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14/09/2009

Guaranis: do jejuvy à palavra recuperada


Muito além de mortes banais, os suicídios indígenas em Mato Grosso são também protesto, ritual,
performance de uma cultura que sobrevive por um fio muito tênue e belo. Agora, uma campanha
nacional quer defender suas terras e matas, seu tempo distinto, sua singularidade possível

Fabiane Borges, Verenilde Santos

Performance ritual:

O dia amanhece com um índio guarani-kaiowa enforcado. Cadarço de tênis esticado da árvore.
Banho tomado, perfumado, de joelhos.
A aldeia Bororo sabe do que se trata: do jejuvy. Isso não é conforto, é ritual de morte. A palavra
jejuvy na língua dos Guarani [1] tem uma carga semântica que significa aperto na garganta, voz
aniquilada, impossibilidade de dizer, palavra sufocada, alma presa. É através do ritual do jejuvy
que os kaiowa praticam o suicídio, por enforcamento ou ingestão de veneno. Apesar de ser
reconhecido como prática ritual ancestral, nos últimos anos o jejuvy alastra-se pelas aldeias em
escala epidêmica. São cerca de 50 suicídios por ano, envolvendo jovens de 9 a 14 anos de idade.

Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o número de suicídios começou a


aumentar nos anos 80, dobrou na década de 90 e bateu o recorde na virada do século 21,
chegando aos mais de 50 por ano. Não são temas deste artigo as mortes por desnutrição, os
homicídios entre os próprios indígenas ou as guerras incessantes entre indígenas e fazendeiros,
fatos igualmente chocantes. [2]

Os suicídios (jejuvy) são efetuados basicamente por enforcamento (método antigo) e ingestão de
venenos das monoculturas (método novo). Rejeita-se a “poluição” como derramamento de sangue
ou cortes físicos, para que não se perca a palavra. Muitos guaranis consideram o suicídio uma
doença produzida pela prisão da palavra (alma). É pela boca que a palavra se liberta. Se não há
lugar para a palavra, não há vida. Por isso, na hora de morrer, não deve ser utilizado o corte
contra si mesmo, pois a palavra se dispersaria. Sufocando-a, ela permaneceria como um
aglomerado de energia e poderia voltar a vingar em algum outro momento.

Conforme narrativas dos próprios kaiowa sobre índios que cometeram suicídio, eles unificam elos
que vão desde o ato individual inerente à condição humana e solitária de cada um, até o sentido
político de coletividade, um “estar entre os outros”, produzindo simbologias-limites: os
enforcamentos, os envenenamentos. Atos que condensam e apontam para o resgate, talvez
impossível de uma “forma de ser”, como os kaiowa costumam falar. E se para eles a linguagem é
uma das mais importantes formas de fazer o ser se manifestar, ao impedi-la, impede-se também
os sujeitos de existirem. O suicídio epidêmico seria a resposta coletiva à impossibilidade de
expressar a singularidade desse povo.

Se até cerca de 40 anos atrás, os kaiowa e nhandeva moravam em casas grandes denominadas
ogajekutu-ogaguasu, reunindo até cem pessoas de uma mesma família, hoje vivem em casas
minúsculas, muitas ainda feitas de barro, sem a proteção da floresta, abrigando apenas a família
nuclear. A estrutura da família extensa, cuja chefia baseia-se no prestígio e religiosidade,
desorganizou-se, visto que os indígenas não conseguiram substituir seu prestígio cultural pelo
poder dos brancos. Com a dizimação de suas terras, sem os ritos do plantio, da colheita, das
sagas coletivas de caça e pesca, eles não têm razões para continuar com seus ritos, e conforme
perdem as práticas com a terra perdem também sua cultura. Mesmo que ainda subsista, de forma
curiosa, a língua guarani, que é o maior foco de insistência e resistência dessa coletividade.

Muitos grupos indígenas, inclusive guarani kaiowa, vivem em acampamentos precários dentro das
fazendas dos latifundiários, que em nome do expansionismo ou de mais alguma razão macha e
injustificável, tomaram a força suas terras – e ainda tomam, com armas desiguais. Isso é um dos
motivos mais apontados por indígenas, indigenistas e antropólogos para a causa da epidemia de
suicídios entre os guarani kaiowa: a perda da terra, da tekoha, o lugar onde “realizam seu modo
de ser”.

Se por um lado os suicídios por enforcamento ou pela ingestão de veneno podem significar o
sufocamento, também podem significar o desejo da libertação – e é nesse ponto que o suicídio
ritual funciona como performance ética, estética e interventiva. Gestos de enunciação. O trágico
funcionando como dispositivo de reversão sígnica sobre a questão indígena. Desde que a
“epidemia suicida” começou a se alastrar nas aldeias, ativistas, estudantes, pesquisadores,
pessoas ligadas à mídia independente passaram a olhar com mais atenção a essa situação, fazer
alianças e se tornar cooperadores na luta pela terra guarani, de forma a amplificar esses sinais,
até então emitidos em total invisibilidade. Há alguns grupos indígenas, principalmente professores
indígenas ligados à universidade e lideranças locais, que dedicam sua vida a essa causa, sendo
que o número de líderes mortos nessa empreitada supera nossa imaginação.
Apesar de muitos dos suicídios serem praticados em locais mais resguardados, existe um grande
número de casos que ocorrem em lugares de perambulação, os lugares “públicos” da aldeia,
como estradas, roças, áreas onde o corpo suicida pode ser visto sem muita dificuldade. São
nuances que ajudam a esclarecer e também interrogar sobre essa forma de morrer. Não
compactuar com a dizimação, com o genocídio, com o etnocídio. Não se acovardar diante do
destino, ter o ato bravo e último como forma de amplificar os sinais da miserabilidade que foram
submetidos. As árvores, os arbustos, as roças, qualquer lugar que tenha sido utilizado para o
suicídio torna-se marco da aldeia e fica cravado no imaginário, na linguagem cotidiana e na sua
luta contra o confinamento. Os mortos continuam falando especialmente para os corações
sensíveis, ainda conectados em crenças de espíritos da natureza e nas emissões dos seus sinais.

Os ritos, as danças, os cantos as lutas sobrevivem por pura insistência. A sensação que tivemos
ao estarmos na aldeia Bororó é que essa cultura sobrevive por um fio muito tênue e belo. Como
uma voz que se força a falar, mas já não soa como costumava. Mesmo afônica, agônica, gaga,
insiste em se manifestar. Ritual de rememoração. Resíduo. Resistência de certos cantos e gestos.
As danças de luta dos guarani kaiowa lembram as lutas marciais, lutas de espadas. São feitas de
pedaços de paus, facas, pedras assemelhando-se a lutas ninjas.

Dona Tereza Guarani é uma das últimas velhas da aldeia. Conduz os ritos na aldeia Bororó com o
rosto enrugado e concentrado, mãos fortes que movimentam o maracá, passos contundentes que
provocam o som retumbante no chão de barro. No êxtase, provocado pelos cantos, que sentimos,
nos perguntamos como é possível que ainda cantem e dancem e lutem dessa forma. Em nome de
qual força? Dona Tereza faz um esforço explícito para que essa cultura kaiowa se mantenha, pois
a grande maioria do seu povo não vê motivo para continuar os ritos. Muitos já não sabem mais
como eram as danças e as batidas. A velha índia Tereza, a rezadeira, curandeira, a mulher
compromissada com os rituais culturais da aldeia, toma para si o encargo de dar suporte de
memória e sentido aos ritos dos antepassados. Coloca os filhos e netos e amigos para aprender
os cantos e as danças, antes de morrer. Essa é a função para a qual dedica sua vida. Mesmo seu
poder de xamã não a impediu de presenciar muitos suicídios em sua própria família.
Apego à vida é um imperativo da dominação, do exercício de poder – e da inclusão. Quando há
coisa mais intensa que o apego a vida, há mídia tática, há resistência, há potência de protesto.
Porém o que é que os kaiowá amam mais do que a sobrevivência? É isto que grita de maneira
abafada ainda pelo espaço público da aldeia, que é favela que é cidade que é campo. Tem
alguma coisa que estes indígenas desejam mais do que serem incluídos na pasmaceira da
biopolítica globalizada, na miserabilidade imposta pela política neoliberal. É uma forma de vida
que não se contenta com a sobrevivência miserável do branco ou do índio. Nesse caso pensamos
que não se trata de inclusão indígena na sociedade nacional, mas da mobilização da sociedade
para a retomada das terras indígenas para colaborar no processo desse outro índio que o próprio
índio não sabe e tem que devir.

As lutas de movimentos agrários no Brasil se intensificaram ao longo desses últimos 30 anos e


cada vez ganham maior visibilidade mundial em função da sua extrema importância. A luta
indígena é mais uma das lutas agrárias do pais, a mais antiga, a mais usurpada e dizimada. Os
processos de homologação e assentamentos estão longe do seu fim e é com muito esforço,
tensão e mortes que se efetivam suas realizações.

Nosso desafio em gerar uma rede de colaboração capaz de mudar a percepção social sobre
pontos enredados da sociedade é urgente e de grande relevância. Mais do que mudança
perceptiva, é necessário a ampliação do próprio espectro relacional dos movimentos sociais, para
que ganhem possibilidades de ação diversas. O papel que a mídia tática, Greenpeace e CMI
(centro de mídia independente) têm exercido nesses contextos é uma abertura para ajudar a
pensar em como grupos autônomos, organizados ou não, podem atuar junto aos movimentos e às
lutas sociais (nosso grande espaço público). Ainda são precárias suas atuações, mas sinalizam
possibilidades. Para além da denúncia e do apoio, é preciso criar meios que se tornem mais
incisivos na efetivação de certos projetos políticos dos movimentos da sociedade civil, como é o
caso da campanha pró-guarani foi lançada em setembro de 2007 e que recém começa a aparecer
para a sociedade geral [3].
Essa campanha midiática, ativista, feita na sua maioria por lideranças indígenas guaranis e
apoiada pelo CIMI, reclama o reconhecimento das 32 terras indígenas do povo guarani, reclama o
desaceleramento do mercado agropecuário na região do Mato Grosso do Sul, o reflorestamento
das áreas dizimadas, o respeito e reconhecimento de um tempo que não precisa ser igual para
todo mundo. Mas também reivindicam o acesso ao que há de relevante na sociedade
(inter)nacional, levando em conta as conquistas da ciência e da tecnologia, etc.

Há muito o que pensar na intervenção desses suicídios no imaginário social branco, indígena,
mestiço. Mas uma coisa é certa: essas mortes têm evidenciado o impasse que esses indíos
vivem, e chegam até nós como sinalizadores dessa condição insuportável, indígna, vergonhosa
que os ideais de civilização, de desenvolvimento e de crescimento econômico provocam. É
preciso agir antes que toda diferença desapareça.

Outras fontes de pesquisa:

http://www.campanhaguarani.org.br

http://www.midiatatica.info

http://www.rizoma.net

http://hemi.nyu.edu
http://www.midiaindependente.org

[1] Os índios guarani estão divididos em três grupos: guarani-nhendeva, guarani-kaiowá e


guarani-mbyá. À época da chegada dos europeus, esses indígenas somavam cerca de quatro
milhões de pessoas. Atualmente existem cerca de quarenta mil, espalhadas pelas regiões Sul e
Centro-Oeste do Brasil. No Mato Grosso, calcula-se que existam cerca de 27.500, pessoas
espalhadas em 22 pequena áreas. Sendo que a aldeia bororó, apresentada nesse texto, abriga 12
mil índios guaranis- kaiowas, comprimidos em 3.600 hectares de terra improdutiva e sem mata. Aí
existem mais de 90 igrejas entre católicas, evangélicas e espíritas, que disputam os indígenas
entre si conforme suas crenças e métodos de conversão.

O território dos índios guarani estendia-se ao Norte, até os rios Apa e dourados e ao Sul até a
Serra de Maracaju e os afluentes do rio Jejuí, chegando a uma extensão Leste-Oeste de
aproximadamente 100 quilômetros, em ambos os lados da serra de Amambai abrangendo uma
extensão de terra de aproximadamente 40 mil km2, dividida pela fronteira Brasil-Paraguai.

[2] Ver mais

[3] http://www.campanhaguarani.org.br

Veja a notícia no site do Le Monde Diplomatique: http://diplo.uol.com.br/2008-02,a2168

Fonte: Le Monde Diplomatique


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