Introdução
A pesquisa qualitativa se desenvolve com muito vigor, sobretudo, a partir dos anos
1970 quando diversas tradições e movimentos encontram espaço para sua produção e
difusão. Na base das tradições da pesquisa qualitativa está o reconhecimento de que o
objeto de pesquisa das ciências sociais tem uma especificidade que exige formas também
específicas de abordá-lo. Trata-se de um objeto de estudo que é da mesma natureza do
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Aluno de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFCG.
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pesquisador e que, portanto, dialoga com ele, que é capaz de elaborar uma performance,
que no processo de interação com as pessoas produz significados e os partilha. Trata-se em
fim de um objeto de estudo que é complexo por estar em constante processo de mudança.
Observa-se a existência de muitos textos reivindicando para si a condição de
trabalhos de perspectiva qualitativa que trazem em seu escopo diversas técnicas de
pesquisa: entrevista, etnografia, história de vida, observação participante etc. Alguns destes
trabalham enfatizam a capacidade da pesquisa qualitativa suscitar novas reflexões sobre
questões que aparecem como dados estatísticos gerais. Além disso, a pesquisa qualitativa
marca um tipo de relação de pesquisa que favorece a intervenção nas problemáticas
sociais.
Este trabalho se constitui em um exercício de perceber a contribuição da pesquisa
qualitativa no processo de produção sociológica, sobretudo no que se refere à sua
flexibilidade e capacidade de ajustamento ao objeto de estudo.
Na primeira parte destacaremos a relação entre pesquisador e objeto de pesquisa do
desenvolvimento da metodologia qualitativa. A maneira como esta relação se desenvolve
favorece um contato mais profundo e mais complexo do que a pesquisa quantitativa na
qual o estabelecimento de classes coloca o trabalho sob limitação. Na segunda seção do
trabalho faremos uma discussão em primeiro lugar sobre as condições de
operacionalização da pesquisa (definição do objeto, operações preliminares etc) e em
segundo lugar apresentaremos as características de algumas técnicas. Na terceira seção
apresentaremos alguns questionamentos em relação às técnicas qualitativas. Com isso
encerraremos com algumas considerações gerais sobre o tema.
Não existe uma superioridade entre ciências naturais e sociais, cada qual, possui sua
importância, mesmo quando as duas estão tratando de seres humanos. É possível,
entretanto, e essa questão há muito tempo já discutida, explicitar as diferenciações entre
um modelo e outro de prática da ciência. A diferenciação que nos interessa refere-se às
características do objeto de estudo e a relação que o pesquisador instaura sobre elas.
De modo geral, as ciências naturais lidam com fenômenos e processos de uma
categoria diferenciada em relação ao pesquisador. São de outro gênero. Roberto Da Matta,
faz um interessante exercício de distinção entre esses dois campos, enfatizando que, no
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caso das ciências sociais o objeto tem relação com o pesquisador, justamente porque são
fatos produzidos pelas pessoas, inclusive, em boa parte dos casos, por pessoas do mesmo
universo social do pesquisador. Nesse caso, é um objeto que dialoga, é um objeto que pode
questionar aquilo que se diz sobre ele. Apresentamos aqui esta idéia básica com objetivo
de afirmar que, em ciências sociais, pesquisar é criar relações sociais com uma finalidade
específica que deve ser esclarecida e difundida: investigar um determinado fenômeno que
envolve os grupos sociais. O pesquisador acaba incursando no meio social para apreender
os sentidos, verificar a constituição das relações sociais.
Chegar a um estágio de conhecimento dessas relações, desse universo de sentidos,
valores, práticas sociais, não é uma tarefa simples, mas é um processo que exige
instrumentos adequados e um compromisso pela clareza da sua condição de pesquisador
que traz consigo da responsabilidade pela lisura daquilo que ele está colocando como
resultado de sua pesquisa ou como teoria. A questão primeira é: criar relações sociais no
seu processo de pesquisa, mas não deixar que elas o impeçam de olhar criticamente os
acontecimentos. Laplantine tratando da pesquisa antropológica, especificamente sobre a
observação, afirma que:
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técnicas qualitativas. Isso pode nos induzir a crer que esta seja uma antinomia, isto é, que
opção desta inviabiliza a utilização daquela na mesma pesquisa.
Somos da opinião de que técnicas qualitativas e quantitativas não são
inconciliáveis, ao contrário, elas são complementares desde que a pessoa que opte pela
utilização das mesmas tenha clareza das limitações de cada uma dessas alternativas e,
sobretudo, saibam adequar estas técnicas ao seu objeto de estudo. O processo de pesquisa
precisa de um controle exercido pelo pesquisador, conforme pondera Günther (2006): “Os
métodos são sujeitos a um controle contínuo (...) os passos da pesquisa precisam ser
explicitados, ser documentados e seguir regras fundamentadas” ( Günther, 2006:202). Esta
postura desconstrói o argumento de heranças positivistas segundo o qual o procedimento
estatístico e generalizante é que era o paradigma da ciência. Assim sendo, a perspectiva
qualitativa contribui tanto quanto a quantitativa desde que seja desenvolvida sob regras
fundamentadas.
A qualidade dos dados obtidos depende de um ajuste da metodologia ao objeto de
pesquisa. Günter pondera que ao invés de utilizar instrumentos e procedimentos
padronizados, a pesquisa qualitativa considera cada problema do objeto de uma pesquisa
específica definindo, para este, um conjunto de instrumentos de coleta de dados
específicos.
Este ajuste consiste, portanto, em ponderações que devem ser feitas em relação ao
que se pretende estudar, às características dos informantes, sobretudo, no que se refere ao
seu meio social e ao conjunto de forças que nele se estabelecem e que podem facilitar ou
dificultar a produção de dados para análise. A consequência dessas afirmações é que não se
pode criar uma marginalização da metodologia qualitativa e nem se pode criar uma escala
na qual as técnicas quantitativas sejam as mais importantes e reconhecidas como melhores
formas de produção dos dados. Somos da opinião de que há situações nas quais, por
exemplo, técnicas estatísticas podem ser insuficientes para lidar com um determinado
universo. Estamos, para exemplificar, nos referindo à descrição de situações de descrição
do cotidiano de determinados grupos sociais. Consideramos que a aplicação de
questionários, nesta situação particular, deixaria escapar muitos elementos por ser um
modelo padronizador e que não tem abertura para reformulações, adequações.
A metodologia qualitativa, portanto, pode contribuir significativamente ao
desenvolvimento de pesquisas sociológicas. Em que consiste essa contribuição é que
passamos a destacar. Segundo Groulx (2008), a pesquisa qualitativa “encontra a
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heterogeneidade das situações, a diversidade das trajetórias e das experiências, desvenda
processos múltiplos de exclusão social e estratégias plurais de sobrevivência.” Ainda,
segundo o autor, a pesquisa qualitativa rompe com a unidade artificial da categorização
artificial estatística para dar lugar a uma diversidade de situações que só podem ser
explicitadas pela percepção holística dos problemas e das questões.
Groulx destaca a importância e a contribuição deste tipo de pesquisa a partir da
analise de estudos sobre a pobreza. Para este autor, os métodos estatísticos de
categorização da pobreza são homogeneizadores e trazem a limitação de não reconhecer a
diversidade de situações. Uma nova abordagem para o conceito de pobreza é estabelecida
deslocada das categorias institucionais e administrativas para situações ou modos de vida
revelados pela aplicação de um paradigma interpretativo, compreensivo e relativista no
qual o recurso à observação participante teve papel fundamental. Nesse caso particular
observa-se que a adoção de uma perspectiva qualitativa possibilitou o conhecimento de
uma diversidade de situações e, mais que isso, possibilitou não só constatar o perfil dos
pobres, mas entender os mecanismos que levam à situação de pobreza. Isso leva a uma
dimensão fundamental da pesquisa qualitativa, segundo Groulx, que é criar as bases para o
entendimento e a intervenção nas problemáticas sociais. Diz ele, “a metodologia
qualitativa não se reduz mais aqui, a uma simples técnica de coleta de dados, ela
desempenha um papel na renovação da problemática da pobreza, tal como o conjunto das
problemáticas sociais”.
Em um sentido similar, Bourdieu critica a tentativa de definir pela quantificação
aquilo que é a juventude. Diz ele:
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das estruturas societais.”(HAGGETTE, 1997,63). O que se destaca dessa passagem é,
portanto, a preferência pelas especificidades de um fenômeno interessando-se mais pelo
aprofundamento das características desse fenômeno.
Passamos agora a pensar sobre a operacionalização da pesquisa enfatizando
algumas técnicas utilizadas e suas características básicas.
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A operação segundo a qual são definidos os postulados da pesquisa é considerada
apenas como referência inicial e, o desdobramento dos trabalhos, redudará certamente em
reformulações, ampliações, etc de determinados aspectos. Assim sendo, a elaboração da
teoria é um processo contínuo, o que significa que o objeto vai sempre se especificando.
Chegamos a uma questão complexa em abordagens qualitativas: a definição do seu
universo de pesquisa. A amostragem é um procedimento que tem maior visibilidade nas
pesquisas quantitativas, contudo, em perspectivas qualitativas essa operação também
ocorre sendo que com a característica de ser não probabilística.
A pesquisa qualitativa, como já dito no início desta seção, traz muitas alternativas
de técnicas a serem utilizadas para produção dos dados. Dentre essas técnicas, a entrevista
é a mais tradicional de todas, contudo, o fato de ela ser recorrente entre os pesquisadores
não elimina a necessidade de cuidados durante o seu desenvolvimento. O momento da
entrevista não deve constituir um mero ato de coletar dados mediante perguntas
verbalizadas pelo entrevistador, mas deve ser um momento de interação entre os dois
atores envolvidos, há construir “um contato contínuo, a criação de referências que o
aproximem mais com o seu interlocutor, de modo que se construa uma postura cientifica”
(BOURDIEU et all, 1999). Poupart considera que a pesquisa é uma técnica que permite
apreender a experiência dos outros e, além disso, é um instrumento que permite elucidar
suas condutas uma vez que a entrevista seria encarada como a apresentação dos atores sob
o seu próprio ponto de vista.
A entrevista sempre foi considerada como um meio para levar uma pessoa a dizer o
que pensa, afirma Poupart, mas este procedimento exige alguns princípios e estratégias
para se desenvolver. O entrevistado precisa se sentir seguro para colaborar e, nestes
termos, obter a colaboração do entrevistado é um complexo processo, que envolve,
segundo (Menezes et all, 2004) a negociação de identidades que darão maior confiança ao
entrevistado de modo que ele tome a iniciativa e se volva com a entrevista.
Entrevistas, estruturadas ou semi estruturadas, são apenas um dos exemplos de
técnicas que uma perspectiva qualitativa pode desenvolver. O Estudo de caso é outro
interessante instrumento que consiste na tomada de um caso individual para interpretar um
fenômeno mais amplo. A análise de documentos pode ser outro instrumento interessante
para compor uma interpretação. A utilização de documentos pode ser feita tanto pela
perspectiva quantitativa como pela qualitativa e os materiais vão de recortes de jornais a
documentos oficiais.
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A observação é um importantíssimo recurso que se desenvolve a partir do contato
com seus interlocutores na pesquisa para observar, de acordo com um esquema
preestabelecido elementos do cotidiano que ajudem a compor um quadro analítico. Não se
trata, portanto, de uma atividade desenvolvida sem nenhum preparo, mas, neste caso, é
fundamental a orientação teórica como forma de observação dos fatos cotidianos.
Esta observação pode ser também do tipo participante. Ela continua sendo um
mergulho do pesquisador no mundo do outro, mas esse mergulho é comprometido em fazer
com que a produção científica possibilite uma intervenção na própria problemática. Esta
preocupação em distanciar-se de si para melhor compreender o mundo do outro remonta à
clássica Antropologia tomando como referencia importante Malinowiski. Este propunha
que o pesquisador interagisse com os povos pesquisados de modo a constituir-se um deles.
Brandão propõe uma perspectiva diferente para este recurso:
Vimos, portanto, que seja qual for a técnica - seja observação, entrevista ou história
oral – o seu desenvolvimento implica uma relação social que não deve ser instrumental.
Ela parte, segundo Demo (1984) de um compromisso político tão importante quanto o
próprio compromisso com pesquisa. Isto, significa, continua o autor, “a repulsa contra a
manipulação das comunidades, buscando produzir o saber através da análise coletiva e
mantendo o controle nas suas mãos”. (DEMO, 1984:122)
Estes não são, evidentemente, os únicos instrumentos de pesquisa qualitativa.
Ainda faltaria falar sobre grupo focal, etnografia, história oral entre outras. Esta última
ganha cada vez mais espaço entre os pesquisadores por ser um meio de lidar com
conhecimentos que não estão mais disponíveis em outras fontes. Trata-se, portanto de
reconstruir a partir das trajetórias das pessoas acontecimentos históricos, processos, formas
de organização, enfim, produzir material para analisar fenômenos sociais.
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A pesquisa qualitativa suscita um caloroso debate em torno da questão do
engajamento do pesquisador que gera o risco de filtrar os argumentos sob um único ponto
de vista. O risco, em suma, é de reduzir o trabalho de pesquisa a um aspecto instrumental
cujo objetivo é defender uma posição. Groulx afirma que o olhar particular voltado para a
experiência dos sujeitos não pode substituir o trabalho de elaboração dos conceitos e
interpretação dos dados. Para Hammersley apud Groulx (2008) o procedimento qualitativo
não é superior em cientificidade ao procedimento qualitativo. Então a pesquisa qualitativa
encontra como limites o perigo se tornar um discurso truncado, instrumental, de criar uma
relação de cumplicidade entre pesquisador e pesquisado que pode comprometer a
apresentação de determinados elementos importantes para explicitação do fenômeno.
Todas essas questões despertam no pesquisador a atenção sob pena de ter o seu
trabalho dificultado. O pesquisador, seja qual a postura que assuma no processo de
pesquisa, deve ter controle sob as técnicas que aplica, sob a maneira como se porta no
processo de interação no trabalho de campo.
Considerações finais
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poderíamos sequer intentar um dia se compor num dado cenário social.
Significa aprimorar a percepção, refinar a sensibilidade, ampliar horizontes de
compreensão [...]” (pág 19)
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alguns autores (DESLAURIERS e KÉRISIT 2008; GÜNTHER, 2006) que traz
preocupação desde o delineamento da pesquisa (construção do objeto), passando pela
revisão de literatura e definição de técnicas da pesquisa até a análise e divulgação dos
resultados.
Tivemos o objetivo, neste trabalho, não de esgotar todas as fases deste processo,
mas enfatizar as potencialidades da pesquisa qualitativas, sobretudo, no que se refere a sua
capacidade de adequação ao objeto de estudo e sua possiblidade de controle e ajustamento
durante o seu desenvolvimento.
Bibliografia
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HAGUETTE, Teresa Maria. Metodologias qualitativas na Sociologia. 5ª Edição.
Petrópolis, 1997
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