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- Sergio de Souza
No longo diálogo de Montag com o capitão Beatty, este vai enumerando tudo o que é
“perigoso”, que faz pensar, que leva a questionar, sugere que o mundo mergulhe no
prazer e na “felicidade” e deixe para trás o “ter de pensar” para fazer “a mente beber
menos”. E que sejam eliminados da sociedade os “examinadores, críticos, conhecedores
e criadores imaginativos” e que a palavra “intelectual” se torne um “palavrão que
merece ser”.
“Divertir-se é uma forma de distrair-se com ocupações que nos distanciam das misérias
que vivemos. Quando não tivermos nada para fazer, sentiremos as nossas misérias, o
divertimento é o fazer algo que vai distanciar nossa alma do vazio e do tédio.”
***
Você já pensou numa sociedade “dominada” pelos fones de ouvido e pelas telas?
Conhece algo parecido?
***
Mais uma vez é Clarisse McClellam quem oferece uma pista de saída:
***
Tomás de Aquino disse que o fim último do homem é a felicidade. O que é a felicidade?
Já pensou no conceito de felicidade da sociedade de “Fahrenheit 451” ? Que
perspectiva você tem da felicidade?
Holden Caulfield: “Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler e fica
querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que
der vontade. Mas isso é raro de acontecer.”(“O apanhador no campo de centeio”, J. D.
Salinger).
Eu acho que livro bom é aquele que faz a gente querer que um personagem saia das
páginas e venha para a vida real, para que seja um grande amigo, “para se poder
telefonar para ele toda vez que der vontade”. “Fahrenheint 451” é um desses livros,
Clarisse McLellam é uma dessas personagens.
“Os enterros são tristes e pagãos? Elimine-os também. Cinco minutos depois que uma
pessoa morreu, ela está a caminho do Grande Crematório, os incineradores atendidos
por helicópteros em todo o país.Dez minutos depois da morte, um homem é um grão de
poeira negra.”
O papel de um intelectual não deveria ser lutar por um sistema, ou militar por um grupo,
mas primar pela busca da verdade, que é o trabalho do pensamento. O mais interessante
seria que os intelectuais estivessem sempre do lado contrário aos sistemas. Clarisse,
Montag, Faber e Granger estão aí para nos mostrar isso.
Na sociedade de “Fahrenheit 451”, as relações são tão superficiais que parecem existir
somente para cumprir um protocolo. Montag e Mildred não são marido e mulher de
verdade. São, como se diz, dois “números” que estão condenados pelo sistema a viver
juntos e não se relacionarem, cada qual cumprindo o seu papel, como duas peças que
executam a sua função no funcionamento de uma grande máquina.
O trecho em que Montag percebe que ele e Mildred não se recordavam de quando
haviam se conhecido fala por si:
“E de uma hora para outra ela ficou tão estranha que ele mal acreditou que a
conhecesse. Ele estava na casa de outra pessoa, como naquelas outras piadas que se
contavam sobre o cavalheiro que volta bêbado para casa, muito tarde da noite, abre a
porta errada, entra num quarto errado, deita-se na cama com uma estranha, acorda muito
cedo e sai para o trabalho sem que nenhum dos dois perceba o engano.
— Millie?… — sussurrou ele.
— O quê?
— Eu não quis assustar você. O que eu quero saber é…
— O quê?
— Quando nos conhecemos? E onde?
— Quando nos conhecemos, como? — perguntou ela.
— Quer dizer… a primeira vez.
Ele sabia que ela devia estar franzindo o cenho no escuro.
Ele esclareceu.
— A primeira vez que nos vimos, onde foi, e quando?
— Ora, foi em…
Ela parou.
— Não sei — disse ela.
Ele sentiu frio.
— Você não consegue se lembrar?
— Faz tanto tempo.
— Só dez anos, só isso, dez anos!
— Não fique nervoso, estou tentando pensar. — Ela começou a emitir um
estranho risinho que foi aumentando e aumentando. — Engraçado. Que engraçado
quando uma pessoa não se lembra de onde nem quando conheceu a esposa ou o
marido.”
***
Não é difícil passar pelos restaurantes hoje e ver famílias inteiras, pais e filhos, com o
rosto mergulhado em sua própria telinha.
Lembro-me de, já há alguns anos, observar um casal numa pizzaria. Tomavam uma
cerveja, aguardavam a pizza. Ela olhava com aquele olhar de pedinte, mendigando um
segundinho de atenção. Ele, só olhava para a tela do celular. Era óbvio que, ou ela iria
embora um dia, ou iria arrumar uma telinha para si noutro dia, para encher aquele
incômodo silêncio de conteúdo.
***
As conversas de Montag com Clarice trazem à tona a noção básica aristotélica de que o
homem é um animal social: a menina fez renascer no coração do bombeiro aquela
nostalgia do outro, tão própria do ser humano. É no rosto do outro que eu me encontro
(Lévinas). É no Tu que acho o meu Eu (Buber). Clarisse insistia em agir como um ser
humano numa sociedade que ia subtraindo de si mesma qualquer vestígio de
humanidade.
Mas essa sociabilidade, esse pendor para a fraternidade, para a amizade e para a
comunhão, faz parte da natureza humana. É algo que não se pode destruir com o fogo.
Sempre haverá alguém, Clarisses e Fabers, Grangers, e, por fim, Montags dispostos a
retornar para o humano, a estabelecer relações, a viver como uma verdadeira sociedade.
Guy Montag, em sua peculiar jornada do herói, passa por uma angustiante e atribulada
metanóia, torna-se um rebelde ao sistema e, a princípio, reage com violência, ateia fogo
de volta, mata, pensa em instalar-se na luta armada, em plantar livros nas casas dos
bombeiros…
Mas, enfim, depois de todo um processo interior, Montag chega a uma conclusão: sua
missão, de agora em diante, é não mais queimar, não mais atear fogo:
“O sol ardia todo dia. Queimava o Tempo. O mundo se precipitava num círculo e girava
sobre seu eixo e, de qualquer modo, o tempo já estava ocupado queimando os anos e as
pessoas sem nenhuma ajuda dele. Assim, se ele queimava coisas com os bombeiros, e se
o sol queimava o Tempo, isso significava que tudo queimava!
Um deles tinha de parar de queimar. Por certo o sol não pararia. Dessa forma, era como
se tivesse de ser Montag e as pessoas com quem ele havia trabalhado até algumas horas
antes. Em algum lugar, o ato de salvar e guardar teria de começar novamente, e alguém
tinha de se encarregar de salvar e guardar, de um modo ou de outro, nos livros, nos
discos, na cabeça das pessoas, do jeito que fosse…”
Não mais queimar porque tudo já queimar, mas salvar e guardar… Montag encontra o
grupo de Granger, que dedica-se a preservar os livros decorando-os, mantendo assim
viva a cultura.
Assim, para destruir o conhecimento, não teriam mais que queimar livros, impedir
conversas, esconder funerais, mas destruir o próprio homem. A meu ver, o que o
sistema ideológico de “Fahrenheit 451” tenta fazer é uma espécie de manipulação da
natureza humana que, segundo Aristóteles, deseja o conhecimento: “Todos os homens
têm, por natureza, desejo de conhecer”. Ao desejo de conhecer, de buscar a verdade,
que gera a inquietação, a angústia do caminho (que eles chamam de culpa, e ao homem
que busca chamam de “bestial e solitário”: “Você pergunta o porquê de muitas coisas e,
se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz.”), respondem com a alienação da
diversão, da dispersão, da “felicidade” (abordada numa nota anterior).
***
Olhe a seu redor, você nota movimentos que caminham na direção da destruição do
homem (da dissolução de tudo o que é humano, da tentativa de manipular a natureza
humana) ?
***
Mas, de novo, sempre haverá uma Clarisse, um Montag, um Faber ou um Granger, para
primeiro, resistir, insistir, e depois, triunfar (ainda que um triunfo íntimo, e tantas vezes,
escondido)… Sempre com a missão de salvar e guardar aquilo que é humano.