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HISTÓRIA S O C I A L
DA MÚSICA
DA IDADE MÉDIA A BEETHOVEN
HISTORIA SOCIAL DA MÚSICA
DA IDADE MÉDIA A BEETHOVEN
HISTÓRIA SOCIAL
DA MÚSICA
Da I dade Média a Beet hov en
Tradução:
Nathanael C. Caixeiro
ZAHAR EDITORES
RIO D E JANEIRO
Título original: A SocialHistory ofMusic
Direitos reservados.
A reprodução não autorizada
desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação do copyright. (Lei 5988)
1981
Direitos para a língua portuguesa adquiridos por
ZAHAR EDITORES
Caixa Postal 207 ZC-00 Rio
qué se reservam a propriedade desta versão
Impresso no Brasil
ÍNDICE
Prefácio 7
1
História da Música — Problemas e Fontes 9
2
A Igreja Medieval 26
3
A Difusão da Polifonia do Norte 48
4
A Naturalização dos Menestréis 56
5
Músicos Municipais — os Profissionais 69
6
Músicos Municipais — os Amadores 85
7
91
Música Palaciana Renascentista
8
118
Música Impressa
9
A Reforma e a Contra-Reforma 129
10
A Música numa Sociedade de Classe Média 151
11
As Origens da Opera 180
12
0 Período Barroco 209
13
igrejas, Chantres e Coros 232
14
A Música e o Absolutismo Francês 258
15
Inglaterra — Música Palaciana e Música Citadina280
ÍNDICE
16
Handel e a Inglaterra 307
17
A Música nas Cortes do Século XVIII 336
18
O Advento do Concerto Público 363
19
Compositor e Editor 382
20
O Compositor Liberto 405
Nota sobre Moedas e Câmbio 411
Bibliografia 413
índice Analítico 419
PREFÁCIO
Este livro é um esforço para preencher parte da lacuna entre a história nor-
mal e necessária da música, que trata do desenvolvimento dos estilos musi-
cais, e a história geral do mundo no qual os compositores desempenharam
a sua função. Não é seu objetivo a tarefa altamente especulativa de relacio-
nar a obra dos compositores com as correntes gerais de pensamento do
tempo em que viveram. Pretende mais modestamente acompanhar a evo-
lução da música ao longo do seu relacionamento progressivo com os patro-
cinadores ou auditórios para quem ela foi originariamente escrita, os can-
tores ou instrumentistas que deviam executá-las pela primeira vez e os
meios que o compositor tinha a seu dispor para apresentar sua obra ao pú-
blico. Há, evidentemente, pontos em que a submissão do compositor à
corrente geral de pensamento é explícita e de importância quanto à sua
posição como membro da sociedade capacitada a agir como seu freio. Mas
não tentei entrar em qualquer dessas fascinantes conjecturas sobre o lugar
de um Mozart, um Beethoven ou um Wagner no pensamento da época
deles. Há, também, pontos em que a função social da música tem clara
importância nas questões de estilo, as quais de outro modo ficariam obs-
curas. Não cuidei das questões estilísticas além do seu alcance óbvio no
contexto de uma história que se ocupa primordialmente com os empenhos
do compositor para desempenhar uma função social; outras questões são
enfocadas apenas do ângulo do alcance que têm sobre essa dimensão des-
prezada da história da música.
Haydn morreu em 1809, tendo vivido num sistema inalterado desde
que a música foi reconhecida pela primeira vez como necessidade social:
Beethoven, que morreu 18 anos depois, viveu como vive um compositor
moderno, dos ganhos do seu trabalho num mercado livre. Esse é o roteiro
que este livro pretende seguir, desde o estabelecimento, no seio da Igreja
cristã, das primeiras organizações musicais que tiveram uma história clara-
mente registrada. Trata das cambiantes funções dos músicos de igreja, o
lugar da música nas cortes do Renascimento e da Alemanha e da Áustria
do século XVIII, observando a expansão da obra dos compositores ense-
jada pela invenção da imprensa e pelo progresso das organizações musicais
amadoristas, o consequente desenvolvimento da edição de músicas e a
paulatina criação de um público ouvinte internacional. O livro tenta acom-
panhar esses fatos até que, combinados com as consequências sociais e
políticas das guerras napoleónicas, eles transformaram o compositor, de
7
8 H I S T Ó R I A S O C I A L D A MÚSICA
humilde funcionário que era, com a única vantagem de ter íntimo contato
com um auditório que achava a sua obra socialmente necessária, num tra-
balhador autónomo cuja vida era inevitavelmente insegura.
HENRY RAYNOR
1 HISTÓRIA D A MÚSICA - PROBLEMAS E F O N T E S
9
10 H I S T Ó R I A S O C I A L DA MÚSICA
1
Eduard Hanslick. Music Criticism, 1846-99, traduzida e organizada por Henry
Pleasants. Londres, Penguin Books, 1963.
HISTÓRIA DA MÚSICA 13
3
Sigmund Levarie. Le Nozze di Fígaro, a Criticai Analysis. University of Chicago
Press, 1952.
16 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
4
Alma Mahler. Gustav Mahler, Memories and Letters. John Murray, 1946. Carta de
14 de dezembro de 1901.
5
Carta a Alexander von Zemlinsky, 23 de fevereiro de 1918.
HISTÓRIA DA MÚSICA 19
últimos quartetos, mas pressupunha que eles existissem para serem ouvidos
por todos os gostos mais diversos; vale mencionar que Schoenberg fez tudo
ao seu alcance para que as suas obras fossem ouvidas sempre que possível,
quando mais não seja por motivos económicos.
Em última análise, a música surge, em parte, das atitudes de espírito
que o compositor partilhe com os seus contemporâneos, ou de sua reação
contrária a ele. Ele escreve para executante ou cantores, não raro para in-
divíduos específicos de particulares talentos e realizações. Dirige o que
escreve a um público, mesmo quando apenas a um público às vezes meio
imaginário e ideal, com determinadas afinidades e reações. Ele atinge o seu
público de modos particulares: pela execução da obra, se possível; do
contrário, pela publicação. O modo como chega ao público pode e deve,
quase necessariamente, ser influenciado por essas considerações sociais.
Até o século X I X , o músico tinha um lugar definido na sociedade,
quando não elevado, e desempenhava uma função social claramente-defini-
da, escrevendo e executando a música que lhe pagavam para escrever e
tocar. Na medida em que competente no trabalho, seu meio de vida estava
garantido, e, a não serem circunstâncias pouquíssimo comuns, ele conhecia
o seu público. O século X I X privou-o do lugar e da função, e é ainda sob
o prisma do século X I X que vemos toda a evolução da história da música.
Se somos menos inclinados que nossos avós e seus pais a atentar para a
idéia do artista como profeta ou "legislador não reconhecido do mundo",
deixamos ainda de considerar as pressões económicas e sociais sobre ele.
A sua rejeição social no século X I X — ele podia estar acima ou abaixo da
sociedade, mas não era parte dela — pode ser interpretada como uma liber-
dade além daquela do homem comum que ganha dinheiro pelo trabalho
regular, porque o compositor não tinha a menor obrigação de fazer qual-
quer trabalho a não ser aquele que sua natureza o compelisse inexoravel-
mente a fazer. Ele paga — ou pelo menos nos ensinaram tradicionalmente
a crer — por sua liberdade não apenas pelas angústias da criação mas tam-
bém pela incerteza e provável pobreza de sua vida e pela solidão de seus
infindáveis esforços para criar ou para achar o auditório necessário, o qual
de fato é a comunidade a que por natureza pertence.
Se isso é uma simplificação romântica da vida do compositor no
século X I X e avaliação errada da sua carreira naquela época, ainda assim
pressupõe que a música é uma arte social ao exigir certa comunidade de
executantes para dirigi-la a uma comunidade de ouvintes. Toma por evi-
dente que o musicista é, pela natureza de sua arte, dependente dos esforços
de uma sociedade para executar ou cantar a sua obra para a real existência
dela. Mesmo o aparentemente abstraio Die Kunst der Fuge [A arte da
fuga] — meras notas no manuscrito de Bach, sem qualquer indicação inclu-
sive quanto ao instrumento ou instrumentos para tocá-las — impõe-se, é
emocionante e belo em quase qualquer arranjo instrumental.
20 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
6
Citado em Lonsdale: The Life of Charles Burney. Carta a William Mason, maio de
1770.
24 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
* O tema aparece nos primeiros 30 compassos de abertura da Ópera, mas toda a ter-
rificante dramaticidade se dá no final, numa série de escalas em vigoroso crescendo,
quando a estátua do comandante de Sevilha surge durante um banquete na casa de
Don Giovanni e o condena ao inferno. (N. do T.)
HISTÓRIA DA MÚSICA 25
niente para algum fato puramente musical, naturalmente se vale dela; não
procura uma base explicativa coerente e evolutiva para a história da música.
O historiador do século XIX estava preocupado sobretudo com o "signifi-
cado" e a "mensagem" subjacentes da arte; o historiador do século X X
ocupa-se puritanamente das artes como coisas em si mesmas, de modo que
os fatos estilísticos em música lhe parecem constituir a história essencial.
Para descobrir uma elucidação mais completa da música, de modo que a
sua história se torne parte da experiência humana geral, é preciso retornar
ao século XVIII; dentre o vasto acervo de material coletado por Hawkins
aos montes e os quais Burney desempilhou com aprazível elegância de
pensamento e estilo, encontra-se tudo o que pode ser facilmente juntado
sobre o estofo essencial à atividade musical. A insaciável busca de do-
cumentos por Hawkins dota a sua História de todas as provas da prática
medieval que ele examinou a fundo e o seu registro em primeira mão dos
primeiros tempos da vida palaciana, espirituoso, sardónico e divertido, é
inestimável porque explica a música que era executada. Também Burney
não pode imaginar a música isolada do rumo da vida cotidiana; observa
ele a conexão entre o poder económico e o desenvolvimento artístico; a
música, na sua história como na de Hawkins, é feita pelo e para o povo.
O empenho de relacionar o desenvolvimento da música com o mundo
no qual ela existe e considerar o relacionamento do compositor com o
mundo económico e social em que viveu é responder a várias questões que,
embora decisivas, não são respondidas pelo historiador dos estilos. Embora
Benjamin Britten descobrisse na ópera de câmara um meio de aprofundar e
intensificar o seu estilo, por que, depois do grande êxito de Peter Grimes,
em que utiliza plenos recursos sonoros, ritmos e efeitos, retorna à forma
menor e mais esotérica? Por que, em meados do século X X , a ordem musi-
cal "conservadora" desapareceu como força que tendia a bloquear o ca-
minho do compositor "progressista"? Por que o estilo internacional da
primeira metade do século XIX se fragmentou numa variedade de escolas
nacionalistas? Por que, sendo Beethoven um compositor autónomo, teve
relativo sucesso financeiro, ao passo que Mozart, apenas 25 anos antes
dele, morreu em extrema pobreza embora sua música fosse estupendamente
popular? Há muitas questões como essas, importantes e interessantes para
o musicista, que podem ser respondidas por uma história social da música,
mas que não entram no escopo de investigação do historiador dos estilos.
2 A IGREJA MEDIEVAL
26
A IGREJA MEDIEVAL 27
dos quais eram meninos de voz vigorosa e que deviam cantar nas missas e
ofícios diários. A complicada música dos tropos estendia-se muitas vezes
além da gama que impossibilitava cantar em uníssono a oitava com os ho-
mens, de modo que os meninos cujas vozes não podiam atingir as notas
mais altas ou mais baixas eram levados quase ao acaso a uma tonalidade
harmónica - ao acaso porque as notas fora da gama de certos cantores não
eram necessariamente parte de qualquer cadência a que certo grau de har-
monização seja lógica aos nossos ouvidos. Mas parece ter sido o efeito arbi-
trário de coros vocais mistos de meninos e adultos forçados a executar a
complicada música o que criou o desejo de harmonia que veio a dar no ór-
gmo,faux bourdon e outras formas primitivas de harmonia.
O enriquecimento da música litúrgica nos mosteiros difundiu-se às
catedrais e igrejas colegiais, a muitas das quais se juntaram escolas de
canto por considerável tempo. Fundou-se uma escola de canto para aten-
der à Basílica de York em 627; a Escola da Catedral de Salzburg data de
774. O cristianismo chegou tardiamente à Alemanha setentrional, mas o
mosteiro da Igreja de São Miguel em Lúneburg foi fundado em 995. A
Catedral de Lúbeck foi fundada em 1270 com sua escola de canto; a prin-
cipal igreja de Darmstadt, a de Santa Maria, com a sua escola, em 1369.
Anexaram-se escolas de vários tipos a igrejas semelhantes, como o foram às
igrejas colegiais agostinianas, como a de Santo Tomás em Leipzig (institui-
ção de notável consequência para a história da música, fundada em 1212)
e à igreja que no século XIX veio a ser a Catedral de Manchester. Essas
escolas viram-se no dever de ensinar. Isso por sua vez implicava o ensino da
música, pois em 1003 a Patrologia Latina declarava que "em toda escola
deve haver meninos para cantar, e eles devem ser separados e educados na
escola de canto".
A escola de canto existia para preparar meninos em música antes de
examinar até que ponto e de que modo dar-lhes educação geral. A Thomas-
schule de Leipzig dava ensino a meninos pobres dotados de boas vozes que
pudessem ser instruídos para participar da música litúrgica. Os meninos
dessa escola cooperavam nos funerais e nas procissões para levantamento
de verbas na cidade; eram pensionistas e os seus prédios de moradia come-
çaram em 1254, embora suas salas de aula continuassem a ser nos edifícios
da catedral. À medida que Leipzig crescia, a Thomasschule via-se forçada a
desempenhar dupla função: escola de canto para meninos pobres, que con-
tinuavam internos, e escola elementar para os filhos dos comerciantes da
cidade, que eram externos.
Desse modo, em fins do século X o preparo musical de meninos con-
vertera-se numa necessidade litúrgica e as escolas de canto tornaram-se uma
forma de educação que era em geral o primeiro passo para o eventual pre-
paro ao sacerdócio. Quando a Catedral e o Convento de Norwich foram
criados em fins do século X I , o primeiro bispo da Sé, Hubert de Losinga,
32 H I S T Ó R I A S O C I A L DA MÚSICA
* Os organistros mais antigos não tinham teclas. Eram uma espécie de viele, de três
cordas, vibradas mediante uma roda a manivela.
36 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
o moteto, eram acréscimos ao texto do ritual e podiam por isso ser trata-
dos com maior liberdade pelo compositor. O moteto, que se tornou a
mais influente das formas musicais primitivas, aparentemente introduziu-
se na missa como acréscimo musical que se seguia ao Gradual. O Gradual
era cantado, como o cantochão sempre fora, por todo o corpo de cantores,
ao passo que o moteto era função de qualquer grupo de cantores prepara-
dos para executar a polifonia.
Naturalmente, o moteto tirou vantagem das liberdades implícitas
em ser uma intromissão emocional extralitúrgica e devocional no serviço.
N ã o raro tinha um texto, ou pelo menos se referia a ele, usado na liturgia
em outros contextos, de modo que tinha também um cantochão em seu
teor como em sua base musical, mas evoluiu numa variedade de aspectos
estranhos e objetáveis para os tradicionalistas. Ele admitia acompanha-
mento instrumental e juntava diferentes textos nas diversas vozes; havia
mote tos nos quais quatro ou cinco notas de uma melodia cantochânica
eram tudo de que o compositor precisava; era, em outras palavras, amais
fecunda e influente das formas que a Igreja medieval desenvolvera, e os
desafios que oferecia levaram a considerável evolução da técnica. Essa a
razão pela qual em pouco tempo se transferiu das salas de banquete da
aristocracia e veio a se tornar uma forma secular e religiosa — não raro
parecendo uma canção para solo vocal com as suas demais partes poli-
fônicas destinadas a instrumentos.
Isso não isentava o compositor do contato com as palavras essenciais
da liturgia. Só era permitido ao compositor glorificar o serviço mediante
acréscimos aos seus textos. Os tropos davam oportunidade ao escritor das
Clausulae mas o prendiam de antemão a uma melodia cantochânica e ao
texto que cresceu nela, de modo que, com o tempo, o Conductus e o mo-
teto mais livres foram mais promissores na evolução musical.
Embora o trabalho dos compositores fosse extralitúrgico, expunham -
se aos invariáveis argumentos sobre o uso de música excessivamente com-
plicada no culto. Quando o canto da missa e dos ofícios, relativamente
cedo em sua história, ficou tão complicado que só cantores treinados
podiam executá-los bem, as autoridades mais severas protestaram, alegando
que a magnificência da música desviava a atenção das palavras do ritual, e
observavam também que os movimentos, gestos e expressões faciais dos
cantores ao cantarem música difícil eram, por sua vez, pouco edificantes
e perturbadores da atenção. A vitória da música sobre os seus detratores
mostra-se pelo simples fato de que o refinamento do canto tornou-se cos-
tumeiro por toda a Europa. Quando os estilos musicais mais revolucioná-
rios irromperam na música religiosa nos séculos X I e X I I , igualando pelo
som o vigor e inconvencionalidade dos edifícios nos quais ela era cantada
e a riqueza da decoração visual que eles admitiam, o espírito reacionário
exprimiu-se vigorosamente.
40 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
Para que tem a igreja tantos órgãos e instrumentos musicais? Para que fim,
pergunto, esse terrível soprar de foles, exprimindo mais os estrondos do trovão
que a suavidade da voz? Para que servem a contração e inflecção da voz (...).
Enquanto isso, o povo conivente, tremendo e espantado, admira o som do
órgão, o ruído dos címbalos .e instrumentos musicais, a harmonia de gaitas e
trombetas.1
1
Citado em H. Davey. History of English Music. 1921,2? ed.
2
Citado em H.E. Wooldridge. Oxford History of Music. V. I .
A IGREJA MEDIEVAL 41
3
Citado em Ernst Tittel. Oesterreichische Kirchenmusik. Verlag Herder, Viena,
1961.
42 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
depois, Machaut seguiu para a corte do rei de Navarra até que as tensas
relações entre Navarra e a França o persuadiram de que seria prudente
voltar ao seu país natal. Tornou-se funcionário da corte francesa e passou
depois ao serviço do duque de Berry, até que se aposentou e obteve um
canonicato na Catedral de Reims.
Machaut, portanto, escreveu música não para um coro no qual can-
tasse ou que ensaiasse, mas para patrões aristocratas; não era músico espe-
cialista, mas compositor de música religiosa e secular de vários estilos,
adaptando o moteto a palavras seculares com um solo vocal acompanhado,
ao que parece, de instrumentos que assumiam o lugar de vozes mais graves.
Também compôs canções de todos os géneros trovadorescos. Suas obras
eram cantadas onde quer que ele viajasse com os seus patrões reais, e con-
servam-se em 32 manuscritos datados durante a sua carreira, algumas delas
aparentemente escritas sob a sua supervisão e todas provavelmente feitas
para agradar os monarcas e nobres com quem ele estivera em contato. Ele
foi, por assim dizer, o primeiro compositor com a incumbência de estar
sempre à disposição e escrever qualquer música, religiosa ou secular, exigida
para todas as ocasiões.
Existem registros escritos do século X I V que esclarecem as condições
sob as quais os músicos de igreja trabalhavam e quanto aos seus deveres.
Em Viena, por exemplo, os regulamentos da Catedral de Santo Estêvão,
em 1365, estipulavam que tanto o ofício diário como o votivo de Nossa
Senhora fossem cantados todo dia, mas nada fixavam quanto ao tipo de
música a ser utilizado. O regente do coro de uma catedral, sempre um dos
vigários, tinha deveres estritamente determinados que nos permitem saber
como era a vida musical da instituição que os empregava; por outro lado,
a noção de um coro medieval de meninos é dada pela Lenda da prioresa
de Chaucer:
Num lugar remoto da Ásia havia uma escolinha cristã aonde compareciam
rapazes de sangue cristão, para aprender, ano após ano, a ler e a cantar, que é
em geral o que se ensina às crianças.
Entre os alunos havia um de sete anos, filho de uma viúva, o qual frequen-
tava assiduamente a escola e tinha por costume ajoelhar-se e rezar uma Ave-
Maria sempre que via a imagem da mãe de Cristo, estivesse onde estivesse.
Porque assim havia ensinado a viúva a seu filho, dizendo-lhe que devia
honrar em qualquer ocasião a bem-aventurada mãe de Cristo. E ele nunca se
esquecia da lição, porque o bom filho aprende logo. E agora que conto esta
história, lembro-me de são Nicolau, que, ainda muito jovem, adorava a Cristo.
Aquele menino, enquanto estudava em seu silabário, ouvira os mais velhos
cantarem o Alma Redemptoris, ao recitarem as antífonas, e, aproximando-
se deles, aprendera as palavras e a melodia do hino, até saber de cor todo o
versículo.
48
A DIFUSÃO DA POLIFONIA DO NORTE 49
1
Manfred Schuler: Zur Geschichte der Kapelle Papst Eugens IV. Acta Musicológica.
1968, Fase. IV.
A DIFUSÃO DA POLIFONIA DO NORTE 51
feitas doações das cidades para substituir os vigários clericais do coro por
profissionais leigos. Os negociantes abastados não apenas faziam doações a
catedrais e igrejas; fundavam também irmandades religiosas que tinham
entre as suas normas o dever de sustentar os serviços diários com coro e
pleno acompanhamento musical. No século X V temos o exemplo do laicato
que levou o Capítulo da Catedral de Antuérpia a aplicar certa parte das
rendas de suas prebendas no pagamento de cantores profissionais e para
aumentar o tamanho do coro; em 1443, quando Ockeghem o integrou com
a voz de soprano, a Catedral de Antuérpia tinha 25 cantores de música
polifônica na ala dos cantoris, e 26 na ala dos decani para o cantochão; em
1480 tinha perto de 60 no coro. Se, como é razoável afirmar, as grandes
coisas na arte, arquitetura e música religiosas dependiam da riqueza da
nova classe média, isso se aplicava especificamente à região mais urbaniza-
da da Flandres e dos Países Baixos do que a qualquer outra parte da Europa.
A ligação entre prosperidade e o estado das artes ocorreu a Charles
Burney quando ele examinou a história da música nos Países Baixos;
"Como as artes polidas são filhas da prosperidade e dependentes dos exce-
dentes para o seu sustento", escreveu ele, 2 "é natural supor que elas prospe-
rassem naquela época". O grande progresso na vida urbana nos séculos X I I
e X I I I criou o desejo de música como também as instituições que podiam
ampará-la. CKgrandes corais das cidades do Norte preparavam excedentes
de cantores que podiam viajar através da Europa levando consigo o estilo
flamengo, e também músicos altamente dotados e qualificados para manter
os elevados padrões em seus países. Os fatos económicos podem não ter
efeito imediato nas artes, mas criam condições que as artes podem utilizar
como trampolim.
O comércio era necessariamente internacional. Os comerciantes
ingleses do mercado de lã viajavam de um centro que era às vezes Bruges,
outras vezes Antuérpia, e ainda Calais, onde de fato se estabelecera já em
princípios do século X V ; o centro às vezes era na Inglaterra, levando co-
merciantes do continente de Dover a Londres via Canterbury em conside-
rável número. Comerciantes da Espanha e Itália, assim como dos Países
Baixos, França e Alemanha, apinhavam os mercados, e havia um serviço
regular de marinha mercante dos Países Baixos à Itália já em princípios do
século X I I I . O que ocorria na arte ou na indústria de um país podia viajar
por toda a Europa: a música ouvida pelos viajantes na missa em Bruges,
Ghent, Antuérpia, Mechlin, Cambrai ou qualquer outro centro comercial
ou musical do Norte podia criar entre os viajantes um gosto por determi-
nado estilo de música ao ponto de levá-los a patrocinar semelhante progres-
blioteca Real da Bélgica, alguns dos seus mote tos estão em coletâneas
manuscritas na Biblioteca do Escoriai e no Códice de Trento. Suas canções
e motetos acham-se na Liederbúcher de Mellon e Schedel. Uma Ave Maria
aparece em 13 manuscritos e Obrecht utilizou-a como base para um mote-
to de sua autoria com o mesmo texto, assim como para o cantus firmus de
uma missa. Sua canção Tant a pour moy foi utilizada como cantus firmus
por Josquin, Agrícola e Tinctoris, o que significa ter ele viajado amplamen-
te pela Europa, embora o Walter Frye que trabalhou em Ely e fosse conhe-
cido em Londres continue sendo uma figura misteriosa sem qualquer vin-
culo com a música do continente.3
O progresso dos coros do Norte, e o número de músicos altamente
qualificados que eles preparavam, significavam um excedente vindo do Nor-
te, o qual levava consigo o estilo mais intrincado que lá se desenvolvera.
Até que o estilo do Norte fosse internacionalmente aceito, juntamente
com os métodos semelhantes de preparo existentes no Norte da França, na
Flandres e no Oeste dos Países Baixos, houve grande procura de cantores
bem preparados, adultos e meninos, por sua musicalidade e qualidade de
suas vozes, em todo o Sul da Europa, logo que o estilo de canto por eles
executado recebeu o prestígio da aprovação papal em Avinhão.
O centro dos primeiros experimentos e do desenvolvimento foi Paris.
A Guerra dos Cem Anos desviou o centro de gravidade para mais ao norte,
para a Flandres, onde a prosperidade comercial de cidades como Cambrai
(não pertencente à França até a sua anexação pelas guerras de Luís X I V ) ,
Arras, Mons, Liège, Chent, Lille, Bruges, Antuérpia e Ypres teve um efeito
sobre a música que pode ser percebido pelo número de compositores sur-
gidos dos seus corais ou que passavam pelo menos parte de suas vidas ser-
vindo nos corais.
A natureza ambulante do emprego palaciano, que do século X I V em
diante se tornou uma alternativa ao serviço da Igreja para músicos prepa-
rados, ajuda a explicar a popularização do estilo nortista. Os duques de
Burgúndia, embora considerassem Dijon como sua capital, estavam quase
sempre de andanças entre o Franco-Condado e o mar do Norte, levando
consigo suas capelas particulares de músicos. Um séquito de músicos acom-
panhava-os em suas missões diplomáticas, não apenas respigando novos in-
teresses musicais como também divulgando estilos e técnicas de sua corte; o
3
Sylvia W. Kenney. Walter Frye and the Contenance Angloise. Yale University
Press, 1964, estabelece a identidade de certo Walter Frye que foi chantre em Ely.
Grove (5? ed., 1956) sugere que o sobrenome inglesado é anglicização da antiga pala-
vra alemã Frai, o que indicaria ser autónomo o compositor e não estar a serviço ofi-
cial de alguma instituição. Grove, porém, antedata o trabalho de investigação da
Sr ta. Kenney.
A DIFUSÃO DA POLIFONIA DO NORTE 55
56
A NATURALIZAÇÃO DOS MENESTRÉIS 57
giosos não eram instrumentos "de Igreja", isto é, não associados com mú-
sica em outro lugar, mas aqueles que, conforme o provam as ilustrações,
eram também conhecidos fora dela.
O centro de gravidade musical, porém, não se deslocou da Igreja até
os inícios do Renascimento, quando se estabeleceu nas cortes reais e aris-
tocráticas. No entanto, a música foi parte da vida aristocrática em toda a
sua história, intimamente ligada ao culto e a todo tipo de entretenimento,
como de resto no show business moderno, com o qual a música secular
antiga parece ter muito em comum. Originariamente, ela era parte das
funções dos comediantes palacianos, que eram também jograis, acrobatas,
dançarinos, domadores de animais de circo e anunciantes cómicos; a pala-
vra juggler em inglês (saltimbanco, prestidigitador) tem a mesma raiz que o
termo jongleur medieval, que é o nome às vezes dado ao menestrel da
baixa Idade Média, quer fosse ele membro da criadagem inferior de uma
residência aristocrática ou membro do que, atualmente, chamaríamos de
teatro burlesco. Sobreviveram as regulamentações redigidas para orientação
dos músicos ambulantes de entretenimento na Alemanha medieval; o me-
nestrel tinha de "saber inventar, fazer ritmos, e ser bom espadachim; tocar
bem tambor, címbalos e o Bauernleier (realejo); jogar pequenas maçãs para
cima e apará-las na ponta de uma faca; imitar canto de pássaros, fazer tru-
ques com cartas de baralho e saltar através de argolas; tocar cítara e bando-
lim, cravo e guitarra, viola de sete cordas, acompanhar bem com a rabeca,
falar e cantar agradavelmente" Um jogral a serviço da aristocracia devia
entreter o seu patrão e os hóspedes dele em tudo o que desejassem, assim
como um comediante ambulante para ganhar a vida tinha de ser contador
de histórias, cantor, instrumentista, acrobata, prestidigitador e tudo o mais
que pretendesse convincentemente ser.
Conquanto seja apenas razoável supor que alguns aristocratas revelas-
sem certo gosto pela música com isso transformando os seus comediantes
palacianos em músicos especialistas antes do século X I , o maior fator no
desenvolvimento da música aristocrática parece ter sido o surgimento dos
trovadores do Sul da França, os trovistas, do Norte, nos séculos X I e X I I ,
e o aparecimento dos Minnesànger na Alemanha, cerca de um século de-
pois. A música, como as mercadorias e novas idéias de todos os tipos,
percorreu as principais rotas comerciais; mercadorias e maneiras vieram da
Itália à França passando pela Alemanha; a música secular dos trovadores
foi em direção oposta, aclimatando-se lentamente aos costumes alemães.
Também as rotas dos cruzados veicularam o novo estilo: afinal, um aristo-
crata otimista, sedento de glória, como Ricardo I da Inglaterra, se conside-
raria bem recompensado pelos serviços de um menestrel palaciano que
cuidasse do seu entretenimento e talvez de seus amigos, além de ter dotes
para imortalizar as suas proezas reais em canções. Tal assessor levaria con-
sigo, e divulgaria ao longo da jornada, as canções e a música do seu repertó-
58 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
rio normal. A canção, tal como se difundiu pela Europa, era originariamen-
te aristocrática, com uma temática majestosa e elevada, expressa em música
ritmada e cadenciada (diferente da maioria das músicas de Igreja) em uma
das poucas formas musicais fechadas e líricas, estritamente observadas,
que persistiram no Renascimento. Era acompanhada por algum instrumen-
to portátil que o menestrel ou cantor cavaleiro pudesse tocar, embora só
possamos conjecturar como devia ser esse acompanhamento. É difícil
saber se os cantores aristocráticos faziam regularmente a música para a
sua lírica, ou se alguém escrevia para eles; mas introduziram a palavra "me-
nestrel" nas línguas européias como termo rigoroso para designar um
músico que fosse cantor e executante apenas porque levavam consigo
alguém pertencente originariamente à irmandade dos jograis para asses-
sorá-los* musicalmente, e como servo acompanhar o canto e atuar talvez
como bagageiro. Na iconografia medieval, trovador e menestrel aparecem
juntos, o menestrel carregando uma viele, primitivo instrumento parecido
com o violino que se tornou tão comum a ponto de o seu nome ser quase
sempre aplicado ao seu executante, vindo mais tarde, as palavras "viele" e
"jogral" a ser intercambiáveis.
Trovadores, trovistas e Minnesingers eram em geral aristocratas, e por
isso tinham condições de mandar fazer coletâneas de suas composições e
outras canções por eles cantadas, e algumas delas sobrevivem. Todavia, só
nos séculos X I I I e X I V se levou a sério a tarefa de fazer coletâneas e cópias,
e a essa altura muitas delas inevitavelmente sofreram as variações e cor-
ruptelas da transmissão oral. Evidentemente, a idéia de juntar o nome ou
nomes do poeta e compositor, embora em consonância com o costume
medieval, teria sido impossível no caso de muitíssimas canções. Nesse ínte-
rim, os menestréis itinerantes e autónomos incluíam as novas canções e os
novos estilos em seus repertórios, e é bem provável que os próprios menes-
tréis compusessem extensamente no estilo trovista.
Havia sempre plebeus entre os trovadores e seus equivalentes, de
modo que a origem aristocrática, conquanto fosse o comum entre os trova-
dores, jamais foi condição para alinhar-se entre eles. Adam de la Halle — nas-
cido em meados do século X I I I , provavelmente em 1240, e que, de acordo
com o contemporâneo Jean Bodin, morreu em 1285 ou no ano seguinte —
era filho de um funcionário de classe média que às vezes ajudava o delega-
do de Arras. Adam, destinado às ordens eclesiásticas por seus pais, foi
enviado à Abadia de Vauxcelles em Cambrai, de onde fugiu para casar-se
com uma moça por quem se apaixonara. Depois, ao que parece, abando-
* Agora até uma criança imberbe, confortavelmente e, que mal sabe alinhavar três
palavrinhas, discute e fala e faz gracejos, é tida em conta e apreciada mais que o pró-
prio autor daquilo que ela diz. (N. do T.)
1
Ver Capítulo 2, pp. 42-43.
A NATURALIZAÇÃO DOS MENESTRÉIS 61
Meu Senhor, não fosse pelo amor pessoal que sua Alteza Real mantém por
Vossa Graça, certamente teria tirado de vossa capela não só os meninos, mas
2
Sir John Hawkins. A General History of the Science and Practice of Music. 1776.
66 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
Cornyshe elogia e aprecia grandemente a criança da sua capela enviada para cá,
não só por seu canto firme e claro como também por sua boa e habilidosa
leitura musical, e de igual maneira enaltece o Sr. Pygotte [mestre do coro de
meninos de Wolsey] pelo ensino dado a ele.
* Aconteceu que nascido fui/de boa linhagem e sangue nobre/ na terra de Essex, na
bela aldeia/que Rivenhall exalta ;/na aldeia perto de Banktree,/onde minha infância
passei e/onde meu nome com boa reputação/foi sempre lembrado .//Era eu ainda muito
novo, riem falava,/nem as lágrimas/que a mãe chora/à partida do filho/comoveram
meu pai./Mas ele achava/que eu devia querer e poder/ter o gosto de cantar.// Tempos
cruéis!//Por eu ter voz, devia (sem/escolha, mas forçado) como/cavalo de posta ser le-
vado, /pois homens estranhos a isso /estavam autorizados./Em alta voz e sem descanso/
cantar no coro, aqui e ali/o que me causa tristeza lembrar .//Mas subi na carreira/e
por amizade fui levado a São Paulo/Em melhores condições e prestígio/e onde
com arte/com Redford como em nenhum lugar/Ganhei rèputação/na arte da música.
(N. do T.)
68 H I S T Ó R I A S O C I A L DA MÚSICA
69
70 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
ver sua vida social e portanto abrindo espaço aos músicos cujos serviços
eram uma necessidade para obter posição muito mais independente que a
de músico a serviço de algum aristocrata relativamente menor. O emprego
público era vitalício, mas numa corte dependia do gosto e bem-estar finan-
ceiro de um só patrão; o músico citadino que cuidasse da carreira sentia-se
garantido — fato que deu a Johann Sebastian Bach algo de que se queixar
quando fez um memorando de melhorias sugeridas à consideração do con-
selho da cidade de Leipzig em 1730: alguns dos músicos estiveram durante
muitos anos a serviço do seu predecessor, que já estava morto há quase dez
anos, e, segundo declarava, "sóprestavam para aposentadoria compulsória".
As guildas de músicos começaram a proliferar durante o século X I V .
São Galeno, na Suíça, tinha uma Cidade Música em 1272; os arquivos de
uma guilda londrina começaram em 1334, e os da guilda de Basle recuam a
1350. Em 1391, a remuneração dos quatro vigias de Bristol para exercer
função pública era de cinco marcos (e a mesma soma, por coincidência,
era o subsídio do lorde prefeito para o vinho). Nurembergue nomeou um
Stadtpfeifer e seu ajudante em 1377; os arquivos de Lincoln mencionam
um vigia pela primeira vez em 1399. E m todo o século seguinte foram cons-
tituídas essas guildas municipais de músicos nas cidades importantes e onde
houvesse uma população necessitada de um vigia e que pudesse pagar por
música nas grandes ocasiões sociais da vida privada dos seus cidadãos. Em
1479, a cidade de Leipzig nomeou Hans Nagel como Stadtmusikus, e seus
dois filhos, um como jornaleiro e o outro como aprendiz. O salário dos três
juntos era de 40 florins anuais, além de receberem uniforme. E m Canter-
bury, em 1498, cada um dos vigias recebia uma libra esterlina por ano.
Suas obrigações eram em geral idênticas em toda a Europa, exceto
na Itália, onde ser membro da guilda de músicos não impedia automatica-
mente que se fosse membro de uma guilda de outro ofício; os pifferi de
várias cidades italianas — Florença, por exemplo — não dependiam de
eventuais cargos públicos e eventuais empregos pelos cidadãos, mas ocupa-
vam-se em outros ramos da música como emprego secundário. Benvenuto
Cellini, nascido em 1500, era bom flautista e cornetista, aluno de seu pai,
que, segundo as Memórias de Benvenuto, cantava bem, tocava flauta e
fazia "maravilhosos órgãos com gaitas de madeira, os melhores clavecímba-
los, violas, alaúdes e harpas", embora seu ofício fosse de entalhador de
marfim. Benvenuto explica como seu pai entrou para a banda de pifferi a
convite dos demais membros, que pertenciam à guilda exclusiva e orgulho-
sa dos tecelões de lã e seda, mas demitido por Piero de Médicis, temeroso
de que, gastando muito tempo com música, Cellini pai se dedicasse menos
à sua própria arte. Foi readmitido quando garantiu a Piero que o seu empre-
go oficial não seria prejudicado. A ambição frustrada do pai de Cellini era
fazer do filho um músico, e quando o menino lhe deixou claro que a
música significava relativamente pouco para ele — as Memórias dão ao leitor
MÚSICOS MUNICIPAIS - OS PROFISSIONAIS 73
salários mais altos, em razão das fanfarras duas vezes ao dia do alto da
torre Rathaus; eram empregados com exclusividade pela universidade ao
ensejo das cerimonias para graduação de mestres e doutores; eram contra-
tados pelo teatro durante as feiras anuais; tocavam nos torneios de tiro
na época de Pentecostes; ganhavam dinheiro tocando nas serenatas de Ano
Novo para pessoas ricas da cidade, e eram tratados preferencialmente em
questões de casamentos: só eles podiam tocar em cerimonias nupciais na
cidade, enquanto os recém-chegados só podiam tocar em "casamentos
pobres fora dos portões da cidade" ou no menos lucrativo de dois casamen-
tos celebrados no mesmo dia. A classificação oficial dos casamentos deixa
claro que o privilégio era zelosamente mantido. Uma Brautmesse, com
música de Stadtpfeifer e Kunstgeiger, ocorria de tarde; uma Halb-Braut-
messe, com música só dos Kunstgeiger, era celebrada de manhã; uma
Schlechten Hochzeit sem música era um modo pelo qual uma pessoa pobre
podia pagar as taxas dos músicos e só podia ser celebrada nas igrejas menos
importantes da cidade. Não obstante as regulamentações e tabelas de preços,
não era fácil para os músicos receberem os pagamentos estatuídos, de
modo que Johann Christoph Bach, tio de Johann Sebastian (que foi orga-
nista de Arnstadt de 1666 até sua morte em 1693, e viveu em constante
acrimônia com o conselho da cidade e seus colegas hierarquicamente
superiores da Stadtmusikus), tentou sem êxito que os pagamentos das
músicas de casamento fossem feitos adiantadamente, logo que confirmados
os banhos. Todavia, em Leipzig, as duas organizações juntavam-se para inú-
meros fins, e como os Kunstgeiger aprenderam a tornar-se mestres dos
instrumentos Stadtpfeifer, na falta destes últimos os músicos eram auto-
maticamente recrutados entre os Kunstgeiger.
Os músicos citadinos alemães tinham o dever de atender à música
cantada e tocada na igreja. Antes da Reforma, o exemplo da nobreza e seus
músicos palacianos tornaram o acompanhamento instrumental dos serviços
uma prática normal. A guilda dos músicos de Viena, a Nicolaibruder,
fundada no século X I I I , já acompanhava os serviços na Catedral de Santo
Estêvão desde muito cedo, antes mesmo que a igreja atingisse a posição
de catedral. A música religiosa parece ter sido normal entre a obrigação dos
músicos a ponto de por muito tempo não ser necessário mencionar nos
arquivos públicos.
Nos arquivos de Amberg, na Baviera, por exemplo, a primeira menção
aos Stadtturmer que produziam a música da cidade só é feita em fins de
1708. Entretanto, trata-se de uma petição de umTOrnier-jornaleiro,Andrea
Schwãrz de Auerbach, que desejava uma promoção após completar os seis
anos como jornaleiro e ter comprovado sua capacidade como trompetista
e fiel vigia. Isso indica que os músicos de Amberg já existiam antes que
Schwãrz solicitasse promoção na carreira. Não há registro das obrigações
deles — os deveres deviam estar subentendidos —, mas a importância da
78 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
elevada pelo menos durante a geração seguinte. Mas cem anos antes houve-
ra a querela entre o chantre e os Stadtpfeiferei em Amberg, e mais ou
menos à mesma época, os músicos de Nurembergue receberam ordem de
ensaiar na Prefeitura e na presença de um subprefeito instruído em música;
era o único jeito de garantir que eles se dessem ao trabalho de ensaiar.
Como qualquer outra organização musical, parece que eles também tinham
os seus altos e baixos.
Entretanto, a história das guildas de músicos nem sempre é bela, e
não raro surgem aspectos hilariantes que desviam a atenção do verdadeiro
curso da música. Em cidades como Armtadt, onde a música era propiciada
por várias gerações deste ou daquele membro da família Bach, e sede de
uma corte pequena e não de todo rica, o músico e seus homens eram admi-
tidos na orquestra ducal. Outras cidades por sua vez empregavam músicos
para tocatas públicas. Erfurt, por exemplo, acrescentou um alpendre à
prefeitura em 1687 como pálco do qual os músicos davam concertos
públicos nas tardes de sábado e quartas-feiras, e Kuhnau escreveu entusias-
ticamente sobre as apresentações dos músicos de Leipzig. O mínimo que se
pode dizer sobre a contribuição prestada à música pelas bandas citadinas é
que elas criaram certo gosto pelos concertos públicos.
Na Inglaterra, os vigias jamais atingiram importância comparável a
essa. Os problemas deles, e semelhantes as medidas tomadas para resolvê-los,
eram em geral os mesmos defrontados pelos músicos na Alemanha e na
Itália. Quando os funcionários de Ricardo II investigaram as atividades das
várias guildas em 1389, incluíram um relato das Ordenações da Comunida-
de de Músicos, elaboradas em 1350; a Comunidade estava adequadamente
constituída, com autonomia, mas, apesar de chamar-se Guilda dos Menes-
tréis da Cidade de Londres, era uma associação formada apenas para fins
sociais e caritativos. Nenhuma guilda autêntica, tais como existiam em
York, Beverley, Bristol e em outros lugares do país, é mencionada em
Londres até 1500.
Os músicos ingleses defrontavam os mesmos problemas e organiza-
vam-se para solucioná-los do mesmo modo que os músicos das guildas do
continente. Toda cidade, grande ou pequena, tinha os seus vigias, os quais
ela protegia ao assegurar o monopólio da música local, e a quem encontrava
meios de remunerar; em alguns locais, os guardas tinham terras isentas de
ónus para cultivar; em outros, eram diretamente pagos pelo conselho da
cidade; em outros ainda, os cidadãos pagavam tributo para fins de manter
os seus músicos. Em meados do século X V , todos esses vigias estavam
ocupados em deveres nos quais sua função como sentinela da cidade eram
quase esquecidos em favor dos seus deveres como músicos. No tempo de
Isabel, tinham permissão para excursionar e, ao que parece, houve ocasião
em que se afastaram da cidade durante três meses. Em 1579, os vigias de
York foram pagos pela cidade de Nottingham para lá se apresentarem em
MÚSICOS MUNICIPAIS - OS PROFISSIONAIS 81
1
William Kemp. Kemp'sNine Daies Wonder. Londres, 1600.
* Esta e outras citações em inglês medieval são por nós traduzidas e pontuadas em
estilo moderno. (N. do T.)
82 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
2
Op. cit.
MÚSICOS MUNICIPAIS - OS PROFISSIONAIS 83
dantes". Foi de maior importância para Hawkins o fato de que dois notá-
veis músicos surgiram dentre os vigias. "Apesar disso, Thomas Farmer,um
dos vigias de Londres, recebeu o grau de bacharel em música pela Univer-
sidade de Cambridge. Ele compôs muitas canções impressas em coletâneas
da época." (Farmer, que morreu aproximadamente em 1690, só se gra-
duou em 1684, e de 1671 a 1680 foi membro da Banda de Música do Rei;
a primeira de suas composições pode ser datada de 1672). "John Ravens-
croft", continua Hawkins, "era um dos guardas da Tower Hamlets, e no
conjunto do teatro de Fields de Goodman era violinista ripieno, apesar de
que (...) podia tocar bem um concerto de Corelli ou uma abertura de
Handel". Ravenscroft morreu em 1745 aproximadamente, e foi notável
compositor para gaitas de foles, duas composições das quais Hawkins cita
como exemplos do género. 3
Foi elevadíssimo o número de Stadtpfeifer entre os bons composito-
res e, em virtude das suas muitas ocupações, as obras deles eram muito
mais ambiciosas que as canções de Farmer ou peças para gaita de Ravens-
croft. Alguns deles — pelo menos os cinco primeiros Bachs, por exemplo,
que serviam como músicos aqui e ali na Turíngia — foram compositores
de real mérito e obtiveram instrução na rotina da guilda, mas em cujas
vidas estiveram sempre envolvidos na execução de música ligeira e moder-
na. O advento do concerto público relegou os guardas a humildes funcioná-
rios de pouca importância. A história deles, como a de seus confrades con-
tinentais, é a da tentativa de organizar a profissão de músico de modo que
se satisfizessem as exigências adequadas a membros de outras guildas em
fins da Idade Média, mas que nunca foram fáceis de aplicar a uma profissão
tão amorfa como a música, que não é uma necessidade económica da vida
e que, à medida que se difundiam a educação e os gostos, inevitavelmente
enfrentava a concorrência amadorista e mais barata.
Nunca houve um período na história em que os músicos não estives-
sem empenhados numa amarga luta para manter o seu monopólio. Na
Igreja, pelo menos, os Stadtmusikanten das cidades que não fossem resi-
dência de algum aristocrata local começaram a tocar o trompete apesar do
monopólio do Trompeterkameradschaft alemão, organização que tecnica-
mente não era uma guilda, uma vez que os seus métodos de admissão e
preparo eram diferentes. Fora .da Igreja, todas as bandas citadinas começa-
ram a suprir a necessidade de trompetes tocando o trompete de vara — ins-
trumento nem palaciano nem militar - e a trompa em dó, aguda, que pro-
duzia um som semelhante ao do trompete.
Os monopólios de guildas rivais eram, evidentemente, arcaicos. Os
Stadtpfeifer aprenderam a tocar o trompete com os seus demais instrumen-
3 Ibid
84 HISTÓRIA S O C I A L DA MÚSICA
4
Christoph Helmut Mahling. Múnchener Hoftrompeter und Stadtmusikanten im
spaten 18 Jahrhundert In Zeitschrift ftir Bayerische Landesgeschichte. 1968, nota
31, tomo 2.
6 MÚSICOS MUNICIPAIS - OS A M A D O R E S
85
86 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
Não fico satisfeito com o cortesão se ele não é também-músico, e além de sua
habilidade e compreensão no livro, é também destro em vários instrumentos.
Pois, ponderando bem, não existe pronta cura e remédio de mentes fracas mais
completos e valiosos do que a música. E principalmente nas cortes, onde (além
do alívio dos aborrecimentos que a música proporciona a cada pessoa) muitas
coisas são utilizadas para agradar às mulheres, cujos corações ternos e doces
logo são penetrados pela melodia e alimentados de suavidade. Portanto, não
admira que antigamente como hoje se mostrem inclinadas pelos músicos e
tenham a música como o mais aprazível alimento do espírito.
91
92 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
1
Traduzido em Gustave Reese. Music in the Renaissance.
* O modo inglês usam com graça,/ Seguindo fielmente a Dunstable,/ E por isso
depressa aprenderam/ A fazer sua música alegre e brilhante. (N. do T.)
MÚSICA PALACIANA RENASCENTISTA 93
do partiu para Florença, onde o coro papal estava instalado na época, com
Nicolas Grenon. A vida de Grenon parece ter sido muito ativa. Ele aparece
nos registros da Burgúndia em 1385, mas sucedeu a seu irmão Jean como
cónego do Santo Sepulcro em Paris de 1399 a 1405, quando se tornou
mestre do coro em Cambrai e, por acaso, professor de Dufay. Em 1425
viajou para a Itália, onde foi mestre dos meninos no coro papal até 1427.
Voltou então para a Burgúndia e esteve a cargo da música na Catedral de
Bruges em 1437, mas reaparece em Cambrai em 1440.
Dufay nasceu aproximadamente em 1400 e tudo indica que perten-
ceu ao coro da Catedral de Cambrai, para o qual entrou com nove anos de
idade. O bispo de Cambrai foi importante delegado ao Concílio de Cons-
tança entre 1414 e 1418; foi assessorado por 34 clérigos de sua diocese e
pelo menos por alguns dos músicos de sua catedral, entre eles o menino
Dufay. Foi provavelmente ali que Dufay se encontrou com Carlo Mala-
testa, duque de Rimini, com quem parece ter passado alguns anos, pois
um conjunto das suas composições escritas entre 1419 e 1426 comemora
fatos ocorridos na corte de Malatesta e ná história da família do duque.
Em 1427 estava ele na Universidade de Bolonha, com licença de ausen-
tar-se de Cambrai, aparentemente como estudante. Um ano mais tarde
estava no coro papal, onde permaneceu até 1437, tempo em que manteve
valiosas relações com o duque de Savóia, em cuja corte parece ter gozado
as suas férias, acumulando ao mesmo tempo impressionante volume de
benefícios e prebendas, que mantinha indiretamente,mas que lhe rendiam
polpudas somas.
Ao que parece, a sua experiência no Concílio de Constança foi sufi-
cientemente ativa para garantir-lhe a nomeação como um dos delegados de
Cambrai ao Concílio de Basiléia em 1438, mas ele passou apenas um ano
na longa série de encontros que ampliou o poder do papa sobre a Igreja
numa tentativa de acabar com a heresia e desafeição na Europa. De 1440
até a sua morte 37 anos depois, a política eclesiástica e a música parece
não se terem misturado em sua vida; sua casa deve ter sido em Cambrai,
mas o marquês de Ferrara encomendou-lhe obras e pagou bem por elas;
também recebeu do Capítulo de sua catedral por novas obras - composi-
tores anteriores em qualquer instituição eclesiástica escreviam música
como rotina - foi incumbido de supervisionar as cópias de música, de
modo que vem de textos autênticos o que sabemos sobre elas, e teve a seu
cargo o coro de meninos. Sua experiência fez com que fosse enviado numa
missão ao duque da Burgúndia. No final de sua vida recebeu novas recom-
pensas vultosas pela música com que enriqueceu os serviços da catedral, e a
sua reputação musical à época de sua morte era internacional num sentido
inaplicável a qualquer de seus predecessores. Ao mesmo tempo, o grau de
bacharel em leis que lhe foi conferido parece ter sido não um tributo à sua
música, mas reconhecimento do seu notório saber como diplomata.
94 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
O filho e o neto de Filipe, João Sem Medo e Carlos, o Bom, que lhe sucede-
ram em 1404 e 1419, mediante calculados casamentos, guerra e compra,
anexaram a seus territórios o restante da Bélgica, Zelândia, Frieslândia e
Norte da Holanda, além de outras possessões mantidas em feudo com a
França. Politicamente, a Burgúndia Maior no século X V era uma espécie
anómala de ducado, parte dela mantida pelo rei francês, que era o senhor
feudal do duque, e o restante livre de vínculos feudais.
A política burgúndia transformou-se num esforço para obter com-
pleta emancipação da suserania francesa e fundar um Estado independente
com domínio sobre todo o curso navegável do Reno, da Suíça ao mar do
Norte, controlando as rotas comerciais de norte a sul num empreendimen-
to altamente lucrativo. A virada da aliança da Burgúndia com a Inglaterra
durante o reinado de Henrique V e a primeira metade do reinado de Hen-
rique V I , até a coroação do delfim como Carlos V I I — lance político pelo
qual Joana d'Arc reacendeu o entusiasmo francês pela causa do país — e
depois com a França até que os ingleses fossem expulsos, foi causada pela
busca de um objetivo que exigia que os interesses burgúndios pudessem ser
mais bem atendidos aliando-se com o lado vencedor.
As bases da música burgúndia - estilo ou síntese dos vários estilos
gerados nos domínios burgúndios ou em terras com as quais os músicos
burgúndios entraram em contato, mais que uma "escola" nacional — foram
lançadas no reinado de Filipe, o Destemido; explorou as tradições musicais
das cidades holandesas das quais extraiu muitos dos seus melhores músicos,
cantores e compositores. Filipe, como seu filho e neto, era também músi-
c o ^ , como filho do rei de França, era natural que recrutasse o pessoal
do escalão superior de sua capela entre os músicos parisienses e o ocupasse
sobretudo com música parisiense. João Sem Medo, aparentemente im-
pressionado pelas dimensões e realizações dos músicos de Henrique V ,
quando o rei inglês e o duque burgúndio estiveram ocupados nas negocia-
ções que levaram ao Tratado de Troies, fundou um coro e conjunto de ins-
: umentistas de equivalente tamanho, de modo que, no reinado de Carlos,
o Bom, a Burgúndia se tornou o centro de onde a polifonia de novo estilo
se irradiou para toda a Europa. A partir dos primeiros 15 a 26 músicos,
a capela aumentou, vindo da Holanda os acréscimos posteriores; o grupo
aumentou ainda mais com os menestréis do duque - um corpo cosmopo-
lita de trompetistas, violistas, harpistas, alaudistas e organistas. Desde o
início os burgúndios empregaram ou patrocinaram compositores importan-
tes e deram apoio a quem estivesse em condições de inovar. Entre os músi-
cos de Filipe, o Destemido, estava Pierre de Fontaine, um compositor de
atraentes canções. Jean Tapissier, cuja música religiosa sobreviveu através
de cópias em Bolonha e na Bibllioteca bodleiana, era valet de chambre de
João Sem Medo, título que indica ser ele empregado não.apenas como mú-
sico mas em cargo necessário oficial e não musical de modo que os regis-
98 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
quase toda a música secular de Isaac bem como quase toda a música flo-
rentina de carnaval não tenham sobrevivido, ao passo que a música religiosa
dele e de outros de modo algum tão notáveis seja hoje acessível. A Igreja,
quisesse ou não criar um repertório de obras para uso continuado, tinha
instalações para conservar os manuscritos e gostos para escolher os manus-
critos que cumpria conservar. O que se escrevia para a Igreja e o que, por-
tanto, a Igreja havia comprado não era propriedade individual para se des-
fazer ao acaso; era guardado, mesmo que não a quisesse. A música secular
era escrita apenas para determinada ocasião, em geral no estilo mais em
moda, e depois esquecido. Era propriedade dos Sforzas, dos Gonzagas, dos
Médicis, dos d'Estes, pessoas cuja riqueza existia para ser dissipada como
ostentação e manter uma reputação de magnificência. Assim, o que se es-
crevia para uso secular era apreciado e depois descartado, e o que nos vem
do carnaval de Florença e sua música na época de Heinrich Isaac e Louren-
ço, o Magnífico, chega-nos dos relatos tais como os que o arquiteto Anto-
nio di San Gallo escrevia em seu diário:
Citado em The Golden Age of Italian Music, de Grace 0'Brien. Jarrolds, Londres.
104 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
vam em condições em que tal liberdade lírica e leveza era estimulada como
também esperada da parte deles. Enquanto grande parte da música secular
de inícios e meados do Renascimento é questão de registro verbal e discus-
são, havendo poucas partituras hoje disponíveis para execução ou estudo,
o fato era que os burgúndios e flamengos — seja qual for o nome genérico
que lhes apliquemos - obtinham a sua revolução técnica numa cultura
musical que evoluía em sentidos bem diferentes daquela em que haviam
sido criados, e que a maior parte deles gozava do estímulo da nova atmos-
fera. A música dependia não dos ritmos em prosa da missa e da Bíblia, mas
de formas regulares em verso, de equilíbrio de linhas e estrofes;apresentava
uma nova espécie de liberdade expressiva e novo tipo de disciplina técnica.
As consequências podem ser percebidas na evolução da música para a
missa. As sequências do comum vêm da ópera de Machaut, mas são nor-
mais até o século X V . A dominância do cantochão exigia que a fundação
delas fosse um canto tradicional aceito no teor; daí o título das missas
como, por exemplo, o Is te Confessor, Assumpta est Maria e Ecce Sacerdos
Magnus de Palestrina, que difundia suas texturas polifônicas pelo canto com
os quais esses textos latinos, como antífonas ou motetos, estavam associa-
dos. No século X V as melodias de cantochão tornaram-se "parodiadas",
isto é, convertidas em música mensurai, regularmente rítmica. Já na Bula
de 1323, o papa João X X I I protestava contra a intromissão de música se-
cular na música de liturgia, mas a técnica de parodiar uma melodia de can-
tochão começava a obliterar as diferenças entre a música tradicional da
Igreja e as canções que os músicos criavam fora dela. Não demorou muito e
a técnica de parodiar começava a perverter os antigos modos de cantochão
em tonalidades modernas. Além disso, a concentração na música secular e
o atrativo do ritmo e tonalidade regulares não só acrescentavam simplici-
dade melódica e senso rítmico de direção ao cantochão; modernizavam-no
no sentido de que lhe davam as qualidades mais admiradas na música do
mundo fora da Igreja.
Daí ao uso de canções populares como a base das composições litúr-
gicas foi apenas um passo. A técnica de tomar uma simples canção como
teor e tecer uma textura polifônica em torno dela era proibida pela Igreja,
mas uma técnica que dependia enormemente de pontos de imitação entre
as vozes era um bom disfarce do caráter profano mesmo se a melodia mun-
dana original não fosse suficientemente desmembrada pelo tratamento
para perder o seu caráter condenável. Por si mesma parece pouco provável
que a canção L yHomme armé tivesse sobrevivido para nós com mais vita-
lidade que talvez uma centena de canções populares do Renascimento.
Trata-se de uma melodia airosa, talvez uma canção popular, com bastante
variedade rítmica para ficar na memória; mas tornou-se a base de certa
missa de quase todo compositor da época, de Dufay além de Palestrina até
Carissimi, bem como de vasto número de sequências de compositores cujos
MÚSICA PALACIANA RENASCENTISTA 105
3
Ver Capítulo 4, p. 65.
MÚSICA PALACIANA RENASCENTISTA 107
viajado pela Inglaterra e certamente o fez pela França; trabalhou dois anos
em Antuérpia e, ao que parece, esteve em boas relações com a nobreza
próspera e amante da música. Antes de chegar a Munique, já tivera vasta e
variada experiência musical e considerável conhecimento do mundo.
Chegou à corte bávara nominalmente como cantor, e só em 1563
aparece nos registros como Kapellmeister. Entretanto, desde o início teve
uma situação privilegiada, com salário mais alto que o de outros cantores
e mesmo superior ao de Daser, Kapellmeister às ordens de quem traba-
lhava a princípio, e depois de um ano no serviço bávaro já recebia 200
florins por ano.
Daser e Zauner, seus predecessores imediatos, foram ambos músicos
de considerável importância. Daser parece ter-se ajustado perfeitamente ao
gosto de Albrecht V . Foi feito Kapellmeister em 1552, e recebeu un\ título
de nobreza um ano depois. Em 1563 foi aceita a sua demissão por motivo
de "prolongada doença". A realidade por trás do que parece ter sido pre-
texto imaginado para permitir que o duque lhe pagasse uma pensão após
o término dos seus serviços deve ter sido que Daser tornou-se protestante
numa corte católica. Naquela época os serviços protestantes eram permiti-
dos na Baviera, mas um compositor palaciano era responsável pela música
e pela execução de ritos católicos. Se seu Kapellmeister houvesse sido dis-
pensado por motivos religiosos, o arquiduque poderia ter dificuldade em
agir de algum modo em seu favor, e a má saúde de Daser, se o mantivesse
em Munique como cidadão privado até que o culto protestante fosse proi-
bido em todo o país em 1572 (ele foi permitido pela Dieta de Ingolstadt
em 1563), não o impedia de tornar-se Kapellmeister na corte luterana em
Stuttgart, onde permaneceu até falecer em 1589; a pensão bávara foi paga
à sua viúva pelo menos 12 anos após sua morte. Ele se manteve em corres-
pondência com Lassus, cuja música apresentou em Stuttgart.
Zauner, que era consideravelmente mais antigo que Lassus quando o
compositor integrou a Kapelle como tenor viveu até 1577 como subordi-
nado do recém-chegado. Por sua vez, Lassus não foi o primeiro estranho a
ter emprego na corte bávara. A onda de cantores e músicos flamengos e
holandeses parece ter começado a avançar na Baviera com certo Matias, o
Holandês (que aparece nos registros de contas da corte como "Matthes
Nidlender") em 1552, mais ou menos à mesma época em que seu conter-
râneo Arnold von Bruck (cujo sobrenome pode indicar sua procedência de
Bruges) com os irmãos Vaet e Philip de Monte chegaram a Viena, e Johann
Walther chegava a Dresden. Logo no início da sua carreira em Munique
Lassus começou a grupar em torno de si certo número de compatriotas;
essa foi uma das consequências da grande expansão da Kapelle de Munique.
Em 1514 havia 18 músicos a serviço do arquiduque, e o número elevou-se
para 26 em 1551; um decreto de 1552 estabelecia como 33 o número má-
ximo de integrantes da Kapelle, mas, apesar disso, em 1579 o número ele-
108 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
tal como Lassus tivera como menino do coro em Mons. Os meninos coris-
tas de Lassus tinham de cantar em procissões pela cidade em ocasiões espe-
ciais, e a música, bem como o seu respectivo ensino, eram de responsabili-
dade dele. Como Lassus não teve ajudante até que Johann a Fossa integras-
se a Kapelle em 1569 (com um salário de 180 florins, o que indica a distân-
cia na posição de ambos) a capacidade de trabalho e de organização por
parte do compositor deve ter sido notável.
Merecem menção as procissões públicas, como meio de difundir mú-
sica mais que a palaciana e de outras ocasiões de certo raro interesse. So-
brevive uma instrução completa para a organização da procissão de Corpus
Christi de 1584, 4 indicando até que ponto ia a comemoração e a implica-
ção dos músicos palacianos. Todos os meninos da escola jesuíta e da cate-
dral tomavam parte, assim como os Stadtpfeifer e os membros das várias
guildas de ofícios da cidade. Vestiam trajes para participarem dos quadros;
alguns dos meninos tinham de entrar para a guilda dos barbeiros, e todos,
em roupas adequadas, cantavam e tocavam antiqua Musica Hebraeorum.
O rei Davi tinha de ser representado por um harpista, conduzindo 36 me-
ninos "grandes e pequenos" como anjos; os anjos adultos eram cinco
baixos e outros tantos tenores. Vinte e quatro meninos grandes do instituto
de caridade eram os peregrinos, seis ou sete deles tocando instrumentos:
violinos, alaúdes, cornetas, trombones ou quaisquer outros que soubessem
tocar. Sete anjos pequenos deviam cantar diante da Virgem Maria; a música
era em partes, e tinham de aprendê-la na escola. Nove anjos deviam cantar
em torno do Presépio, "pois o Kapellmeister Orlando havia composto uma
canção especial sobre o Natal de Cristo". Depois, cada estrofe do hino dos
peregrinos cantado pelos meninos da instituição de caridade devia ser
acompanhada pelos "anjinhos" que cantavam choraliter Sancta Maria, ora
pro nobis. Os ensaios para as partes dos corais dos meninos palacianos não
deviam ser no Kantoreihaus, mas no salão de bailes do palácio arquiducal.
A supervisão de toda a música ficava a cargo de Lassus; o mestre-de-ceri-
mónias era um camareiro palaciano, Caesare Bandelli.
Até 1579, quando a Kapelle atingiu o tamanho máximo, Lassus sele-
cionou cantores e musicistas, sobretudo meninos de talento com boas
vozes, oriundos de toda a Europa. Em 1560 Margaret de Parma ofereceu
ao estabelecimento de Munique "alguns cantores e meninos de coro", e a
oferta foi aceita. Em 1574 Lassus achava-se na Itália selecionando músicos,
comprando instrumentos e informando regularmente o arquiduque por
carta. Os registros da corte anotam a expansão da Kapelle através da im-
portação de talento estrangeiro. Em 1557 é anunciada a chegada de "qua-
tro meninos" dos Países Baixos. "Três meninos coristas espanhóis" chega-
ram em 1582. Naquela década de 1580 a corte começou a empregar os
castrati, e encontrou meninos castrados na Holanda e na Alemanha. O
surgimento da Ordem dos jesuítas após a revogação da tolerância aos pro-
testantes aparentemente ensejou uma reorganização da Kapelle. Em 1751,
a contabilidade referente ao coro menciona terem sido pagos 726 florins
aos jesuítas para pensionato de 12 meninos, e, além das comédias palacia-
nas que faziam parte dos deveres dos meninos, deviam representar peças
religiosas, então uma das muitas inovações educacionais dos jesuítas.
O período de expansão terminou depois de 1579, quando a Kapelle
custava ao arquiduque Wilhelm dois milhões de florins por ano, e ele re-
lutantemente teve de economizar, cortando o número de músicos de 44
para 22 adultos assalariados. Jamais atingiu de novo a antiga força, embora
em 1591, três anos antes da morte de Lassus, aumentasse ainda uma vez
para 38. Entretanto, o estabelecimento de Munique e seu Kapellmeister
continuaram internacionalmente famosos. O papa aceitou a dedicatória
do livro de missas de Lassus, Patrocinium Musices, quando o compositor
esteve na Itália.
A força criativa da corte renascentista como centro musical é bas-
tante clara. Ela precisava de música secular tanto quanto de música religio-
sa, e isso deu à música não litúrgica uma categoria e importância sociais
como jamais tivera. Fomentou o uso de instrumentos e de vozes, e achou
necessário em muitas ocasiões, sobretudo em cerimonias nacionais e cívi-
cas, a execução de instrumentos independente de vozes. Criou conjuntos
bem disciplinados de cantores e executantes para a execução de obras es-
critas em geral nos estilos mais avançados e surpreendentes da época. Não
padronizou a orquestra que usava, mas empregava todos os instrumentos
disponíveis da melhor maneira possível. A padronização só veio de fato a
começar um século e pouco depois, mas o Renascimento não tinha dúvida
alguma sobre o valor da música instrumental, de modo que o Syntagma
Musicum de Praetorius, impresso em 1615, dá em pormenores 14 modos
pelos quais um madrigal de Lassus podia ser tratado por um coro e vários
conjuntos instrumentais.
A música palaciana aumentou o prestígio do compositor muito
embora nem sempre lhe proporcionasse as condições materiais mais vanta-
josas para trabalho criativo. O salário podia ser razoavelmente elevado, mas
podia ser parcimonioso. Em Milão, Galeazzo Maria Sforza pagava a Josquin
des Prés, durante os dois anos (1474 a 1476) em que Josquin esteve em
Milão, um salário mensal de dez ducados, ao passo que o obscuro e secun-
dário Abbate, que controlava a música religiosa da corte recebia 40. Em
1470, os cantores do coro papal nunca recebiam mais que dois ou três du-
cados por mês, e 75 anos depois o maestro di cappella em Bolonha recebia
entr* um terço e um quarto do salário atribuído ao professor de humani-
MÚSICA PALACIANA RENASCENTISTA 111
5
De acordo com H.F. Redlich {Cláudio Monteverdi) o compositor estava enganado
ao crer que Pallavicino estava morto ao vagar o cargo de maestro di cappella, pois o
ex-maestro, após deixar Mântua, tornou-se frade da Ordem de Camaldoli, continuan-
do a publicar novas obras por mais de 11 anos.
MÚSICA PALACIANA RENASCENTISTA 113
A sorte que tenho desfrutado durante 19 anos em Mântua me torna mais indis-
posto que amistoso ... Quando, por fim, a sorte parece favorecer-me e me pre-
dispõe a crer que pelo favor de Sua Alteza deva eu receber uma pensão de 100
escudos de moeda mantuana do Governador da Cidade, Sua Alteza retira-me
esse favor uma vez mais. E depois, com o meu casamento, já não eram 100 es-
cudos, mas apenas 70; e, além disso, fiquei sem as instalações que havia soli-
citado e o pagamento pelos meses passados. É como se parecesse que 100 escu-
dos fossem considerados importância muito elevada. Se os 20 escudos que eu
retirava como salário fossem acrescentados a isso, teria equivalido no máximo
a 22 ducados de ouro por mês . . . Até agora, perdi perto de 200 escudos, e
perco mais cada dia que passa . . . Decretou-se também que eu devia receber
25 escudos, e para meu pesar cinco escudos me foram cortados.
6
Traduzido em Spanish Music in the Age of Columbus, de Robert Stevenson,
Martinus Nijhoff, Haia, 1960.
116 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
118
MÚSICA IMPRESSA 119
2
Spanish Cathedral Music in the Golden Age.
122 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
3
Cf. Apêndice deste volume: Tabelas de Moeda.
124 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
4
Ver p. 150.
MÚSICA IMPRESSA 125
nizou em 1513 para preparar cantores para o coro papal e para os coros
das basílicas romanas, o salário oficial atinente ao posto fora aumentado
como incentivo a que ele o aceitasse, e o seu salário em Santa Maria Mag-
giore foi aumentado em 1578 para induzi-lo a não aceitar uma nomeação
longe dela. Entretanto, o custo da publicação de toda a sua obra enganou-o,
embora a sua autoridade em toda a Europa devesse quase indubitavelmente
tornar a publicação de suas obras uma empreitada muito lucrativa.
Ao contrário dos seus grandes contemporâneos europeus, os compo-
sitores ingleses publicaram relativamente pouco até os anos finais do século
X V I . Nada de Christopher Tye, por exemplo, foi publicado até que, em
1641, John Barnard incluiu o seu moteto A Ti exaltarei na sua Antologia
de Música Religiosa Inglesa. Em 1575 a rainha Isabel I concedeu a Tallis
e Byrd um monopólio do direito de publicar música e papel de música
na Inglaterra. Cinco dos hinos de Tallis já haviam aparecido em antologias
de música religiosa inglesa publicadas entre 1560 e 1565, e em parceria
eles publicaram os seus Cantiones Sacrae, cada um deles contribuindo com
sete motetos para o volume.
Além dessa obra conjunta, Byrd publicou cinco outros volumes de
Cantiones Sacrae sem outro colaborador (Tallis morrera em 1585) entre
1588 e 1593. Psalmes, Sonets and Songs ofSadnes and Pietie foram publi-
cados em 1588, e os dois volumes da Gradualia de Byrd em 1605 e 1607;
os Psalms, Songs and Sonets, em 1611. Morley, sucessor de Byrd no mono-
pólio, publicou Canzonets for Three Voices em 1593; a segunda edição,
com três peças adicionais, veio a público em 1606 e ensejou as versões
alemãs publicadas em tradução em Cassei em 1612 e em Rostock em 1624.
Os Madrigais to Foure Voyces apareceram em 1594, e o First Book of
Ballets to Five Voyces em 1595: uma edição italiana apareceu em Londres
no mesmo ano, e fez-se uma segunda edição inglesa em Londres em 1600,
tendo surgido uma versão alemã em Nurembergue em 1609.0 First Book
of Canzonets to Two Voyces veio em 1595 e teve uma segunda edição em
1619. As Canzonets or Little Short Songs to Foure Voyces de 1597 era
uma coletânea de peças italianas a que Morley acrescentou duas obras de
sua autoria; outra coletânea de música italiana, Madrigais to Five Voyces,
e as Canzonets or Little Short Aers to Five or Six Voyces apareceram
ambas no mesmo ano. Uma antologia, o First Booke of Consort Lessons,
surgiu em duas edições em 1599 e 161 l , e o First Book of Ayres or Little
Short Songs foi publicado em 1600. Morley publicou The Triumphs of
Oriana, para o qual contribuiu com dois madrigais, em 1601. A Plaine
and Easie Introduction to Practicall Musicke, publicada em 1597, atingiu
uma segunda edição em nove anos. Morley, evidentemente, em nada cui-
dou por si mesmo do aspecto prático da publicação; tão-somente "atribuiu"
essas publicações a vários impressores, especialmente a William Barley, cuja
tipografia ficava em Little St. Helens, e elas eram vendidas da própria casa
126 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
a gravação permitia mais rigor e não era muito mais cara que os demais
métodos de impressão. A edição de Barbone das obras para órgão de Fres-
s
cobaldi, pelas mesmas razões, foi gravada, mas até a segunda ou terceira
décadas do século XVII a música impressa mediante gravação continuou
a ser muito menos comum que a música impressa por composição com
tipos móveis.
9 A REFORMA E A CONTRA-REFORMA
1
Owen Chadwich. The Reformation (Pelican History of the Church, v. 3). Penguin
Books, Harmondsworth.
129
130 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
que a mais bela música do latim de tempore continue para nós, embora
empanada pelos nossos novos hinos". O que lhe interessava é que os hinos,
a princípio simplificados na missa alemã e só depois na Hauptgottesdienst
das grandes igrejas, e que incluíam sermão e motetos, culminando na missa
alemã, fossem liturgicamente apropriados e se referissem à Epístola ou
Evangelho a ser lido, de modo que os corais cantados no Gradual e na
Comunhão se convertessem num novo ordinário alemão referente a deter-
minado domingo ou dia festivo; esses corais proporcionaram a primeira
seção de todos os demais livros corais editados durante a vida de Lutero
e depois de sua morte, e eram suplementados por um sem-número de hinos
variados dentre os quais deviam ser escolhidos os corais variáveis antes e
depois do sermão, muito embora mesmo esses corais devessem ser liturgi-
camente apropriados.
Parece ter sido apenas pedagógica a intenção inicial de Lutero ao
substituir hinos por seções da liturgia, e sua introdução em outras partes
do ritual quando não houvesse coro para cantar os motetos renascentistas
que lhe causavam o maior prazer; a congregação ganharia em ouvi-los
quando o coro os cantasse, e podia inclusive cantar junto com ele os hinos
no Credo e no Gloria, de modo melhor do que cantando uma missa polifô-
nica ou mesmo o cantochão tradicional. À parte essas duas declarações indis-
pensáveis pelas quais a congregação afirmava a sua fé, não tinha ele especial
interesse no canto da congregação embora admitisse que podia ser um pro-
veitoso exercício espiritual. A sugestão aparece no Table Talk reverente-
mente coligido por seus discípulos: "Gostaria que tivéssemos mais hinos
para o povo cantar durante a missa ou acompanhar o Gradual, Sanetus
e Agnus Def\ disse ele em certa ocasião; noutra, "resolvemos seguir o
exemplo dos profetas e padres da Igreja e escrever hinos em alemão para o
povo alemão". Nem por tudo isso gostava ele da leal comunidade cantando
um uníssono, e os "mais hinos" que desejava deviam ser todos litúrgicos e
para convocar a congregação a participar do ritual, e não simplesmente
para cantar para o bem de suas almas. Ele se voltava sempre para as glórias
do Renascimento, em cuja música fora educado. No livro coral publicado
por Rhau e Forster em 1538, escreveu ele: "Quando a música natural é
aperfeiçoada e polida pela arte, começa-se então a perceber a grande e
perfeita sabedoria de Deus em Sua maravilhosa obra musical, quando uma
voz assume uma única parte, e em torno dela cantam três, quatro ou cinco
outras vozes, saltando, rodando, enfeitando maravilhosamente a parte
original, como uma dança celeste". A referência é obviamente ao antigo
cantus firmus tipo missa e moteto; o canto da congregação em uníssono é
a "música natural" e Lutero não encontrava palavras para o seu elogio;
toda a função, exceto os corais liturgicamente necessários, era para ser
cantada em harmonia bem equilibrada pelo coro para instrução e edifica-
ção dos ouvintes; o problema era que a sua estrutura musical e tipo de
134 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
cantar com o coro. Nas Vésperas, quando eram cantados hinos, um único
devia ser entoado por todos; o hino liturgicamente apropriado para o dia
(no falar católico, o Hino do Ofício) podia ser cantado em latim pelo coro
acenas ou em alemão, pelo coro e pela congregação. O hino antes do ser-
mão, exclusivamente do coro, podia ter uma ária a mais.
Contudo, o coral tornava-se, em geral, uma oportunidade para o cân-
tico da congregação mais ou menos apesar de Lutero. Esperar que a con-
gregação ficasse silenciosamente atenta durante o cântico de melodias po-
pulares bem conhecidas era talvez esperar mais que o natural grau de auto-
controle por parte dela, e as teorias educacionais de Lutero, postas em
prática por seus discípulos através de toda a Alemanha protestante, leva-
ram a uma grande expansão da cultura musical. "Um professor deve saber
cantar", declarava Lutero com característico vigor dogmático, de acordo
com a sua Table Talk. "Se não souber cantar, não é dos nossos. Se jovens
não estudaram e praticaram música, jamais os admitiria ao ministério".
Portanto, os professores em geral eram preparados para ensinar canto e
elementos de música mesmo que a escola não fosse bastante abastada para
manter os serviços de um especialista em música na pessoa do chantre da
cidade. A base que as crianças obtinham levava em muitas cidades peque-
nas, como em algumas grandes, à fundação de sociedades corais tais como
aquelas a que apelava J.S. Bach para a sua cantata Ratswahl (Gott ist mein
Kõnig, n9 51) composta para o serviço no qual o novo Conselho da Cidade
em Múhlhausen assumiu o posto em 1708. A Musikalische Societàt de
Múhlhausen existia como coro amador e grupo predominantemente ama-
dor de instrumentistas (já que seus integrantes profissionais eram o orga-
nista da cidade e os Stadtpfeiferei) desde 1617. Com tanto canto mais ou
menos educado e totalmente entusiástico dos membros da congregação,
era natural que o coral fosse recebido pela congregação com sua contribui-
ção particular ao serviço.
Já antes mesmo da Reforma, os cidadãos de muitas cidades alemãs
começaram a organizar escolas para as crianças onde ainda não havia esco-
las religiosas, de modo que seus filhos pudessem receber a educação neces-
sária para o êxito nos negócios. Como nas escolas religiosas, a música era
entusiasticamente ensinada não só como valiosa disciplina intelectual mas
também como dever religioso e prazer social. Sobrevivem inúmeros manuais
alemães, da Reforma e de épocas imediatamente posteriores, destinados ao
ensino da música, abrangendo não só o canto como também teoria e com-
posição. Muitos deles pressupõem notável grau de virtuosidade por parte
dos usuários; por exemplo, a antologia de Georg Rhau, Newe Geistliche
Gesenge fuer die gemeinem Schulen, publicada em 1544, é uma coletânea
de partituras de motetos, na maioria baseados em melodias corais e utili-
zando textos corais, escritos pelos melhores compositores alemães da
época. Assim é que, em 1620, Michael Altenburg descrevia a vida e ativi-
136 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
A lança de Saul está não só nas mãos dos ministros das finanças da corte, que
aferrolham suas portas quando ouvem os músicos se aproximarem; é também
lançada pelos professores e pelos cantores que estudam o Vass3 mais que o
baixo, e estão entre os inimigos da música. Assim é que, por toda a parte,
ouvimos queixas de que faltam sopranos, para o que não há outra razão a não
ser que usam a lança de Saul mais que a vara. Hoje na Turíngia, onde peões da
lavoura e jovens tomam seus lugares nas estantes do coro após trabalharem no
arado pela semana toda, eles cantam e tocam, superando a muitos em habili-
dade quando não em dicção. 4
Citado em H.J. Moser e Carl Pfatteicher. Heinrich Schútz, His Life and Works.
Concórdia, St. Louis, 1959.
3
Vass - tonel.
4
Op. cit, ibid
A REFORMA E A CONTRA-REFORMA 137
rios leigos, e não substitutos clericais de cónegos que tinham outras fun-
ções paroquiais ou outras fora da catedral.
O primeiro livro de serviço puramente anglicano foi de Marbeck,
The Booke of Commom Praier Noted, publicado em 1550, quando a nova
liturgia tinha apenas um ano de idade. Marbeck foi organista da Capela de
São Jorge, em Windsor, ao que parece nomeado por Henrique VIII — sabe-
se que esteve no cargo em 1531 — permanecendo nas funções até sua
morte, aparentemente em 1585. O período do serviço foi interrompido em
1544 por seu julgamento por heresia e prisão. Suas demais composições,
uma missa, dois motetos e um cântico de Natal, parece terem sido todas
anteriores à Reforma e sua conversão ao protestantismo.
The Booke of Commom Praier Noted é uma sequência rigorosamente
austera, em estilo semicantochão, com uma nota para cada sílaba e adap-
tado para ser cantado pela congregação; a notação adotada por Marbeck,
com notas de quatro compassos ambiguamente explicadas no prefácio,
apresenta problemas jamais solucionados, mas está de acordo com o seu
protestantismo e com as idéias do arcebispo Cranmer, que pleiteara uma
simplificação dessas para a música religiosa durante o reinado de Henrique
VIII quando prevaleciam as tradições e a liturgia latina, e também de
acordo com as doutrinas de muitos católicos reformadores no continente.
O "Serviço" anglicano, contendo cânticos e versículos e respostas de
matinas e vésperas juntamente com as partes congregacionais da missa ou
da santa comunhão, foram as contribuições especificamente anglicanas à
música religiosa, e a primeira sequência de Marbeck, que deve ser conside-
rada conservadora mais que um tratamento revolucionário dos problemas
da música na liturgia, foi seguida no reinado de Isabel de sequências da
autoria de compositores tais como Tallis (que continuou compositor reli-
gioso durante o período da Reforma, escrevendo as suas primeiras obras
para o ritual latino e as posteriores para o Hinário Inglês) e Byrd. Na Bi-
blioteca Bodleiana, o Manuscrito Wanley contém séries de matinas e cânti-
cos de vésperas juntamente com dez sequências da comunhão anglicana,
datadas da primeira metade do reinado de Isabel I e mostrando como,
desde o início, a Igreja da Inglaterra estivera aberta (para dizer o mínimo)
a um tratamento totalmente tradicional de suas palavras inglesas. Na últi-
ma parte do-reinado de Isabel I , Byrd e outros contribuíram com peças
grandemente trabalhadas e belas, acrescentando-lhes os anthems seme-
lhantes a motetos, aparentemente corruptela da palavra "antífona", canta-
dos tanto nas matinas como nas vésperas. É típico da Reforma inglesa que
Byrd, não convertido ao protestantismo, mas católico romano inofensivo,
escrevesse música religiosa e hinos para a Igreja da Inglaterra e mantivesse
um respeitável cargo na Capela Real ao mesmo tempo que compondo
ainda missas e o serviço latino de sua Gradualia sem esperar que jamais
fossem utilizadas essas músicas. No tempo de Isabel, o anthem não raro
A REFORMA E A CONTRA-REFORMA 145
para ser definida como "democrática" ou, na verdade, para ter qualquer
definição.
Entretanto, não se tratava de simplificação puramente protestante;
a mesma determinação em impedir que a liturgia fosse considerada ocasião
para audição passiva pelo grosso dos crentes motivava as autoridades da
Coritra-Reforma. O Concílio de Trento, convocado para reformar tudo o
que precisasse de reforma na Igreja católica, e modernizar tudo o que fosse
necessário nas suas práticas, reuniu-se pela primeira vez em 1545. Suas
reuniões continuaram intermitentemente até 1563. A regulamentação da
música religiosa não era tarefa que ele considerasse da maior urgência, mas
havia um sentimento generalizado de que durante o século anterior a "se-
cularização" da música religiosa se operara quase sem oposição, que as tra-
balhadas composições vocais e instrumentais permitidas nas igrejas acaba-
ram por substituir o culto e que se impunha um retomo à simplicidade.
0 bispo Grillo Franco de Loretto, por exemplo, no terceiro livro de
suas Lettere volgare di diverso nobilíssima Huomini, publicado em Veneza
em 1567, valeu-se de uma de suas cartas (de 16 de fevereiro de 1549) a
Ugolino Guateruzzi, para queixar-se sobre "a impropriedade da música
coral moderna na missa e no canto eclesiástico". O alvo imediato do bispo
era a missa "Hércules", de Josquin des Prés, composta para o duque de
Ferrara. Na conservadora Espanha, onde a música iniciava a sua "Idade
Áurea", que se estendia de Morales a Victoria e produziu algumas das
músicas corais maisricamentesolenes que possuímos, um escritor anónimo
de princípios do século XVII escreveu um panfleto sob o título Yncon-
venientes y gravíssimos danos se siguende las Religiones tengan Música de
canto de Organo:
Todas as coisas devem ser organizadas de modo que as missas, celebradas com
ou sem música, possam levar tranquilidade aos corações e ouvidos de quem
a ouve, sendo tudo executado claramente e no andamento correio, e no caso
das missas celebradas com canto e órgão, nada profano se misture, mas apenas
hinos e louvores divinos. Todo o arranjo do canto em modos musicais deve
constituir-se não para proporcionar prazer ao ouvido, mas de modo que as
palavras sejam claramente compreendidas por todos, e assim os corações dos
ouvintes sejam levados ao desejo de harmonias celestiais, na contemplação do
gozo dos bem-aventurados . . . Devem também banir da igreja toda música que
contenha, seja no canto ou na execução do órgão, coisas que sejam lascivas e
impuras.
Essas dez formas de preces, sob o título de "Respostas", por Pietro Solo,
membro da Ordem Dominicana e homem de vida e doutrina apostólicas, e
afeito àsfigurase modos da música de minha autoria por ordem do meu exce-
lente e digníssimo príncipe, cardeal arcebispo de Augsburgo, meu patrocina-
dor, achei melhor enviar-vos sapientíssimos e ilustres padres que presidem aos
concílios públicos da Igreja cristã . . . esperei que essas preces, não dissociadas
dos louvores a Deus ou da época da Igreja, não vos serão desagradáveis. Penso
que não rejeitareis a idéia de juntar números musicais a essas preces, plano
que o santíssimo Davi, homem da eleição de Deus, empregava. Se desapro-
vardes minha habilidade na questão, certamente não desaprovareis meu propó-
sito, pois o que desejo é contribuir para a glória de Deus e à vista de todos.
Pois se Deus julga os serviços e obras dos homens não pelo valor delas mas
pelas intenções, como estais mais próximos de Deus que os demais homens,
certamente desejareis imitar a Sua benignidade.
151
152 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
2
Erasmo. Comentário 1 a / Coríntios, XIV.
3
Citado em John Stevens. Music and Poetry in the Early Tudor Court
A MÚSICA NUMA SOCIEDADE DE CLASSE MÉDIA 155
e ociosos, razão pela qual todo o empenho por ensinar música e formar vozes
por bons professores foi descuidado tanto para adultos como para crianças,
descaso que (e pouco melhor reputação) continuou até hoje ... A manutenção
de um pobre cantor numa igreja recém-construída não responde aos modos e
entretenimento que qualquer deles dá ao seu chefe.4
4
Citado em Morrison Comegys Boyd. Elizabethqn Music and Music Criticism.
A MÚSICA NUMA SOCIEDADE DE CLASSE MÉDIA 157
5
Hawkins, op. cit.
158 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
* Aqui jaz o cantor que em vida / Cinquenta anos inteiros dedicou à música da nos-
sa igreja / Sua lembrança por nós venerada permanece viva.
160 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
educação deles era musical, embora as escolas corais da maioria das ca-
tedrais não atingisse o grau de especialização musical como o restante do
currículo educacional. Os meninos coristas de Weelkes em Chichester
tinham preparo musical entre 8 e 9h da manhã e entre 2 e 3h da tarde,
quando eram iniciantes, e uma hora depois se fossem veteranos, mas alguns
deles frequentavam a universidade em Cambridge, de modo que não dedi-
cavam à música o tempo exigido para outros estudos.
A música como disciplina intelectual geralmente considerada como de
valor deixou de ser parte da educação. Os doutorados concedidos em Oxford
e Cambridge eram obtidos através de um exercício - uma composição
original em estilo de moteto - e não pelo que Whythorne teria chamado
de conhecimento "científico" do assunto; assim é que o cabedal de co-
nhecimento e preparação que o grau exigia caiu a um mínimo, e as es-
colas de gramática, cada vez mais cônscias da necessidade de instrução
prática, começaram a restringir o estudo de música ao tipo de lições de
canto que os de meia-idade e mais velhos na segunda metade do século X X
lembram com certa tristeza. Na Escócia isso preocupou os educadores a tal
ponto que, em 1570, começaram a fundar novas escolas de canto, e em
consequência, cem anos depois Thomas Mace passou a oferecer as esco-
las de canto escocesas como modelo do que faltava à educação inglesa.
Em fins« do período elisabetano, o lugar da música na escola inglesa de-
pendia, mais do que qualquer coisa, do gosto e capacidade do professor
individualmente.
É claro que, sendo a rainha uma hábil instrumentista, os tutelados
da rainha Isabel recebiam perfeita educação musical. O professor deles
tinha de saber tocar o alaúde, a bandorra e a cítara; os alunos deviam ter
duas horas de instrução musical por dia e tempo para a prática individual.
A instituição da rainha Isabel pagava a seu mestre de música 26 libras
anuais, enquanto o mestre de música no Hospital de Cristo, ainda naquela
época uma casa de caridade, recebia apenas duas libras, 13 xelins e quatro
pence até 1609, quando o mestre, John Farrant, teve o salário aumentado
para quatro libras. Um patrocinador particular aumentou essa escassa
quantia para 20 libras sob a condição de que um grupo de dez a 12 meni-
nos escolhidos tivesse preparo em "música ligeira" e três ou quatro deles
aprendessem a tocar um instrumento. O mesmo patrocinador, Robert
Dow, fornecia espinetas, violas e livros de música que lhe custaram dez
libras, seis xelins e quatro pence. Mas, em 1589, os dirigentes da escola
baixaram uma ordem declarando que "doravante, nenhuma das crianças
do Hospital será aprendiz de qualquer músico, a menos que cega, aleijada
e incapaz para outro serviço". Os dirigentes de uma escola na situação
especial do Hospital de Cristo, evidentemente, procurariam manter as
crianças sob sua responsabilidade afastadas de ofícios que ofereciam pers-
pectivas tão limitadas.
A MÚSICA NUMA SOCIEDADE DE CLASSE MÉDIA 161
Sempre que mandem seus filhos à escola (quero, dizer, à escola elementar),
combinem com o diretor que seus filhos aprendam uma hora por dia a cantar,
A MÚSICA NUMA SOCIEDADE DE CLASSE MÉDIA 165
Se, por um lado, nos 70 anos após a morte da rainha Isabel a música fene-
ceu a tal ponto que os leitores de Mace tinham de tomar medidas para
que seus filhos aprendessem música nas escolas, por outro lado no apogeu
do reinado de Isabel e no reinado de Jaime I a música continuou um fato
social altamente valioso. Nicholas Wotton, encarregado de informar a
Henrique V I I I sobre as qualidades de Ana de Clèves como potencial esposa
para o rei, chamou a atenção para o que ele evidentemente considerava
como um de seus defeitos: "Conhecimento de francês, latim ou qualquer
outra língua, ela não tem nenhum, nem sabe cantar ou tocar qualquer
instrumento, pois aqui na Alemanha tomam como impróprio e leviano
que as grandes senhoras aprendam ou tenham algum conhecimento de
música". Mas Ana de Clèves provinha de um Estado alemão calvinista, e
a classe superior inglesa exigia o refinamento social adequado dos que
deviam ser seus dirigentes, assim como as classes médias, desde que tives-
sem dinheiro e lazeres, adotavam os prazeres dos seus superiores na hierar-
quia social. As escolas elementares da classe média desprezavam essas
coisas porque os seus dirigentes e, aò que parece, até às vezes os professo-
res, de repente descobriram as virtudes da educação profissional e sacri-
ficavam a música ao latim, o qual, em The Merry Wives of Windsor, faz
com que Sir Hugh Evans inferne a vida do pequeno William Page.
Com todo o amor aristocrático da música, o patrocínio privado não
desempenhou papel decisivo no desenvolvimento da música inglesa. Com
exceção de Wilbye, os músicos empregados em casas ricas na Inglaterra não
deixaram um acervo importante de composições. Mas a decadência da mú-
sica na Igreja significava a sua elevação em outro lugar, embora a disponibi-
lidade de músicos que perderam emprego na Igreja rapidamente estimu-
lasse o gosto cada vez maior pela música social. O emprego de músicos na
Inglaterra era, como noutros lugares, uma demonstração da posição social
- um músico inglês no serviço particular ainda vestia libré - mas o que se
escreveu para esses músicos executarem, ou especialmente criado para
eles ou importado de fora, parece não ter tido importância na evolução
do estilo dos compositores ingleses. A música escrita para a aristocracia
é mantida nos títulos de, por exemplo, obras para teclado de William Byrd
e não nas momentosas coletâneas de manuscritos do período Tudor. O que
166 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
Item, uma arca talhada, com cadeado e chave, com vj violas iiij U
Item, uma arca talhada, com seis violinos iij li
Item, um estojo deflautins,em número vij xl s
Item, iiij cornetas, uma delas muda xs
Item, um alaúde grande e um médio, sem estojos xxx s
Item, um alaúde soprano e um médio, com estojos xl s
Item, uma bandorra, e uma cítara com estojo duplo xxx s
Item, dois saquebutes com seus estojos xxx s
Item, dois oboés com um curtall e um lysarden xx s
Item, duasflautassem estojos ii s vj d
Item, um payer de pequenas espinetas xx
Item, um instrumento de sopro como uma espineta xx s
Item, dois livros de alaúde encadernados a couro "1
Item, dois livros encadernados com pergaminho, contendo vj S ij s
séries num livro, com canções a iiij, v, vi vij, e viii partes J
Item, v livros encadernados com pergaminho contendo iii sé-
U
ries num livro de canções inglesas de iiij, v e vj partes ^S
Item, v livros encadernados com pergaminho, com pavins,
galliards,ritmose danças do país vs
Item, v livros de levaultoes e corrantos vj d
Item, v velhos livros encadernados com pergaminho com can-
ções de v partes vj d
Item, v livros encadernados com cromo ii s
Item, iiij livros encadernados com pergaminho com canções
de iiij partes vj d
Item, v livros encadernados com pergaminho com pavanas e
galliards para o conjunto iij s
Item, um grande livro proveniente de Cádis, encadernado com
couro vermelho, e douração xs
Item, v livros contendo uma série de canções italianas xviij d
Item, um grande payer de duplas espinetas. Na copa xxx s
Item, um payer de grandes órgãos. Na Igreja vL i
6
Susi Jeans. "Seventeenth Century Musicians", in The Sackville Papers. Monthly
Musical Record, v. 88, n9 929, setembro-outubro de 1958.
A MÚSICA NUMA SOCIEDADE DE CLASSE MÉDIA 169
* Instrumento musical dos séculos XVI e XVII; espécie de lira grande com cordas
de metal distribuídas aos pares, tocado com um plectro. (N. da E.)
174 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
9
Charles William Wallace. The Children ofthe Chapei in Blackfriars.
176 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
* Música rústica, assim chamada por causa dos habitantes de Bérgamo, na Itália,
que se celebrizaram por seus gestos desajeitados. (N. da E.)
12
Philip Henslowe. Diary, organizado por Foakes & Rickert. Cambridge University
Press, 1961.
178 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
13
Hawkins. Op. cit.
A MÚSICA NUMA SOCIEDADE DE CLASSE MÉDIA 179
180
AS ORIGENS DA ÓPERA 181
suas origens, o drama europeu parece ter aceito a noção da música como
uma intensificação pelo menos, e às vezes como manifestação, do drama.
No século X V I , as mascherata que foram uma das atrações do carna-
val das cidades italianas evoluiu para o balé e foram copiadas para represen-
tações palacianas na França. A mistura de mitologia alegórica e lenda me-
dieval era tratada, pelos franceses, em poesia palaciana em vez das cantigas
rudes e singelas do carnaval. Disso surgiu o ballet de cour francês, que teve
influência decisiva em todo o futuro do teatro francês, pelo menos até o
advento da grande ópera do século XIX. Os poetas franceses, tal como os
membros da Camerata do conde Bardi, estavam fascinados pela possibili-
dade de formas nas quais música e poesia se integrassem, e começaram a
promover encontros na Académie de Poésie et de Musique em 1570 quase
30 arios antes que os intelectuais florentinos começassem seus debates.
Fizeram experiências com poesia fortemente acentuada e altamente rít-
mica a que chamavam vers mesures, nas quais a força rítmica das palavras
predeterminava as ênfases e o plano rítmico da música a que se ajustavam
por compositores como Claude le Jeune e Jacques Maudut. O ritmo dos
vers mesures é forte mas muito variável, e veio a ser o estilo dos trechos
para solo vocal (récits) da música do ballet de cour, até que, em meadqs do
século XVII, Lully a transformou no recitativo francês.
O objetivo da Académie era a restauração de um estilo que seus com-
ponentes acreditavam ter sido uma das glórias da era clássica da literatura
grega; descobriria um estilo musical que não mais tratasse versos como
simples matéria-prima para exploração pelo compositor, mas um estilo
no qual, reforçado pela música, os versos seriam declamados de modo que
a música mantivesse o atrativo próprio ao mesmo tempo que o esquema
verbal de ritmo e inflexão fossem realçados por sua união com os valores
musicais de ritmo e tom determinados. Isso era um reflexo, em termos
especificamente franceses, da paixão renascentista pelas glórias da Anti-
guidade clássica e uma determinação em restaurar as suas glórias. O homem
culto do Renascimento estava persuadido de que muito do teatro grego
havia sido musical. Aristófanes, em As rãs, referiu-se desdenhosamente ao
"plúnqueti-plunque-plunque-plunque" das cordas de alaúde entre as estro-
fes de um coro< trágico, e havia outros textos para amparar a^opinião do
drama grego como um tipo primitivo de ópera. Os eruditos renascentistas
estabeleceram que a música deve ter sido destinada não a "exprimir" as
palavras de uma peça grega, mas a transmiti-la com o máximo de eficácia
pelo domínio do tom e do ritmo. Essa noção é que eles introduziram na
mistura de canto, dança, coro e mímica que era o ballet de cour.
A música na França já estava sob o controle de estatutos reais tão
vagos como os do Concílio de Trento; em outras palavras, existiam regula-
mentos que tentavam reger atitudes mais do que legislar quanto a tipos
precisos de composição. Carlos IX havia promulgado um estatuto que de-
182 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
era uma arte rejeitada por eles em virtude da relativa independência das
palavras a não ser como justificativa ou razão para a composição.
As primeiras obras dos músicos da Camerata a pôr suas idéias em
prática eram composições para uma só voz e com acompanhamento de um
único instrumento. Seria possível ver nessas obras um deleite natural no
canto afirmando-se contra a dominância de uma arte que surgiu no Norte
da Europa e por certo tempo afogou o que era naturalmente italiano e su-
lista. Mas isso seria enxergar desfiguradamente as primeiras cantatas que
extraíram seus textos do que havia de melhor em poesia;// Conte Ugolino
de Galilei* era uma adaptação de palavras de Dante a voz e tiorba, que se
perdeu. Algumas de suas peças, juntamente com música de Peri e Caccini,
nas quais acreditavam haver restaurado o segredo perdido da declamação
dramática tal como praticada pelos gregos antigos, foram publicadas em
1602, numa coletânea chamada Le nuove musiche. No prefácio, Caccini
escreveu: "Se quisermos falar bem em música, precisamos ter certo nobre
desdém pelo canto." Quer dizer, para que a grande poesia seja fielmente
transmitida em música, a música deve sacrificar-se ao padrão de declama-
ção do poeta, e não impor seus próprios esquemas rítmicos e melódicos às
palavras. Nisso, Caccini está apenas declarando que seguiu o ensino a ele
transmitido no Discorso sopra la musica moderna do conde Bardi: "Ao
compor, seja o seu principal objetivo dispor bem os versos e declamar as
palavras o mais inteligivelmente possível, não se deixando desviar pelo
contraponto."2 Também Peri declarava a sua intenção de ressuscitar o
estilo da música grega, e no prefácio de sua Euridice explica sua partitura
e o estilo quase puramente declamatório ao dizer que "os gregos antigos
utilizavam uma harmonia que ultrapassava a da fala comum, mas ficava
abaixo da melodia para assumir uma forma intermediária". 3 Acreditava ele
que essa "forma intermediária" era o estilo recitativo em que compôs a sua
ópera.
A total rejeição da polifonia por esses compositores, mesmo numa
época em que a polifonia se simplificava, pode ser percebida nas obras con-
tidas em Le nuove musiche. As partes vocais quase desprezam a melodia;
nem tentam qualquer contorno melódico coerente e atrativo, mas apenas
dão ênfase retórica às palavras, e o acompanhamento era não raro da maior
simplicidade, quando não apenas uma nota grave que os ouvidos modernos
acham tosca. O que conseguiram foi um tratamento quase explosivamente
emocional de palavras emotivas exclamatórias; o que atingiram foi o estilo
recitativo essencial que a música tinha de realizar antes que pudesse pôr-se
inteiramente a serviço do drama.
As primeiras óperas a surgir da Camerata florentina em fins do sé-
culo X V I obedeciam totalmente às doutrinas do grupo que as elaborou.
Eram obras quase totalmente declamatórias, não muitas vezes marcadas
por atividades relevantes tais como dissonância expressiva e sua resolução
no acompanhamento. Da perspectiva do drama, surgiram das peças pasto-
rais palacianas; os enredos eram extraídos da mitologia clássica e referiam-
se ao amor, pois que o amor satisfeito ou frustrado oferecia o maior estí-
mulo à expressão verbal — e portanto musical. Como os autores gregos a
quem se referiam como seus mestres, os compositores preferiam que a
ação transcorresse fora do palco e fosse relatada por um mensageiro. R i -
nuccini acompanhou essa convenção porque a narrativa do mensageiro
seria uma expressão verbal mais enfática do que poderia surgir da própria
representação, e portanto mais apropriada que esta para uma arte de decla-
mação exaltadamente acentuada. A Dafne de Peri, produzida durante o
carnaval de Florença de 1597, perdeu-se, mas a sua Euridice, cantada no
palácio do duque Corsi para o casamento de Henrique I V com Maria de
Médicis em 1600, sobreviveu. O próprio duque Corsi tocou o cravo na
orquestra, e os únicos outros instrumentos exigidos, à parte duas flautas
ouvidas num simples ritornello, são chitarone, viola de gamba e tiorba. O
exemplar publicado, que foi a público logo após a representação, dá apenas
um baixo cifrado. O que é dramático quanto à obra o é apenas num senti-
do rudimentar. Peri sabia que o drama devia variar em andamento e inten-
sidade, de modo que dava oportunidade — talvez uma concessão ao gosto
meiíos puro e educado que o de seus amigos — a uma ou outra canção e
coros.
A primitiva ópera florentina é uma forma quase terrivelmente cere-
bral, tentativa de eruditos empenhados em limitai o poder da música a
serviço das palavras. A Euridice de Peri foi algo de notável na primeira
representação por ser nova e porque foi ouvida por grande número de
pessoas a quem o corpo de doutrina reunido e elaborado pela Camerata
— com a qual a maioria deve ter sido familiar — ainda não havia sido mani-
festado em ação. A ópera como Peri a compôs era por demais despojada
e puritana para sobreviver como estava, fugindo à expressividade musical e
dobrando as palavras a um estilo deliberadamente formal de declamação,
o qual, com o tempo, prejudica a capacidade do executante de produzir
um efeito natural. Passaram-se apenas sete anos entre a Euridice de Peri e
o Orfeu de Monteverdi, um dramma per musica (segundo o subtítulo do
compositor) na qual, como em toda grande ópera, música e texto se casam
na intenção dramática. A distância entre a obra de Peri e a de Monteverdi
é imensa, pois em Monteverdi o dramaturgo musical assimila totalmente
a peça na música; mas em certo sentido a ponte sobre o abismo já estava
188 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
alma miayy cantadas, deve desfazer-se de alguns dos seus ornamentos, tais
como o colar de ouro e as plumas do chapéu. O Mundo e a Vida Humana
devem surgir muito alegremente vestidos e depois serem despidos dos seus
trapos de modo que pareçam "muito pobres e ínfimos" antes que morram
e sejam vistos como cadáveres. A representação pode terminar com ou sem
dança. Neste último caso, o último coro deve ser dobrado em todas as
suas partes, vocais e instrumentais; mas é preferível um bailado, cantando-se
um verso iniciado com as palavras "Chiostri altissimi, et stellatF, acompa-
nhado "tranquila e reverentemente pela dança. Isso deve ser seguido de
outras cadências e figuras graves", todas apropriadamente solenes. Durante
os ritornelli, os quatro principais bailarinos devem executar um bailado,
saltato concapriole (dançando e pulando) sem cantar. Depois de cada es-
trofe, a dança deve ser variada, e os quatro principais podem utilizar as
cadências da galharda, da giga e da corrente. Todas as estrofes do bailado
final devem ser cantadas e tocadas por todos os músicos e cantores.
Os membros mais ardorosos da congregação oratoriana eram aparen-
temente jovens da mais baixa camada social, e conquanto seja possível
imaginar (se não prontamente compartilhar) o prazer de diletantes aristo-
cráticos ao som do stilo recitativo florentino desataviado, apreciando a sua
escrupulosa justeza de palavras, é pouco provável que um público inculto,
ciente e talvez apreciador das riquezas naturais da melodia italiana, tivesse
prazer com uma música tão artificialmente limitada. Cavalieri devia levar
em consideração o estilo popular na sua ópera religiosa se quisesse ter pú-
blico para a obra que escreveu. Tinha de haver uma melodia normal, vitali-
dade de ritmo, cor e graça na harmonia e orquestração; a voz cantante
tinha de transparecer em algo mais forte e mais atrativo que a declamação
retórica, admitir pelo menos o tipo de elaboração melódica livre que veio
a ser conhecido como arioso para que a música agradasse a um auditório
popular. Nessas diretrizes é que a ópera em Roma veio a evoluir paralela-
mente ao trabalho de Monteverdi entre 1607, quando escreveu o Orfeu,
e 1642, quando L Incoronazione di Poppea foi encenada em Veneza.
Só em 1626 uma ópera de assunto secular foi encenada em Roma:
La catena dyAdone, de Domênico Mazzochi. Treze anos depois, Mazzochi
e Marazzoli escreveram a primeira ópera cómica, Chi soffre, speri, para o
grande teatro de ópera construído pela família Barberini - para mais de
300 lugares - que se inaugurou em 1632 com // SantAlessio de Landi,
e foi a primeira ópera biográfica. A ópera romana, como toda a vida social
da cidade, dependia da atitude do papa que estivesse no trono, pois o
poder temporal do papa sobre os Estados papalinos era mais absoluto que
o de qualquer imperador sobre o seu reino, como era natural num pequeno
Estado onde o chefe espiritual era o dirigente temporal. O poder do papa
sobre a Igreja imensamente esparsa era mínimo em comparação com o
controle sobre os seus territórios. O papa Barberini, Urbano V I I I , que
190 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
reinou de 1623 a 1644, manteve uma atitude liberal para com as artes
e não fez objeção à ópera secular, mas a forma caiu em esquecimento no
pontificado do sucessor de Urbano, Inocêncio X, cuja querela com os Bar-
berini os afastou de Roma durante todo o seu papado. O reinado posterior
de Clemente IV, que, como Giulio Rospigliosi, havia escrito o libreto de
// Sant*Alessio e outras óperas religiosas, assinalou outro período de expan-
são, mas a incerteza da aprovação papal reduziu a influência de Roma
como centro da ópera depois do decisivo período de Urbano VIII, no
qual os compositores romanos seguiram o exemplo de Cavalieri e consen-
tiram, entre outras coisas, na introdução de coros polifônicos na ópera
de um modo que feria os austeros princípios de homens como Bardi.
Em Roma, a ópera rapidamente veio a distinguir entre recitativo (logo
transformado em recitativo secco) e passagens líricas, sentimentalmente
expressivas.
De certo modo, por toda a sua história inicial, a ópera em Roma foi
nitidamente diferente da ópera palaciana em qualquer lugar da Itália. A
ópera palaciana pretendia ser a manifestação de grandeza e glória do patro-
cinador que a apresentasse; a ópera em Roma destinava-se a ser moralmen-
te edificante. Fora de Roma, a produção sensacional valia tanto quanto a
boa música; já em Roma o desdém pelos prazeres visuais do palco não
significavam uma concentração na qualidade musical e dramática da ópera,
mas deixava um vazio no qual a inteireza da forma desaparecia pela con-
centração de cada departamento em sua especialidade.
Noutros lugares a ópera não tardou a tornar-se uma diversão rica
e espetacularmente montada para os aristocraticamente ricos. Guido
Bentivoglio, que depois veio a ser cardeal e legado papal em Flandres,
estava presente à primeira representação de Euridice de Peri, e a descreveu
assim:
4
Stuart Reiner. "Preparations in Parma, 1618-1627-28", in Music Review, v. 25,
n? 4, novembro de 1964.
194 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
O governo por sua vez assegurava-se de que os teatros fossem bem admi-
nistrados e de que a ordem neles fosse mantida; via neles um sinal de pres-
tígio e portanto distribuía camarote a todos os diplomatas estrangeiros.
A ópera era por demais importante para deixar-se ir por si mesma.
A noção proveitosa do camarote permanentemente alugado estimu-
lava uma atitude livre e cómoda quanto ao que acontecesse no palco. Era
possível desfrutar a ópera sem se dar ao incómodo de ouvir uma só nota
de música, e se podia perfeitamente interromper a conversa ou jogo de
cartas apenas para ouvir as partes da ópera que interessassem. Todavia,
pode-se argumentar que a frequência regular, mesmo por motivos estra-
nhos à música, de fato educasse o público musicalmente. Em 1760 um
5
Charles Burney. Present State of Music in France andltaly. Londres, 1770.
6
Simon Townley-Worsthorne. Venetian Opera in the Seventeenth Century. O.U.P.,
1954.
200 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
7
S. Sharp. Letters from Italy, Describing the Customs and Manners of that Country.
Londres, 1766.
8
Burney. Op. cit.
* Ver a tabela de equivalência cambial no final deste volume. (N. do T.).
AS ORIGENS DA ÓPERA 201
9
John Evelyn. Diary 19 de novembro de 1644; junho de 1645; maio de 1646.
10
Minutes of Crema Town Council, 17 de setembro de 1681. Citado em Townley-
Worsthorne. Op. cit.
202 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
11
Burney. Op. cit.
12
Thomas Coryate. Coryate's Crudities. Londres, 1611.
AS ORIGENS DA ÓPERA 203
209
210 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
todos na cidade. Poderia também ter lembrado aos Gonzagas que quase
sempre o seu salário em Mântua esteve em atraso, mas que em Veneza lhe
era enviado em casa no dia do vencimento.
Essas condições atraíram músicos do Norte a Veneza desde os inícios
do Renascimento, e podemos recuar a Adriano Willaert, natural de Bruges
e nascido por volta de 1490, a exploração consciente dos pesos e dinâ-
micas contrastantes da música para dois coros que cantavam em antifonia
tradicional. Willaert havia viajado muito e trabalhou muito anos na Itália
antes de 1527 quando conseguiu o posto de maestro di cappella na Cate-
dral de São Marcos através do concurso público que era o meio normal de
obter-se nomeação. Era estudante de direito em Paris, desprezando o di-
reito pela música em 1514. Quatro anos depois trabalhava como músico
em Bolonha, e em 1522 era membro da cappella de Alfonso I d'Este em
Ferrara; em 1525 estava a serviço de outro d'Este, Ippolito, arcebispo de
Milão. Parece que o saque de Roma por Carlos V o convenceu de que a
vida em Veneza era mais segura.
Em São Marcos encarregou-se de uma organização musical que con-
tava entre os seus subordinados o primeiro e segundo organistas da cate-
dral, um conjunto completo de musicistas de corda e sopro e um grande
coro, famoso na época por seus padrões musicais. O coro da Catedral de
São Marcos, com as galenas ocupadas pelos cónegos da catedral, foi arqui-
tetado para ter uma galeria de cantores de cada lado, e cada uma delas
tinha o próprio órgão para ser utilizado na antifonia. Com essas condições
à sua disposição, Willaert teve a idéia de um duplo coro, cada metade inde-
pendentemente acompanhada, dando a todos os cantores uma música bela-
mente suave na qual um estilo declamatório, dramático, por vezes irrompe
quando as palavras o exigem.
Uma provável influência nas composições para o duplo coro vene-
ziano foi á acústica da própria catedral, assim como evidente influência foi
a existência de dois órgãos. A grande cúpula central da igreja tem duas cú-
pulas menores de cada lado, de modo que a sua acústica é imensamente
complexa e constitui constante desafio ao compositor cuja obra deve ser
ouvida nela. Trata-se de um prédio com repetidos ecos e complicadas resso-
nâncias cuja organização era obrigatoriamente um prazer e desafio a que
os compositores as explorassem. Só nos cabe conjecturar até que ponto
Willaert foi estimulado pela acústica da Igreja de São Marcos; mas é eviden-
te que seus seguidores e discípulos escreviam intencionalmente utilizando
o edifício da catedral como um difícil instrumento capaz de surpreendente
brilhantismo nas mãos de um compositor que o dominasse.
Willaert morreu em 1562. Seus sucessores foram Cláudio Merulo,
que se tornou primeiro organista em 1566, Andrea Gabrieli, que substituiu
Merulo no segundo órgão até 1584, quando foi promovido ao lugar de Me-
rulo. Depois da sua morte, o sobrinho Giovanni (cuja admiração pela músi-
O PERÍODO BARROCO 213
de uma forma musical mais que para uma expressão do espírito e devoção
da Igreja. 0 Kyrie converteu suas súplicas centrais, Christi eleison, em solo
ou peça solista de conjunto — às vezes na dominante ou no relativo maior
da principal tonalidade do movimento. Gloria e Credo terminavam cada
um com uma fuga; não raro as duas fugas tinham o mesmo tema. O Sanc-
tus, como o da Missa em si menor de Bach, é em geral grandiosamente
solene e direto, levando a umHosanna vívido que é escorçado quando rea-
parece depois de um Benedictus lírico extenso. O Dona nobis pacem, que
termina o Agnus Dei frequentemente, no início do período, arrematava a
obra ao recapitular as principais idéias do Kyrie; no final do barroco con-
verteu-se numa coda em modo maior a um movimento lento em menor,
restabelecendo a tónica maior da obra. A Itália, e compositores italianos
em toda a parte, revelaram a Missa Cantata que fragmenta o texto em mo-
vimentos distintos, árias, duetos e coros; em outros países católicos os com-
positores foram mais lentos em fragmentar a unidade do texto litúrgico.
O sacrifício da liturgia por motivos musicais continuou com ocasionais
períodos de reação através do século XIX.
A Áustria católica tornou-se rapidamente um centro de composição
barroca. O poder cada vez maior do imperador no Norte da Itália transfor-
mou em acontecimento normal da situação política o afluxo de músicos
italianos para Viena, mas os primeiros mestres do novo estilo em Viena
foram austríacos. Christof Strauss nasceu em 1580; ele se tornou Kapel-
lmeister na corte imperial em 1617 e depois diretor de música na Catedral
de Santo Estêvão. Não raro a sua música sugere um incongruente consórcio
entre o Renascimento e a nova era. Em sua missa Veni Sponsa Christi,
baseia a música no cantus firmus cantochânico tradicional mas emprega
grandes efeitos concertato. O seu Réquiem, composto em 1616, é acom-
panhado por cordas e metais, e escrito para dois coros com vozes desiguais,
uma quarta parte do coro de sopranos, contraltos, primeiro e segundo
tenores em contraste com uma "oxta parte de tenores com baixos em cinco
partes; a preponderância de vozes graves é utilizada para obter um efeito
emocionalmente sombrio. A Missa Concertato in Eco de Strauss — obtido
o eco pela colocação adequada dos dois coros — aproveita um artifício
predileto do primitivo barroco de um modo colorido. Pouco mais de uma
geração depois, Heinrich Schmelzer, nascido por vclta de 1623, Johann
Kaspar Kerll, nascido em 1627, e Heinrich Biber, nascido em 1644, desen-
volveram o estilo. Schmelzer foi um músico de câmara palaciano em Viena;
Kerll, discípulo de Carissimi, passou três anos (de 1674 a 1677) como
compositor palaciano em Viena antes de seguir para Munique como orga-
nista da corte. Biber foi alto despenseiro e Kapellmeister do arcebispo de
Salzburg, e foi tão celebrado como violinista que o imperador enobreceu-o
por sua execução.
Contudo, na maioria dos casos, o estilo barroco difundiu-se pela Eu-
O PERÍODO BARROCO 217
obras para violinos, ceio e baixo com órgão, três em 1767 e as restantes
entre 1772 e 1780 como parte de suas funções em Salzburg.
As sonatas religiosas de Mozart foram o fim da tradicional sonata
trio. No início da sua história, para compositores como Giovanni Gabrieli,
"sonata" era apenas a música tocada, diferentemente de "sinfonia", que
implicava instrumentos e coro, e "concerto", que podia exigir vozes e ins-
trumentos ou apenas vozes; "cantata", exato oposto de "sonata", signi-
ficava apenas "música cantada", em geral por uma só voz com baixo cifra-
do, e não apropriado para igreja.
A evolução da sonata resultou sobretudo da evolução do violino e
instrumentos aparentados a ele como viola, ceio e baixo duplo. A evolução
do violino parece ter-se completado em 1550. Philibert Jambe de Fer,em
sua Epitome musical, publicada em Lyon em 1556, explica que a viola é
instrumento para pessoas de gosto, ao passo que o violino é para "casa-
mentos, danças e mascaradas".2 As violas eram instrumentos domésticos,
melodiosas e suaves; à medida que a música se voltou para o público, o
timbre brilhante e mais extrovertido do violino tornou-se mais desejável.
Os grandes astesãos do violino em Cremona — Nicolo Amati, Antonio
Stradivari e Giuseppe Bartolomeo Guarneri, surgidos quando o instrumen-
to já adquirira a sua forma final,* abrem a época que vai de 1596, quando
nasceu Amati, a 1744, com a morte de Guarneri, e ao final daquele perío-
do o violino já se tornara imensamente popular e teve influência considerá-
vel na música instrumental.
A orquestra cada vez mais homogénea, com base num quinteto de
mais ou menos 12 cordas, foi paulatinamente suplantando a sonata instru-
mental maior. E m estabelecimento como a Igreja de São Petrônio em Bo-
lonha (igreja semelhante às igrejas universitárias de Oxford e Cambridge),
onde havia uma das melhores orquestras da Itália, o estilo sonata barroco
converteu-se em sonatas para trompete. Essas foram desenvolvidas por uma
linhagem de compositores desde Maurizio Cazzati, feito maestro di cappella
em São Petrônio de 1657 a 1671, quando a orquestra de São Petrônio,
que naquela época contava com Giuseppe Torelli, foi dispersada e só se
reunia para grandes festejos. O estilo foi revivido, mas em escala menor em
1701, de modo que as sonatas para trompete desapareceram com a disper-
são da orquestra. Torelli mudou-se para Ansbach, levando consigo o estilo.
A música de teatro — a sinfonia introdutória e os intermezzi entre
os atos da ópera — naturalmente trouxeram melodias mais líricas, ritmos
2
Grove: 5? edição, artigo "Violin Family".
* A forma final do violino decorre dos sucessivos aperfeiçoamentos devidos a Kerli-
no, Duiffoprugcar, Dardelli, Linarolli, Zanetto, Morélla, Pesaro e a Gaspar da Saio, a
quem se erigiu um monumento em Brescia como o criador do instrumento. (N. do T.)
220 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
3
Bispo Fuller. Worthies. 1662.
O PERÍODO BARROCO 221
Comentando esse passo, observa John Hawkins que o rol de Wood dos
"mestres de música" consiste principalmente nos nomes de integrantes
— cantores e instrumentistas — de coros de colégios e do coro da catedral.4
A observação do bispo Fuller de que quando a música é suprimida na
igreja apresenta-se em outra parte poderia, contudo, ser confirmada por
fatos ocorridos na Suíça zwingliana e calvinista. O banimento ou extrema
restrição de música litúrgica levou à formação de sociedades musicais que
a princípio apenas executavam música não mais ouvida na igreja. Executa-
vam sequências a quatro vozes dos salmos, visto que só o canto em unísso-
no era permitido pela liturgia, assim como a música mais conhecida desde
os tempos da Igreja católica pré-calvinista e novas obras religiosas que não
fossem doutrinariamente tão ofensivas quanto em geral se supunha. Essas
sociedades tinham considerável número de membros experientes - músi-
cos adultos antigamente relacionados com a Igreja, banda Stadtpfeifer
local e coro escolar, que antes haviam sido instruídos na música litúrgica.
Outros — amadores e amantes da música — juntavam-se, mas tudo o que
fosse cantado ou tocado era exclusivamente para os membros da sociedade
que não tinham interesse em execução pública.
A princípio o lugar onde essas sociedades se reuniam era a igreja.
O primeiro Collegium Musicum suíço constituiu-se em Zurique em 1613.
Em Winterthur até o ano de 1636 os músicos reuniam-se no sótão da
principal igreja da cidade, mas na Basiléia, em 1661, exigiam um local para
música onde houvesse órgão, e satisfeito isso, transferiram-se da igreja para
o seu próprio saguão musical. Algumas sociedades musicais esperaram
4
Hawkins. Op. cit.
222 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
muito tempo para ter instalações próprias; Chebuliez observa que a socie-
dade Trogen continuou a reunir-se na igreja até 1894. 5
Entretanto, afastar-se da igreja paroquial era ampliar a esfera de ati-
vidades da sociedade e permitir conscientemente a aproximação da mú-
sica instrumental secular. Igualava-se assim às sociedades semelhantes na
Alemanha. Os Collegia Musica suíços — o nome foi adotado em toda a
parte na Suíça — começou como uma compensação pelo afastamento da
música na igreja. Na Alemanha, onde a música desempenhava papel maior
na liturgia do que antes da Reforma, a difusão de organizações musicais
amadoras continuou e expandiu a tradição das guildas de mestres-cantores
e se aproveitaram da concentração de educação musical nas escolas alemãs.
Na Alemanha, as sociedades de membros da cidade chamavam-se Musik-
krànzlein, Convivia Musica ou nome menos pomposo que Collegium Mu-
sicum, que até o século X V I I I foi em geral adotado por uma sociedade
musical universitária. Todas elas eram inteiramente amadoras, mas os clu-
bes de música dos cidadãos cooptavam os Stadtpfeifer da cidade, e os
Stadtgeiger e Rollbruder onde existiam esses institutos subsidiários oficiais
e semi-oficiais. O chantre, como principal autoridade musical da cidade,
devia supervisionar as suas atividades. Isso significava que estava à disposi-
ção, sempre que necessário um coro preparado pelo chantre que trabalhava
junto à principal escola e igreja da cidade.
Constituiu-se uma Musikkrànzlein em Worms em 1561; organização
semelhante começou em 1568 em Nurembergue, e uma Musikgesellschaft
coexistiu até 1585. Começou um Convivia Musica em Gòrlitz em 1570,e
outro foi formado em Wernigerode em 1587. O Collegium Musicum em
Frankfurt-am-Main foi constituído em 1588. Múhlhausen formou um
Musikalische Societãt (que estimulou J.S. Bach num voo de grandiloqúên-
cia juvenil; a sua Cantata Ratswahl, Gott ist mein Kónig, n9 71, em 1708,
escrita para o dia em que os magistrados do conselho da cidade compare-
ceram ao serviço) em 1617, e o Collegium Musicum de Hamburgo em
1660. O Collegium Musicum de Halle foi fundado em 1694.
O estofo académico dos Collegia Musica, como o nome latino deles,
indica certa seriedade de perspectiva. Como as accademie italianas, preten-
diam levar a música a sério e mostrar vivo interesse na música como
estudo teórico assim como um deleite. Muitos dos que começaram antes de
1618 e da Guerra dos 30 Anos foram forçados pela guerra a interromper
suas atividades até que a paz fosse restaurada, mas a sede alemã por música
os revivia à medida que criava outros. Os Musikkrànzlein, as Musikgesells-
chaften e os Conviviae Musicae tendiam a levar a sério o que faziam a
5
A.E. Cherbuliez. Die Schweiz in der Deutschen Musikgeschichte. Huber, Frauen-
feld, 1932.
O PERÍODO BARROCO 223
6
Eberhard Preussner. Die musikalischen Reisen des Herm von Uffenbach. Bàren-
reiter, 1949.
224 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
7
Ibid.
O PERÍODO BARROCO 225
8
Grove: segundo o Diário de John Evelyn; 27-1-1682.
9
Heinz Becker. Diefruhe Hamburgische Tagespresse ais musikgeschichtliche Quelle,
in Beitráge zur Hamburgischen Musikgeschichte 1956,1.
226 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
Seis anos se passaram até o anúncio de outro concerto nos diários de Ham-
burgo. E m 13 de outubro de 1714, o Relations-Courier anunciava que
"músicos célebres, antes a serviço de reis, príncipes e outros grandes se-
nhores", cujos nomes não são mencionados, dariam um concerto de música
instrumental na Brauerei-Gesellschaft no Mercado Hop. Seis anos de silên-
cio nos jornais não significam obrigatoriamente que se passassem seis
anos sem acontecimentos musicais em Hamburgo, mas apenas que, por
uma série de razões, os acontecimentos ocorridos não foram anunciados.
Os concertos anunciados ou comentados na imprensa de Hamburgo
do século X V I I I eram todos de músicos visitantes. E m 1716, o Relations-
Courier anunciava um concerto "para coro misto e instrumentos" cujo
repertório consistia em obras dos mestres locais Keiser e Mattheson; os
patrocinadores, contudo, parece terem achado aconselhável anunciar
Keiser não como um dos grandes compositores da ópera de Hamburgo,
mas pelo seu título palaciano, como "Kapellmeister da corte arquiducal
em Mecklenburg". O nome de Telemann aparece pela primeira vez quando
ele dirigiu o Concerto Serenata no Drill Hall em 1723, quando a grande
atração não era a sua própria música, mas Kuhnel, que tocava viola de
gamba e procedente da corte holandesa.
Além dos concertos de músicos visitantes os jornais anunciam fre-
quentes apresentações de oratórios de um tipo que se tornou trivial nos
anos após a nomeação de Mattheson em 1715 como chantre da Catedral de
Hamburgo, e continuou com êxito bastante a ponto de levar Keiser, depois
do seu trabalho em Copenhague e Ludwigsburg, a concentrar-se no orató-
rio quando voltou a Hamburgo. O anúncio de tais acontecimentos nos
jornais, muitos dos quais estão arrolados no ensaio de Heinz Becker, 10 dão
pouca informação sobre os executantes em causa e a sua posição musicai.
Como acontecia em toda a Alemanha, o complicado quadro da música
na primeira metade do século X V I I I fica vago pela falta de informação
sobre pormenores que só passaram a existir quando futuras organizações
começaram a funcionar e redigir estatutos que hoje temos em arquivos. A
evolução da vida do concerto em Hamburgo é algo a cujo respeito temos
pouca informação pormenorizada sobre os executantes, os programas apre-
sentados ou o equilíbrio de amadores e profissionais na orquestra, embora
saibamos que, com os Stadtpfeifer e a sua Rollbruder, Hamburgo dispunha
de mais executantes que a maioria das cidades e que podiam pelo menos
reivindicar status profissional.
Os jornais não relatam também o modo como o Collegium Musicum
de Weckmann evoluiu para uma sociedade de concertos públicos antes do
aparecimento de Telemann em 1721. A chegada de Telemann assinalava
11
"Von der Reformation bis zur Romantik", in Schweizer Musikbuch, organizado
por Willi Schuh. Atlantis Verlag, Zurique, 1939.
O PERÍODO BARROCO 229
232
IGREJAS, CHANTRES E COROS 233
Primeiro movimento:
Concerto, primeiro verso; dois sopranos acompanhados de trombo-
nes e baixo.
Segundo verso: tenor solista com orquestra de cordas, e depois o
primeiro verso como ritornello para toda a orquestra ou sexteto
solista.
Segundo movimento:
Terceiro verso: contralto e quatro trombones, e depois segundo so-
prano e cordas.
Quarto verso: dueto para dois tenores, e finalmente o sexteto solista.
Ritornello 2, com nono verso e sexteto solista.
Terceiro movimento:
Versos cinco e seis: sexteto solista com ambos os grupos instrumen-
tais (isto é, cordas e trombones com baixo). Depois todo o coro
com o verso Das wir in guten Frieden stehfn ("vivamos em paz"),
como cantus firmus, primeiro com tenor e depois com soprano.
Quarto movimento:
Sinfonia para ambos os grupos instrumentais "em eco".
Verso sete: solo de baixo, e depois dois violinos figurando contra
os demais solistas.
Verso oito: trio de cordas, e depois passando para trombones.
Ritornello 2 da capo.
escola desde 1615 até sua morte em 1630, fora ardoroso discípulo do novo
estilo italiano tal como Praetorius e escreveu vários livros de música secular
italianada para vozes e instrumentos, bem como uma coletânea de Geistli-
chen Concerten "para três, quatro e cinco vozes e baixo cifrado composta
em estilo italiano", chamada Opella nova, publicada em 1618. Muitas das
obras constantes da coletânea baseiam-se em melodias corais com variações,
trabalhadas e adornadas para conseguir uma ilustração adequada dos seus
textos, à maneira como J.S. Bach mais tarde haveria de tratar as mesmas
e muitas outras melodias corais em seus Prelúdios corais. A obra de Samuel
Scheidt como Kapellmeister na igreja da corte em Halle terminou em
1625. O seu protetor, o margrave de Brandenburgo, teve a sua capital,
Magdeburgo, saqueada em 1631 e abdicou sete anos depois, um ano após
a total destruição da igreja da corte em Magdeburgo por incêndio. A mú-
sica de Scheidt, incluindo ainda trabalhados "concertos sacros" para coro
e orquestra, e arranjos para órgão de corais e outras músicas religiosas, foi
publicada durante a guerra, entre 1620 e 1650.
Em 1642, o conselho municipal de Hamburgo regulamentou as fun-
ções dos músicos da cidade, que deviam servir como chantre, organista e
cantores de coro, sempre que música "figurai" fosse cantada.1 O termo
"figurai" já estava em uso muito antes para designar o que fosse preciso
escrever em partes, mas passou a referir-se a qualquer música escrita em
estilo "moderno" com baixo cifrado e utilizada em todas as festas maiores.
O propósito das novas regulamentações era aparentemente restaurar
a ordem da música religiosa que desde os inícios da guerra começou a sofrer
os efeitos indiretos da redução da orquestra subsidiária dos Rollbríider
a três; em 1610 havia 15 membros; em 1651 o número era de cinco. A
fragilidade da orquestra sugere uma razão para eleger os serviços dos músi-
cos domésticos dos conselheiros.
O chantre por sua vez devia "providenciar música boa e apropriada
para dias festivos bem como para todo domingo, para todas as igrejas da
cidade". Significava isso que ele era a autoridade musical para as cinco
igrejas da cidade dentro da imediata jurisdição do conselho de Hamburgo,
devendo providenciar cantores e executantes para elas de modo que cada
uma tivesse música "apropriada", solene, e Hauptgottesdienst musicalmen-
te elaborados para a principal igreja da cidade e canto congregacional
perfeito, provavelmente com moteto para o coro, nas demais. Todos os de-
mais músicos - a banda de Stadtpfeifer e a Rollbruder recentemente forma-
da, que tocava as cordas e os instrumentinos — deviam obedecer às ordens
1
Liselotte Krúger. Verzeichnis der Adjuvanten, Welche zur Musik der cantor zu
Hamburg alie gemeine Sontage Hòchst von Nõthen hat. Em Beitràge zur Hamburgis-
chen Musikgeschichte, org. por Heinrich Husmann. Universidade de Hamburgo, 1956.
IGREJAS, CHANTRES E COROS 235
2
H.J. Moser e M. Pfatteicher. Heinrich Schútz. Concórdia Press, St. Louis, 1959.
3
H.J. Moser e M. Pfatteicher. Op. cit.
IGREJAS, CHANTRES E COROS 237
prontos a partir. Pediam pelo menos metade do que lhes era devido, expli-
cando que ele mesmo tinha vendido ações, quadros e prataria para adiantar-
lhes 300 táleres. Uma carta amarga a Reichbrodt, mestre-de-cerimônias e
secretário particular da corte, dizia que ele preferia ser chantre ou organis-
ta em alguma cidade obscura a ficar "em condições tais que a minha amada
profissão me cause desgosto".
Se essa era a situação numa capital musical antes rica e tradicional,
a de outras cidades era pelo menos tão trágica para os seus músicos. Mar-
burgo fora ocupada 11 vezes; perdeu metade da sua população durante
a guerra, e 200 anos depois os cidadãos ainda pagavam juros de uma dívida
municipal que na época estavam multiplicados por sete. Leipzig faliu em
1622. " A partk de 1623, quando pela primeira vez as tropas passaram por
ela [Turíngia], todo o tipo de horror concebível foi perpetrado pelas bár-
baras hordas da guerra a intervalos cada vez mais curtos . . . Vieram então
as temíveis pestes de 1623 e 1635", escreveu Spitta. 4 Verónica Wedgwood,
embora observando o exagero dos "relatos e cifras dos contemporâneos",
assinalava que essas cifras, na medida em que verificadas, justificam a tradi-
ção de que a guerra causou destruição completa nas cidades alemãs. A
população de Munique era de 22 mil habitantes em 1620,17 mil em 1650.
Augsburgo tinha 48 mil em 1620, e 21 mil em 1650. Chemnitz desceu de
aproximadamente 1000 para baixo de 200. Pirna desceu de 876 para 54. 5
"As perdas demográficas em toda a Alemanha são calculadas em um terço
da população urbana, dois quintos da r u r a l . . . E m consequência da Guerra
dos 30 Anos, a Alemanha perdeu a sua posição como o país mais populoso
da Europa, e sua população de cerca de 20 milhões caiu para entre 12 a 13
milhões." 6 A perda de bens durante a Guerra dos 30 Anos, observa o
mesmo autor, "arruinou as bases do padrão alemão de vida". Quase todas
as cidades perderam a sua grata independência para os governos territoriais
que podiam levantar dinheiro para fazer a guerra na escala do século X V I I ,
de modo que, para a sua segurança, as cidades eram obrigadas a depender
de príncipes, os únicos que lucravam com os prolongados horrores do que
começava a ser uma guerra de aniquilação.
A história da música reflete a transformação social que as cidades
sentiram amargamente. Só Hamburgo e Leipzig fizeram contribuição im-
portante à música depois da segunda metade do século X V I I , pois o centro
de gravidade musical na Europa central passou das cidades para a nobreza.
Philipp Spitta. Johann Sebastian Bach, trad. de Clara Bell e J.A Fuller-Maitland.
Dover-Novello, 1951.
| C.V. Wedgwood. The Thirty Years' War. Cape, 1947.
Hajo Holborn. A History of Modem Germany, 1648 to 1840. Eyre e Spottis-
woode, 1965.
238 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
7
Horst Walter. Musikgeschichte der Stadt Lúneburg. Hans Schneiduer, Tutzing,
1967.
IGREJAS, CHANTRES E COROS 241
Bernhard Krick. St. Thomas zu Leipzig; Schule und Chor. Breitkopf and Hàrtel,
Wiesbaden, 1963.
242 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
9
Ver Capítulo 5, pp. 83-84.
244 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
10
Citado em Krick. Op. cit.
246 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
11
Akten des Rats der Stadt Leipzig, VII B, 31 Foi. 7. Citado em Krick. Op. cit.
IGREJAS, CHANTRES E COROS 247
12
Karl Geiringer. The Bach Family. George Allen & Unwin, 1954.
IGREJAS, CHANTRES E COROS 251
dia. O seu direito foi contestado por um diácono da Igreja de São Nicolau,
igreja que alternava com a de Santo Tomás no cântico dos Hauptgottes-
dienst musicais. Por essa vez ele aceitou uma conciliação, concordando em
renunciar ao privilégio desde que os hinos fossem escolhidos de uma cole-
tânea que ele aprovasse.
Suas celeumas com o Conselho e seus empregadores foram mais
agudas. E m 1729 houve nove vagas para o coro de estudantes na escola,
e Bach examinou 23 candidatos. O Conselho nomeou dez meninos — quatro
sopranos e um contralto que Bach aceitou, quatro que ele rejeitara e um
que não compareceu ao exame. Ele então, imediata e ostensivamente,
começou a se descuidar dos seus deveres para com a escola e, juntamente
com outras omissões, fez com que o Conselho retivesse o seu salário até
que ele desse claros sinais de arrependimento e de que se emendara. O
resultado foi um extenso relatório sobre o estado da música religiosa de
Leipzig, escrito em tom de enfadada tolerância, como que obrigado a
mostrar o evidente a imbecis, o que deve ter irado mais ainda os seus
empregadores.
Para executar a música religiosa como deve ser executada, explica-
va ele, são necessários cantores e instrumentistas. A Thomasschule fornecia
todas as quatro vozes. A música precisava de coristas e solistas; se o coro
não fosse dividido em dois, precisava de um solista para cada voz, mas,
no caso de dois coros, pelo menos oito solistas eram necessários, e devia
haver pelo menos dois cantores para cada parte coral.
Os alunos da fundação da escola, assinalava, davam-lhe 55 cantores,
dos quais ele tinha de selecionar os que cantariam em quatro igrejas, nas
quais se apresentavam ou música "figurai", em semanas alternadas na
Igreja de Santo Tomás ou de São Nicolau, ou motetos ou simplesmente
hinos nas demais. A música na Igreja de São Nicolau, Santo Tomás e Nova
Igreja era cantada em partes; na quarta igreja, a de São Pedro, o coro ape-
nas puxava o canto dos hinos cantados em uníssono pela congregação.
Exceto na Igreja de São Pedro, eram necessários 12 cantores em cada
coro, de modo que houvesse três cantores para cada voz, e mesmo que
alguns dos cantores não pudessem cantar, seria possível apresentar um
moteto a oito vozes. Era preciso, pois, haver 36 meninos para cantar músi-
ca a mais de uma voz, e a situação ficaria melhor se o coro pudesse ser
dividido em grupos de 16, quatro vozes para cada parte.
Quanto aos instrumentistas, explicava ele, tinha necessidade de dois
ou mesmo três primeiros-violinos, dois ou três segundos-violinos, dois
violas, dois celos e um contrabaixo, dois ou três oboés, um ou dois fagotes,
três trompetes e um timpanista, isto é, pelo menos 18 músicos. Precisava
de flautistas (as flautas, explicava ele delicadamente, "são de dois tipos:
a bec — isto é pífanos — ou traversieri"), acrescentando outras duas para
o total necessário de músicos. Mas o Conselho manteve oito — quatro
252 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
moderna, isso para não mencionar o desejo do compositor de ouvir suas obras
adequadamente executadas. As gratificações, embora insignificantes em si,
existiam para os chorus musicus e agora foram suspensas. É surpreendente
que se espere que os músicos alemães toquem à primeira vista qualquer música
posta na estante, venha ela da Itália, França, Inglaterra ou Polónia, como se
a música fosse escrita para eles e como se tivessem altos salários e tempo para
dominar as suas partes. Não se compreende isso mas deixa-se a cargo dos
músicos fazerem o melhor que podem; eles têm de ganhar a vida, e isso lhes
dá pouco tempo para aperfeiçoar sua técnica e menos tempo ainda para se
tornarem virtuosi. Basta um exemplo: vá alguém a Dresden e veja como a
orquestra é paga. Os músicos têm os meios de vida garantidos e vivem sem
preocupações; cada um pode revelar o seu talento para o instrumento e tornar-
se um eficiente executante a quem é um prazer ouvir. A lição é evidente; a
suspensão dos beneficia que se costumava pagar a eles impossibilita-me apre-
sentar a música em níveis melhores.
Bach com isso solicitava uma dotação anual muito maior para a música,
além do que a cidade podia proporcionar. O custo da música "moderna"
era demasiado alto para ser pago pelos métodos tradicionais. Começou
uma decadência em Lúneburg como já acontecera em Leipzig. Em Darms-
tadt, no ano de 1752, Graupner, o Kapellmeister recomendava Albrecht
Ludwig Abele como chantre da Escola Real, encarregado da música na
igreja da cidade. Ao chegar, Abele verificou que o catálogo de música e
instrumentos da escote era um rol de reclamações. "Toda a música escrita
está em frangalhos, grande parte dela inutilizável." A escola possuía "um
órgão, dois violinos, dois maus violinos, duas violas, dois clarinetes em dó,
um contrabaixo usável e um par de pífanos". 1 3 E m um ano Abele pediu
demissão e foi-se embora. Seu sucessor, Hertzberger, queixou-se em 1765
da falta de solistas, observando que um tenor solista realmente bom para
a Stadtkirche custaria 300 florins, e poucos meses depois dizia que a mú-
sica da igreja andava como um animal quadrúpede com apenas quatro
pernas. Bach, arrogantemente agressivo e em condições de abandonar o
trabalho se as coisas não estivessem a seu gosto, teria tido o mesmo tipo
de problema em muitas cidades alemãs tal como foi a sua cruz em Leipzig.
Um ano apenas transcorreu entre a suspensão do salário de Bach è
a nomeação de August Ernesti como reitor, e portanto superior hierár-
quico de Bach. Ernesti era bom erudito - teólogo, filólogo e classicista.
Era também sério pedagogo e homem do Iluminismo; para ele, a Thomas-
schule era uma instituição potencialmente valiosa, prejudicada por sua
13
Elisabeth Noack. Musikgeschichte Darmstadts vom Mittelalter bis zur Goethezeit.
Beitrãge zur Mittelrheinischen Musikgeschichte. Schott, Mainz, 1967.
254 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
recusa a mudar com os tempos. Era errado, a seu ver, simplesmente conti-
nuar como escola coral, subordinando todas as demais metas educacionais
às necessidades do coro da igreja; ela devia oferecer um sistema educacio-
nal mais amplo e mais prático. Um centro comercial do século X V I I I
como Leipzig precisava de um sistema de educação que ensinasse línguas
e matemática para fins práticos. E m vez disso, tais cidades tinham escolas
que gastavam demasiado do seu tempo em música e produziam jovens
altamente preparados numa especialização inútil. Os meninos pobres
que estudavam na fundação podiam ser sobremodo dotados pela natureza
para uma carreira na música, mas eram apenas um terço do total de alunos
da escola.
Evidentemente haverá quem concorde com as críticas de Ernesti,
imaginando estar em Leipzig de 1730; o ensino na Thomasschule inclina-
va-se à especialização em música e não'modificara a sua perspectiva me-
dieval quanto ao educacionalmente necessário, não obstante as imensas
mudanças ocorridas no mundo. Bach, por outro lado, sacrificara uma
carreira socialmente mais avançada e de melhor remuneração para servir
à causa da música religiosa luterana; pelo menos assim achava ele. Acredi-
tava na obra que executava e estava convencido da sua necessidade e
valor. O modo como o Conselho administrava a escola tornava quase
insuportável a situação de Bach, pois o Conselho recusava-se a financiar
os melhoramentos do estabelecimento musical e deixava-lhe um coro tão
ineficaz que ele tinha de escrever cantatas para solo em vez das obras tra-
balhadamente coloridas que preferia; quase todas as cantatas para solo
parece terem sido escritas nos três anos após a sua apresentação ao Con-
selho. Não constituíam um ciclo, mas aparentemente se destinavam a
preencher lacunas quando, aos domingos, a cantata a ser executada fosse
além da capacidade do coro. Quase todas as cantatas parecem alternativas
para a música de domingo ou dia festivo para os quais Bach escrevera
uma obra mais ambiciosa; uma ou duas delas são substituídas por obras
de maior vulto posteriores.
Dizer que, de acordo com os seus contemporâneos, Bach escreveu
cinco ciclos completos de perto de 59 cantatas para o ano eclesiástico não
significa necessariamente que o tenha pretendido. Significa que tão logo
podia, ele reunia um ciclo de cantatas para o ano, provavelmente utilizan-
do nelas obras compostas em Múhlhausen e Weimar, e que, tendo feito
isso, acrescentasse ao ciclo obras que lhe parecessem mais bem adaptadas
à situação de Leipzig do que algumas já existentes; e então, pois era o
espírito dele que trabalhava em ciclos (de modo que há dois prelúdios e
fugas, em tom maior e menor para todo grau da escala cromática, e solos
para violino e ceio explorando todas as tonalidades mais naturais a eles),
as cantatas de um segundo ciclo incompleto, algumas de um terceiro ciclo
e possivelmente uma ou duas de um incompleto quarto ciclo mais ou me-
IGREJAS, CHANTRES E COROS 255
100 Anos. Doles escreveu a música, obteve grande sucesso e, para desgosto
de Biedermann, viu seu prestígio crescer na escola mais do que nunca. O
seguinte entretenimento público de Biedermann foi uma adaptação da
Mostellaria de Rauto, com o objetivo de mostrar o quanto a música con-
duz os jovens à lascívia e ao desregramento, e menciona a descrição dos
músicos por Horácio como vagabundos, pedantes e mendigos. A anti-
ga Igreja os havia banido e só lhes permitia receber o sacramento uma
vez por ano.
Isso foi considerado um ataque público a Doles e à política edu-
cacional pela qual a escola lutava pelas mesmas causas mas por motivos
ainda mais triviais que os da famosa querela de Leipzig. Envolveu Bach e
Mattheson, que escreveu uma série de artigos contra Biedermann e suas
idéias. O problema das escolas e portanto da autoridade do chantre não
se limitava a Leipzig. Era resultado da crença generalizada de que a edu-
cação na Alemanha devia ser modernizada e, juntamente com o custo
crescente e excessivo da música religiosa, causou a morte das cidades ale-
mãs como grandes e influentes centros musicais até que algumas delas,
como Leipzig, surgiram de novo como sede de grandes orquestras, propor-
cionando concertos didáticos importantes para seus cidadãos.
14 A M Ú SI CA E O A B SO LU T I SM O FRA N CÊS
258
A MÚSICA E O ABSOLUTISMO FRANCÊS 259
da nobreza feudal. Pela primeira vez precisavam recorrer ao rei para obter
cargos na corte de modo que mantivessem prestígio e prosperidade. Trinta
anos de guerra civil religiosa, que terminaram com a subida de Henrique I V
em 1589, destruíram a posição privilegiada que a monarquia preparou
para si mesma e dissiparam o dinheiro de que ela dependia. Henrique I V
reconstruiu a situação financeira do rei, mas, após a sua morte em 1610,
a nobreza humilhada viu que era a hora de recuperar a sua independência
perdida. Luís X I I I subiu ao trono com a idade de nove anos, e os nobres
passaram a explorar a sua menoridade não por um retorno ao feudalismo,
mas pela exigência de pensões e sinecuras palacianas como preço para a
paz interna, e ficando suficientemente ricos para opor-se à monarquia.
Assim é que o seu reinado de 33 anos e o domínio do cardeal Riche-
lieu, de 1624 a 1642, foi uma época de restauração do poder real e sua
consolidação, e no qual a França traçava o caminho através das comple-
xidades da política européia durante a Guerra dos 30 Anos. De fato, a
maior realização de Richelieu foi tornar possível a França de Luís X I V .
A oposição política da nobreza foi impiedosamente esmagada e, aos
poucos, os poderes locais da aristocracia nas províncias cederam lugar ao
dos intendentes nomeados pelo rei.
Luís X I I I era dedicado à música, como também sua mulher, Ana da
Áustria. Seu pai trouxera violinistas italianos para a sua orquestra particu-
lar e, em 1604, providenciou para que Caccini e sua filha Francesca, tão
célebre como cantora como seu pai, visitassem a França. Desse modo
a ópera em estilo italiano foi introduzida com a representação de uma
Euridice que pode ter sido a obra de Peri de 1597, ou uma versão de
Caccini do mesmo texto ou ainda uma ópera que combinava partes de am-
bas. Rinuccini, libretista, acompanhou Caccini, e, como intercâmbio mu-
sical, levou consigo para a Itália a idéia do ballet de cour. Caccini ficou
suficientemente impressionado pela música francesa a ponto de sugerir
ao duque de Mântua que um de seus melhores cantores fosse mandado à
França para estudar música. Henrique I V manteve uma companhia italiana
que apresentava música em estilo italiano aproveitando o amor francês
ao balé, de modo que, em 1617, quando uma companhia principalmente
francesa produziu uma obra que era quase total fusão da pastoral italiana
e do balé, a França parecia estar sucumbindo à forma totalmente barroca
de ópera.
Por essas razões, a ópera em estilo italiano na França passou a ser
um requisito de companhias visitantes provenientes da Itália, incentivadas
por Luís X I I I . Pastorais como a Maddelena de 1613 tornaram-se o protó-
tipo da forma que os franceses vieram a chamar de Õpera-Ballet. A absor-
ção da música francesa no estilo internacional foi lenta, em parte pelo
conservadorismo cultural dos franceses e em parte por faltar à França um
compositor de estatura suficiente para efetuar a síntese que estava no
260 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
1
Norman Demuth. French Opera, its Development to the Revolution. Ártemis
Press, 1963.
264 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
* A musette era muito popular desde o século XIII e foi utilizada por LuUy na ópe-
ra. É talvez o mais remoto antepassado do acordeão e, no caso, não se confunde com
266 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
o oboé pastoral, este último parecido com o oboé d'amore, porém, em geral sem cha-
ves. (N. do T.)
* Trombone feito de madeira e recoberto de couro, com nove orifícios. (N. do T.)
A MÚSICA E O ABSOLUTISMO FRANCÊS 267
2
Joseph Addison. The Spectator, n9 29, 3 de abril de 1711.
268 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
inteligente para lhes pagar bem, pois sua influência foi mais direta. Por
ter encontrado compositores de primeira plana e que proporcionavam a
música atraente ao seu gosto educado, lançava as diretrizes pelas quais a
música francesa passou desde então a evoluir. Há evidentes diferenças entre
as peças de género de Couperin ou Rameau e os Prelúdios de Debussy ou
Gaspard de la nuit de Ravel, mas, apesar disso, são obras que participam
da crença couperinesca no pictórico, na clareza e na elegância, que contém
intensidades dentro de formas suficientemente robustas para mantê-las em
ordem, e que sempre preferem o equilíbrio ao excesso e a clareza ao entu-
siasmo incontrolado. Podemos mencionar a França de Luís X I V como o
ponto de partida de toda a subsequente música francesa e observar que os
compositores franceses posteriores cuja perspectiva musical não coincidia
com a do rei Luís, em qualquer época, em que vivessem, jamais tiveram
preocupações com os seus compatriotas.
Lully exerceu uma influência permanente na ópera francesa, mas a
forma rígida que ele elaborou para manter o enredo em movimento contí-
nuo até o clímax começou a esmorecer nos 20 anos após sua morte e a
admitir idéias italianadas que permitiam a expansão de idéias líricas com
maior liberdade, de modo que se desenvolvessem no sentido da ária e, nas
obras de Rameau (cujos contemporâneos viam como um quase perigoso
revolucionário, embora para nós seja ele o último grande lulliano), há pas-
sagens de canto ostentoso e nítida pausa no desenvolvimento da história
para arietas reflexivas e quase autónomas. A primeira ópera de Rameau,
Hippolyte et Aricie, foi encenada em 1733, quando o compositor tinha 50
anos, e os lullianos ficaram perturbados, ao ouvirem a orquestração rica e
pormenorizada da primeira ópera séria de Rameau, pois ele sempre escre-
vera obras mais ligeiras e menos intensas antes de cuidar de obter um apoio
na Académie. Os cantores passaram a ser meras partes da complexa trama
da música de Rameau na qual o compositor procurava os equivalentes
musicais de sons do mar, canto de pássaros, brisas suaves movendo folha-
gens, e até mesmo uma erupção vulcânica. A orquestra da Académie tinha
46 integrantes em 1713; para Rameau, no final da sua carreira, com o re-
nascimento do seu Zoroastro em 1760, 47 eram o mínimo necessário e
alguns desses deviam tocar também instrumentos raros como a musette,
além do seu. Os instrumentinos consagrados consistiam em duas flautas,
quatro oboés e cinco fagotes; Rameau retirou os fagotes dos baixos em
geral, onde eram indivisíveis dos celos, e lhes deu importantes papéis meló-
dicos e consideráveis acréscimos à coloração orquestral. Acrescentou dois
clarinetes ao número regularmente aceito. O único instrumento metálico,
antes dele, era um só trompete; muitas de suas partituras exigem trompas,
introduzidas na orquestra quando necessário. Para os lullistas, Rameau era
culpado de obtusa complicação, complexidades inúteis e abandono do
estilo de Lully de deliberada simplicidade e pureza, mas os lullistas acaba-
A MÚSICA E O ABSOLUTISMO FRANCÊS 271
3
J.-J. Rousseau. Lettre sur la musique française, 1753.
A MÚSICA E O ABSOLUTISMO FRANCÊS 273
5
C.W. Gluck. Cottected Correspondence and Papers, org. por Hedwig e E.H. Mueller
von Asow. Londres, Barrie & Rockliff, 1962.
A MÚSICA E O ABSOLUTISMO FRANCÊS 277
zado para solenidades cívicas, espetáculos e tudo o mais que servisse como
propaganda republicana. Para isso ele juntou dignidade, grandeza e esplen-
dor de uma forma que lembrou as glórias de Luís X I V , às vezes incoeren-
temente consorciadas com a música das ruas.
A evolução da vida musical em Paris, depois da fundação do Concert
Spirituel em 1725, ensejou outros estilos de música — o concerto, a suite
e, por fim, a sinfonia para públicos franceses. A suite francesa, surgida de
coletâneas de movimentos dançáveis de óperas, teve evolução local; con-
certos e sinfonias eram em geral importados da Itália, Alemanha e Áustria.
A música fora de Paris dependia apenas dos serviços de músicos que não
obtinham sucesso na capital.
À parte as sinfonias de Gossec, obras injustamente esquecidas, pouca
música orquestral importante surgiu da França do século X V I I I , a não
ser as sinfonias de Franz Beck, que nasceu em Mannheim em 1723, estu-
dou violino custeado pelo eleitor Theodoro e estudou com Johann Stamitz,
mas teve de fugir para a França depois de bater-se num duelo. Estabeleceu-
se em Bordéus, onde havia grande colónia alemã, em 1761, e veio a ser
diretor musical do Grand Théâtre ali existente. Fundou uma série de con-
certos, foi organista da igreja mais importante da cidade e, em 1791,
inaugurou a primeira firma publicadora de Bordéus. As sinfonias de Beck
por volta de 1770 rivalizam com as Sturm undDrang que Haydn escrevia na
mesma época; como as sinfonias de Gossec, as de Beck merecem reabili-
tação. Mas nenhum outro compositor da estatura de Beck dedicou seus
talentos a qualquer cidade provincial na França durante o século X V I I I .
15 I N GL A T ERRA - M Ú SI CA PA LA CI A N A E M Ú SI CA CI T A D I N A
280
MÚSICA PALACIANA E MÚSICA CITADINA 281
peça; o público não contava com ela para a narrativa, ação ou caracteriza-
ção — tudo isso era função da peça na qual o teatro de máscara era um
interlúdio — mas o público tinha dança, canto e música como um bónus
além do que invariavelmente apreciava. Os teatros públicos não podiam
encenar atrativos visuais, que eram atribuição para a mascarada palaciana;
mesmo que seus prédios fossem adaptados para a complicada maquinaria
cénica, não teriam condições de criá-los.
Só a música das mascaradas palacianas era dispendiosa e fora do
alcance dos teatros públicos. E m 1610 a Masque of the Queens, com texto
de Ben Jonson composta por Alfonso Ferrabosco Jr., custou 90 libras
esterlinas, pois só de músicos havia "13 oboés e saquebutes bem como 14
violas" e "12 outros alaúdes, com flautas", "12 músicos que eram sacer-
dotes, faziam canções e tocavam" e "15 músicos que tocavam os pages e
fooles"; a música era interminável.
É no contexto de música desse tipo e das idéias do drama e da músi-
ca clássicos que chegaram à Inglaterra provenientes da Itália que as canções
de Henry Lawes devem ser compreendidas. Burney achou a música dele
"lânguida e insípida", e Hawkins concluiu que não tinha "recitativo nem
ária" e "que falta um nome para ela". Poetas como Milton e Herrick apro-
varam-na, pois se prestava a métrica, ritmo e inflexão mediante música;
não era um estilo inglês de recitativo, mas estilo arioso, devendo algo à
consideração dos ingleses pela poesia no que não usava as palavras do
poeta apenas como pretexto para sublinhar uma expressão puramente
musical.
Há também certa prefiguração do barroco na cantiga versificada in-
glesa, em voga no final do reinado de Isabel I . Os diálogos de vozes solistas
acompanhados de violas e um coro com acompanhamento de órgão podiam
ter evoluído em algo comparável às composições concertato dos italianos
se a Commonwealth não tivesse, de 1649 a 1660, forçado a evolução a
seguir outras trilhas.
Os coros das igrejas estiveram silentes durante pelo menos 11 anos.
Foram retirados órgãos de muitas igrejas, e considerável número deles foi
montado em hospedarias e tavernas para entretenimento da clientela. A
hostilidade puritana era contra a música religiosa e o teatro, e os músicos
que ganhavam a vida em casas de espetáculos passaram maus momentos;
os músicos das igrejas parece terem sido considerados bastante instruídos
para serem aceitos como professores, mas o autor de The Actor rs Remons-
trance, publicado em 1643, um ano depois de iniciada a Guerra Civil e
quando os teatros foram fechados, indicava a depressão em que ele e seus
companheiros caíram: "Nossa música, que era considerada tão agradável
e preciosa a ponto de desdenhar apresentar-se numa taverna por menos
de 20 xelins por duas horas, tem agora os seus músicos vagueando com
seus instrumentos debaixo dos capotes — quer dizer, quem ainda os tem —
282 HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA
1
John Evelyn. Diary. Junho de 1645.
MÚSICA PALACIANA E MÚSICA CITADINA 283