Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O objetivo deste artigo é descrever, analisar e refletir sobre uma modalidade de moradia que vem adquirindo
progressiva importância quantitativa e qualitativa na cidade de Salvador (Bahia, Brasil) e em seu centro histórico
(CHS). Trata-se da ocupação de casarões e prédios por pessoas pobres, ligadas aos movimentos Sem Teto. O tra-
balho de campo etnográfico, realizado junto a seis ocupações, permitiu-me chegar a algumas conclusões que apre-
sento neste trabalho: 1) algumas ocupações são uma versão atualizada dos antigos cortiços do CHS, com problemas
que agravam ainda mais sua situação; 2) a maior parte delas corresponde a ensaios de uma nova forma de habitar
que representa uma experiência rica de autogestão e liderança feminina; 3) a centralidade é um valor essencial para
os trabalhadores precarizados e vulneráveis que habitam desde o século XIX o centro da cidade, valor que passa a
ser atualmente reivindicado, em discursos e (ou) práticas, como o direito à centralidade.
Palavras-chave: Ocupações. Centro Histórico de Salvador (CHS). Cortiços. Formas de habitar. Centralidade.
http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.24654 383
HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO ...
aproximadamente 60 anos, que, naquele pre- do patrimônio, da cultura e dos direitos huma-
ciso momento, pretendia sair. Ela, lamentavel- nos (Montoya Uriarte, 2003, 2012), que deixou
mente hoje falecida, disse-me se tratar de uma vários casarões vazios, alguns dos quais foram
ocupação ligada ao Movimento Sem Teto da ocupados por sem teto, isto é, por pessoas sem
Bahia (MSTB), cujas lideranças eu devia pro- capacidade de pagar o aluguel de uma mora-
curar “para saber mais”. dia. A terceira parte expõe a volta dos cortiços
Foi assim que conheci as lideranças que em alguns casarões ocupados, agravada por
moravam em outro casarão ocupado, dessa vez uma situação antes inexistente – o violento
na Rua do Passo, que concordaram com a pes- tráfico de drogas –, que fez surgir o que chamo
quisa e me indicaram outras ocupações e os de um habitar coagido. A quarta parte discorre
nomes das pessoas que eu devia procurar ne- sobre uma forma de habitar oposta – o habitar
las.2 Vale salientar que, em todos os casos, mi- com dignidade –, encontrada na maior parte
nhas interlocutoras foram mulheres. De fato, das ocupações estudadas, pelo menos até o
“quem quer casa é mulher, quem quer cachor- momento. Por fim, fechamos o texto com um
ro, periquito, filhos, é mulher”. São elas que elemento comum a ambas as formas de habitar
fazem as ocupações, que vão às reuniões, que encontradas nas ocupações do CHS: a impor-
lideram cada prédio ocupado. tância da centralidade que, no discurso ou na
O trabalho de campo etnográfico em prática, é reivindicada como um direito.
ocupações teve de se adaptar a cada tipo de
ocupação. Naquelas onde a presença do tráfico
de drogas não é dominante, pude entrar e sair SURGIMENTO E CONSOLIDAÇÃO
à vontade, procurando observar, participar do DOS CORTIÇOS NO CHS
cotidiano e conversar frequentemente com as
moradoras. Nas outras ocupações, minha entra- O chamado CHS, mais conhecido como
da ficou restrita a algumas visitas, e as conver- Pelourinho (pilar onde eram supliciados os
sações tiveram de ser feitas em outros locais.3 escravos nessa cidade), é uma poligonal tom-
As falas das moradoras de ambos os tipos de bada como Patrimônio da Humanidade em
ocupações são parcialmente reproduzidas em 1985. Trata-se de um conjunto arquitetônico
itálico neste texto, sem se mencionar o nome colonial, em sua maior parte originado no sé-
de sua enunciadora, por razões de segurança. culo XVIII, composto de igrejas, conventos e
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 383-393, Maio/Ago. 2019
384
Urpi Montoya Uriarte
385
HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO ...
casa de cômodos, estalagens ou zungus4 (cf. fi- décadas do século XIX, uma condição na qual
guras 1-2). estavam presentes a insalubridade, a densida-
de, a promiscuidade, a pobreza e a estreiteza.
Figura 1 – Moradoras de um casarão subdividido do
Maciel, possivelmente na década de 1970 Em Salvador, a palavra cortiço, já no sé-
culo XX, foi usada basicamente para designar
os “palacetes deserdados de seu papel históri-
co” (Santos, 1959, p. 182), isto é, os casarões
subdivididos:
386
Urpi Montoya Uriarte
como zonas de cortiços. Eram as ruas Ânge- Figuras 5 e 6 – Ruínas e escombros no Maciel. Beco do
Mijo (Rua Inácio Accioly), possivelmente na década de
lo Ferraz, Santa Isabel, Inácio Accioly, Padre 1970
Nóbrega, São Francisco, Muniz Barreto etc.,
todas no Pelourinho. Essa área se tornou um
grande cortiço: no Maciel (uma micro área do
CHS), em finais da década de 1960, havia “223
imóveis, dos quais 132 são casas-de-cômodos
e 27 são unidades residenciais de grupos fami-
liares, enquanto que os demais se distribuem
em: comerciais (com exclusividade), ruínas,
em conserto e fechados” (Espinheira, 1971, p.
15). O adensamento e os estragos do tempo nas
edificações antigas tornavam as condições de
moradia cada vez mais precárias5 (Cf. Figuras
3, 4, 5 e 6).
5
O aumento substancial do número de prédios ruindo é
um bom indicador dos efeitos do tempo e do descaso de
seus proprietários e do Estado, supostamente encarregado Fonte: Acervo do IPAC, Museu Tempostal.
de salvaguardar ou fiscalizar o patrimônio. Em 1969, eram
13 os prédios totalmente arruinados no Maciel; em 1978, Na década de 1950, Milton Santos assim
já eram 41 e, em 1988, eram 51 prédios. Em 1991, 30 pré-
dios desabavam por ano. descreveu o palacete número 24 da Rua Ribei-
387
HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO ...
ro dos Santos, chamado Casa das Sete Mortes, centro (Cardoso, 1991, p. 67) e, no caso dos gru-
onde o primeiro pavimento foi dividido em pos discriminados, dentre os quais os travestis,
18 peças, 11 das quais eram dormitórios nos pela quase nula possibilidade de conseguir habi-
quais moravam 40 pessoas: tação em outras partes da cidade (Kulick, 2008).
Ao longo do século XX, a população dos
[...] Salas e quartos demasiadamente pequenos,
verdadeiras células, estão separados por paredes
cortiços não variou significativamente. Como
de madeira. Nesses cubículos não há luz, nem ar e vimos, Jorge Amado escreveu tratar-se de “ope-
inexiste higiene. A vida nesses cortiços é um verda- rários, soldados, árabes de fala arrevesada,
deiro inferno e as diversas famílias que ocupam um mascates, ladrões, prostitutas, costureiras, car-
mesmo andar se veem obrigadas a se servirem de regadores”; para as primeiras décadas, Bacelar
um único banheiro e uma só latrina. Escadas estra-
(1975) se referiu a operários, carregadores, ven-
gadas, soalhos furados, paredes sujas, tetos com go-
teiras formam um quadro comum a toda essa zona
dedores ambulantes de comida, pequenos co-
de degradação (Santos, 1959, p. 166). merciantes, alfaiates, cabeleireiros, sapateiros,
árabes e turcos; Milton Santos relatou serem
O “mundo fétido, sem higiene e sem
“pequenos empregados ou pessoas sem uma
moral”, nas palavras de Jorge Amado na déca-
ocupação permanente ou bem definida. Seu
da de 1920, tornou-se “um verdadeiro inferno”
local de trabalho era, de preferência, no centro
nas palavras de Milton Santos na década de
da cidade” (Santos, 1959, p. 167). Segundo es-
1950. Na década de 1970, a densidade popula-
tudo coordenado por Vivaldo da Costa Lima na
cional dos cortiços fez com que o tamanho mé-
década de 1960, os homens trabalhavam como
dio dos quartos fosse de 4 m². Um sobrado de
engraxates, biscateiros, mecânicos, pintores,
2 pavimentos, com 2 quartos, costumava ser
pedreiros, serventes (Secretaria de Educação
adaptado por tapumes para abrigar 24 quar-
e Cultura do Estado da Bahia, 1969); dentre
tos. Nos corredores, moravam os mais pobres
as mulheres, o meretrício tornou-se atividade
dentre os pobres. Bacelar (1982) fez a seguinte
principal: em 1967, as prostitutas do Pelourinho
descrição interna dos cômodos:
eram 42,0% das moradoras da área. Na década
Os cômodos do Maciel têm, em média, 3 a 5 m2; são, de 1980, uma pesquisa demonstrava a perma-
em sua maioria, ocupados por uma cama, e, quando nência do perfil de seus moradores: a maioria
o grupo tem mais de um filho, é feita a adaptação de dos residentes eram vendedores, domésticos e
algum móvel ou estrado de madeira para que possam
prostitutas, e 50% deles não chegava a ganhar 2
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 383-393, Maio/Ago. 2019
388
Urpi Montoya Uriarte
esvaziados de sua população pobre e negra para [...] no entorno principal, sobretudo nas áreas não
serem reformados e transformados, posteriormen- reformadas, reside uma população extremamente
pobre que sobrevive em casarões degradados, tem
te, em lojas, restaurantes, museus e ateliês, isto é,
baixa escolaridade e parco rendimento [...]. Todos os
criou-se uma área de turismo, lazer e cultura na indicadores sociais do Censo 2000 indicam as sub-
qual a função residencial foi banida. Apenas 3,1% -regiões Pelourinho-Sé e Misericórdia-Castro Alves
dos imóveis do Pelourinho “recuperado” mante- como sendo as mais vulneráveis, onde as condições
ve essa função (Governo.., 1997-1998), o que sig- de precariedade aparecem de forma mais acentuada
nifica que 95% dos moradores que ali residiam (Gottschall; Santana; Rocha, 2006, p. 23-24).
foram expulsos (Montoya Uriarte, 2003, p. 79). Retomaram o centro, também, como “Sem
Segundo números oficiais, até o final da década Teto”, ocupando casarões reformados do CHS e
de 1990, 85% dos moradores foram indenizados da maior área antiga denominada Centro Antigo
para saírem do CHS. De fato, foram 3.190 pessoas de Salvador (CAS), dando uso a parte dos 1.400
(Gottschall; Santana; Rocha, 2006, p. 35) expulsas, imóveis vazios, subutilizados, em ruínas e (ou)
pois elas não “saíram”, nem foram “retiradas”, ou fechados do CAS (Pires; Souza, 2014, p. 168).
apenas “removidas”. Foram expulsas não só pelas “Porque nós não temos onde morar havendo tan-
indenizações irrisórias, mas porque queriam ficar tos imóveis vazios?”, perguntam-se com razão as
e não foi lhes dada essa possibilidade. Na década moradoras dos prédios ocupados do CHS com as
de 2000, foram expulsos outros tantos, correspon- quais trabalhamos (Cf. Figuras 7-12)7.
dentes aos moradores do que se chamou de 7ª eta-
pa e da área da Rocinha. Só podemos especular o Figuras 7-12 – Casarões e prédios ocupados por Sem
Teto no CHS, cuja população acompanhamos e ouvimos
número total até hoje, um número que deve certa- ao longo do trabalho de campo
mente ultrapassar 6.000 pessoas.
Os antigos cortiços foram todos esvazia-
dos. Mas a população expulsa voltou, retomou
o território de diversas formas: como vendedo-
res ambulantes de produtos diversos para os
turistas, como pedintes nas ruas reformadas
onde antes moravam, como usuários de drogas
nas ruas ainda não reformadas ou como inqui-
linos das margens da área reformada. O fato é
7
Na Região Metropolitana de Salvador, o número de
domicílios vagos é enorme. Conforme se lê no Atlas sobre o
direito de morar em Salvador (Santos et al., 2012, p. 71), “en-
forma se alastra desde os anos 2000 até agora. Nessa área, quanto o déficit habitacional urbano é de 114.524, o número
uma margem do Pelourinho “recuperado”, sobreviveram de domicílios vagos é de 140.890, o que significa que temos
cortiços convivendo com ruínas. imóveis suficientes para acabar com o déficit habitacional”.
389
HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO ...
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 383-393, Maio/Ago. 2019
390
Urpi Montoya Uriarte
391
HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO ...
diminutos separados por tapumes, excesso de gente não pode sair para bairro nenhum, não
gente. Os ambientes exíguos e muito próximos, pode ir para a Liberdade porque [somos] do
com divisórias que não chegam até o teto devi- Pelourinho”. Sua narrativa explicita o conflito
do ao pé direito alto das construções antigas, entre as diversas facções do tráfico que se alas-
promove a mesma desconfiança e retraimento tram entre territórios, nos quais cada bairro
que Kovarick (2009, p. 272) detectou nos corti- possui a identidade com uma facção.
ços por ele estudados no centro de São Paulo. Os traficantes costumam entrar devagar,
Trata-se de um habitar apertado, um estar-jun- primeiro num quarto. Muitos são generosos:
to extremo, ocasionando o que o sociólogo cha- “Bandido se aproveita da pobreza. Paga um fei-
mou de “sociabilidade do distanciamento”. jão, paga um gás. Compra o apoio da pessoa,
Há, no entanto, um elemento novo que seu silêncio ou sua conivência. Eles dão dinhei-
agrava esse velho habitar. Trata-se do tráfico ro e, com isso, te calam”. Depois, vão ocupan-
de drogas, que promove um estar-junto coa- do mais quartos, tornando-os locais de venda
gido e transforma o distanciamento para com de drogas, ou “boca de fumo”. A venda torna
os vizinhos num habitar contra os vizinhos. necessário que todo o espaço passe a ser con-
As relações se reduzem, a ponto de criar um trolado pelo “gerente do movimento” (Birman;
392
Urpi Montoya Uriarte
Fernandes; Pierobon, et al., 2014), que contro- nas de ninguém”. Sendo a organização fraca, a
la quem entra e quem sai e a que horas, proi- autoridade do coordenador do prédio se torna
bindo visitas que possam “dedurar”, fazendo igualmente frágil. O resultado é um vazio de
festas onde todos os excessos se permitem. Os autoridade que permite que “...a bandidagem
controles são feitos mediante a violência, e o tome conta porque as pessoas deixam de tomar
convívio passa a ser marcado por ameaças de conta. Falta coragem, autoridade”.
morte e xingamentos, às vezes com armas nas Os líderes do movimento são também
mãos. Quando a liderança decide enfrentar o ameaçados: “O movimento não faz nada contra
tráfico, ela sofre represálias duríssimas. Uma a marginalidade. O movimento já foi ameaça-
delas nos deu seu depoimento: disse ter sido do de morte”.
ameaçada de morte e teve sua casa incendia- Em terceiro lugar, são ocupações cujos
da, sobrevivendo apenas porque não estava no moradores se encontram entre os mais pobres
prédio ocupado no momento. Sobreviveu, mas dentre os pobres. A luta pela sobrevivência é
perdeu todos os seus pertences. Além de per- feita a cada dia, a cada refeição: “Toda manhã
der a esperança e a força para lutar: “A gente é um dia de sobrevivência, de trabalho para co-
vai perdendo força, estamos desistindo do mo- locar comida na mesa. Como arrumar o local
vimento”. onde se mora nessas condições?” Com efeito,
Os casarões ocupados que apresentam quando a necessidade de trazer comida para
esse habitar apertado e coagido são ocupações dentro de casa é um desafio a ser enfrentado
que partilham algumas características impor- diariamente, a cada refeição, qualquer outro
tantes. Em primeiro lugar, eles têm vários anos objetivo, nessas condições, é visto como supér-
de existência e foram feitos sem uma seleção fluo ou desnecessário.
coletiva apurada de seus moradores. Cada um Embora, em muitos casos, haja, entre os
dos agentes que ocupava ia chamando conhe- moradores, uma oposição moral que condena
cidos para realizá-la, sem haver uma aprovação os traficantes ou bandidos por não seguirem
dos futuros moradores, nem um conhecimen- a “ética do trabalho” (Zaluar, 1985), surpreen-
to mútuo entre todos eles. Nas lideranças, há dentemente, em muitos outros, essa atividade
consenso sobre as consequências desse início: é compreendida e até justificada. O fato é que
“O problema maior é a forma como se ocupa e a pobreza e a fome ajudam a naturalizar o trá-
isso deixa o tráfico tomar conta. Não há uma fico de drogas. Para muitos moradores de pré-
393
HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO ...
rada boa, na medida em que os limites entre o bundo (Santos et al., 2012, p. 105-106).
coletivo e o privado estejam bem delimitados
As ocupações que conseguiram construir
e defendidos. Os vizinhos se falam nos corre-
um habitar com dignidade têm em comum a
dores, nas portas, ou até de uma janela a outra,
enorme importância das mulheres. Em todos os
mas as portas das casas se mantêm fechadas, e
casos, são ocupações coordenadas por mulhe-
a música de um não é a música de todos; be-
res com um perfil muito singular: mulheres de
bem juntos, vez por outra, em algum local, e se
personalidade forte, autoridade e determinação,
encontram em reuniões do movimento ou do
com uma garra e uma presença que podem até
prédio, mas há um respeito pelo espaço indi-
amedrontar, que fazem e dizem que fazem: “A
vidual e pela individualidade de cada unidade
gente não pode discriminar, tem que incluir. Mas
familiar. Assim, não há banheiros comuns ou
aqui [no prédio] eu faço uma seleçãozinha. Não
cozinhas comunitárias – “isso é coisa de pau-
quero aglomeração de bandidagem”.
lista!” – nem espaços coletivos ou confraterni-
Em todos os casos, também se trata de
zações envolvendo todos.
casarões onde a grande maioria dos morado-
Em terceiro lugar, o habitar com digni-
res são mulheres. Trata-se, ainda, de mulheres
dade supõe um cuidado estético especial com
aparentadas por laços de sangue ou amizade
394
Urpi Montoya Uriarte
de longa data. Foram elas as que planejaram as Dentre todos os fatores que a centrali-
ocupações e as que selecionaram seus futuros dade promove, o trabalho é aquele que mais
moradores com o critério do gênero, preferin- aparece destacado, pela sua inegável impor-
do as unidades familiares chefiadas por mu- tância para a sobrevivência. “É preciso morar
lheres, amigas ou parentes. Assim, o parentes- em um local no qual a gente possa sair para
co na linha feminina, elemento tão importante trabalhar. De que adianta morar em uma casa
encontrado no habitar dos becos ou avenidas bonita e ficar com fome, de braço cruzado, sem
pesquisadas na Baixa dos Sapateiros e que pro- poder trabalhar? Tem muita gente na rua que
picia um habitar com vizinhos (Montoya Uriar- recebeu a casa em bairro distante, mas não tem
te, 2019), aparece novamente nas ocupações como sobreviver”, disse o morador de um pré-
como elemento aglutinador do habitar. dio ocupado à equipe que redigiu o livro Atlas
sobre o direito de morar em Salvador (Santos
et al., 2012, p. 86). Com efeito, a centralida-
À GUISA DE CONCLUSÃO: o direi- de é sobrevivência, mas também, e não menos
to à centralidade importante, é rede de relacionamentos e me-
mória alimentada nos percursos diários, traje-
Velhos casarões do Pelourinho – agora tos cotidianos e circuitos traçados ao longo de
reformados e pintados – voltaram a abrigar o anos de moradia em diversas casas do centro
mesmo perfil dos moradores do centro de Sal- da cidade.
vador de um século atrás: autônomos, infor- Em contraste com o passado longínquo
mais, ambulantes, desempregados, subempre- e recente, a centralidade hoje não é somente
gados, sobreviventes das tarefas que o centro praticada: ela é parte de um discurso que, a
da cidade permite (limpadores de carros, ca- meu ver, a considera como um direito. Os mo-
tadores de materiais recicláveis, carregadores, vimentos Sem Teto afirmam claramente: “Não
vendedores de rua, pedintes etc.). Inclui-se queremos remanejamento. Queremos centro
agora, é verdade, em algumas ocupações, uma histórico. A história da gente está aqui”. Tal
profissão nova que cresce em todos os bairros como os moradores organizados da 7ª etapa da
populares: os traficantes. Mas as formas de ha- Reforma do Pelourinho afirmavam em inícios
bitar esses casarões mudaram: naqueles onde da década de 2000: “Você acha que eu, com
o habitar apertado permaneceu, acrescentou- este tanto de filhos, vou pra Coutos? Vou acei-
395
HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO ...
intitulado “O centro antigo é do povo”, que entre centro e periferia. Aberta ou silenciosa-
vale a pena reproduzir: mente, discursos e práticas são contrapolíticas
espaciais que desafiam a regra que, no Brasil,
Nós participamos da história do Centro Antigo
desde sua construção, em cada pedra, de cada rua
dita que “o lugar dos trabalhadores pobres e o
e cada casa. Erguemos com nosso suor, nosso tra- lugar para os trabalhadores pobres” é a perife-
balho, nossa cultura e criatividade. Hoje, depois de ria (Holston, 2013, p. 197). No caso dos casa-
quase cinco séculos, continuamos resistindo e vi- rões habitados com dignidade, trata-se de ain-
vendo para mantê-lo vivo e de pé. Somos nós que da mais: são experimentações de autogestão e
moramos nos casarões abandonados por proprietá-
liderança feminina. Ensaia-se, apesar de todas
rios irresponsáveis e sem compromisso com o Cen-
tro e com sua história.
as dificuldades, com muito esforço e sacrifício,
Mais uma vez querem nos expulsar das nossas ca- a invenção de um habitar com regras autôno-
sas, para dar lugar a um modelo de turismo que não mas, que impede a entrada do tráfico de drogas
nos inclui e a uma classe que não nos aceita. Nós e sua violência, um habitar onde os espaços
não aceitamos sair do nosso lugar, nem o apagamen- coletivos e privados são igualmente cuidados
to das nossas memórias.
e resguardados, onde a liderança feminina é
Não vamos aceitar ver o povo negro expulso de
novo.
afirmada e respeitada. Diante desses ensaios,
O Centro Antigo está cheio de vida e essa vida so- o remanejamento de seus moradores – na ver-
mos nós, nossos corpos, nosso trabalho, nossos pas- dade, de suas moradoras – para outros locais
sos, nosso viver! ou prédios não passa de uma aberta cegueira
O CENTRO ANTIGO EXISTE! política.
O CENTRO ANTIGO RESISTE!
O CENTRO ANTIGO É DO POVO!9
Recebido para publicação em 07de novembro de 2017
Por outro lado, há aqueles, que, sem or- Aceito em 13 de maio de 2019
ganização coletiva e muitas vezes sem discur-
so articulado sobre o assunto, defendem esse
direito na prática, na teimosia de voltar após REFERÊNCIAS
ter sido expulso, seja pagando aluguel ou ocu-
AMADO, J. Suor. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
pando casarões, ou na teimosia de não deixar
BACELAR, J. A família da prostituta. São Paulo: Ática,
suas casas, apesar de todas as ameaças. Para to- 1982.
dos eles, os “bairros” são sinônimos de distân-
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 383-393, Maio/Ago. 2019
clarecido, a defesa da centralidade é uma con- CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 16 ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 1994. (1. Artes de fazer).
trapolítica, uma ação na contramão (Holston, COLLINS, J. “But what if I should need to defecate
2013, p. 62), uma insubordinação diante da in your neihgborhood, madam?”Empire, redeption
and “the tradition of the opressed in a brazilian world
política de fronteiras que produz as diferenças heritage site”. Cultural Anthropology, [s.l], v. 23, n. 2, p.
279-328, May 2008. Disponível em: http://anthrosource.
9
Disponível em https://www.facebook.com/articulacaodo- onlinelibrary.wiley.com/hub/issue/10.1111/cuan.2008.23.
centroantigodesalvador/ Página do Articulação do Centro issue-2/. Acesso em: 14. 03. 2017.
Histórico, publicada no Facebook no dia 24 de junho de
2017 para consulta 26/06/2017. COSTA, A. Ekabó! Trabalho escravo, condições de
396
Urpi Montoya Uriarte
moradia e reordenamento urbano em Salvador no século MATTOSO, K. Q. de. Bahia, século XIX: uma província no
XIX. 1989. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Império. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
Urbanismo)- Universidade Federal da Bahia, Salvador.
MIRANDA, L. C. Vizinhos do (in)conformismo: o
DAVID, O. O inimigo invisível. Epidemia na Bahia no movimento dos sem teto da Bahia entre a hegemonia
século XIX. Salvador: Edufba; Sarah Letras, 1996. e a contra-hegemonia. 2008. Dissertação (Mestrado
em Ciências Sociais) - Universidade Federal da Bahia,
ESPINHEIRA, C. G. Comunidade do Maciel. Salvador: Salvador.
Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia,
1971. MONTOYA URIARTE, U. Entra em beco, sai em beco.
Formas de habitar o centro, Salvador e Lisboa. Salvador:
FARIAS, J. et al. Cidades negras. Africanos, crioulos e Edufba, 2019.
espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. 2 ed.
São Paulo: Alameda, 2008. ______. Intervenções recentes em centros históricos:
as políticas de “recuperação” dos centros históricos de
FREYRE, G. Sobrados e mucambos. Decadência do Salvador, Lima e Quito. Cadernos do CEAS, Salvador, p.
patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: 73-92, nov./dez, 2003.
Global Editora, 2004.
______. Pobreza e cultura. A luta dos pobres para
GONÇALVES, A. M. Um defeito de cor. Rio de Janeiro, permanecer morando no centro histórico de Salvador.
São Paulo: Record, 2009. Disponível em: file:///C:/Users/ Cadernos PPG-AU/FAUFBA, v. 10, p. 1-20, Salvador, 2012.
URPI/Downloads/Um%20Defeito%20de%20Cor%20-%20
Ana%20Maria%20%20Goncalves.pdf. Acesso em: 23.02. PIRES, T. C.; SOUZA, C. Habitação social no Centro
2017. Antigo de Salvador: avanços e projetos. In: Companhia de
Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER).
GORDILHO, A. Limites do habitar. Segregação e exclusão Centro Antigo de Salvador. Plano de Reabilitação
na configuração urbana contemporânea de Salvador Participativo: Avanços. Salvador: CONDER/DIRCAS, 2014.
e perspectivas no final do século XX. 2 ed. Salvador:
Edufba, 2008. SANTOS, E. et al. Atlas sobre o direito de morar em
Salvador. Salvador: Edufba, 2012.
GOTTSCHALL, C.; SANTANA, M., ROCHA, A. G. Perfil
dos moradores do centro tradicional de Salvador à luz SANTOS, M. O centro da cidade do Salvador. Estudo
do Censo de 2000. In: GOTTSCHALL, C.; SANTANA, M. de geografia urbana. Salvador: Universidade Federal da
(Org.) Centro da cultura de Salvador. Salvador: Edufba: Bahia; Livraria Progresso, 1959.
2006.
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO E CULTURA DO ESTADO
GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA, COMPANHIA DE DA BAHIA. FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO
DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO METROPOLITANA E CULTURAL DA BAHIA. Levantamento Sócio-Econômico
DE SALVADOR (CONDER). Uso do solo do centro histórico do Pelourinho. Pesquisa dirigida por Vivaldo da Costa
de Salvador. Salvador: IPAC, 1997-1998. Lima e patrocinada pela Superintendência de Turismo da
Cidade do Salvador. Salvador, 1969.
HEIDEGGER, M. Construir, habitar, pensar. 1954.
Disponível em: http://www.prourb.fau.ufrj.br/jkos/p2/ SENRA, R. Assim se vive nas ocupações urbanas
heidegger_construir,%20habitar,%20pensar.pdf. Acesso de SP. Disponível em: http://outras-palavras.net/
em: 27. 03. 2016. outrasmidias/?p=119276, 13 de março de 2015. Acesso
em: 15. 03. 2015.
HOLSTON, J. Cidadania insurgente. Disjunções da
democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: SIMÕES, M. L.; MOURA, M. De quem é o centro histórico
Companhia das Letras, 2013. de Salvador? Cadernos do CEAS, Salvador, n. 96, 1986.
INGOLD, T. The perception of the ambience. Essays on WISSENBACH, M. C. Da escravidão à liberdade:
livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, Taylor dimensões de uma privacidade possível. In: SEVCENKO,
& Francis e-Library, 2002. N. (Org.) História da vida privada no Brasil 3. República:
da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das
KOVARICK, L. Viver em risco. Sobre a vulnerabilidade Letras, 1998.
397
HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO ...
The objective of this article is to describe, analyze L’objectif de cet article est décrire, analyser et
and reflect about a modality of housing that has réfléchir sur une modalité de logement qui a
been gradually gaining quantitative and qualitative progressivement gagné en importance quantitative
importance in the city of Salvador (Bahia, Brazil) et qualitative dans la ville de Salvador (Bahia,
and in its historical center (CHS). These are the Brésil) et dans son centre historique (CHS). Ce
occupations of old houses and buildings by poor sont les occupations des vieilles maisons et des
people, linked to the homeless movements. The bâtiments par les pauvres, liées aux mouvements
ethnographic field work carried out with six des sans-abri. Le travail de terrain ethnographique
occupations allowed me to arrive at some mené avec six occupations m’a permis d’arriver à
conclusions that I present in this work: 1) that quelques conclusions que je présente dans ce travail:
some occupations are an updated version of the 1) que certaines occupations sont une version
old “cortiços” of CHS, with problems that aggravate actualisée des anciens “cortiços” du CHS, avec des
their situation even more; 2) that most of them are problèmes qui aggravent encore leur situation; 2)
essays on a new way of living which represents a que la plupart d’entre eux sont des essais sur un
rich experience of self-management and female nouveau mode de vie qui représente une riche
leadership; 3) that centrality is an essential value for expérience d’autogestion et de leadership féminin;
precarious and vulnerable workers who have been 3) que la centralité est une valeur essentielle pour
living in the center of the city since the nineteenth les travailleurs précaires et vulnérables qui vivent
century, a value that is now being claimed in dans le centre-ville depuis le XIXe siècle, une valeur
discourses and / or practices such as the right to qui est maintenant revendiquée dans les discours et
centrality. / ou les pratiques telles que le droit à la centralité.
Key words: Occupations. Historical Center of Mots clés: Occupations. Centre Historique de
Salvador (CHS). Collective housing. Ways of Salvador (SHC). Logement collectif. Façons
dwelling. Centrality. d´habiter. Centralité.
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 383-393, Maio/Ago. 2019
398