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Cinco notas sobre “Fahrenheit 451”

- Sergio de Souza

Notinhas pessoais sobre a leitura de um romance profético

Nota 1: A anti-vida examinada


O que querem os bombeiros, e a própria sociedade distópica de “Fahrenheit 451”, não é
só queimar livros, mas impedir que o potencial do qual o livro é portador — fazer
pensar, refletir, questionar, ter capacidade crítica, ter aquilo que Sócrates chama de vida
examinada. Mesmo as conversas, as relações interpessoais (que não se fazem sem
conversa) e a própria contemplação da natureza e da realidade, que, por exemplo, são
cultivadas por Clarisse McClellam e sua família, não são toleradas.

No longo diálogo de Montag com o capitão Beatty, este vai enumerando tudo o que é
“perigoso”, que faz pensar, que leva a questionar, sugere que o mundo mergulhe no
prazer e na “felicidade” e deixe para trás o “ter de pensar” para fazer “a mente beber
menos”. E que sejam eliminados da sociedade os “examinadores, críticos, conhecedores
e criadores imaginativos” e que a palavra “intelectual” se torne um “palavrão que
merece ser”.

As palavras finais do capitão Beatty para Montag são reveladoras (e a ironia e o


sarcasmo de Bradbury, geniais…):

“Nós somos os Garotos da Felicidade, a Dupla da Alegria, você e eu e os outros. Nós


resistimos à pequena maré daqueles que querem deixar todo mundo infeliz com teorias
e pensamentos contraditórios.Estamos com os dedos no dique. Segure firme. Não deixe
a torrente de filosofia melancólica e desanimadora engolfar nosso mundo. Dependemos
de você. Acho que você não percebe a importância que você tem, que nós temos, para
que o nosso mundo continue feliz como ele é hoje.”

Nota 2: A felicidade alienante


Os bombeiros, representantes da mentalidade imperante na sociedade distópica de
“Fahrenheit 451”, têm um conceito próprio de “felicidade”. Para eles, ser feliz é estar
mergulhado em um universo de conchas auriculares (que tocam música o tempo todo e
impedem o silêncio, sem o qual não há meditação), de “telões” que surgem nas paredes
e “divertem” a população o tempo todo. Quem está ocupado sendo “feliz” não precisa
da angústia, da “culpa” que os livros trazem. É interessante aqui a comparação com o
divertimento (“divertissment”) de Pascal:

“Divertir-se é uma forma de distrair-se com ocupações que nos distanciam das misérias
que vivemos. Quando não tivermos nada para fazer, sentiremos as nossas misérias, o
divertimento é o fazer algo que vai distanciar nossa alma do vazio e do tédio.”
***

Você já pensou numa sociedade “dominada” pelos fones de ouvido e pelas telas?
Conhece algo parecido?

***

A diversão em “Fahrenheit 451” é alienante, desumanizante: não promove encontros.


Nem das pessoas consigo mesmas, com o próximo e nem com o que lhes transcende. É
uma diversão que, na perspectiva da população (que se diverte e não pensa: “deixa a
vida me levar…”), tem um fim em si mesma: divertir-se; e, para o comando da
sociedade, tem o fim de entreter a população enquanto eles mesmos detêm o poder, o
dinheiro, a influência.

Mais uma vez é Clarisse McClellam quem oferece uma pista de saída:

“ — Eu raramente assisto aos “telões”, nem vou a corridas ou


parques de diversão. Acho que é por isso que tenho tempo de sobra
para ideias malucas.”

***

Tomás de Aquino disse que o fim último do homem é a felicidade. O que é a felicidade?
Já pensou no conceito de felicidade da sociedade de “Fahrenheit 451” ? Que
perspectiva você tem da felicidade?

Nota avulsa (Sobre Clarisse McLellam):

Holden Caulfield: “Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler e fica
querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que
der vontade. Mas isso é raro de acontecer.”(“O apanhador no campo de centeio”, J. D.
Salinger).

Eu acho que livro bom é aquele que faz a gente querer que um personagem saia das
páginas e venha para a vida real, para que seja um grande amigo, “para se poder
telefonar para ele toda vez que der vontade”. “Fahrenheint 451” é um desses livros,
Clarisse McLellam é uma dessas personagens.

Nota 3: Os bombeiros como figuras de


intelectuais orgânicos
Os bombeiros de “Farenheit 451” queimam livros para impedir o pensamento. O
pensamento ocorre quando o conhecimento acumulado é aplicado à realidade. A
realidade também “fala” e não podemos afastar as nossas próprias circunstâncias de
nossa reflexão, sob a pena dela virar um puro exercício de gnose ou um fetiche pela
erudição.

Os bombeiros detestavam tudo o que perturbava a “felicidade” e trazia a angústia do


pensamento. Tudo o que puxa os sujeitos para o chão da realidade é mal visto, inclusive
os enterros, que recordam a finitude humana:

“Os enterros são tristes e pagãos? Elimine-os também. Cinco minutos depois que uma
pessoa morreu, ela está a caminho do Grande Crematório, os incineradores atendidos
por helicópteros em todo o país.Dez minutos depois da morte, um homem é um grão de
poeira negra.”

Um intelectual que desvia o pensamento de seu público da realidade para sustentar um


sistema ideológico — um intelectual orgânico — é um bombeiro 451. Ele ideologiza a
matéria do pensamento para privilegiar o seu grupo, o seu lado. Quando o artista — o
intelectual é um artista do pensamento — pesa a mão na panfletagem, quem perde é a
arte. Pior ainda quando o intelectual utiliza-se de uma sutil sofisticação para enganar,
fazendo com que o seu público não perceba que está sendo doutrinado. Pode parecer
muito cool, mas esse tipo de intelectual não passa de um bombeiro 451, porque não
prima pela liberdade alheia, afasta as pessoas da vida interior e da contemplação
amorosa da realidade: impede o pensamento.

O papel de um intelectual não deveria ser lutar por um sistema, ou militar por um grupo,
mas primar pela busca da verdade, que é o trabalho do pensamento. O mais interessante
seria que os intelectuais estivessem sempre do lado contrário aos sistemas. Clarisse,
Montag, Faber e Granger estão aí para nos mostrar isso.

Nota 4: As relações protocolares e a


nostalgia do outro

Na sociedade de “Fahrenheit 451”, as relações são tão superficiais que parecem existir
somente para cumprir um protocolo. Montag e Mildred não são marido e mulher de
verdade. São, como se diz, dois “números” que estão condenados pelo sistema a viver
juntos e não se relacionarem, cada qual cumprindo o seu papel, como duas peças que
executam a sua função no funcionamento de uma grande máquina.

O trecho em que Montag percebe que ele e Mildred não se recordavam de quando
haviam se conhecido fala por si:

“E de uma hora para outra ela ficou tão estranha que ele mal acreditou que a
conhecesse. Ele estava na casa de outra pessoa, como naquelas outras piadas que se
contavam sobre o cavalheiro que volta bêbado para casa, muito tarde da noite, abre a
porta errada, entra num quarto errado, deita-se na cama com uma estranha, acorda muito
cedo e sai para o trabalho sem que nenhum dos dois perceba o engano.
— Millie?… — sussurrou ele.
— O quê?
— Eu não quis assustar você. O que eu quero saber é…
— O quê?
— Quando nos conhecemos? E onde?
— Quando nos conhecemos, como? — perguntou ela.
— Quer dizer… a primeira vez.
Ele sabia que ela devia estar franzindo o cenho no escuro.
Ele esclareceu.
— A primeira vez que nos vimos, onde foi, e quando?
— Ora, foi em…
Ela parou.
— Não sei — disse ela.
Ele sentiu frio.
— Você não consegue se lembrar?
— Faz tanto tempo.
— Só dez anos, só isso, dez anos!
— Não fique nervoso, estou tentando pensar. — Ela começou a emitir um
estranho risinho que foi aumentando e aumentando. — Engraçado. Que engraçado
quando uma pessoa não se lembra de onde nem quando conheceu a esposa ou o
marido.”

***

Não é difícil passar pelos restaurantes hoje e ver famílias inteiras, pais e filhos, com o
rosto mergulhado em sua própria telinha.

Lembro-me de, já há alguns anos, observar um casal numa pizzaria. Tomavam uma
cerveja, aguardavam a pizza. Ela olhava com aquele olhar de pedinte, mendigando um
segundinho de atenção. Ele, só olhava para a tela do celular. Era óbvio que, ou ela iria
embora um dia, ou iria arrumar uma telinha para si noutro dia, para encher aquele
incômodo silêncio de conteúdo.

Mas isso já virou clichê, não é?

***

As conversas de Montag com Clarice trazem à tona a noção básica aristotélica de que o
homem é um animal social: a menina fez renascer no coração do bombeiro aquela
nostalgia do outro, tão própria do ser humano. É no rosto do outro que eu me encontro
(Lévinas). É no Tu que acho o meu Eu (Buber). Clarisse insistia em agir como um ser
humano numa sociedade que ia subtraindo de si mesma qualquer vestígio de
humanidade.

Mas essa sociabilidade, esse pendor para a fraternidade, para a amizade e para a
comunhão, faz parte da natureza humana. É algo que não se pode destruir com o fogo.
Sempre haverá alguém, Clarisses e Fabers, Grangers, e, por fim, Montags dispostos a
retornar para o humano, a estabelecer relações, a viver como uma verdadeira sociedade.

Não desprezando a tecnologia, claro, mas humanizando-a.


Nota 5: Salvar e guardar

Guy Montag, em sua peculiar jornada do herói, passa por uma angustiante e atribulada
metanóia, torna-se um rebelde ao sistema e, a princípio, reage com violência, ateia fogo
de volta, mata, pensa em instalar-se na luta armada, em plantar livros nas casas dos
bombeiros…

Mas, enfim, depois de todo um processo interior, Montag chega a uma conclusão: sua
missão, de agora em diante, é não mais queimar, não mais atear fogo:

“O sol ardia todo dia. Queimava o Tempo. O mundo se precipitava num círculo e girava
sobre seu eixo e, de qualquer modo, o tempo já estava ocupado queimando os anos e as
pessoas sem nenhuma ajuda dele. Assim, se ele queimava coisas com os bombeiros, e se
o sol queimava o Tempo, isso significava que tudo queimava!

Um deles tinha de parar de queimar. Por certo o sol não pararia. Dessa forma, era como
se tivesse de ser Montag e as pessoas com quem ele havia trabalhado até algumas horas
antes. Em algum lugar, o ato de salvar e guardar teria de começar novamente, e alguém
tinha de se encarregar de salvar e guardar, de um modo ou de outro, nos livros, nos
discos, na cabeça das pessoas, do jeito que fosse…”

Não mais queimar porque tudo já queimar, mas salvar e guardar… Montag encontra o
grupo de Granger, que dedica-se a preservar os livros decorando-os, mantendo assim
viva a cultura.

O conhecimento, assim, tornaria-se novamente humanizado. É quase como se o


conhecimento pudesse transformar-se em um homem, um homem-livro: “Eu sou A
república, de Platão. Esse sujeito aqui é Charles Darwin e este aqui é Schopenhauer.
Somos também Mateus, Marcos, Lucas e João”, diz um homem do grupo.

Assim, para destruir o conhecimento, não teriam mais que queimar livros, impedir
conversas, esconder funerais, mas destruir o próprio homem. A meu ver, o que o
sistema ideológico de “Fahrenheit 451” tenta fazer é uma espécie de manipulação da
natureza humana que, segundo Aristóteles, deseja o conhecimento: “Todos os homens
têm, por natureza, desejo de conhecer”. Ao desejo de conhecer, de buscar a verdade,
que gera a inquietação, a angústia do caminho (que eles chamam de culpa, e ao homem
que busca chamam de “bestial e solitário”: “Você pergunta o porquê de muitas coisas e,
se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz.”), respondem com a alienação da
diversão, da dispersão, da “felicidade” (abordada numa nota anterior).

***

Olhe a seu redor, você nota movimentos que caminham na direção da destruição do
homem (da dissolução de tudo o que é humano, da tentativa de manipular a natureza
humana) ?

***
Mas, de novo, sempre haverá uma Clarisse, um Montag, um Faber ou um Granger, para
primeiro, resistir, insistir, e depois, triunfar (ainda que um triunfo íntimo, e tantas vezes,
escondido)… Sempre com a missão de salvar e guardar aquilo que é humano.

O intelectual é aquele que guarda e alimenta a memória humana, depositada na cultura.

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