo proposto fez-se um
levantamento dos antecedentes da temática, passou-se a uma pesquisa biblio-
gráfica com base nos autores citados na introdução, para saber qual é a teoria de
cada um desses autores que possam corresponder aos objetivos. É um estudo
de caráter qualitativo, por basear-se exclusivamente em uma pesquisa biblio-
gráfica. Após a leitura fez-se um mapa conceitual e em seguida passou-se a
produzir o texto conforme os conceitos pesquisados.

Considerações finais

O objetivo desse artigo foi analisar a influência dos baremas nas pro-
vas de títulos docente. O que é um objetivo cumprido e seu êxito vêm com as
discursões que o tema venha instigar após as leituras feito pelos que interessam
pelo tema.
Com os objetivos específicos que foram elencados para o desenvolvi-
mento deste artigo, como o de apresentar o barema como construtor do cur-
rículo docente; identificar os critérios contidos nos baremas para análise de
currículo docente; mostrar a importância de enriquecer o currículo docente,
diante das exigências do mercado de trabalho. Com a caracterização da relação
identidade docente, barema e capacitação de professores, pode-se deduzir que
o processo contínuo sempre será inacabado, principalmente diante do mercado

213
de trabalho que exige cada vez mais super docentes que não tenha só conhe-
cimento de conteúdo e manejo de sala de aula, mais que sejam pesquisadores
e produtores com publicações, ávidos por novas formulas de conhecimento e
trabalho. Em uma sociedade globalizada o lema seria:” Nenhum docente ficará
para trás”.

Referências
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do mini dicionário Aurélio. 7ª impressão-Rio de Janeiro, 2002.

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ção. Diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores da educação
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FROZINO, A. D.  Formação Profissional: percursos e desafios para a escolha


de carreira. 2006. 152 p. Dissertação (Mestrado) - Pós-graduação em Gestão e
Desenvolvimento Regional, UNITAU, Taubaté, 2006.

LIBANEO, José Carlos. A organização e a gestão da escola: teoria e prática. 5 ed.


Goiânia: Editora Alternativa, 2004.

LIBANEO, José Carlos. Panorama do ensino da didática, das metodologias espe-


cifica e das disciplinas conexas nos cursos de pedagogia: repercussão na qualida-
de da formação profissional. In: Longarezi. A. Puentes, R. V. (org.). Panorama
da didática- ensino e pesquisa. Campinas: Papirus, 2011.

PIMENTA, Selma, Garrido. Formação de professores: identidade e saberes da


docência. Saberes Pedagógicos e Atividade Docente. São Paulo: Cortez, 2000.

214
215
Parte II
História, cidade e memória
218
A Instalação da Comissão Mista
Ferroviária Brasileiro-Boliviana no Porto
do Distrito do Ladário e a Construção do
Primeiro Ramal (1937-1939)

Daiane Lima dos Santos


Doutoranda em História pela Universidade Federal da Grande Dourados
E-mail: daiane.amillima@gmail.com

Introdução
O presente texto traz uma análise inicial das primeiras iniciativas da
Comissão Mista Ferroviária Brasileiro-Boliviana (C.M.F.B.B) ao utilizar o por-
to do distrito do Ladário para efetuar o embarque e desembarque de material
e instalar suas oficinas de montagem de vagões e gôndolas. Tal análise feita
decorre da pesquisa de doutorado em andamento cujo objetivo é entender as
dinâmicas iniciais da construção da estrada de ferro internacional ligando o
Brasil, por meio da cidade de Corumbá, à cidade boliviana de Santa Cruz de
la Sierra. Contudo, este trabalho visa compreender – a partir dos relatórios da
Comista – as primeiras tratativas que vão desde a criação da Comista para a
construção da estrada de ferro Brasil-Bolívia até a construção do primeiro ra-
mal no Distrito do Ladário.
As relações do Brasil com a Bolívia foram marcadas pela questão da
disputa pelo território do Acre que, deu início à Revolução Acreana e, teve seu
fim com a assinatura do Tratado de Petrópolis1. Firmado entre os países do Bra-
1 Trecho inicial do Tratado de Petrópolis “a República dos Estados Unidos do Brasil e a Repúbli-

219
sil e da Bolívia no ano de 1903 em Petrópolis, no Rio de Janeiro, o Tratado de
Petrópolis acabou se tornando exemplo circunstancial de relação internacional
que, além de estabelecer o fim do confronto, tinha como objetivo ser uma polí-
tica de comunicação continental com vistas ao desenvolvimento do comércio.
Passando por algumas alterações ao longo do tempo, o Tratado foi mo-
dificado no que diz respeito aos traçados iniciais como em seu artigo III que,
por exemplo, obrigou o Brasil a ligar Santo Antônio do Madeira à Guajará-Mi-
rim, no Mamoré, por uma estrada de ferro, com um ramal de vila Murtinho
a vila Bella, na Bolívia2. O Brasil, por sua vez, comprometeu-se a construir a
estrada de ferro Madeira-Mamoré e mais tarde a Bolívia pagaria a despesa.
O interesse na efetivação da ligação ferroviária internacional também
estava relacionado aos potenciais econômicos da Bolívia, conforme o docu-
mento “Realidades de uma política continental de comunicações ferroviárias”
produzido pelo engenheiro-chefe Whately:

Este sistema ferroviário sub-andino pode dizer-se que surgiu de um apelo das
riquezas potenciais do oriente boliviano. [...] O futuro econômico da Bolívia
está no oriente: centro, norte e sul. Todas as suas possibilidades econômicas
estão ali, única região geográfica propícia a uma vida econômica fácil e nor-
mal. Ali se localizam as principais reservas da riqueza potencial boliviana:
petróleo, minerais, planícies, rios, terras férteis para agricultura e pecuária
(WHATELY, 1952, p.15).

Desse modo, a começar pela análise dos documentos das relações ex-
teriores do Brasil ao longo do século XX nota-se um significativo e contínuo
diálogo diplomático com a Bolívia a respeito da ligação ferroviária, entretanto
é importante frisar que no ano de 1938 além do Tratado de Ligação Ferroviá-
ria foi firmado também o Tratado de Saída e Aproveitamento do Petróleo3 e o
ca da Bolívia, animados no desejo de consolidar para sempre a sua antiga amizade, removendo
motivos de ulterior desavença, e querendo ao mesmo tempo facilitar o desenvolvimento das
suas relações de comércio e boa vizinhança, convieram em celebrar um tratado de permuta de
territórios e outras compensações, de conformidade com a estipulação contida no artigo 5º do
Tratado de Amizade, Limites, Navegação e Commercio de 27 de março de 1867.” Fonte: Tratado
entre o Brazil e a Bolívia de 17 de novembro de 1903, RJ: Petrópolis.p.1.
2 Modificado pelo Protocolo de novembro de 1910, aprovado e sancionado pelo Brasil em 1912
que alterou, por proposta da Bolívia, este traçado que deveria ser o ramal partir da cachoeira do
pau grande, no Mamoré, a montante de Villa Murtinho, e atravessar esse rio em demanda da
margem direita do Beni, acima da cachoeira-esperança. Fonte: Protocolo de novembro de 1910.
3 Assinado pelo Brasil e a Bolívia em 25 de fevereiro de 1938 foi ratificado em 05 de setembro e

220
Tratado de Extradição4.

Desenvolvimento
No Brasil, na primeira metade do século XX, a criação de uma Com-
panhia Ferroviária para a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil
(NOB) desencadeou um processo que acabou ultrapassando não só as frontei-
ras físicas, mas históricas, culturais e sociais.
Esse processo de ligação ferroviária que teve seus trabalhos inicialmen-
te realizados pela NOB, no início do século 20, partindo de Bauru em São Paulo
conferiu alguns problemas – de maior ou menor amplitude – como aponta o
historiador Paulo Roberto Cimó Queiroz (1999) ao afirmar que ao longo do
processo de construção da estrada foram relatados problemas com relação à
estrutura dos dormentes e trilhos e de infraestrutura das estações ferroviárias.
Além dos problemas citados, houve outro entrave: a estrada de ferro não ficou
completamente pronta, o que acarretou na elaboração de um projeto de pro-
longamento.
Com isso, é importante destacar que, em se tratando da ligação fer-
roviária com a fronteira oeste brasileira, a NOB fazia a ligação do Porto de
Santos em São Paulo até o distrito de Porto Esperança, porém não chegava ao
município de Corumbá, no Mato Grosso. Assim, tudo o que chegava de trem
desembarcava em Porto Esperança, de onde era feita a baldeação para a cidade
de Corumbá via navegação fluvial sendo que o transporte de passageiros era
feito ou pelo vapor Fernandes Vieira ou pelo Cidade Branca.
À época, Corumbá era um município que possuía seis distritos, do
qual Ladário e Porto Esperança faziam parte. O distrito do Ladário tornou-se
município ao longo do processo de ligação ferroviária internacional5. Os mora-
dores daquela região tinham o rio Paraguai como meio de navegação e comu-
nicação realizado através dos portos de Corumbá, Ladário e Porto Esperança.
Nessa perspectiva, com a chegada da estrada de ferro esse panorama

promulgado 5 de outubro do mesmo ano. Devido as notas reversais acrescidas em 28 de março


de 1958 recebeu o nome de Acordo de Roboré. Fonte: Legislação.
4 Assinado pelo Brasil e a Bolívia no Rio de Janeiro em 25 de fevereiro de 1938 foi aprovado pelo
Decreto nº345 de 22 de março de 1938. Fonte legislação.
5 Município criado pela lei estadual de 11 de dezembro de 1953 e instalado em 17 de março de
1954.

221
de comunicação via fluvial foi mudando gradativamente, embora os problemas
supracitados acabassem por paralisar as obras em 19146 sem cumprir o seu
destino: fazer chegar os trilhos até a cidade de Corumbá.
Na década de 1920, houve a preocupação com o projeto de prolon-
gamento para que a linha férrea fosse efetivamente construída, o que se pode
perceber na carta do chefe da Comissão dirigida ao diretor da Noroeste:

Submeto a vossa apreciação os desenhos referentes ao projeto de prolonga-


mento de nossa linha até a cidade de Corumbá, acompanhado dos orçamen-
tos aproximados das despesas de construção; esses orçamentos abrangem:
trabalhos preparatórios, trabalhos de escavação, obras d’arte corrente, obras
de arte especiais, via permanente, linha telegráfica e edifícios e dependências
(Carta dirigida ao diretor Bauru - Gastõn Sarahyba, escrita por Athayde chefe
da Comissão em 11 de setembro de 1928, p. 1).

Nesse sentido, em 25 de fevereiro de 1938 na cidade do Rio de Janeiro


foi assinado o Tratado de Ligação Ferroviária entre os governos do Brasil e da
Bolívia com o objetivo de estabelecer as comunicações ferroviárias.
Apesar disso, a Comissão Mista Ferroviária Brasileiro-Boliviana (na
pesquisa utilizarei a sigla C.M.F.B.B. e a abreviação Comista) foi criada no ano
de 19377 no período em que estava em construção o trecho final da Noroeste do
Brasil, isto é, do prolongamento de Porto Esperança até Corumbá. O objetivo
da Comista era, portanto, construir a estrada de ferro de Corumbá, no Brasil,
até a cidade de Santa Cruz de la Sierra na Bolívia.
Por essa razão que os primeiros sinais e indícios sobre a Comista me-
receram atenção especial quando surgiram durante o processo de escrita da
dissertação de mestrado “Apologia à inconstitucionalidade: os desdobramen-
tos em torno da criação e formação da municipalidade do Ladário-MS (1948-
1955)” e se transformaram na pesquisa para o curso de doutorado.
Torna-se fundamental entender as dinâmicas e desdobramentos em
torno da Comista para abordar a história do internacional ao regional sob o
viés da memória coletiva formada em relação à ferrovia. Dessa forma, é rele-
vante compreender as dinâmicas dos pontos de referência com base nos trilhos

6 Ver: GHIRARDELLO, Nilson. A companhia estrada de ferro Noroeste do Brasil. In: À beira da
linha: formações urbanas da Noroeste Paulista. [online]. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
7 Criada de acordo com art. IV do protocolo de 25 de novembro de 1937.

222
considerando que os relatos dos entrevistados e ex-trabalhadores da Comista
– principalmente porque puderam conhecer os dois lados da estrada e, sobre-
tudo, compartilhar vivências com os bolivianos –, são importantes para refletir
a visão sobre a construção da estrada de ferro que ligou o Brasil à Bolívia.
Para alcançar tal objetivo, a delimitação temporal tem como foco o
início das tratativas com relação à criação e instalação da Comista na região
(1937) até o momento de sua extinção (1958) que se deu com o aproveitamento
dos trabalhadores e inutilidade da área onde funcionavam as oficinas para a
montagem dos vagões, gôndolas e dormentes para os trilhos.
Dialogando com a delimitação temporal, requer atenção a delimitação
espacial da pesquisa que abrange as cidades sul-mato-grossenses de Corumbá
e Ladário, banhadas pelo rio Paraguai e localizadas na fronteira oeste do Brasil
com a Bolívia, cenário da concretização dos acordos ferroviários estabelecidos
entre os dois países.
Foi no contexto de construção do prolongamento da NOB que o distrito
do Ladário “apareceu” já que havia a preocupação de como o transporte do
material seria feito. Os materiais e equipamentos necessários para a construção
da estrada de ferro Brasil-Bolívia tinham de ser transportados por via fluvial e
como não havia o “prolongamento” da estrada de ferro de Porto Esperança até
Corumbá, Ladário foi o local escolhido para o estabelecimento dos trabalhos
da Comista. Quer dizer que os materiais chegavam até Porto Esperança e de lá
eram levados em embarcações para o Porto do distrito do Ladário.
Cumpre destacar, desse modo, a contribuição substantiva de Queiroz
(2004) feita na sua tese de doutorado sobre a NOB “Uma ferrovia entre dois
mundos: A E. F. Noroeste do Brasil na primeira metade do século 20”, que trata
do processo de construção da referida estrada e aponta as iniciativas, os estudos
e a importância da ligação ferroviária do Brasil com a Bolívia:

A questão, de todo modo, reaparece em nosso período já no relatório de Ar-


lindo Luz, segundo o qual “urge” levar as linhas da NOB até Corumbá e daí
a Porto Suarez (Bolívia), visando a uma futura ligação transcontinental. Nos
relatórios da NOB, todavia, esse tema voltaria a aparecer apenas em 1927,
quando é informado que se haviam iniciado novos estudos para a construção
dos trechos restantes (QUEIROZ, 2004, p. 61).

É possível perceber que havia certa urgência na construção e extensão

223
dos trilhos da NOB até Corumbá para que estes chegassem à Bolívia, em outras
palavras, a urgência em dar início aos trabalhos de construção do ramal que
ligaria a cidade de Itapura em São Paulo até Corumbá e, em seguida até a Bo-
lívia.
Nos estudos realizados pela NOB já estava prevista a ligação transcon-
tinental e, por isso, no dia 03 de setembro 1925 foi assinado o Protocolo Ferro-
viário e, no entanto, essa ligação tornou-se realidade e começou a sair do papel
a partir da assinatura de dois documentos, a saber: do Protocolo de 25 de no-
vembro de 1937 que criou a Comista para os estudos e construção dos trilhos
até a Bolívia e do Tratado de Ligação Ferroviária em 1938.
Ademais, as funções da Comissão Mista Boliviana Brasileira de Estu-
dos do Ferrocarril8 Corumbá-Santa Cruz só foram regulamentadas em 24 de
maio de 1938 e o início da construção visando a ligação ferroviária da cidade
de Corumbá até a cidade de Santa Cruz de la Sierra na Bolívia se deu a partir de
1939. Diante disso, Queiroz aponta que, após o início das obras o objetivo era
fazer a ligação das pontas de trilhos.

Assim, enquanto não fossem ligadas as duas pontas de trilhos, de modo a


permitir pelo menos um tráfego provisório, de serviço, todos os materiais ne-
cessários à frente aberta em Corumbá precisavam ser transportados pelo rio
Paraguai, de Porto Esperança ao porto de Ladário, junto a Corumbá (R49, p.
55) (QUEIROZ, 1999, p.42).

Estabelecer de imediato a ponta de ligação dos trilhos do Brasil à Bolí-


via facilitaria a logística do transporte – precário na época, de modo que, essa
ligação provisória garantiria o transporte do material necessário à construção
da estrada de ferro.
Nesse sentido, Queiroz, ainda em sua tese, dá destaque também a fala
do engenheiro-chefe Whately “[...] Na ausência do prolongamento, os citados
materiais eram providos por via fluvial, sendo desembarcados no porto de La-
dário – o que aliás exigiu a prévia construção de um pequeno trecho ferroviário
ligando Ladário ao ponto inicial da Brasil-Bolívia[...]” (QUEIROZ, 1999, p.43).
Deveria ser feita uma ligação ferroviária para fazer o transporte do ma-
terial a fim de que chegasse a Corumbá. Essa ligação foi praticável a partir do
Porto de Ladário, de onde os materiais eram desembarcados. Desse modo, no
8 Denominação comumente utilizada na documentação oficial quando faz referência ao Ferro-
carril Corumbá- Santa Cruz de la Sierra.

224
trecho do Relatório da Comista é perceptível a relevância do porto do distrito
do Ladário no cenário da construção da estrada

[...] faltava ainda determinar um meio de comunicação fácil entre a estação


inicial e a margem do rio Paraguay, para que ficasse assegurado o transporte
dos materiais destinados aos serviços. Para êste fim impoz-se Ladário, subúr-
bio de Corumbá, situado a cinco quilómetros a jusante do rio Paraguay, apro-
veitando-se o local onde existia uma ponte de desembarque da antiga Com-
panhia de Minas e Viação do Urucum, [...] e ainda facilitar a comunicação
entre o Arsenal de Marinha do Ladário e a sede do 17° Batalhão de Caçadores
(anexo n° 4). (WHATELY; TORRES, 1940, p. 11).

Observa-se a importância estratégica do porto do Ladário para o pro-


cesso de embarque e desembarque de material, uma vez que contava com uma
ponte de desembarque desativada das Minas do Urucum construída em 1919
para atividades de exportação de minério.
É interessante assinalar ainda que no mesmo relatório recebeu desta-
que a construção do ramal do Ladário porque foram utilizados parte dos tri-
lhos da antiga Companhia de Minas e Viação que fazia a extração do minério
na região do Urucum

[...] Para êste ramal, contava-se com os trilhos e materiais da antiga Compa-
nhia de Minas e Viação, inclusive três locomotivas pequenas abandonadas,
que era possível reparar e pôr em estado de funcionamento. Para o futuro,
depois que se construa o porto de Corumbá, impor-se-á a sua ligação á E. F.
Brasil-Bolívia (WHATELY; TORRES, 1940, p.11).

Dessa maneira, o local, que já estava em desuso, foi aproveitado para


efetuar os desembarques dos materiais importados que serviriam para a cons-
trução dos trilhos, vagões e gôndolas. Além do aproveitamento do local, as
locomotivas “abandonadas” pela Companhia foram aproveitadas9.
Em decorrência da existência da linha férrea da Viação Urucum os cus-
tos com a construção dos trilhos foram reduzidos10 e a construção do referido
ramal ficou sob a responsabilidade da firma “Geraldo de Rezende Martins” que

9 Estas locomotivas aproveitadas – quando as atividades de construção dos trilhos estavam a


todo o vapor – serviram para o transporte de funcionários e operários da Comista conforme
relatos de ferroviários que trabalharam na construção da estrada.
10 Ver relatório da Comista por Whately e Torres, 1940.

225
concluiu as obras no mês de setembro de 1939 como é possível observar “[...] a
construção desta linha foi executada pela firma Geraldo de Rezende Martins e
os trabalhos iniciaram-se a 13 de abril de 1939. A 7 de setembro do mesmo ano,
era inaugurado o ramal e nos últimos dias desse ano, ficaram concluídos todos
os trabalhos complementares” (WHATELY; TORRES, 1940, p. 42).
No tocante à inauguração do ramal do Ladário é pertinente frisar que
foi noticiada pelo jornal O estado de Mato Grosso 11 com o título “Inaugurado
festivamente o ramal de Ladário da estrada de ferro Brasil-Bolívia” da seguinte
forma:

O trem inaugural, lotado de autoridades [...] partiu de Ladário às 10 e ½ entre


grandes manifestações de entusiasmo popular. A histórica viagem foi vencida
galhardamente por uma pequena locomotiva de serviço [...] Toda Corumbá se
comprimia no local em que se achava a estaca zero do ramal do Ladário [...].

O jornal menciona a forma como aconteceu a inauguração do ramal


com as autoridades locais, porém, as fontes coletadas até o momento não per-
mitem uma análise de quem eram essas autoridades.

Considerações finais
Considerando a leitura e a interpretação dos Relatórios da Comista,
é possível observar que o porto do distrito do Ladário funcionou como um
ponto de apoio de suma relevância para a construção da estrada de ferro inter-
nacional em cumprimento aos acordos e tratados estabelecidos anteriormente
entre ambos os países do Brasil e da Bolívia a começar pelo Tratado de Petrópo-
lis e chegar até o Tratado de Ligação Ferroviária que estabeleceu os principais
critérios para a construção da estrada de ferro Brasil-Bolívia.
Por esse motivo, os relatórios da Comista são as fontes utilizadas para
a pesquisa do doutorado em curso tendo em vista que trazem os aspectos po-
líticos, sociais e econômicos ao longo do processo de construção ferroviária.
Portanto, a partir da análise do relatório em conjunto com as demais
fontes (orais e escritas) será possível entender quais os impactos econômicos,
sociais e políticos na fronteira oeste do Brasil, em particular, nas cidades de
Corumbá e Ladário.

11 Ano I 12 de setembro de 1939 nº 11 – Capa do Jornal. Fonte: Hemeroteca Biblioteca Nacional.

226
Referências
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Tradução Cássia R. da Silveira e Denise M.
São Paulo: Brasiliense, 2004.

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. Tradução Maria Letícia Ferreira. 2ª rei-


mpressão. São Paulo: Contexto, 2014.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Portu-


gal: Difel 2002.

MACEDO, João Lisbôa de. Monografia Ladarense-I. Núcleo Cultural de


Ladário: Prefeitura Municipal de Ladário- Adm.1997a 2000, 1997. p.10.

MATOS, Lucina Ferreira. Memória ferroviária: da mobilização social à política


pública do patrimônio. 2015. 200fls. Tese (Doutorado em História, Política e
Bens Culturais). - CPDOC Rio de janeiro.

PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões


sobre a ética na História Oral. Projeto História, São Paulo (15), abril 1997.

QUEIRÓZ, Paulo Roberto Cimó. Uma ferrovia entre dois mundos: A E. F. No-
roeste do Brasil na primeira metade do século 20. Bauru: Edusc: Campo Gran-
de, MS: Ed. UFMS, 2004.

VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: Editora da UNB, 2008.

227
228
Lugares de Trabalho e Memória:
Patrimônio Industrial Ferroviário em
Parnaíba-Pi, 1916-1980

Lêda Rodrigues Vieira


Mestrado em História do Brasil pela UFPI
Professora Assistente II da UESPI, Campus Professor Alexandre Alves
de Oliveira. E-mail: ledarodrigues@phb.uespi.br

A ferrovia chegou no Piauí depois de muitas paralisações, sendo


somente em 1916 a inauguração do primeiro ramal ferroviário, ligando Portinho
à Cacimbão na região norte do Estado. Nesta região foram inaugurados outros
trechos e estações ferroviárias entre os anos de 1920 a 1937, atingindo cidades
como Parnaíba, Amarração (atual Luís Correia), Bom Princípio, Frecheiras,
Cocal, Deserto, Piracuruca e Piripiri. Com as ferrovias, a paisagem urbana e
rural se modifica, as ruas assumem novos contornos e funções, o que antes
funcionava como símbolo do movimento de pedestres, com o trem passa a
ter outros significados: espaço de velocidade, barulho das locomotivas, perigo
dos atropelamentos, trabalho, etc. A proposta deste artigo é problematizar o
legado do patrimônio industrial ferroviário na cidade de Parnaíba no período
de 1916 a 1980, uma das primeiras cidades do Estado a ser contemplada por
trilhos de ferro e a ter sua paisagem transformada com a passagem do trem.
Para isso, analisamos elementos materiais da cidade dotados de diferentes
temporalidades, sendo os espaços da ferrovia marcados pelo fervilhar humano

229
(do passageiro ao trabalhador ferroviário) por meio da estação ferroviária, da
guarita, das oficinas, etc. Além disso, as memórias escritas e orais dos atores
sociais, por meio de crônicas publicadas em jornais e entrevistas orais com
ferroviários aposentados da Central do Piauí na busca de compreender os
diversos sentidos atribuídos ao espaço ferroviário e a relação com a história da
cidade.
Nos primeiros anos do século XX, o Piauí ainda não possuía um
quilômetro sequer de trilhos ferroviários assentados. Foi somente em 19 de
novembro de 1916, que ocorreu a inauguração do primeiro trecho ferroviário
na região norte do Estado, entre Portinho e Cacimbão, com 24 km de extensão.
Nesse mesmo dia foi também lançada a pedra fundamental da Estação
Ferroviária de Parnaíba.
A ferrovia chegou ao Piauí num momento em que o governo federal
começa a se preocupar em integrar e desenvolver as diversas regiões brasileiras
através da construção de rodovias em todo o país. Nesse sentido, as ferrovias
assume uma posição secundária nos programas de transporte do governo
federal, ficando muitos projetos ferroviários esquecidos e/ou abandonados
durante anos. No Piauí não seria diferente, antes da implantação dos primeiros
trechos ferroviários, inúmeros estudos e projetos foram produzidos e mantidos
no esquecimento durante os anos finais do século XIX e início do século XX,
mas por iniciativa do governo federal acabou sendo efetivado alguns desses
trechos, principalmente aqueles que interligavam Amarração (Atual Luís
Correia) às principais cidades da região norte do estado: Parnaíba (1920),
Cocal (1923) e Piracuruca (1923).
As cidades contempladas por estradas de ferro tiveram sua paisagem
urbana transformada devido a presença de diferentes edificações construídas
para auxiliar as diversas atividades profissionais realizadas no espaço ferroviário,
bem como ao atendimento dos passageiros: estações, armazéns de carga e
mercadorias, oficinas de manutenção, local para manobra de composições,
caixas d’água suspensas, casas para funcionários (vilas ferroviárias), depósito
de carvão, curral, etc. Essas edificações tornaram-se o maior legado das
ferrovias em cidades contempladas por essa modalidade de transporte, pois
contribuíram para o surgimento de cidades e povoados em regiões antes
desertas e consolidou os núcleos urbanos já existentes.
Nesse sentido, realiza-se uma análise do legado das ferrovias no Piauí,

230
sobretudo na cidade de Parnaíba uma das primeiras do Estado a ser contemplada
por trilhos de ferro e a ter sua paisagem transformada com a passagem do
trem. O historiador ao narrar a história da cidade precisa investigar, recolher
e analisar diversos vestígios de uma determinada época desde o material ao
simbólico. Para isso, o investigador precisa de um olhar atento e apurado para
perceber nos elementos materiais da cidade diferentes temporalidades. Para
Brescianni, “na cidade, a história se constrói no espaço e no edifício público;
nesses espaços, instauram-se possibilidades de ação pela presença coletiva
dos atores sociais e pelo registro dessa presença dramatizada em espetáculo”
(OLIVEIRA In BRESCIANI, 2002, p. 30), e os espaços da ferrovia traduzem,
muito bem, esse fervilhar humano: do passageiro ao trabalhador ferroviário.
No entanto, não é somente os elementos materiais que dar a ver o
passado da cidade, mas também as memórias escritas e orais dos atores sociais.
Desse modo, na tentativa de compreender as transformações sociais, culturais
e econômicas ocorridas em Parnaíba, principalmente no espaço ferroviário
recorremos a metodologia da História Oral para aproximarmos das experiências
no trabalho e na cidade presentes nas memórias construídas de ferroviários
aposentados da Estrada de Ferro Central do Piauí. Quais as representações
construídas em torno da ferrovia? Como representavam o espaço ferroviário
enquanto lugar de trabalho? E enquanto lugar de sociabilidade?
A metodologia da História Oral representa uma possibilidade de
alargar os horizontes do pesquisador em relação as diferentes vivências
humanas, mas para isso é indispensável um trabalho histórico, de pesquisa
prévia para compreender as expressões de vida e acompanhar o relato do
interlocutor. Nesse sentido, as vivências narradas pelos interlocutores permitem
ao historiador conhecer diferentes interpretações e experiências do cotidiano
do entrevistado, mas não esquecendo que a entrevista de história oral é uma
fonte, uma versão dentre outras constituída de subjetividades, distorções,
erros, omissões e silêncios possíveis de serem interpretados pelo historiador.
Para Verena Alberti,

[...] a história oral é um método de pesquisa (histórica, antropológica,


sociológica etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que
participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de
mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Como consequencia,

231
o método da história oral produz fontes de consulta (as entrevistas) para outros
estudos, podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores. [...] A
entrevista de história oral – seu registro gravado e transcrito – documenta
uma versão do passado. (ALBERTI, 2005, p. 18-19)

As entrevistas de história oral permitem ao historiador realizar


comparações das diferentes versões sobre o acontecido, compreender que o
passado não constitui um só, mas é plural. Ecléa Bosi ao realizar entrevistas
com antigos moradores de São Paulo percebeu que “a memória dos velhos
desdobra e alarga de tal maneira os horizontes da cultura que faz crescer junto
com ela o pesquisador e a sociedade em que se insere”. (BOSI, 2003, p. 199)
Nesse sentido, se faz a análise das memórias de ferroviários aposentados da
Central do Piauí na busca de compreender os diversos sentidos atribuídos
ao espaço ferroviário e a relação com a história da cidade. Nas entrevistas
realizadas com esses atores sociais se pode perceber que ao lembrarem de
seu tempo de trabalho na ferrovia apoiavam-se muitas vezes nas “pedras da
cidade”, remetiam aos “lugares de memória” ainda hoje existentes no cenário
urbano como, por exemplo, a estação. De acordo com Vera Dodebei:

[...] Para a imaginação histórica, há a necessidade de dar sentido ao material


do passado, ao material morto ou às ruínas. Tais ruínas estão sempre presentes
nas construções da memória, de tal sorte que não representam a degradação
ou perda de uma possível identificação cultural; ao contrário, fundam o
imaginário histórico. (DODEBEI, 2005, p. 47)

Os trabalhos de construção dos primeiros trilhos de Ferro no Piauí foram


iniciados em 1916, através da iniciativa do governo do Estado. Anteriormente,
através do Decreto n. 8.711, de 10 de maio de 1911, ficara a construção da
linha de Amarração à Campo Maior a cargo da Companhia South American
Railway Ltda que construiu 23 km de ferrovia, sendo paralisados os serviços
em 1913. Em 1915, com o decreto de caducidade do contrato celebrado com a
companhia South American Railway Ltda, a estrada de ferro piauiense passou
a ser subordinada pelo governo federal, através da Rede de Viação Cearense e
tendo como sede de seu escritório central na cidade de Parnaíba. Em portaria

232
de 28 de maio de 1920, a estrada de ferro Amarração-Campo Maior passou
à Superintendência da Inspetoria Federal das Estradas com a denominação
de Estrada de Ferro Central do Piauí. Nesse período, foram planejadas e
construídas por engenheiros e trabalhadores diversas obras d’arte: estações,
pontes e pontilhões, bueiros, assentamento de trilhos etc. que contribuiram
para a formação de cidades e povoados na região norte do Estado.
A história da construção da ferrovia no Piauí pode ser narrada por
antigos ferroviários que trabalharam de sol a sol para ver concluído um
grande sonho, ver o território piauiense cortado por trilhos de ferro. São
trabalhadores constituídos de engenheiros e operários que povoaram os mais
diferentes espaços da ferrovia acompanhados do desejo de trabalhar para o
sustento próprio e de sua família. Esses trabalhadores eram contratados para
os diversos serviços: construção de pontes, pontilhões e bueiros, implantação
de dormentes e trilhos, manutenção e conservação do material rodante, etc. Na
lembrança de Francisco de Sousa Marques, admitido em 9 de setembro de 1950
e aposentado em 30 de setembro de 1979 como supervisor especial de linha da
Central do Piauí e filho de ex-ferroviário, João Marques de Melo, que trabalhou
na construção do primeiro trecho ligando Portinho à Cacimbão, afirmava que
uma das obras mais importantes numa ferrovia é a construção de uma ponte.
Francisco Marques (2006) citou o exemplo de seu pai que

[...] foi um dos primeiros funcionários, ele veio pra construir, ele veio pra
construir os serviços de obras artes, obras artes que chamamos era bueiros e
pontes não sabe? Chamam-se obras artes, ele veio pra fazer estas construções.
Primeiro veio construir os pilares da ponte lá do rio Portinho depois foi que
os engenheiros veio localizar a parte metálica, já com as placas e o concreto
armado.

As “obras artes” mencionadas por Francisco Marques eram


representadas pelas pontes metálicas, aterros, bueiros e pontilhões, construídas
ao longo da ferrovia para permitir a passagem do trem em lugares cortados
por rios, riachos e pequenas serras. Na construção da Estrada de Ferro Central
do Piauí foram edificadas diversas obras artes, dentre elas, podemos destacar
a ponte metálica sobre o rio Portinho, inaugurada em 1922 e cuja implantação
objetivava ligar a localidade de mesmo nome a Cacimbão. Atualmente essa

233
ponte encontra-se abandonada precisando de reparos e manutenção.
No município de Parnaíba, cidade situada a 345 km da capital
Teresina e a poucos quilômetros do mar, à margem direita do rio Igaraçú,
nos tempos áureos da ferrovia entre os anos de 1920 a 1960 teve diversos
povoados circunvizinhos formados e desenvolvidos pela presença da estrada
de ferro como Marruás, Bom Princípio e Cocal. Este último desenvolveu-se
com maior proporção ao se destacar no intercâmbio comercial com o Ceará
através da cidade de Viçosa, absorvendo toda a produção agrícola e pecuária
da Ibiapaba. A estação de Cocal foi inaugurada em 13 de fevereiro de 1923,
pelo então diretor da Central do Piauí, Miguel Furtado Bacelar. Com o início
do tráfego ferroviário, a cidade passou por um desenvolvimento comercial
muito significativo, contribuindo para a formação de pequenas aglomerações
populacionais que atualmente são cidades ou povoados como Cocal dos Alves
e Freicheiras1.
Em algumas cidades brasileiras os trilhos percorriam diversos lugares,
principalmente cortando ruas e avenidas, ocasionando um novo reordenamento
e assumindo novos significados dentro do espaço urbano. Em Parnaíba, o
visitante ao percorrer os trilhos de ferro podiam observar uma cidade dividida
entre o “pra cá” e o “pra lá” dos trilhos, setorizando, parte das vezes as classes
sociais e em seu percurso os passageiros podiam visualizar paisagens diversas
desde edificações comerciais, fábricas e praças até residências com estilo
colonial.
A paisagem urbana sofre diversas modificações com a presença da
ferrovia quando o silêncio é interrompido pela passagem rápida e esfolegante
da locomotiva e de seus apitos estridentes que avisava a população a hora da
partida e chegada e quando o ar é envolvido por rolos de fumaça e faíscas.
Para Certeau, dentro do vagão de trem o viajante é “uma célula racionalizada”
experienciando na estação a “imobilidade de uma ordem” onde “reinam o
repouso e o sonho” para logo ao adentrar no trem se deparar com a imobilidade
das coisas de fora “montanhas solenes, extensões verdes, aldeias sossegadas,
colunatas de prédios, negras silhuetas urbanas contra a rosa do entardecer,
brilhos e luzes noturnas em um mar de antes ou depois de nossas histórias”.
(CERTEAU, 1996, p. 194) O historiador para chegar ao conhecimento do
passado da cidade acumula através da investigação diferentes fontes que
1 Frecheiras é um povoado situado a 13 km de Cocal, no qual a estação ferroviária foi inaigurada
em 19 de janeiro de 1923.

234
auxiliam em sua interpretação e

a cidade, processo de construção coletiva, acumula em sua paisagem os


momentos da história de uma coletividade e os elementos da paisagem
urbana, manifestações da vida social e, portanto, prova viva de valores,
culturas, memórias e identidades de uma época. (PASSARELLI, 2006, p. 370)

A chegada da ferrovia na cidade representou uma mudança na rotina


das pessoas, a velocidade do trem impõe aos passageiros uma nova percepção
da paisagem e os horários de chegada e partida do trem passam a controlar
o tempo obrigando “os passageiros a ajustarem suas particularidades e o
próprio cotidiano”. (POSSAS, 2001, p. 57) A estação ferroviária se coloca como
referência arquitetônica e urbana do lugar, “pelo fato de ligarem a via férrea
com as respectivas aglomerações” e, muitas vezes chega a originar uma avenida
ou praça à sua frente. (POSSAS, 2001, p. 63)

Referências

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BOSI, Ecléa. Memória da cidade: lembranças paulistanas. Estudos avançados,


v. 17, n. 47, 2003.

BRESCIANI, Maria Stela. Cidade e história. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi (Org.).
Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 2002.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Rio de Janeiro:


Vozes, 1996.

DODEBEI, Vera. Memória, circunstância e movimento. In: DODEBEI, Vera;


GONDAR, Jô. (Org.). O que é memória social. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 2005.

MARQUES, Francisco de Sousa. Depoimento concedido a Lêda Rodrigues


Vieira. Cocal, 22 dez. 2006.

PASSARELLI, Silvia Helena Facciolla. Paisagem ferroviária: memória e

235
identidade na metrópole paulista. Exacta, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 363-373, jul./
dez. 2006.

POSSAS, Lidia Maria Vianna. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão


paulista. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

236
Memórias da Cidade:
Apontamentos Históricos Sobre a Feira
Livre de Dourados/Ms

Camila de Brito Quadros Lara


Doutoranda em História pela Universidade Federal da Grande Dourados-
PPGH/UFGD. Bolsista Capes – DS

Introdução: migração e memórias da cidade


Esse texto tem como objeto de estudo a Feira Livre de Dourados, cria-
da em 1948 através do Decreto Lei nº 19, como uma estratégia de abastecimen-
to dos moradores da cidade, comercialização dos produtos hortifrutigranjeiros
dos colonos da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) e da Colônia
Municipal de Dourados (CMD), bem como forma de arrecadação de impostos
para o município. Nesse sentido, a Feira Livre teve como seu primeiro ponto de
localização a Praça Antônio João. Porém, durante as décadas, sua localização
foi alterada algumas vezes pelo poder público, até ser instalada no Jardim São
Pedro, local atual. Diante desse contexto, esse texto tem como objetivo apresen-
tar e discutir alguns aspectos históricos da Feira Livre de Dourados, sobretudo,
na perspectiva das memórias sobre/da cidade, tentando refletir sobre o proces-
so de interação dos moradores da cidade e das colônias, o entendimento da Fei-

237
ra Livre enquanto espaço de trocas comerciais e simbólicas, a visão e o interesse
do poder público em relação à feira, além do desenvolvimento econômico de
Dourados, tão pautado no progresso e na modernidade, discurso bastante utili-
zado pela imprensa local e pelos memorialistas. Entender a Feira Livre de Dou-
rados enquanto elemento representativo diante do reordenamento do espaço
público, bem como suas dinâmicas e representações sociais e culturais também
se faz necessário, pois a feira se constitui em um espaço de sociabilidade, de
trabalho, de lazer, de tradição e de memória coletiva, produzindo identidades.
Sua representação está para além das funções econômicas, visto que se trata de
uma produção cotidiana de saberes, de práticas sociais e culturais, de relações
de poder. As fontes trabalhadas nessa pesquisa constituíram-se pelos relatos
contidos em produções memorialísticas, produções acadêmicas sobre as rela-
ções da cidade com o objeto pesquisado, além de fontes de imprensa.
O contexto histórico do povoamento não índio no extremo sul do an-
tigo Mato Grosso foi marcado por alguns processos migratórios os quais ori-
ginaram, mais tarde, o município de Dourados. A ocupação e o povoamento
da região iniciaram-se no final do século XIX e início do século XX com a
chegada dos primeiros migrantes vindos, sobretudo, dos estados de Minas Ge-
rais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Tais migrantes, ao adentrarem a
região, tinham como intenção principal iniciar uma “nova vida” com o traba-
lho na terra, pois essa localidade representava naquele momento um “lugar
onde as terras mais recompensassem aos trabalhos da lavoura” (O Douradense,
02/12/1948, p. 1).
Mais tarde, com o advento da Marcha para o Oeste1, o então sul do
estado do antigo Mato Grosso passou por transformações sociais, econômi-
cas e paralelamente, transformações culturais, devido ao intenso processo de
povoamento e ocupação ocorrido na região no final da década de 1940, cujos
desdobramentos têm relação direta com a Feira Livre de Dourados. Neste con-
texto, foi criada, em 1943, a Colônia Agrícola Nacional de Dourados – CAND,
cuja efetivação iniciou-se em 1948, recebendo migrantes procedentes de várias
partes do Brasil. Em relação ao processo de migração, Ponciano (2006) consta-
1 Trata-se de uma política administrativa do governo Getúlio Vargas que visava intensificar o po-
voamento da região Centro Oeste. Tal política exerceu influência direta para que ocorresse uma
onda de migração de várias regiões do país para o sul de Mato Grosso (SANTOS, 2007). Tinha
como objetivo promover a ocupação dos espaços considerados vazios. Além disso, era “revestida
de grande aparato propagandístico, apresentava ao povo brasileiro a colonização como chave
para o desenvolvimento econômico e a conquista total do território” (SANTOS, 2007, p. 23).

238
ta que na verdade, ocorreu

[...] uma verdadeira avalanche de migrantes chegando à CAND e estas famí-


lias que iam chegando, em condições precárias, posto que eram em sua maio-
ria, famílias pobres e excluídas do sistema político-econômico que se implan-
tava nos grandes centros do Brasil, como o Rio de Janeiro e São Paulo, eram
orientadas a estabelecer-se, provisoriamente, em terrenos da administração
da Colônia, no local onde se situa atualmente Vila São Pedro, distrito de Dou-
rados, localizada na saída para Rio Brilhante [...] (PONCIANO, 2006, p. 94).

Nesse sentido, após a iniciativa do governo federal, outras colônias


agrícolas também são fundadas a nível estadual e municipal e, dentre elas, a
Colônia Agrícola Municipal de Dourados – CMD. A CMD foi implantada pelo
município de Dourados, no final do Estado Novo (1937-1945), no território
que atualmente corresponde a uma parte do município de Itaporã (CARLI,
2008). Lembrando que, com a chegada dos migrantes, o processo de variedade
e complexidade social e cultural em Dourados ficou ainda mais acentuado. Er-
nandes (2009) cita também a chegada e permanência de imigrantes, a exemplo,
japoneses e sírio-libaneses, os quais também colaboraram para o multicultu-
ralismo local, sendo que, dessa forma: “Temos, portanto, etnias e nacionali-
dades diferentes negociando seus códigos e comportamentos culturais e suas
dinâmicas de trabalho” (ERNANDES, 2009, p. 73). Sabe-se que os japoneses se
instalaram na CAND e os sírio-libaneses dedicaram-se, sobretudo ao comér-
cio na área urbana. Vale salientar que o imigrante paraguaio também é citado
por João Augusto Capilé Junior, na edição nº 13 do jornal O Douradense, o
qual afirma que os primeiros se instalaram na região em 1901 (O Douradense,
02/12/1948, p. 1).

A importância da CAND para história de Dourados: a gê-


nese da Feira Livre

A CAND possuía grande capacidade produtiva, a qual era destinada ao


abastecimento da região Sudeste do país, como também parte da produção era
comercializada nos arredores de Dourados, além de servir à subsistência dos
colonos. Dentre os gêneros agrícolas produzidos, destacavam-se as culturas de

239
algodão, café e amendoim com foco comercial e as de milho, arroz, feijão, man-
dioca, trigo, alho e cana para a subsistência (MENEZES, 2012). Já na CMD,
além de praticamente as mesmas culturas produzidas na CAND, havia em me-
nor proporção, as lavouras de alho, cebola, melancia, banana, abóbora, batata
doce, abacaxi, fumo e trigo (CARLI, 2005). Por outro lado, Menezes (2012) e
Carli (2005) referem-se às perdas da produção de alimentos, sobretudo por
falta de equipamentos para armazenamento e as dificuldades no transporte,
devido às más condições das estradas.
Nesse sentido, no final da década de 1940 inicia-se uma espécie de
campanha para a instalação de uma Feira Livre em Dourados, sendo essa cam-
panha encabeçada por Armando da Silva Carmello, diretor e proprietário do
jornal O Douradense e, além disso, ocupava o cargo de Secretário da Associa-
ção Comercial e Secretário Interino da Prefeitura.
Ao que parece, a criação da feira obedeceu ou fez parte de um planeja-
mento do poder público para o município, de acordo com a Lei nº 74, de 13 de
dezembro de 1947. O fato é que em 15 de julho de 1948 o então prefeito muni-
cipal, Antônio de Carvalho, popularmente conhecido como Carvalhinho, cria
através do Decreto Lei nº 19 a Feira Livre de Dourados, sendo tal documento
publicado no jornal O Douradense em 11 de setembro de 1948. De acordo com
o referido Decreto Lei, alguns aspectos foram considerados:

Considerando que a necessidade imperiosa de incrementar o aumento de


produção por parte dos colonos disseminados pelo município; Considerando
que a referida produção já é considerável e merece desse executivo munici-
pal toda a sua iniciativa em sua venda em mercados próximos; Considerando
que, do intercâmbio comercial entre os colonos e o comércio local, resultará o
aumento das rendas municipais; Considerando ainda que da criação de mer-
cados ou feiras livres a população local será melhor atendida dos produtos de
primeira necessidade e com preços mais vantajosos, como sejam aqueles que
naturalmente serão tabelados e fiscalizados por esta Prefeitura (O Douradense,
11/09/1948, p. 4).

Percebe-se que, para além das questões de comercialização da produ-


ção ou dos excedentes das colônias agrícolas e uma possível estratégia para o
abastecimento de gêneros alimentícios aos moradores da cidade, havia o inte-
resse de arrecadação de impostos para o município, ficando os feirantes, con-

240
forme a publicação, isentos do pagamento até o final do referido ano, sendo esta
isenção, pelo menos aparentemente, uma motivação para a adesão dos colonos.
O Decreto Lei ainda menciona que a Feira Livre ficaria localizada “pos-
sivelmente na praça reservada para o Grupo Escolar de Dourados” (O Doura-
dense, 11/09/1948, p.4). De fato, a primeira feira ocorrida na cidade foi em um
domingo pela manhã, no dia 15 de agosto de 1948 na Praça Antônio João. Tal
fato foi noticiado pela imprensa local que o retratou como “espetáculo bastante
animador” e apresentou as percepções de três personagens locais: Sr. Milton
Sá Santos (Presidente da Associação Comercial de Dourados), Sr. Armando
Campos Belo (comerciante e político) e Sr. Argot Anderson (visitante). Os
três homens elogiam o prefeito pela criação da feira, exaltam o “progresso e a
grandeza” de Dourados enquanto centro agrícola, a que chamam de “Terra de
Promissão”. De acordo com a publicação, a feira não faria concorrência com o
comércio local, pois comercializaria artigos necessários para o cotidiano das
pessoas, ou seja, galinha, ovos, verduras, frutas, carne de porco e peixe. Além
disso, favoreceria o comércio local, na medida em que, de certa forma obriga-
ria os colonos a comprarem mercadorias de outros gêneros para abastecerem
suas famílias e suas lavouras (O Douradense, 17/08/1948, p.1). Nesse contexto,
nota-se claramente como se iniciava um processo de trocas comerciais que, aos
poucos, derivaram outros tipos de relações sociais entre colonos e moradores
da cidade.
Desse modo, a feira torna-se um dos principais locais de trocas em
Dourados, onde os colonos levavam suas mercadorias para vender e paralela-
mente abasteciam-se com produtos que não possuíam, através do bolichos que
havia na cidade. Dessa forma, considera-se importante pesquisar a Feira Livre
de Dourados enquanto espaço, não somente em sua vertente geográfica com
suas mudanças através das décadas, mas também em sua constituição social e
cultural. Nesse sentido, Araujo (2011), ao analisar em sua tese as feiras do Brasil
e de Portugal, aponta que

[...] a feira é considerada espaço de ‘pobre e de sujeira’, o qual, desde sua for-
mação, sempre foi visto como ‘[...] lugar de marginais, de prostitutas, de joga-
dores, saltimbancos, ladrões e mendigos’. Entretanto, contrariando essa con-
cepção preconceituosa, nos dois lados do Atlântico, desde os primórdios, foi
montada uma estrutura administrativa no entorno das feiras como forma de
controle e lucro por parte do Estado, o que evidencia a importância que tais

241
instituições sempre tiveram (ARAUJO, 2011, p. 30).

Essa afirmação nos leva a comparar as constatações da autora com o


cenário de Dourados, nos levando a algumas reflexões, sobretudo no que diz
respeito a apropriação do espaço material e simbólico da feira, as disputas de
poder que são demandadas, os sentidos e significados presentes nas represen-
tações da Feira Livre de Dourados, dentre outros aspectos relevantes. Contri-
buindo com a questão dos sentidos e significados das relações dos espaços da
cidade, Pesavento (2007) aborda em seu texto “Cidades visíveis, cidades sensí-
veis, cidades imaginárias” as representações que o historiador busca recuperar.
Para a autora,

A cidade sensível é aquela responsável pela atribuição de sentidos e significa-


dos ao espaço e ao tempo que se realizam na e por causa da cidade. É por esse
processo mental de abordagem que o espaço se transforma em lugar, ou seja,
portador de um significado e de uma memória; [...] que criamos as categorias
de cidadão e de excluído para expressar as diferenças visíveis e perceptíveis no
contexto urbano fazendo com que se criem novas identidades a partir do ges-
to, do olhar e da palavra que qualifica; que falamos de progresso ou de atraso,
que distinguimos o velho do antigo; [...] (PESAVENTO, 2007, p. 15, destaques
da autora).

Os espaços ocupados pela Feira Livre: a dinâmica da cida-


de e suas memórias

A memória certamente é uma fonte profícua para o historiador, sendo


a mesma entendida como a capacidade que o ser humano tem de relembrar
e conservar experiências e informações relacionadas ao passado, sendo estas,
parte de processos de interação de cada indivíduo com seu meio. Pesavento
(2008) introduz esse sentido no campo de pesquisa das cidades quando afirma
que “uma cidade possui seus mitos, suas lendas, suas histórias extraordinárias,
transmitidas de boca em boca, de geração em geração, através da oralidade”
(PESAVENTO, 2008, p. 7).
A Feira Livre de Dourados não permaneceu na Praça Antônio João
por muito tempo, sendo que funcionou em vários locais da cidade. Venâncio
(2014) relata as memórias de sua mãe sobre a feira, em seu livro Dourados e
242
sua Cultura, fruto da compilação de vários artigos publicados em sua coluna
na Folha de Dourados:

Era dezembro de 1952, minha mãe a pouco havia se mudado para Dourados
quando foi informada que defronte a casa da família Kanashiro, que ficava na
Avenida Presidente Vargas, realizava-se aos domingos uma feira-livre. Minha
mãe então preparou uma cesta com pastéis e mandou que meu irmão Irlian a
levasse até a feira para serem vendidos. Contava a minha mãe que a venda não
foi das melhores e que o guardanapo de tecido bem branquinho que cobria os
pastéis ficou vermelhinho de poeira [...] (VENÂNCIO, 2014, p. 54).

O autor ainda relata que mais tarde a feira foi transferida para a Rua Dr.
Nelson de Araújo, entre a Avenida Marcelino Pires e Rua Rio Grande do Sul,
atual Weimar Gonçalves Torres. Nesse caso, as memórias do autor referem-se
aos doces que marcaram sua infância e que eram vendidos na feira.

Ela [a feira] começava em frente a casa de Dona Quinha, uma professora que
lecionava no Grupo Escolar Joaquim Murtinho, e que ficou muito conhecida
pelos pirulitos, feitos com açúcar, mel de abelha e limão. Tinha um sabor mui-
to especial que só de lembrar, me dá água na boca. Os pirulitos eram feitos em
tabuleiro de madeira e faziam muito sucesso com as crianças (VENÂNCIO,
2014, p. 54).

Depois de um tempo, a feira foi transferida para a Rua Santa Catarina,


atual Onofre Pereira de Matos, entre as ruas Presidente Vargas e João Rosa
Góes. Devido à falta de espaço para o seu crescimento, foi então transferida
para a Rua Cuiabá, onde permaneceu por mais de 30 anos (VENÂNCIO, 2014,
p. 55).
Diante dos relatos de memorialistas, podemos entender que a memória
também pode ser utilizada para reconstruir os fatos históricos do passado, a
partir de ressignificações individuais. Nessa perspectiva, a ressignificação da
memória é constante. Santos (2003), ao estudar os nordestinos em Dourados,
abordou através de suas fontes, algumas memórias relativas à feira. Sua inter-
locutora, Dona Lindalva, que chegou a Dourados em 1960, assim diz sobre o
trabalho na feira.

De carroceira pra cima eu fui. Aí eu vim lá pra rua Cuiabá fiquei nove anos

243
lá com o bolichinho, só podia tocá bolicho (é uma mercearia de bairro que
vende produtos como arroz, feijão, açúcar, óleo e outros gêneros alimentícios e de
limpeza) porque outra coisa eu não podia fazê né... trabalhava na feira quando
era no meio da semana quando chegava da feira no domingo já vinha com treis,
cinco encomenda de pó-de-serra naquele tempo não tinha fogão a gás, [..]
tinha dez metro de barraca coberto na feira (apud SANTOS, 2003, p. 98).
Interessante mencionar que mais recentemente, no dia 26 de novembro
de 2016, a Feira Livre de Dourados novamente tem seu local alterado, passando
agora a se estabelecer de “forma fixa” no Jardim São Pedro, sendo denominada
Espaço Feira João Totó Câmara, numa homenagem ao ex-prefeito de Dourados
que exerceu dois mandatos (1967-1970 e 1974-1977).
Atualmente Dourados possui várias feiras espalhadas por alguns bair-
ros e que funcionam durante a semana. Além do Espaço Feira Central, BNH´s
I e II Plano, Parque Alvorada, Izidro Pedroso, Vila Vargas, Praça do Cinquente-
nário, Jardim Flórida e a Feira Agroecológica do Parque dos Ipês (O Progresso,
24/11/2016).
Essa diversidade de espaços, as formas como os mesmos foram utiliza-
dos e estabelecidos geograficamente e na perspectiva do planejamento urbano,
e além disso, a constante (re)apropriação desses espaços por moradores, feiran-
tes e visitantes me instiga a analisar e problematizar esses contextos que são,
além de diversos, complexos, pois têm desdobramentos nos âmbitos econômi-
co, social, cultural, dentre outros, que conferem a esse espaço uma dinamici-
dade e sociabilidade, na medida em que “ela comporta atores, relações sociais,
personagens, grupos, classes, práticas de interação e de oposição, ritos e festas,
comportamentos e hábitos (PESAVENTO, 2007, p.14).

A feira é o local em que as sociabilidades se manifestam em todas as suas


dimensões, sendo na rua que elas se expressam com maior intensidade. Inú-
meras são as pessoas que se deslocam semanalmente para os núcleos urbanos,
oriundos da zona rural ou mesmo de outros centros urbanos, transformando
a feira numa efervescência social, caracterizada por uma multiplicidade de su-
jeitos, com variados eventos, modificando, ainda que por um período curto, a
temporalidade da cidade e imprimindo um dinamismo diferente do rotineiro,
do habitual (ARAUJO, 2011, p. 90-91).

Diante dessa dinâmica moradores x espaços, é possível também pensar


a Feira Livre de Dourados enquanto elemento do contexto urbano, que direta

244
ou indiretamente interfere na imagem da cidade, na medida em que, com o
passar do tempo, migra para diferentes espaços, determinando também, dife-
rentes significados “que se constroem mas também se modificam pelas expe-
riências e vivências sociais posteriores, exprimindo diferentes temporalidades”
(FENELON, 1999, p. 6). E nesse sentido, para a autora,

Isso se concretiza a partir de uma concepção que busca captar e investigar,


nas relações sociais instituídas na cidade, o entendimento de modos de viver,
de morar, de lutar, de trabalhar e de se divertir dos moradores que, com suas
ações, estão impregnando e constituindo a cultura urbana. Assim agindo, es-
ses moradores deixam registradas ou vão imprimindo suas marcas no decor-
rer do tempo histórico, marcas que traduzem a maneira como se relacionaram
ou construíram seus modos de vida neste cotidiano urbano (FENELON, 1999,
p. 6).

Considerações Finais

Ao considerarmos as questões relativas as memórias e a história dentro


do campo das cidades, é interessante nos voltarmos para a intencionalidade de
construção de historicidades, de representações e identidades de grupos sociais
e que são permeadas pelas relações de poder. A história das colônias agríco-
las que se desenvolveram nessa região, bem como a Feira Livre enquanto um
produto histórico, social e cultural delas, perpassa a história de Dourados e
demonstra o caráter multicultural que se formou nesse cenário.
Pensando a feira no contexto urbano douradense, além de se com-
preender e refletir sobre a historicidade da feira e seus desdobramentos, há de
se salientar que ao longo dos anos, foram criadas outras feiras nos bairros de
Dourados a fim de atender aos moradores das proximidades, incrementar os
ganhos dos feirantes, gerar renda para o município, e de certa forma, esse pro-
cedimento também foi criando uma identidade vinculada ao espaço ocupado
pela feira, suas características próprias, o dia da semana em que ela foi estabe-
lecida, além do bairro em que está localizada, a relação com os moradores do
entorno, dentre outros aspectos relevantes.
A temática dos espaços que a Feira Livre ocupou em Dourados e a
forma como o poder público tratou dessa questão me parece importante, na
medida em que aparentemente e de acordo com algumas conversas informais

245
com frequentadores, a feira foi, aos poucos, deixando o espaço urbano central
e ocupando gradativamente, as margens da cidade. Na verdade, sabe-se que
tais mudanças relativas à localização da feira em uma cidade são estratégias do
poder público diante do planejamento urbano e que em determinados locais
uma feira não é “bem vista”, a exemplo da feira que funcionou por um período
próximo ao Fórum de Dourados.
Entender a Feira Livre de Dourados enquanto elemento representa-
tivo diante do reordenamento do espaço público, bem como suas dinâmicas
e representações sociais e culturais também se faz importante, pois a feira se
constitui em um espaço de sociabilidade, de trabalho, de lazer, de tradição e de
memória coletiva, produzindo identidades. Sua representação está para além
das funções econômicas, visto que se trata de uma produção cotidiana de sabe-
res, de práticas sociais e culturais, de relações de poder.
Nesse sentido, os estudos vinculados aos aspectos sociais e culturais
das feiras e, nesse caso, da Feira Livre de Dourados são fundamentais para
compreender não somente os aspectos econômicos, mas sobretudo as relações
e demandas da cidade e dos sujeitos que vivem e atuam nesse cenário, mos-
trando mais uma das facetas das variadas memórias produzidas e vivenciadas.

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Jornal O Progresso

Jornal O Douradens

248
Tecendo Histórias e Memórias sobre o
Processo de Modernização de Campo
Maior entre 1930-1945

Pauliana Maria de Jesus


Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí-UFPI/
E-mail: paulianadejesus126@gmail.com

Este artigo pretende analisar como as transformações no contexto do


estado Novo influenciaram no processo de modernização da cidade de Campo
Maior-PI entre o período de 1930 a 1945, buscando identificar as principais
transformações na cidade através de melhorias urbanas como energia elétrica,
fornecimento de água encanada, calçamento e alargamento de ruas e avenidas
e construção de novas edificações urbanas. Para isso, buscou-se apoio teóri-
co nos seguintes autores: Sevcenko (1998) e Berman (1989), a metodologia da
pesquisa ocorreu através da análise de fontes como: decretos-leis, código de
postura da cidade, imagens e relatos memorialísticos de alguns habitantes que
vivenciaram esse período através da metodologia da história Oral.
As transformações mundiais iniciadas no final do século XIX e início
do século XX provocadas pela revolução industrial e fortalecimento do capi-
talismo, bem como, o desenvolvimento e inovação tecnológica ocorreram no
primeiro momento nos países mais desenvolvidos da Europa e se expandiram
para os lugares mais longínquos da face da terra. Segundo, Nicolau Sevcenko

249
(1998, pp. 12-13) o imperialismo Europeu, com suas armas modernas e po-
tencial bélico não só incorporou as novas áreas territoriais as suas possessões,
como também procurou “transformar o modo de vida das sociedades tradi-
cionais, de modo a instalar-lhes os hábitos e práticas de produção e consumo
conformes ao novo padrão da economia de base científico-tecnológica”
Em Campo Maior, podemos ver como esse pensamento moderno foi
chegando e fazendo parte da vida das pessoas através de seus instrumentos
inovadores tais como: a iluminação elétrica, o rádio, o cinema, o automóvel,
a construção de estradas e ferrovias numa tentativa do poder público de inte-
grar a economia local ao sistema capitalista nacional e internacional. Logo, as
mudanças e transformações ocorridas na cidade partem de uma perspectiva
mais ampla e de um contexto global, das ações dos sujeitos que a constroem e
a idealizam com seus projetos que nem sempre são pensados no bem de todos,
mas apenas numa parcela da população, numa forma de urbanizar, modernizar
e disciplinar o espaço conforme seus interesses.
Através do relato de Marcos Vasconcelos ( 2006) é possível perceber
algumas alterações que ocorreram na cidade, nascido em Campo Maior, no
dia 01 de julho de 1933, sendo que morou um bom tempo em outras cidades
na busca de capacitação profissional, estudou e trabalhou em Teresina, em se-
guida no Rio de Janeiro e por último, quando ingressou por concurso público
no cargo de escriturário no Banco do Brasil e de lá foi transferido para Brasília
e após passar um bom tempo na capital com sua família, quando retorna a
passeio a sua cidade natal, em 1980, Marcos Vasconcelos percebe que a cidade
de sua infância já não era mais a mesma, pois continha muitas melhorias no
espaço urbano com ruas calçadas, água encanada e luz elétrica praticamente
em todas as casas.

É costume meu, toda vez que vou a campo Maior, visitar a minha rua. Fiz
isso recentemente, para me reciclar e voltar às origens. Continua uma rua
simples, com moradores modestos, mas com energia elétrica às 24 horas
por dia, totalmente calçada e com água encanada, em todas as casas. Ficou
bem longe do tempo das cacimbas, feitas no leito quase seco do Rio Surubim,
onde apanhávamos água para cozinhar e beber em nossa casa, acumulada
em quatro grandes potes de barro com tampas de flandres. As vezes íamos
apanhar água também nos poços públicos situados na beira do açude grande,
puxando um jumento com cangalha e duas e duas ancoretas dependuradas

250
(VASCONCELOS, 2006, p. 23).

A citação mostra as mudanças e melhorias que ocorreram na cidade,


através do fornecimento de água encanada e energia elétrica para todos, mas
ressalta-se que isso não aconteceu de uma hora para outra, as dificuldades em
fornecer esses serviços urbanos básicos a todos pela prefeitura, foram muitas,
uma vez que, quando esses elementos considerados símbolos do progresso e
da modernidade começaram a ser implantados na cidade. De acordo com Rai-
mundo Nonato Bitencourt Pereira(2015) Os gestores do município tinham o
anseio de trazer esse símbolo da modernidade para Campo Maior, que se deu
com a instalação da primeira Usina Elétrica inaugurada no dia 03 de janeiro de
1932, essa novidade foi recebida com muita empolgação pelos seus habitantes,
no entanto, era movida a lenha e funcionava somente das 18:00 às 23 horas, a
princípio foi instalada apenas no centro da cidade e nos principais logradouros
públicos, apesar de tudo foi tomada pelo discursos dos governantes como um
grande avanço em termos de melhorias urbanas ao mesmo tempo que condizia
com os ideias do governo provisório de 30 que idealizava mudanças no sentido
de ruptura com a república Velha e “com isso a urbe passou a partilhar de um
dos sonhos da cidade moderna, pois antes a iluminação era feita por lampiões
abastecidos de querosenes, instalados nos altos postes de madeira”(PEREIRA,
2015, p. 73).
Para Raimundo Nonato Bitencourt Pereira (2015) os gestores muni-
cipais enfrentaram uma série de dificuldades em relação ao fornecimento de
energia elétrica na cidade, uma vez que após poucos anos de instalação da usi-
na, já havia a necessidade de reparos e de compras de equipamentos para a
instalação de uma usina maior e que atende-se as demandas da cidade como é
perceptível no discurso do administrador do município que demitiu o eletricis-
ta por problemas na usina uma vez que “ inquérito que se está se procedendo
nessa prefeitura já se apurou que a usina se encontra com sérias avarias por
culpa do eletricista da mesma encarregado, Edésio Gonçalves das Neves” (PE-
REIRA, 2015). Apesar dos esforços dos gestores municipais em fornecer esse
símbolo moderno para a cidade, os problemas persistiam, no dia 18 de abril de
1944, o gestor mostrava a sua satisfação em apresentar uma nova usina melhor
e com instalações modernas:

A velha usina tinha apenas um motor simples e de pouca potência, além de

251
funcionar das 18 às 24 horas a nova usina tem dois grandes possantes e com-
plexos motores funciona das 12: as 24 horas[...] além disso a rede elétrica da
cidade é mais extensa, a usina tem capacidade de amplia-la ainda mais muito
mais e minha intensão é essa (PEREIRA, 2015, p. 73).

Após a inauguração da usina Quatro de Outubro houve um incêndio


acidental provocado pelo aquecimento das caldeiras devido a sua aproximação
com o assoalho de madeira, causando um grande prejuízo na queima de equi-
pamentos e destruição de grande parte do prédio em novembro de 1944 dei-
xando a cidade às escuras o que acarretou novos gastos para a prefeitura, desse
modo, eram comuns os problemas de fornecimento de energia a cidade, além
disso, as primeiras instalações de energia elétrica ocorreu no centro da cidade,
onde os demais bairros ficavam desprovidos desses símbolos modernos.
Outra melhoria urbana se deu com o fornecimento de água canalizada
a população. De acordo com Celso Chaves, pelo projeto lei nº 350 de 14 de
agosto de 1957, o prefeito Oscar Castelo Branco Filho, celebrou “um contra-
to com Departamento Nacional de Obras contra Seca (DNOCS) e permitiu a
construção do sistema de abastecimento de água (poços, e casas de bombas,
redes e ramais, reservatórios e caixas d’a água)” (CHAVES, 2014, p. 83). Com
o crescimento da cidade houve uma maior preocupação do poder público em
fornecer água de forma mais eficiente através da lei 776, de 7 de maio de 1970,
que autorizou a prefeitura afirmar convênio com a Fundação de Serviços de
Saúde Pública (FSPSP), com “o objetivo de estabelecer condições para reger, a
administrar, a operar, e atuar na manutenção do sistema de abastecimento de
água da cidade.”1
Quanto à iluminação pública, a prefeitura também enfrentou muitos
problemas para poder fornecer esses serviços, posto que, tinha apenas uma usi-
na chamada 04 de Outubro, a mesma recebeu esse nome, em alusão a data da
“Revolução de 30” um golpe constitucional contra a República Velha produzida
por Getúlio Vargas e seu grupo. Pois em 1948, a cidade encontrava-se às escu-
ras e o prefeito apresentava um projeto solicitando autorização para aquisição
de um grupo motor gerador para iluminar as praças Bona Primo e Rui Barbosa
porque não tinha recursos disponíveis para suprir as necessidades de ilumina-
ção pública de toda a cidade, mas apenas as residências do centro municipal,

1 CAMPO MAIOR, Lei nº 776 de 7 de maio de 1970. Que dispõe sobre o abastecimento d’água
em Campo Maior.

252
até porque, essas praças eram os pontos mais movimentados do espaço citadi-
no como mostra a justificativa da câmara municipal que autorizava a prefeitura
na compra de um grupo gerador.

Todos sabemos que as praças “Bona Primo” e “Rui Barbosa” são os centros
de maior movimentação da cidade e que, como tal, carecem de ser ilumina-
dos, seja para prevenir possíveis infratores de leis, seja para proporcionar ao
nosso povo, um melhor conforto eis que são também o seu ponto recreativo.
Além disso, ocorre a circunstância de, entre um outro dos locais previstos,
ficar situada a nossa Igreja Matriz, aonde as práticas religiosas constantes fa-
zem afluir toda nossa gente, carecem, pois serem iluminadas; e pela marcha
demorada dos atos públicos, sabemos que não é possível, antes de seis meses,
estarem adquiridas as máquinas que devam compor a nova usina elétrica da
cidade. E antes disso precisamos do grupo indicado, especialmente se as fes-
ta de Natal, ano novo e outras que se aproximam, o estão a exigir (CAMPO
MAIOR, 1948)2

Verifica-se a preocupação do poder público municipal em estabelecer o


fornecimento de energia elétrica nas principais praças de Campo Maior que se
constituíam como espaços de lazer e passeio para sociedade campo-maiorense,
portanto era necessário trazer mais conforto as pessoas que iam a praça nos fi-
nais de semana para passear, namorar, ou assistir bandas musicais que tocavam
no coreto da praça. Mas também, se percebe a precariedade do fornecimen-
to da energia elétrica na cidade que ficava restrita às duas praças localizadas
em torno da igreja matriz de Santo Antônio e algumas residências de famílias
argentárias da região. Sobre o fornecimento de energia elétrica, considerado
como um dos símbolos da modernidade pode-se afirmar que a população mais
carente só usufruía dessas luzes da cidade quando ia passear na praça, pois os
bairros ficavam fora desse benefício e em muitas casas usava-se o lampião e a
lamparina. Conforme dona Maria dos Remédios Sousa Santos3 até meados da
década de 50, não havia iluminação em sua residência, muito, menos no seu
bairro (Parque Estrela) como depreende-se na sua fala:

2 CAMPO MAIOR, projeto Lei nº 28 de 09 de setembro de 1948, que autoriza o prefeito adquirir
grupo motor gerador para iluminar as praças Bona Primo e Rui Barbosa e abre crédito especial
de (Cr. 25.000.00) para atender a autorização.
3 SANTOS, Maria do Remédios Sousa. Entrevista concedida a Pauliana Maria de Jesus. Campo
Maior, 05 de novembro de 2017.

253
Não tinha luz, não tinha água, não tinha geladeira, não tinha fogão, era cozi-
nhando na lenha na época [...] era na lamparina mesmo, todo tempo, a gente
comprava querosene, nesse tempo vendiam nas latas[...] era a maioria das pes-
soas, nesse tempo, não tinha negócio de riqueza não (SANTOS, 2017).

Nos bairros, de um modo geral não eram servidos por luz elétrica e
abastecimento de água encanada, principalmente no bairro em que ela morava,
que lá pelas décadas de 1940 e 1950 era praticamente uma extensão da rural,
composta por vacarias e fazendas.
Percebe-se que a luz não chegava a todos, principalmente aos bairros,
pois a cidade de Campo Maior foi crescendo em torno do perímetro urbano
da igreja, onde havia um aglomerado de casas de famílias de classe social mais
elevada, dos aristocratas locais, herdeiros de grandes faixas de terras e de fazen-
das de gado da região. Desse modo, a Praça Rui Barbosa, localizada por trás da
Igreja de Santo Antônio foi um dos espaços que mais recebeu atenção do poder
público municipal, por ser considerado um lugar de muita movimentação nos
finais de semana, o lugar de encontro dos casais de namorados e para aqueles
que tinham a pretensão de arrumar um amor ou apenas flertar alguém. No
relato a seguir Marcos Vasconcelos faz um quadro dessa praça na década de 40
através de suas recordações:

Era uma praça pequena, mais tinha a honra de ser a principal atração da cida-
de (qual a cidade do interior que não tem sua praça principal?) Mas ou menos
encravada em 1.6000 m2, era toda arborizada, com figueiras, carnaubeiras,
jatobás, acácias, etc. Possuía um coreto para as retretas, vários bancos para
namorar, inclusive alguns caramanchões de bambu, jardins cuidados, dois
grandes tanques com água (um de cada lado do coreto) para água as plan-
tas. Toda cimentada do lado de fora. Ali no sentido viravam os homens do
outro as mulheres, cruzando olhares e iniciando grandes namoros. Do lado
de dentro, na terra batida, era o mesmo movimento, frequentada por aqueles
que queriam mais privacidade. A noite toda iluminada, com banda de música
do coreto, a retreta ia até 21 horas, quando a debandada era geral, pois moça
que se prezava não ficava na praça após a retreta. Até o “curical” sumia assim
eram chamadas algumas daquelas que circulavam na parte interna da praça
(VASCONCELOS, 2006, p. 73).

A Praça Rui Barbosa era um lugar importante e bastante movimenta-

254
do, por isso, foi um dos primeiros espaços urbanos a receber maior atenção do
poder público municipal, sempre procurando deixar mais arborizada, limpa e
iluminada aos olhos dos visitantes e cidadãos campo-maiorense, além do mais,
era lá que ocorriam as festas sociais durante os festejos do Glorioso Santo An-
tônio, padroeiro da cidade, após a missa as pessoas iam as barracas nas quais
se vendia comidas típicas, bebidas, no mesmo espaço também havia os leilões,
jogos, e atrações musicais durantes as treze noites dos festejos.
Também havia uma amplificadora, instalada por Davi Melo, filho ado-
tivo de Antônio Andrade, que fazia anúncios comerciais em um dos cantos da
praça. Ali ao redor da praça concentravam-se lojas, bares, comércios e pensões.
Vasconcelos constrói uma cartografia dos lugares associando as vendas aos seus
respectivos donos através de suas recordações como; a pensão da Dona Lima,
o Bar do Farias com seus salões de sinuca, o Bar Eldorado (Do Décio Bastos), a
agência de ônibus Zezé Paz.
Nessa praça também ocorriam os comícios os quais sempre termina-
vam em confusões e brigas. Também, em suas proximidades ficava o cinema do
Zacarias Godim Lins, (Cine Nazaré) que escolheu esse nome em homenagem
a esposa Dona Zazinha, era o único da cidade. Logo, sendo considerado um
dos símbolos da modernidade, em seus primórdios fascinava e estimulava a
imaginação, bem como influenciou muito nos costumes, na adesão de novos
hábitos, principalmente pela juventude, uma vez que, os artistas com seu visual,
seu jeito e hábitos tornam-se uma espécie de modelos e muitos de seus aspectos
influenciam seus telespectadores. Não rendia muito lucro para os arrendatá-
rios, pois era propriedade da prefeitura.
É perceptível a intenção do poder público municipal da época em
oferecer esses serviços à comunidade, mesmo sem muita vantagem financeira,
uma vez que, pelo projeto lei Nº 37 do dia 10 de outubro de 1948, de autoria do
vereador Erasmo Leite que propunha a concessão de forma gratuita a estrutura
do prédio Cine Teatro para a exploração de empresa cinematográfica que
desejasse atuar nessa atividade 4.
Mas essa praça deixará de ser destacada a partir da demolição e cons-
trução da nova igreja de Santo Antônio, derrubada em 1944, através da inicia-
tiva de Monsenhor Mateus Cortês Rufino e pela ajuda de populares e famílias
ricas da cidade, a partir de então os festejos que ocorriam por trás da igreja
4 CAMPO MAIOR. Projeto lei nº 37 de 10 de outubro de 1948. Que trata sobre os termos de
concessão gratuita do prédio Cine Teatro. Câmara Municipal.

255
foram transferidos para a Praça Bona primo e para proximidades da igreja do
Rosário. Antes, a Praça Bona Primo era apenas um grande largo, cheia de ar-
vores, com um antigo cata-vento, era o local preferido para armação de circos
que visitavam a cidade, pois o largo era grande e espaçoso. Com a construção
da nova matriz, a praça foi projetada para dar destaque a nova igreja, “foi toda,
calçada, arborizada, feericamente iluminada, servindo de local para os grandes
eventos campo-maiorenses como: os festejos de Santo Antônio, festa de São
Pedro, festa de São João, comícios e outras datas comemorativas, agora sem os
circos que foram armados em outro local”. (VASCONCELOS, 2006, p. 103).

Foto 06: Praça Bona primo arborizada


Fonte: autor desconhecido

Na Praça Bona Primo também funcionava o Campo Maior Clube,


fundado em 1950 em substituição ao Satélite Clube criado em 1941 pelos fun-
cionários do Banco do Brasil. Todas essas iniciativas foram provocadas pela
sociedade, mas recebeu uma atenção especial do poder público, essas ações se
tornaram como novas práticas que acompanhava as transformações sociais no
contexto nacional e mundial. A cidade apesar de ser pequena estava adequan-
do-se as mudanças e transformações que acompanhavam o ritmo da moderni-
dade, principalmente, nos hábitos relativos ao lazer, as festas de carnaval e aos
bailes dançantes e a forma de consumo dos símbolos e instrumentos modernos

256
da época como subtende-se a seguir:

Recordo-me, com saudades, das tertúlias nas manhãs de domingo, no Campo


Maior Clube, ao som da radiola, dos bailes, com orquestra local, composta
do Zumba, do Trombone de válvulas, do Durval, no Trombone de vara, do
Fernando, na bateria e de muitos outros. Nas grandes festas contratavam até
banda de fora. Relembro das minhas namoradinhas de adolescente, quando
ainda dançava juntinho e de rosto colado. Que saudades dos corsos na rua,
dos blocos de fantasia nos bailes de carnaval, época em que se usava o lan-
ça-perfume [...] outro local descente de divertimento era o Centro Operário
Campo-maiorense, fundado pela classe operária. Com instalações amplas, um
bom salão para festas, esse clube exigia, dos seus sócios e convidados muito
respeito e observância das regras [...] (VASCONCELOS, 2006, p.104).

Além desses clubes oficias havia as festas, as tertúlias e bailes pro-


movidos pelas próprias famílias. A própria população intervinha na busca de
promover divertimento na cidade. Mas com o passar do tempo essas formas
de sociabilidades foram declinando, e a praça deixou de ser o principal ponto
de lazer da sociedade campo-maiorense, para ser apenas um lugar vazio, ou
de passagem, também deixou de ser um lugar de encontro para os casais de
namorados, e para conversas de amigos. O Campo Maior Clube, atualmente
com algumas reformas funciona a câmara municipal, o clube dos operários, se
transformou num estabelecimento de ensino. Assim a cidade vai se transfor-
mando em razão das necessidades e imposição do poder público:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder,


alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor-
mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos,
tudo o que somos (BERMAN, 1989, p. 15)

Portanto, cidade e memória se entrelaçam, as transformações nos es-


paços vão ocorrendo de forma imposta pela atuação do poder público muni-
cipal, e pelo interesse social de alguns mais privilegiados economicamente, ou
mesmo pela mudança dos costumes de forma que a cidade do passado se torna
uma realidade, vivida e cheia de sentimentos que hoje só existe como fragmen-
tos da memória que tem a capacidade de evocar essa cidade, dos sonhos, da
lembrança e da afetividade daqueles que nasceram, cresceram nesse lugar e

257
acompanharam seu desenvolvimento.

Referências
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: aventura na
modernidade. São Paulo: Schwarcz Ltda, 1989.

CAMPO MAIOR, projeto Lei nº 28, de 09 de setembro de 1948, que autoriza o


prefeito adquirir grupo motor gerador para iluminar as praças Bona Primo e Rui
Barbosa e abre crédito especial de (Cr.Ֆ 25.000.00) para atender a autorização.
Campo Maior, 09 de setembro1948.

CAMPO MAIOR. Projeto lei nº 37, de 10 de outubro de 1948. Que trata sobre
os termos de concessão gratuita do prédio Cine Teatro. Câmara Municipal. 10
de outubro de 1948.

CAMPO MAIOR, Lei nº 776, de 7 de maio de 1970. Que dispõe sobre o


abastecimento d’água. Campo Maior, 07 de maio de 1970.

CHAVES, Celson Gonçalves. Rua Santo Antônio. 2 ed. Campo Maior-PI:


EDUFPI, 2014.

PEREIRA, Raimundo N. Bitencourt. Modernização urbana de Campo Maior


(1930-1937). 2015. 157 f. Dissertação de Mestrado- Programa de Pós-Graduação
em História- PPGH, Universidade de Campina Grande, Paraíba, 2015.

SANTOS, Maria Dos Remédios Sousa. Entrevista concedida a Pauliana Maria


de Jesus. Campo Maior, 03 de novembro de 2017.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e


cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VASCONCELOS, Marcos. Raízes de pedra. Fortaleza: Editora Livro Técnico


Premius, 2006.

258
Agricultores maranhenses em busca de
terras no Pará: a lei 2.979 e suas
consequências na vida de trabalhadores
rurais do Maranhão

Bruno de Souza Silva


Doutorando em História Social - UFPA
E-mail. brunobss199@gmail.com.

Antônia Silvestre do Nascimento Maia


Pós-graduada em Educação.
E-mail. Antoniabarbosa315@gmail.com

Introdução

O presente texto apresenta resultados obtidos a partir da história oral,


imagens e jornais, para compreender os motivos que fizeram os maranhen-
ses deixarem o Estado do Maranhão se tornando migrantes rumo ao Vale do
Acará no Pará. As experiências dos maranhenses em terras do Maranhão, as
dificuldades e as legislações ligadas às terras, que fizeram muitos pequenos pro-
dutores perderem suas posses por volta de 1969. O texto propõe esclarecer o
contexto social e econômico do Maranhão no período a promulgação da Lei
2.979, lei de terras do Maranhão, assim como compreender o processo de mi-

259
gração vivenciado por maranhenses, buscando explicar as motivações, em uma
análise do cenário político que envolvia o Estado do Maranhão quanto ao uso
da terra, ao mesmo tempo em que trata dos fatores que atraíram os migrantes
a rumarem ao vale do Acará no Pará.
Maranhão ocupa uma área de 333.365,6 km2. Significa também que
ocupa o montante de 33.336.560 hectares do país, sendo o oitavo Estado da
Federação em extensão territorial e o segundo da região Nordeste (PEDROSA,
1998, p. 04). Apesar da dimensão territorial significativamente extensa, o Ma-
ranhão possui um número pequeno de sujeitos que detém a maioria das terras,
fato que provocou inúmeros conflitos e ações de violência no campo. A maioria
dos maranhenses vivem na zona Rural (2.511.008 - 51,08%) sendo constituída
por posseiros (cerca de 200 mil).1
A apropriação de terras maranhenses na região do Baixo Parnaíba se
deu ainda durante a vigência do regime escravista, os posseiros eram em maio-
ria descendentes de africanos escravizados e indígenas. A permanência nas
terras se deu através de conflitos, enfrentando violências, a expansão agrícola,
projetos de monocultura. Muitos, na impossibilidade de permanecer seguiram
para outras regiões do Brasil na condição de migrantes, buscando melhorias e
fugindo de mazelas. Nesse contexto, um expressivo número de maranhenses
deixou seu Estado e rumaram ao vale do Acará no Pará, especificamente ao
município de Tomé-Açu. Em 1969, quando foi promulgada pelo Governador
José Sarney a Lei 2.979, conhecida como Lei de terras, muitos maranhenses
viram a impossibilidade de permanecer em suas terras e buscaram novas pos-
sibilidades, foi nesse contexto que maranhenses foram ao Pará buscando terras
para desenvolver seus trabalhos, haja visto que estamos tratando de trabalha-
dores com atividades ligadas a terra.

Desenvolvimento

A partir de 1960 e 1970 o número de maranhenses que chegou a To-


mé-açu no cresceu significativamente. Estima-se que chegaram á 348 sujeitos
só no início da década 1970.2 A partir desses fatos, surge a necessidade de com-
1 Dados do IBGE/1996. IBGE (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA).
Estimativa 1996. Disponível em: Acesso: 06 jan. 2017.
2 Dados obtidos a partir do levantamento feito pela Câmara dos vereadores de Tomé-Açu de
1997.

260
preender a formação social desse espaço da Amazônia, para isso será neces-
sário entender a motivação para o aumento do número de maranhenses que
deixaram o Maranhão e migraram para o vale do Acará. Sendo que no mesmo
período não houve aumento de migrantes de outras origens chegando a To-
mé-Açu. Nesse sentido, partindo das teorias que estudam migração, o fator de
repulsão pode ter sido mais forte do que o de atração, haja vista que nos oito
primeiros anos em que havia disponibilidades de trabalhos e terras gratuitas
ou a baixo custo em Tomé-açu não houve procura expressiva por parte dos
maranhenses.
Para Tanya Barcellos (1995), as migrações aparecem, implicitamente,
como elementos com potencial “harmonizador” das desigualdades entre áreas
geográficas. Nesse sentido, ao concordar com o ponto de vista de Tanya Barce-
llos, e se apossando do discurso da migração como “harmonizador”, a migração
de maranhenses ao vale do Acará é uma migração rural para outro meio rural,
não representava uma mudança social diferenciada, não teriam perspectivas
econômicas, na verdade seria sair de uma realidade de problemas econômicos
para outra não tão diferente, porém uma região menos habitada, com possibi-
lidades de servirem como força de trabalho ou mesmo de ter posses de terras.
Existe algo que difere o caso da migração de maranhenses ao vale do
Acará em Tomé-açu, pois, diferente do que vinha ocorrendo no Brasil no pe-
ríodo discutido, uma migração campo cidade, a de maranhenses para Tomé-a-
çu é do meio rural para outro espaço com características também rurais, para
uma região que vinham crescendo em função de sua extensa área cultivável.
No caso dos sujeitos desta pesquisa, (maranhenses), vários fatores po-
dem ser considerados para explicar os motivos que os fizeram migrar. E muitos
trazem a justificativa da falta de oportunidades de trabalho em terras do Ma-
ranhão como um dos motivos que os fizeram deixar o Estado. Bernardo Ro-
drigues de Sousa, um dos primeiros maranhenses a chegar a Tomé-açu, este já
falecido, nas palavras de seu filho, Dugés Crispim de Sousa, seria um exemplo
de migrante que fugia da escassez e falta de trabalho. Esses fatos não dizem que
faltavam trabalhos, ou que não existiam oportunidades, mas era uma região
que passava por dificuldades, por ser uma área rural que vivia quase que total-
mente do extrativismo e da agricultura de subsistência.
Para Salviana Sousa (2011), as “estatísticas oficiais” revelam que, entre

261
as décadas de 1960 e 1990 a população Maranhense vivia predominantemente
no meio rural, em extrema pobreza. O fato da população maranhense em 1960
ocupar principalmente as áreas rurais expõe que as terras tinham uma repre-
sentação muito grande para a população daquele estado, pois se configuravam
como meio de sobrevivência. Haja vista que não havia grande oferta de traba-
lhos em outros ramos que não fossem na agricultura.
Segundo Andreia Santos (2004), em 1962 o Maranhão alcançava os
níveis mais baixos de desenvolvimento. A população era em grande parte atin-
gida pela pobreza e escassez de alimentos, fatos que mostram um cenário de
lutas sociais pela sobrevivência. Seguindo o intuito de entender mais a fundo
os motivos que levaram os maranhenses a migrar para o Vale do Acará na se-
gunda metade do século XX, surge a necessidade de dar voz a estes no texto.
Também analisamos o que os escritos sobre o período podem contribuir para o
reconhecimento dos fatores que influenciaram para a decisão de migrar.
Uma das primeiras perguntas proferidas aos sujeitos, migrantes mara-
nhenses do século XX, no momento da pesquisa colonos, donos de terras no
Pará, era qual a região onde este nasceu, e todos os 34 sujeitos entrevistados
citaram municípios maranhenses localizados na região do Baixo Parnaíba3.
Fato que também se torna curioso, pois um grupo de pessoas da região do Bai-
xo Parnaíba Maranhense mudaram juntos para outra região em outro Estado.
Nesse sentido, analisar os motivos que levaram estes sujeitos a deixarem o lugar
onde nasceram e cresceram se faz um objetivo para a compreensão dos demais
fatos históricos. Assim também como compreender o fator comum ocorrido
na região do Baixo Parnaíba que fez com que parte dos indivíduos migrassem,
levando em consideração que os sujeitos além de ter a região de origem em co-
mum, também compartilharam da mesma região de destino, o vale do Acará.
Zulene Barbosa (2001) em um trabalho sobre a situação econômica do
Maranhão, analisou que assim como em outros Estados do Brasil, a situação do
Maranhão era de pobreza, gerada pela má distribuição de renda e por políticas
ineficientes que não beneficiavam os pobres. Para a autora, as políticas visavam
à expansão do capitalismo no Maranhão, beneficiando os grandes empresários
e grandes grupos a crescerem seus ganhos e esquecendo os pequenos produto-

3 Região do Baixo Parnaíba; A microrregião do Baixo Parnaíba Maranhense é uma das


microrregiões do Maranhão pertencente ao Leste Maranhense. Está dividida em seis municípios.
Água Doce do Maranhão, Araioses, Magalhães de Almeida, Santa Quitéria do Maranhão,
Santana do Maranhão e São Bernardo. (JACOB. 2001, p.03) .

262
res. Fatores, que para a autora diminuía as chances dos mais pobres em ter con-
forto e uma vida mais amena. Nesse sentido, a situação social não contribuía
para a melhoria de vida de muitos, porém, somente esse fator, não explica o
processo aqui estudado. A migração de homens e mulheres tem além de fatores
econômicos, os fatores sociais, aqui pensados como problemas familiares ou
com a vizinhança e criminalidade, porém a migração de um número expressi-
vo de uma mesma região de origem para um mesmo destino se torna algo mais
caracterizado como um fenômeno social.
Pedrosa (2009) afirma que o Estado do Maranhão continuou com bai-
xos índices de desenvolvimento durante toda a década de 1960 e piorou em
1970. A maioria da população continuava oscilando na linha da pobreza. Lúcia
de Fátima Costa, agricultora maranhense aposentada, recorda que:

morava no maranhão as dificuldades eram grandes, comprar roupas era algo


que quase ninguém fazia, era comprado tecido e deles as mulheres faziam
as roupas. Alimentos era a farinha, o peixe pescado, a vida era difícil, todos
dormiam em redes de tucum. As dificuldades nossas pareciam só aumentar a
cada dia que passava.4

Assim como Lúcia de Fátima Costa, muitos outros maranhenses rela-


tam as dificuldades enfrentadas no Maranhão nos períodos da década de ses-
senta. Arnésio Rodrigues de Sousa5, 82 anos, agricultor, lembra que em 1962
perdeu a esposa que foi picada por uma cobra cascavel, não conseguiu atendi-
mento em hospitais, pois não tinha unidade de saúde onde ele morava. Ressalta
que “não tinha médico, ou a gente apelava para um rezador, alguém que curasse
ou esperava pela obra de Deus, o hospital mesmo só na capital, e não tinha
como levar os doentes, pois não tinham transportes”.
Os problemas citados e outros vinculados à dificuldade e quase impos-
sibilidade de acesso às terras durante a década de 1960, geravam os conflitos
agrários nos municípios maranhenses, a qual os sujeitos pesquisados habita-
vam, como Tutóia, São Bernardo, Santa Quitéria e outros. O agravamento dos
conflitos em torno da terra se deu após a medida tomada pelo governo do Esta-
4 Lúcia de Fátima Costa, 62 anos, Maranhense, agricultora aposentada, dona de terras, moradora
da Comunidade Rural de São José na região do Canindé em Tomé-Açu-PA. Entrevista concedida
em 18 de setembro de 2016.
5 Arnésio Rodrigues de Sousa, Maranhense, agricultor. Entrevista concedida em 27 de julho de
2016.

263
do, esta era materializada pela lei de terras de 1969 criada durante o governo de
José Sarney. Para os posseiros de terras, sujeitos pesquisados neste trabalho, a
escassez ou o conflito em torno da terra, representou a necessidade de buscar o
novo. Assim, a migração de maranhenses para Tomé-açu a partir de 1960, tem
como principal motivo a falta de terras no Maranhão para homens e mulheres
de baixa renda. Principalmente a partir de 1969, quando a legislação do Mara-
nhão em relação às terras, priorizava grandes investimentos e dificultava a vida
dos pequenos posseiros.
Segundo Asselin (2009), incorporar as “terras livres” do Maranhão ao
modelo de propriedade da sociedade capitalista, tornou-se uma tarefa urgente
a ser executada. Luís Pedrosa (1985) ressalta que o Maranhão possuía grandes
extensões de terras livres que permaneceram às margens do processo de explo-
ração na época colonial. Estas terras é que foram ocupadas pela pequena pro-
dução logo após a libertação dos escravos. As terras devolutas eram ocupadas
há gerações por pequenos agricultores e extrativistas, a concessão dessas terras
a grandes empresários representou um grande risco as populações tradicionais.
Foi dispondo desses recursos que o Estado dispunha (Terras), que o
governador do Maranhão criou uma das suas políticas mais conhecidas e dis-
cutidas pelas ciências sociais, a lei de terras. O sociólogo Rafael Bezerra Gaspar
(2008, p.03) tratou esta política como fenômeno de constituição de um merca-
do de terras no Maranhão, em uma referência à chamada Lei de Terras nº 2.979,
de 17 de julho de 1969, criada por iniciativa do então Governador do Estado,
José Sarney. Esta legislação determinava que as terras devolutas, existentes em
grande porção do território estadual e ocupadas, na maioria, por camponeses
e pequenos produtores rurais e extrativistas, passariam a ser vendidas, consti-
tuindo-se um mercado formal de terras, favorecendo a grandes e médios em-
preendimentos agropecuários.
Em função das leis referentes às terras maranhenses, os homens e
mulheres com pouco poder aquisitivo acabaram ficando sem terras ou com
porções menores. Enquanto a minoria que detinha poder adquiriram grandes
áreas de terras. Luís Câmara Pedrosa afirma que apesar de imenso, o Estado
possuía um pequeno número de proprietários que detinham a maioria das ter-
ras, causando conflitos e violências no campo.
Assim, as questões ligadas a terras e aos povos que a ocupavam no Ma-
ranhão significava ao governo o atraso, justificado pelas práticas consideradas

264
pelo grande capital como primitivas que a população usava as terras. Muitos
dos maranhenses do campo praticavam atividades extrativistas e agricultura
sem técnicas que permitissem grandes lucros. Como o maranhão dispunha de
terras em grande quantidade, o governo as usou para viabilizar a proposta mo-
dernizadora, onde fez das terras um meio para abrir as portas ao capitalismo.
Esta legislação agravava mais ainda a situação dos pequenos produto-
res rurais que viviam de pequenas plantações e de atividades extrativistas. Nes-
te caso, o Leste maranhense passa a enfrentar, nas palavras de Dugés Crispim
de Souza, migrante maranhense, a amargura ao ver mais ainda os coronéis se
apossarem de novas terras e o restante da população terem os direitos de pos-
seiros usurpados.15 A insatisfação, até certo identificada nos estudos de Rafael
Bezerra Gaspar (2008) era cada vez maior, à medida que o tempo passava e que
a nova legislação se aplicava sobre as terras do Maranhão. Muitos tentavam se
readaptar a nova realidade, procurando permanecer em suas posses, o que na
memória de muitos, como senhor Arnésio de Sousa se tornava um exercício
inviável. Isto era explicado em razão do uso de força policial na retirada de an-
tigos ocupantes de terras que naquele momento passa a ser reivindicadas pelos
agentes públicos do Maranhão, por conta da “Lei de Terra de 1969”.

Considerações finais

Não perdendo de vista, que os sujeitos deste trabalho são homens e


mulheres, famílias inteiras que tem como atividade os trabalhos ligados a ter-
ras, são pessoas do campo, que viviam do extrativismo, que davam e dão a terra
significado, que é parte de suas vidas, pois é da terra que tiravam suas rendas,
o que a terra oferecia em frutos era transformado em meios para o conforto e
sobrevivência da família. O extrativismo era um trabalho presente na realidade
de todos os entrevistados, a maioria não havia concluído ensino fundamental,
parte deles nunca haviam ido à escola, aprenderam com seus pais e com a co-
munidade a lidar com animais, plantar, colher, extrair, e com o material que
a terra lhes oferecia faziam renda. Em meio a conflitos, injustiças sofridas e
também praticadas viveram e contaram nessa oportunidade suas vivências. É
necessário levar em consideração que são pessoas ligadas a terra, que suas ex-
periências de trabalho estão intimamente ligadas à produção baseada no cam-

265
po. Nesse sentido, a terra é elevada a categoria de bem mais importante a es-
ses sujeitos, se não houvessem terras não haveria como desenvolver trabalhos,
consequentemente não havia como continuar a vida na região onde não havia
ofertas de ocupação, fatores que motivaram a migração rumo ao Pará.

Referências

BARCELLOS, M. M. & COSTA, W. S. População. In: FIBGE. Geografia do Bra-


sil – Região Norte. Rio de Janeiro, 1991.

GASPAR, Rafael Bezerra. Mobilização e justiça ambiental: Resistência campone-


sa e as transformações agrárias no Médio Mearim e Leste Maranhense. Anais da
Associação Brasileira de Antropologia, s/d, p. 1-11.

PEDROSA, Luis Antonio Câmara. A questão agrária no Maranhão. [artigo


científico]. . Acesso em: 11 maio 2017.

SANTOS, Rui. Direitos de Propriedade Fundiária e Estratificação Social Rural:


Um Contributo Sociológico. In: GARRIDO (eds.). Estudos em homenagem a
Joaquim Romero de Magalhães: economia, instituições e Império. Coimbra:
Almedina, 2012, p. 227-293.

SILVA, Bruno de Souza. Em novas terras; Migração nordestina e vida rural na


vila de Forquilha. ( Pará, 1970-1980). UFPA, Tomé-Açu. 2015.

SOUZA, André Santos. Migração de trabalhadores nordestinos a Parauapebas.


REVISTA GEONORTE, Edição Especial 3, V.7, N.1, p.1605-1622, Belém- PA
2013.

266
‘Quem foi de aço nos de chumbo? Brasil
chegou a vez de ouvir as marias, mahins,
marielles, malês’: as disputas em torno
do ensino de História no Brasil hoje

Davison Hugo Rocha Alves


Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Doutorando em História So-
cial da Amazônia/UFPA. E-mail: davison.rocha@unifesspa.edu.br

Introdução

Presente, assim começa o desfile da escola de samba da Mangueira de


2019 que teve como enredo “História para Ninar Gente grande”. O carnava-
lesco Leandro Vieira leva para avenida Marquês de Sapucaí o debate sobre as
identidades e o ensino de história hoje. Escrever uma nova história do Brasil
partindo da biografia de líderes indígenas e africanos. O enredo da escola de
samba é um olhar para a história do Brasil a partir das páginas ausentes, ou
seja, a história de índios, negros e pobres que não estão presentes nos livros
didáticos. São as histórias da gente brasileira que não se aprende na escola, é
a história de Sepé Tiajaru, Cucunhambembe, Tereza de Benguela, Dandara de
Zumbi que não tiveram o seu protagonismo dentro desta narrativa escolar. A
comissão de frente intitulada o país que não está no retrato, vem apresentar as

267
disputas em torno duas concepções de ensino de História no Brasil hoje. O car-
navalesco Leandro Vieira para construir o samba-enredo ‘Histórias para ninar
gente grande’ ele reencontrou professores de História, bem como se dedicou a
leitura de teses e dissertações que é o que tem sobre os temas pesquisados para
construir a sua narrativa sobre a História do Brasil.
Os heróis emoldurados estão nos quadros, nos museus, nos livros di-
dáticos, nos espaços públicos, na memória do povo brasileiro. Os vultos histó-
ricos que estão perpetuados nesta narrativa oficial são eles: a princesa Isabel,
o bandeirante Domingos Jorge Velho, o marechal Deodoro da Fonseca, o im-
perador Dom Pedro I, o missionário José de Anchieta e o ‘descobridor’ Pedro
Álvares Cabral. Ao lado de fora desta narrativa estão os índios e os negros, que
são excluídos e esquecidos nos quadros, monumentos e placas de ruas den-
tro do espaço público. Ao longo do desfile da Mangueira eles contestavam a
notoriedade e a importância que a narrativa oficial concedeu aos seis heróis
emoldurados, bem como tentar mostrar que a gente desconhece a resistência e
a história do povo brasileiro a partir de um olhar de negros e índios em relação
ao que foi feito com esses dois grupos étnicos, ou seja, a história de massacre
que foi executado pelos colonizadores.
Durante o início do desfile a comissão de frente intitulada ‘eu quero
um país que não está no retrato’ apresenta os heróis emoldurados, eles saem
dos quadros e aparecem pequenos, a mensagem que a escola de samba queria
demonstrar é que a história deles fossem pequenas para merecer esse destaque
dentro da narrativa didática escolar em relação a história de índios e negros. O
debate que a escola de samba da Mangueira acaba trazendo para o carnaval de
2019 é o perigo da história única, ou seja, a história contada a partir da ótica
dos vencedores que possui no centro da narrativa escolar o eurocentrismo.
Neste sentido, a busca de novas histórias para o espaço precisa ser con-
tada agora pela ótica dos povos considerados subalterno dentro da história do
Brasil. O debate que está colocado dentro do ensino de história hoje é o lugar
dos sujeitos dentro da narrativa histórica escolar, ou seja, colocar os discursos
hegemônicos bem como as nossas próprias crenças como leitores e produtores
de saber e de conhecimento (SPIVAK, 2010). Queremos debater neste artigo a
importância de compreender a História para o recente debate sobre a diversi-
dade multicultural brasileira.
A lei 11.645 de 10 de março de 2008 foi sancionada pelo então presi-

268
dente da república Luís Inácio Lula da Silva. A referida legislação educacional
altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº 9.394 de 1996, sendo
modificada pela lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003, para incluir na rede oficial
de rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura afro-bra-
sileira e Indígena”. Portanto, constituindo-se de dois artigos a lei altera o artigo
26-A da Lei nº 9.394 de 1996 que após a lei 11.645 de 2008 passa a ter a seguinte
redação:

“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,


públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-
-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a
cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade
nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e
política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar,
em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasilei-
ras.” (BRASIL, 2008).

O que queremos debater com esta apresentação é a seguinte interre-


lação educação, ensino de história e a problemáticas do nosso tempo que tem
evidências diretas no espaço escolar partindo da perspectiva decolonial. Um
momento em que a sociedade brasileira passa por uma crise de valores, tem
avanço das ideias conservadores e de negação do outro é importante e urgente
repensarmos o lugar das identidades dentro do processo de ensino e aprendi-
zagem em História. O desfile da escola de samba da Mangueira apresenta esse
olhar para o passado brasileiro apresentando uma leitura da História do Brasil
a partir de sujeitos históricos que tiveram uma atuação dentro do seu tempo,
seja de resistindo as políticas públicas e reafirmando o protagonismo de deter-
minados grupos sociais.
Pretendemos abordar os temas que o desfile da Mangueira demonstrou
como elemento central para ser problematizado pelo professor durante as aulas
de História. Pretendemos apresentar uma leitura do passado brasileiro de acor-

269
do com os temas escolhidos pelo carnavalesco Leandro Vieira para recontar a
História do Brasil. Ou seja, o que ficou evidente foi a perspectiva de se ter uma
outra compreensão da contribuição de índios e negros dentro dos processos
históricos desde a colônia até os dias atuais.
O desfile da Mangueira neste sentido apresentou uma forma de ver o
mundo, de experienciar e de particularizar dentro deste processo. O imaginá-
rio europeu criado sobre os territórios a serem conquistados e colonizados per-
mitiram uma invizibilização dos sujeitos, desta forma apoderando-se de seus
corpos, de suas mentes e de suas terras em todos os aspectos, com a finalidade
de construir uma empresa colonial calcada na submissão e na exploração des-
tes territórios latino-americanos.
A relação da História com seus públicos está no centro do debate que
o desfile tentou apresentar, podemos perceber que a Mangueira ao apresentar a
lei nº 11.645 de 2008 que tornou obrigatório o ensino da cultura afro-indígenas
nos espaços escolares brasileiros de forma didática vem demonstrar a impor-
tância da História que para além de ser uma prática científica ela é uma prática
social presente dentro da sociedade. O debate que se coloca quando se aproxi-
mam ensino, história pública e mídias é o de compreender que o conhecimento
histórico precisa ser problematizado no nosso tempo a partir do uso de recur-
sos midiáticos e tecnológicos, a fim de pensar formas que sejam inovadoras e
que promovam uma reflexão sobre a produção historiográfica que beneficia o
ensino (FONSECA, 2016).
O diálogo com a historiografia do tema proposto foi feito a partir da
consulta de obras produzidas pelos historiadores, bem como estes estão nas
entrelinhas dos carros alegóricos, alas e comissão de frente pensada pelo carna-
valesco Leandro Vieira. Portanto, a produção técnica desenvolvida pela escola
de samba da Mangueira e seu enredo Histórias para ninar gente grande (2019)
está em consonância com a narrativa produzida pelos profissionais que tem
como finalidade estudar o passado.
Houve até críticas de que o desfile estava questionando o papel do
professores de História e da pesquisa histórica que não conseguem atingir um
grande pública, mas esta concepção foi desmistificada pelo produção técnica
apresentada pelo carnavalesco. Há uma possibilidade de se trabalhar os temas
abordados pelo desfile dentro das aulas de História do Brasil.

270
Desenvolvimento

Por exemplo, a ala ‘cerâmica testemunha de um Brasil milenar’ apre-


senta as duas formas de ocupação da região amazônica antes da chegada dos
europeus, que são representadas pela cerâmica tapajônica e pela cerâmica
marajoara. A cerâmica tapajônica é considerada umas das antigas provas de
ocupação indígenas em nosso território. As peças tapajônicas encontradas na
região de Santarém estão datadas de 8.000 a.c e que indicam a existência de
uma sociedade organizada e complexa, ela possui costumes, tradições, ritos e
mitos. A cerâmica marajoara que habitou a região norte do Pará entre os anos
400 a.c e 1.400 a.c, ela é também uma sociedade complexa que possui muitos
utensílios e urnas funerárias. Essa perspectiva é para demonstrar que ‘desde
1500 tem mais invasão do que descobrimento, tem sangue retinto e pisado atrás
do herói emoldurado’.
O desfile da Mangueira abre com as alegorias dizendo Viva Tapajôni-
cos! Viva Marajoaras!, evidenciando que quando ocorreu a chegada dos portu-
gueses já existiam no território denominado Brasil sociedades complexas. As
terras já eram ocupadas. O carro abre-alas denominado ‘mais invasão do que
descobrimento’ representa este momento da História do Brasil. Há também a
imagem de pinturas rupestres que foram encontradas na Serra da Capivara no
sudeste do estado do Piauí, onde existem ali vestígios de artes de 50.000 mil
anos atrás. O objetivo do carnavalesco é demonstrar a seguinte tese: a nossa
história não começa em 1500, e nos bancos escolares aprendemos somente a
partir do conhecido ‘descobrimento’, ou seja, essa história cristalizada no es-
paço escolar é do ponto de vista europeu, é uma história centrada no branco
colonizador. Não possui dentro dos livros didáticos de História as demais ver-
sões da História do Brasil. O objetivo é problematizar a história oficial e de-
monstrar que os livros didáticos não mostra o que existia antes da chegada dos
europeus e nem que foram os heróis anônimos que foram derrotados pelos
colonizadores mas que ajudaram a construir a história do nosso país, portanto,
é a história de índios e negros que não aceitaram a colonização simplesmente.
A ideia central construída por esta narrativa oficial é demonstrar que não im-
portava o que existia antes de 1500 em terras brasileiras.
O protagonismo do índio Cunhambebe que no século XVI organizou
uma resistência contra o processo de conquista, ele foi chefe indígena que orga-

271
nizou e liderou a Confederação dos Tamoios, ele combateu os portugueses que
vinha para escravizar os nativos no litoral do Rio de Janeiro, ele apresenta um
apanhado geral da História do Brasil para demonstrar que o nosso território
era todo ocupado por sociedades indígenas. Os índios Cariri localizados no
nordeste se uniram contra os portugueses que ocupavam as suas terras e ven-
diam os índios como mercadorias, portanto, foi mais de meio século de confli-
tos entre os invasores com os índios Cariri, foi a maior resistência feita contra
os bandeirantes, que eram os exploradores portugueses que tentavam invadir
e ocupar o interior do Brasil, bem como avançar as fronteiras da colonização
para o norte e o nordeste.
A ala do Sepé Tiajaru é um guerreiro indígena que tentou evitar a cha-
cina dos Guaranis durante a invasão das aldeias que ficou conhecida como
guerra Guaranítica localizado lá no sete povos das missões, os europeus (es-
panhóis e portugueses) acabaram se unindo para expulsar os índios Guarani
que resultou no Tratado de Tordesilhas. A sua terra ficou exatamente no meio
do tratado acertado pelos colonizadores. A ala Salve os caboclos de julho exal-
tam a participação indígena no processo de emancipação do estado da Bahia,
uma luta que é ocorreu em 1821, no dia 2 de julho de 1821, portanto, um ano
antes do processo de independência proclamado por Dom Pedro I. Uma data
muito importante no estado da Bahia que é estudada nos bancos escolares. Os
índios possuem um protagonismo importante dentro da História do Brasil no
sul, no nordeste, no norte do nosso território e isto não aparece nos livros di-
dáticos. Desde o processo de conquista até os dias atuais ocorre o extermínio
das sociedades indígenas. A ala ‘genocídio indígena no Brasil’ destaca que era
uma obscura e escondida de nossa História. O carro alegórico denominado ‘o
sangue retinto por trás do heróis emoldurado’ ele é uma reprodução do monu-
mento às bandeiras em São Paulo, é comum encontrarmos nos livros didáticos
de História os Bandeirantes como desbravadores, como heróis, e ele questiona
essas expedições ocorridas pelo Brasil colônia que serviu tanto para fazer a ex-
ploração do nosso território quanto para a busca de riquezas, bem como para
a capturas de indígenas ou de africanos que foram escravizados de 1500 e que
tinham sumido.
Então, nesta perspectiva o desfile da Mangueira é uma releitura da
História do Brasil, pois, ele questiona o papel do herói dentro da narrativa oficial
onde ele ocupa um espaço onde já existem civilizações no território brasileiro.

272
As Bandeiras são tidas como um exemplo de desenvolvimento e de progresso
que foi dizimando populações indígenas inteiras. O desfile da Mangueira neste
contexto destaca o ponto de vista eurocêntrico que coloca o português como
desbravador e herói.
O desfile demonstra que o processo de abolição não ‘veio nem do céu
e nem das mãos de Isabel’, conforme destaca a letra do samba enredo da Man-
gueira, foi um processo de muita luta para que a corte brasileira aceitasse a
emancipação do negro. O movimento foi de muita luta e resistência, vale por-
tanto destacar que o Brasil foi o último país a declarar a abolição da escravatu-
ra. A ala ‘negro quilombola’ foi composta por 300 integrantes da comunidade
mangueirense. Desde o início do século XVI já haviam registros de fugas de
negros no Brasil colônia.
A formação dos quilombos serviu como pontos de refúgio, como es-
paços para se abrigarem, para reconstruírem laços de família, para resgatar
os laços religiosos, os laços culturais para que não se perdesse no processo de
conquista do território brasileiro sobre o domínio português e depois no for-
mato de país-independente. O carro alegórico ‘o trono palmarino’ representa
a imagem de heróis negros, por exemplo, Dandara dos Palmares, Zumbi dos
Palmares e Alquatune Ezgondidu Mahamoud da Silva Santos. O quilombo é a
personificação da África, era para recriá-la e tudo aquilo que eles traziam de
herança para o Brasil. Os passistas vieram representando os heróis da resis-
tência Tereza de Benguela e José Piolho como rei fundador e liderança do qui-
lombo do Piolho que também era conhecido como Quilombo do Quariterê.
O Quilombo ficava localizado entre o rio Guaporé na fronteira entre o Mato
Grosso e a Bolívia, onde atualmente localiza-se o estado de Cuiabá. As ações
bandeirantistas ocorridas entre 1730 a 1795 fizeram com que o espaço fosse
atacado e destruído, onde ele foi assassinado e ela resistiu a ações dos bandeiras
no referido período mencionado acima. Tereza de Benguela era uma líder de
grande qualidade política no século XVIII.
A ala das baianas representava as negras de ganho, elas podiam vender
parte daquilo que elas produziam, com isso parte do que produziam ficavam
com os senhores e partes ficavam com elas e com isso conseguiam comprar a
liberdade. As irmandades eram secretas e perseguidas, pois, era grupos de reli-
giosos que mantinham os laços com o continente africano. O levante malê que
ocorreu no estado da Bahia em 1835, ele foi um levante de negros mulçumanos,

273
o movimento foi reprimido com muita violência pelas tropas da Guarda Na-
cional, pelos civis e pela polícia. O trono de Luiza Mahin vem logo em seguida
demonstrando que se o levante dos Malês tivesse tido êxito ela seria tida coroa-
da rainha deste levante.
A ala tributo ao abolicionista o negro Luís Gama para representar o ne-
gro intelectual, o negro pensante dentro da sociedade brasileira onde pouco se
comenta nos bancos escolares, ele era advogado e abolicionista Luís Gama que
era filho de um fidalgo português e de uma líder africana Luiza Mahin. O carro
alegórico ‘o dragão do mar de Acarati’, ele representa o estado do Ceará que 5
anos antes da princesa Isabel abolir a escravatura, este estado já havia libertado
todos os seus escravos. A ação começou com uma atitude muito simples de
um negro jangadeiro e pobre, o Chico da Matilde, eles realizavam o trajeto do
negro da praia até o alto mar para poder entrar no navio e ele começou a se
recusar, ele se recusou a levar os negros e por essa atitude ele ficou conhecido
como dragão do mar.
A simbologia do navio negreiro como algo esplendoroso, que repre-
senta a África, pois, carregava o conhecimento, o saber do povo africano. Não
sendo associado a dor e tristeza. Um navio negreiro diferente que ressalta o
dourado, pois, havia ali a cultura e os costumes do povo negro, havia neste car-
ro alegórico a religiosidade, a ancestralidade. Era necessário ressaltar a opulên-
cia do povo negro. Era considerado um recipiente da cultura negra em alto mar.

Considerações Finais

A lei 11.645 de 2008, a emergência de outras histórias, outras memó-


rias subterrâneas que estavam silenciadas no currículo escolar aparecem no
desfile da Mangueira de forma didática. A mensagem que ficou ao longo do
desfile é que diante do atual contexto político, social e educacional pelo qual
passa a sociedade brasileira é urgente que se quebre o silêncio sobre a efetiva
participação de negros e índios dentro da história do Brasil.
Era necessário não somente colocar os índios e negros no lugar da
história oficial, ou seja, de representá-los dentro desta nova narrativas escolar.
Um exercício de história pública que alia elementos como História, identidades
e processos culturais diversificados dentro da sociedade brasileira. A perspec-

274
tiva de construir uma história da sociedade brasileira em que sejam represen-
tados índios, negros e pobres 11 anos depois da lei 11.645 de 2008 podemos
afirmar que ela foi colocada em prática.
O debate que está posto pelo desfile da escola de samba da Mangueira
é o de reconhecer a necessidade de construir novos significados para a História
do Brasil, e a sala de aula a partir do professor de História assume um papel
importante para desconstruir as narrativas eurocêntricas e que possuem um
viés homogeneizador para contar a história do nosso país.

Referências
BRASIL. Lei 11. 645 de 2008. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm > acesso em 14 de jul. 2019.

FONSECA, Thaís. Ensino, mídia e história pública. IN: MAUAD, Ana Maria;
ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública
no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, 348p.

G. R. E. S. Estação Primeira de MANGUEIRA. Histórias para ninar gente gran-


de. LIESA, Rio de Janeiro. 2019. pp.307-389. [Abre-Alas] < Disponível em ht-
tps://liesa.globo.com/2019/por/03-carnaval/abrealas/index.html > acesso em
10 jul. 2019.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Editora UFMG: Belo Horizonte,


2010.

275
276
Antropologia e Arqueologia Religiosa:
Religião Afro-Brasileira no Piauí1

Francisca Verônica Cavalcante


Departamento de Ciências Sociais. Programa de Pós-graduação em Arqueolo-
gia. Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Introdução

Os três espaços religiosos afro-brasileiros de Teresina dos quais nos


ocuparemos neste artigo são os seguintes: o primeiro, denominado Terreiro
Ylê Oyá Tade, é parte de uma pesquisa que teve início no ano de 2017 e que
não foi desenvolvida plenamente, dentre os motivos, destacamos os de ordem
operacionais, de financiamento, portanto, é importante enfatizar que ela ainda
encontra-se em desenvolvimento e em estágio bastante incipiente. Intitula-se
“As religiões de matriz africana no Piauí: intolerância religiosa e patrimônio
cultural”. Os dois outros espaços religiosos são: barracão Ilê Axé Opossorofada-
cá e barracão da Associação Santuário Sagrado Pai João de Aruanda - ASPAJA
são parte do campo empírico da pesquisa intitulada “A Condição Juvenil em
Teresina” e marcadamente do subprojeto denominado “Religiosidade e Juven-
tude em Teresina”, realizada no período 2007 a 2009, financiada pelo CnPQ,

1 Partes deste texto encontram-se em outros artigos de minha autoria publicados e em comuni-
cações orais realizadas em eventos África Brasil- UESPI, em Teresina-PI.

277
FAPEPI e UFPI.
O problema que destacamos aqui é compreender como podemos es-
tabelecer diálogos entre os campos de conhecimentos da antropologia e da ar-
queologia religiosa tomando como referências espaços religiosos de religiões
de matriz africana para pensar a questão do patrimônio cultural religioso e do
desrespeito religioso ou da intolerância religiosa ou do racismo religioso.
Para dar conta desse objetivo utilizamos o método etnográfico, refle-
tindo sobre espaços religiosos a partir de pesquisas já realizadas e ou em anda-
mento. Uma vez que a observação durante a pesquisa de campo das referidas
investigações mostra-se um momento por excelência para observação da orga-
nização social, mitos, práticas ritualísticas e das identidades religiosas.
O nosso diálogo teórico está construído a partir dos seguintes autores:
Regina Abreu, Gilberto Velho, José Reginaldo Gonçalves, Vagner Gonçalves da
Silva, Teresinha Bernardo, Roberto DaMatta, Joanice Conceição, Pedro Paulo
Funari, Guimarães, dentre outros. As considerações mais relevantes desta refle-
xão levam a compreensão de um olhar bastante preconceituoso, etnocêntrico
por parte da sociedade piauiense para com as/os religiosas/os e para a cultura
religiosa afro-brasileira no Piauí.

Incursões no universo das pesquisas sobre religiões de


matrizes africanas em Teresina

Refletir sobre Antropologia e Arqueologia Religiosa tomando como


foco espaços de religiões afro-brasileiras é um exercício de alteridade e de des-
naturalização das ideias de patrimônio cultural religioso que se encontram pre-
sentes de forma expressa e manifesta em diversas situações em nosso cotidiano
e que evidenciam um olhar para a cultura religiosa brasileira extremamente
cristianizada.
O objetivo principal da pesquisa intitulada “As religiões de matriz
africana no Piauí: intolerância religiosa e patrimônio cultural” é compreender
como os adeptos de religiões de matriz africana no Piauí atribuem aos espaços
religiosos dos quais participam o estatuto de patrimônio cultural piauiense. Os
objetivos específicos são: mapear três dos espaços mais antigos de religiões de
matriz africana existentes em Teresina; conhecer experiências de intolerância
religiosa vivenciadas por adeptos desses espaços. O estudo faz uso de métodos
278
e técnicas das ciências sociais, dentre elas os recolhimentos de entrevistas, ima-
gens fotográficas, fílmicas, observação participante e construção de um cader-
no de campo.
Os objetivos da pesquisa intitulada “A Condição Juvenil em Teresina” e
marcadamente do subprojeto denominado “Religiosidade e Juventude em Te-
resina” foram construir referências de análise acerca dos jovens integrantes da
população teresinense no que concerne à religiosidade, aos modos de vida afe-
tivo-sexual, aos coletivos juvenis, ao trabalho, ao lazer e à educação, aos quais
tiveram coordenadores e equipes de pesquisadores diferentes constituindo-se
ao todo em seis subprojetos abordando as temáticas citadas.
A pesquisa utilizou-se de diversas técnicas e metodologias, partindo
de abordagens quantitativas e qualitativas. Comum a todos os subprojetos são
as seguintes: aplicação de survey, construindo uma amostra probabilística da
população jovem de Teresina, por unidade de domicílio no perímetro urbano
da cidade e, no tocante a qualitativa, registrou-se diversas técnicas, obedecendo
à demandas de cada subprojeto. São elas: oficinas, observação direta e partici-
pante; recolhimento de imagens fotográficas e fílmicas; recolhimento de entre-
vistas semiestruturadas, individuais e grupais.

Terreiro Ylê Oyá Tade , Barracão Ilê Axé Opossorofadacá e


Associação Santuário Sagrado Pai João de Aruanda – AS-
PAJA

O Terreiro Ylê Oyá Tade , fundado em 1968, pelo Babalorixá Adilton


de Iansã, iniciado na umbanda por Pai Antônio Bispo de Miranda e iniciado
no candomblé de Nação Angola no terreiro do Babalorixá Miúdo do Tingongo,
em Vasco da Gama, Salvador, casa de umbanda e que a partir de 2014 passou
a trabalhar com candomblé, cujo objetivo é promover a caridade, a inclusão
social, particularmente de jovens, a casa desenvolve projetos sócio-culturais
que objetivam a preservação da cultura africana no Brasil, como o grupo de
capoeira, dança e percussão denominado Cultural Magia das Três Raças, o Café
de São José, oferecido a pessoas que vivem nas ruas, distribuição de cestas bá-
sicas, palestras educativas abordando vários temas como saúde, África, ido-
sos, candomblé e da umbanda, disponibiliza serviços de assistência jurídica

279
aos adeptos e comunidade em geral que por eles não pode pagar Com cerca de
150 adeptos, a maioria deles presente no terreiro desde a sua fundação, conta
também com um número significativo de jovens recém ingressos no espaço
religioso.
O Barracão Ilê Axé Opossorofadacá, casa de Oxalá, localizada no bairro
Pirajá, fundada em 1985 por Pai Oscar de Oxalá que esteve conosco enquanto
liderança religiosa desta casa até agosto de 2014, ocasião em foi morto. Filho
da casa Branca Obatoni, uma das mais tradicionais de Salvador com quem ma-
tinha estreitos laços assim como com outros filhos de santo baianos, trazen-
do para suas festas babalorixás, filhos e filhas de santo, ogans e pesquisadores
adeptos ao candomblé. Participavam desta casa até 2014, um baiano que era o
ogan, as irmãs e sobrinhas de Pai Oscar, dentre elas équedes e filhas de santos.
A Associação Santuário Sagrado Pai João de Aruanda - ASPAJA. Loca-
lizada no bairro Santa Maria da Codipi, fundada em 2004, por Pai Rondinele
Santos, filho da casa Axé Abassá de Ogum casa de religião afro-brasileira baiana
que tem como liderança religiosa a Yalorixá Jaciara Ribeiro. Casa de candomblé
e umbanda, e a preservação das tradições religiosas, uma ONG sem fins lucra-
tivos que privilegia a juventude, a casa assiste cerca de 350 jovens pertencentes
a Teresina e outros municípios do Piauí. É pioneira no trabalho de conscien-
tização e pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras e tem como paradigma os
terreiros de Salvador, estabelece muitas trocas com filhos de santos da capital
baiana e a Yalorixá Jaciara Ribeiro é figura presente em muitas das ativida-
des desenvolvidas pela casa. Tem desenvolvido campanhas sobre a prevenção
de hanseníase em parceria com a entidade MORAN; Pai Rondinele também é
presidente da rede Estadual de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde no Piauí, em
parceria com a Secretaria Estadual do Trabalho e Empreendedorismo (SETRE)
tem efetivado projetos que unem a valorização da cultura negra e a capacitação
de jovens para o mercado de trabalho como os cursos na área de gastronomia,
dança e serigrafia, realizados recentemente.

Reflexões sobre o campo da Arqueologia Religiosa

Para Felipe Guimarães e outros pensadores o surgimento da Arqueo-


logia da Religião como importante subárea da Arqueologia ocorre nas últimas

280
décadas do século XX e primeiras décadas do século XXI. É considerada tam-
bém um dos frutos de uma das maiores descobertas arqueológicas do século
XX: os Manuscritos do Mar Morto. Foram produzidos cerca de 20.000 artigos
sobre esta descoberta e foram engendradas novas teorias voltadas para a com-
preensão das práticas religiosas do Judaísmo e do Cristianismo. A investigação
da religiosidade praticada na Antiguidade possibilita o florescimento da Ar-
queologia Religiosa, notadamente, nos Estados Unidos. Podemos considera-
-la “uma disciplina especializada na análise de toda e qualquer descoberta, no
campo arqueológico, que possua conexões com a religiosidade”.
Neste sentido, esta comunicação sobre os espaços religiosos referidos
têm como objetivo sensibilizar e convidar pesquisadoras/es de antropologia,
arqueologia e áreas afins a conhecer um pouco da história desta subárea da Ar-
queologia também denominada Arqueologia da Religiosidade a partir destas
experiências de pesquisas. A metodologia consiste basicamente na experiência
antropológica e arqueológica, através do contato, do manuseio, da visibilidade
de objetos, de paisagens, de sons, de imagens, especialmente, das fotografias e,
das entrevistas, das interpretações dos interlocutores, enfim, da fusão de hori-
zontes entre pesquisadoras e interlocutores que através deste estudo manifes-
tam e expressam a importância e a presença da arqueologia em conexão com a
religiosidade.
A arqueologia religiosa desenvolve suas teorias hermenêuticas toman-
do como fonte principal a cultura material, que retrata, entre outros, aspectos
econômicos, políticos, militares, trabalhistas, familiares e religiosos, da estru-
tura social, daqueles que se foram. Reiteramos que nas últimas décadas do
século XX e, principalmente, na primeira década do século XXI, uma nova
ramificação da “árvore arqueológica”, chamada Arqueologia da Religião (A.R),
começou a surgir na América do Norte e Europa, com o principal interesse de
investigar a religiosidade retratada na cultura material.
A A.R. no Brasil surge como área consciente de si na segunda década
do século XXI, construindo uma identidade própria, dialógica, que associa,
principalmente, a pesquisa arqueológica à reflexão oriunda nas Ciências da Re-
ligião.
Nesta comunicação toma-se como referência a vivência das religiões
afro-brasileiras em Teresina nos espaços religiosos supracitados. Aqui também
como nas outras pesquisas da A. R. as teorias são construídas valendo-se da

281
pluridisciplinaridade, essenciais para o progresso da Arqueologia. Ou seja, não
dá para pensar este Campo investigativo longe de um diálogo, por exemplo,
com a física, química, matemática, história e antropologia. Uma vez que os
achados são mensuráveis, possuem dimensões, são formados por elementos
químicos e ocuparam um lugar na história.
Observamos que ocorre uma profunda mudança no fazer arqueologia
e a partir do século XX, esta ciência ampliou seus horizontes e, cada vez mais,
voltou-se para as representações e para os símbolos. O sobrenatural, a mágica e
tudo que diz respeito aos sentimentos mais recônditos, passou a fazer parte do
universo de preocupações do arqueólogo.
A arqueologia definida, na origem, como estudo das coisas antigas, a
partir da etimologia, dedicada aos edifícios e objetos provenientes das antigas
civilizações, como a grega e a romana, tornou-se, aos poucos, parte dos estu-
dos das relações de poder a partir das coisas. Em comum, manteve a centrali-
dade do estudo do mundo material, das coisas, daquilo que pode ser tocado,
transformado e feito pelo ser humano, definido, por convenção, como cultura
material.
Introduziram-se, ademais, os aspectos sociais e de poder, das desi-
gualdades e conflitos, para propor uma disciplina menos distante das pessoas
e mais útil tanto aos indivíduos, como às coletividades.Nas últimas décadas do
século XX e, principalmente, na primeira década do XXI, uma nova ramifi-
cação da “árvore arqueológica,” chamada Arqueologia da Religião, começou a
surgir.  Ela, também, é fruto de uma das maiores descobertas arqueológicas do
século XX: os Manuscritos do Mar Morto.
Depois desta “revelação arqueológica”, entre 1947-1956, uma corrida
na construção de teorias, voltadas a compreensão do Judaísmo e do Cristia-
nismo em sua fase inicial, ou o chamado “Período do Segundo Templo”, foi
inaugurada. Segundo Roitman, especialista na investigação de Qumran, mais
de 20.000 artigos foram escritos só sobre esta descoberta.Este acúmulo de in-
formações foi um dos fatores que levaram os arqueólogos a envolverem-se, em
maior intensidade, com a investigação da religiosidade praticada pelo homem
na antiguidade. Como resultado, algumas décadas depois, principalmente nos
EUA, ainda que de uma maneira tímida, surge uma subárea da Arqueologia
chamada Arqueologia da Religião. Ela é uma disciplina especializada na análise
de toda e qualquer descoberta, no campo arqueológico, que possua conexões

282
com a religiosidade que, diga-se de passagem, são milhares.
O primeiro trabalho escrito, prenunciando esta futura subárea da Ar-
queologia, foi o livro de Finegan intitulado “Archeology of World Religions”
no ano de 1952, publicado pela Universidade de Princeton. O escrito contém
um estudo histórico-arqueológico de 10 religiões.Na década de noventa (1994),
Colin Renfrew escreveu o interessante artigo “The Archaeology of Religion”,
publicado pela Universidade de Cambridge. Aborda questões de natureza psi-
cológica, o que foi um grande salto relacionado ao estudo da compreensão da
Cultura Material vinculada a religiosidade, que denominamos de Produto Ar-
tístico da Religião (PAR).
Em 2005, Whitley e Gilpin publicaram um livro intitulado “Belief
in the Past: theoretical approaches to the Archaeology of Religion” no qual,
além de buscarem aproximar teorias biológicas e fenomenológicas à análise
arqueológica da religiosidade de tempos “primitivos,” os autores discutem a
importância e crescimento da área. Segundo os autores, está avançando, além
de discorrem sobre a negligência para com a A.R, valendo-se da constatação
de que os arqueólogos geralmente preocupam-se mais em obter informações
socio-políticas dos achados, relegando os aspectos da religiosidade, presente
em grande parte deles, a um segundo plano.
Porém, neste século, a A.R entrou em um “processo de ascensão e
ainda estar por revelar todo o seu potencial.”É notório que, nos últimos quinze
anos e especialmente nos últimos dez, vários livros que exploram a religiosida-
de nas culturas passadas foram produzidos em língua inglesa, principalmente
na Europa e nos Estados Unidos, resultantes do trabalho de consolidação da
A.R. Esta constatação indica que existe um grande interesse pela disciplina no
cenário acadêmico internacional, o que a elevou a outro patamar. Segundo Da-
vid Edwards, “recentemente a Arqueologia da Religião passou a ser um sub-
campo da Arqueologia.”
No Brasil, em 2013, enquanto desenvolvia pesquisas no âmbito arqueo-
lógico no que tange à relação de I Enoque e as grutas de Qumran, matéria da
tese doutoral, Felipe Guimarães depara-se com uma lacuna no cenário literário
brasileiro: a total ausência de literatura que abordasse a disciplina A.R, seja no
que tange a pressupostos metodológicos ou mesmo resultados oriundos dela.
Diante da constatação o autor em questão publicou um livro sobre o assunto,
intitulado “Arqueologia da Religião: um convite.”

283
Até 2013, interessados em conhecer sobre a religiosidade, através de
uma ótica arqueológica nas Ciências da Religião, tinham como principal fer-
ramenta de trabalho, na literatura portuguesa, a Arqueologia Bíblia. Direta e
objetivamente, a A.R tem como finalidade última fornecer análises que con-
tribuam com a busca por compreensões da vivência do sagrado de uma de-
terminada coletividade, cuja existência deu-se em tempos passados, partindo
da cultura material relacionada à sua religiosidade. A A.R tem como objetivo
estudar a religiosidade que  se expressa na cultura material. Sua atuação deve
concentrar principalmente em analisar os produtos artísticos da religião, que se
expressam de diversas formas na cultura, produzindo teorias coerentes com os
mesmos.

Patrimônio Cultural e Intolerância Religiosa, as casas de


religiões Afro-Brasileiras em Teresina

Transcorreu pouco mais de três décadas, precisamente em 1984, quan-


do pela primeira vez a tradição afro-brasileira obteve o reconhecimento oficial
do Estado Nacional posto que o primeiro terreiro de candomblé Casa Branca
foi tombado em Salvador, Bahia, um dos membros e relator do Conselho do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional neste processo foi o antropólogo
Gilberto Velho que compartilhou esta experiência em artigo (Ver. VELHO, Gil-
berto.2007) no qual reflete sobre a questão da negociação e do conflito presente
no processo de tombamento, mas sobretudo o antropólogo chama a atenção
para as transformações da categoria patrimônio cultural daquele período aos
dias de hoje. Lembramos que aquele período o estatuto do tombamento era
aplicado, basicamente, “a edificações religiosas, militares e civis da tradição lu-
so-brasileira” (VELHO, 2007, p. 249).
Como nos ressalta Gonçalves (2007) os chamados ‘patrimônios cul-
turais’ sofreram uma “ilimitada expansão semântica expressa pela noção de
patrimônios intangíveis” (p.239). Trata-se de uma categoria antropológica que
se “traduz num instrumento de luta pelo reconhecimento público de grupos e
de indivíduos” (Ibidem). Pensar esses três espaços religiosos enquanto patri-
mônio cultural piauiense, brasileiro nos parece algo muito distante, até utópico
e o argumento que justifica essa impressão diz respeito ao fato de que vivemos
em uma cidade e em um estado que é segundo o Censo de 2010 do IBGE o mais
284
católico da nação e o senso comum, muitas pessoas intelectualizadas habitantes
da capital piauiense acreditam que aqui só existem adeptos ao catolicismo e
que o tombamento de um terreiro, um barracão como patrimônio cultural em
Teresina não se justifica.
Entretanto o mapeamento das comunidades de terreiros de Teresina
realizado em 2008 pela Coordenadoria dos Direitos Humanos e Juventude e
publicado pelo Núcleo de Estudos Ifaradá (Lima, 2014) põe em questionamen-
to os dados de autodeclarados pertencentes à umbanda e ao candomblé em
Teresina que se apresentam em número menor do que o número de terreiros
existentes segundo o referido mapeamento. Esse ocultamento, essa invisibilida-
de das religiões afro-brasileiras na capital piauiense, além das questões do pre-
conceito com os seus fundadores (africanos escravizados), da dupla pertença
religiosa e do trânsito religioso, já pontuado por Reginaldo Prandi (2001) pen-
sando as religiões afro-brasileiras no Brasil como um todo, parece guardar um
relação intrínseca, íntima com o racismo e a intolerância religiosa. Os adeptos
das religiões afro-brasileiras ao se autodeclararem católicos ou pertencentes a
outras religiões quando pesquisados através dos levantamentos do IBGE se-
riam levados a esta postura por medo da intolerância religiosa e do racismo?
Como afirma Regina Abreu (2007, p.267) “A emergência da noção de
Patrimônio com o sentido de bem coletivo, legado ou herança artística e cul-
tural por meio do qual um grupo pode se reconhecer como tal - foi lenta e
gradual”. Foi assim na França onde o significado da noção de patrimônio é es-
tendido para as obras de arte e monumentos públicos num momento posterior
a Revolução Francesa, quando a população na avidez em destruir os vestígios
do Antigo Regime chegava a propor a destruição de bibliotecas. Em 1794, sur-
ge na França uma legitimação relativa ao patrimônio considerando a sua não
preservação ou destruição como crime contra o patrimônio. A França torna-se
exemplo para um movimento que se processaria por toda a moderna sociedade
ocidental. Assim, o significado da noção de patrimônio passaria a figurar inti-
mamente ligado a formação dos Estados nacionais.
No Brasil, durante o Estado Novo, em 1937 é criado o Serviço do Patri-
mônio Artístico e Nacional que “instituía o tombamento, uma medida de pro-
teção legal de bens móveis e imóveis, capaz de conter as demolições de edifícios
públicos, considerados referências para a memória nacional” (ABREU, 2007, p.
270). A partir da criação deste serviço pode-se afirmar que houve uma “disse-

285
minação do conceito de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não apenas
para outras esferas do poder público como também para outros domínios da
sociedade civil”(Ibdem, p. 271). Isto é, os militantes do patrimônio nesta pri-
meira fase difundiram uma mentalidade patrimonialista que segundo Abreu
(2007) ficou fortemente associada as seguintes questões: a cultura material, a
valorização do passado e ao tema nacional.
Em 1947, com a criação da UNESCO, entidade internacional com sede
em Paris, cujo objetivo principal era a formulação de propostas e de recomen-
dações com vistas a difusão de ideais humanistas e antirracistas destacamos
dentre as medidas a criação de comissões nacionais de folclore e é neste con-
texto do pós-guerra e da criação da UNESCO que em 1947 foi criada no Brasil
a Campanha de defesa do Folclore Brasileiro que teve um desempenho atuante
até os anos de 1964, desenvolveu trabalhos sobre lendas, costumes, mitos, ri-
tuais, festas, celebrações, saberes e modos de fazer artesanais, culinária, arte e
cultura popular.
Destacamos ainda outra medida da UNESCO relativa à convocação
de especialistas de Antropologia Cultural, da Biologia, da Antropologia Física
para o estudo das diferenças raciais cujo objetivo era por em evidência a não
sustentação científica das tão difundidas teorias racistas como a de Gobineau.
Como um dos resultados destes estudos tem-se a coletânea publicada na Fran-
ça e traduzida para o português com o título “Raça e História”, de Claude Lè-
vi-Strauss, uma leitura imprescindível acerca da não sustentação científica da
noção de desigualdade racial e da necessidade de colaboração das culturas, da
importância da preservação da diversidade das culturas.
Na referida obra Levì-Strauss chama a atenção para a questão da tole-
rância: “A tolerância não é uma posição contemplativa, dispensando as indul-
gências ao que foi ou ao que é. É uma atitude dinâmica, que consiste em prever,
em compreender e em promover o que quer ser”.(LÈVI-STRAUSS, ,1960,P.269).
Tal afirmativa é instigante para reflexões sobre a intolerância religiosa presen-
te na experiência vivida por religiosos candomblecistas e umbandistas teresi-
nenses, sujeitos das pesquisas “A Condição Juvenil em Teresina” e “As religiões
de matriz africana no Piauí: intolerância religiosa e patrimônio cultural”. Os
pensamentos que nos ocorrem são voltados para a subjetividade dos sujeitos
pesquisados quando experimentam as situações de intolerância reiteradas ve-
zes presentes nos seus relatos e a nossa própria experiência como antropóloga

286
alvo de intolerância por ser uma pesquisadora, a intersubjetividade, essa fusão
de horizontes nos faz compreender a profunda invisibilidade das religiões afro-
-brasileiras em Teresina, dos seus adeptos, da intolerância e do racismo velado,
“não dito”, parafraseando Teresinha Bernardo que caracteriza esta experiência
não só no Piauí mas no Brasil como um todo.
De acordo com Abreu(2007), o então novo conceito antropológico de
cultura é trazido à tona e percebido em diferentes domínios do campo intelec-
tual, como em cursos universitários diversos, observa-se que é incorporado
em instituições específicas como é exemplo a Campanha de Defesa do Folclore
Brasileiro atualmente denominado Centro Nacional de Folclore e Cultura Po-
pular. Um dos contextos sociais em que tal conceito é difundido é o das artes
plásticas, momento em que toda uma estética da chamada “arte popular” é cha-
mada a participar como uma manifestação cultural. No campo do patrimônio
o artista e designer Aluísio Magalhães, em 1979, assume a direção do IPHAN e
propõe “a associação do conceito antropológico de cultura às ações de uma po-
lítica pública para o patrimônio... com o ideal de abarcar a diversidade cultural
, religiosa e étnica do Brasil” (Abreu, 2007, p. 274).
A reflexão mais apurada sobre a ideia de tombamentos, do registro de
danças, cantos, do reconhecimento de comidas, indumentárias como bens e
patrimônios culturais dos terreiros e barracões aqui pesquisados nos faz pon-
tuar a importância de diálogos com uma literatura antropológica e políticas
públicas sobre patrimônio cultural vigente em nosso país há mais de três déca-
das e o nossa contribuição como antropóloga pesquisadora desta temática que
sem a pretensão de esgotar o assunto gostaria tão somente de abrir a discussão
lembrando que a própria noção de patrimônio foi absorvida por diversos seg-
mentos sociais e que a mentalidade de patrimônio cultural existente deve ser
ampliada, inclusive para pensar o lugar que os barracões e terreiros de religiões
afro-brasileiras ocupam em nossa cidade, a sua materialidade e a sua imateria-
lidade.
Abreu (2007) chama a atenção para o fato de que “... dos anos setenta
para cá, dentro e fora do IPHAN, firmou-se uma mentalidade em prol da defe-
sa da diversidade cultural” (p.275). Assim, a mentalidade patrimonialista con-
templa instituições do Estado, agremiações da sociedade civil, escolas e uni-
versidades, dentro e fora do Brasil, em outros países ocidentais. Novas formas
de organização da sociedade civil, como as ONGs são partes integrantes neste

287
cenário de preservação patrimonial em que o Estado não atua mais sozinho
“na identificação, na seleção dos bens culturais a serem protegidos, tombados
ou valorizados”. (p.276)
Ainda é a autora que lembra que nos anos 2000, tem-se o Decreto Fe-
deral nº 3.551 outra iniciativa desencadeada pela UNESCO e que “institui dois
mecanismos de valorização dos chamados aspectos imateriais do patrimônio
cultural: o inventário dos bens culturais imateriais e o registro daqueles consi-
derados merecedores de uma distinção por parte do Estado. São considerados
bens culturais imateriais as festas, celebrações, narrativas orais, danças, músi-
cas, modos de fazer artesanais, enfim, um conjunto de expressões culturais que
não estão representadas pelo chamado patrimônio tangíveis ou de pedra e cal”
(ABREU, 2007, p. 277).
Para a Antropologia, a categoria patrimônio não permitiria dicotomia
entre o material e o imaterial, contudo, tal dicotomia tem sido mantida e le-
gitimada a partir dos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 em
que está prevista a proteção aos bens culturais de natureza imaterial. Os quatro
livros de registros instituídos que se espera tenha força legal de tombamento
são: o “Livro dos Saberes”, o “Livro das Celebrações”, o “Livro das Formas de
Expressões” e o “Livro dos lugares”. O registro tem como entidade responsável
o IPHAN, com sua metodologia própria o INRC, o MinC, o Centro Nacional
de Folclore e Cultura Popular da Funarte.
Pensar a questão da intolerância religiosa nos leva a constatação do
aumento das reações fundamentalistas em diversos países como, por exemplo,
o atentado terrorista islâmico ocorrido em Paris, França na última sexta feira,
13 de novembro do corrente ano. No campo religioso brasileiro há um cres-
cimento acelerado das religiões evangélicas, das campanhas católicas como a
Renovação Católica Carismática, a presença do espiritismo kardecista, da um-
banda e do candomblé, as religiões orientais e o boom neo-esotérico que faz
com cientistas discutam, debatam e realizem análises sobre uma pluralidade
e efervescência religiosa que atropelam a tese de um processo irreversível de
secularização teorizado pelos clássicos das ciências sociais.
O crescimento do número de adeptos evangélicos e suas várias deno-
minações a partir dos anos de 1970 no Brasil fez surgir uma onda de religiosos
com forte poder midiático e político e também fez eclodir atos de intolerân-
cia religiosa praticadas contra as religiões afro-brasileiras, principalmente por

288
parte dos neopentecostais. Data da fundação da Igreja Universal do Reino de
Deus a declaração de seu bispo Edir Macedo, de guerra aos “orixás, caboclos e
guias” numa clara alusão aos elementos rituais do candomblé, da umbanda e do
espiritismo. Jornais, revistas e mídias em geral noticiam os constantes ataques
sofridos pelas religiões de matriz africana, como exemplo, o Chute da santa-
episódio ocorrido em 12 de outubro de 1995, transmitido pela rede de televisão
Record, durante programa religioso no qual o pastor da IURD chuta a imagem
de Nossa Senhora Aparecida. A relação da IURD com as outras religiões é vista
como formas de lidar com a diferença que pode levar como observa Ronaldo
de Almeida (2007, p.187): “as vias da intolerância dos ritos nas ideias e relações
sociais face a face”.
Podemos observar que as manifestações de intolerância religiosa se
expressam e manifestam dentro e fora das religiões como, por exemplo, o ra-
cismo, a homofobia está presentes no cotidiano da nossa sociedade. Marcelo
Natividade e Leandro Oliveira(2007) analisam como diferentes religiões(pen-
tecostalismo, catolicismo e afro-brasileiras) reagem à práticas homossexuais de
seus adeptos. “Os neopentecostais tem definido a homossexualidade como um
desvio de conduta que pode ser revestido com a conversão, transformando-os
em ex-homossexuais”. (p.262)
Hédio Silva Júnior chama a atenção para o caráter legal da intolerân-
cia, pontua a presença do tema nas constituições federais, particularmente, na
atual de 1988. O jurista enfatiza a necessidade de recorrer a justiça sempre que
alguém sinta o seu direito a liberdade de crença violado. Em Teresina, a própria
partida de uma das lideranças religiosas afro-brasileiras mais respeitadas fez a
mídia refletir sobre homofobia, homoafetividade e intolerância religiosa dentre
outras reflexões que ainda ressoam.
Em nosso artigo intitulado “Memória Afro-Brasileira, Juventude e
Festa” (CAVALCANTE, 2013), que trata dos resultados da pesquisa intitulada
“A Condição Juvenil em Teresina”, relativa especialmente ao subprojeto deno-
minado “Religiosidades e Juventudes em Teresina”, quando as duas lideranças
religiosas abordam questões relativas as edificações dos respectivos barracões
Axé Opossorofadacá e da Associação Santuário Sagrado Pai João de Aruanda
– ASPAJA parece pôr em evidência a categoria Patrimônio Cultural, embora
ela não tenha sido mencionada de forma literal e nem tivesse feito parte dos
objetivos daquela pesquisa. Observa-se que os sujeitos ao se referirem as suas

289
edificações, as construções de “pedra e cal”, as “casas” enquanto espaços físicos
que vão alterando as suas paisagens e as do lugar onde estão edificadas, a medi-
da que os religiosos evocam suas memórias sobre fundação dos espaços religio-
sos, festas, rituais construções estas são descritas com riquezas de detalhes em
que reformas, ampliações dos cômodos, apresentam-se como um testemunho
do passar dos anos e parece que acompanham, expressam e manifestam o cres-
cimento e as mudanças que vivenciam os próprios responsáveis pelos espaços
religiosos e pelas religiões ali vivenciadas. Somos tentadas a afirmar que os seus
relatos estão repletos de representações, significados que se apresentam como
mais uma maneira de explicar que aqueles espaços são patrimônios culturais,
heranças culturais deixadas por ancestrais e nas quais os sujeitos de cada um
deles foram designados por determinadas entidades para realizar a construção,
a fundação e execução do projeto espiritual.
Podemos conferir no relato de Pai Rondinele Santos referindo-se ao
espaço religioso Associação Santuário Sagrado Pai João de Aruanda – ASPAJA
por ocasião da pesquisa intitulada “A Condição Juvenil em Teresina” apresenta-
da no artigo denominado “Memória Afro-Brasileira, Juventude e Festa” em que
aborda a determinação da entidade para a construção do barracão e a impor-
tância que o espaço religioso tem para os religiosos Afro-Brasileiros conforme
CAVALCANTE, 2013, p. 191:

O preto velho diz que vieram para firmar e reafirmar os ensinamentos, tudo
foi eles quem criaram, essa é a mensagem que eles deixam para os jovens, essa
casa tem muito jovem, ela funciona com cerca de 350 jovens. O Santuário ele
nasceu também para buscar essa unificação dos terreiros, quando um noviço
vai fazer ao santo, todos os terreiros devem se reunir. Nós temos que entender
que quando chega na questão do Orixá nós temos que nos unir, deixar para lá
a história de política, temos que pensar na qualidade de vida do nosso povo,
questão socioeconômica e cultural.

Sobre intolerância religiosa Pai Oscar de Oxalá afirma no capítulo inti-


tulado “Religiosidades e Juventudes em Teresina” (2013, p.162):

Religião pra mim é o que todo mundo defende como sendo a sua fé. Nós no
candomblé passamos por muitas discriminações, falta de apoio da mídia, falta
solidariedade, respeito à cidadania. De todos os movimentos religiosos os que
mais agridem a gente são os evangélicos. O lado social é muito pouco, entram

290
muito na política. Nós quando entramos no candomblé nós assumimos. En-
tão, há uma guerra nesse sentido. No candomblé existe sacrifício de animais,
nada é de maldição, tudo é de bênção. Nós somos muito perseguidos.

Em entrevista realizada em outubro do corrente ano com um dos in-


tegrantes do Terreiro Ylê Oyá Tade sobre a edificação do espaço religioso o
informante declara:

Aqui começou, era bem pequeno, o terreiro era de chão batido, o Pai Adilton
conta que não tinha dinheiro para comprar a lavanda inglesa para perfumar a
casa e ia buscar na mata as ervas e pisava em um pilão e o terreiro ficava perfu-
mado porque nós cuidamos dessa casa com um bem de todos e se hoje ela está
bem iluminada, grande, bonita, cheirosa é porque a gente faz por onde porque
no candomblé e na umbanda é assim: recebe aquele que tem o merecimento.
Nós quando recebemos as entidades da casa como a Preta Velha Mãe Joana
nós oferecemos o que podemos de melhor para ela.

Na mesma entrevista referida no parágrafo anterior o informante do


terreiro Ylê Oyá Tade quando indagado sobre o seu terreiro podendo ser enten-
dido como patrimônio cultural argumenta que o espaço religioso é importante
e representa grande bem para a comunidade que sofre com a intolerância reli-
giosa por parte da maioria da população, inclusive habitantes do próprio bairro
onde está localizado o terreiro:

Nós temos essa casa como nosso patrimônio, nós cuidamos dela, nós fazemos
o bem, nós prestamos assistência àquelas pessoas que não tem como ir ao mé-
dico, não tem como pagar um advogado porque as pessoas da nossa religião,
que são pobre e negra sofre muito preconceito e necessita muito de ajuda.

Considerações Finais
Parece que pensar patrimônios culturais e terreiros, barracões de can-
domblé e umbanda em Teresina remete ao não reconhecimento por grande
parte da população deste marcador indenitário religioso. A religião afro-bra-
sileira está presente na capital desde a suas primeiras edificações lembrando
Pe. Cláudio de Mello e Monsenhor Chaves. Portanto, há de se ampliar a men-
talidade patrimonialista e estendê-la para além dos monumentos de pedra e

291
cal, notadamente, luso-brasileiras e fazer valer o legado cultural afro-brasileiro
teresinense contemplando a sua materialidade e imaterialidade.
Patrimônio Cultural e Intolerância Religiosa e Arqueologia Religiosa
quando o enfoque são os espaços de religiões afro-brasileiras parecem três te-
máticas recorrentes nas discussões atuais no campo da antropologia e da ar-
queologia e trazem à tona uma pletora de preconceitos, de não-ditos como é
o racismo, preconceito de cor no Brasil (lembrando Oraci Nougueira, Roberto
DaMatta e Teresinha Bernardo) que explica a manifestação do racismo como
hora a encobrir, ora a revelar, tratando a questão das relações raciais ora fazen-
do o discurso que faz eclodir o mito da democracia racial ora silenciando; a
homofobia e a proposta de cura dos homossexuais, por religiões neopentecos-
tais, como se a homossexualidade fosse uma doença.
A visão cristianocêntrica para pensar patrimônio religioso piauiense,
o que nos leva a enfatizar a importância de realizar investigações arqueológi-
cas, notadamente, no campo da arqueologia religiosa, para pôr em evidência e
registrar os bens culturais, a cultura material e imaterial das religiões afro-bra-
sileiras teresinenses. Portanto, uma maneira de divulgar os cantos, os rituais,
os objetos ritualísticos, as indumentárias, as “comidas de santo”, todo um sa-
ber-fazer desta cultura religiosa que, a nosso ver, urge por investigações mais
aprofundadas no campo da arqueologia religiosa.

Referências
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nova ordem discursiva. In. Associação Brasileira de Antropologia. Antropologia e
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294
295
Parte III
História, gênero,
literatura e arte
298
Eduquem os homens! E as mulheres?
Casas de Recolhimento como primeiras
formas de educação para o sexo
feminino no Maranhão setecentismo1

Joabe Rocha de Almeide


Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Maranhão –
UFMA. Bolsista CAPES.

Ana Leticia Araujo Goes


Graduanda em Licenciatura em Ciências Sociais – UEMA/Campus Caxias

Considerações iniciais

O presente estudo tem como cenário inicial a discussão da ausência


feminina na educação formal e compreensão de como era transmitida a edu-
cação para as moças, visto que não havia estabelecimentos com finalidades ex-
clusivas para o ensino das letras para as mulheres. Esta indiferença ao sexo

1 Este estudo faz parte do trabalho monográfico: ALMEIDA, Joabe Rocha de. “ESCRITOS EM
MIGALHAS”: O SEXO FEMININO EM BUSCA DA EDUCAÇÃO FORMAL E DE ESPAÇOS
NA LITERATURA NO MARANHÃO OITOCENTISTA. Trabalho de conclusão de curso (Gra-
duação) em História, Universidade Estadual do Maranhão. 128f. CESC/UEMA, 2016.

299
feminino nos leva a uma inquietação peculiar: como era transmitido o ensino
das primeiras letras as mulheres já que não havia escola formal para elas? É
importante ressaltar que a chegada da primeira escola para o sexo feminino no
Maranhão só se faz presente em 1844, “Colégio Nossa Senhora da Glória”, mais
conhecida como “Escola das Abranches”, pois além de ter sido fundada a partir
da boa intenção de Dona Marta Alonso Veado Alvarez de Castro Abranches,
tinha ainda “suas três filhas e um grupo de intelectuais escolhidos entre os mais
notáveis nas ciências e nas letras” (ABRANCHES, 1992, p. 80). Nesse sentido,
veremos que as criações das casas de recolhimentos serviram como espécie por
muito tempo de escola para as mulheres (não somente no século XVIII, mas
perpassando para o século posterior).
Ao fixarmos um olhar crítico sobre o sistema educacional, no Brasil
Colônia e pós-colonial no seu todo, enxergamos um lado do contexto histórico:
as formas de ensino, bem como as problemáticas e as estruturas inadequadas
pela falta de planejamento do Estado, uma literatura que até 1836 não era ge-
nuinamente brasileira e os efeitos que o crescimento e o declínio da economia
colonial causaram no sistema de ensino. Aqui, se trata do período áureo da
agricultura maranhense, a partir de 1755, e da queda de produtividade, no final
do século XIX, após o fim da Guerra de Secessão (1861-1865).
Outros elementos importantes que a análise sobre o sistema educa-
cional nos propicia analisar essa problemática são as tradições e costumes, as
práticas e representações sociais e religiosas, o afastamento e aproximação por-
tuguesa da Colônia ao perceber que os jesuítas constituíram-se como uma nova
ordem de Estado, a relação entre o Estado e a Igreja Católica e quais eram as
reais intenções das reformas de Marquês de Pombal.
O cenário econômico do Maranhão, no século XVIII, estava marcado
pela pobreza e marasmo. Segundo Mario Meireles (2008), o Estado presenciava
uma extrema miséria, com uma agricultura rudimentar e atrasada, em que o
cultivo do algodão e do tabaco não passava de suprimentos básicos da socie-
dade2. O agravo da economia foi estendido quando a província do Pará passou
a plantar, fiar e tecer panos de tecidos de algodão, pois, até por volta de 1724,
o monopólio da produção algodoeira era feita, principalmente, pela província
maranhense.
Pela falta de estrutura em todos os setores da esfera social e por causa
2 Para compreender a economia setecentista maranhense é importante um aprofundamento em:
MEIRELES, 2008; COSTA, 2004, pp. 51-80.

300
da fome que assolava a província maranhense, percebemos através dos rastros
historiográficos uma produção literária voltada para cartas de contestações so-
bre o desprezo e mazelas do Estado, por parte da Metrópole, e também sobre
fortes críticas do sistema educacional vigente.
João Francisco Lisboa, historiador autodidata, político e jornalista, re-
tratou de forma específica a situação econômica e social do Maranhão colonial
como palco da desordem e barbárie, os burgueses e autoridades políticas só se
preocupavam em aumentar suas riquezas por meios desonestos. “Leis confusas,
incompletas, contraditórias, opressivas, [...] para obviar à influência pernicio-
sa dos princípios gerais dominantes, [...]” (LISBOA, 1990, p. 75) faziam parte
desse quadro político ocioso e corrupto na província maranhense setecentista.
Mailson Melo (2014), ao fazer uma análise sobre os escritos deixados
por João Lisboa, observa o quanto a província maranhense passava por uma
situação lamentável, onde as instruções civis e morais quase inexistentes, as
raríssimas escolas criadas pertenciam aos jesuítas, uma economia de subsistên-
cia devido às baixas produtividades manufatureiras e agrícolas, pois, os equi-
pamentos e técnicas eram grosseiras e rústicas: “a situação era tão lamentável
que em certas ocasiões até a missa estava ameaçada por falta do vinho e do
trigo usado para fabricação das hóstias, que vinham de Portugal, assim como o
sal” (MELO, 2014, pp. 218-19). Os alimentos e a carne de gado, além de serem
caríssimos, só abasteciam o comércio aos sábados. E, mais ainda, por conta do
alto preço dos produtos, apenas a classe dominante – grandes produtores de
terras, comerciantes, burgueses, administradores políticos da Colônia – é que
conseguiam comprar.
Até meados do século XVIII todas as províncias do Brasil eram regi-
das pela educação da Companhia de Jesus. Os jesuítas tinham como princípio
norteador evangelizar os filhos dos colonos nascidos no Brasil e os nativos para
a fé católica através da catequese. De fato, atuar como agente educador, trans-
missor de uma cultura tida como civilizada, era não apenas transmitir a arte de
ler e escrever para os colonos e “bárbaros ameríndios”, mas, ao mesmo tempo,
convertê-los ao catolicismo, visto que as escolas jesuítas tinham como mérito
guerrear contra as ideias do protestantismo.

301
“Uma educação para o Lar Doméstico”: as Casas de
Recolhimentos como instituição de ensino das Primeiras
Letras e matrimonial

Ao entrarmos para entendimento do processo de criação das escolas no


período colonial sob os domínios jesuíticos, percebemos que a educação tinha
como base uma formação de ensino secundário, de seminários e de sermões,
no qual para estruturar o ensino na Colônia formaram gratuitamente sacerdo-
tes para a catequese, para depois instruir e educar os indígenas, os mamelucos
e os filhos dos colonos brancos. Interessantes destacarmos que somente a elite
colonial mandava seus filhos para estudar Direito ou medicina na Europa.
Havia uma separação entre os indígenas e os filhos dos colonos vindos
de Portugal ou nascidos na Colônia. Para os índios, a educação se restringia,
somente, ao ato de ler, escrever e receber instruções do catolicismo. Mas, apesar
dessa educação formal ser caracterizada como básica, veio como uma ruptura
das tradições, dos valores e costumes antigos dos índios. Muitas mulheres e
meninas, até aquelas de famílias abastardas, e crianças negras não tinha acesso
direto a educação formal. A educação para elas se limitavam apenas às apren-
dizagens domésticas aprendidas dentro do núcleo familiar3.
O ensino da chamada “Primeiras Letras” até meados do século XVIII
estava sob os domínios da Igreja Católica. Sob essa regência, a preocupação
da educação religiosa estava voltada para a formação humanística dos filhos
da nobreza e da burguesia que começa a surgir na sociedade urbana para que
esses pudessem ter acesso as melhores universidades da Europa4. Essa classe
privilegiada tinha acesso à escola já sabendo ler, escrever e fazer pequenas ope-
rações de matemática, pois a família pagava professores particulares para seus
filhos, como ressalta o autor Antonio S. Banha de Andrade: “a obrigação de
ensinar competia, primeiramente, à família, e tanto a Igreja quanto o Estado
completava o que ela não conseguiria por si só” (1978, p. 2). Não havia, até o
3 Veremos, mais adiante, que com a chegada dos primeiros recolhimentos no Maranhão essa
educação limitada, repassada, apenas, dentro do núcleo familiar e voltada, somente, para as
aprendizagens domésticas, se estende para essas instituições que passaram a ensinar, além das
tarefas de cuidar do lar, como o ofício de cozer e bordar, aprender de forma básica a ler e escrever.
4 Quando explicamos que os filhos dos donos de terra e dos grandes comerciantes se educavam
antes mesmo de irem aos colégios jesuítas e depois receberiam uma formação superior no es-
trangeiro, tal privilégio era, apenas, para o sexo masculino.

302
exato momento, nenhuma preocupação por parte dessas duas instituições de
poder, Igreja e Estado, levar algum tipo de ensino às famílias menos favorecias,
as crianças, mulheres e escravos, tirando delas o contato com as chamadas “Pri-
meiras Letras”.
Mas, se o sexo feminino estava carente de educação formal, existiam
as casas de recolhimentos e os conventos5. Entretanto, vale lembrar que estas
instituições religiosas não tinham os mesmos seguimentos de educação dada
nos colégios. A finalidade e objetivo principal para qual os recolhimentos fo-
ram construídos, em meios às contradições das próprias representações e das
práticas sociais vivenciadas dentro desses recintos, era como o próprio nome
diz “recolhimento”, ou seja, recolher, confinar as mulheres e meninas de todas
as idades, que seriam orientadas espiritualmente através de uma educação pu-
ramente religiosa.
Porém, é crucial notarmos que a questão da religião era apenas um
pano de fundo para algumas instituições, como ressalta Michel Perrot que os
“conventos eram lugares de abandono e de confinamento, mas também refú-
gios contra o poder masculino. Lugares de apropriação do saber” (2007, p. 84).
Isso nos deixa claro que em meio a esse paradoxo social, os recolhimentos eram
espaços de poder sobre as mulheres, e, também, poder das mulheres.
No Brasil, consta-se que o primeiro recolhimento colonial foi criado
em 1576 em Olinda (Pernambuco). O primeiro convento chega a Salvador em
1644, mas apenas em 1699 que o rei, juntamente com o papa, autorizou legal-
mente o funcionamento chamado de Convento de Desterro da Bahia.
No Maranhão, essas instituições chegaram bem mais tarde do que em
outras províncias. O primeiro, chamado de Recolhimento de Nossa Senhora
da Anunciação e Remédios, só foi fundada em 1753 pelo padre jesuíta Gabriel
Malagrida. Outra instituição na província maranhense só foi criada bem mais
tarde, em 1855, na regência do presidente Eduardo Olímpio Machado, chama-
da de Asilo de Santa Teresa.
Apesar de conventos e casas de recolhimentos serem muito próximas
5 Conventos e casas de recolhimento são muitos assemelhados na questão de estrutura e finalida-
des funcionais. Ambas construídas em perímetros urbanos e datadas desde o final do século XII.
Os recolhimentos chegaram em Portugal no final do século XV. Como estes só chegaram ao Bra-
sil Colônia nos finais do século XVI, a classe senhorial, enviava suas filhas para os recolhimentos
metropolitanos. Muitos recolhimentos só foram construídos próximos a saída dos Jesuítas em
1759 e outros só puderam ser erguidos no período de Pombal, adotando aqui novas normas
funcionais, como é o caso do Recolhimento de N. Sra. da Conceição da Divina Providência em
São Paulo (1774) e o Recolhimento de São Raimundo na Bahia (1775).

303
quanto à estrutura funcional, a sociedade, bem como as próprias mulheres, não
viam com o mesmo olhar o significado social, como ressalta Maria Rodrigues
que “[...] os Recolhimentos não eram Conventos nem escolas, situavam-se a
meio caminho desses dois modelos e serviam a vários propósitos no tocante à
vida das mulheres” (RODRIGUES, 2010, p. 131).
De fato, a clausura feminina nos recolhimentos era um elemento es-
sencial para a organização social e religiosa e, de certa forma, uma maneira
de dominação masculina sobre a mulher, pois, apesar de frisarmos o controle
masculino dentro de um espaço privado familiar, ocorria também no espaço da
Escolar, como explica Pierre Bourdieu que:

[...] o princípio de perpetuação dessa relação de dominação não reside verda-


deiramente, ou pelo menos principalmente, em um dos lugares mais visíveis
de seu exercício, isto é, dentro da unidade doméstica, sobre a qual um certo
discurso feminista concentrou todos os olhares, mas em instâncias como a
Escola ou o Estado [...]. (BOURDIEU, 2002, p. 9).

Isso nos dar a noção de que a vida no claustro transmitia, ou melhor,


representava a própria condição de mulher na colônia do que simplesmente
o ato de devotar. Elemento básico para tal segregação seria o esforço da ação
masculina resguardar a virtude e castidade das moças, para que chegassem ao
matrimônio com identidades de “Virgem Maria”, onde o perigo da desonra era
muito grande.
Outros elementos que, também, caberiam na função desses recolhi-
mentos, principalmente, nas casas de recolhimento, seriam amparar órfãos
pobres e mulheres desamparadas, ou órfãs abastardas que estavam sem uma
tutela familiar, mulheres agredidas e até aquelas que tinham comportamentos
sexuais fora dos padrões impostos pela sociedade, neste caso, transformando o
recolhimento em uma espécie de instituição de amparo social. É nesse sentido
que percebemos que nas casas de recolhimento a forma de educação transmiti-
da estava voltada mais para educá-las para o casamento do que, propriamente,
para a vida religiosa.
Vale ressaltar que as famílias de classe privilegiada economicamente na
Colônia percebiam que a representação social da época era que ser mulher reli-
giosa, voltada apenas para os dotes da Igreja, recebia certo reconhecimento pela
sociedade. Nesse caso, para as moças que procuravam prestígio na sociedade,

304
os conventos seria o melhor lugar, visto que, as casas de recolhimento era trazer
valores matrimoniais mais do que a própria devoção. Interessante que além da
pureza, que deveria ser mantida antes e depois da entrada nos Conventos, havia
pagamento de um dote para a permanência na instituição.
A criação da primeira casa de recolhimento, no Maranhão, deu-se gra-
ças ao padre jesuíta Gabriel Malagrida intercedendo ao rei D. José I por um
recolhimento na província. Em Março de 1751, o regente português lança o
Alvará de permissão para erigir no estado do Maranhão e Grão-Pará recolhi-
mentos para instruir moças convertidas e as não convertidas ao catolicismo.
Contudo, somente, após algumas desavenças entre a autoridade do Bispo Dom
Frei Francisco de Santiago e o jesuíta Gabriel Malagrida, em Junho de 1752, foi
lançada a pedra fundamental num terreno doado pela Câmara na província de
São Luís e no ano seguinte inaugura a construção do Recolhimento de Nossa
Senhora da Anunciação e Remédios.

Figura: Prédio construído para ser o Recolhimento de N. Sra. de Anunciação e Remé-


dios em 1870 e concluído em 1871. Acabou sendo uma instituição mista: Recolhimen-
to, Colégio e Asilo6. Fonte: RODRIGUES, 2010, p. 93.

6 A figura acima mostra o prédio onde funcionou o Recolhimento de N. Sra. de Anunciação e


Remédios. A partir de 1870, essa casa tornou-se mista, pois, passou a ser divida entre Recolhi-
mento, asilo e colégio. Cada um com seus estatutos próprios. O Estatuto do Colégio de 1872
definiu o primeiro andar como uso exclusivo dele. Para isso foram organizadas salas de aulas, um
refeitório para as educandas, três dormitórios com capacidade de acomodar até cem moças. No
andar de baixo ficou definido que seria o Recolhimento de N. Sra. de Anunciação e Remédios.
Quando o asilo extinguiu-se, as asiladas foram transferidas para o mesmo prédio ficando-as
também na parte térrea, só que separadas das Recolhidas.

305
No início da formação do Recolhimento de Nossa Senhora da Anun-
ciação e Remédios, finais do século XVIII, estava destinada à educação civil e,
principalmente, moral e religiosa às jovens da elite que viviam à margem do
poder masculino por não ter o direito de escolher qual papel social poderia
exercer na sociedade, ficando recolhidas para um futuro casamento. Essa insti-
tuição devido às mudanças de mentalidades da sociedade urbana e pós-expul-
são dos jesuítas, passou a ser regida, não mais apenas pelo aspecto religioso da
Ordem de Santa Mônica, mas também, pela presença forte do Estado. Não por
acaso, o regimento econômico e administrativo passou a seguir os Estatutos
organizados em 1840 ou chamados de Estatutos do Recolhimento7 de N. Sra.
da Anunciação e Remédios.
Dentro dessa instituição percebemos dois aspectos importantes. Pri-
meiro aspecto trata sobre a disciplina e a vigilância constante sobre as mulhe-
res. Isso são elementos imprescindíveis para proporcionar a jovem uma boa
educação, reputação moral e religiosa, e que pudessem atingir seus papéis de
esposas e mães. Segundo aspecto importante é a distinção social que havia en-
tre as educandas.
Segundo o Estatuto de N. Sra. da Anunciação e Remédios, as moças
de classe pobre eram aceitas no Recolhimento a partir dos sete anos de idade
e ficariam até os vinte e um anos de idade, que durante esse período seriam
sustentadas pelas rendas do Recolhimento. Já as de famílias abastadas, além do
prolongamento da idade, onde muitas delas ficavam até o dia do casamento, as
suas despesas ficavam por conta dos pais ou responsáveis.
Outros dois elementos de diferenciação social estavam no vestuário e
nos métodos e formas de educação dentro do estabelecimento. No que se refe-
rem aos trajes como forma de identificação de classe social, as educandas po-
bres, obrigatoriamente, tinham de usar roupas longas de cor preta, significando
que ali dentro do Recolhimento estavam sob o estado de pureza espiritual e a
cor da roupa significava também que eram sustentadas pela instituição. Já as
educandas de famílias ricas o uso da roupa de cor preta não era obrigatório,
porém deveriam usar vestidos de cor escura e não usar qualquer tipo de joias
7 Segundo a autora Nizza da Silva, todo os recolhimentos pós-expulsão dos jesuítas passaram a
ter um Estatuto. Temos, por exemplo, o Estatuto do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória e
os Estatutos do Seminário Episcopal de Nossa Senhora das Graças da cidade de Olinda. Afirma
Nizza da Silva que “as meninas eram, portanto, educadas num ambiente de clausura, de fecha-
mento numa pequena sociedade de pessoas do seu sexo” (1981, p. 72). Para compreender outros
recolhimentos e seus estatutos é importante. Ver: SILVA, 1981, pp. 68-81.

306
no corpo.
Sobre os métodos e formas de educação ensinadas dentro do Recolhi-
mento de N. Sra. de Anunciação e Remédios as diferenciações também eram
percebidas quanto aos objetivos da moça na instituição. De acordo com o Es-
tatuto do Recolhimento de 1840, “[...] A educação recebida no estabelecimento
constava das lições de primeiras letras e das prendas domésticas. Uma mestra
ensinava a ler, escrever, as quatro operações aritméticas e a doutrina cristã, e
a outra mestra ensinava a coser e bordar” (ESTATUTO DO RECOLHIMEN-
TO, 1840, p. 248 apud ABRANTES, 2014, p. 147). Os métodos de ensino eram
proporcionados na mesma perspectiva para as educandas pobres e abastadas. É
crucial sabermos que mesmo o Estatuto deixando explícito sobre o que deveria
ser ensinado dentro do Recolhimento, a utilização dos conhecimentos aprendi-
dos nas aulas diferenciavam-se de acordo com o objetivo de cada moça.
O objetivo de cada educanda estava atrelado à sua condição social ou
matrimonial. Segundo a autora Abrantes (2014), o próprio Estatuto deixava
normas sobre como cada moça deveria utilizar seus conhecimentos para a ins-
tituição ou para benefício próprio.

As educandas pobres deveriam utilizar os conhecimentos obtidos nas aulas de


prendas domésticas para realizar alguma “obra proveitosa” para a instituição.
Enquanto isso, o tempo livre das educandas ricas era ocupado segundo “o cos-
tume observado nas casas de ensino”. (ESTATUTO DO RECOLHIMENTO,
1840, p. 246 apud ABRANTES, 2014, p. 148).

A supracitação não nos deixa dúvidas quanto os mesmos ensinos


para todas as educandas, mas, que na divisão do trabalho, dependendo da
finalidade de estarem ali dentro do recinto ou da classe social, o Recolhimento
fazia uma distinção entre elas. Por exemplo, na divisão de tarefas, as educandas
pobres aprendiam a costurar, bordar, fazer flores artificiais para o exercício de
um futuro trabalho que pudesse trazer certo ganho financeiro para despesas
próprias ou para aumentar a renda do futuro marido. No caso dessas moças
pobres, também caberia o ensino das tarefas domésticas para saber fazer as
coisas do lar, como cozinhar, cuidar bem dos filhos, arrumar a casa e cuidar do
marido, principalmente de sua roupa e como deveria se vestir.
As viúvas já tinham tratamento diferente. Como a maioria das viúvas já
vinha de experiências de cuidar do lar, a preocupação da instituição estava em

307
proporcionar o mais rápido possível um novo casamento para elas. Havia pre-
conceito para com as mulheres viúvas por parte da sociedade. O preconceito às
viúvas ficava menos aparente quando elas vinham de um casamento rico. Neste
caso, formava-se uma nova comunhão matrimonial alicerçada em interesses e
conveniência.
No caso das educandas abastadas, o Recolhimento não se preocupava
em ensiná-las as tarefas domésticas, a bordar e costurar, como futuro meio de
sobrevivência, visto que, ao chegar o tempo de casarem, a família dela e a do
rapaz já havia ajustados acordos entre seus pares. Isso nos faz compreender
que a educanda poderia ser pobre, de família privilegiada ou órfã, o que mais
interessava no final era a possibilidade de conseguir um marido que pudesse
sustentá-la, como ressalta ainda Abrantes que “[...] o casamento era visto como
a única carreira destinada às mulheres, sejam ricas ou pobres” (2014, p. 148).
Por mais que estas Casas de Recolhimento pudessem oferecer certo
grau de instrução educacional para o sexo feminino, como ensinar a ler, escre-
ver, incentivando para entrar no campo da escrita, e fazer operações básicas/
avançadas, o que percebemos de fato é que estas instituições privilegiavam,
muito mais, as doutrinas cristãs, o ensino do cozer e bordar, e a guarda virginal
para o casamento. Este descaso das brasileiras, longe do círculo do verdadei-
ro espírito educacional, que edifica o ser humano e reprimi as mulheres por
querer estarem dentro da mesma sociabilidade que os homens, é ressaltado
por José Cândido, que ao fazer uma biografia de Bisilia Gozyafliri (1209-1261),
educadora de respeito na Bolonha, Itália, faz uma reflexão e crítica sobre a edu-
cação feminina no Brasil do século XIX: “não podemos deixar de refletir no
pouco caso que se faz no Brasil da educação, e ensino das meninas” (FAROL
MARANHENSE, nº 95, 1829, p. 412). E continua seu discurso com belas pala-
vras vistas de forma audaciosa para sua época:

[...] Hum certo freio de decencia reprime a grosseira e soltura natural do sexo
varoail, e habitua a esse tom de polidez, que caracterisa as sociedades cultas.
Pelo lado politico, dificilmente se avaliará até que ponto poderião as Sñr.as
influir, utilmente, na opinião entre nós, se caso, recebessem huma educação
mais disvellada. [...] Os costumes ganharião muito com huma favoravel revo-
lução na educação das Sñr.as, visto que, o seu imperio seria mais forte, e mais
puro. [...] Em uma palavra, - nós não podemos aspirar ao titulo do povô culto
e civilisado em quanto a mais bella metade da espécie humana for conservada

308
na ignorancia, e no idiotismo, em quanto passar em proverbio acreditado que
á mulher basta a sciência de arrumar bem hum bahú. Engañao-se os que ima-
giñao que cumprirão melhor com os seus deveres domesticos aquellas, que
forem destituídas de todo o gênero de instrucção: a experiência nos mostra
todos os dias o contrario; e pelo raciocínio facilmente o poderíamos demons-
trar. Não dizemos que as mulheres se tornem Doutoras, que se lhes procure
da uma erudição recondita: não lhe está a especie de educação, que o seu sexo
requer; mas entre a ignorancia, e o saber profundo ha hum meio termo, que
serve para melhorar o coração, para ornar a carreira da vida e para preencher
mais racionalmente a tarefa de qualquer encargo, ou dever. (FAROL MARA-
NHENSE, nº 95, 1829, p. 413). (Grifos do Jornal).

José Cândido faz uma crítica no Jornal reprovando as atitudes dos pais,
principalmente a figura paterna, de não aceitarem que suas filhas pudessem ter
o prazer de aprender a ler e escrever, fazendo com que as moças crescessem
insuficientes de uma instrução educacional capaz de mediar uma conversa in-
telectual, pois a sociedade masculina reduzia a mulher apenas para a educação
do “cozer e coser”. Criticou, ainda, Cândido arduamente os maridos de não
aceitarem suas esposas nas rodas de conversações, como ressaltou que “nada
há mais infeliz do que encarar-nos com a companheira dos nossos dias como
encaramos com uma ignorante, sem podermos comunicar-lhe os pensamen-
tos, [...] diminuindo-lhe em parte a sua felicidade”. (FAROL MARANHENSE,
nº 35, 1828, p. 167).

Considerações finais

Percebemos, por meio deste estudo, que todo o conservadorismo co-


lonial sobre as mulheres sendo enraizado para o Brasil imperial com a mes-
ma mentalidade, mudando apenas as instituições de poder e aderindo outras,
com os mesmo discursos, só que escritos e falados de maneiras (re)significadas.
Como foi, no caso, a atuação de instrução de ensino para as educandas nas
instituições chamadas de casas de recolhimento que se processou toda a repre-
sentação e imagem de um pensamento conservador.
A educação é a arma viva para quem deseja romper com a guilhoti-
na da opressão. Como as mulheres maranhenses não possuíam tal ferramenta,
mais distante era sua aceitação na sociedade. O sexo feminino sem acesso à

309
educação, não dispunham de meios para se emancipar, sem oportunidades de
trabalhos, sem direito ao sufrágio, nem mesmo à cidadania. Estavam presas
em um círculo vicioso, pois,“[...] como lhes faltava o poder político, não tinha
acesso à educação, e sem educação jamais teriam poder político” (FLORESTA,
1989 apud COSTA, 2007, p. 496).
A visão de criar uma instituição baseava muito mais na questão da fra-
gilidade do sexo feminino de natureza pecaminosa, e que, por isso, precisa-
va de mais cuidados que o necessário, ajudando-as com princípios sólidos de
moral e religião, visto que, a prostituição e a lascividade era frequente entre as
mulheres, principalmente, aquelas de classe subalterna. Críticas fortes foram
feitas a esse modelo de regulamento. Os jornais da época afirmavam, em seus
discursos, que as chamadas “casas das educandas” resolvia um problema, mas
acabava criando outros problemas sociais.
Ao educar a moça apenas no intuito de guardá-las pura e virginal para
o matrimônio, sem que fossem ensinadas um ofício digno de sobrevivência, e
não apenas o ensino de cozer ou trabalhar com flores, preparando-as unica-
mente para o marido, “que fazia do casamento a única carreira disponível para
as mulheres, sendo uma forma de proteger e estimular a ociosidade feminina”
(ABRANTES, 2014, pp. 151-152), quando chegasse o limite máximo da idade
permitida dentro destas instituições, saiam sem ter nenhum meio de trabalho,
tendo, muitas vezes, que recorrer à prostituição.
Para as educandas pobres ficavam ainda mais complicado, pois, como
tinha dito anteriormente, as moças abastadas antes mesmo de desses recintos
de recolhimentos, os pais já haviam arrumado um noivo, ainda que por contra-
to de dotes ou por conveniência, e no caso das pobres, o casamento para elas
era um subterfúgio, ou como ressalta Abrantes “uma espécie de prostituição
legal” (2014, p. 152), na qual ao se verem diante de uma sociedade masculina,
que excluía a mulher de qualquer espaço público de trabalho, vender seu corpo
para um único homem por toda sua vida, numa forma de celebração de con-
trato matrimonial, se tornava a solução mais viável. Esse planejamento cons-
cientizador ineficiente sobre a mulher causava “não só a leviandade como a
desumanidade com que eram despresadas tantas meninas, até ali educadas pela
província, e, assim entregues a inevitavel desgraça” (MARQUES, 1870, p. 37).
Sem o domínio das letras, além de estarem excluídas dos espaços polí-
ticos, as dificuldades que as mulheres do século enfrentaram para se firmarem

310
enquanto sexo forte na sociedade, devido a ignorância que assolavam suas vi-
das, fez com que muitas não tivessem instrução e sem esta não estavam aptas
a participarem da vida pública e, consequentemente, não recebiam instrução
porque não participava dela, afirma Telles (2008, 406). Nesse viés, ficavam ei-
vadas de produzir quaisquer discursos nos jornais.

Referências
Fontes referenciais
ABRANCHES, Dunshee de. O cativeiro. 2 ed. São Luís: ALUMAR, 1992.
ABRANTES, Elizabeth Sousa. A educação do “Bello sexo” em São Luís na se-
gunda metade do século XIX / Elizabeth Sousa Abrantes. – São Luís: Editora
UEMA, 2014;
ANDRADE, Antonio Sousa Banha de. A reforma pombalina dos estudos Secun-
dários no Brasil. – São Paulo: Saraiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1978.
BOURDIEU, Pierre. Dominação masculina / Pierre Bourdieu. Trad. Maria
Helena Kuhner. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos /
Emília Viotti da Costa. 8 ed. rev. e ampliada. São Paulo: Fundação Editora
UNESP, 2007.
FLORESTA, Nísia. Direito das mulheres e injustiça dos homens. São Paulo: Cor-
tez, 1989.
LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon. Tomo II, vol. 2: apontamentos, no-
tícias e observações para servirem à história do Maranhão. Rio de Janeiro:
Alhambra, 1990.
MEIRELES, Mário Martins. História do Maranhão. Imperatriz: Ética, 2008.
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tamentos, notícias e observações para servirem à história do Maranhão. In:
BITENCOURT, João Francisco;
GALVES, Marcelo Cheche (orgs.). Historiografia Maranhense: dez ensaios so-
bre historiadores e seus tempos / João Francisco Bitencourt; Marcelo Cheche
Galves. – São Luís: Café & Lápis; Editora UEMA, 2014.
PERROT, Michel. Minha história das mulheres. Tradução Ângela M. S. Côrrea.

311
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RODRIGUES, Maria José Lobato. EDUCAÇÃO FEMININA NO RECOLHI-
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versidade Federal do Maranhão. São Luís. Disponível em: http://www.tedebc.
ufma.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=573. Acesso em: 03/05/2015.
SILVA, Maria Beatriz Nizza. Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808 –
1821). São Paulo / Brasília, Ed. Nacional / INL, 1977.
_________. Cultura no Brasil colônia / Maria Beatriz Nizza Silva. – Petrópoles:
Vozes, 1981.
TELLES, Norma. Escritoras, Escritas, Escrituras. In: BASSANEZI, Carla
(coord. de textos). História das Mulheres no Brasil / Mary Del Priore; Carla
Bassanezi. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2008.
Fontes primárias
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ÇÃO E REMÉDIOS, 1840. In: ABRANTES, Elizabeth Sousa. A educação do
“Bello sexo” em São Luís na segunda metade do século XIX / Elizabeth Sousa
Abrantes. – São Luís: Editora UEMA, 2014;
JORNAL FAROL MARANHENSE. Nº 35, São Luiz (Maranhão). 30 de Mayo de
1828. In: Acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
JORNAL FAROL MARANHENSE. Nº 95, São Luiz (Maranhão). 5 de Junho de
1829. In: Acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
MARQUES, Cezar Augusto. Diccionario Historico-geografico da Provincia do
Maranhão. Typografhia do Frias, 1870. In: Acervo Digital da Biblioteca Digital
Benedito Leite – BPBL.

312
Distrito industrial de Manaus: a
construção da luta operária feminina na
década de 80

Vanessa Cristina da Silva Sampaio


Mestranda no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Fe-
deral do Amazonas – UFAM. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior - CAPES .

Introdução
O cenário dessas lutas femininas ocorrem no Distrito Industrial de Ma-
naus, numa conjuntura de intensa luta e mobilização do movimento operário
brasileiro, principalmente na década de 1980, onde as formas de resistência se
faziam emergentes. No caso especificamente do Amazonas, o movimento ope-
rário industrial acompanhou o processo de mudanças no qual o Brasil estava
vivenciando e foi se consolidando paulatinamente. Neste período, a questão do
feminismo em âmbito nacional, encontram bases sólidas, e trazem à tona refle-
xões acerca do conceito de gênero, divisão sexual do trabalho e ação política.
Para entender estas transformações, é preciso compreender primeira-
mente, que a luta do movimento operário está em paralelo com a luta feminista,
por que se aproxima quanto as questões de demanda de direitos, participação
sócio-política e reconhecimento. Neste artigo se abordará questões que envol-
vem as vivências cotidianas das operárias industriais, alinhadas ao processo de
organização e amadurecimento da classe operária amazonense, que colocam
313
em pauta reivindicações quanto a inserção das mulheres na luta política, que se
opõem ao disciplinamento, arbitrariedade e desvalorização.

As lutas femininas no Distrito Industrial de Manaus


Influenciados por essa onda grevista nacional, os trabalhadores do Dis-
trito Industrial de Manaus a partir de 1984, com a tomada do Sindicato dos
Metalúrgicos das mãos dos pelegos, sob a liderança de Ricardo Moraes, que
através de mobilização, resistência e organização integrada, puderam dar início
a uma série de greves, que tiveram como ponto de partida o ano de 1985. Nas
palavras de Santiago (2010, p.71),“Os metalúrgicos de Manaus em 1985 prota-
gonizaram uma das mais importantes reações à superexploração do trabalho
na Zona Franca de Manaus”.
A formação de uma consciência de classe operária neste momento era
preponderante, e nesta conjuntura, o papel da mulher foi essencial, segundo
Pinheiro (2014, p.153), “elas tiveram participação destacada tanto como víti-
mas, como participantes atuantes nas greves e ações de resistência à exploração,
na apresentação de reivindicações e no confronto”. Estas observações se asse-
melham com o pensamento de Perrot (2005, p.163) quando destaque que “ as
mulheres participaram das greves na esperança republicana da década de 1980.
Parece que elas viviam obscuramente, na espera de uma libertação”.
A inserção das mulheres no processo de trabalho fabril em Manaus
deve ser pensada em duas perspectivas: a primeira levando em consideração a
questão econômica, como ressalta Torres (2005, p.153), “por que elas revelam
que precisam trabalhar para deixar se ser um peso as suas famílias e por que
queriam ser independentes financeiramente”. O segundo aspecto diz a respeito
à própria modificação do comportamento e dos valores femininos, ligado dire-
tamente aos padrões estabelecidos socialmente.
Considerando esses pontos, foi no trabalho industrial que essas mu-
lheres viram a possibilidade de melhores condições de vida e de trabalho. Em
sua maioria jovens, muitas delas vinhas do interior do Estado do Amazonas, e
rapidamente foram absorvidas como mão de obra barata e facilmente disponí-
vel. De acordo com Scherer (2005, p.67), “no início da ZFM, a particularidade
do processo de trabalho exigia jovens, com idade entre 16 a 25 anos, sobretudo
do sexo feminino”. Nesse pressuposto, o trabalho feminino era preferível por
que exigia mais habilidade manual e também por que a remuneração era bem

314
inferior aos dos homens.
Outro ponto a ser destacado é que essas jovens mulheres não tinham
ainda qualquer experiência laboral, segundo Torres (2005, p.173) “ elas eram
recrutadas pelo capital no meio rural em função do seu comportamento conti-
do e submisso” que era favorável a um controle maior de suas ações. Já inseridas
no processo de produção, as mulheres se concentravam geralmente nas linhas
de montagem, onde o ritmo de trabalho era monitorado de perto, as cobranças
eram maiores e as jornadas de trabalho extremamente exaustivas.
No Distrito Industrial de Manaus era muito comum casos de violência
moral e psíquica contra as mulheres, exercidas de forma arbitraria e tirânica.
Um exemplo disso era o simples fato de ir ao banheiro, ainda conforme Torres
(2005, p.174) “a operaria recebia uma ficha depois de muita insistência, entrava
numa fila, esperando chegar a substituta, e saia carregando uma grande tabu-
leta no peito escrito ‘banheiro’ ” para ser ridicularizada. Isto não eram casos
isolados e faziam parte do cotidiano dessas operárias.
A operária Valdiza Ferreira, que trabalhou na empresa Sony da Ama-
zônia nesse período, relata que “no início era 1 hora de almoço, e depois com
a desculpa de sair mais cedo, foi reduzido para 45 minutos. Era tudo muito rá-
pido, dava mal tempo de almoçar e correr para a linha, principalmente quando
tinha material para entregar”. Fica evidente o controle e a disciplina, e isso nos
remete ao conceito de “uso-econômico-do-tempo” de Thompson (1998, p.176)
que nos permite compreender mecanismo de condicionamento imposto pelas
empresas.
Quanto as humilhações, por serem ainda muito jovens, muitas mulhe-
res eram assediadas, havia de acordo com Ribeiro (1987, p.187), “uma divul-
gação de concepção que caracteriza a operaria cabocla como “liberada sexual-
mente” e que segundo Torres, eram frequentemente rotuladas como prostitutas
pelas chefias. A empresa se tornou um espaço de ofensas, discriminações e
manipulação dos corpos femininos, neste sentido, havia inclusive um progra-
ma de natalidade para evitar que essas operárias ficassem grávidas, por que
seria um “prejuízo” para a empresa manter está gestante, o objetivo segundo
a perspectiva de Ribeiro (1987, p.289), era “eliminar atrasos, faltas e licenças
que prejudicassem a produção, como também conter o aumento excessivo do
exército de reserva’.
O desrespeito se iniciava ainda no processo de seleção, tanto pelos inú-
meros questionamentos pessoais, no intuito de investigar a vida dessas mulhe-

315
res, quanto pela obrigatoriedade da apresentação do plano-teste para compro-
var que não estavam grávidas. No tocante a essas questões, houve muitos casos
de abortos e denúncias de empresas que induziam as operarias a realizar este
procedimento. Essa pauta foi amplamente discutida e denunciada nos jornais
de grande circulação na época.
Em denúncia, ao Jornal A Crítica do dia 09 de Fevereiro de 1986, Ricar-
do Moraes, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, revelou que “através de
denúncias das operárias, as indústrias adotam medidas que levam as mulheres
a optar pelo aborto, visto que muitas mulheres foram demitidas ou tomaram
advertência por estarem grávidas”, além disso, os próprios médicos das em-
presas indicavam o aborto. Ricardo Moraes ainda ressalta que, “a distribuição
de anticoncepcionais a todas as mulheres dentro da fábrica é um indicio que
a ordem é que não se tenham gestantes no quadro de empregados”, segundo
entrevista ao jornal.
A tentativa de implantação do Projeto Barthfinder, era um exemplo
claro deste despeito a natureza da mulher. O projeto em linhas gerais tinha
como objetivo esterilizar as operarias do Distrito Industrial de Manaus, em um
prazo de 12 meses a contar de Julho de 1986, que inicialmente visava atingir
2.400 famílias. “O projeto pretendia desenvolver as seguintes ações: doação de
60% de anticoncepcionais orais, 20% de aplicação de DIU, 10% de laqueaduras
e 10% de outros métodos”, conforme dados do jornal.
Essas condutas adotadas pelas empresas, apenas para citar algumas, fo-
ram o ponto de partida para que as operárias puderem se unir e organizar-se
na luta contra a desvalorização, cooptação e iniciar um movimento de contra-
cultura dentro das empresas. Para Torres (2005, p.185), “os processos de reo-
rientação socioeducativa das operárias se fizeram acompanhar por uma matriz
de revolta, sobretudo quando elas descobriram que a sua força de trabalho era
explorada e usada em benefício do capital internacional”. Após a primeira greve
geral em 1985, onde as operarias estiveram papel destacado, Ricardo Moraes
salienta que “no geral, as mulheres eram âncoras das greves, arregaçavam as
mangas nos piquetes e nos grandes confrontos”, conforme sua fala aos jornais
locais.
Estas questões passaram a ser debatidas no primeiro Encontro da
Mulher Operária de Manaus em 1986, onde um comitê feminino formado por
trabalhadoras do Distrito se reuniram no Dia Internacional da Mulher. Os te-
mas discutidos como ressalta Torres (2005, p.203), foram “mercado de traba-

316
lho, a discriminação profissional e sexual, direito a creche, salários idênticos
para as mesmas funções, discriminação do aborto e outras questões”. As mu-
lheres estavam centradas na necessidade de maior participação sócio política,
que nos anos 80, ainda era um entrave na busca dessas conquistas.
Durante 1985 à 1987, o Distrito Industrial viveu um intenso período
de greves, onde as mulheres tiveram grande destaque, conforme noticiado pelo
jornal A Critica do dia 09 de Março de 1986, onde “a maioria dessas greves
eram lideradas por mulheres, tinham homens, mas a liderança maior era das
mulheres. Elas garantiram a presença de todas as pessoas durante os três anos
das grandes greves”. Nessas mobilizações era fundamental a atuação dos co-
mando de fabricas, por que eram elas que se articulavam junto aos trabalha-
dores dentro das empresas, e se reuniam posteriormente com a diretoria do
sindicato para definir as estratégias no decorrer das greves.
A sincronização entre os comandos de greves, liderados em sua maioria
por mulheres e o Sindicato dos Metalúrgicos, foi o que deu fortalecimento ao
movimento operário amazonense, integrou lutas antigas e recentes e orientou
as formas de organização no chão da fabricas. Reinvindicações que poderiam
passar despercebido ou ser ignoradas, se tornou pauta das lutas femininas, a
mulher operaria interiorana assumiu o seu protagonismo e foi à luta, e como
salienta Perrot (2005, p.159) cada vez mais “as mulheres mostram-se inquietas
e legalista”.

Considerações Finais
Ao longo deste estudo, observamos o crescimento e reconstrução da
imagem da mulher operária do Distrito Industrial de Manaus e suas múltiplas
facetas, que associado a questão do gênero e das lutas feministas, reconhecem
a contribuição destas mulheres na luta contra a opressão, assédio, que na épo-
ca ainda era um tabu e que muitas vezes era negligenciado e todas as formas
violência moral e psicológica. A medida que essas práticas se tornavam mais
evidente, mais urgente se fazia a necessidade de combate-las, ainda que fossem
carregadas de preconceitos, ambiguidades e conflitos.
A pauta principal era direito de igualdade, reconhecimento e ter voz e
espaço em ambientes predominantemente masculino, o caminho trilhado por
estas mulheres naquele momento, permitiu que muitas daquelas praticas desa-
parecessem, no entanto, não se deve esquecer que para isto, alguém tinha que

317
dar o primeiro passo, sobretudo em uma época de restruturação e transforma-
ções em diversos setores da sociedade. Ademais, é preciso destacar que apesar
dos percalços, as mulheres operárias industriais não se intimidaram, mesmo
em um ambiente totalmente desfavorável e hostil.

Referências
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Ribeiro. Bauru, SP, EDUSC, 2005.

PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Gênero & Imprensa na História do Amazonas.


Manaus: EDUA, 2014.

RIBEIRO, Marlene. De Seringueiro à Agricultor/pescador à Operário Metalúrgico:


Um estudo sobre o processo de expropriação/proletarização/organização dos
trabalhadores amazonenses. Dissertação de Mestrado em Educação apresentada
à Universidade Federal de Minas Gerais, 1987.

SANTIAGO, Maria Célia. Clandestinidade e Mobilização nas Linhas de


Montagem: A construção da greve dos metalúrgicos de 1985 em Manaus.
Dissertação de Mestrado em História apresentada à Universidade Federal do
Amazonas, 2010.

SCHERER, Elenise. Baixas nas carteiras: desemprego e trabalho precário na


Zona Franca de Manaus: EDUA, 2005.

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tradicional. Revisao técnica: Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes.
Companhia das Letras, 1998.

TORRES, Iraildes Caldas. As Novas Amazônidas. Manaus: Editora da Univeri-


sidade Federal do Amazonas, 2005.

Fontes primárias

Jornal A Crítica, Manaus. (1986)

Entrevista com Valdiza Ferreira da Silva, realizada em 08 de Maio de 2019.


(Operária do Distrito Industrial no período estudado)

318
Um palavreado inicial: no rastro da
crônica, possibilidades de se historicizar

Jakson dos Santos Ribeiro


Professor Adjunto da Universidade Estadual do Maranhão. Doutor em
História pela Universidade Federal do Pará –UFPA; Mestre em História
pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

A chronica, que é uma palavra derivada do Latim, tem como significa-


do a construção de um relato, relatos esses que são gestados no fazer do coti-
diano, ou seja, fatos, acontecimentos do cotidiano, e que aparecem na estrutura
da crônica em uma ordem predeterminada.
Nessa ótica, tendo o cotidiano como um terreno privilegiado para su-
prir sua existência, a crônica consegue sobreviver na mesma esfera que se en-
contra o jornalismo e a literatura, garantindo-lhe ser expressiva dentro da sua
intencionalidade para com o seu público, como também ter um bom desem-
penho textual.
No entanto, apesar de suas vantagens, a crônica deve comportar-se
diante de suas limitações, pois, o espaço que proporciona articulação com o
seu público, existe todo um conjunto de regras normativas, que apontam como
esta deve ser, nesse caso, dentro da estrutura do jornal.
Nesse jogo, o jornal como um veículo de informação e que segue pers-

319
pectivas ideológicas, obriga o cronista, ao propor suas intencionalidades para
com a crônica, estruturá-la de forma sucinta, com uma economia de palavras,
mas que nunca deixe de lado sua riqueza de detalhes e intenções.
Ao olhar para crônica poderia percebê-la como um gênero comum e
com grau de relevância menor. E poderia concebê-la assim, com este olhar me-
nor, porém, se acompanharmos com mais afinco os diálogos que a história já
vem constituindo nos últimos tempos, podemos apontar que o chamado giro
linguístico, entre outras mudanças, possibilitou transformações dentro do ter-
reno da história.1 Desse modo, notamos que as possibilidades de historicizar,
de fazer história, foram fomentadas com outras abordagens, variando os mo-
dos de fazer, e imbuindo-se de metodologias, para conseguir realizar o ato da
historicização.
Pensando por esta perspectiva, Sandra J. Pesavento nos aponta quais
as possibilidades que a crônica proporciona para história e para o seu artesão.

A crônica é uma narrativa por excelência apropriada para o estudo do imagi-


nário de uma época, entendendo nesta designação não só o sistema de ideias
e imagens que toda comunidade constrói para si, mas, também, um conjunto
de significados de que esta representação coletiva é portadora (PESAVENTO,
1997: 34).

Assim, problematizamos a crônica como sendo um gênero literário


que consegue encontrar um lugar no espaço do jornal, e faz uma conexão de
diálogos com as vidas das pessoas na cidade, como também, constitui uma
ponte de compreensão sobre a vida dessas, além de propiciar entendimento
sobre quem as compõem.
Desse modo, no primeiro momento do trabalho, o olhar inicial da
pesquisa será perceber como os artesãos de Clio se comportam ao trabalha-

1 A renovação da historiografia contemporânea, da cultura histórica, em geral, vêm ocorrendo


num quadro de decadência do moderno racionalismo europeu. Significa isso a rejeição do de-
terminismo, de todas as pretensões à objetividade e à busca da verdade, de quaisquer tentativas
de usar “leis gerais” da evolução histórica. Ao longo do século 20, o mundo mudou numa velo-
cidade nunca vista e o progresso científico desempenhou o papel, principalmente, nesse desen-
volvimento. Tais mudanças, no entanto, adquiriram status de ciência nova, pois que esta última
foi instalada num pedestal dentro de um sistema de valores sociais, mas, ao final do século, suas
bases passaram a ser questionadas. Por outro lado, o pós-modernismo iconoclasta abre caminho
para novas abordagens cognitivas. Em todas as disciplinas, a ênfase passa das leis e regras para os
eventos únicos, as individualidades, os acasos. Ao mesmo tempo, novas formas de generalização
estão sendo procuradas (REPINA, 2007: 3).

320
rem com as crônicas em suas produções. Este exercício é realizado objetivando
constituir uma base teórica e metodológica fortalecida, para que se possam
criar diálogos frutíferos da história e o historiador, quando estes fazem o uso
da crônica. Para Chalhoub,

[...] a proposta é historicizar a obra literária – seja ela conto, crônica, poesia
ou romance, inseri-la no movimento da sociedade, investigar as suas redes
de interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação à
sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a
realidade social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo.2

Assim, sobre esse prisma de buscar compreender como os historiado-


res se comportam diante da crônica e da própria utilização desta nas produções
do campo historiográfico, nos tornamos tributários das concepções de Bakh-
tin em relação aos gêneros discursivos, como também da própria linguagem
para compreensão da constituição sócio-histórica que pode emergir a partir
da interação do sujeito no processo de tessitura, de composição da crônica, e
principalmente, a partir do olhar do cronista.

Neste sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos


similares são o léxico que costuma vincular o texto literário ao que há de co-
letivo e social para aquém e para além de suas páginas. Aliás, a escolha de um
ou de outro termo já implica não só menor ou maior grau do entrelaçamento
postulado entre literatura e história, como também e, sobretudo o modo como
se postula tal entrelaçamento.3

Nesse caso, a orientação das palavras deve ter uma função significativa
para o interlocutor, um significado expressivo, pois a realidade é composta de
palavras, que possuem sentido dúbio, e por que incrementa em suas bases a
representação do fato em que procede, o fato do qual essa palavra se dirige.
Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda
palavra serve de expressão a um em relação ao outro (BAKHTIN, 2006: 115).
A palavra é revestida de poder, pois é constituída de um produto origi-
nado da interação entre o locutor e o ouvinte. Nessa ótica, o discurso literário,
retórico, filosófico, e o das ciências humanas, torna-se o reino das “opiniões”,
2 CHALHOUB 1998, p. 7.
3 Mallard et. al., 1995: 21.

321
das opiniões notórias, e mesmo nessas opiniões, não é tanto o “quê”, mas o
“como”, individual ou típico da opinião em causa que ocupa o primeiro plano
(BAKHTIN, 2006, p. 200).
Notamos, assim, que é por meio da palavra que é definida a ponte entre
quem fala e quem ouve, entre o “eu” e o “outro”. Por isso que a palavra se tor-
na, nesse processo, o território comum do interlocutor e o locutor. “Através da
palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à
coletividade” (BAKHTIN, 2006, p. 115).
Nesse curso, podemos arrolar aqui que a atividade mental é centrada
no desenvolvimento do cotidiano através da ideologia. A palavra é envolvida de
um poder ideológico, ela constitui como propósito falar dos gestos e acompa-
nhar os atos. “Considerando a natureza sociológica da estrutura da expressão e
da atividade mental, podemos dizer que a ideologia do cotidiano corresponde,
no essencial, àquilo que se designa, na literatura marxista, sob o nome de “psi-
cologia social” (BAKHTIN,2006: 121).
Assim, dentro dessas possibilidades, outro aspecto, ou melhor, outro
sujeito que se torna interessante a ser estudado e ganha um grau de relevância
na mesma intensidade que a crônica é o próprio cronista, pois ele é a fonte e
ponte ao vivido, ao narrado na crônica, que pode tratar o assunto em um tom
ficcionalizado ou não.

Deve considerar paralelamente que ‘o mundo do leitor’ é sempre aquele da


‘comunidade de interpretação’ (segundo a expressão de Stanley Fish) à qual ele
pertence e que é definida por um mesmo conjunto de competências, de nor-
mas, de usos e de interesses. O porquê da necessidade de uma dupla atenção:
à materialidade dos textos, à corporalidade dos leitores.4

Este sujeito, no caso, o cronista, pode ser comparado ao próprio flanêur


benjaminiano, que observa a cidade, que descreve os comportamentos e vê o
movimento dessa urbe, como também às próprias singularidades tecidas no
desenrolar do cotidiano. É um sujeito de relevância para caminharmos por vias
de compreensão da crônica em relação ao cotidiano e a própria memória da
cidade. Sob este prisma, Jean Rolin Jeudy nos aponta:

O autor parece fundir-se em um tecido urbano que permaneceria inextricável

4 (CHARTIER, 2002, p. 255, 257).

322
se ele não desse nomes que, de uma maneira encantatória, evocam cidades
conhecidas. O movimento de sua descrição, ao ritmo de sua observação deta-
lhada, permite ir-se representando no pensamento do leitor toda a vida coti-
diana em sua realidade imediata. (...) Cada situação surge e depois desaparece,
cada visão da cidade delineia-se de acordo com uma realidade que advém, que
marca, que capta e que se esvai em seguida dentro da noite dos tempos. (...) É
a partir de um jogo da contingência e da determinação que o escritor cria as
condições de expectativa de seu olhar. Essa disposição torna possível a singu-
laridade da emergência dos acontecimentos mais banais.5

Com essa perspectiva, o cronista torna-se um sujeito privilegiado den-


tro da ótica citadina, pois tem a possibilidade de trazer a cidade de maneiras
diversas, como também o próprio movimento que embala o ritmo do fazer do
cotidiano dessa cidade. Além de trazer à tona a vida urbana por um ângulo, em
que as lentes estão mais focadas, mais concentradas nesse cotidiano.

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha),
nos pressiona dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia,
pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificul-
dade de viver, ou viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este
desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior.
É do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em reti-
rada, às vezes velada. 6

Nessa relação, podemos perceber que existe entre o cronista e a cidade


uma relação de alma e corpo, na qual a ação do cronista, momento em que
realiza a tessitura de uma crônica sobre a cidade, está produzindo a própria
memória dessa cidade.

Sem ser tão despretensiosa e ligeira quanto supõe parte da crítica, a crônica
não se presta também a definições gerais que tentem, de uma tacada, englobar
todos os seus sentidos e características, como se fosse possível chegar a sua
suposta essência. Se a própria delimitação dos diversos gêneros literários se
mostra frágil e incerta, qualquer definição abstrata de crônica terá sempre,
como limite, a concretude de cada um desses pequenos artigos. Escritas em
verso ou prosa, ligadas à verdade ou ao sonho, têm em comum o tipo de rela-

5 (JEUDY, s.d, pp. 90-91).


6 (CERTEAU, 2009:31.)

323
ção que estabelecem com a indeterminação da história. 7

Seguindo esse prisma, o cronista sob a ótica das suas lentes de observa-
ção, nos possibilita perceber imagens da urbe, tempos, momentos, vidas, gestos
e sentidos que compõem a vida de uma cidade. Podemos encarar o cronista
também como sujeito-historiador que no ato de olhar para cidade, consegue
nesse giro do olhar perceber ainda, a alma da cidade em meio ao movimento
do tecido urbano.

Na fase de pesquisa sobre o passado e me recuperar informações esquecidas,


ou suprimidas, ou obscurecidas, e, é claro, extrair delas todo o sentido que pu-
derem. Mas entre esta fase de pesquisa do seu trabalho, os historiadores estão
empenhados em descobrir a verdade sobre o passado e em recuperar informa-
ções esquecidas, ou suprimidas, ou obscurecidas, e, é claro, extrair delas todo
o sentido que puderem. Mas entre essa fase de pesquisa, que na verdade não
se pode distinguir da atividade de um jornalista ou um detetive, e a conclusão
de uma história escrita, é preciso realizar várias operações transformadoras
importantes, nas quais o aspecto figurativo do pensamento do historiador é
mais intensificado do que diminuído. 8

E assim, nesses momentos em que faz o registro do movimento cita-


dino, movimento da urbe, da cidade, esse cronista realiza um processo de ma-
terialização da realidade histórica, que consequentemente, produz a memória
social dessa geografia urbana, dessa cidade.
O autor da crônica também pode ser ele mesmo ator principal nesse
ato de narrar, pois pode deixar sua alma falar, apresentar na crônica suas pró-
prias experiências. Além de tomar uma posição acerca dos fatos políticos, ou
mesmo outros assuntos.

Embora a narrativa histórica não possa jamais ter a liberdade de imaginação


da narrativa ficcional, ela nunca poderá se distanciar do fato de que é narrativa
e, portanto, guarda uma relação de proximidade com o fazer artístico, quando
recorta seus objetos e constrói, em torno deles, uma intriga.9

Por isso, mesmo sendo encarada como um gênero menor, com uma
7 (CHALHOUB, 2005, p.17).
8 (WHITE, 1991: 07).
9 (ALBURQUERQUE JR, 2007, p.63).

324
forma diferente dos demais gêneros, como o conto, a poesia, entre outros, po-
rém, não perdia sua singularidade diante da cena social. Assim, segundo Antô-
nio Candido, sobre essa questão o mesmo acrescenta:

[...] a crônica não é um ‘gênero maior’ [...] ‘Graças a Deus’, - seria o caso de
dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. E para muitos pode servir de
caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura
[...]. Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coi-
sa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo
o dia[...]. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao
nosso modo de ser mais natural.10

Nesse jogo, podemos apresentar que a crônica tem um traço “natural”,


em que sua linguagem ganha ares mais leves, e com essa leveza na sua com-
posição, o gênero textual ganha elementos atrativos fazendo com que o leitor,
aproxime-se da crônica com mais facilidade. Assim, [...] “o ofício do historia-
dor, todavia, nos faz olhar para essa fonte literária como registro sensível do
tempo, para, assim, tentar realizar a ambição de apreender o sentido das ações
dos homens no passado”. 11
Por isso, Candido aponta o quão a crônica estabelece ou restabelece
uma ligação com as pessoas e suas coisas, visto “[...] um cenário excelso, numa
revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma
grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”. 12

Nos rastros das “coisas miúdas, possibilidades de grandes


coisas”: como é ele na crônica? E o que é sua crônica? A
narrativa a partir da crônica

Vítor Gonçalves Neto, ao contrário de muitos escritores, jornalistas da


sua época não se enquadra na linha comportada de fazer seus comentários so-
bre os fatos do cotidiano, sobre as coisas vividas por ele em sua trajetória de
vida tanto profissional, quanto pessoal. Nas suas considerações, as coisas ga-

10 (CANDIDO, 1980, p. 05).


11 (ERTZOGUE, 2011: 346)
12 (CÂNDIDO, 1992, p.14)

325
nham um estilo próprio, singular, que o nosso personagem jornalista/escritor
torna-se único, uma figura que marca e deixa marca, que notifica as suas coisas,
como coisas tolas, mas coisas tolas que são importantes, não se importando
com o que os outros, os críticos iriam falar.
Nas suas crônicas apresenta lembranças, desejos, amigos, família, seus
encontros e desencontros, seus momentos, seus ânimos, desânimos, sem ao
menos procurar saber se isto seria importante para as pessoas. Nas suas crôni-
cas também aparece o que suas lentes de observador conseguiram capturar, o
indizível se torna dizível, o menos importante ganha intensidade. Nesse caso,
o cronista,

[...] usa de uma densidade característica, pois é essa densidade a linha tênue
entre crônica e conto. No conto, o autor mergulha no universo do persona-
gem, do tempo, do espaço e da atmosfera que darão força ao “fato exemplar”, o
cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas
ficar na superfície de seus próprios comentários.13

Para Vítor, o vivido se apresenta através das palavras, são elas que er-
guem na zona de percepção social, o que ele pensou, o que ele viveu, isto é,
o que ele simplesmente inventou. Para ele, as várias palavras usadas em suas
crônicas, quando juntas podem dar uma dimensão representativa das suas
aventuras e dos seus pensamentos, ou mesmo voos da sua imaginação. Por isso,
Pesavento considera que:

[...] ao historiador que se debruça sobre as crônicas em busca das vozes e sen-
sibilidades que chegam do passado, falando de um ou tempo, há que ter em
conta esta presença da imaginação criadora tanto na produção quanto na li-
teratura do texto, e é na perseguição destes cruzamentos, partilhas, identifica-
ções e contradições que se encontra os maiores desafios.14

Nessa escala de representação das coisas pensadas, vividas, sentidas,


suas memórias quando vêm à tona, ganham funcionalidade de mostrar ao
grande público o próprio Vítor, descalço, nu, vagando pelo mundo da literatu-
ra, ou mesmo sentado em um canto, simplesmente escrevendo.
Mas, voltando às palavras, quando Vítor realiza combinações, elas tra-

13 SÁ, 2002, p. 9.
14 PESAVENTO, 1997, p. 36.

326
duzem a rua, se ela está solitária, movimentada, como também representam
seu esquecimento, o esquecimento do grande amor da sua vida. Uma falta que
ele mesmo reconhece.
Nas considerações, as dimensões da experiência, ou melhor, das suas
experiências, se tornam a fonte para que se faça mover suas mãos e as colunas
dos jornais, nas quais trabalhou, onde ganhava ao final textos singulares. As-
sim, em relação a essa questão, Pesavento, aponta que no caso da crônica, “[...]
o escritor é alguém capaz de realizar uma operação metonímica no seu texto,
fazendo do incidente miúdo a chave para a compreensão do mundo e da vida”.15
A memória, o seu passado, vem como uma furação, sem um ordena-
mento, sem pudor, sem medo, sem receio, vindo conforme ele acha que deve
ter o tom da crônica para que ela ganhe destaque. O simples, o banal, nesse
caso, não pode ser contado por Vítor, como simples e banal, devem ser vistos
e contados e expressados, para que as pessoas vejam além das palavras, ve-
jam nelas o sujeito que as viveu. Assim, notamos Vítor tentando contar suas
experiências como uma forma de dizer, “somos seres humanos, somos seres
instituídos de falhas, somos pessoas frágeis e cheias de feitos”.
Nota-se nas crônicas de Vítor, o homem falho, o homem machista, o
homem amante do sorriso, o homem solitário, o homem alegre, o homem, co-
mum, o homem escritor, que assim como os outros devem manter posturas e
seguir regras.
Tais regras não funcionam com Vítor, principalmente no campo
da escrita. Pois suas crônicas tornam-se a fonte para compreensão dessa
característica. O seu limite é não ter limite, visto como o sujeito Vítor, o escritor
Vítor Gonçalves Neto, desdenha, debocha de si e dos outros, transforma o ín-
timo em público, escancara suas partes, suas emoções. Uma demonstração de
um sujeito inquieto com as regras, com o perfeitamente correto.
Em Vítor, nota-se os extremos, os vícios, os defeitos, ou simplesmente
o ser humano. Ele não esconde os defeitos, como a maioria das pessoas. Ele
recria em suas crônicas o homem, o ser humano que muitos homens são for-
çados, por regras e percepções sociais punitivas a esconder. Nas suas crônicas,
o medo, a melancolia, o não gostar são ditos, sem arrodeios, são simplesmente
ditos.
Nas suas crônicas o mundo se torna presente. Elas expressam o homem

15 PESAVENTO, 1997, p. 33.

327
que viu as folhas caírem, o vento mover a areia da praia, o homem que sentiu a
melancolia da noite, que contemplou a lua e as estrelas. Nelas, as águas do Rio
Itapecuru foram temas de seus momentos, das suas reflexões. O sertão, assim
como o rio, torna-se lugar de ocupação do seu espírito rebelde, da sua inquie-
tação.
Os botecos, as ruas, foram lugares dos seus momentos de contempla-
ção, de extravagância em companhia das bebidas ou mesmo dos seus amigos.
Outra coisa que Vítor tem orgulho, seus amigos, e as mais diversas experiências
que viveu com eles. Para ele, momentos que se eternizaram nos laços da me-
mória.
Sua fé é posta em dúvida por ele mesmo. A sua crença, segundo ele
mesmo, está no amor. Outro aspecto presente em seus momentos de rememo-
ração, o amor que dedica à família, ao vento, ao sol, ao rio, a cidade, aos amigos.
Como dito anteriormente, o pequeno é que se torna importante, é
o merecedor de ser lembrado, de ficar registrado, pois como ele mesmo diz,
pertence a ele. Então é importante. Assim, ele fala da bolsa, dos óculos, como
sendo objetos que ao longo da sua vida foram importantes, e eram importan-
tes, por isso ganhavam nas linhas das suas crônicas palavras, frases, períodos,
pequenos e grandes, justamente para serem descritos.
Vítor sabe das verdades instituídas, porém, não leva a regra para prática,
não a pratica, pois, a via contrária tem uma paisagem mais interessante, mais
cheia de charme, por que para ele, é simplesmente na via contrária que estão
as coisas que acha interessante. Menciono essas, como muitas outras que falei,
quando ele escreve uma crônica intitulada Setembro. Ele compõe a crônica de
palavras e frases que expressam o quanto gosta do mês, e como durante todo o
ano tal mês é esperado com ansiedade, uma vez que tem um significado espe-
cial, simples assim.
Porém, ele recobre a lucidez instituída socialmente sobre a função so-
cial do cronista, que diz que o cronista tinha que fazer com que as pessoas se
divertissem com as palavras pensadas e apresentadas. Por isso, Vitor freia suas
memórias e considera “[...] quase olvidei meu papel de cronista social – cujo o
dever aqui é alegrar a gente do ‘bem’, comentando festas e anunciando os ou-
tros acontecimentos”.16 Mas como apontei, ele envereda sua caminhada como
cronista seguindo a “lógica” das suas memórias, do seu desejo, da sua vontade,

16 Jornal do Dia, São Luís, 1 de setembro de 1955, Conversa Fiada: Setembro, (sem pagina)

328
sem esperar para escutar o que deveria ser importante.
No trajeto do seu escrito, o que é relevante, em se tratando desse mo-
mento em que se lembra do mês de setembro, por exemplo, é falar por que é
mais importante lembrar-se do mês de setembro e justificar que compor uma
crônica pensando o lado efêmero das práticas sociais. Por isso ele diz que se
lembrar do mês de setembro seja assim, um passatempo mais interessante, pois
tem algo dele no mês de setembro, que só no mês de setembro consegue iden-
tificar. Nesse jogo de qual é, e o que é importante ele aponta por que setembro
possui um significado simbólico.
Nesse certame, Vítor diz saber qual a razão, mas sempre foi para ele
um mês que simpatizava muito. E principalmente neste ano em que se tem lua
cheia.

Talvez seja devido à ilusão da primavera – “quando o Sol entra na constelação


de Libra e percorre mais o signo de Escorpião e Sagitário, enquanto que a Ter-
ra passa pelos signos de Aries, Tauros e Gêmini”. Ou então pela minha ciência
de que neste mês e nesta região onde vivemos continuarão – os “roçados e
queimadas, bem como a colheita do algodão, da mandioca, da cana de açúcar,
do arroz e da mamona. Tempo das farinhadas românticas perdidas no liris-
mo brutal lá dos sertões. Início da colheita do fumo e amendoin – melancia
e gerimun. Época do plantio de hortaliças e da pesca do pirarucu. Setembro
gostoso como que.17

Observa-se que Vítor, mesmo trazendo uma questão pessoal, vê nela,


uma grande importância. Mesmo quando isso acaba ganhando um ar de desa-
grado para muitos, naquele momento, é importante, tem peso, é algo que para
ele é bom para se lembrar. Assim, abro um parêntese, e penso na própria escrita
do historiador, de julgar o que é importante, o foi importante e o que deve ser
encarado como importante. Pois, às vezes, regido por regras, por burocracias
acadêmicas, somos levados a podar nossos desejos, nossa escrita, para que ela
possa ser vista, como algo importante para os pares da academia.
Nesse jogo de escrita, Vítor, também deixa rastros, pistas de pensar, não
apenas a sua personalidade, mas também aspectos deste próprio mundo em
que ele vive. Menciona esta questão ao passo de ouvi-lo, quando está falando
das suas viagens, e aqui em especial, devido às questões que são abordadas pelo
cronista.
17 Jornal do Dia, São Luís, 1 de setembro de 1955, Conversa Fiada: Setembro, (sem pagina)

329
Na ocasião, Vítor diz que viajar é sempre um ritual. Ritual, principal-
mente da sua valise. Confesso aqui, nunca ter ouvido falar, mas olha que valise
nada mais é que a mala. Esta que para ele é como se fosse “fiel como cão de fila
derramada aos pés”18.
Certo da sua fiel companheira, Vítor, cita outro aspecto desconhecido
agora, mas que no momento em que viveu, era a marca de produto da vez. A
pasta de creme dental Kolynos. Mostra a sua veia de consumidor de produtos
de grande circulação naquele momento.

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331
332
No ritmo da folia: o carnaval teresinense
e suas transformações históricas no
começo do século XX

Fransuel Lima de Barros


Mestre em História do Brasil pela UFPI. Professor substituto de História pela
Universidade Estadual do Piauí. Tutor à Distância do Curso de Licenciatura
Plena em História no Centro de Educação Aberta e Distância da Universidade
Federal do Piauí. E-mail: fransuellima@gmail.com.

São várias as denominações dadas ao Carnaval em seu percurso his-


tórico. Reinado de Momo, dias de folia, tempo de loucura, rito de diversão,
festa nacional etc. A festa do Momo foi definida, no século XX, com uma nova
roupagem, em que há a desqualificação do jogo das molhadeiras e ganha des-
taque o modelo de carnaval veneziano (PEREIRA, 1994, p. 195). Esse carnaval,
com fortes ligações com as formas de folguedo europeu, apresenta caráter mais
comportado e civilizado e passa a privilegiar os bailes e passeios de mascarados
pelas ruas das cidades.
O carnaval brasileiro herdou diversas características do Entrudo Por-
tuguês e dos Carnavais de Veneza e Nice. O Entrudo, durante o século XIX,
sofreu grande perseguição por parte da imprensa e das elites urbanas, que viam
naquela forma de lazer, uma prática de caráter “incivilizada”1 e “bárbara” (SIL-

1 Conceito formulado através da análise da sociedade Ocidental e refere-se desde os desenvol-


vimentos técnico-científicos, maneiras, ideias religiosas e costumes, até os diferentes tipos de ha-
bitação ou mesmo o modo como homens e mulheres vivem juntos. Levando em consideração o

333
VA, 2010, v. 2, p. 5). De acordo com Tito Filho (1959, p. 1), a festa do Momo, em
Teresina, até 1859, era muito modesta e consistia, quase que exclusivamente, no
entrudo.
No primeiro momento, conhecido como entrudo familiar, as festas
eram brincadas em diversas cidades brasileiras entre os membros de um mes-
mo nível social e funcionava como um ambiente de interação social. O lazer
era praticado nos salões das melhores famílias, seja na forma de “guerra” entre
famílias ou em ataques pela sacada das casas, utilizando-se como “arma” ba-
nhos e limões de cheiro (PEREIRA, 1994, p. 32). Em um segundo momento,
conhecido como entrudo externo, era praticado na rua. Eneida Moraes (1987),
ao pesquisar a História do Carnaval Carioca, disse ser uma diversão “porca e
brutal”, aquela com que se festeja nos tempos de Colônia e Império, refletin-
do os hábitos dos portugueses. Utilizavam-se água suja, groselha, tinta e até
lama. Porém, esse modelo de folia passou a ser combatido em todo o território
brasileiro e, em Teresina de 1859, segundo Tito Filho, percebeu-se o gradual
desaparecimento do carnaval das “molhadeiras”:

Em 1859 começou a desaparecer o entrudo. Houve o primeiro carnaval em


Teresina. Fundou-se uma sociedade carnavalesca. Brincou-se de domingo a
terça. Bailes de máscaras no Teatro Santa Teresa. Desfile de música e cavalhei-
ros mascarados pelas ruas. Rapazes já se fantasiavam vestidos de mulheres.
(TITO FILHO, 1959, p. 23)

O processo de tornar o carnaval a festa da civilização teresinense esteve


presente na escrita de alguns cronistas locais, que a todo momento esboçavam
como a festividade deveria ser praticada. Suas crônicas eram atravessadas por
mensagens “pedagógicas”, que pretendiam fazer do lazer uma festa homogênea,
capaz de representar a imagem harmônica e civilizada. No entanto, como o
próprio Leonardo Pereira (1994, p. 197) indica, deve-se captar nas linhas ou
entrelinhas das produções dos cronistas, as pistas para que se pudesse ver o
carnaval em sua diversidade, como um momento de embates sociais. Exemplo
desse embate são as organizações carnavalescas do início do século, em Tere-
sina, em que se tinha forte crítica aos participantes das festividades. Tomando
discurso evolucionista entre o final do século XIX e início do XX, a civilização passa a configurar
como algo que se opõe à barbárie e carrega em sua essência a noção de futuro, de progresso, em
oposição à passado e a atraso. Cf. ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 26 e 70.

334
uma postura de incentivador da festa de Momo, Jônatas Batista (1985, p. 119)
apontava aquelas pessoas que censuravam as iniciativas de realização das ativi-
dades como “assassinos inconscientes de toda e qualquer boa ideia, entendedo-
res de tudo, mas incapazes de promover ou levar a efeito coisa nenhuma”.
Ainda nesses anos de consolidação do carnaval na cidade, os redato-
res do jornal Alvorada tiveram a iniciativa de reaver a antiga festa do Momo.
Entretanto, decidiram chamar para organizá-la críticos da cultura teresinense.
O resultado, segundo o periódico, foi uma festa com poucas fantasias e sem
expressão. Batista (1985, p. 120) relatou que havia “dois máscaras, montados
em um só jumento, sempre com a célebre frase para as pessoas que tiveram a
desgraça de encontrá-los: – você me conhece? e nada mais”. Para o cronista, as
censuras e julgamentos feitos ao carnaval prejudicavam muito a festa popular,
pois as famílias se sentiam intimidadas diante dos boatos que percorriam a
cidade. Isso acabou se tornando uma perda para a sociedade que almejava a
civilização, pois, como o próprio literato declarou, “as diversões fazem também
com que se possa fazer um seguro juízo do progresso e do adiantamento”.
A. Tito Filho, no seu livro Os carnavais teresinenses, observa as trans-
formações históricas do festejo ao longo do século XX. A intenção dentro desta
perspectiva, é “perceber a complexidade dessa forma de expressão, de grande
riqueza para o descortínio das atitudes, valores e comportamentos dos diversos
grupos sociais” (SOIHET, 1998, p. 9).
Diante desse recorte, a abordagem recairá entre os anos de 1900 e 1930,
onde, segundo Tito Filho (1959, p. 25), a atração teve bons e maus momentos.
Inicialmente, quando Teresina possuía características de uma urbe provinciana
a principal atração eram os folguedos. Porém, a partir do ano de 1905, a cidade
de Teresina passou por pequenos desenvolvimentos urbanos, o que resultou
em um maior envolvimento da população e o surgimento de clubes, como Dra-
gões de Averno (1906), que promovia bailes e batalha de confetes, e dos Fenia-
nos (1907), que percorria as ruas da cidade com carros alegóricos.

335
Figura 1 - Manifestações carnavalescas
Fonte: O Obuz. Teresina [1926?]

Na compreensão do autor supracitado, depois desse início animador,


teve-se nos anos seguintes pouco destaque à sociabilidade, em que se configu-
rou um Carnaval sem grandes atrativos. Porém, os anos de 1913 e 1914, fogem
a regra e acabavam ficando na lembrança dos teresinenses como momentos de
alegria e descontração. Em 1914, por exemplo, a coluna de crônica intitulada
Furos, do Diário do Piauí, traz à tona o envolvimento da população em torno
da comemoração, e mostra como a festividade acabou funcionando como uma
válvula de escape as rotinas diárias da vida urbana:

[...] devido à febre do entusiasmo carnavalesco, um certo bacharel já prorro-


gou por 6 vezes a sua volta ao interior, não sabendo se ficará para os bailes. As
coisas estão neste pé. Da criança a velhos, só se ouve falar nos disfarces, nas
fantasias. Uns indagam nas lojas de moda; outros, fazendo da indiscrição um
direito, perguntam sobre as cores com que se apresentarão; outros, fazendo
conjecturas, traduzem os sonhos como se jogassem o bicho; e outros ainda,

336
recorrendo a milagres de cartomancia, procuram descobrir os trajes. (FUROS,
18 fev. 1914, p.1)

A euforia, nesse emblemático ano era evidente. No relato acima, é pos-


sível vislumbrar os efeitos que o lazer provocava no cotidiano teresinense. Ca-
racterizado pelo espírito irreverente e envolvente, o Carnaval transmitiu alegria
e divertimento para os seus participantes, que são contagiados pela ansiedade e
incitados pelo desejo e pela aparente liberdade de poder fazer tudo o que não é
permitido, durante o ano, nos três dias de festa. Muitos acabavam abandonan-
do sua profissão por longo período, como o caso do advogado que retardou sua
rotina de trabalho, para prolongar seus dias festivos. Exemplo esse que muito
lembra os ensinamentos de Peter Burke ( 2001, p.27-30), ao relatar que o perío-
do carnavalesco era um palco de “permissividade relativa”, de agitações aflora-
das, um tempo percebido como “liberdade universal” pelos participantes, que
parece deter uma sensação de poder e de impunidade durante os dias de folia,
pois se tem a sensação de um afrouxamento consentido das regras, em que os
limites entre o lícito e o ilícito tornam-se mais tênues.
Ainda no ano de 1914, um cronista do Diário do Piauí relata o sucesso
do Carnaval naquela data, em que se pôde contar com boa música e a presença
de gente elegante, principalmente, o governador do Estado, Miguel Rosa, junto
com mulher e filha. Ele assim escreveu:

Excedeu a toda a expectativa a batalha de lança-perfume anteontem, no jar-


dim da Praça Rio Branco. Não só pelo número e seleção da concorrência,
como pelo entusiasmo que reinou. A música do corpo militar de polícia, sem-
pre correta e afinada, ali chegou 5 horas da tarde [...]. [Assim] começaram
a fluir grupos de encantadoras crianças e senhoritas, respeitáveis senhoras e
cavalheiros, que desembocavam na vasta praça do jardim, por todas as ruas.
Às 5:12, a batalha se generalizara e não eram respeitadas simples minorias
desarmadas, em cujo número se encontrava o exmº sr. Governador do estado,
que compareceu ao jardim acompanhado de madame e mademoiselle Miguel
Rosa (Grifo nosso). (CARNAVAL, 17 fev. 1914, p. 3)

É oportuno observar como os periódicos, através de seus “mosqueteiros


intelectuais”, difundem a imagem de uma festividade que conta com gente
educada e fina. Ao analisar as crônicas sobre Carnaval em Porto Alegre,
Alexandre Lazzari (2001) percebeu um discurso recorrente entre a maioria dos

337
cronistas, onde dizia que o verdadeiro carnaval estava ligado à classe distin-
ta, abastada, pois a sociabilidade deveria distinguir os indivíduos, ou então, as
posições sociais perderiam o seu real sentido. Assim como cronistas gaúchos,
as inclinações dos cronistas teresinenses iam de encontro ao que foi defendido
por eles. A tentativa de tornar o Carnaval uma festa grande e desenvolvida,
mesmo que isso representasse a exclusão do “povo”, significava um projeto de
cidade moderna.
Em 1919, o Carnaval vivia sob constantes críticas. Jônatas Batista
(1985, p. 120) asseverava que “Teresina estava se tornando uma cidade sem
alma, sem vida, sem alegria. Uma verdadeira cidade morta”. Enquanto em ci-
dades como Paris e Veneza, referência nesse tipo de comemoração, a população
festejava com grande alegria os três dias de Carnaval, em Teresina, a população
vivia uma

fase de transformações lentas, demoradas, em que se dá a luta terrível do pro-


gresso contra o costume rotineiro de um povo, em que tudo fala, tudo reprova,
tudo comenta, pelo simples prazer de falar, de reprovar, de comentar. Diante
disso, as famílias fogem, e com toda razão, dos teatros, bailes e festas. (BATIS-
TA, 1985, p. 120)

Em tese, tinha-se uma festa quase sem a participação popular e com


pouca expressão. Nesse sentido, Batista (1985, p.120) impunha uma linha de
defesa na qual era preciso combater esse costume e deixar “que cada um res-
ponda por seus atos, bons ou maus, procurando corrigir seus vícios próprios,
antes de querer corrigir os erros dos outros”. E conclui, afirmando que as pes-
soas que se importavam com a arte e cultura teresinense precisariam tomar a
frente dessa festa popular, que tanto distrai o povo da vida dura que ele leva.
O festejo de Momo só voltou a crescer e ganhar novamente destaque a
partir da década de 1920, quando houve grande comoção popular, em que se
brincava e dançava numa alegria nunca vista antes (TITO FILHO, 1959, p. 27).
Foi durante esse período que a Praça Rio Branco tornou-se o principal ponto
de encontro entre os foliões em Teresina. Os dias dos foliões eram preenchidos
por Zé Pereira, Bailes, Batalhas de lança-perfume e Confetes. Além das ma-
nifestações de rua, onde as pessoas de diferentes classes sociais se divertiam
sem muitas restrições, a elite financiava um Carnaval elegante em locais priva-
dos, onde o acesso era limitado a seus pares. Essas festas eram organizadas por

338
grupos carnavalesco que tinham como objetivo criar um carnaval civilizado.
Destacam-se entre os clubes: Os Fanfarrões (1921); Bloco da Folia (1922); As-
sembleia Teresinense (1924); Clube dos Fenianos (novamente fundado em 1925).
 

Figura 2 - Praça Rio Branco, 1925.


Fonte: Acervo do Arquivo Público do Piauí

Diante da infinidade de clubes e blocos que surgiram na década de


1920, merece destaque O Petit Clube, que dava um baile toda tarde de domingo,
em sua sede, na Praça Rio Branco.

Às 17 horas, corso de automóveis, na praça Rio Branco à praça Deodoro,


usando-se serpentina, lança-perfume e confete. Músicas mais tocadas: sambas,
tangos e maxixes. Do corso participaram dois caminhões: um lindamente
enfeitado, conduzia senhoras, senhoritas e cavalheiros; o outro levava a
orquestra. Jônatas Batista improvisava versos num automóvel. Muito luxo nos
bailes do Clube dos Diários. (TITO FILHO, 1959, p. 30)

Com efeito, a elite teresinense delimitava o seu espaço no Carnaval.


Em vários momentos, os membros das famílias ricas brincavam o corso e as
batalhas de confetes na Praça Rio Branco, dividindo o espaço público com pes-

339
soas de classe média e pobres. Porém, em outras ocasiões, recolhiam-se em
seus elegantes clubes, onde a diversão era restrita apenas àquele seleto grupo da
elite. Na versão de Castelo Branco (2013, p. 58), na entrada dos salões de festa
era exigido convite, o que barrava as pessoas de menor poder aquisitivo. Além
disso, a maioria dos bailes era de fantasias, o que dava um toque de refinamento
e atraía a curiosidade de várias pessoas que se aglomeravam na parte de fora
dos clubes, nos chamados serenos.
Um cronista anônimo do jornal O Obuz relata que, na quarta-feira de
cinzas do ano de 1926, “o clube dos Batutas se transformará em Centro Familiar
Teresinense, sociedade perpétua recreativa, com aula de música e declamação
de jogos e bebidas não proibidas” (CARNAVAL DO BICENTENÁRIO, [1926?],
p. 4). A forma bem delineada de organização do lazer veio se eternizando ao
longo dos anos entre as classes mais abastadas e, em 1927, diante desse novo
panorama carnavalesco, foram criados novos clubes, grupos fantasiados e uma
inovação do corso, que ganha o requinte dos carros automotores percorrendo
as ruas próximas à Praça Rio Branco.
Em 1923, ocorreu um fato curioso no Carnaval de Teresina que merece
ser destacado. O cronista do jornal O Arrebol relata que, devido ao mau tempo,
muitos blocos viram-se obrigados a não sair com seus disfarces, limitando-se
exclusivamente aos bailes. Porém, o Bloco da Folia contrariou essa lógica dos
carnavais dos clubes e, não obstante o mau tempo, desfilou pelas ruas de Te-
resina, e “cumpriu a contento o seu itinerário de passeio às casas combinadas,
agradando geralmente como de costume”. (CARNAVAL, 18 fev. 1923, p. 23)
Registre-se que havia, em grande parte dos cronistas, uma preocupa-
ção em vincular as festividades ao universo das elites letradas e políticas, onde
eles tinham a função de transformar a opinião pública, criando um modelo
de sociedade baseado na civilidade. Compreende, assim, uma forte inclinação
para os carnavais brincados nos clubes e um maior “controle” para os carnavais
brincados nas ruas.
Brincar o carnaval poderia também acarretar em atos disciplinares
prescritos pela Igreja Católica. Por volta de 1926 foi divulgado no jornal O
Obuz, na coluna Atos de Contrição, que descreve que seriam comungados, na
quarta-feira de cinzas, os “diversos endiabrados” que se deixassem contaminar
pela festa da carne. O Monsenhor Pedro Mendes, diretor espiritual, foi o res-
ponsável pelas diversas penitências aos foliões, destacando-se duas: a aplicada a
Dota Oliveira, que não deveria falar com pessoa alguma durante a quarentena,

340
e a recebida por Francisco Freire, que deveria viajar a pé de Teresina a Caxias.
(ATOS DE CONTRIÇÃO, [1926?], p. 1)
Nessas duas crônicas, há diferentes críticas ao Carnaval. A primeira
mostra o ócio vivido pela juventude durante o período carnavalesco, isso por-
que o assunto tornou-se modismo nos meios sociais e fez com que os jovens
não fizessem outra coisa senão pensar na festividade. A segunda tem um caráter
mais de redenção, em que, através da penitência, o praticante se purificaria dos
pecados cometidos nos dias de folia. Diferente de alguns cronistas, que viam
no Carnaval uma porta para uma sociedade civilizada, outros, ligado à igre-
ja católica, difundiam um discurso moralizador, o qual, através de mensagens
disciplinadoras, punha a festa como um problema social antes do individual. O
historiador Castelo Branco (2013, p.55) recorda que, em 1908, o jornal católico
O Apóstolo imputava ao Carnaval o causador de ruína das famílias cristãs bem
como os desvios morais e de bons costumes dos teresinenses.
Nesse cenário, o carnaval teresinense, até a década de 20, esteve restrito
basicamente a bailes em clubes e residências particulares. Dessa data até os
anos 30, encontrava-se quase que exclusivamente limitado aos clubes, por isso
a fundação de vários deles durante esse período. Os indícios que os cronistas
deixam nos levam a concluir que havia um forte discurso onde tenta-se passar
a imagem do Carnaval como uma festa elitizada e restrita a certos espaços pri-
vados.
Assim, a história do Carnaval teresinense configura-se como uma so-
ciabilidade de múltiplas faces, fruto de diferentes significados atribuídos pelos
muitos foliões. Percebe-se, então, uma fragmentação refletida em diversas pos-
turas, sobressaindo duas mais atuantes, a ligada aos cronistas, que almejavam
no Carnaval uma diversão que representasse o progresso e aditamento de Te-
resina; e os ligados à igreja católica, os quais viam na festividade, sobretudo
as festejadas nas ruas, uma folia que precisava ser combatida, pois, para eles,
incentivava vários tipos de vícios como a ociosidade, a libertinagem e outros
comportamentos que feriam a moral e os bons costumes.
Nesse sentido, os cronistas nos dão a chave para evidenciar as constru-
ções que eles mesmos pretendiam afirmar em relação à festa do Momo. Eles
corroboram que, por trás da história metódica e oficial, o Carnaval tem muitas
outras versões, interpretadas e ressignificadas por quem viveu o período. Desse
modo, vislumbra-se que a folia de Momo estava atravessada tanto por discur-
sos tradicionais como modernos. Isso porque, embora a elite se fechasse em

341
seus luxuosos bailes, havia aqueles momentos tradicionais nas ruas da cidade
onde acontecia o encontro entre diferentes classes sociais nas famosas batalhas
de confetes.

Referências

ATOS de contrição. O Obuz, Teresina, ano 3, n. 4, [1926?].


BATISTA, Jônatas. Poesia e Prosa. Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985.
BURKE, Peter. O carnaval de Veneza. In: CUNHA, Maria Clementina Pereira.
(Org.). Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura.
Campinas: Unicamp/CECULT, 2001, (Coleção Várias Histórias).
CARNAVAL do bicentenário. O Obuz, Teresina, ano 2, n. 4, [1926?].
CARNAVAL. Diário do Piauí, Teresina, ano IV, n. 38, 17 fev. 1914.
CARNAVAL. O Arrebol, Teresina, ano 9, n. 29, 18 fev. 1923.
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Mulheres plurais: a condição feminina na
primeira república. Teresina: EDUFPI, 2013.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Vários Zés, um sobrenome: as muitas
faces do senhor Pereira no carnaval carioca da virada do século. In: CUNHA,
M.C.P. (Org.). Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura.
Campinas: Unicamp/CECULT, 2001. (Coleção Várias Histórias).
ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2011, p. 26 e 70.
FUROS. Diário do Piauí, Teresina, ano 4, n. 39, 18 fev., 1914.
LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre
(1870-1915). Campinas: Unicamp/CECULT, 2001.
MORAES, Eneida de. História do carnaval carioca. Rio de Janeiro: Record,
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PEREIRA, Leonardo A. de M. O carnaval das letras. Rio de Janeiro: Secretaria
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brasileira. Revista da UFPE, v. 2, n. 2, p. 5, 2010.
SOIHET, R. Reflexões sobre o carnaval na historiografia: algumas abordagens.
Academia do samba. Publicado em 1998. Disponível em: <http://www.aca-
demiadosamba.com.br/monografias/raquelsoihet.pdf.>. Acesso em: 24 mar.
2010.
TITO FILHO, A. Os carnavais de Teresina, Teresina: Primeiro Século, 1959.

342
Jane Austen & Os Espaços:
Cotidiano de Bath representado em “A
Abadia De Northanger” – 1817

Camila Rafaela Pereira de Souza


Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História
e Espaços-UFRN. Licenciada em História pelo curso de graduação do
Departamento de História do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES)
da mesma Universidade. E-mail: camila.rafaela16@hotmail.com

Considerações iniciais

O uso da Literatura como fonte histórica foi, por muito tempo,


marginalizado por uma compreensão de história que se apoiava apenas
na utilização de documentos considerados oficiais. No entanto, com o
crescente movimento de renovação historiográfica que ocorreu no século XX,
inicialmente, na França e repercutindo em vários países, o repertório de fontes
históricas ampliou-se. Os historiadores ligados à revista Annales d’Histoire
Économique et Sociale, fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch,
tiveram enorme importância e contribuíram significativamente para essa
empreitada (Ferreira, 2009).
A partir dessa dilatação no campo das fontes históricas proposta
pelos historiadores dos Annales, novos temas e objetos passaram a ser vistos

343
como possibilidade de pesquisa, e a literatura encontra-se dentro desse novo
campo, como uma das vias de se estudar as ações do homem no tempo e,
principalmente, no espaço.
Essa diversificação contribui significativamente para o enriquecimento
dos trabalhos, através de novas reflexões que nos mostram outro olhar acerca do
passado. Apontando-nos outros conceitos a serem discutidos pelo historiador.
Portanto, o estudo da Literatura, dentro de uma perspectiva historiográfica,
adquire significados peculiares, já que, enquanto a Historiografia procura o
ser das estruturas sociais, comprometido com o existente, a Literatura fornece-
nos uma perspectiva do vir-a-ser (Sevcenko, 2003). As duas dizem respeito
à experiência humana e tudo aquilo que a envolve, à realidade social, às
frustrações, expectativas e diversas informações acerca do mundo ao qual estão
inseridas, já que,

afinal, todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação,


uma vez que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são
fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo – e é destes que eles
falam. Fora de qualquer dúvida: a literatura é antes de mais nada um produto
artístico, destinado a agradar e a comover; mas como se pode imaginar uma
árvore sem raízes, ou como pode a qualidade dos seus frutos não depender
das características do solo, da natureza do clima e das condições ambientais?
(Ibidem, p. 29)

Nicolau Sevcenko chama atenção para que os historiadores levem


em conta além da dimensão estética, a dimensão social contida na produção
literária. Ele se utiliza de uma espécie de metáfora espacial de conformaria as
plantas, para defender como um determinado espaço-tempo influencia quem
escreve, mesmo que seja uma escrita ficcional. Utilizando-se dessa metáfora da
árvore, ele exemplifica brilhantemente minha pretensão, de evidenciar e trazer
para o debate o caráter dialógico entre o mundo vivido e a literatura.

[...] o escritor é sempre um revolucionário e seu trabalho irá sempre refletir


as disputas do seu tempo. A história é o corpo do tempo, existe como um
testemunho da vida do ser humano naquele momento em particular. Para isso
quem escreve lança mão de todos os vestígios dessa história e a literatura é o
mais popular e um dos mais promissores vestígios. A união da literatura com

344
a história, como texto e contexto, não é nova, mas pode ser reinventada a cada
interpretação, abordagem e aplicação (BENJAMIN, 1993, p. 24).

Posso acrescentar ao pensamento de Walter Benjamin a importância


da união entre história e literatura, que juntas possibilitariam a pesquisa
uma maior compreensão e uma gama ainda maior de vestígios sobre aquela
realidade que está representada na literatura e que a história visa investigar.
Além disso, cabe salientar que mesmo que a Literatura possua um caráter
ficcional e de não retratar personagens que “de fato existiram”, não se pode
negar, contudo, que ela seja um produto do seu tempo e indique condições
socioculturais/socioespaciais nas quais os autores estão inseridos, encarnando
nas suas personagens a realidade em que viveram (Pesavento, 2006), o que
vem a constituir-se, assim, como uma possibilidade de estudo para o campo
historiográfico.
Dessa forma, buscando a utilização da Literatura enquanto fonte
histórica, o objeto de estudo deste trabalho é o livro A Abadia de Northanger
da escritora inglesa Jane Austen (1775-1817). Ambientado no contexto da
Inglaterra rural do início do século XIX, a obra retrata, a partir do cotidiano das
suas personagens, como os costumes estavam estabelecidos e como os espaços
eram divididos e experienciados. Meu interesse por essa pesquisa se deu a
partir da proposta de se pensar os espaços físicos e simbólicos experienciados
pelas mulheres/personagens das narrativas e enunciados de uma também
mulher/autora inglesa que viveu e presenciou os discursos que criavam espaços
destinados as mulheres na época, ressignificando-os e transformando-os em
textos e tramas literários. A generificação dos espaços pode ser uma forma
crítica de interpretar fracionamentos sociais e tratamentos desiguais presentes
na sociedade, denunciados na literatura. Esta que também era um espaço
dominado por um gênero, já que o contexto de produção analisado era bastante
dominado por uma produção masculina. Basta lembrar o que escreve Lemaire,
quando diz que

A história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até


hoje na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho e
anacrônico. Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da genealogia
nas sociedades patriarcais do passado: primeiro, a sucessão cronológica de
guerreiros heroicos; o outro, a sucessão de escritores brilhantes. Em ambos

345
os casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com heroísmo ou escrito
brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como casos excepcionais,
mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço para mulheres
“normais”. (LEMAIRE, 1994, p. 58).

Dito isto é importante lembrar que, mesmo as narrativas sobre as


mulheres e seu espaço na sociedade e na literatura nos séculos XVIII e XIX
eram produzidas por homens (Pamela, escrito em 1740 por Samuel Richardson;
Madame Bovary, escrito em 1856 por Gustave Flaubert), quando Jane Austen
passa a publicar suas obras, juntamente com outras poucas autoras mulheres
da época, abre espaço para que mais mulheres possam sonhar com a escrita.
Jane Austen concede voz ao feminino de uma forma diferente dos
outros autores antes citados, identificando o lugar da mulher na sociedade,
construindo um papel de consciência própria e fazendo tudo isso através da ironia
empregada nas suas obras. Austen manipula, satiriza, ironiza e transforma em
comédia todos aqueles mandos sociais. Utilizando-se da ironia da linguagem,
a autora ataca pressupostos da sociedade que geralmente envolviam uma visão
tradicional sobre a mulher e os transforma em riso. Dessa forma, percebe-se
que Austen e suas singularidades enquanto mulher e autora merecem destaque
nessa nova História das Mulheres que vem sendo desenvolvida.
Para Joan Scott (1992), não há dúvidas de que a História das Mulheres,
mesmo que recente, é uma prática estabelecida em muitas partes do mundo,
pois com as transformações na Historiografia do século XX possibilitou-se um
processo de inserção do feminino na condição de objeto e sujeito de pesquisa
histórica. Assim como pensa Joana Maria Pedro, quando diz que “na trilha da
História das Mulheres, muitas pesquisadoras e pesquisadores tem procurado
destacar as vivências comuns, os trabalhos, as lutas, as sobrevivências, as
resistências das mulheres no passado” (Pedro, 2005, p. 85). Em busca de reverter
o quadro de invisibilidade que por tanto tempo permitiu que certas estéticas
de escrita da História, especialmente aquela intitulada de “positivista”, dessem
destaque prioritário a personagens masculinas1.

1 Conforme defende Margareth Rago, “a recente inclusão das mulheres no campo da


Historiografia tem revelado não apenas momentos inesperados da presença feminina nos
acontecimentos históricos, mas também um alargamento do próprio discurso historiográfico,
até então estritamente estruturado para pensar o sujeito universal, ou ainda, as ações individuais
e as práticas coletivas marcadamente masculinas. Como se a História nos contasse apenas dos
homens e de suas façanhas, era somente marginalmente que as narrativas históricas sugeriam a

346
A circunscrição espacial preferencialmente representada por Austen
é o mundo doméstico, no qual a vida segue apontando aspectos indiferentes
às agitações sociais que ocorriam na Inglaterra (Cevasco, 1993). Através
de sua escrita, a autora retratou o cotidiano dos cidadãos rurais do país no
início do século XIX, uma sociedade mostrada como resistente ao processo
de transformações que vinham ocorrendo. Com suas personagens, Austen
parece concordar com a ideia da necessidade de mudança daquele ambiente
em decorrência das modificações que a sociedade à sua volta vinha passando.
Confirmando a existência da dicotomia criada entre campo e cidade, e os
sentidos e significados dados a essas palavras, sendo o campo carente de
transformações, percebido como um lugar de “atraso” e “limitação”, e a cidade
associada ao centro de realizações e ambição (Williams, 1989).
Dessa maneira, o principal objetivo deste trabalho é analisar as
representações dos espaços ocupados pelas personagens, principalmente as
personagens femininas encontradas na obra de Austen. Para mostrar quais
espaços e papeis cabiam aos homens e mulheres naquele ambiente e como a
sociedade inglesa da época estava organizada de acordo com suas necessidades.
Esta análise tomará como aspectos norteadores a ideia de espaço como algo
aberto e fruto de interações e relações, pois, é certo que o espaço é político, e
além disso, é fruto de questões sociais e de gênero. E que por isso, a organização
espacial é produto das relações de gênero instituídas e hierarquizadas
socialmente. O espaço não existe antes das identidades e suas relações, ao
contrário, as relações fundam identidades e espaços (Massey, 2009). Homens
e mulheres estão situados de maneiras diferentes no mundo, e suas relações
com os lugares onde suas vidas se desenvolvem também são distintas. Portanto,
o reconhecimento de que o gênero e espaço estão intimamente relacionados,
abre a possibilidade de se entender que o espaço é percebido e vivenciado de
diferentes maneiras por diferentes indivíduos ou grupos, seja no âmbito público
ou privado.
A análise dos espaços condiciona a trazer para o debate a relevância
teórica desse termo, que transita por diversas áreas do conhecimento e por
isso possui uma vocação transdisciplinar. No âmbito da Teoria da Literatura,
a categoria espaço também ocupa uma posição variável. Um dos modos de
abordagem do espaço na literatura é o da representação do espaço.
presença das mulheres, ou a existência de um universo feminino expressivo e empolgante”. Cf.
RAGO, 1995, p. 81.

347
Nesse tipo de abordagem, com frequência nem se chega a indagar o que é
espaço, pois este é dado como categoria existente no universo extratextual. Isso
ocorre sobretudo nas tendências naturalizantes, as quais atribuem ao espaço
características físicas, concretas (aqui se entende espaço como “cenário”, ou
seja, lugares de pertencimento e/ou trânsito dos sujeitos ficcionais e recurso
de contextualização da ação). [...] Nos Estudos Literários contemporâneos,
a vertente mais difundida dessa tendência é, possivelmente, a que aborda a
representação do “espaço urbano” no texto literário (BRANDÃO, 2013, p. 59).

Segundo Brandão o espaço como representação existe como uma das


abordagens da teoria da literatura, mesmo sem se ater ou buscar indagar de
fato, o que é aquele espaço materialmente, essa abordagem parece relevante
já que identifica o espaço como lugares de pertencimento e/ou trânsito,
característica semelhante com os espaços apresentados por Austen na sua
obra. Por tratar do espaço representacional, no que diz respeito às discussões
historiográficas que guiam esse artigo, estas se situam no campo da História
Cultural que se dedica às diferenças, conflitos e debates, como também aos
interesses e às tradições compartilhadas em culturas inteiras (Burke, 2008).
Entendendo que a Literatura, assim como todo objeto cultural, é também um
meio capaz de gerar representações, o conceito trabalhado por Roger Chartier
torna-se de grande valia para essa pesquisa, já que, para o autor, o conceito
de representação é o de variabilidade e da pluralidade de compreensões (ou
incompreensões) do mundo social e natural (Chartier, 1990). Assim sendo, o
texto literário compartilha de uma forma possível de apreender o mundo e,
por isso, caracteriza-se como uma fonte de pesquisa histórica cabível de ser
analisada. É a partir das representações que as sociedades observam a realidade
e determinam sua existência.
Pensando a partir das contribuições de Chartier entendo que é através
do próprio interesse que alguns grupos impõem sua visão de mundo ou sua
própria posição no mundo, por meio das representações. E é para se entender
e analisar tais representações, inclusive espaciais, que a literatura surge como
uma espécie de “fonte” e via de acesso, ampliando os paradigmas interpretativos
necessários à análise historiográfica.
Cabe esclarecer os motivos pelos quais optei pela abordagem da análise
das representações. Tal escolha é justificável pelos métodos de entendimento da

348
fonte, já que a Literatura é vista como uma das possíveis formas de representar a
sociedade, constituindo assim, um produto social. Sendo o literato influenciado
pelo campo em que ele ocupa naquele ambiente social e, por muitas vezes,
vindo a imprimir nas suas personagens características de um determinado
contexto histórico-social.

Jane Austen e sua obra: uma breve apresentação

Jane Austen foi uma escritora inglesa que nasceu em Steventon, um


pequeno vilarejo de Hampshire, um condado no sul da Inglaterra, no dia
16 de dezembro de 1775 e faleceu em 18 de julho de 1817. Jane Austen é,
atualmente, uma das escritoras inglesas mais aclamadas no universo literário.
Autora de seis romances: Razão e Sensibilidade (1811), Orgulho e Preconceito
(1813), Mansfield Park (1814), Emma (1815), A Abadia de Northanger (1817) e
Persuasão (1817), considerados clássicos até os dias atuais, além de duas obras
inacabadas, Sanditon e Os Watsons. Filha do reverendo George Austen, Jane
Austen vinha de uma família estabelecida na nobreza rural, chamada de classe
gentry, através do comércio de tecidos e, por isso, teve acesso à educação junto
com seus outros irmãos (Reef, 2014).
Os ingleses do século XVIII acreditavam que a natureza revelava o
poder e a sabedoria do ‘Todo Poderoso’. Acreditava-se igualmente que Deus
havia colocado reis e rainhas acima de duques, condes e viscondes. Por sua
vez, os nobres detentores de títulos eram ‘superiores’ aos gentry – a classe social
refinada e educada à qual pertencia a família Austen. A ordem social era tão
complexa que mesmo entre os gentry havia diferentes níveis. No topo estavam
aqueles tornados cavaleiros, possuidores de um sobrenome proeminente
ou proprietários de terras que estavam na família por gerações e nos níveis
inferiores estavam os bispos, pequenos proprietários de terra, oficiais do
exército, médicos e clérigos, como o pai de Jane Austen, que possuía educação,
mas pouco dinheiro (Ibidem, 2014).
Em 1783, Austen foi enviada junto com sua irmã, Cassandra, à escola.
Estes estabelecimentos escolares eram considerados de “refinamento” para as
meninas. Os meninos estudavam História, Matemática e Ciências. Já as meninas
aprendiam um pouco de Gramática, porém, a maior parte do tempo era
dedicada ao ensino das práticas domésticas e as ditas “habilidades femininas”,

349
como costura, canto ou aprender a tocar algum instrumento. As meninas
Austen frequentaram por pouco tempo a escola, voltando definitivamente para
Steventon em 1786 e nunca mais receberam uma educação formal. “Desde
o começo do século XIX foram fundadas muitas escolas, que formaram os
rapazes e os iniciaram no futuro papel de “capitães da indústria”. As moças, por
sua vez, eram sempre educadas em casa (Hall, 2009). Em casa, na juventude,
Jane praticava canto e aulas de piano, lia francês com facilidade e sabia um
pouco de italiano. “Em História, ela seguia os antigos guias: Goldsmith, Hume
e Robertson. A investigação crítica sobre as declarações normalmente recebidas
dos historiadores mal havia começado” (Leigh, 2014, p. 92.).
Na sua adolescência, Austen escreveu peças e comédias. Algo que era
bastante comum naquele período. Os ingleses da época de Austen adoravam
tudo o que tinha a ver com palco, mais peças foram escritas na Inglaterra no
século XVIII, do que em qualquer outro (Reef, 2014). Em 1797, com apenas
22 anos, já havia escrito dois romances: Razão e Sensibilidade e Orgulho e
Preconceito. Oferecidos pelo seu pai a um editor, os livros foram rejeitados. A
publicação demorou mais de uma década para ocorrer, os dois títulos só foram
publicados em 1811 e 1813 respectivamente. Assim como suas personagens,
a autora também cresceu na zona rural da Inglaterra, entre a classe abastada
e religiosa. Em 1801, a família muda-se para Bath. Com a morte do seu pai
em 1805, Jane, sua irmã e sua mãe mudam-se para Chawton, onde um de seus
irmãos lhes tinha cedido uma propriedade.
Durante os últimos anos de vida da autora, quando seus trabalhos
aumentavam no agrado do público, poucas eram as pessoas que sabiam o seu
nome, sem assinar suas obras com seu próprio nome, foi negado a Austen a
fama da autoria. Tal fato não aconteceu só com Austen, como Virginia Woolf
descreveu, essa situação teria sido um resquício do sentimento de castidade que
teria ditado o anonimato às mulheres no século XIX. Currer Bell (pseudônimo
de Charlotte Brontë), George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans) e George
Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin), todas essas autoras
também foram vítimas do conflito interno causado pela pressão da sociedade
e buscaram inutilmente esconder-se atrás de nomes masculinos (Woolf, 1985,
p. 63).
O primeiro livro de Austen foi publicado com a assinatura By a Lady
para que, assim, o verdadeiro nome da autora não fosse levado a público.

350
Contudo, seu poder de observação do cotidiano lhe rendeu suporte suficiente
para criar e dar vida as personagens das suas obras, sendo hoje considerada
como uma das maiores escritoras inglesas e uma das primeiras romancistas
modernas. Segundo a escritora inglesa, Vivien Jones,

Os romances de Jane Austen são comédias românticas. Ou seja, são histórias


de amor com finais felizes. “Comédia” aqui não é somente usada para sugerir
algo que faz rir, mas como o oposto de “tragédia”. Em outras palavras, descreve
uma positiva visão da vida, representando felicidade e ideais. Os romances
de Austen são frequentemente comparados com as comédias de Shakespeare
(JONES, 1997, p. 34).

Jones nos mostra uma característica constante nas obras de Austen,


como já mencionado no início, a autora satirizava inúmeras situações do
cotidiano das personagens e fazia comédia com aspectos culturais da época.
Nos seus romances, Austen mostrava além da procura por um casamento e
um final feliz, seu descontentamento com a sociedade em que vivia, através de
suas críticas e personagens caricatos, transformando seu descontentamento em
sátira e comédia, trazendo um pouco de leveza para sua obra.
Jane Austen aos seus quarenta e um anos já se encontrava infelizmente
acometida pela doença que daria fim a sua vida. Sua doença ainda é um mistério
até hoje. Médicos e historiadores podem apenas supor. Os sintomas apresentados
eram semelhantes aos da doença de Addison, provavelmente adquirida por
meio de uma tuberculose. Os médicos da sua época não possuíam meios para
detectar a “crise de Addison”. É possível também, que Austen fosse vítima de
outra enfermidade. Alguns pesquisadores médicos sugerem que ela sofria de
uma simples tuberculose ou linfoma (câncer benigno nos gânglios linfáticos).
A doença ia se agravando a cada temporada, mesmo Austen insistindo na sua
melhora. No dia 18 de julho de 1817, Jane Austen deu o seu último suspiro de
vida. Seu corpo foi exposto nos cômodos da College Street. Em 24 de julho,
Jane Austen foi enterrada numa câmara mortuária de tijolos na Catedral de
Winchester, histórica igreja da cidade (Reef, 2014).
Após a morte da autora, duas obras foram publicadas postumamente:
Persuasão e A Abadia de Northanger. Finalizado em 1803, mas só publicado
em 18182. O romance lembrava o humor do período da juventude da autora,
2 Esse tempo entre sua finalização e publicação se deu pelo fato de que o editor que comprou os
direitos do livro não o achou bom o suficiente para ser publicado e, por isso, resolveu deixá-lo

351
ao fazer uma paródia dos romances góticos famosos na mocidade de Austen.
A história se divide em dois momentos: no primeiro, a viagem da personagem
principal Catherine Morland com os Allen, seus vizinhos; no segundo, sua
viagem a Abadia de Northanger e a convivência com os Tilneys, família dos
amigos que Catherine tinha cativado durante sua estadia em Bath.
Antes de iniciar análise acerca das relações que se estabelecem nesse
espaço, é importante debater um pouco acerca do próprio conceito de espaço,
que já foi citado, contudo, senti a necessidade de retomar o debate. Nesse estudo,
há um tipo de espaço que me interessa especificamente: o espaço humano ou
social, onde se desenrolam as relações entre as personagens do romance. Ao
levar em conta que o espaço não é vazio, e que o espaço humano só pode se
constituir como tal a partir do seu uso, este só pode ser considerado através da
ligação e vivência entre as pessoas e as atividades que nele se realizam. Dessa
maneira, entendo que o espaço não pode ser compreendido isoladamente, mas
sim, através da interdependência que se estabelece entre ele, as pessoas que o
ocupam e as ações que são executadas dentro de seus limites. Por essa razão, essa
análise será feita a partir das experiências das personagens dentro do espaço
representado no romance, a cidade de Bath. Para isso, inicio caracterizando a
cidade cenário do enredo.
A cidade de Bath fica localizada no sudoeste da Inglaterra e foi fundada
no século I d.C. pelos romanos que foram atraídos pelas suas fontes termais
naturais. Tornou-se na Idade Média um grande centro da indústria de lã. Já
no século XVIII, sob o reinado de George III, desenvolveu-se em uma cidade
elegante e bastante famosa na literatura e na arte, com edifícios neoclássicos que
se misturam harmoniosamente com os banhos romanos presentes na cidade.

Os edifícios georgianos individuais refletem a profunda influência de


Palladio (1508-1580) e sua escala coletiva, estilo e organização dos espaços
entre edifícios simboliza o sucesso de arquitetos como John Woods (ancião
1704-1754, mais jovem 1728-1782), Robert Adam (1728-1792), Thomas
Baldwin (1750-1820) e John Palmer (1738-1817) na transposição das ideias
de Palladio para a escala de uma cidade completa, situada em um oco nas
colinas e construída para uma paisagem pitoresca criando uma forte sensação
de cidade jardim, mais parecida com as cidades jardim do século 19 do que as
cidades renascentistas do século 17 (UNESCO).
de lado. Só após sua morte o irmão de Austen compra os direitos do livro de volta e o publica
postumamente Cf. REEF, 2014.

352
Assim, Bath com suas grandiosas construções arquitetônicas, terraços,
praças neoclássicas formando um conjunto harmonioso com as colinas
circundantes e seu vale verde, se tornou uma demonstração de integração da
arquitetura, design urbano com a paisagem natural criando uma bela cidade.
Além dos seus edifícios e sua paisagem harmoniosa, Bath era muito famosa
por seus passeios, bailes, concertos e festas. Além disso, era conhecida também
por suas fontes de águas termais, onde muitas pessoas, preocupadas com a
sua saúde, se dirigiam para beber a água que borbulhava das fontes térmicas,
acreditando ser esta “a cura para suas enfermidades”: “os turistas tinham muito
o que fazer nessa cidade em expansão. Bath oferecia jardins públicos, ruínas
romanas, bailes, concertos e peças teatrais com atores vindos dos palcos de
Londres” (Reef, 2014, p. 82).
Com toda essa agitação, Bath era o lugar propício para Catherine viver
suas aventuras como heroína. Em um dos bailes, ela dança com um jovem
pároco chamado Henry Tilney. No dia seguinte conhece uma nova amiga,
Isabella Thorpe, com quem divide o mesmo gosto pelos romances góticos tão
famosos na época, como The Mysteries of Udolpho, de Ann Radcliffe, obra que
narra as experiências de uma órfã num castelo em terras distantes. A partir
da amizade com Isabella, Catherine conhece seu irmão, John Thorpe, que
acredita ser ela herdeira de uma grande herança e por isso se sente no “dever”
de cortejá-la.
Logo após esses acontecimentos, Catherine encontra novamente
Henry Tilney e conhece sua irmã, Eleanor, e seu pai, o general Tilney, dono da
abadia que dá nome ao livro. O general ficara sabendo também que Catherine
herdaria uma grande soma de dinheiro e, por isso, ele acaba escolhendo-a
para ser a esposa de Henry. Porém, logo essa história é desmentida e o general
volta atrás com a sua palavra. No entanto, não consegue mais separar Henry e
Catherine, que acabam casando no fim da história, mesmo ela não tendo uma
herança, e sendo, segundo os costumes da época, uma “péssima opção para o
matrimônio” (Austen, 2013).

Os espaços e seus sentidos: aspectos historiográficos e


literários

A Abadia de Northanger foi escrita no fim do século XVIII e publicada


353
no século XIX. Partindo desse pressuposto, analisaremos a seguir alguns
aspectos dados a ler na obra, que representam a sociedade daquele período, que
parece ser um dos mundos mais difíceis de descrever na história social inglesa,
caracterizada como uma sociedade de alta burguesia e gananciosa, no momento
em que se mostra mais visível seu entrosamento com um capitalismo agrário
que é, por sua vez, mediado por títulos hereditários e pelo estabelecimento de
nomes de famílias (Williams, 1989).
Austen escrevia num momento crucial para a Inglaterra e para os
demais países do mundo. Nesse período uma das maiores revoluções estava
acontecendo, ou melhor, “explodindo”, a Revolução Industrial. Isso significa
dizer que a certa altura da década de 1780, pela primeira vez na História, os
grilhões do poder produtivo foram retirados das sociedades humanas, e, com
isso, se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até ilimitada de
homens, mercadorias e serviços (Hobsbawm, 2007).

A primeira grande modificação foi essa que G. M. Trevelyan jamais cessou


de lamentar: o crescimento das cidades e a intensificação do que ele chamava
“a rígida distinção entre vida urbana e vida rural”. Em 1700, mais de três
quartos da população britânica ainda viviam no campo; apenas treze por
cento, segundo se estimava, residiam em cidades com mais de 5 mil pessoas.
Por volta de 1800, porém, a proporção urbana elevara-se para 85 por cento,
e em 1851 os habitantes das cidades estavam em maioria. Além disso, esses
agrupamentos urbanos oitocentistas se diferenciavam do campo com maior
nitidez que seus primeiros predecessores modernos. Antes de terminar o
século XVIII, era evidente que a Inglaterra se tornara, após a Holanda, o país
mais urbanizado da Europa (Thomas, 1988, p. 290).

Como o autor deixa claro, as cidades inglesas cresceram rapidamente


a partir do século XIX, algumas cidades desenvolviam-se economicamente e
socialmente e se antagonizavam com a outra realidade ainda presente, a vida
rural que muitos ingleses ainda insistiam em manter. Austen confirma esse
aspecto quando caracteriza um espaço de trânsito na cidade de Bath, que era
vista por alguns personagens do romance como uma cidade de realizações,
quando comparada ao campo, lugar de moradia da maioria daqueles que
passeavam pelas suas ruas movimentadas:

Em meio minuto do balneário já estavam no arco em frente a Union Passage;

354
mas aqui elas tiveram de parar. Todos os que conhecem Bath devem lembrar-
se da dificuldade de atravessar Cheap Street naquele ponto; é de fato uma rua
de natureza tão impertinente, tão desgraçadamente ligada às grandes estradas
de Londres e Oxford, e ao principal hotel da cidade, que nunca se passa um
dia sem que grupo de senhoras, por mais importantes que sejam seus afazeres,
quer estejam em busca de pastéis, quer de chapéus, quer até (como no caso
presente) de rapazes, sejam detidas de um lado ou de outro pelas carruagens,
pelos cavalos ou pelas carroças (AUSTEN, 2013, p. 47).

As ligações entre as pequenas e grandes cidades se tornavam cada vez


mais frequentes, principalmente com Londres, que naquele período estava em
rápida expansão. Sendo um produto de um capitalismo agrário e mercantil,
desenvolvia-se em ritmo acelerado, absorvendo áreas cada vez maiores do resto
do país e atraindo pessoas de diversas regiões que iam e vinham da cidade
em busca de trabalho ou um “esconderijo” (Williams, 1989). Essas pessoas no
geral vinham das cidades menores e/ou dos vilarejos, e com isso a relação entre
campo e cidade se intensificava, transformando economicamente e socialmente
as relações humanas estabelecidas por esse contato e a representação do campo
e da cidade apresentada por um diálogo entre a personagem Catherine e o Sr.
Tilney:

– Continua achando Bath tão deliciosa como quando tive a honra de lhe fazer
a pergunta antes?
– Continuo... até mais, na verdade.
– Até mais! Cuidado, ou vai esquecer-se de se cansar dela quando chegar a
hora. A senhora deve estar farta de Bath ao fim de seis semanas.
– Não acho que vá cansar-me de Bath se passar seis meses aqui.
– Comparada a Londres, Bath tem pouca variedade, e a cada ano as pessoas
fazem esta descoberta. “Por seis semanas, concordo que Bath seja muito
agradável; mas se passar disso, é a mais enfadonha cidade do mundo.” É o
que diria gente de todo tipo que vem para cá regularmente a cada inverno,
prolonga as seis semanas para dez ou doze e acaba indo embora porque não
suporta mais estar aqui.
– Bom, cada um deve ter sua própria opinião, e quem vai a Londres pode
achar que Bath não é nada. Mas eu, que vivo num lugarejo perdido no interior,
nunca vou achar mais mesmice num lugar como este do que em minha própria
casa; pois aqui há muita variedade de diversões, muita variedade de coisas
para ver e para fazer o dia inteiro, algo que não conheço por lá.

355
– A senhorita não gosta do campo.
– Gosto, sim. Sempre vivi lá, e sempre fui muito feliz. Mas com certeza há
muito mais mesmice na vida no campo do que na vida em Bath. Um dia no
campo é exatamente igual aos outros.
– Mas então a senhorita passa o tempo de um modo muito mais racional no
campo.
– Passo?
– Não passa?
– Não acho que haja muita diferença.
– Aqui a senhorita vive atrás de diversão o dia inteiro.
– E o mesmo acontece quando estou em casa... só que não encontro muita. Eu
passeio por aqui, e faço o mesmo lá; mas aqui vejo todo tipo de gente nas ruas,
e lá só posso visitar a Sra. Allen (AUSTEN, 2013, pp. 85-86).

Nesse fragmento lê-se duas opiniões contrárias, a de Catherine, que


vivendo no campo acredita que a cidade é um lugar bem mais variado em
acontecimentos e pessoas. E a opinião do Sr. Tilney, que já conhecendo o
cotidiano de Bath e de outras cidades como Londres, acredita que a vida no
campo seja mais racional do que a vida na cidade. Keith Thomas (1988) explica
que esse sentimento característico do personagem do Sr. Tilney não era algo
incomum na época. Havia um endeusamento do campo em relação a cidade.
Com a superpopulação e insalubridade que tomaram conta de cidades como
Londres, muitas pessoas viam no campo um ponto de fuga. Longe da fumaça
e do perpétuo barulho, inúmeros habitantes urbanos imaginavam e ansiavam
pelas delícias de uma vida rural, no entanto, Thomas chama atenção para um
ponto que talvez fosse o caso do nosso personagem.
Havia uma tendência a depreciar a vida urbana e encarar o campo como
símbolo de inocência que repousava numa série de ilusões. Os moradores do
campo não eram mais inocentes que os habitantes das cidades. Os poetas e
artistas possuíam um pouco de culpa nessa idealização do campo que várias
pessoas acabavam comprando, pois, a maioria deles pintava o campo como
imune às tensões sociais e as realidades ásperas. Contudo, havia aquelas pessoas,
como Catherine que não se deixava levar por tais discursos, e certamente
não foi persuadida a mudar sua opinião em relação a cidade. Os louvores da
personagem a cidade de Bath são explicados pelos prazeres que ela sentia ao
vivenciar aquele cotidiano de passeios, vitalidade e oportunidades de transitar

356
por diversos ambientes que só a vida metropolitana podia oferecer.
Bath, cidade onde o romance foi ambientado, era vista por Catherine
Morland como um lugar de realizações, cheia de entretenimento e lugares novos
para apreciar, algo que não se via no vilarejo onde morava. Por essa razão, as
cidades eram visitadas constantemente durante algumas temporadas do ano
por famílias que moravam no campo e que buscavam nela serviços que não se
encontravam com frequência onde moravam, como é o caso do Sr. Allen, que
vai para Bath cuidar de uma enfermidade, tendo acesso aos médicos e às águas
termais de seus balneários tão famosos.
A prática de utilizar água como tratamento medicinal remonta as
antigas civilizações gregas e romanas, o uso dessas águas medicinais se dava
nas termas que eram locais luxuosos com áreas para banhos e lazer, onde se
reuniam várias pessoas em busca de cura e diversão (Quintela, 2004). Desde a
ocupação romana, na Antiguidade, Bath se desenvolveu em volta dos famosos
balneários de águas termais. Os romanos, aficionados em banhos, construíram
enormes instalações que serviam como piscinas públicas e como lugar de
encontros casuais e de negócios. Essa tradição se perpetuou durante o tempo
e os balneários continuaram como espaços de sociabilidade até o século XIX
(Berger, 2013):

O balneário era o lugar onde se devia encontrar alguém chegado a Bath


há tão pouco tempo, e ela já havia achado aquele edifício tão propício ao
descobrimento da excelência feminina e ao aprofundamento da intimidade
feminina, tão admiravelmente adequado à troca de segredos e à confiança
ilimitada, que ela estava muito razoavelmente esperançosa de conseguir fazer
mais uma amiga entre aquelas paredes (AUSTEN, 2010, p. 67).

Com isso, a cidade ganhava mais um atrativo para pessoas de diversas


localidades que vinham em busca das águas ditas curativas. Naquele período o
termalismo era algo comum. Termalismo era a prática de utilizar a água como
tratamento medicinal (Quintela, 2004). Além dessa prática, os balneários
também serviam como espaços de sociabilidade. Multidões entravam e saíam a
cada momento durante os períodos de maior movimento.
Além do balneário, o cotidiano de Bath também incluía saídas aos
domingos para a Igreja e outras construções monumentais características da
cidade, como o Royal Crescent, uma célebre construção em forma de crescente,
357
que reúne cerca de trinta casas de alto luxo em Bath. A experiência de visitar
esse edifício também foi caracterizada por Austen.

Assim que terminou o serviço divino, as Thorpes e os Allens reuniram-se com


alegria; e depois de passarem tempo suficiente no balneário para descobrirem
que a multidão estava insuportável e que não havia nenhum rosto interessante
para verem, o que todos descobrem a cada domingo durante toda a estação,
foram correndo ao Crescente, para respirarem o ar fresco de melhor
companhia (AUSTEN, 2013, p. 37).

Segundo Richard Sennett, “uma cidade é um assentamento humano no


qual estranhos irão provavelmente se encontrar” (Sennett, 2014, p. 58). A partir
de tais encontros várias atividades se desenvolviam e podiam ser encontradas
nas cidades, tais quais os teatros e bailes, que serviam também como espaços
de sociabilidade bastante comuns: “dançar era uma atividade social popular
na Inglaterra do século XVIII” (Reef, 2014, p. 59). Além de ser uma prática
social, a dança permitia que os jovens se conhecessem. Para muitas moças que
frequentavam os Salões Inferiores para os bailes, esta era uma oportunidade de
encontrar quem poderia vir a ser seu marido em um futuro próximo.

O espaço do salão encontra um prolongamento que parece paradoxal, já que


consiste num local público e é tratado como um espaço privado: o camarote
do teatro ou da ópera. Segundo os códigos oitocentistas, uma dama pode
assistir sozinha a um espetáculo, sob a condição de que ocupe um lugar
num camarote. Se ocupar uma poltrona do balcão ou da plateia, deverá
estar acompanhada por um homem, marido, irmão ou parente. São espaços
abertos, expostos, onde ela precisa de um guardião, sob pena de recair sobre si
a suspeita de ser uma mulher “pública”, tal como onde se encontra (MARTIN-
FUGIER, 2009, pp. 191-192).

Havia, nessa época, um código de conduta e moral a se cumprir, pois


a concepção do entendido como “valores da sociedade”, parecia esperar um
comportamento “digno de uma mulher” com idade para se casar. Uma moça
solteira deveria sempre estar acompanhada em público, e só podia falar com
um rapaz caso estivessem sido adequadamente apresentados. É importante
lembrar que as noções de público e privado como entendemos atualmente
já estavam estabelecidas desde o século XVIII. Com o “público” significando

358
algo aberto à observação de qualquer pessoa, enquanto “privado” significava
uma região mais restrita e protegida, definida pelo lar e família. A região do
público tinha para o homem burguês uma conotação moral, já para a mulher
era associada ao lugar de desgraça, onde se corria o risco de perder a virtude
(Sennett, 2014). Seguindo os mandos sociais, e personificando os papéis
esperados de cada um, Catherine só foi apresentada ao jovem Tilney através de
um mestre de cerimônias:

A nobreza e os gentry orgulhavam-se de seus modos, internalizados desde


quase o nascimento. Um elaborado código de etiqueta governava cada
interação social, mesmo as triviais. As regras ditavam como as ladies e
gentlemen entravam na sala de jantar, quem falava primeiro quando as
pessoas eram apresentadas, e onde e com quem uma lady poderia conversar.
Demonstrar as maneiras apropriadas, independentemente da posição social,
significava vir de “um bom berço”, ou ter recebido uma criação sólida (REEF,
2014, p. 32).

Os costumes moldavam a maioria dos aspectos da sociedade inglesa,


até mesmo uma simples troca de conversas entre dois jovens devia seguir
normas estabelecidas: por isso, cada pessoa tinha o seu espaço moldado de
acordo com tais regras. O lugar da mulher foi de longe o que mais sofreu com
tais normas, já que, diante de uma sociedade patriarcal, ela deveria se submeter
às vontades de outras pessoas, antes de satisfazer as suas próprias.
Além disso, como já dito no início, o estudo de História e Política era
restrito aos homens; às mulheres restava o estudo do canto, da pintura e de
atividades domésticas, tais como o corte e a costura. “A situação de ignorância
em que se pretende manter a mulher é responsável pelas dificuldades que
encontra na vida e cria um vínculo vicioso: como não tem instrução, não está
apta a participar da vida pública, e não recebe instrução porque não participa
dela” (Telles, 2009, p. 406). Por isso, elas eram impedidas de se envolver na
política, tanto pelo desconhecimento, quanto por esse ser um espaço público
e, portanto, reservado aos homens: “[...] tanto na vida quanto na arte, a mulher
no século passado (XVIII) aprendia a ser tola, a se adequar a um retrato do qual
não era a autora” (Idem, 2009, p. 403).
Portanto, percebe-se, à medida que chego ao fim desta discussão,
que Jane Austen, mesmo escrevendo durante um período de grandes

359
acontecimentos, decidiu ignorar os eventos históricos que estavam ocorrendo
e focalizar em um problema (Foucault, 2003), ela optou por desenvolver toda
a trama a partir das relações sociais dentro das salas aristocráticas e burguesas,
abordar as falhas na moralidade da época, a ganância, o egoísmo e como isso
impactava na vida de cada indivíduo e isso talvez, seja o que faça sua obra
ser tão política quanto qualquer outra. Prendendo seu olhar principalmente
numa história social das famílias de proprietários rurais ingleses daquele
tempo, representando seus processos estruturais e os padrões que orientavam a
sociedade e o comportamento humano (Williams, 1989). Todos esses processos
estavam diretamente ligados aos costumes da época, mas também às mudanças
que vinham ocorrendo provenientes da Revolução Industrial em curso. Tais
mudanças não só afetavam as grandes cidades como Londres e Oxford, mas
também a vida dessas famílias no campo, nas pequenas cidades e o cotidiano
dessas pessoas ditas “comuns”. E mesmo não direcionando seu trabalho para a
história dos grandes nomes e acontecimentos, Austen consegue representar os
aspectos por muitas vezes deixados de lado pelos estudiosos: a vida cotidiana
e as mudanças sociais que foram transformadas com a Revolução Industrial e
seus desdobramentos. Ela própria ao se lançar em projeto, como o da escrita,
tão pouco atribuída às permissões das mulheres de sua época, contribuiu para
emergir (re)configurações das posições das mulheres: seja em sua obra, seja na
sua prática como escritora crítica.

Considerações finais

A fonte literária é sem dúvidas um importante objeto de estudo para


a história, na medida em que pode ser um meio de interpretar, compreender
e acionar aspectos de determinadas realidades sociais, tendendo a se expressar
na literatura. A utilização da literatura como fonte histórica possibilita o acesso
a uma ampla gama de meios que pude utilizar para encontrar visões sobre as
sociedades de outras épocas suas particularidades.
Enriquecendo assim o trabalho da pesquisa histórica, ao mostrar
um olhar – com base em fontes literárias - sobre o passado, trazendo para o
debate novas discussões e conceitos a serem suscitados. A discussão sobre
as mulheres nas sociedades, as desigualdades de gênero, confinamentos
espaciais e generificação dos espaços, pode e deve ser percebida e colocada

360
em questionamento a partir do uso da literatura, principalmente nesse caso,
utilizando-se de uma literatura feminina para discutir sobre os chamados
espaços designados para as mulheres na sociedade inglesa.
Jane Austen foi mobilizada, portanto, como uma dessas possibilidades.
Ao retratar o cotidiano de pessoas comuns da Inglaterra no início do século XIX,
uma sociedade rural que, mesmo a autora, vindo de uma classe social ‘dos de
cima’ e longe dos grandes centros, vivencia alguns processos de transformações
pelos quais a Inglaterra estava passando naquele momento, e pela ironia, teceu
concepções sobre o momento em que viveu.
A obra de Austen, apesar de pouco estudada por historiadores brasileiros,
nos permite pensar questões tais quais foram discutidas anteriormente e nos
possibilita entender como estavam organizados os espaços, as cidades e a
própria sociedade inglesa no início do século XIX de tal forma que a projeção
das relações sociais de gênero conformava os espaços e as concepções sobre
esses. Austen criou personagens bem elaboradas e marcantes, cheias de
virtudes, preconceitos e que representam a influência do público e do privado
nas relações familiares. Personagens essas que recriaram e perpetuaram um
imaginário sobre os traços e peculiaridades da sociedade inglesa do século XIX.
Tais traços impulsionam a busca pela visualização da história através de outro
ponto de vista, para melhor compreender essa sociedade em transformação e
suas peculiaridades. A literatura se apresentando como esse outro caminho,
outro olhar, torna-se, portanto, uma ótima possibilidade de observação e
pesquisa sobre os hábitos sociais que dão cores à história e que podem e devem
ser focos de análise do nosso trabalho enquanto historiadoras e historiadores.

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364
Uma literatura menor: as reminiscências
de um Brasil escravocrata na música Negro
drama, de Racionais MC’s

Davi Benvindo de Oliveira


Mestrando em História do Brasil pelo Programa de Pós-Graduação da Uni-
versidade Federal do Piauí (PPGHB – UFPI). E-mail: davideoliveirahist@
gamil.com.

“Tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo.”
(F. Nietzsche)

Introdução

A música, esse complô de palavras que interpela enunciações por meio


de arranjos sonoros, que traça linhas de fuga, compondo a vida, o cotidiano,
as dores existenciais de um indivíduo ou grupo, sendo válvula de escape para
emoções, também é uma expressão da arte que serve como uma fonte de análi-
se da sociedade, uma espécie de representação social, assim como é a literatura.
Por meio da música é possível retratar contextos históricos, tecer críticas polí-
ticas e sociais, valorizar elementos culturais de certo grupo.

A música é definida como um meio de interação social, produzida por espe-


cialistas (produtores) para outras pessoas (receptores); o fazer musical é um
comportamento aprendido, através dos quais sons são organizados, possibili-
tando uma forma simbólica e comunicação na inter-relação entre indivíduo e
grupo (PINTO, 2001).

365
A música é um engajamento político, uma forma de militar por uma
causa, de expressar uma ideologia, de se posicionar politicamente diante de
uma realidade contida no quadro social, com toda a sua multiplicidade en-
quanto um veículo reprodutor de um discurso.
Sendo assim, este trabalho tem como proposta analisar a música “Ne-
gro Drama” da banda Racionais Mc’s, ressaltando as reminiscências do Brasil
escravocrata tão presentes na nossa sociedade, apontando isso por meio de al-
guns trechos da letra da música e utilizando de alguns autores como Gilberto
Freyre, Florestan Fernandes, Certeau, Deleuze e Guattari para a fundamenta-
ção teórica.
Analisar a música a partir do conceito de “literatura menor” de Deleu-
ze & Guattari, para quebrar com o binarismo racial construído pela sociedade
colonial ainda presente hoje que abre inúmeras possibilidades para os brancos
e restringe os negros as poucas possibilidades em uma baixa posição na estru-
tura social: o branco – símbolo de ascensão social, do que é bom, do cidadão; o
negro – o favelado, o suspeito, o marginal, o “eterno escravo”, como se por sua
cor foi um motivo de ser o que é (no sentindo de restrição, de não poder pas-
sar daquilo: o suspeito, o marginal) estabelecido por um discurso arborescente
enraizado na sociedade.
Isso aprisiona o indivíduo de pele escura em um padrão discursivo que
se consolida no corpo social. O negro é negro. É preciso quebrar o verbo é, pois
a pessoa de pele escura também pode devir, devir o advogado, o professor, o
cantor de rap, o jogador de futebol, o médico, o engenheiro, o presidente etc.
De antemão, é necessário discorrer sobre o termo “menor”, o que não
tem haverá com um conceito quantitativo em seu uso terminológico, mas so-
bretudo, o uso de uma unidade de uma linguagem própria (com suas expres-
sões e dialetos) inserida numa linguagem homogênea (maior). A minoria é
rota de fuga diante da maioria que “supõe um estado de poder e de dominação,
e não o contrário” (DELEUZE; GUATARRI, 2011b, p. 55).
Por literatura menor este trabalho entenderá que, o rap como uma mú-
sica classificada como composição de grupo marginal, como uma linguagem
própria que abre fuga diante da linguagem padrão e se transforma em um veí-
culo de levar informações do drama do cotidiano do negro/pardo dos guetos,
da favela, denunciando a desigualdade social a partir do olhar racial.

366
Da escravidão no Brasil aos tempos atuais
Da África foram trazidos vários grupos étnicos de negros escravizados
para desempenhar as mais diversas atividades no Brasil. Como em grande par-
te da América que se serviu da mão de obra escrava, os negros passaram por
um processo de “despersonalização”, tendo que deixar seus costumes para se
adaptar a cultura imposta pelo europeu1.
Os negros escravizados desempenharam trabalhos na agricultura, bem
como nas atividades domésticas e também urbanas. Os que se situaram no
campo, trabalhavam nas lavouras de arroz, algodão, cana de açúcar, café, fumo,
extração de metais preciosos se sujeitando as situações mais insalubres e peri-
gosas, e também na criação de gado. Os escravos mais “dóceis” eram escolhidos
para cuidarem dos serviços das casas grandes e dos serviços urbanos como
recolher lixos, carregar água, trabalhar nas edificações, transporte de merca-
dorias, sem falar que no século XIX, algumas das primeiras fábricas brasileiras
se serviram de mão de obra escrava para as suas construções e funcionamento.
A escravidão desempenhou durante muitos anos um empreendimento
muito lucrativo para os senhores que enriqueceram, expandiram suas terras,
construíram enormes casarões que ostentavam as riquezas de uma sociedade
marcada pela exploração desumana de um povo que veio de outro continente,
forçadamente, e foi violentado das mais diversas formas (física, cultural, sexual,
mental).
Os negros eram vistos como “objetos”, “coisas” em que seus senhores
podiam usar, usufruir como bem quisesses e se disporem como bem convi-
nham. Alguns eram postos à venda em anúncios de jornais. Gilberto Freyre
(2012), por meio da obra “O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do sé-
culo XIX”, aponta que seria possível, por meio dos anúncios de jornal, fazer
uma espécie de mapeamento da região ou o povo de origem de, pelo menos,
alguns dos negros escravos que estavam nas colunas dos periódicos em que
se buscava, por meio dos anúncios, recuperar ou vender, além de apontar que
alguns deles traziam marcas gravadas através de ferro em brasa como se fosse
um carimbo de seus proprietários.

1 Os negros não foram passivos, houve muita resistência que gerava revoltas, fugas e constituição
de quilombos, porém, não conseguiram conservar, a grosso modo, a cultura de sua terra mãe,
sofrendo assim um sincretismo cultural.

367
Os negros que se revoltavam e abriam fuga para formarem mata a den-
tro quilombos eram caçados pelas autoridades como se fossem “bichos” por se-
rem considerados uma “classe perigosa”. Muitos foram oprimidos, capturados,
mortos nessas empreitadas organizadas por tropas dos senhores de engenhos e
das autoridades públicas, pois “os quilombos eram sinônimos de transgressão
à ordem escravista (GOMES, 2015, p. 16)” A investida dos senhores do siste-
ma escravista diante dessa forma de resistência era uma maneira de coibir e
reprimir as fugas que prejudicavam os negócios, dando prejuízo em seus inves-
timentos lucrativos, pois muitos escravos, ao tomarem conhecimento de qui-
lombos, organizavam escapatórias e alguns, ao desembarcarem pós o translado
do tráfico atlântico, já empreendiam fuga.
O sistema “colonial patriarcal de colonização português”, nos dizeres
de Freyre (2003), foi um sistema que deu uma plasticidade na sociedade brasi-
leira contemporânea por meio de duas tendências. Uma, a imposição imperia-
lista de uma raça dita adiantada (branca europeia) sobre uma atrasada; a ou-
tra, representou também uma contemporização das formas europeias às novas
condições de vidas e ao meio.
Mesmo depois do fim da escravidão, a população negra brasileira ficou
confinada aos níveis mais baixos da estrutura social. Na transição do século
XIX para o XX, muitos negros foram excluídos até mesmo do sistema de pro-
dução do trabalho assalariado, muitos comerciantes e as recém industrias que
iam se instalando no país preferiam (dando prioridade) a mão de obra imigran-
te europeia do que a negra brasileira (o que geraria conflitos intensos), como
apontam os estudos feitos por Florestan Fernandes (1989) e Sidney Chalhoub
(2012).
Eventos como a Abolição da Escravidão, a Proclamação da República
e uma conquista democrática foram acontecimentos voltados apenas a elite.
Como diria Florestan Fernandes, essa desvinculação brasileira do sistema es-
cravista foi feita em favor de uma classe dominante, a classe branca.

Ora, a revolução social vinculada à produção escravista e da ordem social cor-


respondente não se fazia para toda sociedade brasileira. Seus limites históricos
eram fechados, embora seus dinamismos históricos fossem abertos e duráveis,
naqueles limites não caberiam nem o escravo e o liberto, nem o “negro” ou o
“branco pobre” como categoria sociais. Tratava-se de uma revolução do para
as elites; no plano racial, de uma revolução do BRANCO para o BRANCO,

368
ainda que se tenha de entender essa noção em sentido etnológico e sociológi-
co (FERNANDES, 1989, p. 13-14).

Parece que a estrutura social da colônia não só marcou o público e o


privado como apontou Buarque de Holanda (1995), mas está presente os res-
quícios da escravidão também no setor público ainda hoje (só que em nova
roupagem), o que marcou as relações privadas entre senhores e seus escravos,
quando olhamos a grande diferença entre brancos e negros nos setores públi-
cos, como em concursos e no ensino superior em que a população branca tem
maior expressividade numérica. Não foi à toa que em 2012 foi criada a lei nº
12.711, conhecida como lei de cotas, numa tentativa de amenizar essa realidade
desigual entre negros e brancos no setor do ensino e do concurso público.
No âmbito do sistema prisional, a população de pele escura é a que
está em maior parte presente, um dado revelador e denunciador da grande dis-
tinção social a partir da pele. Isso são alguns fatores que representam a triste
realidade brasileira em que o preconceito racial ainda está fortemente arraiga-
do. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(IFOPEN), cerca de 61, 7% da população carcerária brasileira é composta por
pessoas negras e pardas.2
Dentro dessa realidade, poucos homens e mulheres negras conseguem
se destacar, ou por meio da música, da literatura, dos estudos, do trabalho, mas
para alguns estudiosos, não chegam a representar um forte poder real dentro
do corpo social.

Qualquer homem negro no Brasil por mais famoso que seja ou por maior
mobilidade social que tenha experimentado não tem poder real. Não é dono
dos bancos, não tem controle das grandes empresas, não tem representação
política ou reconhecida importância intelectual e acadêmica. Esses são os ele-
mentos concretos que investem de poder pessoas ou segmentos em nossa so-
ciedade (CARNEIRO, 1995, p. 547).

Apesar do forte poder centralizado sobre um grupo que mantinha o


sistema escravista e disseminava a ideologia branca eurocêntrica (ainda tão

2 Site. Câmara dos deputados. Sistema carcerário brasileiro: negros e pardos na prisão. Dispo-
nível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanen-
tes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao. Acessado em:
09/07/2019.

369
presente no Brasil dos dias hodiernos) em detrimento dos negros, houve re-
sistência por parte dos escravizados, por meio dos quilombos, das fugas, da
conservação da religiosidade, da tradição oral, da música.
A apesar de alguns passos importantes dado na história do Brasil, como
a Abolição da Escravidão, a Proclamação da República, a Constituição de 1988
- considerada até mesmo a primeira Constituição cidadã, nos dizeres de Murilo
de Carvalho (2012) - , parece que o tempo tomou um formato de um cristal, no
qual, mesmo passados os anos do fim da escravidão, os discursos de um grupo
branco dominante oriundo da sociedade colonial permanecem em um tempo
próprio, congelado, dentro de um Brasil considerado moderno; discursos estes,
talvez, revestidos em nova roupagem.
Como se na escala temporal entre passado/presente, o presente tivesse
sido fraturado, e que um grau do tempo cristal é composto por um passado
contraído (um grau cristal), “pois o presente é o grau mais contraído do passa-
do que com ele coexiste (...)” (DELEUZE, 2018, p. 121), ou seja, uma espécie de
repetição do antigo, ainda que inserido em postulados novos.

“Daria um filme”: a música do gueto, o drama negro e o


rap como literatura menor

“O tempo cinematográfico não é o que escorre, mas o que dura e coexiste.”
(G. Deleuze)

“Lá onde há poder, há resistência.”


(M. Foucault)

A música “Negro Drama” - lançada em 2002, no álbum Nada como um


dia após o outro dia, composta pela banda Racionais Mc’s – é um clássico do
rap brasileiro. Retratando o cotidiano das favelas onde o negro constantemente
sofre discriminações, a música é uma resistência negra para denunciar as falhas
de um sistema dito democrático, que ainda tem presente as reminiscências de
um tempo escravocrata.
“Negro drama/tenta ver e não ver nada/a não ser uma estrela/longe,
meio ofuscada”3 é um trecho do início da música que narra o drama de um
3 NEGRO drama. Compositores: Edy Rock, Mano Brown, in: Racionais Mc’s. Nada como um dia
após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica CD, 2002. (110 minutos).

370
negro que tenta buscar alguma luz no fim do túnel, porém, vê apenas um foco
de luz ofuscada, representando um desejo de ascender socialmente e quebrar
com as barreiras que o coloca em situações desfavoráveis economicamente e
socialmente.

O negro é marginalizado porque é pobre ou porque é negro?


- Pelas duas coisas. São dias barreiras simultâneas. Uma, racial e outra, eco-
nômica. Quando ele consegue vencer uma delas, a social, ele tem a racial. A
barreira racial existe concomitantemente e em vários graus. Há grupos que
discriminam, outros que não, variando também a intensidade, dependendo
do grupo social, da formação cultural, de uma série de fatores (FLORESTAN,
1989, p. 97).

O drama está entre a vontade do negro que tem o desejo de ver, mas
não vê nada, como se as suas possibilidades fossem reduzidas drasticamente,
tendo as vezes pouquíssimas referências de pessoas de pele escura que se desta-
caram de alguma forma na vida (“a não ser uma estrela longe meio ofuscada”).
Valer ressaltar que a problemática que percorre uma dimensão do “de-
sejo” sobre os estudos relacionados ao racismo não fazia parte dos debates de
pensadores. O filósofo e psiquiatra francês da Martinica Frantz Fanon (2008),
ao criticar a psicanálise por não incluir os negros em suas análises de estudos,
problematiza a questão do “desejo” sobre os dilemas que os negros enfrentam
diante das várias máscaras brancas que lhes são impostas diante de um tecido
social de fortes raízes brancas coloniais, restringindo ao negro um mundo fe-
chado sobre sua pele, tendo uma de suas poucas alternativas para “ascender
socialmente” se sujeitar a personalização branca, sentindo-se assim um branco.
Fazer um comparativo da música da banda de rap Racionais Mc’s com
o termo “literatura menor” de Deleuze & Guattari é enquadrar a música numa
categoria de linguagem (com suas gírias, palavrões e formas de se expressar
próprias dos jargões das comunidades carentes e dos rappers) que rompe com
uma estrutura social e atinge o cenário musical brasileiro como músicas da
vertente da MPB, por exemplo.
Quando os dois intelectuais franceses se propuseram a escrever Kafka
por uma literatura menor, ambos pensaram a literatura como um tipo de agen-
ciamento que possibilitasse um decalque para uma espécie de representação do
pensamento, uma linha de fuga que torna-se viável a manifestação das multi-

371
plicidades e suas experimentações, pois o pensar não está dissociado da expe-
rimentação.
O escritor de língua alemã Franz Kafka, considerado um dos mais in-
fluentes do século XX, tinha uma forma própria de escrita, rompendo com a
tradição da literatura da época que exigia uma certa erudição. O escritor colo-
cava na fala de seus personagens palavras coloquiais, expressões presentes nas
gírias dos guetos judeus. E nisso consiste o termo “literatura menor”, não no
sentido de colocar a literatura numa escala de grande e menor importância,
mas de uma forma de possibilitar a voz de uma minoria.
Nesse sentindo, a música do gueto é uma forma das multiplicidades se
manifestarem, afirmando a heterogeneidade da cultura brasileira que tenta ser
sufocada pelos discursos de dominação de uma classe branca de forte influên-
cia das raízes ibéricas que chegam a classificar o rap como “música de bandido”,
“música de negro”, “música de favelado” (como se favelado fosse algo ruim e
digno de menosprezo), entre outros empregos de adjetivos pejorativos, uma
amostra clara que as reminiscências de um Brasil dicotômico escravista está
presente ainda no que diz respeito às distinções entre Casa-grande/Senzala,
Sobrado/Mocambo.
As músicas da banda Racionais Mc’s surgem nas vielas da favela Ca-
pão redondo em São Paulo como um veículo que levava uma mensagem da
discrição do cotidiano pobre (uso e venda de drogas, exclusão social, violência
policial etc.), era uma espécie de “tática” nas palavras de Michel de Certeau, em
que os negros, sobretudo, marginalizados tiveram oportunidade de denunciar
o drama vivido por eles diante de um Brasil segregacionista com raízes finca-
das em um passado marcado pela escravidão. “Em suma, a tática é a arte do
fraco” (CERTEAU, 1998, p 101), e disso o fraco se utiliza com astúcia como um
último recurso perante as estratégias de dominação.
A música pode ser classificada como uma literatura no sentido de que
nela está contido enunciados carregados de desejos, sentimentos, afetos, repre-
sentações socias etc., nesse sentindo, “o enunciado pode ser de submissão, de
protesto, de revolta, etc. (...) (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 109).” E que não
é só a classe dominante que detém poder, com a arte é possível que a minoria
pudesse também ter voz.
A música tornou-se um agenciamento que quebrou o paradigma de
que o poder é apenas algo destinado ao mais forte, as classes dominantes. O po-

372
der não é mais uma relação de força singular, o poder é plural. Deleuze (2005,
p. 78) compreende que o poder não é mais uma forma, como por exemplo a
forma-Estado; a força não é singular, mas se relaciona com outras forças, ou
seja, o poder se exercer tanto pelo mais forte quanto pelo mais fraco.
Daria um filme os elementos narrativos da música “Negro Drama”, mú-
sica esta que é uma maneira marginal de denunciar o esquecimento das políti-
cas públicas ao se tratar do sujeito negro, a repressão do Estado sobre os negros,
o drama social vivido por uma família negra em que a mãe e seu filho tentam
sobreviver em uma grande metrópole sem a figura do pai no sustento da casa;
as poucas opções que um negro favelado tem de mudar de vida (música, crime
e futebol) e a preocupação dos autores de enfatizar que a letra não é apenas
ficção, mas um retrato da realidade no seguinte trecho: “Histórias, registros/
Escritos/Não é conto/Nem fábula/Lenda ou mito.”4
A música ainda retrata o que foi descrito no tópico acima com rela-
ção ao trauma da cor de sua pele que o coloca em uma posição desfavorável
na sociedade (“preto fudido”), ressaltando os elementos do seu drama como
“túmulo, sangue, sirene, choros e velas”, o que ratifica o que foi descrito no
tópico acima em relação à violência policial para com pessoas de pele escuras,
as penitenciárias que tem maior número de detentos de pele escura; colocando
os espaços mais associados também aos protagonistas desse drama, que são as
periferias, as vielas e os cortiços:

Negro drama, eu sei quem trama e quem tá comigo/O trauma que eu carrego
pra não ser mais um preto fudido/O drama da cadeia e favela/Túmulo, sangue,
sirene, choros e velas/Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia/Que sobrevivem
em meio às honras e covardias/Periferias, vielas, cortiços/Você deve tá pen-
sando: O que você tem a ver com isso?5

O que a sociedade tem a ver com esse trauma do cotidiano da pele es-
cura? Um questionamento que vale refletir sobre uma certa passividade social
do preconceito e da discriminação de raça. E até mesmo o Estado é conivente
com isso diante de uma denúncia clara na parte em que diz “Recebe o mérito, a
farda que pratica o mal/Me ver preso, pobre ou morto já é cultural”6.
4 NEGRO drama. Compositores: Edy Rock, Mano Brown, in: Racionais Mc’s. Nada como um dia
após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica CD, 2002. (110 minutos).
5 Idem.
6 Idem.

373
Ao analisar casos de violência policial nos Estados Unidos e no Brasil
em sua pesquisa de pós-doutorado, Matos trouxe para as suas discussões o caso
de Amarildo de Souza, morador da favela da Rocinha no Rio de Janeiro, no
ano de 2013, que desaparecido, foi brutamente assassinado por um grupo de
policiais da UPP. Houve uma forte campanha nas redes socias pelo paradeiro
do pedreiro.

Apesar de toda a repercussão do caso nas redes sociais que levaram a uma
cobertura mais ampla da grande mídia sobre o desaparecimento de Amarildo,
até julho de 2015 não havia qualquer informação sobre onde estaria o seu cor-
po, embora as investigações já apontassem para o fato de que ele foi torturado
e morto por policiais nas dependências da UPP. Naquele mês, foi divulgada
pela TV Globo a análise feita sobre imagens gravadas por câmeras de seguran-
ça da favela da Rocinha no dia que o pedreiro foi levado pelos PMs, mostran-
do um veículo do Batalhão de Choque da Polícia Militar (BOPE) deixando a
sede da UPP com dois policiais sentados na parte traseira e tendo a seu lado
um saco preto com volume e forma comparável com a de um corpo humano
(MATOS, 2017, p. 201-202).

O Ministério Público entrou em ação abrindo o processo de ação penal


pública que levou a condenação de 13 policiais. O que chamou a atenção nos
autos da sentença foi o que a magistrada que julgou o caso escreveu na funda-
mentação da peça.

A juíza Daniela Alvarez Prado, responsável pelo julgamento, escreveu na sen-


tença que Amarildo foi “vítima de uma cadeia de enganos, era vulnerável à
ação policial, além de ser negro e pobre em uma comunidade à margem da
sociedade”. Além de classe social e lugar de resistência, o reconhecimento do
racismo pelo sistema judiciário como fator chave para a vulnerabilidade da
vítima na abordagem policial (...) (MATOS, 2017, p. 202, grifo nosso).

Mais recente, em 1º de maio de 2019, o músico Evaldo Rosa, negro, de


51 anos, foi morto pelas tropas do exército com 80 tiros ao ser confundido com
bandido pelos miliares no Rio de Janeiro. Esse lamentável fato gerou repercus-
são nacional e ensejou protestos.

374
Imagem retirada da página Expresso Mageense em uma matéria
que aborda a morte do músico Evaldo Rosa.7

Retomando a letra da música, mais adiante, no trecho “Não foi sem-


pre dito/Que preto não tem vez/Então olha o castelo e não/Foi você quem fez
cuzão”8, os autores denunciam uma sociedade que em seu seio é sempre dito
“que preto não tem vez”, pois há até mesmo uma passividade social diante do
preconceito racial, o que chega até mesmo a dificultar a ascensão social de mi-
norias étnicas, nas análises de Florestan Fernandes:

(...) várias pesquisas feitas em sociedades nacionais distintas, mostram que o


preconceito e a discriminação raciais dificultam a ascensão social de minorias
étnicas ou raciais. (...) A situação brasileira já foi definida por alguns especia-
listas, como sendo neutra em relação ao preconceito de raça e à discriminação
racial (FERNANDES, 1972, p. 45).

A figura do negro é marginalizada, excluída diante da construção his-


tórico social (“castelo”), embora eles dirijam essa construção à sociedade, so-
bretudo aos grupos dominantes, com a palavra “cuzão”, uma gíria que pode
designar uma “pessoa com atitude mal intencionada.” O Fato do uso de gírias
e palavras que soam um tanto agressivas mostra como alguns grupos tem sua
própria linguagem, uma resistência até mesmo por meio da língua que apre-
senta multiplicidades, linhas de fuga que desterritorializa e reterritorializa os
sujeitos.
7 OLIVEIRA, Newton de. A carne mais barata do mercado é a negra. Disponível em: https://ex-
pressomageense.com/2019/04/08/a-carne-mais-barata-do-mercado-e-a-carne-negra/. Acessado
em 07/07/2019.
8 NEGRO drama. Compositores: Edy Rock, Mano Brown, in: Racionais Mc’s. Nada como um dia
após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica CD, 2002. (110 minutos).

375
Não existe uma língua-mãe, mas tomada de poder por uma língua dominante
dentro de uma multiplicidade política. A língua se estabiliza em torno de uma
paróquia, de um bispado, de um capital. Ela faz bulbo. Ela evolui por hastes e
fluxos subterrâneos, ao longo de vales fluviais ou de linhas de estradas de fer-
ro, espalha-se como manchas de óleo (DELEUZE; GUATTARI, 2011a, p. 23).

Para Deleuze & Guattari (1977), as três caraterísticas que compõem uma
literatura menor são: a desterritorialização da língua; a ramificação individual
no imediato político e o agenciamento político de enunciação.
O rap surge como uma língua que subverte o modelo tradicional da nor-
ma culta e do comedido uso da língua (uma moralidade para não usar termos
ofensivos e imorais) em que se pode encontrar em músicas do movimento tro-
picália, por exemplo. O rap não ter pudor para o uso de palavras ofensivas,
indecentes e palavrões, instalando um movimento de enunciações dentro da
própria linguagem com, por exemplo, o uso de gírias criadas por cada comuni-
dade ou grupo. “Cada função de linguagem, por sua vez, se divide e comporta
centros de poder múltiplos” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 37).
A música “Negro Drama” - como outras músicas de Racionais Mc’s -
rompe com a linguagem padrão, aplicando-se sobre o político e a partir dos
seus agenciamentos enunciativos, atingem as mais variadas camadas brasilei-
ras, levando à luz o cotidiano das favelas e o drama que o negro carrega consigo
desde a escravidão, só que agora um tanto que velado, mais disfarçado, o que
não signifique que os protestos e a resistência não sejam explícitos.
No trecho a seguir, fala das dificuldades que é a vida para o negro na
sociedade brasileira, marcada por assassinatos e homicídios (quando há re-
preensão para essas práticas por parte da música), expos que o cenário que se
encontra a população negra e pobre é um espaço de guerra que até mesmo a
palavra “pesadelo” é um elogio:

Falo por mano/Que não morra e também não mate/O tic tac não espera/Veja
o ponteiro /Essa estrada é venenosa/E cheia de morteiro/Pesadelo/Hum, é um
elogio/Pra quem vive na guerra a paz nunca existiu/No clima quente/A minha
gente soa frio/Tinha um pretinho e seu caderno era um fuzil.9

9 NEGRO drama. Compositores: Edy Rock, Mano Brown, in: Racionais Mc’s. Nada como um dia
após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica CD, 2002. (110 minutos).

376
A letra expõe a dura vida do negro na favela diante de uma guerra civil
urbana entre facções criminosas e confronto entre as forças de segurança do
Estado contra essa facções, bem como a triste realidade de muitas crianças que
deveriam estar na escola portando seu material escolar (livro, caderno, caneta,
lápis etc.), porém, em idade tenra, caem no mundo do crime e passam a portar
um fuzil ao invés de um caderno.
Dentro desse cenário dramático, a figura do negro fica no fogo cruzado
(“No clima quente/A minha gente soa frio”) sempre acusado do estereótipo de
“suspeito” e “criminoso” que deve ser abordado, preso e fuzilado sem direito
ao devido processo legal. Isso reporta o estereótipo negro muito dissemina-
do no Brasil escravagista de que o negro era uma “classe perigosa”, que se não
controlada (ou seja, escravizada e territorializada devidamente ao padrão da
sociedade da época), poderia representar um risco para o bom funcionamento
da sociedade.
Na segunda parte da música, um dos autores apresenta três formas de
ascensão negra, sendo elas o crime, o futebol e a música, podendo dar inúme-
ros exemplos de histórias, porém, ele preferiu contar a sua própria:

Crime, futebol, música, caralho/Eu também não consegui fugir disso aíEu sou
mais um/Forrest Gump é mato/Eu prefiro contar uma história real/Vou contar
a minha.../Daria um filme/Uma negra e uma crianças nos braços/Solitária na
floresta de concreto e aço/Então veja, Olha outra vez/O rosto na multidão /A
multidão é um monstro/Sem rosto e coração10

Esse trecho retrata a vida de um dos componentes da banda, o Mano


Brow, que preferiu musicalizar fatos que marcaram sua vida. O autor não foi
apenas um narrador, mas um personagem que tem muito em comum com a
narrativa. “O autor, não entendido, é claro, como indivíduo falante que pro-
nunciou ou escreveu um texto, mas o autor como unidade e origem de suas
significações, como foco de sua coerência” (FOUCAULT, 1996, p. 26). Ele mos-
trou-se um ser inserido no drama negro que a música relata, seu cotidiano não
foi diferente de muitos, que sem pai, teve apenas a mãe como referência e que
faz questão de agradecê-la, vale ressaltar, com o adjetivo “rainha” já no final da
letra.

10 NEGRO drama. Compositores: Edy Rock, Mano Brown, in: Racionais Mc’s. Nada como um
dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica CD, 2002. (110 minutos).

377
“Luz, câmera e ação, gravando a cena vai/Um bastardo, mais um filho
pardo, sem pai/Ei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é/Sozinho cê não
aguenta, sozinho cê num entra a pé”11, nesse fragmento nos deparamos com
mais um problema que o jovem negro e pardo pobres se deparam na realida-
de, a criação sem pai, como se fosse um filme que constantemente se repetisse
diante de um roteiro que esses grupos estão fadados a contracenar. Na narração
em que o autor faz uma comparação de sua vida a um filme, ele utiliza a pa-
lavra “senhor de engenho”, uma demonstração clara de um termo que remete
ao Brasil Colonial em que a sociedade escravista girava em torno do poder do
senhor de engenho. Encontramos até mesmo no trecho acima reminiscências
de um período escravista.
Continuando ainda a análise da letra, no trecho a seguir, há um compa-
rativo de desenvolvimento social entre o mundo da pele escura que está sempre
atrasado com relação ao mundo do senhor de engenho a quem foi destinado
as frases do fragmento da música citado acima:“Cê disse que era bom e a favela
ouviu/Tem whisky, red bull, tênis nike e fuzil/Admito, seus carros é bonito/É,
eu não sei fazer/Internet, videocassete, os carro loco/Atrasado eu tô um pouco
sim/Tô, eu acho.” 12
Nesse trecho em questão, há um desejo de “ascensão social” por meio
de objetos de consumo que dá, de certa forma, uma sensação de poder, como
bebidas da moda, internet, carros do ano, que a favela também passou a consu-
mir e junto a esse desejo a consciência social, sente-se atrasada se comparada
ao mundo do “senhor de engenho”. Isso são formas de se expressar diante das
tessituras de um tecido social e se constituir no meio do mesmo, pois somos
“máquinas desejantes”, no dizer de Deleuze & Guattari, pois somos movidos
pelo desejo numa operação, sob o endosso de uma psiquiatria materialista, “de
introduzir o desejo no mecanismo e introduzir a produção no desejo” (DE-
LEUZE; GUATTARI, 2010, p. 39).
Os negros entram aí em competição – um tanto desigual - com o bran-
co, numa busca de na corrida, tentar “(...) igualar-se ao branco, ao nível do em-
prego e da participação da renda, o “homem de cor” rompe um bloqueio à sua
participação cultural. Então, inicia a aventura de tentar o desfrute do estilo de
vida, das garantias e dos prazeres assegurados pela sociedade (...)” (FERNAN-
11 Idem.
12 NEGRO drama. Compositores: Edy Rock, Mano Brown, in: Racionais Mc’s. Nada como um
dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica CD, 2002. (110 minutos).

378
DES, 1972, p. 54), embora o compositor da música relate que ele, enquanto
negro, está um pouco atrasado no fragmento da composição acima.
Isso reporta a ideia do tempo cristal, em que o passado coexiste no
presente, pois os negros ainda vivem em enorme desigualdade com os brancos,
até mesmo no que diz respeito aos objetos de consumo tecnológico, seguindo
um parâmetro de desleal situação ainda estabelecido pela colonização, como
se o tempo andasse mais rápido para uns e parasse para outros numa linha de
desenvolvimento social, tecnológico e consumerista.
Em relação a isso, Florestan Fernandes, afirma que no Brasil há diver-
sos tempos a depender de uma variação geográfica.

Na situação de contato racial imperante no Brasil evidencia-se muitos proble-


mas sociológicos, de grande significação humana e científica. O Brasil vive,
simultaneamente, em várias “idades histórico-sociais”. Conforme a região,
podemos focalizar cenas que relembram os contatos dos colonizadores e con-
quistadores com os indígenas (...). Presente, passado e futuro entrecruzam-se
e confundem-se de tal maneira, que se pode passar de um estágio histórico
e outro pelo expediente mais simples: o deslocamento no espaço (FLORES-
TAN, 1972, p. 83).

Sendo assim, pensar o fragmento do trecho “atrasado eu tô um pouco


sim” leva a crer que “o mundo dos negros ficou praticamente à margem desses
processos socio-econômicos (...)” (FLORESTAN, 1972, p. 85). E que as remi-
niscências de um passado escravista permanecem no fragmento cristal do pas-
sado que insiste em permanecer no presente, uma espécie de passado contem-
porâneo (imagem virtual), colocando o negro numa particularidade de tempo
limitada, finita, “restringido por uma capacidade de contração” (ZOURABI-
CHVILI, 2016, p. 100).
Isso só mostra que é falso o discurso de progresso que se criou com
Abolição da Escravidão e com a conquista democrática numa linha de progres-
so, pois nesse aspecto o tempo da história brasileira é uma imagem-cristal, que
“substitui o modelo da verdade pela potência do falso como devir” (DELEUZE,
2008, p. 82). E que se existe um progresso ele está vinculado a uma elite branca,
aos “senhores de engenho”, aos donos da Casa Grande; aos negros e pardos
sobrou o atraso, o congelamento de um passado que se transverte em reminis-
cências cristais da escravidão no presente.

379
Pensar a música como um instrumento de produção de um discur-
so enseja abrir uma perspectiva de que ela rompe fronteiras e espaços, não se
prende a interdição que proibi, limitando o direito de se dizer tudo, não se pode
falar de tudo em qualquer circunstância como alertava Foucault na sua aula
inaugural do Collége de France e que se tornaria a obra A Ordem do discurso.
Porém, a música é um veículo de corte, de fuga, ela milita, inclusive, por uma
busca de um desejo por parte de um indivíduo ou grupo social.

Por mais seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem
revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto, não
há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou
– não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar
(FOUCAULT, 1996, p. 10).

Seguindo ainda na música “Negro Drama”, os autores falam ainda das


péssimas estruturas destinadas a moradia e a urbanização, cenário “perfeito” do
drama da questão da discriminação racial, descrevendo e ressaltando que são
frutos do drama negro. “Ei bacana, quem te fez tão bom assim?/O que cê deu,
o que cê faz, o que cê fez por mim?/Eu recebi seu tic, quer dizer kit/De esgoto a
céu aberto e parede madeirite” 13
Autor ainda fala que a sociedade passa a olhar para o negro que con-
segue conquistar uma casa, um bom carro, com um olhar de surpresa, como
se um homem de cor escura não pudesse conquistar esses bens materiais sem
uma certa desconfiança sobre essa conquista material.

O mundo todo tá de olho em você, morou?/Sabe por quê?/Pela sua origem,


morou irmão?/É desse jeito que você vive/É o negro drama/Eu não li, eu não
assisti/Eu vivo o negro drama/Eu sou o negro drama/Eu sou o fruto do negro
drama14

O autor ainda faz questão de ressaltar que ele é fruto dessa realidade
dramática que o constitui enquanto o que ele chama de “Negro Drama” que
tem que conviver com essa dura realidade conflituosa oriunda das diferenças

13 Negro drama. Compositores: Edy Rock, Mano Brown, in: Racionais Mc’s. Nada como um dia
após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica CD, 2002. (110 minutos).
14 Idem.

380
de classes raciais que nunca foram democráticas.
É como se a pessoa de pele escura, e em função disso, devesse ficar
restringida a uma situação sempre enraizada na camada baixa do corpo so-
cial, discurso forjado por uma maioria que prega o homogêneo, que não aceita
a heterogeneidade e suas multiplicidades. As minorias não são apenas órgãos
vinculados ao um corpo que tenham que exercer apenas suas funções determi-
nadas, limitadoras, restringidas e imutáveis.
O Brasil ainda anda a passos muito lentos para acabar com desigualda-
de racial colossal vigente. Continua existindo discursos e formas de aprisionar
o negro em abismo que a própria sociedade e o Estado constituíram, herança
de um período colonial que insiste em não querer ir embora de vez. Porém, até
hoje essas minorias são resistências, se utilizando das mais diversas táticas para
se sobressair, para sobreviver, para possibilitarem meios de fuga para a sua voz.
A música “Negro Drama” é uma dessas táticas, com seu modo “menor”
de se expressar, de denunciar o preconceito, de militar em favor dessas mino-
rias que há anos sofrem das mais diversas formas de discriminação.

Considerações finais

A música “Negro Drama” apesar de ter sido lançada em 2002, ainda


hoje é uma narrativa tão presente no cotidiano das comunidades carentes bra-
sileiras e que se espalha por toda a estrutura social se manifestando nas mais
diversas formas de preconceito.
É preciso superar esse discurso que classifica em engrada os órgãos
do tecido social numa funcionalidade mecânica, imutável, legitimada pelo
dominante. Esses órgãos já se tornaram insuportáveis para um corpo que
não tem necessidade de órgãos que o impossibilita de sua imanência e suas
multiplicidades. Reagir a homogeneidade as vezes implica reações contundentes,
violentas, como enseja o trecho da música, ainda em seu início: “Eu era a carne,
agora sou a própria navalha.”15
É preciso superar esses binarismos racionais que classificam os sujeitos
como Superior/Inferior, Branco/Negro, Cidadão/Suspeito, Casa Grande/Sen-
zala colocando sempre o homem de cor escura na pior posição. O negro tem
15 NEGRO drama. Compositores: Edy Rock, Mano Brown, in: Racionais Mc’s. Nada como um
dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica CD, 2002. (110 minutos).

381
as possibilidades de devir não só o negro drama, mais o que queira, devir o
empresário, devir o negro sucesso, devir o negro médico, galgando as várias
possibilidades que uma sociedade possa oferecer, acabando com essa injusta
desmedida racial. Ainda mais em um país marcado pela forte miscigenação
em seu povo, com múltiplas culturas que existem nas mais várias regiões do
território nacional.
O rap é um veículo das minorias de quebrar com a hegemonia até mes-
mo da formalidade do uso da língua para expressar o duro cotidiano das fa-
velas, das comunidades carentes, do drama que o negro convive todos os dias
em um país muito racista que parece que ainda não rompeu com seu antigo
sistema colonial.
Com suas gírias, sua maneira de se expressar como uma literatura me-
nor, suas formas de se manifestar, “Negro Drama” descreve ainda o retrato de
um país que ainda tem lamentavelmente em suas entranhas sociais as remi-
niscências herdadas do sistema colonial português que escravizou o negro e o
submeteu aos mais desumanos trabalhos e exploração possíveis e, ainda hoje,
o negro se depara com situações que o deixam em uma situação muito desfa-
vorável.

Referências

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mercado-e-a-carne-negra/. Acessado em 07/07/2019.

Discografia

NEGRO drama. Compositores: Edy Rock, Mano Brown, in: Racionais Mc’s.
Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica CD,

382
2002. (110 minutos).

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384
Entrevista com a professora e escritora
Eva Paulino Bueno: um estudo sobre a
Carolina Maria de Jesus

Valderlany Mendes Dantas


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil pela Uni-
versidade Federal do Piauí- UFPI. E-mail: valderlany95@gmail.com

Introdução
Eva Paulino Bueno nasceu no Brasil, onde despertou o interesse pela
vida acadêmica, e posteriormente, o desejo de se tornar professora e pesqui-
sadora. Possui Mestrado em Literatura Inglesa pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ e Doutorado em Línguas e Literatura Hispânicas pela
University of Pittsburgh. Atualmente é professora da ST. Mary’s University, no
Texas – EUA, autora de diversos trabalhos publicados em livros e capítulos de
livros, periódicos, revistas, organização e edição de edições especiais, etc. Par-
ticipou como palestrante em inúmeras conferências.
Atuou profissionalmente como integrante do conselho editorial de vá-
rias revistas, como também representante de “Línguas Russas e Menos Ensina-
das” do Conselho Executivo do MLA do Centro- Sul e membro da Associação
de Estudos Latinos- Americanos- LASA e da Associação Brasileira de Estudos-
BRASA. Eva Bueno tem interesses nos estudos de Literatura e cultura brasilei-

385
ras, literatura e cultura latino- americanas, Literatura americana e britânica,
literatura comparada, teoria literária, Cultura popular, cinema, teatro, ensino
de idiomas.
Tive o imenso prazer de conhecer e assistir pela primeira vez uma pa-
lestra ministrada pela professora Eva Bueno intitulada “CAROLINA MARIA
DE JESUS: questões de raça, gênero e de classe social”, que aconteceu no dia
14 de maio no Auditório Noé Mendes, no CCHL, e teve a presença de aca-
dêmicos e pesquisadores de diversos cursos das Humanidades. Tal evento foi
organizado pela professora Marylu Oliveira e pelo professor Francisco de Assis
de Sousa Nascimento. Entretanto, não foi apenas esse o motivo que trouxe a
professora Eva Bueno `a Universidade Federal do Piauí- UFPI, como também
o convite para ministrar o curso titulado Seminário de Estudos Literários e
História: experiências de pesquisa interdisciplinares e construção do conheci-
mento, ocorrido entre os dias 14, 15 e 16 de maio, objetivando com essa ativi-
dade a internacionalização da Universidade, bem como a aproximação entre os
cursos, sendo que o convite foi realizado pelo Programa de Pós-graduação em
História do Brasil e o Programa de Pós-Graduação em Letras, que possui curso
em nível de Mestrado e Doutorado.
A palestra me chamou atenção por vários motivos: O primeiro pela
sensibilidade da professora Eva Bueno em buscar pesquisar acerca de um su-
jeito que foge do padrão social do “ser normal”, marginalizado por um sistema
de dominação que explora, que maltrata, que castiga, que inferioriza, que apri-
siona. Dar visibilidade a esses sujeitos é abrir caminhos de fuga para aqueles
que lutam diariamente para sobreviver e resistir à opressão estabelecida por
tal sistema, uma vez que dar voz a sujeitos como a Carolina Maria de Jesus é
questionar a realidade, é ouvir inúmeras outras mulheres que sofrem por ser
mulher, negra e pobre. Os estudos realizados pela professora Eva Bueno sobre
a Carolina Maria de Jesus nos ajudam a pensar diversas questões como gênero,
raça e classe social.
Segundo, pela proximidade com o meu objeto de pesquisa que trata
das práticas de violências contra as mulheres no espaço doméstico na cidade
de Oeiras, estado do Piauí, onde busco através das análises dos relatos de expe-
riências de mulheres que viveram em situações de violências, entender casos de
violências contra mulheres, que conseguiram sobreviver em meio a violência
no espaço doméstico, e que estiveram por diversas vezes a ponto de perder a

386
vida, mas sua força, coragem e esperteza as mantiveram vivas. Viver em situa-
ção de violência não é uma escolha, mas sim, uma condição estabelecida social-
mente por meio da distribuição desigual de papeis entre os gêneros masculino
e feminino. A condição feminina impôs à Carolina Maria de Jesus a negação
de inúmeros direitos sociais. Ser mulher, mãe solteira, negra e pobre gerou-lhe
rejeição, humilhação, exclusão, opressão. Como resistir a tudo isso? A Carolina
é um exemplo de resistência, superação, garra, força e coragem. Uma vez que
sobreviver a uma sociedade machista, racista e classista não é uma tarefa fácil
quando se é mãe solteira, negra e pobre.
Nesta entrevista, a professora Eva Bueno fala sobre a relevância das
obras da Carolina Maria de Jesus para a academia e para a sociedade, apon-
tando alguns aspectos que fizeram da Carolina um exemplo de vida. Como
também explana acerca dos principais desafios enfrentados por ela, no estu-
do a respeito da Carolina de Jesus, e como esta figura histórica ajuda pensar
questões de gênero, raça e classe social, dentre outras problemáticas que serão
abordados na entrevista.

Entrevista

Valderlany- A princípio gostaria de perguntar, o que a levou a escolher a


Carolina Maria de Jesus como objeto de estudo?

Eva Bueno- Eu acho que recebi um grande benefício na minha vida,


além da minha saúde e da minha família maravilhosa: uma educação custeada
pelo governo brasileiro em sua maior parte. Esta educação, esta capacidade
de entrar em recintos onde as pessoas marginalizadas nem sempre podem
entrar, esta possibilidade de escrever e falar em várias línguas, em vários
países, para audiências diferentes (nem todos são acadêmicos), me dá mais
responsabilidades. Tenho o dever de trazer para outras pessoas o que sei da
experiência das pessoas que não tiveram os mesmos benefícios. Quero desta
maneira usar o que eu sei e o que eu posso para ajudar a diminuir o sofrimento
das pessoas que não podem falar. Nós professores temos a obrigação de ouvir
com respeito, aprender com humildade, e depois transmitir o que podemos
para ampliar o conhecimento e a apreciação da experiência e dos sofrimentos
dos que não são necessariamente iguais a nós. Mas não podemos esquecer que

387
só porque nós tivemos uma sorte muito grande de conseguirmos ir adiante com
nossa educação, nós não somos superiores a estas pessoas, sejam elas mulheres
ou homens, iguais ou diferentes de nós. Antes de mais nada, devemos muito
respeito a estas pessoas e devemos sempre lutar pra não colocarmos nossas
palavras nas bocas destas pessoas. Às vezes é tremendamente difícil. Mas se
fosse fácil, qualquer um faria.

Valderlany- Qual a relevância do estudo das obras da Carolina Maria de


Jesus para a academia e para a sociedade?

Eva Bueno- No caso da Carolina Maria de Jesus, o seu primeiro


livro aparece com o subtítulo de “diário de uma favelada.” Sim, ela escreveu
diariamente, mas não fala somente de coisas relacionadas com a sua vida
pessoal, seu dia a dia. Carolina pensa, pesa, reflete, dá opinião. E, lembremo-
nos: ela faz isso de dentro de uma vida de profunda miséria material, de perigo
constante de fome, de insegurança para seus filhos. A força de Carolina é á força
da sua palavra, da sua habilidade quase incrível de articular na sua própria voz
de mulher, não só a sua experiência individual, mas tudo o mais que a rodeia.
Segundo, porque o estudo da obra de Carolina Maria de Jesus é o estudo
de uma vida exemplar. É o conhecimento de alguém para quem devemos olhar
com gratidão e estima, porque cada ser humano como ela nos engrandece a
todos. Devemos estudar Carolina Maria de Jesus para talvez descobrirmos ou
cultivarmos em todos nós o respeito pelas mulheres que, como ela, sofrem nas
margens da vida, lutando, criando os filhos, mesmo enfrentando racismo e
grandes dificuldades.

Valderlany- Como foi o primeiro contato da senhora com o livro “O diá-


rio de uma favelada”?

Eva Bueno- Por incrível que pareça, meu primeiro contato com este
livro ocorreu aqui nos Estados Unidos, onde moro (com alguns anos passa-
dos em outros países) desde 1987. Minha formação acadêmica no Brasil era
muito ligada à literatura mais tradicional, tanto a brasileira como a americana
e a inglesa. Foi só aqui, trabalhando com Terry Caesar as questões de estudos
culturais e raça que vim a conhecer de perto a obra de Carolina Maria de Jesus.

388
Valderlany- Qual foi o maior desafio que a senhora enfrentou durante o
processo de desenvolvimento da pesquisa a respeito da Carolina Maria de Jesus?

Eva Bueno- Quando eu estava pesquisando Carolina Maria de Jesus,


nos últimos anos do século XX, achei difícil encontrar seus livros. Hoje em
dia, está muito mais fácil consegui-los, apesar de serem caros. Entendo que
os direitos da autora devem ser respeitados, e sou contra fazermos cópias dos
seus textos, por isto sempre prefiro comprar os livros mesmo. É uma pena que,
como sabemos, os herdeiros mesmos vão ver pouco deste dinheiro. Mas nunca
devemos ir compiando os textos, porque pelo menos alguma coisa beneficia
seus herdeiros, e assim respeitamos os direitos da autora.

Valderlany- Fale um pouco mais sobre sua pesquisa.

Eva Bueno- Minha pesquisa se concentra em geral nas humanidades e


nas artes. Por isso, eu tenho publicações sobre literatura (brasileira, americana,
latino americana, comparada), estudos culturais, cinema, teatro, cartoons. Me
interessa muito também ver como a mulher está situada dentro da sociedade,
especialmente a mulher que vem das camadas mais pobres da população; daí
meu interesse no trabalho de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra sem
muita instrução formal que demonstrou como nasce, cresce e vive uma inte-
lectual orgânica.

Eva Bueno- Agora, Valderlany, ou gostaria de saber o que levou você a


se interessar pela sua linha de pesquisa? Estou muito feliz de encontrar jovens
pesquisadores como você aqui no Piauí, especialmente em tempos como os
nossos, em que as humanidades em geral estão tão desvalorizadas, e em que
empregos dentro desta área são poucos e mal pagos. Por que você quer pes-
quisar a vida das mulheres em situação de violência? Você está interessada no
tempo presente somente, ou está enveredando também para a experiência do
passado?

Valderlany- Eu vejo a minha pesquisa como um ato de resistência, prin-


cipalmente, em tempos difíceis como esses que estamos vivendo. Acredito que nos

389
silenciar não seja uma solução, apenas contribuí para a continuidade desse siste-
ma opressor, escravagista. Precisamos desconstruir discursos machistas/sexistas,
racistas, classistas que fortalece tal sistema. É necessário mostrar para a socieda-
de que a violência contra as mulheres é fruto das práticas simbólicas e discur-
sivas impostas pelo grupo dominante para continuar oprimindo, escravizando,
dominando. A minha pesquisa tem como objetivo questionar, problematizar a
realidade de inúmeras mulheres que vivem em situações de violências. Por isso
que as áreas de Humanidades são desvalorizadas, porque somos responsáveis por
afrontar a classe dominante. E, nesse ponto eu penso, o que adianta ganhar tanto
dinheiro, e não fazer nada para melhorá a sociedade que estamos vivendo? Sei
que não posso mudar o mundo sozinha, mas tenho convicção que a mudança co-
meça a partir do momento que queremos mudar alguma coisa que nos incomoda
e afeta a vida das pessoas que amamos.
O interesse pela linha de pesquisa História, cultura e arte vem desde a
graduação em História pela Universidade Estadual do Piauí- UESPI, Campus
Professor Possidônio Queiroz. O tema surgiu através dos encontros do Grupo de
Pesquisa História, Cultura e Gênero do qual eu fazia parte. As discussões rela-
cionadas à temática da violência contra as mulheres foram evidenciadas devido
à forte presença do referido fenômeno na cidade de Oeiras-PI, culminando na
escolha do tema de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Ademais, esse de-
sejo de pesquisar acerca das violências praticadas contra as mulheres em Oeiras,
emerge também em virtude de alguns casos de violências, envolvendo mulheres
próximas a mim, fazendo com que a compreensão sobre esse processo se refletisse
como investigação no campo intelectual. Para além de todas essas questões men-
cionadas, pretendo no Mestrado dar continuidade aos estudos acerca das práticas
de violência contra as mulheres especialmente no espaço doméstico na cidade
de Oeiras, também tenho como finalidade proporcionar maior visibilidade a um
problema social que afeta a vida de inúmeras mulheres nos centros urbanos e nas
pequenas cidades do Brasil.. Agora no Mestrado o meu foco é analisar casos de
violência contra as mulheres no tempo presente, mas também penso em pesquisas
futuras ampliar minhas pesquisas para as experiências de mulheres em situações
de violências do passado.

Valderlany- A senhora poderia falar um pouco sobre sua trajetória de


vida, apontando a relação com as pesquisas que a senhora vem desenvolvendo?

390
Eva Bueno- Eu venho do Paraná. Minha família vem de Minas e vivia
em uma situação muito difícil, especialmente depois da morte de dois bebês
gêmeos. Quando eu nasci, minha mãe ficou muito doente, e uma vizinha, dona
Irma, veio oferecer se minha mãe queria que ela me amamentasse. Minha mãe
aceitou, agradecida. Eu acho que devo minha vida à generosidade daquela mu-
lher negra, forte, trabalhadeira, que viu a necessidade da vizinha também po-
bre, e teve compaixão da criança que teria talvez morrido se não tivesse sido
amamentada. O que aquela mulher pobre como nós fez naquele momento em
1953 foi uma coisa muito maravilhosa: ela estendeu a mão e ofereceu seu pre-
cioso leite pra uma criança de outra cor, sem esperar pagamento, sem esperar
nada. Seu gesto não viu a diferença de cor: só viu o sofrimento de outrem e a
sua possibilidade de ajudar com aquilo que vinha dela, seu leite. A solidarie-
dade da minha amada dona Irma tem sido uma estrela guia na minha vida.
Nunca vou pagar a bondade dela, nem a de muitas pessoas que me atenderam,
me orientaram, me acudiram, me socorreram na minha vida. Minha pesquisa,
meus escritos, meu trabalho em sala de aula e outros lugares são uma pequena
forma de devolver da melhor maneira que eu posso, os meus agradecimentos a
ela, assim como à minha mãe e tantas outras pessoas maravilhosas que tem me
acompanhado na minha jornada.

Eva Bueno- E você, Valderlany, tem alguma pessoa parecida com mi-
nha dona Irma no seu passado? `As vezes quem nos ajuda é um homem, uma
criança... ou mesmo uma ideia ou um ideal. Qual foi pra você?

Valderlany- Tenho sim. Devo tudo que eu sou a minha mãe Eliana Men-
des, foi com ela que aprendi a ser forte, a lutar pelos meus objetivos, a levantar
sempre que eu tropeçar e cair. Ela é a minha maior fonte de inspiração. É incrível
a força, garra, coragem, inteligência que a minha mãe possui para enfrentar as
adversidades da vida. Ela é uma mulher simples, negra como eu, uma pessoa fan-
tástica, extraordinária que já passou por grandes dificuldades, por causa do ma-
chismo e racismo que infelizmente está presente em nossa sociedade, mas nunca
baixou a cabeça para nenhum deles, é uma mulher admirável. É por causa dela
que luto diariamente por tudo que acredito e desejo, e eu desejo uma sociedade
justa e igualitária para todos e todas, uma sociedade na qual nós mulheres possa-

391
mos andar livremente, sem corrermos o risco de sermos violentadas pelas nossas
escolhas, onde nossa voz possa ser ouvida e aceita, luto por uma sociedade, onde
negros e negras não sejam mais humilhados, rejeitados, oprimidos pela cor da
pele.

Valderlany- Existe interdisciplinaridade na pesquisa acerca da Carolina


Maria de Jesus?

Eva Bueno- Absolutamente! O trabalho de Carolina pode ser visto des-


de o ponto de vista sociológico, de estudos de gênero, estudos de raça, estudos
do desenvolvimento do trabalho no Brasil, etc.

Valderlany- Algum autor influenciou a senhora a pesquisar sobre a Ca-


rolina Maria de Jesus?

Eva Bueno- Não. Eu tinha lido alguma coisa sobre Quarto de despejo
quando estava fazendo o mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
mas somente muito mais tarde decidi que queria conhecer mais do trabalho
desta brasileira. Minha área maior é literatura, e sei que temos grandes nomes
de mulheres que são um orgulho para o Brasil e um exemplo para as mulheres
do mundo. Por uma grande coincidência, ela morreu no mesmo ano que outra
grande escritora brasileira, Clarice Lispector. Mas a diferença entre as duas é
muito grande em termos da vida que ambas levaram.

Valderlany- Numa perspectiva de possibilidade múltiplas de interpreta-


ção para os textos, como utilizar as obras da Carolina Maria de Jesus como fer-
ramenta de ensino?

Eva Bueno- Eu acho que especialmente seu livro Quarto de despejo


pode ser uma inspiração para um curso de escritura. Qualquer um pode es-
crever um diário, marcando ali a experiência do dia a dia. Escrever é requer
disciplina, e um diário ajuda a pessoa a repensar sua experiência, e transmiti-la
por escrito. Mais tarde, pode usar este material para pesquisa, ou para produzir
um trabalho de caráter literário. Mas antes, tem burilar a prosa, melhorar tec-
nicamente, aumentar as maneiras de expressar as diferentes realidades, etc. A

392
obra de Carolina também é útil numa aula de história, de sociologia, de estudos
culturais, de estudos da mulher... Ah, e também tem a poesia e os outros livros
de Carolina, que são material quase que in natura para quem ver como procede
uma escritora. E eu tenho certeza que qualquer pessoa que se aproxime do tra-
balho dela sem preconceitos vai ficar maravilhado com a inteligência, a garra,
o caráter dessa mulher excepcional. Tal foi o caso com um grupo de alunas
do colegial no estado do Kansas, aqui nos Estados Unidos. Elas leram a tra-
dução de Quarto de despejo em inglês e entraram em contato comigo, porque
queriam apresentar um trabalho sobre ela. O trabalho das jovens foi escolhido
para representar a sua escola numa conferência na cidade, e depois elas foram
escolhidas para apresentá-lo na conferência do estado. Fiquei muito orgulhosa
do trabalho das jovens, e elas todas disseram que Carolina vai ser sempre uma
inspiração na sua vida. Um detalhe: as quatro estudantes do Kansas são todas
brancas!

Valderlany- Mesmo depois da inclusão da escrita acerca das experiências


dos sujeitos subalternos na academia, existe na academia uma maior notorieda-
de no que diz respeito a escrita sobre os sujeitos dominantes?

Eva Bueno- Eu não tenho certeza. Acho que no Brasil, pelas questões
notórias de classismo e racismo que percorrem todos os corredores, acho que
os subalternos continuam sendo subalternos. É muito difícil “subir” de uma
classe a outra no Brasil, mas é muito fácil “descer” se você não tem amigos
poderosos em altos postos. Aqui nos Estados Unidos, na minha experiência
de mais de 30 anos, existe como que um acordo tácito entre as partes ao dizer
que o país é democrático, mas na verdade existe uma velha aristocracia que se
mantém no poder desde o começo do país, e pelo jeito vai perdurar. Por exem-
plo: quem tem um título conseguido em Harvard University ou nas outras Ivy
League Universities (universidades mais tradicionais e consideradas a referên-
cia, a maioria situadas no leste americano) sabe que tem futuro garantido. Suas
pesquisas vão ser aceitas, seus pedidos de emprego sempre colocados á frente
dos demais. E para entrar em Harvard, uma das maiores condições é: ser filho
de alguém que estudou em Harvard. A aristocracia se perpetua, enquanto joga
com palavras fáceis como democracia e igualdade.

393
Valderlany- A senhora pensa em realizar uma nova pesquisa sobre ques-
tões relacionadas ao Brasil, para além dos estudos sobre a Carolina Maria de
Jesus, e outras problemáticas que a senhora já vem abordando em seus escritos
acerca do país?

Eva Bueno- Eu não sei qual vai ser meu novo projeto. Tenho muito inte-
resse pela situação dos animais abandonados no Brasil. Sempre tive. Claro que
não são humanos, mas somos responsáveis por aqueles que nós domesticamos,
assim como por aqueles que têm o direito de seguir suas vidas nos seus habitats.
Nós, seremos humanos, causamos grandes danos ao nosso planeta, e estamos
destruindo muitas espécies animais e vegetais a uma velocidade incrível. Temos
que nos conscientizar disso e aprender a viver com menos, consumir menos,
respeitar a natureza e os outros seres que compartilham a Terra conosco. Mas
francamente não sei nem onde começar a trabalhar com isto. Aceito sugestões.

Valderlany- Como uma profissional das Letras e especialista em literatu-


ra enxerga o papel que a literatura ocupa na educação atual?

Eva Bueno- O papel da literatura hoje é o mesmo de sempre: primeiro


de tudo deleitar e algumas vezes também instruir. E nesta instrução se juntam
muitas coisas: história, arte, capacidade de expressão, questões sociais, etc.

Valderlany- O que a senhora pode nos dizer do poder da ficção sobre a


realidade?

Eva Bueno- Eu acho que lemos ficção porque não podemos viver todas
as vidas. Também lemos para aprender lições que às vezes surgem à revelia do
próprio escritor. Quando lemos um texto literário, nos unimos a todas as gera-
ções que leram este texto, em todos os lugares. Tomemos os contos de Machado
de Assis, por exemplo: ao ler, digamos, “O caso da vara,” entramos no universo
machadiano, que era ao mesmo tempo o universo do Rio de Janeiro do ano
1850 (o que Machado diz no conto), o que tem sido o universo do Brasil deste
então, e o que é o nosso universo mundial, em que as pessoas buscam seu pró-
prio interesse e se esquecem de seus deveres morais. Isto é: Machado de Assis
(considerado um dos 100 maiores escritores mundiais de todos os tempos) nos

394
traz sua palavra que continua viva e válida até hoje, e continuará no futuro,
enquanto haja pessoas que vendem seus ideais a troca de favores.

Valderlany- Como a senhora vê a intersecção de estudos que aproximam


a Literatura e a História?

Eva Bueno- Eu acho estes estudos fundamentais! A História em ge-


ral é a história do vencedor, e na maioria das vezes o subalterno não deixou
nem uma palavra sua escrita ou gravada...sua experiência passou pelo “filtro”
de quem conta a história e na maioria das vezes aparece deturpada. O escri-
tor—voltemos outra vez a Machado de Assis—com seu ouvido afiado, é capaz
de guardar para a memória humana aquela experiência de um indivíduo que
de outra forma não poderia ter sido ouvido. Logicamente, precisamos muito de
jovens historiadores que se dedicam a revisar documentos menos conhecidos,
a revisar coisas já escritas, para revelar o que muitas vezes ficou escondido por
anos e `as vezes até séculos.

Valderlany- Como a obra da Carolina Maria de Jesus pode ajudar a pen-


sar sobre as questões do gênero e de raça no campo da escrita literária?

Eva Bueno- A obra de Carolina Maria de Jesus é fundamental para se


pensar tanto em raça como em gênero, em liberdade da mulher de ser mulher
com tudo o que isto significa. Ela não foi uma “feminista” de cartão. Ela foi
uma guerreira e uma lutadora, ademais de ser uma intelectual que sabia do que
falava e falava do que sabia. E ela sabia muito do Brasil, apesar de ter tido uma
educação de poucos anos, além de grande sofrimento na sua vida. Qualquer fe-
minista brasileira ou brasileiro, qualquer pessoa que queira pensar em questões
de raça e de igualdade para a mulher no Brasil deve primeiro ler Carolina Maria
de Jesus. Ela é uma precursora para todos nós.

Valderlany- Nos últimos anos, embora timidamente, alguns direitos


foram conquistados para negros (as), mulheres, contribuindo para a ocupação
de alguns espaços públicos por esses sujeitos, mas também percebemos um forte
crescimento de correntes fundamentalistas em todo o mundo, como a senhora
compreende esse crescimento? O que ele representa para negros (as), mulheres,

395
homossexuais, pobres, enfim, todas as “minorias”?

Eva Bueno- Sim, você tem razão. Os direitos conquistados são poucos
e insuficientes, mas temos que nos alegrar, que estamos sempre tentando. Por
outro lado, como você bem lembra, estamos sofrendo um período de “infecção
direitista e fundamentalista” no nosso planeta, não muito diferente do que a
humanidade sofreu na terceira e quarta décadas do século XX. Esta “infecção”
vai passar, eu acredito! Espero que o remédio necessário para extirpá-la não
seja tão doloroso e custoso como foi o que se fez necessário para eliminar o
nazismo e o fascismo.

Eva Bueno- E você, Valderlany, o que pensa desta questão deste cres-
cimento? você acha que para os grupos oprimidos a esperança de justiça tem
diminuído ultimamente? Como uma mulher jovem, como você encara a possi-
bilidade desta luta pelos direitos de todos ficar mais dura à medida que os anos
passam?

Valderlany- Eu vejo como uma reação dos grupos conservadores a con-


quista de direitos sociais pelas mulheres, negros e negras, pobres, enfim, as “mi-
norias”, uma vez que muitos direitos sociais foram conquistados ao longo dessas
últimas décadas, embora timidamente, visto que muito ainda precisa ser con-
quistado, entretanto essa tímida conquista de direitos sociais tem causado medo
a classe dominante, pois coloca em risco sua supremacia, a prova disso são os
fortes ataques aos direitos já conquistados pelas “minorias”. O que podemos fa-
zer frente a essa reação conservadora, fundamentalista? Continuar lutando pela
nossa sobrevivência, pelos nossos direitos, como sempre fizemos, talvez fique mais
violento, mas somos um povo forte, resistente. Não tenho dúvidas que saberemos
enfrentar o que virá pela frente.

Valderlany- Como a senhora entende as questões raça e gênero na atual


conjuntura? Na sua opinião o que mudou e o que permanece?

Eva Bueno- Infelizmente, pouco mudou em questões de raça no Brasil.


Eu ainda vejo meus irmãos e irmãs negros ocupando os cargos mais baixos no
Brasil, e sofrendo mais opressão. Não importa que haja jogadores de futebol

396
negros e ricos. Eles são a exceção que provam a regra, e não os considero ne-
gros como os demais que trabalham todos os dias pra sustentar suas famílias. E,
ademais, enquanto estes jogadores de futebol e outros milionários negros não
voltarem à sociedade para fazer não caridade, mas engajamento com as neces-
sidades reais de grande parte da comunidade de origem negra no Brasil, eles
são só objetos de enfeite. Quanto à questão do gênero, continua me preocupan-
do muito a violência contra a mulher. Na verdade, esta é uma violência também
contra o homem, que não é educado para respeitar a mulher. Não podemos
esquecer a violência contra os homossexuais e as pessoas transgender. Tudo
isto é violência. Nenhuma destas formas deveria ser aceita numa sociedade que
se quer civilizada. A sociedade como um todo não deve aceitar nenhum tipo de
violência, porque com ela todos sofrem.

Valderlany- Como é que a senhora percebe a questão do feminismo ne-


gro? E, qual a sua importância para a conquista da igualdade racial?

Eva Bueno- Houve um tempo em que as feministas do primeiro mundo


achavam que estavam falando por todas as mulheres. Não estavam. As mulhe-
res não são todas do mesmo tamanho e da mesma medida. As mulheres negras
– e, para nós aqui nos Estados Unidos, também a mulher latina—temos nossas
especificidades. Não se trata de sairmos queimando sutiãs e /ou outros símbo-
los da sujeição da mulher. A mulher branca ou negra ou latina ou asiática, cada
uma tem sua especificidade, e esta especificidade tem que ser respeitada. Mas
a libertação e igualdade da mulher sempre tem que vir junto com a libertação,
educação de todos, mulheres e homens. Eu sou fundamentalmente contra a
ideia que a melhoria da vida para as mulheres tem que necessariamente passar
pela humilhação dos homens ou do cerceamento de sua libertação. Como mãe
de um homem, eu mantenho que tem que haver respeito para todos, para que
todos, homens e mulheres de todas as cores e orientações sexuais de todas as
classes sexuais, não somente dos ricos e metrossexuais das grandes metrópoles,
destes que saem nas revistas.

Valderlany- Na palestra intitulada “CAROLINA MARIA DE JESUS:


questões de raça, gênero e de classe social”, ministrada no dia 14 de maio no
Auditório Noé Mendes, uma das questões abordadas pela senhora foi o uso do

397
testemunho nas pesquisas realizadas na acadêmia. Por que os testemunhos devem
fazer parte dos estudos praticados na academia?

Eva Bueno- Eu pessoalmente acho que às vezes as leituras acadêmicas se


perdem em tecnicalidades, em estudos que pouco tem a ver com o mundo real
que existe além dos corredores acadêmicos e das páginas de teses e dissertações,
e que, enfim, se constituem num discurso interno que pode ser interessante e
até engraçado, mas que não sai dos confins da academia. A academia não deve
ser um espaço contido somente nele mesmo. Nós acadêmicos –especialmente
da área de artes e humanidades--temos o dever de ensinar a pensar, de propiciar
aos nossos alunos o encontro com outras formas de ver o mundo, com outras
experiências. Os testemunhos são uma grande fonte deste tipo de experiência.

Valderlany- Quais são os limites, se é que eles existem, enfrentados pela


pesquisadora quando ela trabalha com testemunhos?

Eva Bueno- Os limites, no meu entender, são que os pesquisadores


devem ter uma noção muito bem clara da sua posição de ouvinte, e não se
imporem à pessoa que está dando o testemunho. Muitas vezes, porque o/a
pesquisador/a vem da Universidade, sabe falar “difícil”, acaba intimidando a
pessoa que está dando seu testemunho. É uma coisa muito complexa, recolher
o testemunho de alguém, como eu disse no meu texto apresentado na UFPI.
Por um lado, muitas vezes a pessoa que precisa falar não tem como levar
seu testemunho para além das quatro paredes do lugar em que falou com o
pesquisador. Por outro lado, o pesquisador pode se aproveitar desta situação
de subalternidade (`as vezes até mesmo de fragilidade) da pessoa que dá o
testemunho para direcionar a conversa pra um lado ou pra outro. Eu falo disso
no texto sobre a Carolina Maria de Jesus no contexto dos testemunhos. Na
minha opinião, o que faz o exemplo de Carolina tão excepcional—quando
comparado com os testemunhos de Rigoberta Menchú e Domitila Barrios
de Chugara--é o fato que Carolina não precisou de “contar” pra alguém suas
experiências; ela as escreveu. Lógico que um jornalista levou os textos para o
jornal e os “revisou”, mas mesmo assim a voz de Carolina atravessa tudo e chega
praticamente pura, aos seus leitores.

398
Valderlany- Que conselho a senhora daria para um pesquisador (a) ini-
ciante que deseja trabalhar com testemunhos?

Eva Bueno- Só um conselho: vá com humildade. Na maioria das vezes


a pessoa que está dando o testemunho é muito mais sábio/sábia que todos os
doutores que conhecemos (incluindo e especialmente eu).

Valderlany- Como a senhora enxerga a função do pesquisador (a), hoje?

Eva Bueno- A função do pesquisador hoje é igual à de sempre: ir em


busca da verdade. Às vezes é muito difícil revelar esta verdade. Há muitos obs-
táculos: políticos, financeiros, logísticos, etc. Mas precisamos sempre ir adiante
e continuar na luta.

Valderlany- O que a senhora diria de uma sociedade que ainda nos dias
de hoje não possui o hábito da leitura e onde a TV possui uma grande influência?

Eva Bueno- Ler um livro é, reconheçamos, um ato “anti-social.” Isto


quer dizer que, enquanto está lendo, a pessoa está imersa num outro mundo,
e portanto indisponível pra conversas de pouca duração. É difícil a pessoa se
ausentar do seu telefone (hoje em dia mais pernicioso que a TV) e se engajar
em uma atividade que requer silêncio, concentração. Nós professores sempre
teremos esta luta conosco. Mas o melhor que podemos fazer é dar exemplo,
além de engajar nossos alunos com o prazer da leitura. Não resolve só ficarmos
pregando; temos que criar o hábito e as condições para que nossos alunos, nos-
sos filhos, nossos amigos e nossos parentes possam ler em sossego.

Valderlany- Para finalizar, gostaria de perguntar, qual é a imagem que a


senhora possui do Brasil, tendo em vista a situação política atual?

Eva Bueno- Vejo a situação política brasileira atual com muita apreen-
são. Já sabemos que quando algum político sem juízo evoca com admiração os
erros e os criminosos do passado, isto é ruim. Quando o representante máximo
do país o faz, isto é uma tragédia. Infelizmente, esta é uma fase que teremos que
suportar, atravessar. Novamente esperamos que não seja muito longa, e que

399
consigamos continuar com o processo de promover todos os brasileiros, não
somente os brancos ricos, ou os filhinhos de políticos importantes. Precisamos
manter-nos unidos, e sempre ter em mente a meta, que é a justiça e a igualdade.

Considerações finais

Conversar com a Eva Paulino Bueno é como encontrar uma luz em


meio a escuridão, é ter a certeza que sempre haverá esperança, é ver o lado
positivo de cada pessoa, é perceber o amor como o único sentimento capaz
de mudar o mundo. Falo isso porque foi dessa forma, que eu me senti a cada
resposta dada pela professora e escritora Eva Bueno.
No decurso da entrevista foram abordadas questões como raça, classe,
gênero, política, literatura e ensino, isso porque não tem como pensar na Ca-
rolina Maria de Jesus fora de todas essas questões. Alguns pontos explorados
foram os seguintes: a relevância dos estudos a respeito da Carolina Maria de
Jesus para se pensar questões de gênero, raça e classe social, como também o
uso dos testemunhos e de sua importância para a escrita da história das “mino-
rias”, em razão de existir muita dificuldade em encontrar documentação acerca
desses sujeitos. Tendo como objetivo dar voz aos excluídos que foram e ainda
são silenciados em nome da história dos homens brancos das elites, tidos como
vencedores.
A professora Bueno contrapõe a história oficial quando dá visibilidade
a um sujeito que não foi contemplado com as oportunidades dadas aos homens
brancos das elites, por ser mulher, negra e pobre, no entanto a negação dos
privilégios não fez da Carolina um sujeito passivo diante das adversidades,
pelo contrário, ela as enfrentou utilizando-se das ferramentas que possuía para
vencê-las; portanto, podemos compreender a Carolina como uma guerreira,
heroína, uma mulher de garra, coragem, forte, inteligente, e não de forma pas-
siva como a história oficial trata os sujeitos que como ela, não se encaixa no
padrão social tido como “normal”.

400
A indianização cosmopolítica da história
sob “lentes não-modernas”: novos
colonialismos e a crítica decolonial na
perspectiva de atores e cineastas indígenas

Ismatônio de Castro Sousa Sarmento


Mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI); especia-
lista em História Social da Cultura (UFPI); graduado em Geografia pela Uni-
versidade Estadual do Piauí (UESPI). Pesquisas realizadas junto às etnias in-
dígenas Tentehar-Guajajara e Memortumré-Kanela, no estado do Maranhão.
Professor da rede estadual de ensino do Piauí e municipal de Parnaíba

Introdução
Passageira de uma nave-interestelar, não demorou para que nós, os
não-modernos, os últimos resquícios humanos de uma civilização ideal, os hí-
bridos habitantes de um planeta aquecido, perdêssemos de vista o horizonte de
nossa história moderna. A modernidade agora pertence a um outro tempo, ou
melhor a regimes outros de historicidade; híbridos temporais que ela, a pró-
pria modernidade, nunca cessou em criar. No palco e nos cenários projetados
durante pelo menos três séculos, os modernos cedem lugar para um misto hu-
mano e não-humano de naturezas-culturas, os não-modernos. De certo modo,
talvez nunca tenha havido uma separação “pura” entre natureza, de um lado,

401
e cultura do outro; talvez a dicotomia natureza científica e sociedade política
tenha se esvaziado nos termos da ficção que a sustentava; talvez, como tão bri-
lhantemente definiu Bruno Latour (2013), jamais fomos, de fato, modernos.
Quando nos percebemos como modernos, já não o éramos. Metafo-
rizando, eu diria que a modernidade ficou “fora-de-moda”; foi ultrapassada
(uma palavra moderna para descrever um estado de temporalidade histórica,
o obsoletismo do mundo pré-moderno); com efeito, imprimir um caráter não-
-modernizante à história, aos coletivos e ao mundo, é quase que o equivalente
da inovação nos dias de hoje. Digo a palavra quase, intencionalmente, com a
pretensão de assinalar a não-univocidade dos múltiplos processos de produção
do social. Seria superficial e ingênuo imaginar que, com isto, estou advogando
para o fim da história – tese defendida por Francis Fukuyama e outros teóri-
cos da propalada pós-modernidade; ou tampouco oferecendo um testemunho
intelectual subjetivo e distanciado no tempo-espaço, dos “ritos fúnebres” que
atestam a “morte” daquelas ciências humanas e sociais que, segundo Latour
(2012) apreendem a sociedade a partir de quadros de engenharia e estrutura
(coerentes e orgânicos), moldados pelas forças objetivas que lhes seriam pró-
prias. Assim como a morte de Deus, de que fala Nietzsche, não dissipou a to-
talidade de sua presença imaterial transcendente; nas ruínas arquitetônicas da
ciência dita tradicional, ainda proliferam os fantasmas da Constituição moder-
na.
O que almejo propor aqui é, em primeiro lugar, a possibilidade de
uma indianização da história, em alusão à consagrada teoria social de Marshall
Sahlins (1997) acerca da nova tarefa da antropologia, qual seja, a indigenização
da modernidade histórica. Tanto as ciências sociais quanto a historiografia têm
atravessado, sobretudo a partir dos anos de 1980, o que se poderia chamar de
uma virada científico-cultural; uma transição epistemológica marcada pela an-
tropologização e historicização da cultura – outrosssim, numa bem-sucedida
mudança em paralaxe, a cultura deixa de ser vista como um “objeto em vias de
extinção/desaparecimento” frente ao sistema global capitalista, para se consti-
tuir numa categoria em “multiplicação molecular”; expressão, por excelência,
do processo de emancipação colonial e afirmação política de toda uma diver-
sidade de povos, um mosaico de alteridades. Em segundo lugar, isto me leva a
pensar os novos significados daquilo que Carneiro da Cunha (2017) denomi-
nou de “cultura” com aspas. Uma noção de cultura que pertence ao domínio

402
intelectual e político dos coletivos (“a cultura para si”), implicada num contexto
de relações interétnicas. Tal conceito ressurge na emergência de coletivos como
manipuladores políticos de cultura, da sua “cultura”.
Neste sentido, acho importante pontuar que, estas múltiplas (re)confi-
gurações culturais também passam a transgredir a ideia simplória de que a pró-
pria cultura estaria conformada, de forma subjacente, num plano de resistência
política, quando na verdade ela é, fundamentalmente, o principal mecanismo
de construção e experimentação do que chamarei de políticas de resistência.
Nisto reside uma diferença sensível: se a resistência política nos remete às lutas
sociais, às causas, militâncias, ativismos e movimentos sociais, em defesa de
direitos e contra a histórica violência colonialista, a política de resistência é
o que permite mudar as condições mesmas em que se efetuam as mudanças,
rever as coordenadas em que se definiram as escolhas (políticas); é aquilo que
faculta agir, de acordo com as regras momentâneas do jogo a ser jogado; a po-
lítica de resistência é instrumental – gramática do político –, está relacionada
ao conjunto de dispositivos operacionais estratégicos, materializadores da ação
política; trata-se de um tipo de resistência que permite “aberturas decoloniais”
fora do âmbito das mobilizações políticas convencionais. Isto posto, conside-
rando as diferentes realidades das sociedades indígenas no Brasil contempo-
râneo, não estaríamos a falar de política de resistência ao invés de resistência
política, apenas? Pelo menos por hora, finalmente, desembocamos na esteira
do terceiro aspecto a ser elucidado. O que me leva ao eixo central da temáti-
ca proposta para esta conferência: a produção audiovisual indígena – modelo
privilegiado de uma cosmopolítica (cultural) da resistência. Trago a ideia de
cosmopolítica na perspectiva de Isabelle Stengers, para quem a cosmopolítica
compreende o alargamento do cosmos, isto é, da multiplicidade dos sujeitos
(sejam eles humanos ou não-humanos) e de agências políticas criadoras. De
acordo com André Brasil (2016), focada numa “crítica xamânica da economia
política da imagem”, num fazer-ver xamanístico, esta cosmopolítica indígena
teria como alicerce a “invenção” de uma narrativa imersa no “fora-de-campo”,
fora-de-cena, endereçada ao universo moderno-ocidental; forjada como alter-
nativa decolonial aos meios de comunicação hegemônicos.
Por sua vez, seria de todo modo distorcido, pensar a prática cinemato-
gráfica e o uso extensivo da câmera filmadora nas sociedades indígenas, como
tecnologias de poder com fundo colonialista; ao contrário, como nas palavras

403
de Albert (2002), os coletivos indígenas, desenvolvem e veiculam em larga es-
cala simbolizações políticas articuladas aos emblemas discursivos do Estado
e da sociedade nacional. Por meio dos processos de reapropriação e ressigni-
ficação, para além da esfera pragmática da política formal, eles elaboram sua
rede de relações, autorreferencial, autorrepresentativa, de afirmação étnica da
diferença.
Não obstante, Carelli & Gallois (1995a, 1995b) acrescentam a impor-
tância da difusão audiovisual/informacional indígena no que tange à cons-
trução de intercâmbios comunicativos, não só no contato intercultural com
os brancos, mas também entre comunidades indígenas de origem e tradições
diversas. Seguem outras particularidades características da produção fílmica
e midiática indígena: a desconstrução da imagem colonial do selvagem, legiti-
mada pela historiografia positivista, dita “oficial”; cinema indígena como tec-
nologia decolonial que entroniza novos fazeres e refazeres da imagem. Trata-se
de uma estética midiática em-acontecimento (em experimentação); deveras, o
termo em-acontecimento não pressupõe uma etapa inicial para se atingir a con-
dição do cinema ocidental contemporâneo, com efeito, está mais articulado
com os aspectos peculiares através dos quais a cinematografia indígena aconte-
ce, isto é, produz ficções e realidades sociais outras. Seja nos filmes, documen-
tários ou curta-metragem, o que prevalece é o seu caráter coletivo, comunitário
e compartilhado (como nas incursões etnográficas realizadas com o intuito de
estabelecer mediações culturais e trocas de experiências entre povos de dife-
rentes aldeias ou etnias). São também produções centradas no cotidiano das
aldeias, bem como na enunciação dos símbolos diacríticos, inscritos nas festas,
rituais, cantos, mitos, etc. essenciais para a visibilidade de suas demandas de
reafirmação e fortalecimento cultural. No mais, vale salientar ser esta arte em-
-acontecimento, aquilo que comumente se designa por “arte engajada”; preo-
cupada em dar a ver os problemas e os interesses emergentes da comunidade:
solução de conflitos territoriais, entraves ambientais, reivindicações de cunho
político, etc. O universo tecnológico-audiovisual indígena prolifera em discur-
sos sobre mudanças culturais. Com o avanço do contato interétnico, tradições
culturais milenares tiveram de ser reinventadas a fim de explicar as novas si-
tuações etnoculturais do presente. Nisto reside uma cosmopolítica do mudar
e do diferir, que é o fundo de todas as relações, bem como da construção da
alteridade. Com efeito, “mudamos porque somos diferentes”, “somos diferentes

404
porque mudamos”. Trata-se de mudar diferindo e diferir mudando; de modo
que, “mudamos, mas continuamos sendo índios”, isto é, “mudamos sem deixar
de sermos os Mesmos-Outros diferentes”. Uma vez que, tal como em Tarde
(2018), diferir é mudar, na medida em que a mudança é o próprio continuum
de variação e multiplicação das diferenças.
O universo estético que, em geral e usualmente, denominam de cinema
indígena possui, portanto, por um lado, um caráter social, político e cultural
transformador. Por outro lado, como afirmam André Brasil & Bernard Belisá-
rio (2016a, 2016b), faz-se necessário considerar os tensionamentos implicados
nos processos de “desmanchar o cinema”; de abrir as imagens para fora delas
mesmas (rever, retorcer, reverter), a fim de vislumbrar a cartografia cosmopolí-
tica dos seus fluxos, atravessamentos e combinações “fora-de-campo”. É Gilles
Deleuze (2018), no entanto, quem nos mostra que fazer cinema não é diferente
de fazer rizomas; que a multiplicidade do cinema se encontra nos múltiplos de
velocidades, dimensões, conexões da imagem em movimento, da imagem-mo-
vimento. Pode-se falar mesmo em uma cultura-movimento: a cultura como
algo que se transmite através de um movimento constante das imagens; ima-
gens de cultura. Em realidade, mediante tais aspectos, considero fundamental
começarmos por desmanchar a própria categoria cinema indígena. Buscar um
novo conceito, mais apropriado, menos limitado, capaz de desempenhar a ta-
refa de descrever satisfatoriamente o fenômeno das mídias e da estética cine-
matográfica indígena. Introduzo aqui a noção de cosmocinemacultura ou cos-
mocinemacultura indígena, se preferirem. De antemão, a cosmocinemacultura
assume o mundo social como um devir-mundo, sempre aberto a ser povoado
por uma diversidade de entidades cósmicas; um mundo caosmossocial em-a-
contecimento, a englobar/agregar, em sua plataforma de representações, seu
teatro de performances, híbridos de atores humanos e não-humanos, o miscí-
vel de real e ficção, que lhe in-formam, lhe (com)formam, encenam, circuns-
crevem, escrevem, os dramas, itinerários, desfechos possíveis. A cosmocinema-
cultura é marcada por essa mise-em-scène da cultura; ritualização da cultura;
metacultura, metarruptura, que enseja um duplo movimento: a autorreflexão
e a autorrealização cultural – o falar de cultura e o fazer acontecer da cultura,
em um único ato. Fazendo um paralelo com as ideias filosófico-antropológicas
de Terence Turner (1979), a cosmocinemacultura refletiria a cultura como um
componente político que está sob o poder/controle de um agregado social: ela

405
envolve sua capacidade (coletiva) de criar, escolher, agir e mudar segundo pa-
drões culturais que oscilam em relação aos seus fins.
Em tom de provocação, vou chamar a cosmocinemacultura indígena
de antropofágica, e isso me ocorreu pelas seguintes razões: primeiramente por-
que “devora” o fora-de-cena, para produzir o “em-cena”; em segundo plano, os
novos coletivos, indivíduos, redes, objetos, espíritos, devires-animais, híbridos
de todos tipos, etc. são produzidos de fora para dentro; terceiro, o “dentro”, a
interioridade, significa a própria abertura para a alteridade, para a produção do
Outro; em quarto e último lugar, produz-se de fora para dentro, com o fim de
descolonizar de dentro para fora – de toda forma se trata de consumir corpos
–; “digerindo” as imagens coloniais por meio de sua interiorização, a cosmo-
cinemacultura antropofágica, se opõe, assim, ao cinema convencional, cujas
imagens invadem/colonizam o corpo, para em seguida penetrar a “alma do sel-
vagem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).
Em tempo, antes de ir diretamente ao ponto e penetrar o bojo dos fil-
mes produzidos por cineastas e atores indígenas, acho crucial trazermos à luz
uma outra questão teórica fundamental: a construção da memória cinemato-
gráfica. Não à toa, como visto, a cosmocinemacultura indígena privilegia mos-
trar rituais, mitos, cantores, xamãs, artesãs, ao invés de focalizarem nos novos
incrementos cultuais, que estão surgindo, principalmente entre os mais jovens.
Os esforços dos cineastas indígenas estariam voltados para erigir uma políti-
ca de memória que visa perpetuar no tempo, os eventos-lembranças elegidos
como empoderadores etnoculturais do coletivo, que tem o cinema como um
lugar de ressonância, onde uma tal experiência torna-se possível, verossímil.
Aproveito o momento oportuno para acrescer à pauta da discussão o
conceito de desejos de memória: ideia que lancei mão nas minhas pesquisas
durante o mestrado em antropologia e que, acredito, ser muito pertinente, na
medida em que a cosmocinemacultura indígena, em certo sentido, permeia
desejos de memória. Os desejos de memória remetem-se às memórias que cha-
marei de “aflorativas”, a saber, aquelas memórias enunciadas, pretendidas e rea-
firmadas socialmente. Narrativas de si, predispostas à escuta. Diante de um
processo de seleção/escolha, elas emergem como as memórias mais valorizadas
e, por isso, paralelamente também, as mais facilmente proferidas e difundidas
na dimensão coletiva. Essas são as memórias que gozam de um maior prestígio
nos grupos sociais. São memórias que expressam um desejo de ser, ou se qui-

406
sermos, um ser desejado.
Nos desejos de memória, a ênfase pode ser maior ou menor, no sujeito
que lembra – narrativas de si; projeção de um “eu” desejado ou de um “nós”
pretendido e manipulado pelos desejos do sujeito – ou nas representações com-
partilhadas social e coletivamente, de um “nós cultural desejante”, ao qual o
sujeito julga sentir-se como pertencente – o lócus mnemônico de onde provém
as suas recordações. Em síntese, nos discursos de memória, a exemplo do cine-
ma, o “eu desejado” e o “nós desejante” estão interpenetrados, entrelaçados um
ao outro, podendo as linhas de memória estarem mais tensionadas para lá e/ou
para cá. A constelação de desejos mobiliza os devires e, por consequência, não
em uma simples linha reta de relações teleológicas, a produção de realidades no
real da ação indígena. Neste caso, dizemos que as diferenças estão em processo
e em causa intensiva. O devir (não-identidade e não-produção), reflete, como
um espelho dos desejos de memória (produção), o estar sendo do Ser, enquanto
intensificação da diferença.
Os desejos de memória assumem uma condição de primazia narrativa
no conjunto da produção memorial do socius. A primazia ocorre em relação às
memórias reprimidas pelos esquecimentos e silenciamentos que, por sua vez,
sendo composições/partículas do corpo memorial, constituem-se elas mesmas,
em “órgãos mnemônicos” e, portanto, máquinas recalcadas de produzir desejos.
Posso afirmar, assim, que há uma cartografia dos desejos a integrar o corpo da
memória social. Com efeito, estes mecanismos mnemônicos desejados e dese-
jantes efetuam a afirmação política dos coletivos, de modo que os sujeitos as
evocam para justificarem o seu pertencimento simbólico, dito de outra forma,
para legitimarem seus gradientes de diferenças no interior das representações/
construções históricas e sociais. Neste sentido, tais desejos circunscrevem as
vontades temporalizadas do haver Ser que são, ao mesmo tempo, vontade de
passado e vontade de futuro.
Em suma, os desejos de memória colocam/distribuem no real da mise-
-em-scène cinematográfica, as narrativas e os arranjos de um jogo político, um
teatro do político; na medida em que as memórias constituem apenas alguns
aspectos particulares projetados/representados do passado, selecionados pe-
los sujeitos coletivos no processo de reconstrução e afirmação das diferenças.
Finalmente, não se trata dos desejos de memória em si; de como era por ve-
rossimilhança o passado ou de um estado transitório dos objetos no presente,

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mas de como é manipulado de maneira estratégica – nas políticas de memó-
ria – pelos agentes a quem interessa o criar e o recriar das temporalidades. Se
desejo algo, desejo para o presente. Portanto, não desejo o que falo. Falo para
conseguir o que desejo.
Uma vez explicitados os aportes teórico-conceituais até aqui suscita-
dos, faremos um deslocamento empírico para o cerne das experiências de mo-
dalidades audiovisuais presentes na vida cotidiana e no contexto de relações
interétnicas de sociedades indígenas, em nível nacional.

Vídeo nas aldeias

O Projeto Vídeo nas Aldeias, nascido em 1987, no Centro de Trabalho


Indigenista (CTI), foi, sem sombra de dúvidas, a experiência mais bem-suce-
dida em etnografias filmadas em áreas indígenas. Segundo Carelli & Gallois
(1995a, 1995b), o projeto Vídeo nas Aldeias, do CTI, foi idealizado num con-
texto do movimento de reabilitação étnica entre os povos indígenas do Bra-
sil. Surge para dar visibilidade aos mundos indígenas através de um modelo
diferenciado de filmagem, baseado nas especificidades de cada povo em suas
aldeias. O trabalho de formação audiovisual de cineastas indígenas, foi desen-
volvido através de oficinas protagonizadas pelos próprios sujeitos. O interesse
das comunidades, por sua vez, assim como as suas produções audiovisuais, tem
aumentado cada vez mais com o passar dos anos. De acordo com Nadja Marin
& Paula Morgado (2016a, 2016b), os pilares do projeto Vídeo nas aldeias con-
sistem em: valorização de uma visão nativa de cultura; reflexividade das ima-
gens por intermédio de um ver coletivo; diálogo intercultural; compreensão
das câmeras de vídeo como ferramentas geradoras de potência, de luta política.
Apresento a seguir alguns dos filmes mais importantes já lançados pelo
Vídeo nas Aldeias:
O Projeto Vídeo nas Aldeias tem como marco a criação do filme A
festa da moça (1987) com os indígenas da etnia Nambiquara do estado do Mato
Grosso. Depois de assistirem a primeira filmagem/gravação, os indígenas resol-
veram redesenhar o filme, desta vez adotando práticas tradicionais que haviam
deixado depois do contato com os brancos. É o caso da furação de lábios e
do uso de roupas mais moderado (já que os seus antepassados andavam nus).
Outra proposta inédita na TV brasileira, feito em parceria com a TV Universi-

408
dade do Mato Grosso (UFMT), foi o documentário O Programa de Índio, sec-
cionado em quatro episódios de 26 minutos cada. Este documentário, do ano
de 1996, estava voltado a tornar evidente os aspectos culturais particulares de
diferentes etnias indígenas do Brasil (MARIN & MORGADO, 2016a, 2016b).
A arca dos Zo’e (1993) se apresenta como uma narrativa audiovisual
sobre o encontro de dois povos – os Wajãpi e os Zo’e – que se conheceram ini-
cialmente por intermédio de imagens de vídeo. Cada um destes povos tiveram
a oportunidade de elaborar versões histórico-cosmológicas das suas relações
com os brancos e outros indígenas. Os indígenas Zo’e, contatados no ano de
1989, em uma relativa situação de “isolamento”, longe de estarem num está-
gio de desintegração étnica, viviam uma nova fase de revisão dos seus padrões
tradicionais de cultura, aceitando, assim, o desafio da experiência de media-
ção com os indígenas Wajãpi. A iniciativa foi tomada pelos próprios Wajãpi,
que manifestaram expectativa de conhecerem os Zo’e, depois de tê-los visto
em imagens de vídeo. Descobertos pela FUNAI no ano de 1973, os Wajãpi en-
contravam-se em um patamar mais avançado no contato interétnico com os
brancos; transitando das relações de dependência para a reavaliação, reorienta-
ção e reconfiguração destas relações. Sua visita aos Zo’e, entretanto, revela uma
vontade de reinserção no modo de vida dos antigos; os Zo’e representariam o
passado ancestral de seu povo, na perspectiva dos Wajãpi. Os Zo’e, pelo contrá-
rio, alimentavam desejo pelas mercadorias levadas pelos Wajãpi. Deste modo, a
mediação intercultural levou ambas as etnias ao processo de revisão mútua de
suas auto-imagens (CARELLI & GALLOIS, 1995a, 1995b).
Curadores da terra-floresta, de 2014, é um filme dirigido por Morzaniel
Iramari Yanomami. O filme está voltado para as performances dos xamãs Ya-
nomami na aldeia Watoriki. O plano de filmagens mostra desde a preparação
do pó da Yãkoana, que permite aos xamãs Yanomami receberem a visita dos es-
píritos da floresta, os xapiripë. Já em contato com os xapiripë, a câmera segue as
performances xamanísticas no pátio central da aldeia, alternada com tomadas
laterais que capturam os demais xamãs em posição de expectadores, formando
um semicírculo. Curadores da terra-floresta tem sua feitura delineada por uma
miríade de atores humanos e não-humanos, abrigando um parlamento de seres
(humanos, animais, epirituais). O xamanismo nos permite ver por meio do in-
visível. Se não vemos diretamente o corpo/pessoa dos povos-espírito, podemos
enxerga-los através dos corpos em transe dos xamãs; os únicos com capacida-

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des trans-humanas de ver e serem vistos pelos xapiripë; de com eles estabelecer
relações pessoais (BELISÁRIO & BRASIL, 2016a, 2016b). Albert (2002) faz um
paralelo entre o apocalipse xamânico Yanomami e a atual crise ecológica/esca-
tológica da “terra-floresta” (urihi), provocada por uma brutal economia política
da natureza. Na cosmologia do contato Yanomami, o progresso final do capi-
talismo predatório marca o fracasso do xamanismo em conter os poderes pa-
togênicos liberados pelos brancos. Nas palavras de Davi Kopenawa Yanomami
(2015), quando todos os grandes xamãs tiverem desaparecido, quando seus es-
píritos auxiliares ficarem órfãos, quando o povo Yanomami morrer, o céu cairá.
Assim como Curadores da terra-floresta, As Hipermulheres são um
outro filme de grande sucesso, exibido em importantes festivais de cinema pelo
mundo. O filme-documentário, de 2011, se passa na aldeia Ipatse, no Alto Xin-
gu, e é o resultado do trabalho de três cineastas: o indígena Takumã Kuikuiro
e os brasileiros Carlos Fausto (antropólogo) e Leonardo Sette. As hipermulhe-
res está fortemente diluído no ritual filmado, posto em cena: o jamugikuma-
lu. Um ritual feminino responsável pela conexão do mundo dos humanos ao
mundo das mulheres-itseke, iamurikumã, as hipermulheres míticas. Depois
de adornadas e pintadas, as mulheres Kuikuro, enfileiradas, coreografam em
cantos e danças no pátio da aldeia, repetindo os gestos das mulheres míticas,
quando cantavam e dançavam até se transformar em itseke. A ressonância da
câmera com a mise-en-scène das hipermulheres, sugere que os corpos filmados
constituem o próprio corpo do filme-documentário. O ritual emoldura o filme
através da relação/enlace entre corpos: os corpos visíveis das mulheres xingua-
nas no pátio cerimonial, assim como os corpos não-visíveis, imemoriais, das
itseke míticas (BELISÁRIO & BRASIL, 2016a, 2016b).
Por último, cito Bicicletas de Nhanderu – um curta-metragem sobre o
cotidiano de uma aldeia Guarani Mbya. O nome do filme faz rizoma com uma
frase marcante do pajé da aldeia: “nós somos uma bicicleta dos deuses, nada
mais do que isso! [...] Os deuses podem fazer o que bem entenderem de nós”.
De fato, em meio ao misticismo que acompanha as gravações das conversas
ao redor da fogueira, o poder dos deuses se manifestou, aliás, de um deus em
específico: Tupã. Nos dias de chuva que se seguiram, a queda de um forte raio
chamou a atenção e assustou a todos na aldeia. No dia seguinte, não se falava de
outra coisa. A velha avó Pauliciana reclamou de sentir uma forte dor nas costas
na hora do raio; ela queria um pedaço da árvore que se partiu com a fúria de

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Tupã, para dela fazer colares e presentear os filhos e netos. Na concepção cos-
mológica Guarani, a árvore continuaria viva, pois seu espírito permanece in-
tacto ao poder do raio. A mesma avó, se queixa que o povo está trocando a casa
de reza pelas festas sertanejas, organizadas pelos brancos. Em certa ocasião,
um jovem fala a respeito de uma cosmovisão onírica, a qual se revela como
um prelúdio apocalíptico das relações dos Guarani com os brancos. No sonho,
os Guarani se tornam amigos dos brancos e recebem como presentes: pratos,
talheres e armas, com o que começam a se matar. A aproximação dos Guaranis
com os karaí, leva à própria autodestruição do povo Guarani. Como resposta,
alguém diz: “este é um sinal de que eles estão querendo nos controlar”. Outro
rapaz enraivecido, retruca: “eles não são nossos inimigos, eles estão ao nosso
lado”. De uma forma ou de outra, este é mais um sintoma da fragilidade que en-
volve a aliança entre os Guarani e os colonizadores de suas terras, sempre diver-
gindo entre o clientelismo e a rivalidade. Algo que ficou clarividente na história
dos dois meninos que, diariamente, caminhavam até a fazenda vizinha a fim
de buscar lenha para a sua avó. Os garotos contaram ao jovem Guarani que os
filmava, os apuros que passaram quando tiveram que fugir das balas provindas,
provavelmente, de capangas a serviço de um fazendeiro local. Destarte, seja nos
momentos de meditação na casa de reza, nos trabalhos ensinados às crianças
desde cedo, para que cresçam como homens Guarani Mbya, ou nas festas rega-
das a bebedeiras e jogos de cartas; em Bicicletas de Nhanderu, as performances
dramáticas – dramas humanos – perpassam todos os enquadramentos e cenas
do cotidiano comum de uma aldeia Guarani.
Como forma de compreender em dimensão macro o universo da cos-
mocinemacultura, para além dos projetos audiovisuais arrolados junto à ci-
neastas indígenas, faço menção aos filmes que, mesmo dirigidos por cineas-
tas brasileiros ou estrangeiros, foram protagonizados pela presença quase que
exclusiva de personagens, personalidades, atores indígenas. Filmes como Terra
vermelha, Ex-xamã e Martírio: cujo sucesso seria impensado sem o engaja-
mento dos movimentos indígenas. Como visto, a cosmocinemacultura ins-
creve uma nova arena política de conquista e luta pelos direitos afirmativos.
A cosmocinemacultura potencializa aquilo que Zizek chama de transgressão
inerente, pois produz ficções que estão para além daquilo que nos é dado como
verdade/realidade. Deste modo, os membros da “comunidade cinematográfica”
indígena transgridem o sistema informacional hegemônico, para legitimar o

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seu próprio espaço no mundo do cinema; substituindo o moderno pelo novo
(não-moderno), ao desconstruir os imaginários colonialistas dominantes. Tra-
ta-se de recontar a história, de indianizar o cinema para descolonizar o social.

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