Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Psicologia Hospitalar
A psicologia hospitalar é o campo de atuação que mais se desenvolve na
psicologia. Entre as inúmeras possibilidades de desenvolvimento profis�
sional, é nela que certamente se encontram as maiores perspectivas.
Aplicações
Destina�se aos estudantes de Psicologia, Medicina, Enfermagem,
Filosofia e Pedagogia, nas disciplinas psicologia hospitalar, psicologia
da saúde, psicologia institucional, teorias e técnicas em psicoterapia e
psicopedagogia. Obra indispensável àqueles que se interessam pelos
avanços da psicologia em todos os seus desdobramentos.
ISBN 852210411-5
1.
T@íbhoteta jf reullíana
2004.
Bibliografia.
ISBN: 85-221-411-5
venção I. Titulo.
04-2821 CDD-362.11019
TENDÊNCIAS EM
Psicologia
Hospitalar
THOMSON
*
Austrália Brasil Canadá Cingapura Espanha Estados Unidos México Reino Unido
THOMSON
Saga do hospital 19
Acordes de um réquiem 98
1
2 I TFNDf:NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAR
lima remoção cirúrgica? E o que dizer diante do alívio provocado JWia in
n:rvenção psicológica quando tudo parece turvo diante do diagnóstico dt:• al
guma doença incurável?
E se a instituição hospitalar freqüentemente se mobiliza b u scando ca
minhos que possam levá-la ao encontro de sua humanização, então certa
mente o psicólogo terá papel decisivo nessa estruturação. A vida que agon i
za nos hospitais certamente tem na atuação do psicólogo o bálsamo capaz de
cicatrizar-lhe as chagas, e até mesmo de revitalizá-la. E se a psicologia ca
minha em direção aos reais anseios da comunidade, seguramente é no cem
texto hospitalar que as determinantes dessa atuação se fazem concretas.
O psicólogo, no contexto hospitalar, depara de forma aviltante com a
negação de um dos direitos básicos à maioria da população: a saúde. A saú
de, em princípio um direito de todos, passou a ser um privilégio de poucos
em detrimento de muitos. A precariedade da saúde da população é, sem dú
vida alguma, grave; irá provocar posicionamentos contraditórios e, na qua
se totalidade das vezes, irá exigir do psicólogo uma revisão de seus valores
acadêmicos, pessoais e até mesmo sociopolíticos.
O contexto hospitalar dista de forma significativa daquela idealização
feita nas lides acadêmicas quando a prática nessa realidade é desejada. As
siste-se, nesse contexto, à condição desumana a que a população, já bastan
te cansada de sofrer todas as formas possíveis de injustiças sociais, tem de se
submeter em busca de um tratamento médico adequado. Ocorrem as mais
lamentáveis situações a que um ser humano pode submeter-se. E o que é
mais grave, tudo passa a ser considerado normal. Os doentes são obrigados
a aceitar como normal todas as formas de agressão com as quais se deparam
em busca da saúde.
Passa a ser normal ficar seis horas numa fila de espera em busca do
atendimento médico, e muitas vezes após vários retornos à instituição hos
pitalar derivados de encaminhamentos fei,tos pelos especialistas, com exa
mes realizados especulativamente. Também passa a ser normal o fato de
ser atendido um número imenso de pacientes num período absurdamen
te curto. E os profissionais que atuam na área da saúde assistem desolados
e conformados a esse estado de coisas. Tornam-se praticamente utópicas
outras formas de atendimento que não as que impiedosamente são impos
tas à população.
4 I TEND�NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAR
BIBLIOGRAFIA
I NTRODUÇÃO
7
8 I TEND�NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAR
tl' de sua ação. o termo câncer foi associado à doença por sua semelhança
com o caranguejo (no Brasil, quando se pronuncia a palavra "câncer" não se
J
via sido submetida à cirurgia, e sentia no âmago de seu ser as agruras da
mastectomia - não era o mais adequado. As psicólogas lidavam com o re
sultado, a mastectomia, prejudicadas pelo agravante de a cirurgia ter sido
feita à revelia da pa,ciente.
De início, tentou-se traçar um perfil das mulheres atendidas no Servi
ço de Oncologia. E percebeu-se que a maioria eram mulheres cuja idade va
riava entre 2 5 anos e 70 anos de idade. Diante dessa diversificação etária,
estavam representadas mulheres atuantes em diversos níveis profissionais
I
3. Na parte final deste capítulo, intitulada "Alguns Casos Clínicos", são mostrados atendimen
tos nos quais fica claro o poder decisório da paciente, inclusive sobre a própria cirurgia.
12 I T�ND!:NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAR
t·v idente que a qualidade de vida dessa paciente era insatisfatória, podendo
mt'smo ser definida como péssima. Segundo dizia, nada lhe trazia alento ou
l'sperança na vida. Seu sentido de vida tinha como tênue propulsão a espe
rança de reconquistar o marido.
Após esse contato inicial, houve.uma discussão conjunta da equipe mé
dica com as psicólogas, na qual ficou deddido que a cirurgia seria protela
da para que a paciente pudesse receber "ajuda" a partir de algumas sessões
psicológicas. Depois de várias sessões, o temor inicial manifestado pela filha
f(>i confirmado, e a qualidade de vida da paciente foi percebida ainda mais
t·urva do que havia sido apreendida inicialmente. (Quando nos referimos à
qualidade de vida da paciente, estamos fazendo tal conceituação a partir de
seu depoimento e do que pode significar para ela os parâmetros desse enqua
conceituação da paciente.)
Diante desses fatos, a equipe médica e as psicólogas discutiram exaus
·
tivamente qual era a melhor conduta a ser adotada. Decidiu-se, finalmen
te, pela extração simples do nódulo, quando o indicado, ante a gravidade
do tumor, seria a remoção cirúrgica do seio. Tecnicamente, essa conduta
médica seria criticada por outros profissionais, que enfatizariam a necessi
dade premente da remoção cirúrgica do seio. No entanto, levando-'se em
conta o desejo da paciente de continuar com o seio - o risco das conse
qüências da não extração do seio foi assumido pela paciente de formaJivre
c· abrangente -, a qualidade de vida dessa mulher foi preservada, de mo
quanto seria possível usar de radiação sem pre juízo para o bebê. E algumas
perguntas ficavam sem resposta a todos os envolvidos em sua terapêutica: co
mo ela poderia fazer uma opção dessas? E que diferença faria pa�a J� ter ou
não essa criança, uma vez que o câncer a dominava inteiramente?
Desnecessário dizer que essas dúvidas eram questionamentos que fa
zíamos a partir do nosso referencial de pessoas saudáveis e que não têm o
câncer como espectro em sua existência. Após novas discussões, decidiu-se
pela realização da cirurgia sem o processo de radiação.
Foi apresentada à paciente a conduta que seria adotada em seu caso, o
que implicaria que no sétimo mês de gravidez o parto seria induzido, pois
nessa ocasião o bebê já estaria maduro e seria possível iniciar-se o tratamen
to radioterápico. A conduta foi aceita plenamente pela paciente, que agrade
ceu de todas as formas o respeito que estava sendo dado a sua própria vida ao
se preservar a vida de seu bebê. E assim foi. No sétimo mês nasceu um bebê
forte e saudável. E todos os profissionais envolvidos nesse atendimento se
emocionaram e perceberam de forma verdadeira a importância da humani
zação do atendimento hospitalar. A dor d'alma da paciente foi respeitada e
seu dilema considerado em toda a sua extensão. Essa conduta certamente se
ria criticada por aqueles que vêem a paciente apenas como um sintoma, e no
cílso do seio C:om câncer, um órgão que precisaria ser removido cirurgicamen
te a qualquer custo. No entanto, para aqueles que sabem que por trás do sin
toma existe uma pessoa e que nessa pessoa existe um coração que vibra em
ânsia clamando vida e respeito à sua dignidade existencial, esse caso é uma
luz acerca do verdadeiro sentido do atendimento, no qual o paciente é res
peitado acima de tudo e é considerad.Q uma pessoa. Os médicos responsáveis
pelo atendimento de M. R. M. entusiasmaram-se com a performance do ca
so e viram que, a partir de uma discussão amiúde da problemática da pacien
te, a Medicina e a Psicologia cumpriram um de seus ideais mais nobres, o de
legar ao Pfl.Ciente sua condição de pessoa, na verdadeira amplitude do termo.
BIBLIOGRAFIA
* NA: Esta poesia foi publicada anteriormente no livro Psicologia Hospitalar. A Atuação do Psi
cólogo no Contexto Hospitalar. São Paulo: Traço Editora, 1984.
E LEMENTOS
INSTITUCIONAIS BÁS ICOS
PARA A IMPLANTAÇÃO
D O SERVIÇO DE
PSICOLOGI A NO HOSPI TAL1
INTRODUÇÃO
1 . Este trabalho foi publicado anteriormente no livro A Psicologia no Hospital. São Pau
lo: Pioneira Thomson Learning, 2003.
21
22 I TENllrNCIA5 tM PSICOLOGIA HOSPITALAR
ELEMENTOS INSTITUCIONAIS
Estrutura estática
Hospital da Paz
Endereço: Rua da Paz, n: 00.
Trata-se de um hospital constituído por um prédio de cinco andares.
Térreo
No térreo existe uma recepção onde é prestada informação ao público sobre o funcio
namento do hospital. Existe também um ambulatório onde funciona a unidade de
pronto-socorro com atendimentos a casos gerais de emergência médica e cirúrgica. Nes
te andarfunciona a parte burocrática do hospital: departamento pessoal, tesottraria,
contabilidade, administração e diretoria. Ainda no térreo, anexo ao prédio princi
pal do hospital, funcionam os serviços de lavanderia, cozinha, raio X, embasamen
to, unidade de oxigênio, almoxarifado e setor de manutenção.
1º Andar
Neste andar funCionam a clínica de ortopedia na ala A e a clínica de traumatismo
na ala B. O número de vagas existentes é de 1 5 leitos para cada enfermaria. Existe
ainda um serviço de enfermagem para cada ala, além de uma separação física e de
serviços -- orientação médica e enfermagem - entre as clínicas.
21
2u andar
Neste andar funcionam a dínica de cirurgia vascular na ala A e a clínica de obs
tetrícia na ala B. O número de vagas existentes é de 1 O leitos para a clínica de ci
rurgia vascular e de 20 leitos para a clínica de obstetrícia. Existe um serviço médi
co e de enfermagem para cada ala com orientação e supervisão distintas.
32 Andar
Neste andar funcionam a clínica de pediatria na ala A e a clínica buco-maxilo-fa
cial na ala B. O número de vagas existentes é de 2q leitos para a pediatria e de 1O
leitos para a clínica buco-maxilo-facial. Assim como nas outras clínicas, os serviços
de enfermagem e médico são distintos para cada uma das clínicas.
42 Andar
Neste andar funciona o centro cirúrgico na ala A e a unidade de terapia intemiva
UTI na ala B. O número de vagas é de 1 O pacientes na unidade, e o centro cirúrgi
co tem capacidade física para cinco cirurgias simultâneas. Também existe divisão en
tre o atendimento médico e a enfermagem.
52 Andar
Neste andar funciona a clínica de transplantes renais e hemodiálise. O posto de en
fermagem existente no andar atende a totalidade do setor. A coordenação médica tam
bém é centralizada.
Estrutura dinâmica
HOSPITAL DA PAZ
Clínica de Ortopedia
A) TIPO DE HOSPITAL
Trata-se de hospital público no qual também é exercida a prática acadêmica pelos se
guintes profissionais: médicos, enfermeiros, assistentes sociais e nutricionistas.
mos não apenas definindo o tipo de população atendida pelo hospital romo
também instrumentalizando a forma de atuação de um serviço de psicolo
gia. Torna-se evidente que, a partir do tipo de clientela atendida pelo hos
pital, estaremos refletindo sobre a real abrangência dos instrumentos de psi
cologia junto a essa população. Um direcionamento dos métodos e atitudes
do psicólogo farão com que o embasamento teórico de seu trabalho no hos
pital vá ao encontro dos anseios e expectativas de sua prática.
Neste item podem ainda ser acrescidos possíveis vínculos do hospital
com a comunidade que transcendam o atendimento ao paciente. Assim, po
deremos encontrar casos de instituições hospitalares que possuem vínculos
com a comunidade que implicam diversas práticas, como promoção de ba
zares beneficentes, quermesses etc. (Embora essas práticas tenham como jus
tificativa angariar fundos para a própria manutenção do hospital, ainda assim
é importante observar que se trata de vínculo distinto daqueles propostos
pela instituição hospitalar como um todo.)
2. É sabido que a prática acadêmica no contexto hospitalar, na maioria das vezes, é permeada por
lutas incessantes de poder. Até mesmo os pacientes são envolvidos nessa disputa irascível, da mes
ma forma que a própria estruturação do hospital implica verdadeiro desarvoramento diante des
ses atritos que visam única e exclusivamente a escalada vertiginosa em busca do poder atribuído
pelos títulos acadêmicos. Ainda assim, lamentavelmente é no meio acadêmico que os incautos
depositam as esperanças de que a saúde possa encontrar escora diante das atrocidades governa
meneais cometidas contra a população. E à medida que a saúde reflete a precariedade das condi
ções de vida da população de maneira drástica e incontestável, o hospital se torna palco de lutas
cujo acírramento nos remete a conflitos ideológicos escamoteados sob o manto da ciência.
3. Não queremos com essas colocações afirmar que a classe médica presta atendimento de bai
xa qualidade em função dos maus salários recebidos; ao contrário, desejamos enfatizar aspectos
:Z7
inerentes a pontos emocionais de conduta humana. A própria mobilização dos médicos em bus
ca de salários dignos traz no bojo de suas reivindicações a necessidade de uma prestação de ser
viços de melhor qualidade à população. Assim, estamos mostrando uma faceta das ocorrências
da prestação de serviços nas instituições hospitalares particulares sem contudo adentrarmos às
questões da qualificação profissional do médico.
:Z8 I TtNO!NCIAS EM PSICOLOGIA H OSPITALAR
cctso.r dfnicos para discussão multidisciplinar. Existe também uma intensa troca de
informações entre a equipe médica e os demais profissionais de saúde. Os prontuários
hoJpitalares são analisados conjuntamente e até mesmo as prescrições são discutidas
de forma detalhada no plano multidisciplinar.
F) MULTIDISCIPLINARIDADE DO SETOR
A multidisciplinaridade do setorpode ser considerada unitária em seu objetivo comum:
o paciente. Os diversos profissionais que atuam no setor se harmonizam nos aspectos que
envolvem o direcionamento do tratamento necessário ao restabelecimento do paciente.
4. Não queremos com essas colocações minimizar a importância dos outros itens da análise pa
ra a estruturação do serviço de psicologia no hospital. Enfatizamos a importância da trajetória
hospitalar do paciente na medida em que é neste ponto que se concentram os esforços da equi
pe de saúde como um todo. Daí a necessidade de o psicólogo ter claros os limites dessa abran
gênCia na estruturação de seu trabalho.
11
J) CRITÉRIOS DE HOSPITALIZAÇÃO
K) CRITÉRIOS DE VISITA
As visi-tas da clínica de ortopedia do Hospital da Paz seguem estes critérios:
• Visita médica: éfeita diariamente no período da manhã, quando os respon
sáveis pelo paciente o examinam para avaliar suas condições vitais. Após es-
/! /t'lllt'l//111 11/.1/l/111 /111/ol/.1 l�ll h w /••11� oi /111/•l,!llloilo/11 .lo 11'1'1 '1''11 .Ir /l.l!tlllfl/1,/ol 1111 /1111/•ll•d I JJ
--- -- - - - · -· - - - ----··· --- - - -�--- - - - - ---- -·- -�-- -
para para acomodar a criança. Essa gestante não engravida s9'zinha. Toda a
família igualmente engravida.
1\_ .
Se por um lado a paciente apresenta a sintomatologia da gravidez, por
outro a família apresenta os sinais emocionais dessa gravidez. Assim, é a mãe
da parturiente que prepara o enxoval do nenê tricotando sem cessar os no
vos modelos de agasalhos; é o pai da criança que, de posse de um copo de
cristal, tenta ouvir o coração do nenê; é a tia da criança que coloca a mão na
barriga da futura mamãe para sentir os movimentos da criança.
A família inteira engravida e se prepara para receber a criança. E to
dos ansiosamente aguardam seu nascimento. A mãe apresenta as sintoma
tologias de uma gravidez e a família, os sinais emocionais que caracterizam
esse tipo de espera. Se por algum motivo essa criança, ao nascer, vier a fa
lecer, a mãe não sofrerá isoladamente essa perda. Toda a família se desarvo
rará diante desse episódio que se abaterá sobre todos como uma verdadei
ra tragédia.
Da mesma forma, na instituição hospitalar, temos um quadro em que
o paciente hospitalizado sofre a sintomatologia de determinada patologia e
a família sofre emocionalmente as conseqüências desse tratamento. Existe
uma fusão dos sentimentos, e a dor vivida pelo paciente é a mesma dor vi
vida pela família.
A abordagem psicológica junto à família não pode negar essa fusão, com o
risco de provocar seqüelas emocionais ainda mais profundas que aquelas provo
cadas pela própria hospitalização. Chiattone (Angerami, 1 984b) refletindo so
bre a intervenção psicológica junto à família do paciente hospitalizado, observa
que, quando uma criança adoece, a família também se sente doente, algumas
vezes, inclusive, culpando-se pelo fato. A doença é um fator de desajustamento
do grupo familiar. Então torna-se imprescindível um acompanhamento psico
lógico dessa família. A princípio, ela deve ser conscientizada sobre os aspectos
da doença em si e sobre a necessidade real da hospitalização.
E na medida em que a família e o paciente se harmonizam no sofrimen
to emocional provocado pela hospitalização, toda e qualquer intervenção
psicológica não pode deixar de abordar tais aspectos, sob o risco de incorrer
em erro conceitual.5
5. Nesse sentido, cremos errada a atitude médica de negar informação ao paciente sobre seus
próprios sintomas e acreditar que a família tem melhores condições emocionais para receber as
Jl
L) VÍNCULO MÉDICO-PAClllNTil
informações. Essa prática, comum no meio médico, reflete a falta de atitude criteriosa sobre as
condições emocionais do paciente. Se um dado paciente, por exemplo, não possui condições
emocionais para receber o impacto de uma informação sobre o diagnóstico de um possível cân
cer, nada pode nos assegurar que os familiares possuam tal condição. Essa atitude médica reve
la, em última instância, uma postura na qual o profissional se recusa a enfrentar as condições
emocionais do paciente diante do diagnóstico. Torna-se assim mais cômodo deixar para os fa
miliares essa responsabilidade, em que pese, na maioria das vezes, a fusão dos sentimentos emo
cionais sobre o diagnóstico.
J& I TP.NDt:NOAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAR
;
trabalho do psicólogo é a transformação das relações arerpessoais deterio
radas, ela acabará atingindo os próprios aspectos inst�:ucionais.
M) VÍNCULO PACIENTE-HOSPITAL
O vínculo dos pacientes com o hospital se dá através do SUS ou por via direta - ca
sos de pessoas que não tenham recursos financeiros.
A clínica de ortopedia do Hospital da Paz não mantém vínculo com setores não per
tencentes ao hospital, uma vez que os serviços necessários ao restabelecimento do pa
ciente estão disponíveis na própria instituição.
6. Mostramos no item K - Critérios de Visita o erro médico de não esclarecer o paciente sobre
seu verdadeiro diagnóstico. Nesse sentido, a desinformação sobre os aspectos que envolvem a
hospitalização se enquadra igualmente nesse erro de atitude médica.
••
na/ �/icaz. A.r perspectivas de dexermolvimertto do .l'ert1ip1 xão grandes na medida etll
que o trabalho será estruturado em perfeita harmonia com todos os profissionais in
tegrantes da clínica de ortopedia do Hospital da Paz.
I -junto ao paciente;
li - junto à família,
III - junto à equipe de saúde;
IV - em situações específicas.
regar os horários dos familiares nem cercear o período de visita ao paciente. A inter
venção junto à família visará também o esclarecimento das condições necessárias ao
restabelecimento físico e emocional do paciente. Serão abordadas questões sobre a pa
tologia do paciente e a interação familiar a partir da hospitalização.
Serão observados os preceitos vigentes no setor, bem como a conduta adotada pe
los demais profissionais da equipe de saúde. Serão elencados para o atendimento aque
les familiares que o próprio paciente considere importantes e que, de alguma forma,
mostrem-se presentes no processo de hospitalização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA
1 - I NTRODUÇÃO
1. Este trabalho foi publicado anteriormente no livro A Psicologia no Hospital. São Pau
lo: Pioneira Thomson Learning, 2003.
47
48 I TeND!NCIM I M PSICOLOGIA H oSPITALAR
dem com o lixo. Em gue o absurdo é normal. E na gual a violência nada mais
é do gue o sangue e o escarro das vítimas dessa situação caótica. E assim é: crian
ças buscando o suicídio como condição de alívio aos sofrimentos existenciais;
insolitamente, um sintoma da própria destrutividade da sociedade.
Buscamos a humanização do hospital. E a reflexão sobre o suicídio in
fantil remete-nos à consciência de nossa participação numa luta sem venci
dos ou vencedores. A condição humana nos escancara a dor d'alma ao mes
mo tempo em gue o hospital se abre para gue a psicologia hospitalar atue
na minimização desse sofrimento.
Este trabalho não tem a força de uma denúncia. É uma simples tentati
va de descrever a atuação junto aos pacientes vítimas da tentativa de suicídio.
2. Nesse primeiro atendimento, não se tem a pretensão nem a intenção de uma abordagem pro
funda no tocante aos problemas existenciais do paciente. Sabemos que nesse primeiro contato
acenamos como uma luz de esperança no turvo de suas possibilidades. Muitas vezes, inclusive,
somos uma ilusão tangenciada pela fé perceptiva desse paciente em desespero; uma proposta de
atendimento mais abrangente não pode ficar restrita às limitações físicas impostas pelo atendi
mento realizado no hospital e mais especificamente, na maioria das vezes, nos corredores som
brios de um pronto-socorro.
.\'11/, 1.1/o 111/�HIII. " ''"�'/'"'" 1<11111.11111 1111 l'tM /1,/,�,1, lwtfl/1.1/,,· I 41
-�---------·-· ···- · - · · · ·-·
3. Nossa atuação com pacientes terminais foi pioneira no País. Além de algumas publicações que
fizemos sobre a temática, existem registros dessa atuação tanto nos órgãos de imprensa como na
literatura especializada.
lt
Tentei morrer. Não sei se a dose de remédios gue tomei não foi sufi
ciente. A verdade é que comecei a passar muito mal. Tive vômitos e
muita dor de cabeça. Daí, levaram-me ao pronto-socorro, então perce
bi o que significava buscar a solução de nossos problemas através da
morte. Os médicos me desprezavam, as enfermeiras pareciam interessa
das na provocação de dor. Até as atendentes vinham me olhar como se
fosse algum animal raro em exposição no zoológico. Pude então perce
ber de forma clara o que significa o ato de suicídio: uma busca da mor
te onde não se quer morrer, e sim livrar-se desse mundo egoísta. que
enlouquece e tortura. E quando não conseguimos atingir nossos propó
sitos, a sociedade, através de seus representantes- médicos, enfermei
ros, policiais etc. - nos imputam todos os tipos de prevaricação".
(Angerami, 2002).
pectos sejam analisados para que o diagnóstico não se perca em mero redu
cionismo teórico.
O trabalho com crianças vítimas de tentativa de suicídio exige do psi
cólogo uma reflexão sobre seu desempenho, para se buscar uma prática clí
nica que vá ao encontro das reais necessidades do paciente. A psicologia hos
pitalar no Brasil, em que pesem os esforços dos pioneiros da área, apenas
tartamudeia as primeiras palavras. A temática do suicídio infantil faz com
que ela se apequene diante do qesespero contido no sofrimento desses pa
cientes. Esse seguramente é um dos maiores desafios que o psicólogo enfren
ta na realidade hospitalar.
Gráfko I
H ISTOGRAMA DA PORCENTAGEM (%) DE .CASOS EM JllJ NÇÃO DO TIPO Dli
AGENTE TÓXICO E FAIXA ETÁRIA (SCI - 1983) NO AT. HOSPITALAR
% DE CASOS
100
0 M - MEDICAMENTOS
• DS - DOMISSANITÁRIOS
24 DIID p - PESllCIDAS
!§ PQ - PRODUTOS QU[MICOS
·IIJ Pl - PLANTAS
20 § O - OUTROS
� D - DESCONHECIDO
18
• NF - NÃO FORNECIDOS
16
14
12
10
8
6
4
2
o
Gráfico 2
ATENDIMENTO HOSPITALAR DE JANEIRO A JUNH0/84
CIRCUNSTÂNCIA X SEXO X FAIXA ETÁRIA
N° DE PACIENTES
D 0-2 ANOS
130 GIJ 3-6 ANOS
IIDD 7-12 ANOS
120 [] MASCUU NO
1 10 0 FEMININO
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
.Q -'----"----'---'---_._-'--.L._-__.,UUU
AC CIRCUNST. AC TER OUTROS NÃO FORNEC
(76,06%) (6,95%) (1,55%) (6,95%) (8,49%)
CASO 1
Identificação
Nome: M. C. B.
Idade: 9 anos
Cor: branca
Sexo: feminino
Naturalidade: São Paulo
Tipo de tentativa: ingestão excessiva de comprimidos
Relato do Caso
M. C. B. disse que seus pais e irmãos trabalham fora. Por esse motivo é obri
gada a ficar em casa cuidando do irmão mais novo e das atividades do lar. A
paciente relata que precisa tomar comprimidos diariamente para evitar des
maios. Conta ainda que sua mãe a espanca diaria':Ilente sem o menor motivo.
.\'Hh lil/11 llf/14�11/o u ,,,.,.,,, ., lrHIIM/1:�. '�'' ''!''�'·'�'df lrmt•llrll�l' I 11
O pai quase sempre está embriagado t• nada htz para imped ir os t•s pnlKnmon•
tos. Tomou os comprimidos (os mesmos que tomava diariamentt·) após sot'rtr
uma violenta surra da mãe. M. C. B. conta que não quer continuar vivendo,
pois está cansada de "tanta surra" (sic). Diz ainda que gostaria de viver wmo
outras crianças, que "brincam e não precisam cuidar da casa". (si c).
Gráfico 3
CENTRO DE PSICOTERAPIA EXISTENCIAL
Dados relacionados a tentativas de suicídio nos anos de 1982, 1983 e 1984.
Sexo
1 982 % 1 983 % 1 984 %
nº de casos nº de casos nº de casos
Meios Utilizados
1 982 % 1 983 % 1 984 %
nº de casos nº de casos nº de casos
Faixa Etária
1 982 % 1 983 % 1 983 %
nº de casos nº de casos na de casos
0 MULHERES
850 11 HOMENS
800
750
-
700
650
600
550
500 r-
450
400
350
300
250
200
150
100
50
o I I
1982 I 1983 1984
CAS0 2
Identificação
Nome: R. S. L.
Idade: 1 O anos
Cor: branca
Sexo: masculino
Naturalidade: São Paulo
Tipo de tentativa: ingestão excessiva de comprimidos
Relato do caso
R. S. L. conta que tomou os comprimidos (analgésicos) para não ser surrado pe
lo pai em virtude de reprovação escolar. Narra ainda que o pai é muito violen
to e o espanca por razões insignificantes. Diante das ameaças do pai de que o
"mataria" (sic) se ele fosse reprovado na escola, preferiu tomar um dose exces
siva de analgésicos a ter que enfrentar a ira do pai diante do fracasso escolar.
.,
CAS03
Identificação
Nome: V. S. B.
Idade: 11 anos
Cor: negra
Sexo: masculino
Naturalidade: São Paulo
Tipo de tentativa: ingestão excessiva de comprimidos
Relato do caso
V. S. B. conta que tentou se matar em razão de ter sido estuprado pelos co
legas de rua. Não suportando a humilhação de que seria vítima diante dós
colegas, foi até uma farmácia próxima e comprou uma grande quantidade
de analgésicos, que ingeriu na porta da própria farmácia. V. S. B. diz que
não possui familiares e que sua casa é a rua. Conta ainda que foi socorrido
por um homem que passou pelo local e percebeu que ele não estava se sen
tindo bem. Relata também que não quer mais viver, pois não suporta o ti
po de vida que leva, permeada por inúmeras prisões e violência policial. O
estupro, segundo narra, foi o estopim que acabou com todas as esperanças
de uma vida diferente.
CAS04
Identificação
Nome: M. R. M.
Idade: 8 anos
Cor: branca
Sexo: feminino
Naturalidade: São Paulo
Tipo de tentativa: ingestão excessiva de comprimidos
Relato do caso
M. R. M. foi violentada pelo próprio pai, que inclusive a ameaçou de mor
te caso contasse o ocorrido a alguém. M. R. M. diz que não quer mais con-
12 I TrNOtNCIAS !M PSICOLOGIA HOSPITALAR
t i n uar vivendo, tendo que se submeter aos desejos do pai. Conta que sua
m ãe é uma pessoa muito boa, mas que nada pode fazer com relação à vio
lência do pai. Sente-se totalmente desamparada no mundo, não tendo a
quem recorrer diante de tanto sofrimento.
BIBLIOGRAFIA
* NA: Esta poesia foi publicada anteriormente no livro A Psicologia no Hospital. São Paulo: Pio
neira Thomson Learning, 2003.
14 I TeNDêNCIAS EM PSICOLOGIA HosPITALAII
Planejamento familiar,
a nova preocupação governamental.
E a saúde da população?
A crise hospitalar
é conseqüência de uma política governamental irresponsável.
Os fatos ocorrem,
são inalteráveis.
C A PI T U L O · s
Ü PSICÓlOGO
NO HOSPI TAL1
I NTRODUÇÃO
65
18 I T!ND!NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAR
A DESPERSONALIZAÇÃO DO PACIENTE
a pessoa deixa de ser o José ou a Ana, e passa a ser o " 2 1 A" ou o "poli
traumatizado do leito 4", ou ainda "a fratura de bacia do 6° andar" . E,
aprofundando ainda mais tais afirmações, diz que "essa característica,
que infelizmente notamos em grande parte das rotinas hospitalares, tem
contribuído muito para ausentar a pessoa de seu processo de tratamen
to__e_xarcebando o papel de paciente".
Objetivos da psicoterapia
2. Existem muitos profissionais da área que defendem que a psicologia hospitalar, mesmo tendo
como referencial os princípios da área clínica, seja considerada uma nova ramificação da psicolo
gia. Assim, além da clássica divisão em Clínica, Educacional e Organizacional, haveria uma quar
ta ramificação: a psicologia hospitalar. Embora essa seja uma questão que envolve bastante celeu
ma quando de seu aprofundamento, evidencia-se também a necessidade de uma nova ótica sobre
a psicologia hospitalar, seja pelo seu crescimento, seja ainda pela sua diversidade teórica.
70 I TINDANCIAS IM PSICOLOGIA HoSPITALAR
cações em sua vida. Isso tudo, evidentemente, além da inserção de suas ne
cessidades nos objetivos da psicoterapia.
O SETTING TERAPÊUTICO
caminha sob sua responsabilidade, mas que de uma forma simples tem nes
se vínculo seu objetivo em si. Assim, uJRpsicoterapeuta não precisará pres
tar conta de seu paciente a nenhuma entidade, salvo naturalmente os casos
nos s;j!lais o atendimento é vinculado a algum processo de supervisão. O pro
cesso em si é conduzido pelo psicoterapeuta com anuência do paciente, e,
no caso de algum impedimento, a relação se resolve apenas e tão-somente
pelas partes envolvidas nesse processo. O setting terapêutico impõe ainda
uma privacidade ao relacionamento que torna toda e qualquer interferência
externa ao processo plausível de ser analisada e enquadrada nos parâmetros
desse relacionamento.
Chessick (ibidem) afirma que o psicoterapeuta descende diretamente
do cof1fessor religioso ou do médico de família, profissionais que, além de
cuidar dos males do organismo, escutavam as angústias e dificuldades do
paciente. O psicoterapeuta também apresenta em sua linhagem resquícios
do curandeiro das antigas formações tribais, encarregados de trazer bem-es
tar e alívio aos membros de sua comunidade. A proteção sentida pelo pa
ciente nos limites do setting terapêutico mostra ainda que essa origem não é
apenas perpetuada, como também apresenta requintes de evolução quanto
aos aspectos envolvidos nesse processo. Há mesmo um quê de samaritanis
mo presente no processo psicoterápico, resíduo dessas marcas que o psico
terapeuta traz de sua origem e desenvolvimento. A emoção presente na ati
vidade psicoterápica é outro fator que faz com que nenhuma outra forma de
relacionamento possa ser comparada com sua performance. Nesse sentido,
temos também a declaração de muitos especialistas de que a psicoterapia é
o su_stentáculo do homem contemporâneo em meio a tantas formas de bus
ca de alívio e crescimento emocional.
Ainda no chamado setting terapêutico, vamos encontrar a peculiarida
de de que a maioria dos processos jamais tem suas sessões interrompidas,
seja por solicitações externas, seja ainda por outras variáveis decorrentes,
muitas vezes, do próprio processo em si. Assim, é praticamente impossí
vel , por exemplo, que um psicoterapeuta interrompa uma sessão estancan
do o choro de angústia do paciente para simplesmente atender uma liga
ção telefônica. Ou ainda que uma sessão seja igualmente interrompida para
que o psicoterapeuta possa recepcionar algum amigo que eventualmente vá
visitá-lo. O setting terapêutico, dessa forma, resguarda a sessão para que to-
72 I T!NOINCIAS !M PSICOLOGIA H oSPITALAR
A REALIDADE INSTITUCIONAL
4. Embora seja alentador o fato de que hoje muiros hospitais pediátricos adotam a presença da
mãe ou de algum outro familiar durante o processo de hospitalização da criança, ainda assim a
maioria dos hospitais não apresenta sequer uma maior flexibilização até mesmo quanto ao horá
rio de visitas.
() pskdlr1�11 1111 lm,tfiiJ,i/ I 75
5. Nesse sentido, é muito importante que o psicólogo seja inserido na equipe de profissionais de
saúde que atuam num determinado contexto hospitalar. Tal i nserção determinará que sua abor
dagem seja fruto de encaminhamento realizado por outros profissionais junco a esse paciente, com
sua anuência, para que, acima de qualquer outro preceitO, seu arbítrio de querer ou não essa abor
dagem seja respeitado. Esse é um aspecto importante a ser observado, pois determina muitas ve
zes até mesmo o �xito da abordagem do psicólogo. Ainda que o paciente necessite de maneira
premente da intervenção psicológica, seu arbítrio deve ser considerado, para que a condição hu
mana seja respeitada em um de seus preceitOs fundamentais.
76 I TEND�NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAR
matiza�·ões cada vez mais são aceitas no bojo das intervenções médicas, e a
i ntervenção do psicólogo nesse sentido é determinante de uma nova perfor
mance na própria relação médico-paciente. É notória também a evidência
mda vez maior de que muitas patologias têm seu quadro clínico agravado a
parti r de complicações emocionais do paciente. Intervir nisso é outra carac
terística que faz da psicologia uma força motriz até mesmo no diagnóstico
e compreensão de patologias para as quais a própria medicina não tem uma
explicação absoluta. Assim, não se pode negar, por exemplo, a importância
das variáveis emocionais num quadro diagnosticado de câncer ou de algu
ma cardiopatia. Como também é inegável a presença de determinantes emo
cionais quando abordadas patologias não diagnosticadas com precisão, até
mesmo pela falta de sintomas específicos e variados. Podemos incluir nesse
rol os casos nos quais o paciente se queixa ora de cefaléia, ora de náuseas, ora
de comiseração estomacal etc. Ou ainda os casos em que o paciente apresen
ta diversos sintomas concomitantes a diversas patologias, sem no entanto
apresentar tais patologias. Os exames clínicos nesses casos não conseguem
fazer um diagnóstico preciso e absoluto, pois a própria alternância de sinto
mas do paciente é algo apenas diagnosticado quando se tenta compreender,
além dos sintomas, a dor d'alma que acomete tais pacientes.
Nesse sentido, é interessante o�servar que o avanço da medicina, com
todo o seu aparato tecnológico, não consegue prescindir do psicólogo pela
sua condição de escuta das manifestações d'alma humana, manifestações es
sas imperceptíveis à própria tecnologia moderna.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA
I NTRODUÇÃO
1. Este trabalho foi publicado anteriormente no livro Psicologia Hospitalar. Teoria e Prá
tica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.
81
12 I nNiltNUM �M P\IWI ( llliA Hn'II'I IAI-M
para q u e a essência não fósse alterada, isso sempre: sr� u udo 11 c'1t Íl'a d<:sscs
coll'gas.
Este trabalho é apenas uma tentativa de relato sobre uma problemáti
ca específica, o paciente terminal, o definhamento corpóreo e suas implica
ções. Não houve a intenção de criticar os postulados existentes, nem tam
pouco compará-los, assumi-los ou refutá-los; houve simplesmente uma
tentativa de questionar a problemática do definhamento corpóreo.
Assim, tentou-se a elaboração de um trabalho no qual as principais
proposições e celeumas existentes no seio das discussões teóricas sobre a pro
blemática do paciente terminal foram arroladas. Resta ainda, por outro la
do, a certeza de que muitos dados poderiam ser aprofundados e explorados.
Igualmente, outros foram omitidos por não terem sido considerados impor
tantes ou até mesmo necessários para a elaboração deste trabalho.
Seguramente, muito resta a ser dito e explorado, mas o importante é o
questionamento e o despertar da consciência sobre coisas mitificadas, prin
cipalmente pela omissão social e até mesmo acadêmica. É fato, porém, que
a partir do trabalho de colegas que se dedicam intermitentemente ao estu-
�
do da temática da morte2, esse quadro está em pleno processo de alteração,
havendo cada vez mais lugar para uma compreensão mais humana e digna
das questões que envolvem a morte.
2. Nesse sentido, gostaria de registrar o trabalho pioneiro das colegas Regina D'Aquino e Wilma
C. Torres, e mais recentemente de Maria Julia Kovacs e Marisa Decat de Moura. E em que pese o
fato de que ao citá-las cometo enorme inj ustiça com outros tantos profissionais que igualmente
trabalham nessa mesma direção, o determinismo, o arrojo e o pioneirismo dessas profissionais fi
xaram a temática da morte presente de maneira indissolúvel nas lides acadêmicas e hospitalares.
3. Em nosso trabalho, estamos fazendo referência ao paciente terminal portador de doença dege
nerativa.
,.,, ,,,�, ,,,.111 /lltlh: Hlll lll'fll'fl ,. ,,, ,. I ••
bre ele. 'lbi'I'CS ( 1 983) afirma que a morte é, no século XX, o sujeito ausen
te do discurso. Entretanto, nos últimos 50 anos, o silêncio começa a ser re
movido das ciências humanas. Historiadores, antropólogos, biólogos, filó
sofos, psicólogos, psiquiatras e psicanalistas iniciam com audácia uma luta
contra a morte interdita, denunciando as causas que levaram à negação da
morte e redescobrindo a importância do tema.
Numa sociedade em que a pessoa é espoliada e explorada mercantil
roem�, a perda da capacidade produtiva fará com que o "desamparo social"
seja sentido com mais intensidade. A falta de perspectiva existencial é o pri
meiro indício de desespero diante de situações nas quais a perda da capaci
dade funcional torn��se eminente. O total abandono a que se encontram
entregues os inválidos de maneira geral leva o paciente terminal a desespe
rar-se perante realidade que se lhe apresenta.
O quadro degenerativo faz de seu portador alguém socialmente alija
do da competição aviltante existente em nosso meio social, alguém que irá
merecer sentimentos de complacência.
Dessa maneira, encontraremos pacientes portadores de doenças dege
nerativas que, mesmo não se encontrando no aspecto terminal de suas vidas,
nem apresentando sinais visíveis de definhamento corpóreo ou de compro
metimento em seu pragmatismo, não conseguem voltar às atividades ante
riores ao surgimento da doença. O próprio hospital é conivente com essa dis
criminação. Ribeiro ( 1 993) diz que o hospital acaba sendo uma oficina, e o
médico, seu principal mecânico. Cumpre a ele fazer com que a máquina ho
mem retorne o mais depressa possível à circulação como mercadoria ambu
lante. Interessa consertá-la, mas interessa menos evitar que se quebre. Ela
tem que ter, como qualquer máquina, um tempo útil, durante o qual pro
duza mais e melhor; todavia, há outros homens-máquina sendo produzidos
e que precisam ser consumidos, e é bom, por isso, que ela se vá assim aos
poucos (ibidem).
A presença da doença degenerativa faz com que o paciente seja discri
minado e até mesmo rejeitado nas situações mais diversas, que podem va-
riar de situações familiares a situações nas quais se exercem atividades pro
dutivas. O paciente portador de doença degenerativa, além da debilidade
orgânica inerente à própria doença, carrega o fardo de ser alguém "desacre
ditado" socialmente, seja em termos de capacidade produtiva, seja em ter-
14 I TtiNUINCIAS �M PSICOLOGIA HOSPITALAR
4. É como se houvesse uma necessidade premente de a morte deixar de ser temática merecedora
de atenção apenas de religiosos. É interessante observar nesse sentido que a maioria das faculda
des de medicina e de psicologia sequer rem espaço em suas estruturações programáticas para a
discussão dessa remárica. Assim, esse profissional, ao deixar as lides acadêmicas e ingressar nu
ma atividade específica na qual a morre surja como possibilidade real, rerá que adquirir as con
dições necessárias para tal abordagem de maneira intuitiva, e muitas vezes sem condições emo
cionais para raL É faro que a morre sempre é , uma. vivência única, pessoal e intransferível , e os
sentiménros diante de sua ocorrência são igualmente peculiares a cada indivíduo, mas a ausência
roral de uma discussão sistematizada sobre a morre e suas implicações na existência humana é,
no mínimo, um total acinte à formação acadêmica.
17
v i d a do
paciente. O cuidar do paciente constantemente, ou mesmo suu pr�
sença, será um prenúncio da impotência desse profissional, o que, segura
mente, pàderá provocar desejos nebulosos e pouco precisos de que o pacien
te morra, findando assim a longa agonia desse relacionamento. Mauksch
(ibidem) afirma que o paciente hospitalizado também procura descobrir
quais são as recompensas e as punições para o comportamento no hospital.
Entretanto, é mais difícil para o paciente, porque as regras não são daras, as
definições variam e não existe comunidade informal de pacientes. Esse cli
ma de dependência ante o pessoal da instituição esgota no paciente o senso
de individualidade e de valor humano. Em tal ambiente, é possível apresen
tar um órgão para conserto, porém é muito mais difícil encarar o fato de que
se está morrendo.
Por outro lado, quando o paciente deseja morrer, não suportando mais
o sofrimento físico, esse profissional inconformado intensifica o tratamen
to e se irrita quando o paciente se recusa a alguma mudança terapêutica,
pois essa recusa significa, de maneira muito clara, que o paciente está ma
nifestando o desejo de rendição, o que em última instância significa o "alí
vio da morte". Kubler-Ross ( 197 5) diz que esses pacientes representam um
fracasso da instituição no seu papel de apoio à vida, e não há nada nesse sis
tema que supra a carência do espírito humano quando o corpo necessita de
cuidados.
De outra forma, ao assumir o papel de esclarecedor, informando o pa
ciente sobre o que realmente está acontecendo, não no sentido de dar-lhe o
diagnóstico da doença, mas esclarecendo dados sobre a internação hospitalar,
bem como o estigma que envolve esses aspectos, o profissional deixa de ver
no paciente uma enfermidade que está pondo em risco sua competência.
Muitas vezes o paciente em sofrimento desalentador está necessitando
de apoio existencial, palavra, conforto, enfim, quer se sentir uma pessoa com
significação existencial própria. Em alguns casos, essa necessidade se sobre
põe inclusive à necessidade da terapêutica medicamentosa.
É necessário que cada profissional envolvido nessa problemática tome
consciência de sua atuação diante desse tipo de paciente, pois de nada adian
tará uma real sensibilidade entre a comunidade da verdadeira e desoladora
problemática da doença degenerativa, se no ambiente hospitalar esse pa
ciente continuar a sofrer toda a intensidade da rejeição social de que se re-
veste a problemática6• A temática Ja morte precisa ser incluída no referen
ci_�__das questões existenciais. Nas palavras de Kubler-Ross ( 1 97 5), morrer
é parte integral da vida, tão natural e previsível quanto nascer. Mas enquan
to o nascimento é motivo de comemoração, a morte transforma-se num ter
rível e inexprimível assunto, a ser evitado de todas as maneiras na socieda
de moderna. Talvez porque ela nos relembre nossa vulnerabilidade humana,
apesar de todos os avanços tecnológicos. Podemos retardá-la, mas não pode
mos escapar dela (ibidem),
6. É importante ressaltar que, ao se fazer alusão à comunidade como abrangência de toda uma re
flexão sobre a realidade do paciente terminal, estamos nos referindo à totalidade do teci �
social,
_
aí incluindo-se desde os segmentos mais distantes da problemática até aqueles que diretamente
lidam com a temática.
10 I T!NO�NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAR
Era preferível morrer a ter que viver de forma tão degradante, absurda. As
pessoas não me olham, minha mulher repete a cada instante que eu estou
podre e que precisa tratar da documentação do inventário. Até meus fi
lhos, que são a razão do meu viver, agora me evitam; eu acho que, além
de tudo, ainda devem sentir vergonha do estado do pai .. É horrível, seria
.
melhor morrer e acabar logo com isso tudo. Eu não agüento mais (sic).
zão. O exaurir da morte traz à tona o processo, bem como todas as f·i1scs fW·
las quais o processo se desenvolveu, mostrando a irreversibilitlatle do tt·m
po e do espaço nas coisas que se deixaram por fazer, ou que foram prctcl'i
das ou postergadas para um outro momento. As razões do existir e a próp1·iu
razão sofrem constantes revisões, transcendendo muitas vezes o limiar c.lu
· existência.
· O olhafi, dentre as formas de expressão dos se_r::tt imentos, é, seguramen
te, a mais abrangente em termos de dimensionamento absoluto, ainda <.) Ue
tenha em si a presença da própria subjetividade humana. Um olhar de dor
tem a_condição de mostrar o sofrimento de.uma maneira que as palavras não
_I:Lodem. Um olhar de desejo desnuda muito além de qualquer outra forma
de insinuação. Um olhar meigo transmite uma doçura perceptível e inegá
�el. Um olhar de ódio fulmina mais que o punhal mais cortante.
A vivência com o paciente terminal traz muito.presente o olhar, seja
talvez por ser o mais puro dos- expressionismos, seja ainda por conseguir
transmitir os verdadeiros sentimentos dos momentos desesperadores . Dian
te dessa manifestação do olhar, é como se outras formas de expressão perdes
sem o sentido e até mesmo sua condição na essência humana. Exemplo des
sa citação é o caso de M. C. C, de 64 anos, comprometida por uma metástase
óssea que a deixava totalmente transtornada, não apenas pela dor, como pe
la condição de imobilidade. Depois de vários atendimentos, e devido ao seu
definhamento progressivo, M. C. C. praticamente não se expressava verbal
mente. Assim, o atendimento era totalmente direcionado para outra forma .
'
mão esquerda constatou que a vibração energética das outras mãos se mis
turavam com o ardor da morte. Aquele brilho estranho em seu olhar era o
bJilho da morte. M. C. C. morreu segurando minha mão, tentando agarrar
se à vidà. Mostrou no brilho do olhar as luzes da morte. Tentou em vão su
plicar por mais alguns instantes de vida. Morreu e seu olhar transmitiu to
da a imensidão do momento.
A relação com o paciente terminal tem que ser entendida e abordada de
forma própria, considerando as implicações inerentes ao fato de o atendimen
to_ser realizado ao lado do leito, junto à "cama mo.rtuária" do paciente, ou se
ja, no lugar onde o paciente se vê definhando, oride sofre a intensidade da_dor
causada pela doença. Temos ainda outras variáveis que incidem sobre o pa
ciente, como o cuidado medicamentoso, a dor progressiva que aniquila toda
e qualquer resistência orgânica, e as implicações emocionais do definhamen
to corpóreo. A relação deve ainda ser entendida como específica à realidade
na qual se encontra inserida, não podendo ser transportada para outros parâ
metros que não aqueles que determinam essa ,forma de atuação.
A vivência com o paciente terminal exige que o terapeuta tenha muito
claros determinados questionamentos e valores em relação à morte e ao ato
de morrer, o que não significa dizer que esse profissional tenha de ser total
mente insensível à morte. Guardadas as devidas proporções, seria como exi
gir que um ginecologista não tenha sensibilidade frente à genitália femini
na, ou então exigir que a existência humana em contato direto com a morte
não chore um choro profundo e doloroso, diante de coisas que se vão e dei
xam de existir na forma e na essência humana. A existência humana é única
e fin ita, e como tal deve ser vivenciada e sentida. A dimensã« do infinito e
do irreal torna-se muitas vezes inatingível ante os aspectOs absurdamente
reais trazidos pelo sofrimento do definhamento corpóreo.
Por outro lado, nos casos em que o paciente manifesta o desejo de mor
rer, iremos encontrar nuanças tão específicas que a expressão se mistura às
contradições inerentes ao processo em si.
É muito difícil, em termos gerais, aceitar a idéia de que precisamos mor
rer, da mesma forma que em outros momentos necessitamos dormir, repou
sar. Nesse caso, o profissional se aflige com a idéia de não poder competir
com a corrida invencível do tempo, tendo como fracasso tangível a impossi
bilidade de cura do paciente, pois, de uma forma geral, possui o sentimento
/1,/o 11'111•1 M'lll/1/ol/1.' 11111 l•l'lll'fl Ptlll�d I IJ
quanto conversava com alguns amigos nos m i nutos que precediam o início
da música, fui avisado de que havia um grupo de pessoas querendo me di
rigir a palavra. Quando fui ao encontro desse grupo, deparei com F. A. L. e
seus familiares. Uma cena emocionante: os familiares providenciaram uma
cadeira de rodas para transportá-lo, pois mesmo sendo pequena a distância
entre as duas cidades, seu estado de saúde inspirava bastante cuidado. Mas
lá estava ele, envolvido num cobertor de lã xadrez, como que a mostrar que,
apesar de todas as dificuldades, estava para me ver e ouvir. Não houve co
mo conter as lágrimas, era muito prazeroso vê-lo novamente. Em seguida,
ele se acomodou na sala onde se realizou o recital, e ali permaneceu até o
fim, ora aplaudindo, ora sorrindo, ora compenetrando-se na profunda in
trospecção da música. Terminada a audição, F. A. L. agradeceu de modo co
movente pela "alegria e paz" (sic). E pediu-me para que fosse visitá-lo em
sua casa antes de retornar para São Paulo. E assim, na tarde do dia seguin
te, estávamos novamente juntos, a�ora em sua casa. Ele pediu então para
que eu tocasse uma peça de que havia gostado muito. Incontáveis vezes re
peti aquela peça. Num dado momento, ele disse que aquela música era ma
ravilhosa, repousante, ideal como acalanto para "dormir e até mesmo mor
rei em paz" (sic). Era dilacerante ouvir aquele depoimento de busca de alívio
na morte, sensação que se tornava ainda mais cáustica diante da constatação
de que o depoente, embora adolescente na idade, ainda mantinha no cora
ção a pureza e a inocência de uma criança. Era mais uma vez a presença da
dificuldade de aceitação do_ "alívio...da ffiQrJ:e�' , era a constatação de que acei
tar seu desejo de morrer era algo i nconcebível, mesmo para pessoas que teo
ricamente até concordavam com tal posicionamento. Mas ele era bastante
determinado, e ressaltava após cada execução que aquela música era acalan
to para se morrer em paz. No início da noite voltei para Ouro Preto, depois
de uma comovente despedida. Após o jantar, fiquei isolado do grupo de co
legas, que se divertia muito a festejar a última noite que estaríamos reuni
dos naquele espaço. Suas algazarras e alegrias demonstravam que naquele
momento nada mais queriam da vida. Eu, no entanto, estava isolado, sen
tado na varanda. Naquela noite fria, olhava o céu estrelado com o luar es
tampando a delicadeza da natureza em esplendor. Naquela noite não conse
gui dormir com tranqüilidade. Uma turbulência i nterior muito grande
prejudicou-me o sono. A im.a.gem da F. A. L. era presença constante no meu
H I TtNUtNtiA\ .M PIIC.:OI.OCiiA HOSPITALAR
mad rugada, fui para Belo Horizonte, onde apanharia o avião que me traria
para São Paulo. No aeroporto, uma força imperiosa me fez ligar para ter no
tícias de F. A. L. O familiar que me atendeu ao telefone, aos prantos, narrou
que naquela noite ele dormiu como fazia habitualmente, mas havia amanhe
cido morto. Havia morrido em paz, talvez ainda sob o som daquela sua me
lodia. Custo a crer que esse caso seja real. Tenho a sensação de que se trata
de uma criação da minha alma num momento de psicotização com a pró
pria realidade. A .m im parece, muitas vezes, impossível ter vivido esse en
redo de fatos e acontecimentos. O que me traz ainda um pouco para a rea
lidade é poder executar essa peça musical e lembrar de F. A. L. definindo-a
como acalanto para se morrer em paz.
O sentimento de abandono que experimentamos quando morre um pa
ciente que atendemos é desolador. Somado ao fato de estarmos alquebrados
com a dor da perda em si, temos ainda uma família que aguarda ansiosa por
alguma forma de conforto e amparo. E a sensação que muitas vezes me in
vade é a de que o paciente, após a morte, é qllem passa a cuidar de nós com
as coisas deixadas e ensinadas durante o período de convivência.
O contato com o paciente terminal questiona, de maneira profunda e
crucial, muitos valores! da essência humana. Tudo passa a ser questionado
p_or outra ótica, e m �itas coisas tidas como verdadeiras e absolutas passam
a ser consideradas sem importância, sendo que outros fenômenos tidos co
mo muito_pouco significativos tornam-se verdadeiramente significativos,
ocupando de forma globalizante o sentido existencial de tal modo que trans
formam-se na essência e no sentido da própria vida. O mais significativo
nessa vivência é a constatação de que o paciente terminal nos ensina uma
nova forma de vida, uma nova maneira de encarar as vicissitudes que per
meiam a existência, uma forma de vivência mais autêntica em que os valo
res decididamente importantes são preservados em detrimento de aspectos
meramente aparentes, que, na maioria das vezes, permeiam as relações in
terpessoais.
A vida ganha novo significado ao se perceber a amplitude da impor
tância de cada segundo, de cada encontro, do sol rompendo a neblina "numa
manhã de outono, da florada do ipê-roxo e da suinã no inverno, da emoção
do amor contida num beij o e num afagar de mãos.
17
BIBLIOGRAFIA
ACORDES DE UM RÉQUIEM*
Caminho. . .
os corredores são sombrios, frios. . .
sem vida, sem cor, sem calor. . .
os corredores são longos, estreitados com a dor. . .
são longos mas não o suficiente para acolher todos os pacientes. . .
os gemidos são ensurdecedores, amedrontadores como o silvo da serpente. . .
são gemidos de desespero, de dor, de sofrimento. É o uivo dos umbrais. . .
Lá de fora ecoam sirenes de ambulâncias, de viaturas policiais. . .
sirenes de desespero, sirenes de esperança, sirenes apressadas, angustiadas.
Lá de fora brotam cores de harmonia, de luz, de amor. . .
cores trazidas pela esperança nesse momento de dor.
A saúde também agoniza junto com o paciente, exaurida. . .
as necessidades do paciente não podem ser supridas. . .
faltam condições mínimas de atendimento, de ungfiento. . .
faltam médicos, profissionais burocráticos, enfermeiros. . .
falta tudo; e na falta de todos padece o doente.
A doença no Brasil é vexatória. . .
a doença torna-se constrangedora, predatória. . .
a doença faz do paciente uma vítima; vítima da falta de condições do sistema de saúde.
Observo. . .
vejo a saúde padecendo juntamente com um amontoado enorme de doentes. . .
assisto à saúde enraizando-se como um privilégio de poucos. . .
vejo a luz da esperança carreada apenas pelas cores da utopia. . .
a saúde não existe. . . existe apenas uma maneira paliativa de assistência para alguns
poucos doentes em seu desatino. . .
O lixo hospitalar mistura-se aos escombros da dignidade humana. . .
Saúde é dejeto que não pode ser reciclável.
Saúde é bem precioso apenas nas empresas hospitalares.
* N. A.: Esta poesia foi publicada anteriormente no livro Psicologia Hospitalar. Teoria e Prática.
São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.
Quando proporcionam lu,·ros. Grandes lucro.\' .
. .
Lamento. . .
observo o ritual lento e aterrorizante de todos os envolvidos na saúde. . .
um ritual macabro feito de desalento e que piora a cada momento. . .
E observo a tentativa tênue de transformação dessa realidade
por um punhado de idealizadores. . .
Espectadores dessa vergonha intitulada sistema de saúde. . .
vergonha nacional tida como prioritária em qualquer planejamento social. . .
A realidade, a triste realidade é o escarro d'Cl podridão social na dor do doente.
A vergonhosa situação dessa realidade é a constatação odienta de que não existe
nenhum sistema de saúde no Brasil. . .
CAPÍTU LO 7
P S ICOLO G IA HO S P I TALAR:
O P ION E I RI S MO
E AS P IO N E I RAS
101
102 I TEND�NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAR
PSICOLOGIA HOSPITALAR.
PASSADO, PRESENTE E PERSPECTIVAS
1 . Essa atividade de Matilde Neder não consta da maioria das citações da psicologia hospitalar
no Brasil. Grande parte dessas publicações cita como início sua atividade no então Instituto Na
cional de Reabilitação da USP, hoje Divisão de Reabilitação do Hospital das Clínicas da USP,
em 195 7 . Tal erro induz essas publicações a distorcer a verdadeira cronologia da psicologia hos
pitalar no Brasil.
105
Psicologia em Reabilitação
2. O fato de Matilde Neder não registrar na literatura essa atividade faz com que não figure tam
bém como uma das precursoras da prática da psicoterapia breve. Seguramente, se houvesse um
registro sistematizado dessa atividade, seu nome também figuraria no rol dos criadores da psi
coterapia breve. Nesse sentido, creio que seria bastante interessante para a própria história da psi
cologia no Brasil que esse fato pudesse ser mais aprofundado para que até mesmo a sedimenta
ção de inúmeros trabalhos institucionais possa ser fundamentada na reflexão dessas atividades.
3. Decidi colocar essa conferência na íntegra, pois, além de ser registro da psicologia hospita
lar, é marca da trajetória da própria psicologia no Brasil. Em seus detalhes, vamos encontrar os
primeiros alicerces do reconhecimento da psicologia como profissão, seus fundamentos e deta
lhes que a diferenciam de outras práticas. É igualmente interessante observar o detalhamento
das atribuições que eram conferidas à prática do psicólogo e o esteio necessário para seu reco
nhecimento social. Sem sombra de dúvida, ao transcrever essa conferência na íntegra, estamos
promovendo uma reconstiruição histórica da própria trilha percorridà pela psicologia para seu
reconhecimento como ciência, profissão e categorização
101 I T!NO�NCIAS IM PIIUll l luiA HosPITALAR
E até que ponto essa responsabilidade pode ser atribuída ao fator socialf
Bem, podemos dizer que há casos em que o fator biológico predomina
na sua contribuição, e há casos em que a predominância é do fator so
cial; mas podemos dizer com segurança que, apesar das pesquisas já fei
tas, não foi possível determinar com objetividade até que ponto o fator
biológico é responsável pelas características de personalidade, e até que
ponto o fator social, devido à interação existente entre ambos e à inte
gração da personalidade. Para nós, psicólogos, interessa, sim, saber a
predominância da influência de um ou de outro fator, mas interessa-nos
principalmente conhecer a resultante da interação desses fatores. Mas
não é essa a posição de muitas pessoas, que ora supervalorizam o fator so
cial, ora o biológico, sendo comum dizer-se ou pensar-se que o fator bioló
gico é exclusivamente responsável pela personalidade, ou, de oútra for
ma, o responsável seria o fator social. Reconheça-se a importância de
ambos os fatores, mas daí a dizer - agora entramos no problema de
deficiente físico - que uma deficiência física é responsável pelas carac
terísticas de personalidade do indivíduo, é um passo muito ousado, que
eu não expressaria. Porque, se as pesquisas nesse sentido não são sufi
cientes para afirmar o contrário, e nem poderiam ser, porque as deficiên
cias físicas interferem, atuam sobre a personalidade, existem, ao contrá
rio, estudos feitos em grupos que nos dão elementos para pensar,
justamente, que a deficiência física, embora tenha sua contribuição nas
variações da personalidade, não se lhe pode dar a força que se pretende.
Gostaríamos que os senhores acompanhassem a leitura de algumas con
clusões que o Dr. Rusk - que os senhores tiveram oportunidade de
conhecer aqui, na sessão inaugural deste Seminário - nos apresenta no
boletim "Psychological Aspects of Physical Disability", Rusk e Taylor,
p. 1-7, Washington D.C. Office ofVocacional Rehabilitation, 1 9 5 3 , no
capítulo "Team Approach in · Rehabilitation and the Psychologist's
Role". O Dr. Rusk transfere para esse seu artigo as conclusões de
Clonick, Barker e Wright, que peço licença para ler:
Neste trecho de sua conferência Matilde Neder traça aquilo que seria
o perfil do psicólogo para o trabalho institucional. E em que pese o fato des
ta conferência ter sido realizada em 1 95 9 , seu espaço é atual e coincide com
os traçados mais recentes daquilo que seriam as características necessárias
para um psicólogo que deseja enveredar pelos caminhos institucionais da
realidade hospitalar. Eis a continuidade de sua conferência:
4. Na ocasião em que essa conferência foi proferida, os cursos de psicologia, assim como a profis
são de psicólogo, não haviam sido regulamentados como ocorre hoje. Assim, é possível entender
se o apelo de Matilde Neder no sentido de que os possíveis interessados em atuar como psicólo
gos procurassem cursos universitários para a aquisição dos subsídios teóricos necessários para um
desempenho profissional qualificado. Esse apelo, no entanto, apesar da regulamentação dos cur
sos e da profissão de psicologia, é atual na medida em que os diversos cursos de formação de psi
cólogos espalhados pelo País, na verdade são antes verdadeiras fábricas de diplomas sem o menor
compromisso com a dimensão humana e profissional dessa prática.
112 I TfNDeNCIAS EM PSICOLO<JIA HOSPITALAR
para uma atuação nessa realidade. Torna-se então abismático o hiato t] llt'
s e para o esboço teórico de sua formação profissional e de sua atuação prát i
ca. Apenas recentemente a prática institucional mereceu preocupação dos
rl'sponsáveis pelos programas acadêmicos em psicologia. E, na quase ma io
ria das vezes, essa prática institucional, apesar de ser uma alternativa mos
I rada ao psicólogo pela dimensão do estrangulamento do mercado profissio
nal, ainda assim se mostra precária em sua estruturação como vertente
optativa5 (Angerami, l 984).
Após essa breve reflexão, voltemos', então, à conferência de Matilde
Neder:
5. O Instituto Sedes Sapientiae é uma instituição que se notabilizou por uma postura crítica fren
te aos arbítrios e em defesa dos direitos humanos. Na capa do seu livreto de cursos está escrito
que os cursos do Instiruto Sedes Sapientiae constiruem-se em cursos livres, portanto não sujeitos
à regulamentação do MEC. No entanto, conquistou uma seriedade e respeito que poucas insti
tuições no Brasil têm; conquistou o respeito acadêmico e científico de toda a comunidade pela
notoriedade de seus cursos e pela qualificação das pessoas que os ministram.
/1t/111/"111" lu�t/111./l,n·: 11 /llmll/r·/1 11111 � ''" /'lomlrtit I 111
··--- -�--�·
expressão, não "vão na onda" tio d icntt:! E então, se o psicólogo não esti
ver preparado, se não se conhecer devidamente, estará fracassando na sua
finalidade.
I. Vamos dizer algo sobre o que se espera que o psicólogo faça, aqui no
Instituto de Reabilitação. Constituem algumas de suas principais atri
buições: a) determinação e conhecimento das condições intelectuais e da
personalidade, interesses, aptidões, habilidades específicas do cliente, a
fim de que a equipe conheça suas habilidades, potencialidades e limita
ções, e esteja a par de possíveis problemas emocionais e de ajustamen
to, além de suas possibilidades reativas; b) colaboração com todos os
membros da equipe; c) assistência psicológica ao cliente em processo de
reabilitação; d) contato com a família do cliente, esclarecendo-a sobre
as condições do mesmo; e) pesquisas psicológicas, tendo em vista o cam
po da reabilitação; f) treinamento de outros psicólogos, no campo da
reabilitação; g) instrução e assistência psicológicas, em aulas e acompa
nhamentos de estágio, a alunos de cursos especiais, promovidos pelo Ins
tituto (terapia ocupacional, fisioterapia, prótese ou outros).
recido até esta data, com a participação de inúmeros colegas que acorrem
vindos dos mais distantes cantos e cidades do País, Até mesmo o horário
de suas atividades é programackl visando facilitar o acesso de pessoas de
outros estados, que, num esforço hercúleo, passam noites e madrugadas
num ônibus-leito, assistindo e participando das atividades para retornar
aos seus locais de origem em seguida. Ressalte-se ainda o fato, determina
do até mesmo pela importância do Instituto Sedes Sapientiae, de esse cur
so ser referendado obrigatoriamente por tantos profissionais que lá reali
zaram sua formação e que arduamente militam na área da psicologia
hospitalar.
Nessa ocasião, também foi criado o Departamento de Psicologia Hos
pitalar do Instituto Sedes Sapientiae que, igualmente sob minha responsa
bilidade, passou a organizar não só os cursos de especialização como outras
atividades, incluindo-se aí os cursos de expansão universitária, simpósios e
publicações especializadas, além da organização de movimentos reivindica
tórios visando sempre aos interesses da categoria.
operatório da sensação (ou até de vivência) de que foi aberto, morreu tem
porariamente e foi unido novamente. A imagem corporal do paciente sofre
modificações, e no pós-operatório surgem sensações de restabelecimento
ou de rejuvenescimento. Então, surge uma mescla de euforia e depressão.
A primeira decorre de ter tido contato com a morte e de ter sobrevivido,
e a última deve-se ao fato de que da morte não se pode escapar.
a. Grupo Multiprofissional
b. Grupo Familiar
c. Comunidade
. "
1 14 I Tr,NO!NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAI't
APÊNDICE
Camon, fiquei feliz de ter sido lembrada, de observar que você teve cui
dados com datas, de manter essa fidelidade à história. E, mais ainda, queria
te cumprimentar por ter sido tão capaz e ter percebido esse filão que habi
tualmente é esquecido e relegado a planos inferiores, que é o contar e per
petuar a história. Mas me lembro do Prof. Petho Sandor, que mostrou que
os temas em psicologia eram pensados e resgatados a partir de cartas entre
Freud e seus amigos, e era superimportante entender o contexto histórico
para só então compreender os ensinamentos.
Em você resta um pouco disso.
Um beijo pela lembrança, um abraço pela correção no relato dos fatos
e aplausos em pé pela iniciativa.
BIBLIOGRAFIA
Francis Thompson
INTRODUÇÃO
1 43
144 I TtNLJrNuAS I�M PslcoLoc.IA Ht>sPilAI.AII
Consta tou -se ainda q ut� a maioria desses casos ern com posta de pessoas
que se a t i ravam na frente do trem tão logo ele surgia na esta<;ão. Uma gran
de d i fi c u ld ade verificada no atendimento à vítima era a necessidade premen
l l' de I iberação da via férrea após o acidente. Essa liberação necessita de mui
ta rapidez, uma vez que a interdição mais longa da via férrea acarreta danos
incalculáveis aos usuários do Metrô.2
Também foi detectada a existência de inúmeras outras tentativas de
su icídio cuja ocorrência diferia da anterior; tratava-se de pessoas que busca
vam o interior das estações e tentavam o suicídio das mais diferentes for
mas. Em alguns casos, o suicídio era consumado. Como exemplo, citamos o
caso de uma mulher de cerca de vinte anos de idade que se trancou no
banheiro de uma estação e lá se enforcou. O caso foi descoberto por uma faxi
neira quando limpava os banheiros, ao ver o sangue que corria por debaixo
da porta. 3
Ainda foram apresentados casos nos quais as pessoas buscavam as esta
ções do Metrô para tentativas de suicídio por serem lugares nos quais a pos
sibilidade de socorro era iminente.
B - Sedimentação Teórico-Prática
2. A guisa de simples observação, basta imaginar o transtorno que seria a via férrea interditada
cerca de quinze minutos no período das 1 8 horas. Indiscutivelmente, haveria aglomerações, com
a inevitável geração de tumultos e outros atos imprevisíveis. Assim, se a necessidade de desobs
trução da pista pode parecer algo desumano à primeira vista, revela uma preocupação de evitar
se uma cadeia imensurável de acidentes das mais diversas naturezas.
3. No livro Solidão. A Ausência do Outro (São Paulo, Ed. Pioneira, 1990), a procura por lugares
públicos para o ato da tentativa de suicídio ou do suicídio propriamente dito, quando além da
possibilidade de ajuda, se deve à existência da presença do outro, que muitas vezes fez-se ausen
te da vida dessa pessoa.
147
C - 6rgão de Atuação
objeto de análise e intervenção, é importante que tanto a realidade institucional como a vivên
cia dos elementos pertencentes à instituição sejam respeitadas e preservadas. A transformação, se
necessária, deve ocorrer após um processo de maturação que possa abranger todos os envolvidos
no processo indistintamente. Impor transformações institucionais desrespeitando-se limites e
parâmetros institucionais é, na realidade, desrespeitar as próprias circunstâncias pelas quais esses
l imites e parâmetros se estabeleceram. A intervenção institucional, muitas vezes, determina
mudanças estruturais em suas bases, mas, ainda assim, a realidade institucional deve ser consi
derada em sua amplitude e até mesmo no determinismo de sua ocorrência. Mudanças estruturais
pedem aspectos multiformes de transformação dos elementos institucionais, mas nunca o total
assolapamento da realidade institucional pura e simplesmente. Esses aspectos justificam, inclu
sive, o fato de muitas análises e transformações institucionais se tornarem redundantes e fadadas
ao fracasso.
lllljll�tlil•ll•'" ,/o Wl't'if'O d� <�lvlldilllt'lllo dOJ casos de llr/1,81/âtl � .rtliddio tl<l dd,ltll .Ir .\',lo /1,111/o I 141
� - -··- ----
6. Esse aspecto é bastante delicado, pois não há como definir com precisão o que vem a ser uma
atitude suspeita e que evidencie um eventual titubeio diante de uma possível tentativa de sui
cídio anteriormente assumida. Como simples ilustração, cito o caso de um rapaz que se mostra
va muito ansioso diante da aproximação do trem, chegando a exceder os limites da faixa de segu
rança, que determina os limites onde os passageiros devem permanecer até a parada definitiva
do trem. Depois da passagem de vários trens e da mesma atitude carregada de ansiedade, os fun
cionários do Metrô intervieram para evitar um possível acidente mais sério. O rapaz contou, en
tão, que sua ansiedade não era derivada de nenhum titubeio sobre uma possível tentativa de sui
cídio, e, sim, pelo encontro que havia marcado com sua namorada naquela estação. A cada trem
que se aproximava, ele mostrava-se ansioso aguardando a chegada do veículo para verificar se
sua namorada finalmente havia chegado.
7. Outro aspecto bastante importante na questão da tentativa de suicídio nas estações do Metrô
diz respeito aos condutores do trem. Após cada ato envolvendo tentativa de suicídio existe uma
situação de grande abalo emocional desses funcionários, havendo, inclusive, por parte do Depar
tamento de Controle Centralizado, uma preocupação em atender esse tipo de ocorrência entre seus
funcionários. O Sindicato dos Metroviários procurou a Secretaria de Saúde de São Paulo para saber
da possibilidade de um trabalho de recuperação emocional desses funcionários. Até o momento,
esse projeto ainda não havia sido concretizado, estando apenas idealizado.
1 50 I TBNDe NCIAI IM P\11 111 OU IA H OSPITALAII
B - Sedimentação Teórico-Prática
O resultado das entrevistas mostrou, então, que a morte era uma cons
tante no depoimento dos funcionários, e que a permanência nessa atividade
decorria única e exclusivamente da total falta de perspectiva profissional
alternativa. Os funcionários dessa entidade, desde os que trabalhavam na
marcenaria até propriamente os coveiros e motoristas das viaturas, apresen
tavam sinais contraditórios diante da própria mortalidade. Na marcenaria,
levantou-se também a hipótese de que o confronto direto com a morte, por
meio da construção de caixões mortuários, trazia uma angústia e um sofri
mento somente atenuados com a ingestão excessiva de bebidas alcoólicas.
Deliberou-se, inicialmente, um aprofundamento da temática da morte
com os integrantes do Setor de Recursos Humanos para que eles pudessem
desenvolver um trabalho de esteio emocional com os funcionários. Foram
programados encontros sistematizados que sedimentariam este apoio emo
cional sobre o qual todo o trabalho seria estruturado.
Logo nos primeiros encontros, a questão anteriormente levantada sobre
a possível existência de distúrbios de personalidade derivados da própria
escolha profissional aflorou de maneira bastante contundente, e o grupo co
mo um todo chegou a uma compreensão mais abrangente da questão. Con
cluiu-se, então, que não se poderia falar em distúrbio de personalidade pela
escolha profissional, porque, na verdade, a profissão representava uma falta
de alternativa profissional , e não uma opção de atividade escolhida dentro de
um amplo leque de possibilidades. Essa constatação baseava-se no fato de
que, a cada novo edital de concurso para o preenchimento de vagas de fun
cionários da entidade, surgiam muitos candidatos ao cargo com qualificações
profissionais diversas, distantes da colocação pleiteada; na maioria das vezes,
procuravam atividades para refazer-se de uma longa estiagem ao sabor do
desemprego. Nesse sentido, o grupo constatou que, se havia alguma patolo..,
gia na escolha desses cargos por parte desses funcionários, ela era decorrente,
em última instância, de uma patologia social mais ampla, que obriga pessoas
a atividades totalmente distantes de sua real possibilidade existencial. Pode
se falar em algum possível distúrbio de personalidade, mas com muita cau
tela e apurado estudo dessa personalidade, quando é feita a escolha por uma
dessas atividades dentro de um rol maior de escolha profissional.
1 52 I nNr>!NCIAS IM P\lt DI { )lJIA HOSPITALA"
8. Esse aspecto era bastante significativo em sua ocorrência, pois o grupo reunia-se n uma sala
perten cente ao setor de carpintaria e oficinas mecânicas do Serviço Funerário. Dessa maneira,
1 54 I TENDe NelAS F.M PSIWI moiA HosPITALA"
determinantes claros e precisos sobre seus reais objetivos, para que seus
principais objetivos não se perdessem ao longo do caminho.
O grupo se estruturou e caminhou, apesar de dificuldades surgidas na
d i nâmica das relações interpessoais dentro do próprio grupo. Esses entraves
i mpediram o grupo de continuar seu desenvolvimento inicial, sendo neces
sária a resolução desses problemas para que a proposta inicial fosse restabe
lccida e tivesse solução de continuidade.
Após um momento inicial de atividades introspectivas sobre a morte
c o ato de morrer, determinou-se que os elementos do Setor de Recursos Hu
um simples olhar para o pátio através das janelas trazia a extensão do significado desses apetre
chos monuários. Nas oficinas, encontravam-se as peruas que transportavam os caixões para os
cemitérios, com cruzes, aparatos especiais para caixões etc. Num outro repeme existia também
a movimentação dos caixões que estavam sendo confeccionados de um setor para outro demro
do espaço da carpintaria. Caixões dos mais diferentes tamanhos e modelos sendo levados e orna
mentados para transporte de "futuros clientes". Negar-se à discussão sobre a morte nesse con
texto mais do que uma mera e simples negação era acima de tudo a recusa da simples aceitação
desse tipo de atividade.
9. Por razões estranhas ao nosso conhecimento e percepção, os funcionários do Serviço Funerário,
principalmente os coveiros, são alvo das mais diferentes abordagens e especulações. Assim, ire
mos encontrar elementos interessados na coleta de dados inerentes à realidade de suas vidas para
a elaboração de dissertações acadêmicas, até grupos religiosos interessados nos aspectos místicos
de suas vidas.
lr��!'/,mi.t1,1tl ,/o .l'<'l't'lfii J� atmdim�nlo t/11.1' <'<1.1'11.1' dv IIII!,BIIria e .l'lliddio lltl rh/,,,1, ,/p ,\,/o /', mio I 1 !1!1
�-- - · ·- - - · ··- . .
Serviço Funerário, propiciando uma retaguarda mais efetiva aos casos de aci
dentes de trabalho, doenças ocupacionais10 e sua condição de saúde como um
todo.
A idéia dessa implantação visando um atendimento globalizante que
abordasse questões físicas, sociais e as relacionadas às atividades do Serviço Fu
nerário é o desaguar natural das reflexões sistematizadas e realizadas até então.
A partir dessa implantação, as unidades básicas de saúde passariam a servir de
referência para as unidades do Serviço Funerário, abarcando o encaminhamen
to desses trabalhadores e provendo-lhes o atendimento necessário.11
É uma atividade promissora e que se encontra numa caminhada cuja
fluidez nos faz acreditar em resultados bem alentadores já num futuro
próximo.
O caminho foi iniciado. Sua trajetória é longa e espinhosa.
Resta cuidar para que o alento inicial não se perca diante das dificul
dades que certamente surgirão . . 12 .
10. Nesse rol, vamos encontrar principalmente casos de dermatite no setor de carpintaria e casos
de saturnismo - contaminação pelo chumbo e que provoca perda de pêlos do corpo, alteração
do sistema nervoso central etc. -, e naturalmente os casos já citados anteriormente de alcoolis
mo, que se alastram por todos os setores do Serviço Funerário.
1 1 . Não poderia deixar de registrar nessa atividade a presença das psicólogas Valéria Maria Fer
ranti Baptista e Maria da Glória Calado, que, além de uma performance profissional admirável,
arduamente lutam para que essas atividades j unto ao Serviço Funerário não se percam em mera
e vã digressão teórico-filosófica.
1 2 . Até o momento, a tramitação legal para a implantação do Projeto de Atenção Integral à Saúde
do Trabalhador do Serviço Funerário encontra-se em fase bastante adiantada, buscando-se os pro
vimentos necessários para sua efetivação. Essa abordagem globalizante de saúde, seguramente,
servirá de base e modelo para um sem-número de outras atividades que igualmente necessitam
de abordagem semelhante.
1 !18 I TI NDFNCII\S EM PSICOLOGIA HOSPITALA�
ro d e ocorrências desses casos nas regiões onde essas unidadt•s hos p i ta l a l't•s
estavam localizadas. 13
Os profissionais da saúde pertencentes às unidades hosp i talal'es e l enca
das foram comunicados sobre o início dessas atividades, sendo que a opção
para atuar com essa problemática foi mera escolha individual. 1'1
A partir da decisão desses profissionais de atuar com essa problemática,
iniciaram-se os passos que sedimentariam a estruturação dessa atividade.
1 3 . A idéia é expandir esse tipo de atendimento para todas as regiões atendidas pela Secretaria
de Saúde de São Paulo. Os erros e acertos obtidos nessas unidades nas quais o trabalho se ini
ciou estão sendo objeto de estudo sistematizado para que o serviço possa ser expandido de mo
do a atingir um número cada vez maior de pacientes espalhados pelos mais diversos cantos da
cidade.
1 4 . O fato de os profissionais optarem por trabalhar com essa problemática fez com que o
grupo já se in iciasse bastante fortalecido, pois a opção implicava, inicialmente, a tentativa de
modificação de uma realidade nua e crua que era a ocorrência e o atendimento dos inúmeros
casos de violência cometidos contra a mulher e a criança. Alguns mobilizados por questões
ideológicas, outros por questões humanitárias , outros ainda por interesse de aprofundamen
to ou mesmo um melhor conhecimento da temática, mas todos unidos na questão de que se
ria necessária grande mobilização para atenuar-se os efeitos físicos e emocionais nesses pacien
tes.
1 5 . Tal fato não derivou de uma falta de planejamento anterior, mas, ao contrário, foi uma decisão
calcada no fato de que se estava diante de uma prática que teria que determinar procedimentos e
atitudes. Atitudes apriorísticas sem o contato direto com essa nova realidade certamente induzi
ram a erros maiores e até mesmo inconseqüentes. Ao contrário, a estruturação de atitudes a par
tir do conhecimento determinado pela própria realidade é indício de uma probabilidade maior
de acerto terapêutico.
157
B- Sedimentação Teórico-Prática
1 6 . Como simples ilustração, vale o registro das normas legislativas e j udiciais de alguns países
nos quais a punição para os casos de estupro é agravada se o ato for cometido sem o uso de pre
servativos, fato que implicaria até mesmo a aquisição de doenças venéreas, mormenre na atuali
dade a Aids. Dessa forma, parte-se do pressuposto de que o estupro é algo previamente planeja
do de forma distante e racional, permitindo, inclusive, a determinação do uso de preservativos.
Ou ainda, segundo trabalho apresenrado no Seminário Internacional "Maltrato Institucional
Adoção e a Dignidade Humana da Criança", realizado em São Paulo, em dezembro de 1 990,
quando foi observado que, na Alemanha, cerca de 80% das mulheres estupradas ainda sofrem no
va tentativa de estupro por parte dos profissionais de saúde que cuidam do seu atendimento. Ou
ainda nas palavras do Sr. Paulo Salim Maluf, durante a campanha eleitoral quando apresentava
seu programa de ação contra a violência: "Estuprar pode, não pode é matar" (sic). O estupro está
legitimado a partir de sua própria ocorrência, sendo que na realidade buscamos o estancamento
de sua ocorrência e não sua normatização pura e simples.
, ..
as atitudes a serem adotadas diante dos casos nos quais a vítima, além do
estupro, ainda tinha que se submeter aos trâmites para, no futuro, se neces•
sário, ter direito ao aborto dentro de parâmetros legais. 17
A equipe médica, assumindo a discussão desses aspectos emocionais, e
na tentativa de evitar o desgaste provocado pela imposição das vias legais,
adotou a prescrição do uso de uma medicação hormonal combinando a pre•
sença de estrógeno e progestogênio, que apresenta o efeito de impedir a
implantação do ovo no endométrio. Essa combinação medicamentosa tem
efeitos com grande margem de acerto e não apresentava, na literatura con
cernente, contradições ou efeitos colaterais negativos. A grande dificuldade
da adoção dessa atitude derivava do fato de que nem sempre a vítima pro�
curava pelo atendimento no período de abrangência da medicação. 18
Houve muita polêmica na equipe médica sobre a adoção desse tipo de
atitude. E questões das mais diversas naturezas, como aspectos éticos, filo•
sóficos, morais etc. afloraram de maneira intensa e profunda, mostrando que
muitos aspectos não estavam devidamente interiorizados para sedimentar
uma prática que envolvia temática tão polêmica e difusa. Ficava então evi
denciado que uma coisa era decidir por um trabalho no qual seriam atendi
das vítimas desumanizadas num processo de muita violência, e outra era a
realização de uma prática que envolvia a discussão sobre temas tão polêmi
cos como aborto e sexualidade. Era necessário, então, que a mulher fosse
17. O trâmite legal implica a realização de exame de corpo de delito, que será instrumento com
probatório da violência física e sexual, numa possível e futura solicitação de aborto. Isso natural
mente além da ocorrência policial registrada numa Delegacia de Polícia. E em que pese a exis
tência de inúmeras delegacias da mulher, essas mulheres vitimadas pela violência social ainda
encontram um longo e tortuoso caminho a ser percorrido no resgate de sua dignidade.
18. Esse aspecto mostrou-se, sem dúvida alguma, um fator de muita polêmica e discussão, geran
do observações nas quais o argumento nem sempre se baseava na própria razão, mas muito mais
em colocações passionais. Era como se estivesse em pauta a discussão mera e simples da libera
ção do aborto, e não de atitudes a serem adotadas diante de uma pessoa vitimada por abusos se
xuais e que, em conseqüência desses abusos, ainda poderia engravidar e até mesmo parir sem o
menor amparo social. Isso tudo sem nos esquecermos do fato de que muitas vezes essas vítimas
são menores violentadas, em grande número de casos, pelo pai ou padrasto, ou ainda algum ou
tro familiar. Como ilustração, cito o caso de uma adolescente de 14 anos de idade que havia si
do estuprada pelo próprio pai, numa família na qual sua irmã mais velha já tinha dado à luz um
filho desse mesmo pai. Tratava-se de uma violência tão soberbamente institucionalizada e nor
matizada que discutir sobre a necessidade ou não desse aborto era algo distante dos fatos e da
própria realidade.
180 I TEND� NCIAS EM PSICOI-O(oiA H OSPITALA"
mm preendida de uma forma muito mais ampla, além de uma simples gen i
t â l ia. A posição da mulher como ser humano merecedor de respeito e con
sidt·ração era algo impensável nesse quadro. E o mais surpreendente é que
t•s sa i magem era de difícil assimilação até mesmo pelas mulheres pertenceo
! l'S ao quadro de profissionais da saúde que atendiam mulheres vitimadas;
também elas tinham essa conceituação sectária e reducionista da mulher.
( :omo então esperar um atendimento globalizante se o próprio atendente
t i n ha uma visão fragmentada e distorcida da realidade?19
A partir dessa discrepância de conceitos e fatos não houve como conse
_L:uir uma atitude uniforme dos profissionais médicos, havendo alguns que
passariam a prescrever a chamada pílula do dia seguinte, enquanto outros
Sl'l) uer aceitaram tal posicionamento. 20
Uma atenuante para a resistência desses profissionais a uma postura
menos tendenciosa com relação ao aborto é a reflexão sobre o número de
abortos clandestinos ocorridos no BrasiP 1 e que, além das seqüelas físicas
i rreversíveis, muitas vezes provocam um grande número de óbitos.
Se ainda não foi possível conseguir uma atitude uniforme sobre essa
questão, por outro lado o avanço sobre a humanização dos atendimentos rea
l izados com essas mulheres é indiscutivelmente promissor.
I '). Essa reflexão me traz a recordação de um evento de que participei e que mostra claramente
esse preconceito opressor da mulher contra a própria mulher. Estava sendo homenageado numa
universidade num dos muitos cantos desse País; quando a diretora dessa instituição, num trecho
de seu discurso, afirmou ser uma honra a minha presença naquela autarquia, mostrà'nd� acima
de tudo a superioridade intelectual do homem sobre a mulher. O fato no qual ela escorava esse
argumento sequer foi mostrado. Apenas se enfatizou que ali estava presente um homem que era
homenageado e que se destacava em um universo eminentemente feminino. Diante de discursos
assim, tão agressivos à condição feminina, as mulheres sequer precisam se defender dos abusos
masculinos. Ou ainda nas palavras de Paulo Freire, o maior opressor é aquele que um dia foi opri
mido. Freire, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1 970.
20. No entanto, é importante ressaltar que mesmo entre os profissionais que se recusavam a dis
cutir questões envolvendo a prescrição da pílula do dia seguinte, houve grande transformação no
sentido de entender-se o aborto de uma maneira que não aquela que engloba conceitos religio
sos, filosóficos, éticos, morais etc. Talvez a própria situação de preconceito que envolve a questão
do aborto faça com que essa temática dificilmente seja compreendida de uma forma mais livre e
plena. Nesse sentido, não posso deixar de lembrar uma citação presente nas bandeiras que lutam
pela legalização do aborto que diz que se o homem engravidasse, o aborto já estaria legalizado.
2 1 . Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde, o número de abortos realizados no
Brasil é de cerca de três milhões de casos anuais.
/111Jr/,llll·il.lo do .l<'l'l'iCII dto tllellclimell/11 <111.1' <'r/JII.r t!v 111'):,<:1/âtl e .flliddi11 IM t:id,ldt tl1 ,\',#11 l'r111lo
- -
I 111
22. Estou me referindo evidentemente àqueles casos nos quais a violência praticada contra a
criança não envolve questões sexuais.
23. Evidentemente que nos casos de crianças estupradas, não importando se pelo próprio pai ou
por estranhos, as questões anteriormente levantadas que envolvem a temática do aborto estarão
presentes com muito mais intensidade e vigor. E com o agravante de tratar-se de criança, caso
em que toda questão pertinente à violência contra a condição humana tem suas cores tingidas em
tons muito mais forres e contundentes. É o próprio retrato sem retoques da degradação humana
em seus aspectos mais aviltantes.
24. Para um aprofundamento teórico dessa temática da violência, sugiro a leitura de um traba
lho anteriormente publicado que se intitula Crise, Trabalho e Saúck Mental no Brasil. São Paulo:
Traço, 1 986, Angerami, V. A . , org.
112 I TDN08NCIA5 !M P5tCOLOGIA HOSPITALA"
B -Sedimentação Teórico-Prática
27. A questão do suicídio em suas várias nuanças abordamos no livro Suicídio. Fragmentos de Psi
coterapia Existencial. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003. É indicado, portanto, para
quem quiser uma melhor compreensão e aprofundamento dessa temática.
28. Nesse sentido, é importante salientar que, mesmo nos casos em que a medicina se depara com
doenças até então tidas como irreversíveis, a postura profissional da equipe médica, na maioria
das vezes, reveste-se de conceitos de fracasso diante da iminência da m�rce. É como se individual
mente todos fosses responsabilizados pelo fato de a medicina ainda não conseguir superar deter
minadas doenças. Ou como se seus pares, que se dedicam a pesquisas e buscas de soluções para a
cura de determinadas doenças, não conseguindo êxito nesse intento, estivessem tornando a prá
tica médica como um todo passível de uma falha e inoperância inaceitáveis.
114 I TkND!NCIAS !M PSICOLOGIA HOSPITALAII
C - Órgão de Atuação
29. Em um primeiro atendimento, não se tem a pretensão nem a intenção de uma abordagem
profunda no tocante aos problemas existenciais do paciente. Sabemos que nesse primeiro con
tato, acenamos como uma luz de esperança no turvo de suas possibilidades. Muitas vezes, somos
uma ilusão tangenciada pela fé perceptiva desse paciente em desespero, pois uma proposta de
atendimento mais abrangente não pode ficar restrita às limitações impostas pelo atendimento
realizado no hospital e, mais especificamente, na maioria das vezes, nos corredores sombrios de
um pronto-socorro.
30. Evidentemente, falamos de casos nos quais a pessoa tem consciência dos próprios acos. Quan
do existe a presença de patologias que implicam a total falta de consciência, a obnubilação psí
quica determina então um tratamento medicamentoso que dista dessa proposta de atendimento.
111 I T!ND!NCIAS EM PSICOLOGIA H OSPITALAft
31. A palavra escrita tem um peso muito maior do que a palavra transmitida por meio de con
ferências, mesas-redondas, simpósios, congressos etc. Através dos textos escritos, a palavra regis
trada não sofre a distorção da palavra transm,tida numa conferência, por exemplo. Ou ainda,
usando de uma alusão de sabedoria popular, a palavra eterna é a palavra escrita. Daí a importân•
cia de um livro, de uma publicação científica num contraponto com palavras que se perdem nu
ma conferência.
32. Isso tudo sem considerarmos o choque provocado pela verificação da distância abismal entre
a realidade presenciada e a realidade relatada nos trabalhos acadêmicos.
168 I TEND�NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALA�
3 3 . Para ilustrar esse aspecto, cito o fato de que a maioria desses encontros necessita de um perío
do grande de aquecimento. Esses alunos sentem-se tão ansiosos e incrédulos que chegam, inclu
sive, a perder-se no rumo inicial da entrevista e da coleta de dados. É como se, pelo fato de escre
vermos os livros que estudam, não nos acreditassem humanos, reais.
34. Deixamos de enfatizar com destaque a adoção de nossos livros nos concursos públicos que
envolvem contratação de profissionais de saúde, realizados ao longo do Brasil, por tratar-se sim
plesmente de mera derivação e seqüência da importância recebida nos meios e lides acadêmicos.
189
BIBLIOGRAFIA
Estamos no outono . . .
O outono traz a florada da quaresmeira e da paineira . . .
O outono por s i s ó é lindo.
CA PÍTU L O 9
A ÉTI CA D IANT E
D O S CAS O S D E S U I C Í D I 01
I NTRODUÇÃO
1. Este trabalho foi publicado anteriormente no livro A Ética na Saúde. São Paulo: Pio
neira Thomson Learning, 2003.
1 73
1 74 I TEND�NCIAS EM PSICOLOGIA HoWITAI.M
dia. Assim, enfoquei uma reflexão sobre a realidade dos casos atendidos nas
unidades de prontos-socorros hospitalares, incluindo aí uma derivação jun
to aos casos de tentativas de suicídio nas unidades do metrô e finalmente na
realidade dos atendimentos realizados em consultórios. Certamente, é um
trabalho incompleto, pois a própria temática que enfeixa as determinantes
do suicídio é tão ampla que é impossível abarcá-la, seja neste simples cap!·
tulo, seja ainda no mais extenso tratado filosófico sobre o suicídio. Sempre
hav.erá um caso que exigirá complementação teórica, filosófica ou até mes
mo exigirá explicações neurológicas, sociais, endêmicas etc. A imensidão
das questões envolvendo o suicídio faz com que até mesmo o legislador se
mostre inquieto e de alguma maneira tente influir em sua ocorrência. Sus
peitando que....u
.aQ eles que a sociedade adulta amordaça quisessem lançar um
gr.WLpor meio de seu derradeiro gesto, foi proibida a divulgação do suicí
dio de menores. Em 1978, uma advertência do ministro da justiça da Fran
ça cita a lei de imprensa em que figura, desde 1955, a interdição de publi
car qualquer texto ou ilustração envolvendo o suicídio de menores em livro,
na imprensa, no rádio, no cinema ou de qualquer outra maneira. Trata-se de
evitar que se faça, em torno desses dramas, uma publicidade que suscite no
vos atos de desespero (Guillon e Bonnice, 1984). Dessa maneira, podemos
perceber que o contágio, ou melhor, a contaminação, é a explicação natural
que os adultos encontram para o comportamento dos adolescentes que os
choca (ibidem). Assim, toda e qualquer transgressão do adolescente às nor
mas sociais sempre e invariavelmente será "influência" ou "cópia do com
portamento dos outros".
Num momento em que assistimos a um crescimento vertiginoso de to
das as formas de violência, o suicídio será apenas mais um dos elementos de
destrutividade existentes no seio social e que faz incontáveis vítimas.
Um simples correr d'olhos pelos textos mais antigos sobre suicídio
mostra que a preocupação com sua ocorrência talvez fosse maior, pois não
existiam tantas outras variáveis que pudessem tentar explicá-lo e até mes
mo dimensionar parâmetros para a sua real compreensão.
A realidade atual mostra o suicídio _s_e complementando com outras
__
formas de destruição social; mostra que o suicídio, por mais dramático que
seja em termos de destrutividade familiar, não é a única nem a mais cáusti
ca das tantas derivações que a destroem. Podemos citar, apenas num breve
171 I TrNOINCIM IM PSICOLOGIA HOSPITALAII
a possibilidade de que essa violência seja uma reaçãoi COntra outras formas de
violência. Que essa violência cometida contra a classe média nada mais é do
que uma tentativa de suicídio na qual o suicida é tanto o agressor como o
agredido, vitimados ambos por uma sociedade suicida. Uma sociedade que
não reconhece seus elementos como cidadãos, não lhes oferecendo o mínimo
necessário de dignidade e cidadania; que atira seus elementos à miséria ao
mesmo tempo em que contempla toda a sorte de injustiças sociais sem cur
var-se ao clamor de dor dos mais atingidos pelo desespero.
Esse contraponto de ética que normatiza como violência apenas o que
atinge os seus postulantes não tem como abarcar diferenças, pois as matizes
de seus questionamentos são, na verdade, os interesses de seus criadores. Da
mesma forma, outros construtos de ética vão balizar como adequadas formas
de normatização da convivência com aspectos que envolvam apenas questões
tangenciais observadas pela ótica de seus idealizadores. E que certamente ex
cluem aspectos e fatores que possam envolver construtos filosóficos que es
capem à sua compreensão. Assim, a ética que envolve a temática do suicídio
é, antes de mais nada, um conjunto que visa normatizar os aspectOs observá
veis desse tipo de ocorrência, mas que não tem como abranger a própria sub
jetividade presente intrinsecamente em cada caso. Estabelecem-se normas de
enquadramento e sistematização de aspectos tanto descritivos como mera
mente reflexivos, mas sempre a partir daquilo que se pode apreender na ob
servação simplista do fenômeno. E no caso de suicídio, a complexidade de
seus emaranhados faz com que resista a esse tipo de verificação e abordagem.
É fácil o estabelecimento de uma condenação moral a atos considerados
inadequados, e que de alguma maneira ferem a ordem social, da mesma for
ma que é fácil a condenação quando um gesto já apresenta em seu bojo toda
uma condenação social. Um ato de estupro acompanhado de assassinato co
metido contra uma criança é um exemplo cuja condenação é consenso em to
dos os tecidos e segmentos sociais. Não há como tolerar esse tipo de acinte
cometido contra a integridade física de uma criança, e até mesmo discussões
envolvendo possíveis aspectos patológicos do agressor se perdem diante da
atrocidade maior que é o próprio ato em si. O atenuante de aspectos de com
prometimento emocional do agressor apenas servem para enquadrá-lo nou
tra forma de condenação, transcendendo apenas os limites morais e estarre
cedores do ato em si. É sabido, por exemplo, que os estupradores, ao serem
110 I TnNil�.NCIM ftM P�ICOLOGIA HOSI>ITALM
presos, são igualmente estuprados nas celas, sendo submetidos a todos os ti
pos de sevícias sexuais e morais. Trata-se apenas de mais uma das inúmeras
condenações a que são submetidos esses agressores, não importando outros
questionamentos sobre as determinantes de seu ato, pois a condenação é to
tal e absoluta.
De outra parte, questionar os determinantes da violência e enfeixá-los
num aspecto mais amplo é apontar o enfeixamentos das contradições ocorri
das no seio social. É trazer à tona os aspectos transcendentes da condição hu
mana naquilo que o homem apresenta de mais peculiar, que é o fato de ser
predador da própria espécie. É trazer à tona os aspectos mais cruéis do ho
mem, e que mostram que a dor e o desespero do outro não importam na ra
zão e na essência direta dos fatos. O que irá importar, na realidade, é a preo
cupação consigo mesmo e com a própria sobrevivência. Esse centralismo e,
por assim dizer, esse distanciamento do outro faz com que o homem fique ca
da vez mais insensível à violência que atinge o outro. A violência passa a ser
preocupante somente quando o atinge em seus limites familiares. Do contrá
rio, é apenas mais uma das inúmeras ocorrências sociais que cercam sua vida.
O suicídio é uma das mais extremas manifestações da própria violên
cia. É um ato sempre revestido de muita violência até mesmo nos casos em
que a morte é fulminante e não apresenta sinais de dor física. É uma violên
cia cometida contra si mesmo e contra o outro. O suicida se eterniza no ou
tro. Traz, além da morte e das implicações inerentes ao morrer, a condição
que abrangem igualmente temas ligados à violência. É, por assim dizer, uma
somatória de fatores interligando a morte em uma de suas facetas mais vio
lentas. Seus determinantes exercem um fascínio sobre as pessoas, seja pelos
aspectos que envolvem seu esboço, seja pelo mistério de sua compreensão,
seja ainda pelo simples estardalhaço de emoções que as pessoas buscam com
tamanha avidez. Analisar um caso de suicídio é, antes de tudo, analisar um
caso que envolve um dos mais instigantes e desconhecidos enfeixamentos da
condição humana. É debruçar-se sobre fatos procurando compreender um
fenômeno que talvez nem apresente condições para ser compreendido. É de
bruçar-se sobre fatos e procurar nesses fatos o alcance da própria dimensão
da consciência para abarcar em uma digressão filosófica aspectos obscuros
da vida humana. O suicídio apresenta uma combinação de fatores que exi
ge do observador muita atenção, para que se tenha claro um paradigma pre
ciso sobre suas implicações no seio familiar e social de sua ocorrência. Cito
como exemplo um caso ocorrido anos atrás, e que teve cobertura jornalísti
ca do telejornal Aqui Agora.
A reportagem do jornal tomou conhecimento, pelo rádio de uma de
suas viaturàs, de um chamado do Corpo de Bombeiros para o atendimento
de uma mulher que estava prestes a se atirar do alto de um prédio no cen
tro comercial da cidade de São Paulo. Dessa maneira, a reportagem chegou
ao local praticamente ao mesmo tempo em que a viatura do Corpo de Bom
beiros, e passou então a gravar os desdobramentos desse caso. Detalhes co
mo os oficiais do Corpo de Bombeiros tentando persuadir a vítima a aban
donar seu intento, minúcias do sofrimento estampado na face da yítima,
bem como a platéia que, ávida de emoção, gritava para que a mulher pulas
se e contemplasse a todos com o inusitado daquele espetáculo, tudo, enfim,
foi documentado, registrado e exibido no horário nobre. Em virtude dos al
tos índices de audiência obtidos, esse episódio foi repetido numerosas vezes
ao longo da semana.
Se é verdade que o objetivo principal de um órgão televisivo é buscar fa
tos que gerem audiência, certamente deveria ser também o de veicular as de
terminantes envolvidas nesses fatos. O simples espetáculo de uma mulher se
jogando do alto de um edifício, além de macabro, serviu apenas para alcan
çar pontos de audiência televisiva e jamais para discutir o nível de desespero
envolvido num ato dessa magnitude. O comportamento no mínimo bizarro
1 82 I T!NOINC:IAI IM P\ICOLOGIA HÇlSPITALAft
das pessoas que presenciavam a cena, gritando para que a mulher se jogasse,
foi igualmente um espetáculo, e igualmente não mereceu nenhum comentá
rio. A total falta de solidariedade, tanto dessa platéia quanto de muitas pes
soas envolvidas no simples registro jornalístico, é também merecedora de
inúmeras interrogações. A própria tentativa de explicação para tal comporta
mento certamente se perderá em digressões teóricas, pois o verdadeiro teor de
tais condutas está longe de ser abarcado num construto teórico e até mesmo
filosófico. Não há como exi�ir um nível de compreensão para um fenômeno
no qual o espetáculo da morte de uma mulher desesperada pudesse provocar
tanto prazer, prazer pormenorizado nos detalhamentos do próprio fenômeno.
A primeira evidência da dificuldade de se pontuar algum nível de com
preensão é o fato de que o suicídio dessa mulher era evidência primeira de
uma situação de desespero e de total descontrole emocional, e, dessa manei
ra, não poderia provocar um prazer tão exacerbado naquelas pessoas. "Não
poderia" é a expressão correta, pois de fato situações que impliquem morte
e destruição de outras pessoas exercem um fascínio muito grande sobre as
pessoas. Basta observar uma luta de boxe: quando um dos lutadores está
massacrando seu oponente, praticamente destruindo-o fisicamente, levan
do-o a nocaute - à falta de consciência -, a platéia delira de satisfação e
prazer pelo espetáculo exibido. A morte ou seqüela física muitas vezes irre
versível de um dos oponentes é mero detalhe que não é considerado no pra
zer obtido na seqüência de golpes que culmina com o nocaute. Da mesma
forma, uma simples observação nas chamadas dos programas esportivos da
televisão dá um panorama da dimensão desse fascínio pela destruição. As
sim, são mostradas cenas automobilísticas nos quais carros batem, incen
deiam-se, capotam etc . , nos quais futebolistas são derrubados, jóqueis ati
rados ao chão pelos cavalos e assim por diante. Ou seja, são evidenciadas
situações nas quais o destaque é a destruição ou algo que se assemelhe.
Ao lado do sofrimento envolto no ato do suicídio e, por assim dizer, de
outras formas de violência, sempre há um nível subjacente de inconformis
mo com os aspectos da própria condição humana. O suicídio da mulher que
se jogou diante das câmeras de televisão não é considerado senão em seu as
pecto de sensacionalismo. É também esse aspecto sensacionalista que justi
fica a própria gravação ao vivo com chamadas anunciando com estardalha
ço tal fato. A possível dor ou mesmo o comprometimento emocional dessa
A ltkrt tlhml• ,/,.,, , , ,,w, dt utldrl/11 I 111
mulher é fator que não pode ser considerado na análise dos quesitos que jus
tificam a transmissão televisiva. Tampouco os familiares da vítima, sua dor
e mesmo o constrangimento de ter um ente exposto de maneira tão aviltan
te diante de toda a comunidade a que eles próprios pertencem.
Se o aspecto que envolve uma cobertura jornalística é sua repercussão,
certamente questões que envolvem aspectos emocionais não podem ser con
sideradas no mesmo bojo. É como se questões emocionais não mais tivessem
espaço diante do sensacionalismo de uma notícia ou mesmo de um fato iso
lado que tem o poder de causar polêmica. Desatinos e dores emocionais n�o
podem ser balizados com a mesma cri ticidade com que se pontuam razões nas
'
quais a emoção não tem espaço nem que seja para mera digressão teórica.
Discutir os efeitos do suicídio e suas implicações é articular determi
nadas pontuações teóricas e filosóficas e nunca articular propriamente de
terminantes do envolvimento dessas nuanças na configuração do fenômeno.
O suicídio, quando visto pela ótica que baliza determinadas práticas
profissionais e mesmo sociais, sempre é conside�ado apenas sob o aspecto de
ato que envolve a morte numa configuração de violência extremada, que pó
de também envolver outras pessoas, seja nos casos de indução ou de possí
veis tentativas de homicídio escamoteadas numa tentativa de suicídio. Bus
ca-se uma separação entre o que é um ato de suicídio propriamente dito e
uma variante de uma tentativa de suicídio envolvida em persuasão ou mes
mo no agravamento de situações nas quais ela seja exposta a um completo
desarvoro e desatino emocional.
Busca-se uma forma de compreensão do suicídio. Evocam-se razões hu
manitárias, jurídicas, médicas, filosóficas e outras para tentar, de uma ma
neira bastante abrangente, explicar e dar contornos ao real significado do
suicídio na condição humana. E uma grande questão se coloca: é possível
compreender um fenômeno que, mesmo sendo ato isolado e individual de
uma determinada pessoa, envolve ao mesmo tempo questões tão polêmicas
e que transcendem as mais variadas áreas do conhecimento?
Há ainda outra questão, para a qual não se encontra resposta: o que é
exatamente o suicídio na esfera do sofrimento e do desespero humano? Res
ponder apenas com as definições etimológicas e até mesmo com conceitua
ções teóricas e filosóficas é apenas tergiversar sobre a questão, sem alcançar
a plenitude da extensão desse fenômeno.
184 I TeNDINCIAI •M P\lt ULOGIA HosPITALA"
É nas religiões que a sociedade se escuda para tentar evitar que seus
membros busquem o suicídio como alternativa para situações desesperado
ras. É nas religiões que os fiéis encontrarão toda a sorte de argumentos e
questionamentos sobre as sanções exercidas sobre aqueles que decidem pe
la própria morte de maneira arbitrária. A vida, segundo a totalidade das re
ligiões, é dom divino e somente a Deus cabe a decisão de abreviá-la ou até
mesmo alterá-la segundo os seus desígnios. Ao homem cabe apenas cum
prir sua sina humana e aceitar o seu sofrimento sem poder recorrer à morte.
O suicídio esbarra na própria legitimidade de escolha da pessoa dian
te de situações de sofrimento extremo. De alguma forma é tolerável nos ca
sos de enfermidades crônicas e irreversíveis. Aceita-se que uma pessoa que
tenha diagnóstico de câncer ou Aids ponha fim ao seu próprio sofrimento
pelo suicídio. Mas não se tolera o suicídio nos casos de sofrimento .emocio
nal É como se o suicídio fosse passível de tolerância e até mesmo de aceitaç.ão
apenas naquelas doenças em que o sofrimento é visível . E o que é o suicídio
senão uma escolha pessoal que tenta estancar algum nível de sofrimento, se-:
ja emocional ou físico? E se é uma escolha dentre outr\15 tantas pertinentes
à própria condição humana, seu nível de variáveis é determinante de ques
tionamentos quase sempre transcendentais que quase nunca consideram as
razões eminentemente humanas.
Basta observar a maneira como questionamentos envolvendo suicídio
esbarram na questão de se prolongar vidas à custa simplesmente de recur
sos técnológicos, sem levar em conta a própria dignidade dessa vida. E aí as
questões relativas à réutaO.ásiàl se tornam emergentes, sem, contudo, um
aprofundamento.
Falamos em dignidade de vida, plenitude e outros tantos termos que
servem para definir situações prazerosas, sem, contudo, avali�r o que real
mente enquadramos nessas conceituações.
E se não conseguimos abranger adequadamente o que seja uma vida
plena,. digna etc . , conceituamos suicídio de forma absoluta. Mesmo assim
deixamos de lado as formas de destruição que não são aparentes, e que se es
condem muitas vezes em situações nas quais a mera decorrência da destrui
ção desaparece diante da evidência de determinadas circunstâncias.
Nesse sentido, podemos arrolar os casos de alcoolismo, que, embora se
ja uma das maneiras de milhares de pessoas deliberadamente se destruírem,
111 I TINO!NCIAS EM PSICOLOGIA HOSPITALAI'I
ainda assim não encontra espaço nos programas de saúde governamental, nem
em programas preventivos, nem mesmo em termos de tratamento aos pacien
tes que já se encontram em estado crônico e muitas vezes em franca degene
mção física e emocionaL E tendo como agravante que o quadro de alcoolismo
carrega consigo não apenas um sofrimento isolado e individual, mas toda a de
sestruturação familiar. Mesmo diante de números alarmantes que mostram
que o álcool mata 2 5 vezes mais do que todas as outras drogas legalizadas e
proibidas juntas, ainda assim não se vê, com exceção de alguns meros ensaios
acadêmicos, um programa efetivo que possa enquadrar o álcool como uma das
maneiras de autodestruição colocadas à disposição da população. Polemiza-se
sobre a legitimação da eutanásia, mas não se encontra uma linha sequer sobre
a maneira como o álcool é colocado à disposição de tantos quantos queiram . se
destruir por sua ingestão. Nem sobre o preço de um litro de aguardente de
cana comparado com o preço de um litro de leite. Em que níveis o governo
subsidia a produção de bebidas alcoólicas em detrimento de outros subsídios
que certamente beneficiariam um sem-número de pessoas que não possuem
condições de se alimentar de forma satisfatória?
A diferença, talvez, entre o consumo de álcool e as maneiras tecnoló
RÍcas encontradas nos hospitais para se colocar fim a vidas vegetativas é a
simples constatação de que o alcoólatra faz uso de sua deliberação sem ques
t ionar o teor de sua destrutividade. Destrói a si mesmo, destrói seu círculo
familiar, seu rol de amizades, mas co.t:n a complacência social que permite a
ingestão de álcool como uma forma de alienar-se da própria realidade dos
fatos sociais que enfeixam sua vida.
É na dimensão da destrutividade que o álcool provoca que iremos en
contrar também o dimensionamento da irascibilidade social diante de mé
todos que nãp aqueles legitimados na esfera das conveniências sociais.
A destruição por doses homeopáticas de álcool é permitida, mas não o
ato fulminante de um tiro ou mesmo de outros atos destrutivos que impli
quem mera fração de segundos. A ingestão contínua de álcool não levará nin
guém a questionar as razões determinantes desse teor de destrutividade, ao
passo que nos atos fulminantes a busca de razões é imediata e provoca celeu
mas de toda natureza que, muitas vezes, esbarram em questionamentos in
desejáveis, seja do ponto de vista familiar, seja do ponto de vista das próprias
estruturas sociais.
A étira diafllu dos rasos d1 .1'11/dtlio I 1 87
2. Nos aspectos jurídicos desse trabalho foi assessorado pela advogada Maria de Fátima Macha
do, a quem agradeço e renovo os entalhamentos de carinho, estima e paixão: pela mulher, pela
pessoa e pela profissional que ela é.
A étit'el dian/c tlm fd.l'tJ.I' t/, .rNklílio I 181
Aumento da pena
Parágrafo único. A pena é duplicada:
I - se o crime é praticado por motivos egoísticos;
II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a ca
pacidade de resistência.
PARTICIPAÇÃO EM SUICÍDIO:
Noção: Embora o suicídio não seja ilícito penal, a lei pune o comporta-
mento de quem induz, instiga ou auxilia outrem a suicidar-se.
Objeto jurídico: A preservação da vida humana.
Sujeito ativo: Qualquer pessoa.
Sujeito passivo: Qualquer pessoa (desde que tenha discernimento, ou o
crime poderá ser homicídio).
Tipo objetivo: A participação pode ser física ou moral. Três são as formas
previstas: induzir (incitar), instigar (estimular idéia já existente) e auxiliar
(ajudar materialmente); ainda que o agente pratique mais de uma ação, o
crime será único (tipo alternativo). Não pode haver auxílio por omissão. O
crime só é punido quando há morte da vítima ou esta sofre lesão corporal
grave.
Tipo subjetivo: Dolo (vontade livre e consciente de praticar a conduta
prevista) e o elemento subjetivo do tipo (conduta séria, no sentido de que a
vítima, efetivamente, venha a se matar). Na doutrina tradicional, é o "dolo
específico". Geralmente é o dolo direto, mas, para alguns, também em sua
forma eventual. Inexiste participação por culpa.
Consumação: Com a morte da vítima ou ocorrência de lesão corporal
grave (crime material).
Confronto: Poderá haver homicídio se a vítima for forçada a suicidar-se,
ou não tem resistência alguma.
Classificação: Crime comum quanto ao sujeito, doloso (com elemento
subjetivo do tipo), alternativo quanto à conduta, comissivo, instantâneo,
material e de dano (lesão efetiva).
1 10 I T!NDINC:IAI IM PliC:OLOGIA HOSI"ITALAII
3. É na faixa etária situada entre quinze e vinte anos de idade que se encontra a maior i ncidência
dos casos de tentativas de suicídio. Nesse quadro encontramos a predominância de mulheres
cerca de 90% da totalidade dos casos - que tentam o suicídio pela ingestão de comprimidos.
112 I TINDINCIAS !M PSICOLOGIA HoSPITALAft
lher, maneiras mais pífias. Até mesmo na morte, a conceituação social pre
dominante de que o homem não pode expor suas emoções - idéia presen
te desde a tenra idade de que choro é coisa de menina -- é determinante na
conduta a ser adotada. Evidentemente que até mesmo uma incursão nos
meandros psíquicos em busca das razões que levaram uma determinada pes
soa a escolher um determinado instrumento de destruição esbarrará nessas
conceituações sociais, que se tornam individuais ao serem assimiladas de
modo subjetivo pela pessoa ao longo de sua vida.
É como se respondêssemos de modo afirmativo às determinantes so
ciais até mesmo quando queremos colocar fim à própria vida e, por assim
dizer, ao social presente em nós mesmos. É como se o homem tentasse rom
pet com aquilo que fizeram dele, mas simplesmente faz aquilo que dele é
esperado.4
O suicídio, assim como outras manifestações de rebeldia, nada m<tis é
do..que uma resposta esperada diante de situações extremas de opressão emo
cional. Dessa maneira, é esperado que um jovem de classe média, por exem
plo, busque a tentativa de suicídio diante de situações desesperadoras, ou
ainda que enverede pelo caminho das drogas ou por caminhos alternativos
- arrolando-se aí desde as buscas místicas em lugares sagrados e a procura
de formas de vida naturalistas, até práticas profissionais mais contestadoras
(como mera citação, há situações nas quais se nega uma profissão acadêmi
ca para atuar no comércio de petiscos numa praia ou em algum ponto cul
tural de uma cidade), e a adoção de atitudes consumistas pelos quais rotu
la-se de playboy alguém que apenas corrói o patrimônio familiar etc.
Jamais, de maneira alguma, aceita-se que alguém insatisfeito com as
normas e padrões sociais rompa com tudo e simplesmente vá se tornar um
gari de limpeza, ou então, que vá viver embaixo de algum viaduto ao lado
de mendigos de rua. 5
4. É de Sartre a afirmação "o essencial não é aquilo que se fez ao homem, mas aquilo que ele fez
daquilo que fizeram dele".
5. Cito no livro Suicídio: Fragmentos de Psicoterapia Existencial o caso de uma pessoa que era
maítre de um grande restaurante francês na cidade de São Paulo e que acabou se tornando um
"homem de rua", passando a viver com outros mendigos e convivendo com toda sorte de pro
blemas. O inconformismo de alguns relatos de leitores da referida obra reside na simples re- ·
jeição ao fato de alguém abandonar tudo e todos e simplesmente ir viver nas ruas . Certamente,
1 14 I TnND8NCIAS !M PSICOLOGIA HOSPITALAft
O homem que se mata faz dele aquilo que dele é esperado. Ele termi
IHl da maneira como a sociedade, em suas teias de violência, determina.
Cu mpre um ritual de violência não apenas colocando fim à sua própria vi
da, mas respondendo de maneira afirmativa aos apelos e clamores sociais.
Na impossibilidade de um enfeixamento das atitudes dos profissionais
da saúde e de todos os envolvidos nos casos de suicídio e de tentativa de sui
cídio que pudesse configurar-se como um código de ética humana, pratica
mente nada temos a oferecer.6
Em determinados casos, nem mesmo piedade.
Piedade. Uma forma caridosa de compreensão . . .
Uma forma piedosa de aceitação . . .
BIBLIOGRAFIA
se essa pessoa tivesse adentrado para uma das tantas comunidades místicas que se espraiam pe
lo País em busca das verdades de suas doutrinas, causaria alguma estranheza e mesmo desapon
tamento na maioria das pessoas, mas não o choque que a situação de "homem de rua" e, por as
sim dizer, a situação de mendicância, provoca.
ó. Até mesmo os códigos de ética do Conselho Regional de Psicologia e do Conselho Regional
de Medicina são dúbios na maneira como determinam os procedimentos profissionais diante dos
casos de suicídio e de tentativa de suicídio. Outro aspecto bastante polêmico diz respeito às cláu
sulas contratuais das apólices de seguros de vida e dos chamados seguros-saúde. Em ambos os ca
sos existem cláusulas específicas e bastante claras excluindo de qualquer indenização nos casos de
morte, invalidez temporária ou definitiva e mesmo de atendimento médico-hospitalar os casos
configurados como suicídio ou tentativa de suicídio. E ainda que as condições dos atendimentos
médico-hospitalares dos seguros-saúde estejam sofrendo uma ampla revisão para abranger o aten
tlimento de algumas doenças crônicas que até então eram excluídas de suas coberturas de atendi
mento - incluindo-se aí Aids, câncer etc. -, ainda assim o atendimento aos casos de tentativa
de suicídio não sofre a menor reivindicação da saúde. Embora exista roda uma movimentação do
Poder Legislativo para criar alteração na legislação vigente para fazer com que os planos de saú
de cubram a totalidade das enfermidades, ainda assim, efetivamente, têm-se apenas perspectivas
que, embora promissoras, são apenas perspectivas.
Aética diante dos ,·,tso.r de .111ide/io I 1 lt!l