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BUCÓLICAS

GEÓRGICAS
ENEIDA

VIRGILIO
BUCÓLICAS
GEÓRGICAS
ENEIDA

TRADUÇí\0 DO LATIM

Agostinho da Silva
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Autor: Virgílio

Tradução do latim: Agostinho da Silva

Pesquisa iconográfica: Manuela Rego

Capa: ARD-Cor

Execução gráfica: Bloco Gráfico Lda., Unidade Industrial da Maia

Data de edição: Maio de 2012

ISBN (Ternas e Debates): 978-989-644-194-4

N.0 de edição (Círculo de Leitores): 3615

Depósito legal: 340729/12

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BUCÓLICAS
BUCÓLICA PRIMEIRA

MELIBEU
Títiro, à sombra de copada faia,
tentas ária silvestre em frauta amena,
nós a pátria deixamos, os mimosos
campos da pátria, e tu, bem descansado,
o nome ao bosque ensinas de Amarílis.

TíT IRO
Um deus, ó Melibeu, este vagar,
ele deus para mim sempre será,
me trouxe e a seu altar eu sacrifico
de meu rebanho um anho com seu sangue.
É ele que me deixa, como vês,
dar pasto às vitelinhas, cantar eu
o que quiser em instrumento rude.

MELIBEU
Não te invejo, me espanto, pois que tudo
pelo campo é desordem. De que modo!
Eu próprio, já doente, a estas cabras
empurro para a frente e à que tu vês
como custa puxá-la, pois que gémeos
pariu por uma moita e aos dois coitados
os teve de deixar em pedregulhos,
ó perdida esperança do rebanho!
Quanta vez, à desgraça, ma predisse
fogo do céu em raio num carvalho ;
mas jamais o lembrei, estúpida mente!
E que deus será esse, dize, Títiro.
10 VIRGÍLIO

TíTIRO
Fui tolo em julgar eu, ó Melibeu,
que era Roma cidade igual à nossa,
a esta a que levamos nós, pastores,
de nosso gado as delicadas crias.
Sabia que à cadela o cachorrinho,
o cabritinho à cabra se assemelham,
e o grande ao que é pequeno comparava.
Roma, porém, se eleva sobre as outras
como o cipreste sobre humilde arbusto.

MELIBEU
Donde ve10 a vontade de ver Roma?

TíTIRO
Da liberdade que, tardia embora,
a mim inerte veio, quando já
eu via branca a barba ao barbear-me,
e veio, sim, ao fim de longo tempo,
já eu com Amarílis, Galateia
me tendo já deixado, pois, com ela,
nem liberdade nem pecúlio havia,
por muito que daqui saíssem vítimas,
por muito gordo queijo que à cidade
eu levasse, voltando sempre dela
sem dinheiro na mão a minha casa.

MELIBEU
Ó Amarílis, bem saber queria
porque tanto rezavas tu aos deuses
e na árvore deixavas toda a fruta.
Títiro estava longe ! Teus pinheiros,
os pinheiros, as fontes, os pomares,
tudo por ti chamava e tu não vinhas .

TíTIRO
Que havia de fazer? Da servidão
não podia soltar-me ou encontrar
fora daqui uns deuses tão amigos.
Foi então, Melibeu, que vi o jovem
para quem meu altar lança seu fumo
doze dias por ano os anos todos.
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u
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BUCÓLICAS 11

Ele foi quem primeiro deu resposta :


«Meus filhos, como dantes, pasto aos bois,
como dantes, meus filhos, criai touroS. >>

MELIBEU
Velho de sorte és tu, pois que teus campos
contigo ficarão, por muita pedra
que haja na terra e j unco enlameado
a teus prados limite com paul.
Nenhum estranho pasto a fêmeas grávidas
porá em tentação, contágio algum
de rebanhos dos outros vem ao teu.
Velho de sorte, aqui, entre ribeiros
que tu conheces e sagradas fontes,
as sombras, a frescura encontrarás .
Na sebe que separa do vizinho
sempre as abelhas de Hibla passarão
nas flores do salgueiro e seu sussurro,
tão manso e leve, a descansado sono
te vai persuadir, e de alta rocha
lançará podador seu canto à brisa,
sem que, entretanto, as pombas do teu mtmo
deixem seu arrulhar e sem que a rola
cesse o gemer do cimo dos ulmeiros.

TíTIRO
Como também, ligeiros, os veados
iriam a pastar em pleno céu
•e largaria o mar o peixe à vista
por todo o litoral, com o Persa
bebendo água de Á rar, com o Germano
bebendo a do rio Tigre, todos eles
a trocar por alheia a pátria própria,
em vagabundo exílio, antes que o rosto
dele sumir pudesse deste peito.

MELIBEU
Eu, porém, daqui vou aos secos Afros,
outros à Cítia ou às barrentas águas
da torrente Oaxes ou ainda
aos longínquos Bretões que um mundo inteiro
separa de nós todos. E será
12 VIRGÍLIO

que voltarei, ao fim de tempo e tempo,


às fronteiras da pátria e que verei
este meu reino e vou mesmo gostar
de olhar minha cabana, a tão de pobre,
com o tecto coberto de erva brava,
com, aqui ou ali, alguma espiga ?
Será que algum soldado fica dono
duma terra que pus a produzir
ou que um bárbaro toma o que é meu fruto ?
Discórdia é o que dá aos cidadãos,
miséria e mais miséria. Semeámos
para que eles colhessem. Melibeu,
às pereiras enxerta, alinha a vinha.
Com que fim, Melibeu ? Que vás embora.
Meu gado tão feliz, minhas cabrinhas,
nunca mais vos verei, de um verde abrigo,
irdes ao longe como que pregadas
à recoberta rocha ; nunca mais
entoarei canções e se acabou
o dar-vos de comer a flor do cítiso
e os salgados salgueiros, pobres cabras.

TíTIRO
Aqui, ao menos, poderias tu
com1go repousar em folhas secas .
Tenho fruta madura, umas castanhas
que são uma delícia, queijo fresco
em boa quantidade. E já, ao longe,
cobertos deitam fumo, enquanto as sombras
descem, a mais e mais, dos altos montes .
BUCÓLICA SEGUNDA

Pelo formoso Aleixo, tão querido


de seu senhor, ardia o pastor Córidon.
Mas nenhuma esperança ; até por isso
vinha ele tanta vez lá onde as faias
para dar sombra abriam larga copa.
Sozinho ali, sem artifício algum,
isto soltava para montes, bosques,
lhe sendo vão o seu tão forte empenho :
«Cruel Aleixo, não te importa nada
este meu canto que te não dá pena
e assim me levas a por ti morrer?
Até o gado vem ao fresco e sombra,
até verde lagarto bem se esconde
em arbustos de espinho e Téstilis
espreme a perfumada essência de alho
e de serpão para os que na colheita
tão abatidos andam do calor.
Mas enquanto vou eu pelas pegadas
que tu deixas por lá, é, juntamente
com as roucas cigarras, que aos pomares
eu faço ressoar no sol ardente.
Não teria talvez sido melhor
suportar de Amarílis suas iras,
seus altivos desdéns ou de Menalcas
o ser ele queimado, alvura tu ?
Formoso moço, não te fies muito
nisso de cor, para comida nossa
quantas vezes deixamos o que é branco
e bem apreciamos o que é preto.
Me desprezas, Aleixo, não te importa
o ser eu, como sou, tão rico em gado
14 VIRGÍLIO

e com tanta abundância de alvo leite.


As minhas mil ovelhas livres andam
nos montes da Sicília: no Verão
há sempre leite fresco, nem de Inverno
me vem ele a faltar. É o meu canto
o que entoava o Anfião de Dirce
no ático Aracinto ao chamar gado.
Não sou tão feio assim, j á que na praia
me vi no mar há pouco que, sem vento,
tão calmo estava ; se decidir queres,
não temo eu nem a Dáfnis, se é verdade
a imagem que então guardei de mim.
Como eu gostava de morar contigo
em pobres casas, em humildes campos,
os veados caçando, e de levar
rebanho de cabrito a verdes malvas .
Comigo, pelos bosques ao deus Pã
imitarás cantando, pois foi ele
quem primeiro juntou cálamo a cálamo,
com cera em instrumento de tocar,
e cuida Pã de ovelhas e seus donos.
Não lamentes que o cálamo te fira
o delicado lábio. Que não fez,
para ser o que foi, o nosso Amimas ?
Feita de sete tubos desiguais,
conservo eu uma frauta que Dameta
me deu outrora. O que, ao morrer, me disse :
"Vais ser tu, dela, o seu segundo dono . "
Dameta assim o disse, enciumando Amimas,
o tolo Amimas. Mas escuta, Aleixo,
uns dois cabritos que encontrei num vale,
vale pouco seguro, e cujo pêlo
tem brancas de defeito, mas que bebem
duas tetas de ovelha todo o dia,
os guardo para ti, mas os darei
a Tarsílio que sempre mos pediu,
já que tens tanta raiva a meus presentes.
Vem cá, belo menino, as próprias Ninfas
te estão trazendo aqui cesto de lírios
e colhe para ti a branca náiade
a goivo e dormideira mais narciso,
a seu odor ligando com ternura
BUCÓLICAS 15

o funcho, a maravilha, toda a cor,


todo perfume juntos, indo eu mesmo
buscar maçãs bem alvas e macias,
e castanhas e nozes que Amarílis,
minha cara Amarílis, tanto amava.
Tudo haverá, em honra dessa fruta :
te colherei o louro e, perto, o mirto,
q ue também o seu cheiro a tudo junto.
Es um labrego, ó Córidon ! Aleixo
na verdade não liga a teus presentes.
Se houvesse luta, não perdia Iolas.
Ai de mim ! Que quis eu? Em meu delírio
soltei o vento às flores e javalis
lancei às claras fontes. Sabes tu
de quem estás fugindo, grande louco?
Também deuses andaram pelos bosques
com o dárdano Páris. Traz-te Palas
das cidadelas todas que criou,
que nós a tudo o bosque preferimos.
Com turvo olhar perseguem as leoas,
o lobo e logo o próprio lobo vai
ao ataque da cabra e vai a cabra,
a tonta cabra, à busca de cítiso,
como de Aleixo Córidon, pois todos
impelidos irão por seus prazeres.
Aí vêem os bois com os arados
bem presos a seus j ugos, vai o sol,
poente já, a redobrar as sombras,
e só ainda a mim amor me queima.
Quem é que põe limites ao amor?
Mas que demência, Córidon, tomou
o que tu és, ó Córidon? A vinha,
a tua vinha, te ficou podada
só pelo meio no frondoso ulmeiro.
Cuida então antes do que te faz falta ;
a pedaços de vime ou branco junco
entrança tu para fazer um cesto.
Outro virá se te aborrece Aleixo. >>
BUCÓLICA TERCEIRA

MENALCAS
Dize, Dametas, de quem é o gado ?
Será de Melibeu ?

DAMETAS
De Égon. Há pouco
ele mesmo mo veio aqui trazer.

MENALCAS
Infelizes ovelhas, pobre gado.
Enquanto ele a Neera ama inquieto
receoso de que ela me persiga,
descuidado pastor, cada hora as munge
duas vezes seguidas, todas suga,
aos anhos rouba o leite que era deles.

DAMETAS
Cuidado com censuras quanto a gente :
bem sabemos que tu, num lugarzinho,
com os bodes olhando de través,
enfim, bem escondido ... Mas as Ninfas,
com a sua indulgência, bem se riram.

MENALCAS
Acho que foi no dia em que me viram
o pomar destruir a seu Nícon,
às videiras chegar com ruim foice.

DAMETAS
Talvez antes aqui quando nas faias
arcos e frechas tu quebraste a Dáfnis,
quando, perverso, tu tiveste inveja
BUCÓLICAS 17

daquela oferta ao j ovem e morrias


se não pudesses dar-lhe prejuízo.

MENALCAS
Que podemos fazer, sim, nós os donos
quando audácia tamanha há nos ladrões?
Não te vi eu a ti, que és do pior,
armar cilada às cabras de Dámon
e por detrás das árvores sumir
quando eu gritei : « Para onde é que ele vai?
Títiro, olha o rebanho. Vem salvá-lo. >>

DAMETAS
Foi a mim que, vencido ele no canto,
me não quis dar o bode que era meu,
que minha frauta merecido tinha.

MENALCAS
No canto vencedor? Tu mesmo ou ele?
Quando tiveste tu alguma frauta,
sim, cálamos por cera bem unidos?
Nunca soubeste nada, já te ouvi
tocar pelas veredas ruins árias
em instrumento mais ruim ainda.

DAMETAS
Queres então que vamos nós os dois
saber qual é melhor nisso de canto?
Pois aposto eu esta novilha aqui.
Não a recuses, já que duas vezes
a podemos mungir e duas crias
se sustentam, e bem, de suas tetas.
E tu, rapaz, o que é que tu apostas?

MENALCAS
De meu rebanho não posso eu dar nada,
que tenho em casa pai, dura madrasta.
Todos os dias contam o rebanho
e um ou outro o faz aos cabritinhos .
Mas ponho aqui, Dametas, o que tu próprio
verás como melhor, taças de faia,
já que persistes em tentar loucuras.
18 VIRGÍLIO

Taças de artista, Alcimedonte as fez .


A torno lhes talhou, e quase à borda,
uma videira que bem ágil vai
aqui, ali, cercando tufos de hera.
No meio dois motivos, um de Cócone,
e o outro de quem é? Daquele mesmo
que para todos estações marcou,
a de colher, a de lavrar curvado.
Nunca as levei à boca para estreia.

DAMETAS
Também de Alcimedonte tenho duas,
com as asas cercadas de um acanto,
flexível acanto, com, no meio,
um Orfeu que às florestas vai levando .
Nunca a s levei à boca para estreia.
Se esperas a novilha, que tens tu
de elogiar as taças que possuis?

MENALCAS
Hoje já me não foges, onde queiras
irei, mas bom será que haj a quem ouça;
eis aí vem Palémon. E, depois disto,
já não te meterás com mais ninguém .

DAMETAS
Vamos lá, se tu ousas. Cá por mim
não há demora alguma. E tu, Palémon,
meu vizinho, o que tens é de prestar
toda a tua atenção, que isto é a sério .

PALÉMON
Cantai, sentados nesta doce relva.
Aqui estão brotando campos, árvores,
os bosques de folhagem recobertos,
no mais formoso tempo que há no ano .
Começa tu, Dametas ; irá depois
Menalcas, os dois alternarão seu canto
que o canto alterno adoram as Camenas .

DAMETAS
Haja de início Júpiter, que tudo
de Júpiter, ó Musas, vai tão cheio.
Ele cultiva a terra, ele me cuida do canto.
BUCÓLICAS 19

MENALCAS
A mim Febo me adora, sempre ofertas
de Febo estão comigo ; são os louros,
são j acintos dum rosa delicado.

DAMETAS
Me atira uma maçã a Galateia,
menina meio tonta e logo foge
para o salgueiro, que eu, porém, a veJ a.

MENALCAS
Pois a mtm se oferece o meu amor
e por isso já é Amimas, ele,
sabido de meus cães mais do que Délia.

DAMETAS
Prontos estão presentes para a Vénus
a quem adoro ; e sei onde ela está,
lá no lugar dessas aéreas pombas.

MENALCAS
Para o meu jovem, de árvore dos bosques,
enviei, todas de ouro, dez maçãs,
amanhã outras tantas mandarei.

DAMETAS
Quantas vezes a minha Galateia
�e fq.lou e dizendo o que me disse.
O vento, o leva aos deuses que nos ouvem.

MENALCAS
Que vale, Amimas, que me não desprezes
se enquanto tu persegues javalis
fico eu sozinho aqui, de guarda às redes ?

DAMETAS
Manda-me, Iolas, Fílis; faço hoje anos
e vem tu próprio quando em sacrifício
imolar eu novilha pelas messes.

MENALCAS
Mais que todas é Fílis a que eu amo,
Como chorou quando eu me fui embora
e repetia: <<Adeus, adeus, Iolas .»
20 VIRGÍLIO

DAMETAS
Aos estábulos é funesto o lobo,
à seara madura o é a chuva,
a mim, porém, a ira de Amarílis .

MENALCAS
E como agrada chuva à sementeira
ou como arbusto a bode desmamado,
salgueiro a prenhe ovelha, a mim Amintas.

DAMETAS
Gosta bem Polião de nosso canto,
ainda que só rústico ele seja.
Criai, Musas, vitela a quem nos leia.

MENALCAS
O próprio Polião faz verso novo.
Apascentai tourinho que marrada
já dê e com a pata pó levante.

DAMETAS
Venha quem de ti gosta, Polião
aos lugares que a ti também agradam,
lá onde corre o mel e cresce amomo.

MENALCAS
Quem Bávio não odeia que a teus versos
dê preferência, Mévio, e que ele mesmo
dome raposa ao jugo e munja bodes .

DAMETAS
Vós que colheis flores e morangueiro
procurais pelo chão, cuidado, moço,
que entre as ervas se oculta fria serpe.

MENALCAS
Não avanceis de mais, mansas ovelhas,
não é segura a margem, nela molha
pela seca seus pêlos o carneiro.

D AMETAS
Títiro, afasta do ribeiro as cabras,
pois, quando for o tempo, à própria fonte
as irei eu levar e dar-lhes banho.
BUCÓLICAS 21

MENALCAS
O gado recolhei pois o calor
pode cortar o leite e nossas mãos
para nada lhes vão espremer a teta.

D AMETAS
Que magro está meu touro, embora sej a
tão abundante esta lentilha brava.
D estrói amor o gado e seu pastor.

MENALCAS
Mas não tem culpa Amor, é mau-olhado
que os põe, como este aqui, só pele e osso,
pelo feitiço que sobre eles lança.

DAMETAS
Outro Apolo serás se me disseres
em que lugar do mundo o céu terá
nada mais que o tamanho de três côvados.

MENALCAS
E para ti terás Fílis sozinha
se me disseres em que terra nasce
flor com nome de rei nela marcado.

PALÉMON
Não me cabe julgar tão grande assunto
como vós levantais, e dum ou doutro
pode ser a novilha, quer vá aquele
pelo desgosto amargo que dar pode.
E fechai vós as valas, meus amigos,
que j á bastante bebeu hoje o prado.
BUCÓLICA QUARTA

Ó Musas da Sicília, que mais alto


se eleve nosso canto, pois nem todos
de prados gostam ou de humildes rios,
e que sejam os campos que cantamos
mesmo dum tônsul dignos . Eis que chega
aquele fim de idade que predisse
Cumas outrora, renascendo assim
a grande ordem de século após século.
Já volta Virgem, já Saturno volta
e nova geração do céu se lança.
Protege tu, Lucina, este menino
que, primeiro, verá a férrea idade
sumir do mundo logo vindo a de ouro ;
já reina teu Apolo. Esta era nova
sendo tu cônsul se inicia, ó Polião
marchando os meses sob o teu comando ;
qualquer vestígio dessa nossa culpa
sem força alguma deixará o mundo
livre dum medo parecendo eterno.
Vai ele partilhar vida dos deuses
e com deuses vai ver este menino,
lado a lado, os heróis ; com ele mesmo
ao Céu erguido e governando a Terra
em paz pela virtude de seu pai.
De solo sem cultura a ti virão,
como em pequena oferta, heras errantes,
risonho acanto, bacar e nenúfares.
As cabrinhas por si trarão aos lares
tetas cheias de leite e dos leões
rebanho algum terá qualquer receio,
enquanto o berço, por vontade própria,
BUCÓLICAS 23

de branda flor a ti dará perfume.


Serpente morrerá e morrerá
toda a pérfida planta venenosa,
amomo assírio em abundância cresce.
E quando um dia por leitura possas
saber a glória dos heróis, os feitos
de teu pai e o esforço varonil
que dentro deles tinham é que então
a tenra espiga alourará o campo
e rubros cachos ficarão pendentes
de bravas silvas, orvalhado mel
destilará de si rijo carvalho.
Poucos vestígios vão então ficar
das antigas malícias que nos mandam
lançar jangada a Tétis, de muralhas
cercarmos as cidades, como às terras
a ferida dos sulcos infligirmos.
Um outro Tífis haverá aí,
escolhidos heróis, uma Argos nova
levará dentro em si, como outras guerras
travadas hão-de ser e se repete
do grande Aquiles o envio a Tróia.
E quando um dia fores tu já homem
ninguém mais haverá de marinheiro
e nave alguma transportará cargas
pois toda a terra tudo nos dará.
Não sofrerá o solo enxada alguma
nem poda a vinha e, forte, o lavrador
libertará de canga os bois que tenha.
Não mentirá a lã em várias cores,
mas já nos prados o carneiro mesmo
a seu tosão vai dar rubor de amora
ou de açafrão o tinge a folha certa,
outra escarlate dá a quantos pastem,
com as Parcas dizendo a suas rocas,
em firme obediência ao que é destino :
« Girai, fiai os séculos de agora. »
O tempo te virá de grandes honras,
ó dos deuses dilecta descendência,
ó de Júpiter caro alongamento.
Vê tu então como balança o mundo,
como ao convexo peso vão as terras,
24 VIRGÍLIO

as extensões de mar, o céu profundo


acompanhando em movimento seu,
como tudo se alegra ao que virá.
Oxalá que vá eu de longa vida
até parte final aberto sempre
de espírito e do mais que for bastante
a dizer de teus feitos em meu verso
pois não me vencerá Orfeu o trácio
nem Lino ainda que um e outro sejam
por mãe e pai tão ajudados sempre
de Calíope Orfeu, de Apolo Lino.
O próprio Pã, como juiz a Arcádia,
o próprio Pã que venha confessar
tê-lo Arcádia julgado por vencido.
Começa, meu menino, a tua mãe
reconheceres tu pelo seu riso,
que seus dez meses tão difíceis foram.
Começa, meu menino, pois que aquele
a quem nunca sorriu seu pai e mãe
não vale que algum deus o chame à mesa,
não vale que uma deusa o chame ao leito.
BUCÓLICA QUINTA

MENALCAS
Já que estamos aqui, ó Mopso, juntos,
e somos excelentes nós os dois,
tu em soprar os cálamos tão leves,
em dizer versos eu, por que motivo
não nos sentamos nós neste lugar,
entre estas aveleiras e os ulmeiros ?

MoPso
És mais velho do que eu e te obedeço,
quer sob incertas sombras, agitadas
pelas moventes brisas, quer, então,
em abrigada gruta, revestida
toda por cachos de videira brava.

MENALCAS
Nestas nossas montanhas só Amintas
seria teu rival.

MoPso
E, na verdade,
até Febo podia ele vencer.

MENALCAS
Principia tu, Mopso, ou o fogo
de Fílis tu dirás ou os louvores
de nosso Á lcon ou a censura a Codro.
Começa, vá, do gado cuida Títiro.
26 VIRGÍLIO

MoPso
Irei aos versos que gravei outrora
no tronco duma faia, os alternando
com uns toques de música e Amintas
arranja tu que venha ao desafio.

MENALCAS
Da mesma forma que um salgueiro mole
é subalterno a pálida oliveira,
da mesma forma que a valeriana
à rubra rosa é mais que inferior,
assim a ti Amintas, ao que penso .
Mas, rapaz, não importa, à gruta vimos.

MoPso
Lamentavam as Ninfas a cruenta
morte de Dáfnis de que testemunhas
nos são as aveleiras com os rios
quando a mãe, abraçada ao pobre corpo,
cruéis chamava aos deuses mais aos astros.
Olha, Dáfnis, ninguém naqueles dias
levou bois a pastar aos frescos rios
nem bebeu animal água corrente
ou comeu erva das que dão no prado.
Dizem os feros montes, dizem bosques
que púnicos leões a tua morte
choraram eles : Dáfnis o primeiro
que a carros atrelou leão arménio
e tíasos de Baco instituiu
e de folhas cobriu hastes tão brandas.
Assim como tanto honra vide as árvores,
ou os cachos à vinha, o boi ao gado
ou a colheita aos campos abundantes,
assim os teus tu honras. Mas depois
que os fados te levaram, Palas mesmo
e até Apolo, os campos abandonam
e já dos sulcos a que nós lançamos
a melhor cevada o que apenas cresce
é pobre aveia ou infecundo joio.
À doce violeta ou ao narciso,
ao purpúreo narciso, o que sucede
é cardo só, espinho, paliúro.
BUCÓLICAS 27

Juncai de folha a terra e toda a fonte


protegei com as sombras, como a nós,
todos pastores ainda ordena Dáfnis,
e um alto levantai com estes versos:
<<Dos bosques às estrelas conhecido,
aquele Dáfnis sou, o que cuidava
de belo gado mais que belo guarda. »

MENALCAS
Ó divino poeta, teus poemas
são como um sono bom que homem cansado
dorme em macia relva ou como as águas
que ele bebe, sedento, em rio corrente.
A teu mestre és igual em som de frauta
e na voz em que cantas ; outro Dáfnis
em ti o temos nós. E nós também
no que podemos a um céu de estrelas
cantando elevaremos o teu Dáfnis
e seu amor teremos como o tens.

MoPso
Poderia ter eu prémio maior?
Merecedor de ser cantado foi
o próprio jovem e já o Estímicon
há muito tempo seu cantar nos deu.

MENALCAS
O limiar de Olimpo, radioso,
pela primeira vez o vê teu Dáfnis,
a seus pés tendo as nuvens, as estrelas.
É por isso que o gosto da alegria
tomo Pã, pastores, donzelas dríades.
Não pensam lobos em armar ciladas
ao gado ou rede o cervo vai prender:
benévolo ama Dáfnis paz inteira.
O próprio intonso monte aos astros lança
seus gritos de alegria, as rochas mesmo,
pomares mesmo seu cantar entoam:
<<É ele um deus, Menalcas, é ele um deus . >>
Aos teus dá tu o bem, o ser feliz.
Eis quatro altares, dois para ti são,
para ti, Dáfnis, para Febo dois,
28 VIRGÍLIO

e duas taças de espumante leite,


duas tigelas de untuoso azeite
vos irei eu trazer todos os anos,
depois a festa nos alegra Baco,
diante da lareira se houver frio,
mas, se for de Verão em boa sombra,
com vinho novo, aquele ariusino,
em copos grandes, que delícia, um néctar.
Me cantarão Dametas e Lício Érgon,
imitara, dançando, Alfesibeu
os Sátiros em baile, o que terás
sem falta alguma, pois cumpridas são
as promessas às Ninfas, quando os campos
formos lustrando, à regra obedientes.
Enquanto javali gostar de monte,
gostar de rio o peixe e de rocio
a cigarra gostar, abelha de tomilho,
sempre te louvaremos, honraremos
e sempre o nome teu será connosco.
Como a Ceres ou Baco os camponeses
todos os anos fazem os seus votos,
ass1m nao deixarás que a ti não façam.

MoPso
Que presente hei-de dar por esse canto ?
Me encantou mais do que perto o Austro
com seu assobiar ou, pela costa,
as vagas embatendo, ou o correr
do rio pelos vales pedregosos.

MENALCAS
Sou eu que te darei a frauta frágil,
a que a mim me ensinou «Ardia Córidon
pelo formoso Aleixo» como ainda
«Que dono tem o gado ? Melibeu ?>>

MOPSO
Toma então cajado que j amais
Antígenes pegou, tanto o pedindo
e tanto merecendo ser amado.
Como é belo, Menalcas, com os nós
tão iguais entre si, e com o bronze.
BUCÓLICA SEXTA

Foi esta nossa Tália a que pnme1ro


verso siracusano vos compôs
e sem corar os bosques habitou.
Quando eu cantava os reis e seus combates
Cíntio me aconselhou pegando orelha :
« Títiro, o que convém a um pastor

é cuidar das ovelhas e ter verso


fácil e simples . » Vou então agora
ser poeta dos matos cuja frauta
modesta também seja. Que poetas,
Varo, sempre terás cuja ambição
sej a a de irem cantando teus louvores
nessas funestas guerras . Se estes versos
tiverem um leitor que deles goste,
também a ti, ó Varo, hão-de cantar
tamargueiras e bosques, que obedeço
ao que me for mandado. Febo quer,
a tudo a preferindo, aquela página
que teu nome trouxer como motivo.
Piérides, em frente, que Mnasilo
e Crómis, os dois jovens, encontraram
a Sileno deitado numa gruta,
como sempre bem cheio todo o corpo
dos licores de Iaco. Da cabeça
as coroas lhe tinham descaído,
no chão a cantarinha ainda à mão.
Os moços, já que o velho muitas vezes
os trouxera ao engano na esperança
de lhe ouvirem o canto, o prendem firme
com as próprias grinaldas. Em socorro,
que tímidos estavam, Egle veio,
30 VIRGÍLIO

Egle, a mais formosa das formosas


que são todas as Náiades, e pinta
ao Silvano que estava despertando
as têmporas e testa com amoras
que lhe deixaram tudo como em sangue.
Se riu ele da manha : «Por que atais
estes laços assim ? Soltai-me, jovens,
já basta que se veja que tivestes
para tanto o poder. E vos direi
de versos meus o que saber quereis .
E para ela tenho eu outro favor.»
Logo começa e se podiam ver
Faunos e feras em cadência juntos
dançar como dançavam dos carvalhos
as balançadas copas . E jamais
gostou tanto o Parnaso de ouvir Febo
e tanto a seu Orfeu apreciaram
as montanhas do Í smaro e Ródope.
Ele cantava como se um imenso
vazio houvesse e nele se juntassem
as sementes das terras, mares, ares
e do fluido fogo, os elementos
logo depois, também a pouco e pouco,
ganhando consistência o curvo céu,
em seguimento endurecendo o solo,
nos oceanos a ficar N ereida,
tomando sua forma tudo o que há.
A Terra com espanto viu brilhar
o sol-nascente, viu cair a chuva
das nuvens lá nos altos, começaram
os bosques a surgir e a vir andando
esparsos animais por virgens montes.
Cantou depois das pedras que atirou
Pirra e dos reinos que Saturno teve
e das aves do Cáucaso e do furto
que foi de Prometeu, da fonte de Hilas,
marinheiro a chamar e, pela costa,
por toda a costa, os ecos «Hilas! Hilas !>>
A Pasífae cantou ele também,
a que feliz seria se jamais
existissem rebanhos, pudesse ela
com amor de novilho consolar-se.
BUCÓLICAS 31

As filhas de Proteu, com os mugidos,


os seus falsos mugidos, supuseram
ter os campos enchido, mas j amais
caíram na vergonha de se unir
a brutos animais, embora o medo
houvesse nelas de puxar arado
e por vezes passassem algum tempo
a procurar na fronte os rijos cornos.
Virgem sem sorte vaga nas montanhas
enquanto ele, deitado nos jacintos,
corpo de neve estende e sob azinha
rumina claras ervas ou persegue
uma qualquer novilha. E vós, ó Ninfas,
ó Ninfas de Dicte, fechai aos bosques
todo o passo que houver, para que a nós
se não revele, por qualquer vestígio,
esse errante bovino, que talvez
amor de verde pasto ou de rebanho
ou novilha lhe desse tentação
de penetrar estábulos gortínios.
Depois canta ele a moça que, atraída
pelo pomo de Hespéria, lá ficou ;
em seguida, as irmãs de Faetonte
prendem amarga casca assim fazendo
que do chão brotem fortes amieiras.
Logo cantou de Galo o seu errar
nas margens do Permesso e de que modo
outra irmã o levou até Aónia,
de Febo ao coro e em honra do Herói
todos se levantaram ; como Lino,
o pastor que como um deus cantava
e seu cabelo ornava de aipo amargo
com flores junto disse a ele um dia :
<<A ti cálamos dão Musas as que outrora
ao velho ascreu os deram, com os quais
costumava, cantando, os duros olmos
fazer descer do monte ; dize tu
as origens do bosque de Guireu
para que nele tenha orgulho Apolo . >>
Quem cantarei agora será Cila,
de Nilo filha, a que cingiu de monstros
suas alvas virilhas e tormenta
32 VIRGÍLIO

deu às naus de Dulíquio, os assustados


nau tas dilacerando os cães marinhos ?
Ou será o que disse de Tereu
sua metamorfose e dos presentes
que lhe deu Filomela, com a fuga
que ele fez para os ermos, com as asas
que a infeliz ganhou para voar
por cima dos abrigos que lá tinha ?
Tudo o que Febo outrora compusera,
com o ditoso Eurotas o cantando
e logo o transmitindo a seus loureiros
cantou então Sileno, com os vales
em seu eco o lançando para os astros
até chegar a hora da recolha
de ovelhas ao redil e despontar
Vésper no céu para pesar de Olimpo.
BUCÓLICA SÉTIMA

MELIBEU
«Debaixo dum carvalho ramalhante
se sentara já Dáfnis quando Tírsis
e Córidon num só os dois rebanhos
ajuntaram ao pé, sendo de ovelhas
o que trazia Tírsis, o de Córidon
de cabras bem pejadas de seu leite ;
cada pastor em sua idade aberta,
ambos da Arcádia e pares em seus cantos
e prontos ambos a resposta em forma.
Enquanto, aqui, defendo o tenro mirto
do frio que faz, se me extravia o bode.
Dáfnis avisto que me diz : "Regressa.
Teu bode e teus cabritos, tudo a salvo ;
e, se podes parar algum bocado,
vem descansar à sombra, que as vitelas
pelo prado virão para beber.
O Míncio de caniço veste as margens ;
nesta árvore sagrada tanto enxame
bem que sussurra : 'Vem' . " Foi o que fiz.
Não tinha j unto a mim Alcipe e Fílis
que tinham ido os dois fechar em casa
cabritos desmamados. Já então
começara a disputa em verso alterno
de Córidon e Tírsis. Pus de lado
tudo o que era mais sério e me entretive
com o jogo dos dois, visto que as Musas
lhes impunham poético diálogo.
Córidon foi primeiro, depois Tírsis.
34 VIRGÍLIO

CóRIDON
Vós, ó Ninfas da fonte Liberteia,
Ninfas queridas, me dareis agora
de Codro os estros próximos a Febo
ou então, se não somos nós iguais,
irei eu pendurar neste pinheiro
minha sonora frauta.

TíRSIS
Ó árcades pastores, ornai de heras
o poeta que surge e que esse Codro
se rebente de inveja. E se louvor
dele vier como se fora ultraje,
vós a fronte de bacar me cingi
para não vir ferir um vate a ser
sua danada língua.

CóRIDON
O jovem Mícon, Délia, a ti te manda
a cabeça de hirsuto j avali
mais os ramosos chifres dum veado.
E se isto der no certo, terás tu
tua figura inteira em liso mármore
e de pé ficarás, tu, bem calçada
de purpúreo coturno.

TíRSIS
Uma j arra de leite, com uns doces,
é somente o que podes esperar,
Príapo, ano após ano, pois és guarda
duma terra de pobres . Por enquanto,
és tu marmóreo, mas um dia podes,
se o rebanho crescer por suas crias,
ser todo de ouro.

CóRIDON
A mim mais doce que tomilho de Hibla,
a mim mais alvo que o mais alvo cisne,
a mim mais bela que hera desmaiada,
é que virás, ó filha de Néria,
querida Galateia, se em verdade
algum cuidado tens pelo teu Córidon,
BUCÓLICAS 35

logo que os bois, já satisfeito o pasto,


ao estábulo voltem.

TíRSIS
Mais amargo que as ervas da Sardenha,
mais feio que azevinho, desprezível
mais que alga abandonada, é que eu desejo
que tu me vejas, se não é que o dia
se me alonga hoje mais que um ano inteiro.
Já que pastastes, ide, meus boizinhos,
ide a vossos abrigos, se é que tendes
uns restos de vergonha.

CóRIDON
Musgosas fontes, vós, e tu, ó relva
mais repousante que o melhor dos sonos,
e tu, ó verde arbusto que proteges,
que a vós protege com a breve sombra,
defendei o meu gado do calor
pois que chega o Verão, tórrido tempo,
e já nas vinhas, nas tão tenras vinhas,
incham rebentos.

TíRSIS
Porque tenho lareira com as achas
que uma resina suam, como há sempre
um fogo tão constante que as ombreiras
me ficam todas negras de fuligem,
aqui tanto me importa o frio Bóreas
como ao lobo o rebanho ser tão grande,
como às águas de rio torrencial
restringem margens.

CóRIDON
De pé está o castanheiro hirsuto,
de pé também junípero, no chão
a fruta que se solta de seus ramos
nestas árvores nossas. Tudo riso.
Se, porém, destes montes se afastasse
Aleixo, o belo, até os fartos rios
secariam de pena.
36 VIRGÍLIO

TíRSIS
Secos os campos, e, por falta de ar,
morrem as vinhas. Líbero recusou
sombra de vinha aos montes em redor,
mas, se Fílis vier, o bosque todo
verde será de novo e farto Júpiter
em chuva descerá.

CóRIDON
De choupo gosta Alcides, quanto gosta,
de vinho laco, o mesmo, e é o mino
de Vénus preferido ; a Febo o louro,
de Fílis as nogueiras. Se ela as ama,
já nem o mirto nem de Febo o louro
delas triunfarão.

TíRSIS
O freixo é pelos bosques o mais belo,
nos j ardins o pinheiro, o choupo em no .
Mas, se mais vezes me viesses ver,
ó Lícidas formoso, já no bosque
todo o freixo como em jardim pinheiro
te cediam lugar. >>

MELIBEU
Eis o que lembro, e que o vencido Tírsis
em vão lutou, ficando desde então
para nós todos Córidon o Córidon.
BUCÓLICA OITAVA

O canto de Dámon, Alfesibeu,


pastores ambos que, no seu certame,
já tanto os admirou a vitelinha
que de ervas se esqueceu ; estupefactos
com seu canto ficaram mesmo os linces
e muitos rios mudaram os seus cursos,
o canto deles vos direi agora.
E celebrar teus feitos poderei,
algum dia que chegue quer vás tu
ultrapassando as rochas do Timavo
ou ao longo das costas ilíricas ?
Poderei eu levar por todo o mundo
a versos dignos do coturno grego
que Sófocles calçava? Em ti princípio,
em ti o fim porei ao canto meu.
Aceita tu então o começado
por ordens tuas, deixa que eu na fronte
te ponha as heras que ficarão juntas
aos louros da vitória. Mal descera
do céu a noite numa fria sombra
que assim cantou Dámon bem apoiado
em polido cajado de oliveira :
«Vem, Lúcifer, que, ao dia precedendo,
ante mim chegas quando eu, o enganado
por Nisa, a companheira, queixa elevo
aos deuses que em verdade não me escutam,
mas a quem falo à hora de morrer.

Ó frauta minha, os versos de Ménalo


comigo dize, pois tem ele, sempre,
pinheiro eloquente, arguto bosque
38 VIRGÍLIO

e sempre de pastor amor atende,


como a Pã sempre, e foi ele o primeiro
que não deixou seus cálamos inertes.

Ó frauta minha, os versos de Ménalo


comigo dize : A Mopso se dá Nisa,
pois que tudo esperamos dos amantes ;
Grifos irão às éguas no futuro,
se juntarão a cães tímidos gamos,
no mesmo bebedouro, tudo em paz.

Ó frauta minha, os versos de Ménalo


comigo dize : Folhas novas, Mopso,
te trazem uma esposa, espalha nozes,
noivo feliz, pois deixa o Eta Vésper.

Ó frauta minha, os versos de Ménalo


comigo dize : És tu a companheira
dum homem bom, tu que desprezas todos,
que odeias minha frauta e minhas cabras,
meu sarçoso sobrolho, a longa barba,
e que pensas que os deuses para nada
se importam com a vida dos mortais.

Ó frauta minha, os versos de Ménalo


comigo dize: A ti, pequena ainda,
eu vi com tua mãe, no meu quintal,
orvalhadas maçãs irem colhendo,
era eu então dos onze para os doze,
podia até chegar aos ramos baixos .
Te vi e me perdi. Fatalidade.

Ó frauta minha, os versos de Ménalo


comigo dize: Bem sei eu agora
o que Amor é, nascido lá das rochas
Tómaro ou Ródope, Garamantes,
não é de nosso sangue o filho alheio.

Ó frauta minha, os versos de Ménalo


comigo dize : Amor é que ensinou
a macular-se a mãe no próprio sangue
de filho seu, cruel como Amor,
BUCÓLICAS 39

mais cruel até mãe, ou mais traidor


seu filho. Traidor. Como cruel a mãe.

Ó frauta minha, os versos de Ménalo


comigo dize : Fuja agora o lobo
de mansa ovelha e que o carvalho, duro,
pomos dourados dê, e que se enflorem
dum arménio narciso os amieiros,
de casca tamangueira âmbar- escorra,
venham os mochos triunfar dos cisnes.
Títiro seja Orfeu, Orfeu dos bosques,
com Amião nadando entre golfinhos.

« Ó frauta minha, os versos de Ménalo


comigo dize : Que só mar imenso
o mundo seja, mas que vós, ó bosques,
fiqueis bem altos e de lá de cima
me lançando eu às vagas, tereis vós
uma última lembrança de quem morre.

Mas deixa, ó frauta, os versos de Ménalo. »

Assim cantou Dámon. Alfesibeu ?


O direis vós, ó filhas de Píero,
pois não podemos nós saber de tudo.

<< Traze água, vamos, ao altar aqui


cingirás tu de servidora fita
e queimarás, com a verbena gorda,
incenso macho para que a magia
atrapalhe a razão de meu amor,
e só encantos faltam para tudo.

Versos, trazei-me Dáfnis da cidade.


Versos do céu podem baixar a Lua,
Circe com versos transformou de todo
companheiros de Ulisses marinheiro
e versos podem destruir nos prados
a pérfida serpente perigosa.

Versos, trazei-me Dáfnis da cidade.


Primeiro enrolarei à tua volta
por três vezes a fita de três cores
40 VIRGÍLIO

e também por três vezes tua imagem


farei passar em torno dos altares
porque prefere o deus números ímpares.

Versos, trazei-me Dáfnis da cidade.


Dá nó três vezes a cada uma cor
dá o nó, Amarílis, logo, e dize:
Com nó aperto este prender de Vénus.

Versos, trazei-me Dáfnis da cidade.


Como endurece o barro e se derrete
a cera ao mesmo fogo, assim os dois ;
deita farinha tu e, com betume,
ao louro quebradiço pega fogo.
Me queima Dáfnis e queimo eu o louro.

Versos, trazei-me Dáfnis da cidade.


Assim como a novilha já cansada
de procurar por bosque e vale, vai,
se deita junto ao rio nas verdes ervas
e nem à noite cede já tardia,
assim o meu amor a Dáfnis prenda
e nem cuide eu de lhe levar remédio.

Versos, trazei-me Dáfnis da cidade.


Ó despojos deixados pelo pérfido
como penhor de amor que me entregava,
eu os confio à terra que mos guarde
e a mim de novo tragam o meu Dáfnis .

Versos, trazei-me Dáfnis da cidade.


As ervas estas e os venenos estes
no Ponto em que eles nascem colheu Méris,
ele próprio mos dando, o tendo eu visto
por os beber em lobo se mudar,
em bosque se esconder e dos sepulcros
as almas invocar longe levando
searas semeadas noutros campos.

Versos, trazei-me Dáfnis da cidade.


As cinzas, Amarílis, leva embora,
por cima da cabeça as deita ao rio,
BUCÓLICAS 41

sem para trás olhar já que por elas


a Dáfnis chegarei, aquele Dáfnis
que tanto escapa a deuses e magias.

Versos, trazei-me Dáfnis da cidade.


A vacilante chama dos altares,
enquanto demorei a transportá-las,
aquelas cinzas toma por si mesma.
Que seja bom sinal. Não sei ao certo
o que se passa, Hilas à porta ladra.
Devo eu acreditar? Será que amor
o sonho nos faz ver como real ?

Ó meus versos, parai, que da cidade,


ó parai, versos meus, me chega Dáfnis.
BUCÓLICA NONA

LÍCIDAS
Para onde vais, ó Mécio ? Como segues
a estrada em que estamos, à cidade ?

MÉRIS
Vivos ficámos para que estrangeiro
me viesse dizer o que me disse,
ó Lícidas, já dono do campinho
que nosso foi, sem que eu tivesse nunca
tivesse medo de que isto acontecesse.
«Agora é tudo meu e vá embora
quem dantes trabalhava por aqui.»
Estou vencido e triste porque a sorte
tudo vira ao contrário ; as próprias cabras
eu tenho que lhe dar, mas oxalá
que lhe leve desgraça o que recebe.

LÍCIDAS
Pois é o que eu ouvi ; lá desde o cimo
em que as colinas vão descendo aos poucos
até que cheguem ao ribeiro, às faias,
agora com as copas maltratadas.
Tudo era, por seus versos, de Menalcas.

MÉRIS
Foi o que te disseram, e corria.
Sim, o que valem, Lícidas, os versos
ante as armas de Marte ? Tanto quanto
as pombas da Caónia se vem águia.
Na verdade, se dentro da azinheira
não houvesse uma gralha que avisou
BUCÓLICAS 43

de que não andasse eu em mais porfias,


não estaria vivo este teu Méris,
nem o próprio Menalcas se escapava.

LÍCIDAS
Como pode chegar-se a tanto crime ?
Quase até nos tiraram o consolo
de escutarmos Menalcas no seu canto .
E quem teria celebrado as Ninfas
e quem teria recoberto o chão
de tanta flor rasteira, até às fontes
levando a verde sombra ou estes versos
que ainda há pouco, sem saberes, li
quando foste a Amarílis, a querida ?
<<Títiro, até que e u volte, não demoro,
leva-me ao pasto as cabras e depois
lhes darás de beber, sempre evitando
lugar em que haj a bode de marrar. >>

MÉRIS
Ou estes outros que, por acabar,
cantava Varo : «Se nos sobrar Mântua,
Mântua vizinha de Cremona, a pobre,
teu nome, Varo, lançarão os cisnes
com seu sonoro canto até aos céus . >>

LÍCIDAS
Anda, va1 começando com o canto
e possam teus enxames evitar
os teixos lá de Cirne e tuas vacas
pastar cítiso os úberes enchendo.
De mim vate as Piérides fizeram,
também sei de poemas, e poeta
me chamam os pastores ; não o creio.
Até agora nada do que faço
é bem digno de Vário nem de Cina.
Entre canoros cisnes pato sou.

MÉRIS
Cá estou eu e caladinho penso
para lembrar poema conhecido :
«Vem aqui, Galateia, de que serve
44 VIRGÍLIO

andares tu brincando nessas ondas ?


Refulge a Primavera e pelas bordas
de todos estes rios do solo brota
a flor variegada, e choupo branco
se alteia sobre a gruta, vinha tenra
as sombras entretece. Galateia,
deixa vaga bater sozinha a praia. »

LÍCIDAS
E aquilo que eu ouvi cantares tu,
sozinho tu, na sossegada noite ?
Música a sei, mas não lembro as palavras .
«Por que motivo, Dáfnis, o nascer
dos astros olhas tu ? Já a cesárea
estrela apareceu, aquela que,
de Dione provindo, à pradaria
dá a funda alegria das colheitas
e traz a cor aos cachos sumarentos
nas colinas banhadas pelo sol.
Pereira enxerta, Dáfnis, que teus netos
alegremente vão olhar um dia.

MÉRIS
Tudo vai com o tempo, até memória.
Quando eu era mais moço o dia inteiro
até ao pôr do Sol ia cantando.
Agora me esqueceram esses versos
e vai a própria voz faltando a Méris.
Méris foi apanhado pelos lobos,
mas Menalcas dirá o que tu pedes .

LÍCIDAS
O meu gosto demoras com desculpas .
Por tua causa, no silêncio, o mar
aquietou as ondas, calma veio
aos sussurrantes ventos. Daqui vemos,
que a meio caminho estamos, o sepulcro
de Bianor. Aqui cantemos, Méris,
enquanto camponês rareia folha.
Deixa aí os cabritos. Dará tempo
que à cidade cheguemos . Mas, se há medo
de vir ao nosso encontro vento ou chuva,
BUCÓLICAS 45

prossigamos andando, que o cantar


fará que seja a marcha menos dura.
E para que cantemos sem parar
é melhor que te leve eu esta carga.

MÉRIS
Deixa lá isso, ao que é urgente vamos
e melhor cantaremos se Menalcas
vier de volta a hora de nos vermos.
BUCÓLICA DÉCIMA

Concede-me, Aretusa, último esforço


já que tenho que a meu amigo Galo
dizer uns versos mais, uns versos dignos
de que os possa até Licóris ler.
E quem o canto negaria a Galo ?
Assim para ti vai, quando navegues
nas águas da Sicília sem que Dóris,
a tão travessa Dóris, lhes misture
as suas próprias ondas. Comecemos .
Vamos dizer, de Galo, seu amor,
seu inquieto amor, enquanto as cabras
de achatado focinho pastam brotos.
Não cantamos a surdos pois que o bosque
ecoa nossos versos, nos responde.
Que matas ou abertos vos retinham,
Náiades virgens, quando nosso Galo
perecia de amor, amor indigno ?
Não vos prendiam cimos do Parnaso
nem os do Pindo ou Aganipe aónia.
Até as tamargueiras, os loureiros
a Galo lamentavam que j azia
à sombra duma rocha solitário,
de Ménalo o choraram os pinheiros,
os rochedos do gélido Liceu.
À sua volta ovelhas pelas quais
nenhum desdém sentimos como tu,
ó divino poeta, não o sentes,
que até o belo Adónis às ovelhas
apascentou em margem de ribeiro ;
até veio pastor, até porqueiras
lentos vieram e chegou Menalcas
BUCÓLICAS 47

mais que molhado da miúda chuva.


Todos perguntam : «Donde veio Amor? »
Pede-lhe o próprio Apolo : « Que delírio
é esse, Galo ? Outro seguiu Licóris
e por ele lá vai tua querida
através de nevões e por horríveis
arraiais militares. >> E chegou
Silvano mesmo, seu campestre adorno
trazendo na cabeça e com as mãos
canafrecha agitando e grandes lírios.
O deus da Arcádia, Pã, também lá foi,
e nós que bem o vimos, como em sangue,
com as bagas de ébulo e vermelhão.
«Que falta de juízo ! Julgas tu
que a Amor importa tanto sofrimento ?
De lágrimas j amais se farta Amor,
cruel Amor, como j amais o prado
de água se farta, abelha de cítiso,
ou as cabras se fartam de folhagem. >>
Mas ele, tristemente, só lhes disse :
«Vós Á rcades, tudo isto cantareis
a vossos montes, que peritos sois
em músicas e versos. E meus ossos
bem que repousariam se este amor
lembrado fosse pelas vossas frautas.
Oxalá que fosse eu um de entre vós
ou gado apascentando ou vindimando
uva quando madura. Ao menos Fílis
ou Amintas (que tem ser ele escuro,
não o é violeta, airela preta?),
qualquer outra loucura que me desse
comigo sentaria entre salgueiros
ou estaria à sombra de videira ;
grinaldas me compunha minha Fílis,
cantos entoaria meu Amintas.
Aqui há, ó Licóris, frescas fontes,
aqui macios prados, aqui bosques,
tempo de vida aqui acabaria,
contigo sempre. Um insensato amor
me vai reter agora sob as armas
dum Marte impiedoso, a dardo exposto,
enfrentando inimigos. E tu, longe
48 VIRGÍLIO

da pátria, e tu, cruel, estás sem mim,


nem eu o posso ver, e vais, sozinha,
por entre alpinas neves, frio do Reno.
Oxalá te não faça mal o frio,
oxalá que não vá áspero gelo
ferir, amor, teus delicados pés .
Irei embora, os versos que compus
do poeta de Cálcis à maneira
modularei em frauta de pastor
nos campos da Sicília. Vou sofrer
em abrigos de feras entre bosques,
e meu amor em cascas gravarei,
em árvore crescendo cresce amor.
Junto com Ninfas correrei Ménalo
e caçarei os bravos j avalis.
Nem frio me impedirá de circular
no mato do Parténio com meus cães .
É como se já fosse pelas rochas
e bosques ressoantes e lançasse
as frechas de Cídon ou dardo parto.
Talvez seja remédio de loucura
ou aprenda esse deus a sentir pena
do que passam os homens pelo mundo.
Já nem as Hamadríades nem versos
me agradam mais a mim. Os próprios bosques
se podem retirar. Os meus esforços
se perdem ante o deus que lhes resiste,
mesmo que eu beba ao frio água do Hebro,
mesmo que afronte as neves da Sitónia
no mais húmido Inverno, ou apascente
ovelhas dos Etíopes na seca,
lá quando o Cancro reina e dos ulmeiros
se racha toda a casca mesmo ao cimo.
A tudo vence Amor; obedeçamos.
Ter o nosso poeta estes seus versos
cantado para vós vos baste, ó deusas,
Piérides, vos baste, enquanto tece,
sentado, um cesto em delicados ramos
de graciosa malva. Os louvareis
perante Galo e lhe direis também
como por ele cresce meu afecto
da mesma forma em que, no tempo certo,
BUCÓLICAS 49

aumenta em amieira o verde aprumo.


De pé, que muita sombra faz seu mal,
de junípero sendo, a quem só canta,
como às searas faz seu mal também.
Já fartas, ide embora, minhas cabras,
que no céu fim ao dia marca Vésper.
GEÓRGICAS
LIVRO I

Aqui, Mecenas, dou início ao canto


que nos ensina a ter fartas colheitas,
a como lavrar terra em astro certo,
a como vides ajuntar aos olmos
e que cuidados tem de haver com bois
ou como se tratar gado miúdo,
como levar saber à parca abelha.
E dos céus vos invoco, luminares,
que guias sois do recorrer dos anos.
E te venero, B aco, a Ceres honro,
a Ceres criadora, se é verdade
que foi por vós que nos trocou a terra
as landes da Caónia pelo trigo
e juntou à bebida de Aqueloo
o sumo de uva só por vós trazido.
E a vós também cuja divina ajuda
vale aos homens do campo, eu vos invoco
para que venham, Faunos, vossos passos
como os vossos também, Dríades jovens,
por vossos dons invoco. E tu, Neptuno,
a quem a Terra, por tridente lesa,
deu fremente cavalo ; e tu também
dos bosques habitante, a quem devemos
os três vezes cem touros que da neve
a brancura revestem e que pastam
as abundantes moitas de ilha Ceia ;
e tu, deus Pã, o guarda das ovelhas,
deixa o bosque e gargantas do Liceu
que tua patna são ; e vem, Tegeeu,
me dá a tua ajuda, se é que ainda
54 VIRGÍLIO

o Ménalo te importa; e tu, Minerva,


que oliveira inventaste ; e tu, menino,
que arado adunco nos mostraste em obra;
e tu, Silvano, que desde a raiz
arrancado cipreste tens contigo ;
deuses e deusas todas que cuidais
de defender os campos e que aos frutos
que da terra brotarem sem semente
sustentais quando nascem e do céu
tanta chuva fazeis logo descer ;
e tu, César, sim tu, de quem um dia
bem incerto será o que farão
os concílios dos deuses, ou olhar
pelas cidades que há ou pelos campos
ou até que o mais alto de universo
te veja autor dos frutos e dos tempos,
cingida a fronte de materno mito
ou venhas como deus do mar imenso
com todo o marinheiro a prestar culto
a ti servindo a tão longínqua Tule
e que Tétis com todas suas vagas
te compre como genro ou que te juntes
como astro novo a nossos lentos meses
no largo espaço entre Erígone e Quelas,
e com Escorpião já retraído .
para do céu deixar-te o mais que muito.
Qualquer que seja nele o teu lugar,
ninguém te verá nunca rei do Tártaro
por não haver em ti uma tão fera
cobiça de mandar, embora à Grécia
tanto os Campos Elísios extasiem,
nem pense Proserpina em responder
ao contínuo chamar de sua mãe,
oxalá facilites meu vogar
e aproves este meu audaz empenho,
comigo apiedado dos dos campos,
venhas tu, desde j á te acostumando
a preces te invocarem como deus.
É bem urgente que, na Primavera,
quando já pelos montes se desfaz
a brancura de seu gelado humor
GEÓRGICAS 55

e, soprada pelo Zéfiro a gleba,


se dispersa em poeira, gema o boi
atrelado ao arado mais baixado
com a relha a brilhar de abrir a terra,
que só responde aos votos que formula
ávido lavrador se duas vezes
apanha todo o sol e todo o frio ;
é ela que produz aquelas messes
que aos celeiros abatem �om seu peso.
Antes, porém, de abrirmos nós a ferro
a plana terra que desconhecemos
há que aprender a direcção dos ventos
o variado aspecto que o céu toma,
o jeito que de origem tem o solo
com o que nele é mais habitual
e que coisas produz a região
ou o que de contrário ela recusa.
Num ponto o de semente, noutro as uvas
se darão bem melhor, além a fruta
e noutro ainda as ervas espontâneas.
Não vês como os perfumes de açafrão
nós temos do Templo e como de Í ndia
nos mandam o marfim ou dos Sabeus,
Sabeus efeminados, chega incenso
ou como de Cálibes desnudados
temos ferro e do Ponto castóreo,
fétido castóreo, e lá do Epiro
as coroas de Élis em suas éguas ?
A natureza foi que para sempre
ao lugar certo impôs a sua lei,
lei de contrato, desde o tempo antigo
em que Deucalião lançou ao orbe
aquelas pedras de que surgiu homem,
homem, raça tenaz. Em frente, pois .
Se a terra é de fartura, venham logo,
no começo dos anos fortes touros
que revolvam o solo, de maneira
que uma época de pó os campos cubra,
os recozendo no calor do sol.
Mas se, contudo, é infecundo o chão,
será bastante que, ao nascer de Arcturo,
56 VIRGÍLIO

um pouco se levante em leve sulco,


de maneira que as ervas ao pomar
em nada prejudiquem lhe roubando
a exígua humidade que ali há.
Com ano de intervalo deixarás
que, depois das colheitas, em repouso.
fique o plaino todo, a recolher
um vigor novo em inactivo estar.
Mas podes semear, no tempo certo,
dourado trigo onde colheres antes
fartos legumes dos de casca frágil,
replantes delicados de ervilhaca
ou de tremoço pouco saboroso,
tudo caules bastante quebradiços,
tudo folhagem ressoando ao toque.
Entretanto, com linho e com aveia,
se queima o campo, assim como a papoila
o faz, tudo emprenhando de seu sono
que é do sono do Letes tão parelho.
Será, contudo, fácil o trabalho
se podes alternar estas culturas
e se não poupas abundante estrume
e cinza imunda ao campo embranquecido.
Com todo este cuidado pousa o solo
que não deixa de ter a própria graça.
Muitas vezes também lhe será útil,
todo o restolho em fogo consumindo,
queimá-lo para que não fique estéril,
ou para que retorne força oculta
de suco nutritivo ou possa a chama
destruir o que havia de nocivo
ou para que o calor dilate ainda
novas passagens ou antigas abra
por onde chegue à planta que ali brota
a força necessária no crescer.
E pode ser que se endureça a terra
e se estreitem as veias mais que largas
de modo a que não dê a chuva fina
um qualquer prejuízo ou seja o sol
a vir tudo esgotar com seu calor
ou vento boreal com seu frio.
GEÓRGICAS 57

Muito também beneficia os campos


quem com o rastro destorroa a leiva
ou a grade de vime nela passa,
e não é certamente em gesto vão
que dos altos de Olimpo a loura Ceres
o segue com olhar de ajuda e gosto,
o mesmo acontecendo com aquele
que de través vai indo e que, cruzando
os sulcos que na lavra já abriu,
derruba a margem alta e com um outro
que a terra amanha em faina amiudada
assim a subjugando ao que mais quer.
Ainda, ó lavrador, ora por que haja
Verões chuvosos com Invernos secos ;
contente fica a terra e mais os trigos
com poeira de Inverno e nem a Mísia
se gaba doutra espécie de cultivo
ou Gárgaro se orgulha com as messes.
Que direi eu daquele que, depois
de semeado todo o campo seu,
logo se lança em luta com a terra,
abate os altos duma seca areia,
um rio canaliza, repartido
em arroios que vão como atrás dele
dóceis ao mandar ele regar tudo ?
Quando o campo queimado abrasa as plantas
que quantidade de água faz sair
como que dum sobrolho de terreno
que do lado de cima vai descendo.
Correndo vai essa água em rouca voz
pelas pedras que deixa bem polidas
e com sua cascata dessedenta.
Que direi eu também do que não deixa
que os caules todos verguem sob o peso
de espiga desenvolta e põe a pasto
tudo que ainda seja uma erva tenra ?
Ou do que esgota as águas mais paradas
em areal ardendo por beber
quando meses incertos os riachos
fazem subir levando-os a vencer
a margem que os contém e a deixar
58 VIRGÍLIO

por toda a cova que há os seus nateiros,


lagos de lodo sem frescura alguma?
Por outro lado ainda causam danos,
quaisquer que tenham sido no trabalho
o cuidado e valor de homens e bois,
no que respeita ao revirar de terras,
não só o pato bravo de mau j eito
como também os grous de Estrímon
ou fibras mais amargas de almeirão
ou a sombra de toda erva ruim.
O próprio Pai dos deuses quis, primeiro,
que o trabalho dos campos nunca fosse
qualquer fácil empenho ; habilidade
a tudo move e servem os cuidados
para aguçar a mente dos mortais ;
nunca ele permitiu que nos seus reinos
vencesse a um qualquer torpor de velho.
Antes de Jove, lavrador algum
jamais trabalhou terra e sacrilégio
seria dividi-la e pôr estremas,
ao comum vindo todo o produzido
que o solo livremente oferecia
muito mais por ninguém lho exigir.
E foi ele quem deu às negras serpes
com veneno causar males fatais,
quem ordenou ser predador o lobo,
mover-se o mar e derramar-se o mel
por folhas fora, pondo longe o fogo
e fazendo parar os rios de vinho
que iam por toda a parte, a fim de que,
por ser-nos necessário isto ou aquilo,
se criassem à força de exercício
e pouco a pouco as diferentes artes,
a de colher em sulco erva de trigo,
a de fazer sair de pedra o fogo.
Foi então que sentiram rios o peso
de amieiro escavado e marinheiro
às estrelas contou e pôs os nomes
de Plêiades, Híades e de Arcto,
de Licáon esplendorosa filha.
Veio depois o laço para as feras
GEÓRGICAS 59

e veio para os pássaros o visco,


cercaram-se de cães os vastos bosques.
Viram-se homens ferir com a tarrafa
um largo rio, a procurar-lhe o fundo,
como se viram outros a, no mar,
ir arrastando redes que água escorrem.
Então se descobriu o duro ferro
mais lâminas argutas para serras,
que dantes se fendia tronco à cunha,
a isto se seguindo as várias artes.
Aturado trabalho venceu tudo,
sem esquecer como é urgente ter
o que é preciso que não falte mais.
Foi Ceres quem primeiro instituiu
que mortais revolvessem terra a ferro
quando sagrado bosque já não tinha
bolotas ou medronhos e Dodona
a todos recusava um alimento.
A seguir foi difícil haver trigo
quando roía os caules a ferrugem
e lento cardo o campo horrorizava.
Destroem-se as searas, em vez delas
surge um áspero mato todo espinho,
vem abrolho e bardana a terras lindas,
cresce estéril o joio, aveia brava.
Mas se, entretanto, as ervas não persegues
com rastreio constante, e um barulho
as aves não espantas e se aos deuses
as chuvas não suplicas com teus votos,
só frustrado olharás colheitas doutros,
só com bolota acalmarás a fome,
bolota varejada pela mata.
Há que dizer agora quais as armas
que são úteis ao rude camponês
sem as quais não pode ele semear
nem produzir colheitas que se vejam :
primeiro, com a relha, o recurvado
e bem pesado tronco da charrua,
depois com lentos carros que a nós vêm
da Deusa Mãe de Elêusis, ou, ainda,
escarificadores, trilhos e rastros,
60 VIRGÍLIO

todos de bruto peso, e de Céleo


as serviçais alfaias que se fazem
com um barato vime, mais as grades
que são de medronheiro ou a joeira
que, direi eu, é mística de laca .
A todas estas coisas deves tu
arranjar de antemão e ter guardadas,
para que na hora certa bem te sirvam
se queres realmente merecer
toda a glória que dá campo divino.
Logo depois, usando toda a força,
se vai ao bosque a obrigar ulmeiro
a tomar a forma dum arado curvo ;
do lado da raiz se põe temão,
aí do comprimento de oito pés,
duas aivecas, rastro de dois dorsos,
j á antes abatida lisa tília
que sirva para o jugo e faia alta
para boa rabiça que, da saga,
nos permita dar governo à croca
e tudo com madeiros resistentes
pelos efeitos neles do calor
que lhes chegou suspensos na lareira.
Assim posso passar-te muito ensino
que dos antigos vem se te não furtas
e te não aborrece conhecer
os pequenos cuidados que convêm.
Logo de início temos de ir à eira
e de com grande rolo a nivelar,
depois de revolvido o solo à mão
e de também com greda endurecido
para que o não domine erva nenhuma
nem possa o pó vencê-lo e destruí-lo,
ou possa um rato que não vale nada
fazer debaixo a toca, com dispensa,
ou a cega toupeira seu abrigo,
ou em buracos apareça sapo
e tudo o que de estranho a terra cria
como o gorgulho com o seu tesouro
ou formiga com medo da velhice.
Há que se ver também se no pomar,
GEÓRGICAS 61

quando a folhagem veste amendoeira


e ramaria curva, pronta a fruto,
o não faça de mais pois, quando o faz,
logo a imita o trigo e se terá
fatigante debulha no Verão,
sendo também que, se há folha em fartura,
a sombra se exagera e só a palha
nas eiras ficará de trilhar colmo.
Vi também muito o preparar semente
com uma água azeitada e com salitre
para colher depois fruto que fosse
de maior conteúdo e mais brandura,
mais fácil de cozer em fogo baixo.
Como vi que sementes escolhidas
e com todo o cuidado examinadas
degeneravam, apesar de tudo,
se não houvesse quem, ano após ano,
apartasse nos lotes as maiores.
Será que há um destino de chegar
ao pior de si próprio, recuando ?
Exactamente como u m remador
que força faça para subir rio,
ai dele se um momento se descuida,
logo a corrente o toma, atrás o leva.
Além de tudo, deveremos nós
olhar atentos o que vai no céu
com os astros de Arcturo e respeitar
os dias dos cabritos, surgir Serpe,
do mesmo modo que prudente nauta
à pátria volta em procelosos mares
com o Ponto arrostando e com as fauces
ostríferas de Abido olhando cauto.
Quando a Balança ao dia iguala o sono,
o mundo j á partilha em sombra e luz,
trabalhem, lavradores, vossos bois
e semeai as terras de cevada
até que rigoroso Inverno e chuva
impeçam vossa lida. É tempo então
de semear o linho, a dormideira,
a Ceres dedicada, e de lançar-se
a arar a terra enquanto ainda seca,
62 VIRGÍLIO

enquanto as nuvens vão como suspensas.


É boa a Primavera para as favas
como também o rego em terra solta
acolhe as ervas da luzerna Média
e nos chega o cuidar ânuo do milho
e com cornos dourados ao ano abre
o rebrilhante Touro enquanto o Cão
se deita de seu lado, mesmo em frente.
Se, porém, só houver o fim em vista
de colher trigo bom ou ervilhaca
e são só as espigas que interessam,
deixemos que as Atlântides se escondam
num romper de manhã, do céu descendo
a boa estrela Gnósia, rutilante
com a sua Coroa, antes que aos sulcos
confiemos o grão que lhes pertence,
depressa o dando à terra, sem forçá-la
a recolher o que é nossa esperança.
Antes do pôr de Maia o fazem muitos,
mas apanham apenas louca aveia.
Se ervilha cultivares ou feijão,
esse humilde feijão, sem desdenhar
de lentilha de Pelúsio, claro sinal
te dará o Boieiro quando baixe :
começa e continua a sementeira
mesmo que chegue o tempo das geadas.
É por isso, decerto, que áureo Sol
ao mundo dividido em partes certas
rege por seus doze astros dum a outro.
Tem o céu cinco zonas : numa delas
sempre se espelha o Sol com uns raios
que tudo abrasam ; à direita e esquerda
há duas outras que de gelo são
e, pela chuva, da mais negra sombra.
E foi entre estas duas e a do meio
que os deuses concederam aos mortais,
os pobres dos mortais, as outras duas,
com uma rota entre elas pela qual
desfila obliquamente a série de astros.
Se, do lado da Cítia e dos Rifeus,
se eleva o firmamento, assim se abate
GEÓRGICAS 63

para as terras da Líbia, para os Austros.


Um dos pólos é sempre para cima,
um outro j az, porém, a nossos pés
e só da negra Estígia pode ver-se
ou dos Manes profundos . Nosso pólo
a Serpe tem consigo ; sinuosa
sobe ela e passa, como se rio fosse,
à volta e pelo meio das duas Ursas,
as Ursas que não ousam ir banhar-se
no líquido plaina de Oceano.
Mas, no segundo pólo, ao que se diz,
há só silêncio e noite como um véu
que tudo cobre ou então a Aurora,
vinda de nossos lados lhe dá dia,
e quando para nós se eleva o Sol
no sopro dos cavalos, lá em baixo
é a vermelha Vésper a que acende
naquela região tardia luz.
Daqui podemos nós, em céu incerto,
prever quando será adequado
o tempo de colher ou semear,
o de, remando, abrir mar traiçoeiro,
o de lançar aparelhadas frotas,
o de no bosque se abater pinheiro .
Não é em vão que nós tomamos nota
de ocaso ou de nascer de estrela em céu
e nas quatro estações que, diferentes,
dividem ano em partes tão iguais.
Se acontece que alguma fria chuva
retenha em sua casa o camponês
pode ele se ocupar de muita coisa
que logo deixaria em tempo bom :
ou apurar a embotada ponta
da relha dos arados ou então
a cachos escavar ou marcar gado
ou numerar alqueires no celeiro.
Outros ainda estacas ou forquilhas
vão aguçando ou fazem para as vinhas
ataduras de junça de Améria,
ou um cesto de verga, ou tostam grão,
ou com pedras o moem bem ralado.
Há, sim, ocupações que leis divinas
64 VIRGÍLIO

e leis humanas fazem permtsstveis,


mesmo em dias de festa; culto algum
impede de purgar-se toda a vala,
de proteger com sebe uma seara
ou de armadilhas preparar para aves,
de queimar silvas, mergulhar rebanho
em águas que a saúde lhe conserve.
Quanta vez, em tais dias, lavrador
carrega um lento burro com azeite
ou com fruta barata e volta a casa
trazendo da cidade negro pez
ou pedra já picada para mó.
Mas no sétimo dia, após o décimo,
bom é chantar-se vinha ou amansar-se
boi apanhado há pouco ou aumentar-se
o pano que se tece, mas o nono
é melhor se houve fuga, pois contrário
é ele a qualquer roubo cometido.
Há trabalhos que são apropriados
à frescura da noite ou às manhãs
q uando rocio à terra dá Aurora.
E à noite que é bom cortar restolho,
à noite que se ceifa prado seco
pois que não falta à noite a humidade
que tudo torna menos resistente.
Há também quem à luz dum lar de Inverno
com um ferro aguçado talhe archotes
em feitio de espiga ao mesmo tempo
que o canto da mulher ajuda os dois
já que ela no tear o pente passa
com som harmonioso ou a Vulcano
confia o doce mosto, retirando
do caldeiro agitado, com folhagem,
água que porventura esteja a mais.
Dourada Ceres no calor se ceifa
e no calor se malha pelas eiras .
Um mínimo de roupa quando lavres,
um mínimo de roupa ao semear.
Preguiça ao lavrador venha de Inverno.
Em tempo frio mais goza o camponês
do que lhe granjeou o seu trabalho
e toda a gente, alegre, se convida.
GEÓRGICAS 65

Acolhedor, Inverno dispõe bem,


incita a pôr de parte o que é cuidados,
assim como, de quilha já no porto,
à proa dos navios ajoujados
põe marujo coroas de alegria.
Este é, porém, o tempo em que se colhem
as landes nos montados, baga ao louro,
azeitonas e murta cor de sangue ;
aos grous se armam os laços, aos veados
redes se lançam, se perseguem
as orelhudas lebres ou ao gamo
abate estopa em giro ou então funda
das ilhas B aleares, já com neve alta
e pedaços de gelo pelos rios.
Que direi eu de Outono quanto ao tempo
e também quanto aos astros que aparecem
e de como se deve estar de vela
quando o dia é mais curto e menos quente
ou quanto à Primavera e suas chuvas,
com a messe de espiga já no campo
e já trigo de grão no verde caule ?
Muitas vezes, j á quando o lavrador
dera ordem de ceifar o louro trigo
e se atara a paveia com vincilho,
vi eu vento em tumulto vir voando,
atirar a seara pelos ares,
de raiz arrancada, tufão negro,
em vertigem de colmos e de palhas.
Quantas vezes também uma hoste de águas
aparece no céu vinda de nuvens
dum alto reunidas e, sombrias,
as bátegas de chuva ao éter fazem
destruir as searas mais louçãs
e vir a não ser nada o que foi sempre
trabalho árduo dos bois ; as valas enchem
e transbordam os rios, ferve o mar,
e o próprio Pai dos deuses, pela noite
que formaram as nuvens, lança o raio
da coruscante dextra e toda a terra
com o golpe estremece ; os bichos bravos
fogem, no povo o coração se oprime.
Júpiter, dardo em chama, ao Atão fere,
66 VIRGÍLIO

ao Ródope, às alturas da Ceráunios.


O vento Austro redobra de furor
e faz-se a chuva cada vez mais densa.
No vendaval em fúria soa o bosque,
no vendaval em fúria soa a costa.
Mas olha o mês do céu se é que isto temes,
aos astros olha e vê onde se oculta
o frio Saturno e quais os pontos vários
por que vagueia o fogo de Cilene.
Antes, porém, venera tu os deuses,
celebra as festas da potente Ceres
ano após ano sobre as verdes ervas
quando se acaba Inverno e já, serena,
se mostra a Primavera pelos campos.
Vão gordos os carneiros e tem o vinho
o seu melhor sabor. Que bom dormir
com as sombras tão densas na montanha.
Que contigo se junte a mocidade
a Ceres adorando, em sua honra
favos sirvam em leite e doce B aco
e por três vezes vítima propicia
dê volta aos trigos novos tendo à roda
o coro inteiro, os companheiros todos,
e Ceres chamem para a tua casa.
Que ninguém foiceie o trigo já maduro
antes de à sua fronte ter cingido
a grinalda de folhas de carvalho,
sempre em honra da deusa, acompanhado
de cantos e de danças meio inábeis.
Para nos ser possível o prever
por sinais certos chuvas e calores
ou os ventos que ao frio tocam em frente
determinou o próprio Pai dos deuses
que a Lua os desse a nós todos os meses
e nos dissesse quando vem o Sul
para que o camponês, o vendo claro,
pudesse seus rebanhos conservar
dos estábulos perto o mais possível.
O levantar do vento ao mar agita
e logo engrossa a onda enquanto os montes
soam em seco estalo e pelas praias
tudo retumba longe e sempre aumenta
GEÓRGICAS 67

o sussurrar dos bosques. Muito a custo


poupam as vagas as recurvas naus
enquanto do mar largo os mergulhões
à costa voltam, enchem de ruído,
se divertem gaivotas pela areia,
deixa o paul habitual a garça
e sobre as altas nuvens voa longe.
Parece até que estrela solta ao vento
do céu se precipita e pelas trevas
vai deixando ela um rastrear de chama.
Por um lado e por outro voam palhas
e folhas dançam pelo cimo de água.
Quando, porém, soa trovão do Bóreas
e relampejam Zéfiro ou um Euro,
já vala cheia inunda o campo todo,
e ferra o marinheiro húmida vela.
Quando a chuva chegar sem prevenir
não poderá fazer-nos grande mal :
ou fogem dela os voadores grous,
aos mais baixos dos vales se acolhendo,
ou novilha olha o céu de venta aberta,
suspeitando o que vem, ou andorinha
dá volta, esperta, aos lagos que conhece,
sobe das rãs no lodo a velha queixa.
E muita vez também abre a formiga
um estreito caminho pelo chão,
por ele tira os ovos dos abrigos
profundos em que os guarda, ou arco tmenso
as águas todas bebe, ou à comida
hoste inteira de corvos põe de lado
e crocita no céu a todo o voo.
De pena variada aves do mar
e também as dos lagos de água doce
examinam pauis do Caístro de Á sia,
ora molhando ao desafio as asas,
ora à onda investindo de cabeça,
sempre teimando num banhar-se à pressa.
Com forte voz uma importuna gralha
a chuva chama e solitariamente
se passeia na areta mats que seca.
. . .

Pelo mau tempo a vir darão as jovens


que de noite se entregam a fiar
68 VIRGÍLIO

e vêem na candeia o cintilar


de seu azeite e no marrão formar-se
a fila de pequenos cogumelos .
Nem deixas tu, por isso, d e prever,
durando ainda a chuva, que haverá,
por sinais que aparecem, muitos dias
de céu sereno e de brilhante sol.
Em astro algum se perde o radiar,
jamais a lua inveja a seu irmão
nem paira sobre nós a lã das nuvens.
Os alciões, a Tétis tão queridos,
suas asas não abrem pelas praias
à tepidez do sol ou porco imundo
desfaz à focinhada feno em feixe.
Mais baixo vão as nuvens e se deitam
pelo campo estiradas e debalde
olha mocho o poente lá dum cimo
e repete seus cantos já nocturnos.
No firmamento límpido, bem alto,
Nisa aparece a Sila castigada
por purpúreo cabelo ; em toda a parte
em que corte voando os leves ares
logo Nisa lhe surge, não perdoa,
corta célere o espaço e, ruidoso,
a persegue com gritos estridentes,
e Sila foge, mais veloz ainda.
Três ou quatro grasnidos soltam corvos
de goela apertada, em altos pousas
fazem como que festa de alegria
sem se ver o motivo, logo descem
assim que as chuvas passam,
contentes de reverem seus pequenos
e de estarem de novo em doce ninho .
Não creio na verdade que haja neles
ou razão ou saber que sejam dados
por vontade dos deuses ou destino,
mas realmente quando muda o tempo,
quando é j á outra a direcção das nuvens
quando o vento do Sul o rarefeito
condensa e rarefaz o que era denso,
também outro é o espírito e se muda
o mover da vontade, diferente
GEÓRGICAS 69

do que era ao impelir o vento as nuvens .


Daqui concertos de aves pelos campos,
daqui toda a alegria dos rebanhos
e o crocitar de corvos j ubilosos.
Se se der atenção ao sol ardente
e às luas que por ordem vão nascendo
jamais enganará o dia aberto,
jamais iludirá noite serena :
quando a lua retoma sua luz,
se houver escura sombra no crescente
é chuva que ameaça em terra e mar,
mas se lhe for o rosto rubor virgem
é que vai soprar vento pois que sempre
o vento faz corar a loura Febe.
Mas se, da quarta vez que se levanta,
lhe é pura a luz com o crescente inteiro,
todo dia seguinte e os outros mais
até ao fim do mês sempre serão
sem chuva ou vento algum e nautas salvos
cumprirão as promessas que fizeram
a Glauco, a Panopeia, ou a lno.
Também o Sol, ao nascer ou já nas vagas,
mandará seus sinais a quem os siga,
ou de manhã ou ao surgir das estrelas.
Quando o astro ao nascer vires manchado
até metade oculto numa nuvem,
podes tu suspeitar que haverá chuva
pois de alto mar nos ameaça o Noto,
um castigo de gado, árvore e trigo.
Ou então, se, pouco antes de surgir,
os raios se dispersam entre nuvens,
ou se pálida Aurora se levanta
do leito açafroado de Titono,
não vão poder as parras defender
os cachos já maduros da saraiva
q ue violenta soa nos telhados.
E muito bom ainda que te lembres,
ao ter já percorrido ele o Olimpo,
de ver o rosto seu ; se nele há mancha,
a de cor azulada te anuncia
que chuva virá logo, a afogueada
que tens de esperar vento ; misturadas,
70 VIRGÍLIO

que toda a natureza agitarão


vento e nuvens de chuva, tudo junto.
Ninguém me levaria em noite dessa
a me meter ao mar ou a afrouxar
o cabo de prender o casco ao cais.
Mas se, pelo contrário, o disco brilha,
mesmo se bruma vem depois do dia,
não temas tu nenhuma nuvem grossa
porque logo verás ser limpo o céu
e sopro de Aquilão agitar bosque.
Por fim, à tarde, te revela o sol
donde trará o vento calmas nuvens
e quais as intenções dum húmido Austro.
Quem ousará dizer que o sol é falso,
ele que nos previne tanta vez
de tão cegos tumultos e de enganos
e de guerras que ocultas se preparam ?
Foi ele quem, de Roma apiedado
por César ter morrido, com ferrugem
velou sua cabeça tão brilhante,
levando tempos ímpios a temer
que noite eterna sobre nós caísse,
quando, afinal, pela mesma altura,
era igual o presságio em mar e terra,
em sinistra cadela, ave agoirenta.
Quanta vez vimos nós o referver
duma onda ardente que expelia o Etna,
por fornalha estourada, sobre terras
ciclópicas, com rocha liquefeita,
globos de chamas, ou Germânia ouviu
armas estrondearem pelo céu,
e tremeram os Alpes como nunca.
Também voz se escutou, ingente voz,
no silêncio do bosque em toda a parte
e fantasmas de intensa palidez
na escuridão da noite se mostraram,
houve animais falando, coisa estranha,
rios pararam, terras se fenderam,
marfim chorou em templo, suou bronze,
rei dos rios, Erídano, arrasta bosques,
em seguida se espraia pelas terras,
consigo leva estábulos e gados.
GEÓRGICAS 71

Ao mesmo tempo fibras agoirentas,


ameaçando, em vísceras se viram
nem pára em poço seu correr o sangue
ou se deixa de ouvir pelas cidades,
noite após noite, um ulular de lobos .
Nunca houve tanto raio de céu sereno
nem sinistros cometas tantos houve.
Viram por isso os campos de Filipos,
pela segunda vez, se combaterem
exércitos romanos, pares armas,
sem parecer aos deuses ser indigno
que sangue nosso fosse enriquecer
de novo Emátia e vastas terras de Hemo.
Tempo virá em que um agricultor,
metendo seu arado a essas terras,
dardos encontrará todos roídos
de escabrosa ferrugem, com o rastro
elmos vazios empurrará no solo
e como o espantarão grandes ossadas
depois de lhes quebrar os seus sepulcros.
Ó deuses pátrios, tutelares deuses,
ó Rómulo, ó Mãe Vesta que conservas
nosso toscano Tibre, o Palatino,
não proíbas que venha um herói jovem
socorrer esta geração perdida.
Há que tempo lavou o nosso sangue
perjúrios troianos de Laomedonte,
quanto te inveja, César, céu à terra
e se queixa ele de que tanto atendas
aos triunfos que os homens se concedem,
pois na terra ruínas são apenas
as leis religiosas e morais,
tanta guerra há no mundo e tanto aspecto
toma crime entre nós, que humanos somos.
Já charrua nenhuma merece honras
e pobres vão as terras de cultivo,
sem qualquer lavrador, se fundem foices
para que espada rígida apareça.
Dum lado Eufrates, a Germânia doutro
à guerra movem, cidades vizinhas
quebram tratados que irmãs as tornavam,
às armas correm. Marte, um ímpio Marte
72 VIRGÍLIO

luta cruel espalha em todo o mundo.


Exactamente como, nas corridas,
já soltas de barreiras, . vão quadrigas
em volta sobre volta, com auriga
pelos corcéis levado, sem que as rédeas,
por mais que puxe, o carro lhe detenham.
LIVRO II

Até aqui foi campo, astro celeste.


Agora, porém, Baco, vou cantar-te
em rebentos de bosque e de oliveira
tão lentos no crescer. Ó Pai Leneu,
a mim virás que tudo aqui se encheu
do que por ti foi dado ; em teu louvor
floresce a terra inteira, carregada
de folhagens de Outono e faz vindima
ficar lagar até à borda espuma.
Vem, ó Pai do Lagar, e, sem coturnos,
com as meias tiradas, nua a perna,
comigo a tinge, ó deus, de mosto novo.
Para principiar, crescem as árvores
de maneiras diversas ; livremente,
sem que os homens as forcem, vêm umas
os campos ocupando, ou pelas margens
dos rios à vontade se estendendo :
assim o manso vime ou a giesta,
salgueiro branco ou choupo com folhagem
que de verde o coroa. Outras ainda
duma semente que enterrada brota :
assim o castanheiro alto se eleva
ou o carvalho sobranceiro a ele
que Júpiter venera com as folhas,
ou então carvalheiras que os da Grécia
como oráculos tinham. Mas há outras
que logo da raiz soltam pernada,
como acontece aos olmos, às ginjeiras.
Loureiro do Parnaso por si vai
sob a sombra da mãe, embora vasta.
Eis, pois, os meios que a natureza deu
74 VIRGÍLIO

para desenvolver tudo o que existe


na mata, no pomar, no sacro bosque.
Outros há descobertos pela prática.
Houve um que à mãe cortou um rebentinho,
em rego o colocou; outro que estaca
aguçada ou em quatro pôs em terra,
em certa árvore um ramo ainda vivo
no solo se tanchou perto da mãe,
como doutras pernada sem raiz
o podador enterra no pomar
ou de oliveira que já foi cortada;
brota do seco lenho raiz nova.
E muitas vezes vemos que, sem mal,
os ramos de certa árvore outra fica,
que pereira enxertada dá maçãs
e que cerdeiras duras como pedra
ficam todas vermelhas com ameixas .
Portanto, lavradores, aprendei
como tratar esta ou aquela espécie,
como ir de fruta brava a doce fruta,
não deixeis sem cultura campo algum,
é deleitoso dar Ísmaro a Baco
e revestir Taburno de oliveiras.
E tu, Mecenas, vem em minha ajuda,
até que ele termine me acompanha
no trabalho que juntos começamos,
tu que és a honra e, merecido, o grande
factor de minha fama, vela ao vento,
naveguemos os dois em mar aberto.
Não posso abarcar tudo nos meus versos,
ainda que tivesse, o que não tenho,
cem bocas e cem línguas, voz de ferro.
Esta primeira praia costeemos
que a terra está à mão e não intento
demorar-me com grandes pormenores
nem com exórdios me vou eu deter.
Á rvores que espontâneas se levantam
numa margem de luz decerto são
alegres, vigorosas, mas sem fruta
que tal é natureza desse solo.
Se, porém, as enxertam e transplantam
e em covas surribadas se colocam
GEÓRGICAS 75

logo perdem bravia catadura


e, se delas cuidares, as verás
se prestar ao que queiras fazer delas,
o mesmo acontecendo se são estéreis
os rebentos que vêm da raiz :
se os pões em desafogo e boa linha
para que folha e rama da que é mãe
não lhe impeçam o que podem vir a ser
estimulando tudo que é avanço.
As árvores que são de sementeira
só crescem lentamente e darão sombra,
bem tarde, aos que serão os nossos netos.
Logo a seguir lhes degenera a fruta
por se acabar o suco primitivo
e, se é videira, as uvas que produz
somente pássaro as virá comer.
Todas então exigem seu trabalho,
todas têm que estar em filas próprias
e só com nosso amor são o que devem.
Oliveira é melhor se de tanchão
e deve a vinha proceder de alporque,
vir a murta de Pafo dum só tronco.
Uma rija aveleira, o grande freixo,
a árvore de sombra cujos ramos
deram coroa a Hércules, também
a carvalheira do caónio deus,
tudo vem de rebento, e de rebento
nos sai a tamareira ou o abeto
que nas lidas do mar encontraremos.
Em nogueira se enxerta medronheiro,
o plátano infecundo dá maçãs,
podem as faias produzir castanha,
branquej a o orno com a flor da pêra
e bolota de ulmeiro trinca o porco.
Nem só dum modo em árvores se enxertam
os olhos doutra. Quando em ramo as gemas
quase rompem da casca, um fino golpe
dá para entrar uma borbulha doutra
e nesse húmido líber crescerá.
Ou então se retira um ramo liso,
ramo sem nós, e nele se abre, à cunha,
um golpe fundo e nele se lhe metem
76 VIRGÍLIO

os garfos de certa árvore fecunda.


Em pouco tempo cresce e para o céu
lança ferazes ramos ; como espanta
ver-lhe folhagem nova, com os frutos
que a ela não pertencem, mas são seus.
Variedades há em cada espécie :
nem os salgueiros, lódãos ou ciprestes,
ciprestes de Ida, são duma só raça,
nem há uma só forma em oliveira,
dando uma azeitona redondil,
outras são de pequenas lançadeiras,
outras ainda são de amarga páusia.
O mesmo nos sucede com os frutos
dos vergéis Alcínoos e não são
rebentos iguais peras de Crustúmias,
peras da Síria ou as pesadas peras
a que chamam volemas. A vindima
que pendurada está em nossas vinhas
não é a mesma que a da parra em Lesbos ;
há a vinha de Tasos, alvacenta,
as em torno do lago Mareótis,
sendo estas boas para as terras fortes,
como o são outras para as delicadas.
Para vinho de passas boa a psítia;
o fino Lágio atrapalha as pernas
como à língua confunde ; há uvas-rochas,
há vides tempo rãs ; a ti, ó Rética,
nem sei como cantar-te, mas não vás,
por isto eu te dizer, armar questão
com as grandes adegas de Falemo ;
há um vinhedo ainda, é o de Armínea,
de vinhos encorpados, pelos quais
tem o Tmolo e tem o rei Fanes
o maior dos respeitos ; do que é de Argos
direi que é o de sucos abundantes,
o que nos dá um vinho de mais dura.
Nem a ti, de Rodes, passarei em claro,
tu que os deuses louvam na segunda dose,
nem a ti, Bumasto, de tão cheias uvas.
Inúmeras, porém, são as espécies,
como inúmeros são também os nomes.
Quem quisesse saber a todos eles
GEÓRGICAS 77

o mesmo tentaria que saber


quantos os grãos de areia que na Líbia,
em seu deserto, o Zéfiro revolve
ou quantas são as ondas do mar Jónio
que a costa batem quando um Euro em fúria
açoita os barcos ali navegando.
Nem toda a terra tudo pode dar.
Nasce nos rios salgueiro e, nos pauis,
se dão os amieiros, ornos estéreis
se levantam em montes pedregosos.
Cresce a murta melhor nos litorais,
colinas descobertas quer B aco,
prefere o teixo os frios de Aquilão.
Olha o mundo em que reina o lavrador,
desde o lado daqui, dos céus de Aurora
em que habitam os Á rabes aos campos
dos pintados Gelonos, em que as terras
a cada uma das árvores são pátria.
Só a Í ndia produz o seu negro ébano,
só nos solos Sabeus se dá incenso.
Será que terei eu de te lembrar
o bálsamo do tronco perfumado,
folhagem das acácias lá do Nilo ?
Das moitas da Etiópia a branca lã,
os modos por que os Seres ripam folhas
e delas tiram seus macios veios ?
Ou as matas da Í ndia, a tão longínqua,
tão perto de Oceano, onde uma frecha
não cortou nunca um ar por cima de árvore,
apesar de tão destros os seus homens ?
Produz a Média seu amargo sumo
e sabor persistente do limão,
o melhor que se pode utilizar
se madrastas cruéis negro veneno
puseram na bebida e se queremos
salvar o corpo desse atroz morrer.
Alta é a árvore, muito parecida
com o loureiro e só o forte odor
a distingue desse outro ; vento algum
a folha faz cair; bem presa a flor.
Com ela os Medos batem o mau hálito,
com ela curam asmas aos mais velhos.
78 VIRGÍLIO

Mas nem a Média que é tão rica em matas


nem, majestoso, o Ganges, nem o Hermo
turvado por seu oiro ou báctria Índia
ou Pancaia tão fértil em incenso
podem j amais ser os rivais de Itália.
Nunca touros de chamas pelas ventas
araram nossas terras semeadas
de monstruosos dentes de dragão
para surgtr, JUnta com seus guerreiros,
imensa messe de elmos e de lanças.
Saudáveis frutos sim, mais o licor de B aco,
para isso aramos nós as nossas terras
ocupadas por tantas oliveiras
e por tanto rebanho farto e nédio.
Daqui partem, rompantes, os corcéis
e daqui parte o gado todo branco
como também, Clitumno, sai o touro,
a vítima maior, que, com as outras,
e depois de as lavarem tuas águas,
tuas águas sagradas, tanta vez
aos deuses em seus templos conduziram
os triunfos de Roma. A Primavera
sempre vem por aqui ; quanto ao Verão,
é-lhe domínio o tempo além do próprio,
duas vezes por ano nasce ovelha,
duas vezes por ano temos fruta.
Não há tigres em fúria nem as crias
ferozes do leão, nenhum acónito
engana a quem, sem prevenção alguma,
ervas apanha, sem haver serpente
que, como em outros sítios, pelo solo
arraste seus anéis ou, escamosa,
sobre si mesma envolta nos espreite.
A isto juntaremos as cidades,
notáveis entre todas, os trabalhos
do que se edificou, as fortalezas
que ergueram mãos humanas sobre rochas,
os rios que correm por muralha antiga.
E que vou eu dizer dos grandes mares
que bordam nossa pátria, um por nascente,
outro do lado em que se põe o Sol
e de lagos tão vastos como o de Lários
GEÓRGICAS 79

ou como tu, B emaco, cujas vagas


como se fossem em mar bem alto rugem ?
Dos portos, das muralhas que ao Lucino
se opõem, contra as quais soam as águas ?
Quando se abrem comportas, o Tirreno,
que por elas se engolfa, vai ferver
nas regiões de Averno, aí contido
por obra juliana, aí bramindo.
Temos grandes filões de prata e cobre
e caudais de ouro levam nossos rios.
Cria esta pátria raça dura de homens
como o são Marsos ou a juventude
que do Sabelo vem, ou são os Lígures
que ao cansaço resistem ou os Volscos,
com seus chuços armados, ou os Décios,
Mários, notáveis Camilos, Cipiões
na guerra endurecidos, tu, ó César,
de todos o maior, que vencedor
lá nos extremos de Á sia, agora afastas
das fronteiras de Roma um Í ndio imbele.
Eu te saúdo, terra de Saturno,
tão grande por teus homens, em tua honra
me ponho eu a cantar esta arte antiga
que a ti te deu a glória, audaz bastante
para vir reabrir fontes antigas,
ao canto Ascreu voltar para romanos.
Expor devo eu agora os caracteres
de cada um dos terrenos, sua cor,
o seu destino certo, a sua força,
o seu melhor poder de produção.
As colinas ingratas, terras bravas
em que as argilas faltam, pedra abunda,
muita moita no solo, são lugar
da vivaz oliveira que é de Palas.
Lá cresce muito um olival inculto
com azeitona brava pelo chão.
Mas terra forte e de humidade certa
com erva basta e vegetais perfeitos
como se vê em tanta dessas baixas
para onde as águas vindas de cabeço
trazem um farto limo a todo o ponto
que sej a aberto ao Austro, e crie o feto
80 VIRGÍLIO

que os arados detestam, é lugar


apropriado a sustentar videiras
que um dia te darão Baco excelente,
e de uva quanta queiras, com o suco
que libaremos numa taça de ouro
quando um gordo Tirreno toca alegre
a frauta de marfim junto ao altar
e nós pagamos a promessa aos deuses
com fumegante entranha que bem pesa
na bandeja em que nós a ofertamos.
Se, porém, fores mais por gado grosso
ou vitela, ou ovelhas ou cabritos
daninhos às culturas, vai aos bosques,
na região longínqua de Tarento,
a campo semelhante ao que perdeu
a malfadada Mântua em cujo rio
se cria com as ervas branco cisne.
Nem as fontes ou relvas vão faltar-te
e tudo que teu gado em dias paste
reposto te será em curta noite.
A terra quase negra em que desliza
como sobre gordura a forte relha
com solo bem saltinho como arado
é a melhor que para milho encontras ;
em parte alguma verás tu mais carros
que puxam lentos bois para os celeiros
sucederá o mesmo onde o campónio
por vezes irritado leva os troncos
que no bosque abateu por terem sido
durante anos e anos sempre inúteis,
de raiz arrancando as moradias
que de aves foram, as quais voam alto
pela extensão do céu enquanto a terra,
ainda bruta, já, no entanto, brilha
com a pressão da relha dos arados.
Mas, na verdade, o campo acidentado
mal dá para as abelhas rosmaninho
ou um pobre alecrim. O tufo e greda
que parecem roídos pelas cobras,
só para abrigo de serpentes servem.
Mas a terra que exala leve bruma,
que humidade recebe e logo expulsa,
GEÓRGICAS 81

a terra sempre verde, cheia de ervas,


que não ataca o ferro com ferrugem
é que te serve para entrelaçar
uma risonha vide com ulmeiro
será também feraz para oliveira
e, se tu bem a amanhas, para gado
e muito paciente a adunca relha.
É esta a que trabalha Cápua rica,
como aquela vizinha do Vesúvio
ou a de Cláudio que não favorece
em nada mesmo a sossegada Acerras .
Te ensinarei agora como podes
saber da qualidade duma terra.
Verifica se é leve ou mais do denso,
que é a primeira boa para o trigo
e boa para Baco é a segunda,
a densa é para Ceres e de Lieu
a mais leve de todas. E, primeiro,
escolherás lugar apropriado,
mandarás abrir cova funda e firme
a que leves a terra que tiraste,
mas calcada a pés juntos. Se houver folga,
é porque a terra é leve, adequada
para pastos ou vinha nutridora.
Se, porém, sobrar terra é forte o solo
e te será difícil o quebrá-lo ;
precisas para alqueive boi valente.
Terra salgada que dizem amarga
é bem ruim para qualquer cultivo,
nem o lavrar a doma nem as cepas
conservam boa raça ou são os frutos
dos que nunca terão nome famoso.
Eis aqui como vais tu conhecê-la :
pendurarás do tecto enfumaçado
cestas de vime ou de lagar peneiras
e mete aí a terra de que falo
juntamente com água que goteja :
amargo é o sabor e logo a boca
irá torcer de quem a for provando.
Dos de outro modo saberemos nós.
Se a terra é argilosa: se esfregamos
nas mãos uma porção, não se desfaz,
82 VIRGÍLIO

se agarra como pez a nossos dedos.


Terra húmida erva cria, e muita mesmo,
e até sem pôr adubo é terra rica;
cuidado não sej a ela mais que fértil
e se não mostre na primeira espiga
tornar-se, por ser rica, perigosa.
Só pelo peso, sem que nada diga,
nos mostra a terra se é pesada ou leve ;
o que é difícil é sabermos nós
se nela está a frialdade a mais,
embora digam sim pinheiro bravo,
o malfazejo teixo ou hera negra.
Atenta em tudo, não te esqueças nunca
de cedo deixar terra recozer
e de saibrar bastante os grandes montes,
de expor ao Aquilão terra revolta
antes de vir bacelo e depois vide.
Melhor a terra que torrão desfaz,
para o que servem ventos e geadas
e forte cavador que ao solo mova.
O lavrador a quem nem nada escape
procurará dois sítios semelhantes
antes de árvores novas transplantar
para não estranharem ter trocado
a terra mãe por outra diferente.
Marque na casca a que lugar do céu
cada uma se virava de maneira
que aos Austros afronte ela no calor
ou ao pólo se veja dirigida
tal como era na terra que deixava,
pois é grande o valor que tudo dá
ao costumes que em moço se ganhou.
Terás que decidir logo de entrada
se à vinha chamas em colina ou chão ;
se fica em terras ricas, farás tu
que sej a curto o passo cepa a cepa
que nem por isso será Baco lento ;
mas, se ondula o terreno ou íngreme é,
põe as cepas mais longe umas das outras,
sem contudo deixar que as entrelinhas
se não cruzem directo em certo encontro
o mais perto que seja de quadrado.
GEÓRGICAS 83

Como na guerra quando a legião


as coortes ordena de batalha
e pelo campo aberto se dispondo
tudo, visto de Longe, ondeia em bronze,
embora ainda se não trave a luta,
mas já Marte hesitando entre as fileiras,
é preciso também que haja equilíbrio
no traçado das linhas de arvoredo,
não só para que o espírito repouse,
mas também para que possa o solo
repartir pelo que há a sua força
havendo para os ramos livre espaço.
Talvez perguntes que profundidade
devem as valas ter ; por mim, diria
que não hesitava eu em pôr a cepa
mesmo num sulco estreito e pouco fundo.
O que deve enterrar-se com vontade
é uma árvore esteio, mais que todas
o carvalho que deve ter a fronde
pelas auras etéreas e raiz
a ir direita às regiões tartáreas ;
assim nem o Inverno nem o vento
nem chuva terão força de arrancá-la.
Sempre fica segura, sempre vendo
as novas gerações se sucederem ;
forte, jogará seus ramos longe,
robustos braços dum e doutro lado
e tronco lhe sustenta vasta copa.
Não voltes as videiras ao Poente
e não ponhas nas vinhas aveleiras,
não tomes para chanta ramos altos
nem colhas os rebentos elevados
seja qual for a árvore que queiras.
Prefere os baixos, mais os ama a terra.
Não cortarás nenhum tenro sarmento
com um ferro embotado nem porás
zambujeiro nenhum por entre as cepas
porque às veze5 , descuido de pastor,
se pega o fogo que em seguida vai
ocultar-se nas cascas oleosas
e, já com força, foge para a copa
por aí corre nu m rugir de céu
84 VIRGÍLIO

numa fumaça negra como pez ;


e, se houver temporal, é bem pior
porque ao incêndio impele o revolvendo.
Não terá então vinha força alguma
para crescer de novo da raiz,
nem servirá de nada cortar ramos,
porque ela não verdeja j unto à terra
e só fica ocupado o campo todo
por zambujeiro amargo e sem bom fruto .
Que ninguém te convença a cavar terra
que Bóreas tenha endurecido a sopro,
pois toda fica presa pelo gelo
e não deixa que nela se segure
a raiz do bacelo que ali pões.
O melhor tempo de plantar a vinha
é ao chegar na rósea Primavera
a branca ave odiada pelas cobras
ou ao principiar o frio de Outono
quando ao Inverno não chegou o sol
mas já ficou atrás o que é Verão .
Só, porém, Primavera dá aos bosques
a folhagem que deve e nela só
túmida terra por semente anseia.
Então é que Éter, deus omnipotente,
com chuvas fecundantes desce ao seio
de sua alegre esposa, à qual se unindo,
dão as duas grandezas vida à Vida.
Ressoa a ramaria dos bastios
com as canoras aves, gado busca,
nos dias que são próprios sua Vénus.
O solo criador dá o seu fruto
abrindo o corpo o seio, ao vir o Zéfiro,
ao morno bafejar de sua brisa:
A branda seiva sobe em todo o caule,
ousam as ervas confiar-se ao sol
e já não temem levantarem-se Austros
ou vir do céu a chuva de Aquilão.
Gomos despontam, folhas se desdobram.
Não vou eu crer que fosse diferente
o princípio do mundo ao seu nascer
nem que outro fosse o curso que tomou.
Havia Primavera, em Primavera
GEÓRGICAS 85

pairava o mundo inteiro, os próprios Euros


o seu soprar de Inverno refreavam
quando em luz se banharam seres vivos
e a dura raça humana a fronte ergueu
no pedregoso chão em que surgiu,
quando as feras os matos povoaram,
quando os astros giraram pelos céus .
Não poderiam seres delicados
aguentar a vida que teriam
se não tivesse havido aquele tempo
de inteira paz entre calor e frio,
se o céu não desse seu carinho à terra.
Mas vamos adiante. Se nas valas
fores tu colocar o teu bacelo,
não te esqueças de estrume bem curtido
e de pores por cima terra à farta
e noutras valas cobrirás o fundo
de pedras e de conchas para que água
delas possa correr e para que ar
dê seu alento às plantas que nascerem.
Há quem ponha por cima do bacelo
ou pedra grande ou telha que o protej am
da chuva ou do calor que traz o Cão
e que no seco chão abrirá gretas.
Tens tu depois que remexer a terra
em volta dos bacelas, com enxada
repetir tuas cavas ou charrua
em cima lhe passar, com os novilhos
por entre as cepas lentos avançando.
Prepararás ainda canas lisas,
estacas descascadas, freixo às varas
e forquilhas bem fortes que à videira
ensinem a trepar, opor-se aos ventos
e se enroscar em torno dos ulmeiras.
Dá-lhe carinho enquanto for crescendo ;
quando soltar a parra pelos ares
não a podes ainda, à mão a limpa.
Quando as raízes forem vigorosas
e sarmentos aos olmos enlaçarem,
apara-lhe cabelo, corta braços
que antes o ferro lhe faria mal :
agora não, duro o serás no mando,
86 VIRGÍLIO

no repnm1r os ramos excessivos.


. . .

Terás também que entretecer as sebes


que não deixem o gado penetrar
enquanto a parra é tenra e delicada;
não é apenas temporal ou sol
que dano fazem, mas também os touros
mais as cabras teimosas, as bezerras,
as ovelhas que forem para o pasto.
Nem frios agravados por geadas
nem ardor de Verão que escalda a rocha
fazem pior à vinha que o veneno
que dá dente de gado ou cicatriz
q ue a mordedura deixa assinalada.
E só para essa culpa se expiar
que tanto bode altar oferta a Baco
e que há tanto espectáculo em teatro
ou Teseidas em suas digressões
prémio darão a quem sobre relvado
entre copos soltar odre azeitado.
Do mesmo modo Ausónios, camponeses
que de Tróia vieram, se divertem
com poema grosseiro e riso louco
ou as medonhas máscaras de casca,
a ti, Baco, invocando em canto alegre
e de pinheiro pendurando imagens.
Toda a vinha se cobre então de cachos,
enchendo os vales e cavados bosques
e todos os lugares em que esteja
o venerando rosto desse deus.
Cumprindo, pois, o rito, cantaremos,
conforme nossos pais, louvor a Baco,
tabuleiros e bolos levaremos,
mais o bode puxado por um chifre
à morte que o aguarda nos altares,
enquanto em aveleira assamos carne.
Outro trabalho mais requer a vinha,
trabalho e mais trabalho é o que quer:
ano após ano três ou quatro vezes
teremos nós de lhe arrendar a terra,
de desfazer torrões com nossa péla
e de lhe retirar a folha a mais.
Tarefa feita tem de ser refeita,
GEÓRGICAS 87

voltando sempre atrás o lavrador.


Mal um dia lhe cai parra de Outono,
com Aquilão a despojar as matas,
já tem que se ocupar o vinhateiro
com o ano que vem daí a pouco
e com o curvo dente de Saturno
se porá a podar a mesma vinha.
Para tudo te ir bem sê o primeiro
a preparar a vinha que restou,
a recolher, queimar todo o retraço,
a levar e guardar os paus de falca,
mas também derradeiro na vindima.
Duas vezes por ano é tudo folha,
duas vezes por ano mata de ervas ;
para cortar os males duras lides.
Por isso louva tu grandes domínios,
mas, se é pequeno o teu, muito melhor.
Tarefa necessária é ir à mata
cortar a gilbardeira mais a junça
para fazer atilho . Até salgueiro,
embora sem cultura, dá trabalho.
Já vinha está segura, j á podão
puseram em descanso as próprias vides,
já canta o vinhateiro, ao fim das filas,
o ter realizado o seu trabalho,
mas lá tem ele que voltar à terra,
que a atormentar a desfazer torrão,
e que temer que Jove uvas destrua.
Oliveira, ao contrário, nada exige,
para nada precisa de podoa
e para que quer ela rastro perto ?
Como ao chão se aferrou é bem capaz
de resistir a todo o sopro de auras.
Terra aberta por dentes de enxadão
dá seiva que é bastante para as árvores,
e relha de charrua lhes traz frutos.
Os amanhos do solo são bastantes
para oliveira farta e grata à Paz.
As fruteiras também, quando se sentem
de firme tronco e de vigor inteiro,
por si mesmas para os astros sobem
e não precisam de trabalho algum.
88 VIRGÍLIO

Carrega-se também de fruto a mata,


de baga cor de sangue o que é inculto
e serve apenas para abrigo de aves ;
aos rebanhos dá pasto todo o cítiso,
pinheiro a nós archote com que espante
a treva de que a noite nos rodeia.
Como vamos nós, homens, hesitar
em criar arvoredo, em o servir ?
Passarei às maiores ? Os salgueiros,
as humildes giestas ao rebanho
dão a precisa folha, ao pastor sombra,
bastantes sebes, até pasto ao mel.
E como é bom ver o Citoro em ondas,
ondas de buxo, os bosques da Narícia
que dão seu pez, ah como é bom ver campos
que nunca suportaram peso a rastro
nem humanos cuidados dominaram.
Até selva infrutífera no Cáucaso
quantos úteis produtos nos fornece,
ela mesma que os Euros violentos
continuamente quebram e devastam :
para navio pinheiro e para as casas
os cedros e ciprestes. Deles fazem
polidos raios de roda ou rodas cheias
de carro e de carroça, o que se queira,
até pesados cascos para barco.
Salgueiro a vara dá folha negrilho
a murta, a cerejeira, útil à guerra,
as hastes para lança, enquanto o teixo
se dobra muito bem em arco ltúrio.
As lisas tílias, buxo para o torno
tomam, à goiva, a forma desej ada
e nas águas do Pó álamo leve
bóia perfeito em rápida corrente.
Escondem as abelhas seus enxames
nas cascas ocas e põem colmeias
por dentro de azinheiras carcomidas .
Que favor comparável aos das árvores
nos trouxeram a nós os dons de Baco ?
Causas de culpa nos deu B aco muitas :
foi ele quem domou por meio da morte
furiosos Centauros, Reto, Folo,
GEÓRGICAS 89

Hileu, aquele que com a cratera


ameaçou Lápitas. Lavradores
se considerariam bem de sorte
se tivessem inteira consciência
das dádivas enormes que recebem.
É a eles que, longe das discórdias,
longe das armas, dá a natureza
generoso sustento que os mantém.
Se não têm palácios grandiosos
por cuj as portas jorram dependentes
a, logo de manhã, cumprimentar ;
se os não toma um encanto de painéis
todos em embutida tartaruga,
ou ricos panos com enfeites de ouro ;
ou bronzes efireus ; ou então lãs
com a droga da Assíria disfarçada ;
ou um azeite sem nenhuma cássia.
É deles uma vida tranquila,
e vida sem enganos, rica em bens.
Com o repouso de horizontes largos,
de acolhedoras grutas, vivos lagos,
de frescos vales e de ouvir mugidos,
e de dormir bom sono à sombra de árvore.
Têm para eles bosque sossegado
e lugar de retiro de animais,
e sóbria mocidade de trabalho
cultua deuses e venera os pais .
E sentem, ao deixarem este mundo,
que nele ainda restam os sinais
dos derradeiros passos da Justiça.
Quanto a mim, oxalá queiram as Musas,
que me dão a maior das alegrias
e de quem sou como que sacerdote,
oxalá queiram elas me mostrar,
a mim que tanto as amo, como são
os caminhos do céu e de seus astros,
os eclipses do Sol, Lua em fases
ou o tremor das terras, ou a força
que o mar profundo faz entumescer,
quebrar os diques, sobre si cair,
ou cedo banhar sol se é de Inverno,
e que barreira nos demova a noite,
90 VIRGÍLIO

nos tempos em que é lenta no chegar.


Mas se o sangue que me enche o coração
é frio de mais para que eu o saiba,
sej am meus mestres, tanto os adoro eu,
os campos mais os rios que vales regam
e tenha quem a glória não alcança
todo amor das florestas e das águas .
Onde é que vós estais, campos esperquios,
onde é que vós estais, montes taígetos,
esses montes que as virgens da Lacónia
percorrem com as danças que honram Baco ?
Quem me levara para os vales de Hemo,
quem dera a sombra de seus arvoredos !
Bem feliz é aquele a quem foi dado
conhecer a razão das coisas todas
e ser indiferente ao que é Destino
ou ao rumor que chega de Aqueronte.
Feliz também aquele que íntimo é
de agrestes deuses, Pã, velho Silvano,
ou das irmãs gentis que são as Ninfas.
Não o tentam a ele as honras cívicas,
nem púrpura de reis, nem as discórdias
que levam a trair o próprio irmão,
nem o ninho de intrigas que é o Daco,
o Dácio de lstro, nem até de Roma
as famosas grandezas ou orgulho
por ela ter vencido tantos povos.
Jamais inveja o rico ou o desgosta
sofrimento de pobre, colhe o fruto
que espontâneos os ramos lhe oferecem,
sem mesmo o perturbarem duras leis,
as loucuras do Foro ou os enredos
com os quais se embaraça a vida pública.
Há quem meta seu remo a mar que é cego,
há quem se precipite sobre as armas
e quem penetre nas mansões rea1s ;
há uns que atacam sua própria pátria
ou que derrubam infelizes lares
para beber em taças que são jóias,
para dormir em púrpura deitados ;
há outros que sonegam as riquezas
e caminham sobre ouro que esconderam.
GEÓRGICAS 91

Tem quem pasme diante de tribunas,


quem sej a arrebatado por aplauso
que vem de senadores ou da plebe.
Irmãos a seus irmãos derramam sangue
e trocam por exílio casa e lar
outra pátria buscando em novo sol.
Lavrador, entretanto, move a terra
com o seu curvo arado e passa o ano
em todo o seu trabalho que sustenta
uma pequena pátria, filhos, netos,
suas juntas de bois e seus novilhos,
não tem descanso se a colheita é farta
ou se houve muitas crias no rebanho
ou se lhe enche o celeiro a deusa Ceres .
E quando Inverno chega, vai lagar
começar a moer baga sicónia,
voltam os porcos cheios de bolota,
dão-lhe as matas medronho. Se é Outono
tem frutos variados e vindima
amadurece em pedregosos altos,
enquanto os filhos, todos com abraços,
os carinhosos beijos lhe vão dando.
Na casta casa guarda-se o pudor,
vacas de leite têm teta cheia
e sobre a relva gordos cabritinhos
com marrada certeira entre si lutam.
Mas, nos dias de festa, sobre as ervas,
e junto do lugar de sacrifício,
enquanto os companheiros engrinaldam
a cratera solene, honra a Leneu,
faz suas libações, pendura um alvo
para que joguem dardo àquele ulmeiro
os mais que tomam conta dos rebanhos
de gado bem miúdo ; ou organiza
desafios de luta em que eles mostram
a nudez vigorosa de seus corpos.
Foi esta a vida de Sabino antigo,
de Remo e seu irmão ; assim cresceu
Etrúria como assim Roma se fez
até ser a mais bela das cidades,
com as sete colinas em muralha.
Na terra de Saturno esta era a vida,
92 VIRGÍLIO

na terra de áureo Saturno, antes de rei


nos ter sido o dicteu, antes também
duma ímpia raça humana sustentar-se
de carne de novilho degolado
e não se ter ainda ouvido o som
duma tuba de guerra ou das espadas
numa rija bigorna retinirem.
Mas quanto espaço percorremos nós ;
é tempo agora de soltar de arreio
estes nossos corcéis bem fumegantes.
LIVRO III

Também te cantaremos, grande Pales,


e até, pastor famoso, lã de Anfriso,
como vós, lagos, rios do Liceu,
bons seríeis também para eu cantar.
Muitos outros assuntos de interesse
para alguém com seu tempo de lazer
que podia tomá-los, mas, de facto,
já todos os conhecem. Quem não sabe
desse Euristeu, o duro, ou dos altares
de Busíris que é nada de louvar ?
A quem se não celebra Hilas o Moço,
e Delos a Latona, consagrada
ou Hipódamo ou Pélops então,
o de ombros de marfim com seus corcéis ?
Mas tenho que tentar outro caminho
que me erga da poeira, que em vitória
me faça voejar de boca em boca.
Serei eu a trazer à minha pátria
dos cimos do Aónio, e o primeiro,
as Musas do triunfo, assim levando
à grande Mântua as palmas idumeias.
E junto às águas hei-de edificar
um templo meu de mármore em ribeira
por que o Nilo decorra largo e lento
às margens decorando com os juncos.
Ali dentro colocarei eu César
e dentro ficará para morar.
Eu próprio, em sua honra, triunfante,
revestido da púrpura de Tiro,
farei correr cem carros de quadriga.
Toda a Grécia, largando seu Alfeu
94 VIRGÍLIO

e os bosques de Molorco, ali virá,


porque eu chamei, organizar corridas
e combater com seu cesto de couro.
E sou eu mesmo quem por lá irá,
com a fronte cingida de grinalda,
a grinalda de folha de oliveira,
entregar o seu prémio aos vencedores.
Já me vejo eu a conduzir, solene,
as procissões sagradas, assistindo
ao sacrifício feito de novilhos
a ver também o transformar da cena
quando bretões, em púrpura bordados,
a todos nos parecem descerrá-la.
Nos portões farei eu mostrar em oiro,
oiro e marfim, derrotas lá do Ganges
ou grande Nilo enfurecendo em guerra.
Juntarei as cidades asiáticas
que nós vencemos, juntarei Nifates,
que repelido foi, e mais os Partos
que se fiam nas fugas e nas frechas
que disparam voltados para trás,
os dois troféus também que arrebatámos
a inimigos longe, em duas frentes.
Em lápides de Paras ficam vivos
os que vêm de Assáracos, triunfos
da gente que de Júpiter descende,
com Trás, pai desta raça, o deus do Cinto,
que foi o certo fundador de Tróia.
Miserável ciúme terá medo
das Fúrias e do rio do Cocito,
das serpentes que em Ixíon se enrolam,
da monstruosa roda e bruta pedra.
Vamos, porém, seguir no bosque as D ríades,
no bosque e nas gargantas, um assunto
em que ninguém tocou, forte Mecenas,
e que a mim me ordenaste, pois sem ti,
coisa alguma imagina minha mente.
Portanto, vem comigo e nada possa
diminuir o teu empenhamento.
O Citéron te chama em grandes gritos,
como os cães do Taígeto, Epidauro
domando seus cavalos, com a voz
GEÓRGICAS 95

que o ressoar do bosque tanto aumenta.


Já não vem longe o tempo em que Irei eu
cantar a César e levar-lhe o nome
a futuro tão largo quanto tempo
já dista de Titono, sua origem.
Todo o que cobiçar a palma olímpica
por uma entrega à cria de cavalos
e como todo aquele que à lavoura
quer ofertar novilhos mais robustos,
ambos terão cuidado especial
em escolher-lhes mãe. A melhor vaca
tem olho carrancudo, rosto bruto,
pescoço muito forte, uma barbela
que quase chega às patas dianteiras,
costado bem comprido, patas largas,
que tudo nela deve ser do grande.
Não faz mal que tenha malhas brancas,
que mostre desagrado pela canga,
que por vezes invista com impulso
que mais pertenceria a um bom touro ;
ao andar, com a cauda varrerá
as patadas que deixe. Irá nos quatro
quando está pronta para a cobrição
e restantes tarefas de Lucina,
mas de tudo o limite é os dez anos ;
fora disto não pode ela ter filhos
nem força lhe haverá para a charrua.
Quando a manada está moça e fecunda
é que é soltar os machos sem demoras
para vir geração que a todas renda.
A quem nasça mortal, o melhor tempo
é o que mais depressa foge a todos.
Depois vem a velhice, o sofrimento,
a morte que é sem compaixão alguma.

Sempre terás tu vacas para as quais


desejarias corpo diferente ;
não percas tempo, passa-as adiante
para que te não chegue aquela altura
em que verás não serem boas mães,
quando o que é mais preciso é nova ena.
A mesma escolha em gado cavalar :
cuidado atento com aquelas crias
96 VIRGÍLIO

que destinas um dia a ser semente.


Vê como o poldro que é de boa raça
pisa de leve o chão, com que arrogância
suas patas da frente alto levanta.
É o primeiro que se põe em marcha,
o que afronta primeiro os rios bravos
e primeiro confia em ponte ignota,
não tendo medo de ruídos vãos.
Tem cerviz alta, perfeita a cabeça,
o ventre recolhido, dorso inteiro,
o peito ardente, modelados músculos.
Se castanho e cinzento, bom cavalo,
pior se é alvacento e para o mel.
Se nasce o potro dos de melhor casta
dá para ouvir ao longe tinir arma,
não é capaz de se manter quieto,
fica de orelha fita, tremem pernas
e como das narinas lhe sai fogo.
A crina espessa quando sacudida,
lhe cai para a direita e, sobre a espinha
se lhe vê desenhado um longo sulco
que duplo vai quando lhe chega aos nns ;
a pata marca a terra, o casco soa.
Assim era Cílaro cavalgado
por Pólux amicleia, assim os dois
que a Marte pertenciam e cantaram
os poetas da Grécia ou os corcéis
que Aquiles atrelava no seu carro .
Com este aspecto se mostrou Saturno
quando avistou a esposa que esperava,
deu um rápido salto, com a crina
se espalhando em pescoço de cavalo,
e relinchou agudo no alto Pélion.
Mas cavalo como este, se abatido
pela doença ou pelo frio de anos,
o vires inferior, põe-no de lado,
fraquezas da velhice não esqueças .
Se, j á de muita idade, ainda o tentam
os trabalhos de Vénus, sai frustrado
se ao combate se lança não tem forças.
Como fogo de palha, é violento,
e como ele se extingue num instante ;
GEÓRGICAS 97

a loucura, com ele, a nada leva.


Anotarás então a sua idade,
o que era como brio, os pais que teve,
os desgostos de quem é derrotado,
os orgulhos de quem é vencedor.
Não vês como, saídos das cocheiras,
arrebatam os carros o terreno
e no veloz correr, na brava luta,
vai exaltado o espírito dos jovens ?
Palpitam na esperança da vitória
e se abatem no medo de falhar.
A chicote se incitam os cavalos
e lhes soltam as rédeas, ardem eixos,
ora sobem ou baixam como ao vento,
ao assalto dos ares pelo espaço,
sem demora nenhuma e sem repouso.
A poeira amarela se levanta,
os da frente molhados por espuma
pelo resfolegar dos que atrás seguem,
e pelo amor da glória como vão,
o que fazem por gosto da vitória.
Erictónio foi deles o primeiro
que ousou o dirigir quatro corcéis
e manter-se de pé, já vencedor.
Lápitas Peletrónios, foram eles
que primeiro montaram, deram freio,
fizeram voltear ou ensinaram
cavalo a suportar o cavaleiro
das armas revestido e galopando.
Custoso é conseguir o bom cavalo
para um ou outro fim , os criadores
antes de tudo querem juventude,
ardente coração, velocidade.
Mesmo que outro cavalo já cem vezes
tenha corrido um inimigo em fuga
ou cite como pátria o próprio Epiro
ou ardente Micenas ou até
Neptuno aponte pai de sua raça.
Uma vez isto dito se prepara
o criador para o momento em vista,
dando-lhe, com cuidado, um forte corpo
se o quer para chefe do tropel
98 VIRGÍLIO

ou para de seu gado bom marido ;


para ele segará erva viçosa,
lhe dará a beber água bem limpa,
bastante grão terá para comer,
não vá sentir-se fraco na missão
de delícias que tem na sua frente
e não saiam os filhos uns fraquinhos
por ter o pai sofrido fome e sede.
Quanto às éguas, o que é melhor fazer
é de inteiro propósito negar-lhes
a comida e bebida quando o cio
começa a dar sinais de cobrição.
Muitas vezes as cansam em corridas,
as fatigam mantendo-as ao sol,
quando já pelas eiras se ouvem malhas
e palhas pelos Zéfiros adejam,
de modo que a gordura lhes não traia
boa entrada no campo genital
não sufoque nos sulcos a semente,
mas Vénus a recolha e dentro a meta.
Quando acabam cuidados com os pais
começam os que às mães devem ser dados.
Não deixem que, gestantes, puxem cargas
enquanto pelos campos erram livres,
que não salte nenhuma um só caminho
nem correndo se escape pelos prados,
nem se atirem nadando a rápida água.
É pô-las a pastar em bosque aberto,
com ribeiro chegado junto às margens,
lugar em que haja musgo e verde relva
onde gruta as abrigue ou um rochedo.
E j unto às matas de Sílaro alburno,
em que azinheira cresce há um insecto
que nós asilo, os Gregos estro chamam,
de dura ferroada e zumbir bravo,
que manadas inteiras logo espanta ;
os ares todos bramam, como os bosques
ou margens do Tânagro pelo Estio.
Foi com ele que Juno atormentou
de Ínaco a filha, já bezerra feita,
tão grande a raiva que lhe tinha a deusa.
Com mais calor, mais assanhado o bicho ;
GEÓRGICAS 99

para dele livrar as vacas prenhes


é bom que tenham pasto bem cedinho
ou então quando a noite se aproxima.
Depois do parto cuidam-se os vitelas :
em todos marcarás o dono a fogo,
depois os que serão reprodutores,
os que estão destinados aos altares,
a seguir os que vão lavrar as terras,
os campos revolver, quebrar torrão.
Os outros para o pasto verdejante.
Os que queiras formar para a lavoura
de pequenos os toma, os acostuma
enquanto jovens são, por isso dóceis,
por isso fáceis de tomarem regra.
Deves pôr-lhes à roda do pescoço
arcos largos de vime trabalhável
e, quando já afeitos a servir,
ligá-los dois a dois para que saibam
marchar em companhia no futuro.
Carros vazios lhes farás puxar
de modo que não deixem na poeira
senão um sulco leve à superfície.
Mais tarde lhes porás eixo de faia
que algum ruído faça, duas rodas,
com um timão de bronze chapeado.
Enquanto aprendem dá-lhes fresco pasto
de folha de salgueiro e de carriço
e trigo novo que semeies tu.
Não deixes que as mães vacas guardem leite
em potes bem branquinhos, o preciso
é que ele todo o bebam suas crias.
Mas se de preferência tu te voltas
para esquadrões intrépidos na guerra
ou se queres, seguindo o rio de Pisa,
ir como que voando no teu carro,
galopar pelo bosque que é de Jove,
o que tem que fazer o teu cavalo
é conhecer primeiro as bravas armas
com a intrepidez dos cavaleiros,
não se assustar jamais com as trombetas
nem com gemido agudo de seu carro
ou o tinir dos freios na cacheira,
1 00 VIRGÍLIO

e ter cada vez mais gosto e desejo


do dono e das palmadas no pescoço ;
a tudo se tem ele de enrijar
tão logo que de tetas se desprenda
e que, mesmo hesitante, mesmo fraco,
se acostume à pressão do cabrestilho.
Mas, ao quarto Verão duns outros três,
comece nos volteios, passo acerte,
alternas curve as pernas nas corridas.
Aposte no voar mais do que o vento
e, como se sem rédea, mal as patas
deixem que marca for pelo terreno.
Ao Aquilão imite na carreira
quando, após adensar-se pelo Norte,
disperse temporais e nuvens secas.
Às searas bafej a, faz tremer
tudo o que as águas são em mar ou no,
pelos cimeiros bosques assobia,
impele para as costas vagas altas.
Aí voa Aquilão, ao mesmo tempo
varre campo lavrado e mar aberto,
se cobre de suor nosso corcel
para chegar às metas duma Eleia ;
por galopar nas pistas, logo a boca
uma espuma sangrenta lhe desborda,
ou dócil o pescoço lhe aguenta
o carro que na Bélgica suspendem.
Logo que está domado j á pode ele
ganhar mais corpo com um bom ferrejo,
pois se antes o tivesse o dono feito
altivo ficaria, já ninguém
para o trabalho dele disporia,
contra o chicote estava ou freio de puas.
Quer se trate de bois ou de cavalos
nada será melhor para o vigor
do que manter-se longe a deusa Vénus
e toda a tentação de cego amor.
Ponham..:se os bois em pastos isolados,
com barreira de monte ou curso de água,
a não ser que se fechem nos estábulos
com manj edoura farta pela frente.
Arrasa-os fêmea e rouba-lhes vigor,
GEÓRGICAS 101

não deixa que lhes lembrem bosque e pasto


e até leva a que lutem corno a corno.
Pasta a bela novilha sossegada
pelo bosque do Sila, chegam eles,
se atacam e se batem furiosos,
se crivam de feridas, sangue os cobre
marradas violentas os opõem,
os mugidos ressoam pela mata,
ao Olimpo, tão longe, vai seu eco.
Depois não voltam j untos ao abrigo,
o vencido se afasta, se desterra,
e de vergonha muge ao longe oculto,
chorando seu amor não satisfeito,
seu estábulo lembra, que saudade
da terra que perdeu de seus avós.
Um só cuidado, exercitar as forças ;
de noite é em rochedos que se deita
e de dia o que come é só carriço,
carriço cheio de espinho, ou então tojo.
De cólera enche os chifres, tronco ataca,
com nuvens de poeira se inebria.
Quando o outro já dele se não lembra,
ao inimigo busca, logo investe,
como vaga se porta que, de longe,
pela força do mar à costa rola
toda branca de espuma, ali se quebra
e medonha retumba nos rochedos,
desaba como um monte em remoinhos,
e lança a toda a parte areia negra.
Assim na Terra toda a raça de homens,
ou de animais ferozes ou daqueles
que nas águas habitam ou de gado
ou de ave multicor se joga inteira
nessa ardente loucura que é amor
e que a todos domina por igual.
É no tempo do cio que leoa
filhos esquece, pelo bosque vaga ;
e que urso monstruoso pelos campos
mais dura morte espalha em sua fúria,
como é nele também que javali
sente raiva maior ; pior é tigre.
Ai de quem por então se meta à Líbia,
1 02 VIRGÍLIO

seu deserto atravesse sem defesa.


Não vês tu como o corpo do cavalo
fica tremendo todo quando o vento
lhe traz um cheiro de que bem se lembra ?
Já nem o freio que inventaram homens
nem ríspido chicote ou um penhasco
ou as ravinas ou os rios que rolam
pedaços de montanha em suas águas
têm força capaz de o dominar.
Até porco sabélico se atira,
as defesas afia, escarva a terra,
o lombo enrija para resistir,
como tudo arriscou aquele moço
que a nado se atreveu aos temporais,
a tais desoras, com trovões no céu,
com as vagas se opondo a que avançasse
quando se desfaziam contra rocha.
Não há nos pobres pais poder algum
que possa retirá-lo do perigo
e como vai a própria namorada
livrar-se de uma certa e triste morte ?
E dos linces de Baco, da tremenda
raça dos lobos ou até dos cães
ou dos tímidos cervos que se batem,
que vamos nós dizer? Não são as éguas
as de menos furor, de Vénus vindo,
quando as de Pótnias deram morte a Glauco.
Amor as faz transpor Gárgaro, Ascânio,
passar a nado estrepitosos rios,
galgar montanhas com aquela chama
que se acende nas ávidas medulas
logo na Primavera quando os ossos
se deixam penetrar pelo calor;
sobem aos altos cumes e se viram
para o lado de que Zéfiro sopra
suas ligeiras brisas que as fecundam ;
descem então correndo pelas fragas
e pelos fundos vales se dispersam
não para o ponto em que tu nasces, Euro,
mas para Bóreas, Cauro ou Austro negro
com o seu céu de frios e de chuvas.
É nesse então que do útero lhes brota
GEÓRGICAS 1 03

o viscoso veneno a que pastor


o nome deu de hipómanes, a que bruxas
misturam em feitiço ervas e ditos.
Mas foge o tempo, sim, nos foge o tempo
enquanto com palavras rodeamos
o que contar se pode dos encantos
da poderosa força que é amor.
Já bastante dissemos deste assunto
mas nos falta tratar dos que dão lã
e das peludas cabras. Lavrador,
aqui tens de mostrar valor, trabalho
que orgulho grande te trará a ti.
Sei como não é fácil falar disto,
tratar do que é vulgar e revesti-lo
de nobre poesia, mas quero eu
que obedeço ao Parnaso, me entregar
àquela sua escarpa solitária,
já que paixão de amor ao árduo adoça.
Como gosto eu de percorrer-lhe os cumes
donde j amais desceu antes de mim
qualquer roda que fosse da montanha,
pelas brandas colinas, a Castália.
Mais do que nunca, veneranda Pales,
tem meu canto de alçar-se ao que é mais alto.
Para ovelha prescrevo que erva coma
em abrigado aprisco até que volte
o tempo de verdura bem à farta
e junquem terra dura palha e folha,
assim se protegendo o vosso gado
do que venha de frio e de geada.
Merecem cabras não menor cuidado
já que nos podem dar bastante ganho,
embora seja o lucro bem maior
com velos de Mileto em tíria púrpura.
São, porém, muitas mais as suas crias
como também mais farto é o seu leite ;
quanto mais tarro espuma e teta dá
tanto maior será ainda ordenha,
e nada impede tosquiar as barbas
que branquejam nos queixos dos Cínifes
ou os compridos pêlos que se empregam
ou nos acampamentos ou nas roupas
1 04 VIRGÍLIO

que se vendem aos pobres marinheiros .


Pastam cabras nos cimos d o Liceu
sarça de espinho ou erva da mais brava,
sem pastor trazem filhos ao curral
com tanto leite que lhes custa andar.
Poupem-se elas aos ventos ou aos frios,
pois quase não requerem mais cuidados,
mas sê-lhes generoso com o penso,
boa folhagem, feno do palheiro.
Quando chega o Verão e sopra Zéfiro,
que vão cabras, ovelhas para os campos
enquanto a relva alvej a com orvalho
dando melhor sabor às tenras ervas.
Mas à quarta hora, quando a sede aperta
e tudo ecoa a queixa das cigarras
bebam elas de novo em charco ou poço
ou das águas na calha de madeira.
Pelo meio-dia tenham vale e sombra
com um carvalho de pernada vasta
ou montado de azinha em sacro abrigo .
Mais tarde água, não muita, ao teu rebanho
e que paste de novo até poente,
quando a frescura já tempera a calma
e Lua com orvalho alenta o bosque,
o canto de alcião repousa a praia
e se escuta nas bouças pintassilgo.
Dirá meu verso dos pastores líbios
e das charnecas, das cabaias deles ?
Ah quantas vezes andam seus rebanhos
dias e noites, por um mês seguido,
vagueando em deserto, sem abrigo,
pela enorme extensão daquelas terras !
O pastor africano tudo leva,
cabana, Lares, armas, cão, aljava,
como se fora em legião de Roma
e rápido marchasse, armasse campo,
em combate formasse sem que os outros
nem sequer o tivessem pressentido.
Diferente sucede nos lugares
em que vivem os Citas, há Meótis,
ou as fulvas areias revolve Hister,
ou Ródope atrás volta lá do pólo.
GEÓRGICAS 105

Aí ficam rebanhos nos estábulos,


não se divisam ervas nem folhagens,
a terra desfiguram neve e gelo
sobre ela se empilhando uns sete côvados .
E sempre Inverno, sempre o s Cauros sopram
todo o seu frio e nunca rompe o Sol
a dissipar a palidez da névoa
nem quando seus cavalos o conduzem
às alturas do céu nem quando o carro
se joga para o mar das rubras ondas.
Na corrente dos rios blocos surgem,
dentro em pouco se juntam e sobre eles
voa roda ferrada como em chão,
onde se acolheu barco rolam carros.
O bronze fende, sobre o corpo a roupa
inteiriçada fica, o vinho enrija,
a machado se quebra, o lago é gelo,
gota de água na barba é logo pedra.
Não cessa nunca de cair a neve,
perecem os rebanhos, bois enormes
mantêm-se de pé em gelo envoltos,
veado em bando j az entorpecido
e do cimo da neve rompe chifre.
Não os acossa caçador com cão,
nem os impele a enrolar-se em rede
nem os aterram já penas vermelhas ;
bramam eles de medo enquanto tentam
empurrar toda a neve que os entaipa ;
como não o conseguem vem o homem,
a punhal os abate e, jubiloso,
se afasta num delírio de vitória.
Tudo gente ociosa e sem cuidados
debaixo do chão vive numas furnas
que eles próprios escavam, com lareiras
onde fazem arder com todo o gosto
troncos inteiros de olmos e carvalhos.
A longa noite passam divertidos
aos vinhos imitando que não têm
com sumos de cevada fermentada
e das ácidas bagas de sorveira.
Assim passam se tempo os hiperbóreos
sujeitos às estrelas da grande Ursa
1 06 VIRGÍLIO

sem freio que os retenha, fustigados


pelo Euro que, soprando do Rifeu,
os leva a que se cubram como abrigo
de fulvas peles de animais da terra.
Se é a tua vontade o teres lã
afasta o teu rebanho do que é espinho,
como abrolho e bardana, e de pastagens
que sejam muito ricas, e prefere
ovelha cujo velo sej a branco,
branco e macio . Mas, se carneiro for,
põe-no de lado, mesmo o de lã branca,
quando a língua tiver com mancha escura,
porque podem borregos te nascer
pontuados de negro nos seus velos ;
como disse, rejeita-o, volta ao gado,
escolhe outro animal, sem defeito.
Foi, parece, tentado por lã nívea,
que Pã, o deus da Arcádia, te iludiu
já para o bosque, ó Lua, te chamando,
e tu não resististe, Lua, foste.
Quem, porém, tem mais gosto em haver leite
deve, por suas mãos, às manjedouras
levar muito cítiso, meliloto
e salgar erva para que as ovelhas
bebam com mais afã, dilatem teta
e se encontre no leite gosto a sal.
Muito não deixa filho ao pé da mãe
quando o desmama ou põe-lhe focinheira
com pontinhas de ferro. Se ordenhares
pela manhã ou pelo dia todo
farás queijo de noite, mas, se à tarde,
o levará pastor pela manhã
em cestinhos de vime para a venda
ou polvilha com sal e, sendo Inverno,
satisfaz seus fregueses na cidade.
Não deixes para o fim cuidar dos cães :
darás bom soro aos corredores de Esparta
como o farás ao mais rijo Molosso.
Com estes guardas não temerás tu
ladrão nocturno ou incursão de lobo
ou te assalte por trás bravio Ibero.
Com teus cães correrás tímidos zebros,
GEÓRGICAS 1 07

lebres e gamos ou que caça houver.


Muita vez os latidos da matilha
fazem que javali fuja do charco
ou que grande veado corra ao monte
e se venha prender em tuas redes .
Nos estábulos deves queimar cedro
ou cobras com o gálbano enxotar.
Acontece também que manjedouras
te podem ocultar se as arrumares,
a perigosa víbora que foge,
se acaso lhe tocaste, ao ver a luz,
ou qualquer outra cobra infensa a boi
e sempre com veneno para gado
que se anicha no chão em sítio escuro.
Se assim te suceder, com pau ou pedra
lhe dá forte pancada logo que ela
incha o pescoço, põe-se a sibilar.
Prontamente se esconde, desenrosca
os anéis que formou e só por fim
bem devagar se arrasta quase morta.
Há também nas charnecas calabresas
uma danada cobra que ergue o peito,
rola dorso escamoso e longo ventre
quando algum rio transborda, a Primavera
húmida encharca terra ou deixam astros
que do céu se derrame toda a chuva;
aparece nos tanques pelos bordos
e se farta de peixes e de rãs.
Mas quando enxuga o charco e terras abrem
com o calor que o sol lhes dardeja
vai ela para os sítios que estão secos
com a sede se assanha e neste ardor
avança pelos campos de olhos rubros.
Que me guardem os deuses de ao ar livre
cair em doce sono ou me deitar
à sombra sobre relva de colina
quando ela se levanta com a pele
renovada e brilhante e desenrola
os anéis em que esteve de repouso
ou deixa então no ninho filhos, ovos,
e se ergue muito altiva à luz do Sol
da goela alongando em ameaça
1 08 VIRGÍLIO

uma inimiga língua trifurcada.


Vou ainda ensinar-te das doenças
as causas, os sintomas. Vem a sarna
atacar as ovelhas com nojeira
quando uma fria chuva, Inverno bravo,
uma branca geada entram nos corpos,
vão atingir os órgãos importantes,
ou quando não se limpa até bem seco
o suor que lhes fica do tosar
e silvas ou espinhos ferem pele.
Por isso os criadores todas mergulham
numas águas correntes para o velo
assim todo embebido as defender.
Há também quem depois de as tosquiar
lhes passa um unguento, uma água ruça,
enxofre sem mistura ou pez ideu
ou cebola do mar ou cera gorda
litargírio ou então fétido eléboro
e se nada mais há betume negro .
Mas o que pode ser muito melhor
é cortarmos as crostas de ulcerado
pois que ao mal acrescenta estar coberto
e ficar o pastor sem fazer nada
sem cuidar ele próprio de seu gado
apenas invocando os grandes deuses
para os augúrios serem favoráveis.
Além de tudo, quando a dor entrou
até o mais interno das ovelhas
e lhe causam os males febre ardente,
para baixá-la é só abrir na pata
uma veia que passe e esguichar sangue.
Assim faz o Bisaltes, assim Gélon
quando andam pelo Ródope à vontade
ou nos desertos getas sustentados
por coalhada e sangue de cavalo.
Quando vires ao longe alguma ovelha
ficar muito na sombra ou com descaso
roer só ponta de erva ou se ficar
lá no fim do rebanho sem pastar
ou sozinha voltar a seu aprisco,
não percas tempo, atalha logo o mal,
o certo é abatê-la, antes que em horas
GEÓRGICAS 1 09

vá o contagio a todas do rebanho.


Rajadas que anunciam tempestade
que do mar a nós vem são demoradas
se as comparamos com a rapidez
com que o mal, uma a uma, ataca ovelhas
e num instante é seu nosso redil,
com a esperança inteira do rebanho,
com o rebanho todo até ao fim.
Bem o vê quem olhar os altos Alpes,
os nóricos castelos em seus cimos,
os campos iápides do Timavo,
tudo que era domínio de pastor,
deserto agora, o pasto abandonado
num a perder de vista se alargando.
Em tempos de que estamos já tão longe
uma peste surgiu, uma doença
que aos ares infectou calor de Outono
e que fez perecer o manso gado
como matou os animais bravios,
às águas corrompendo, envenenando
tudo o que era pastagem pelos campos.
Nem de uma forma só a morte vinha:
havia muitas vezes febre ardente
que por todas as reses se espalhava,
ia de membro a membro, os carcomia,
depois roía os ossos, desfazia
esta moléstia a tudo que alcançasse.
Quanta vez uma vítima em altar
que para honrar o deus se apresentava
caía ao lhe cingirem fita nívea
sobre as faixas de lã sem que sequer
tivesse havido tempo de feri-la ;
ou então sucedia que outra vítima
era imolada pelo sacerdote,
mas não pegava o fogo nas entranhas,
não podendo adivinho responder
ao que lhe perguntavam, com o sangue
nem tingindo o cutelo e pelo chão
umas gotas de pus e nada mais.
Os bezerros morriam passo a passo
e com tão farto pasto à sua volta
ou mesmo ao pé de manj edoura cheia.
1 10 VIRGÍLIO

Aos fiéis cães lhes sobreveio a raiva,


a tosse apoquentou porco arquejante,
lhe oprimiu a garganta já inchada.
Cavalo, tão altivo, pasto esquece,
e recusa exercício, nada bebe,
vive escarvando a terra com o casco,
as orelhas se inundam de suor,
ora quente ora frio, se frio, morte.
Seca-lhe a pele, fica uma aspereza
e morre mesmo se sintomas tais
logo aos primeiros dias lhe aparecem ;
com estranho fulgor brilham-lhe os olhos
quando fica pior de um tal achaque ;
anelante, respira com gemidos,
arfa em grandes soluços, das narinas
lhe sai um sangue negro ; língua às rugas
lhe sufoca a goela. Por um chifre
se fazia engolir licor de B aco
ao animal já perto de morrer;
como, porém, se viu que este remédio
ainda mais lhe ia apressar o fim
se deixou para trás, porquanto o vinho
ao cavalo excitava, fúria intensa
o levava a rasgar a dente nu
todos os membros de seu próprio corpo.
Deuses, dai melhor sorte aos piedosos,
esta loucura aos vossos inimigos.
Mas um touro que puxa a dura relha
e fumega no esforço, cai no solo,
da boca lhe saindo espuma e sangue
a que se juntam últimos gemidos.
O lavrador desjunge o outro boi,
consternado da morte do irmão,
e triste deixa seu trabalho em meio,
com o ferro cravado no lugar.
Nem sombra de alto bosque ou prado ameno
dará alento a boi assim doente,
nem até o regato mais que puro
que serpenteia e vai, por entre pedras,
atingir a campina. Se lhe cava
o flanco ao mesmo tempo que seus olhos
se lhe tornam mortiços, a cerviz,
GEÓRGICAS 111

pesada da doença, pende ao chão.


De que serviu trabalho ? De que fainas
a que tanto se deu ? E lavrar terras ?
Para quê arrastar pesada relha?
E não foi iguaria que lhe trouxe
a doença cruel ou Baco mássico.
Sempre, para comer, ervas e folhas,
para beber os rápidos ribeiros
ou as límpidas fontes. Nem cuidados
jamais o perturbaram em seus sonos.
Nesse tempo naquelas regiões
em vão se procurou arranJar vaca
para cumprir o ritual de Juno,
tendo o carro da deusa de ir ao templo
puxado por auroques diferentes.
Os homens, com as pobres ferramentas,
arranhavam a terra, não lavravam,
sementes enterravam com as mãos
e por ladeiras, todos retesados,
faziam avançar uns toscos carros.
Não aparece lobo a armar ciladas
em torno dos apriscos, nem à noite
vem ele andar em torno dos rebanhos,
j á que uns outros cidadãos o dominam .
Tímidos gamos e ligeiros cervos
entre cães vão errando por choupanas.
Vaga bate nas praias e volteia
os animais do mar e quanto peixe
como se fossem afogados nautas.
As focas, ao contrário do que costumam,
aos rios se recolhem, até morre
a traiçoeira víbora sem ter
mais tortuoso abrigo que lhe valha.
Acabam as serpentes que às escamas
eriçam por tomadas de pavor.
As próprias aves não se dão nos ares,
das altas nuvens caem j á sem vida.
Também de nada serve trocar pastos,
o remédio a tomar piora o mal ;
os médicos discípulos de Quíron,
o filho de Fílira, ou de Melampo,
o filho de Amitáon, não mais trabalham,
1 12 VIRGÍLIO

Ja se dão por vencidos. Tisífone


é jogada com sua lividez
da treva estígia para a luz do Sol,
adiante de si leva a doença,
adiante de si leva o Terror,
cada dia que passa a vê mais alto
alevantar a fauce que é abismo.
Rios, várzeas e montes, todo o mundo
ressoa com balidos das ovelhas
e mugidos de bois que se não calam,
a rebanhos inteiros destrói Fúria,
como dizima inteiras as manadas ;
apodrecem os mortos nos estábulos
até que abrir-lhes covas é forçoso
e recobrir de terra carne e couro
sem nada aproveitar, fazendo o mesmo
aos veios poluídos pela praga,
às lãs apodrecidas pelo mal.
Nada de aproveitá-las para roupa,
que todos esses restos só dariam
em corpo que cobrissem um suor,
um nojento suor, umas feridas
que os membros empestados devoravam.
LIVRO IV

Pois vou agora prosseguir cantando


os dons divinos do celeste mel,
peço, Mecenas, que ouças o que digo
de maravilhas de pequenas coisas,
dos grandes chefes dum inteiro povo,
de seus costumes, de seus interesses,
espécies várias e de seus combates,
tudo por ordem que lhes é devida.
Pequeno é o trabalho, grande a fama,
se é que uns adversos deuses não se opõem,
se é que me escuta um invocado Apolo.
Antes de mais, teremos de escolher,
para dar às abelhas lugar próprio
a que não chegue o vento, pois os ventos
não deixariam que elas recolhessem
o que do pasto trazem, e também
o que não venha perturbar ovelha,
petulante cabrito esmagar flor
e por onde não passem as novilhas
que, vagabundas, vão pisando as ervas
e sacudindo quanto orvalho que haja.
Longe estejam também de seus apriscos
lagartos sarapintados e escamosos,
ave que apanhe vespa, ou outro pássaro,
mais que nenhum a Procne em cujo peito
há os sinais de suas mãos sangrentas,
j á que estas aves levarão a tudo
o que devastar podem com seus bicos,
à própria abelha pegam quando voam
e põem nos seus ninhos onde o filho
dela faz alimento precioso.
1 14 VIRGÍLIO

O que é preciso que haja ali por perto


é fonte limpa, tanque cuja borda
verde esteja de musgo, ou regatinho
que esperto vá correndo pela relva,
e que palmeira ou oliveira brava
lhes dê sombra bastante ao limiar.
Se for assim, já quando os novos reis
se porão à cabeça dos enxames
na Primavera que é a estação certa,
quando esta juventude fique solta
e fora das colmeias se divirta
as margens que estão perto as chamarão
para descanso à sombra hospitaleira
das ramas que para elas dispusemos .
No meio de água parada ou correnteza
põe de través uns troncos de salgueiro
ou então pedras que, fazendo ponte,
deixem que as abelhas nelas pousem
e suas asas abram ao bom sol
se por acaso um Euro as veio molhar
enquanto descansavam ou, soprando,
com mais força em Neptuno as mergulhou.
E disto à volta que verdeje a dafne
com o serpão, o que perfuma ao longe
ou com a timbra de pesado cheiro.
E bebam violetas do que as rega.
Quanto às próprias colmeias, quer te sepm
de cascas escavadas e cosidas
ou tecidas de vime dobradiço,
não lhes dês nunca grandes aberturas :
de Inverno o frio pode gelar o mel,
de Verão o calor o liquefaz,
até para as abelhas dois perigos,
sendo por isso mesmo que procuram
em seus abrigos tapar toda a fenda
com a cera que têm, pelas bordas
as untando de fuco ou flor em suco
ou de cola que põem de reserva,
mais forte do que visco ou pez ideu.
Muitas vezes também, segundo dizem,
cavam elas no chão os seus retiros
para lhes ficar quente o lar que habitam ;
GEÓRGICAS 115

têm-nos encontrado em pedra-pomes


ou em troncos roídos pelo tempo.
Mas, seja como for, nunca te esqueças
de lhes cobrir de limo toda fresta
por cima ainda folhas para abrigo.
Não deixes junto delas teixo algum,
nem asses lagostim e charco aterra
de cuja lama emane má doença.
Desconfia também de pedras ocas
que repercutem sons, ao eco os levam.
Além de tudo, quando um sol dourado
em fuga pôs Inverno abrindo o céu
à luz de Estio, logo vão abelhas
por bosques e por pastos procurando
as mais brilhantes flores e regatos
bebendo à superfície tão ligeiras.
Não sei por que prazer que as põe alegres
acarinham seus ninhos e seus filhos,
com toda a arte trabalham cera nova
ou o seu mel amassam bem espesso.
Depois, quando, saídas das colmeias,
olhares para cima, verás tu
vogarem todas para o céu, os astros,
no límpido ar de Estio leve nuvem
que o vento leva quase como sombra,
e notarás, se com cuidado as segues,
que o enxame procura doces águas
ou amiga folhagem que o recolha.
Os perfumes prescritos lançarás
de melissa esmagada e de cerinto,
farás soar o bronze sacudindo
os címbalos da Grande Mãe dos Deuses .
Por si próprias irão ao que cuidaste,
logo se instalarão no novo berço.
Se, porém, em combate te saíram,
pois , por vezes, dois reis se desentendem,
o que grande motim logo provoca,
deixando perceber os sentimentos
que os belicosos ânimos agitam,
do bronze o marcial som incita
toda a que se deixou ficar atrás
e se ouve pelos ares um ruído
116 VIRGÍLIO

que lembra o chamamento de trombetas ;


atarefadas vão, agitam asas,
bocas aguçam dardos, exercitam
os músculos que têm, em fileiras
se comprimem em torno de seu rei
como frente a comando, ou se misturam,
inimigo provocam em tumulto.
Se Primavera calma ser.enou
uns ares chãos sem nuvens, ao embate
se precipitam, se confundem todas,
ressoa o céu e cai o turbilhão
mais denso que saraiva ou que bolota
ao sacudir carvalho ; os próprios reis
se distinguem por suas grandes asas
e que grande coragem guardam eles
em tão estreitos peitos ; só recuam
se a vitória se afirma dum dos lados ;
então, para acabar com heroísmos,
basta atirar ao ar uma poeira,
tudo se acalma, tudo em paz reentra.
Mas logo que retires da batalha
os dois reis que lutaram mata aquele
que te pareça ser o menos bom,
porque senão estaria sempre a mais,
acabaria por te ser funesto :
que o melhor reine só em sua corte.
Será aquele que apresente o corpo
com uns toques dourados e que brilhe
numas escamas de vermelho-vivo ;
é o outro horroroso de preguiça
e arrasta, que vergonha, grosso ventre.
Se tem sua feição cada um dos reis,
o mesmo se verá em seus vassalos.
Há umas que são feias e medonhas,
como a saliva espessa que a poeira
provoca em viandante que tem sede,
há outras fulgurantes como o lustre
dos seus pontos simétricos, dourados.
É esta melhor raça pois um dia
farás tu escorrer um doce mel
quando em data marcada te servir
para domar duro sabor de B aco.
GEÓRGICAS 117

Quando, porém, sem rumo, enxame voa


e pelo céu como que vai brincando,
deixando ao frio seus favos e colmeias,
impedirás que espírito volúvel
os leve a um tão vão divertimento,
e não terás dificuldade alguma :
tira as asas aos reis, que, imóveis eles,
já ninguém ousará correr os ares
ou levantar o seu acampamento.
Que j ardins perfumados com as flores
que são cor de açafrão todos atraíam
e que Príapo, esse deus lá de Helesponto,
os defenda com foice de salgueiro,
os protej a das aves ou ladrões.
Ele próprio trará dos altos montes
os timos e loureiros, os disporá
à volta das colmeias, todo aquele
que tais cuidados tenha e mão enrij e
com tão duro trabalho e fixe ainda
plantas que forem férteis, logo as regue
com águas benfazejas . Quanto a mim,
se indo a chegar ao fim desta tarefa,
não me apressasse no ferrar das velas
e no meter a proa para terra,
talvez cantasse embelezar jardins,
como podemos torná-los mais ricos,
que assim se faz aos roseirais de Pesto
que em cada ano florescem duas vezes.
Mostraria também como às endívias
tanto agrada beberem dos regatos,
como ficam as margens enfeitadas
com verdura dos aipos, de que modo
tortuoso pepino pode em relva
engrossar o seu ventre, sem contudo
deixar eu de dizer como o narciso
vai espalhando a sua cabeleira
como o fazem acanto, pálida hera
ou mirto tão amigo dos ribeiros.
Bem me lembra que em Ébalo viveu,
junto às torres, um velho de Córico
em campo abandonado no lugar
em que o escuro Galeso vai correndo
118 VIRGÍLIO

entre as culturas que alourando estavam,


mas campo impróprio a trabalharem bois,
a que se crie gado ou more Baco ;
mas tinha este homem lá por entre as silvas
feito crescer legumes tendo em torno
lírios brancos, verbenas e papoulas
que podiam comer-se. Estas riquezas
davam ao velho um ânimo de rei
e quando à noite regressava ao lar
só havia na mesa uma comida
que não tinha comprado. Em Primavera
colhia rosas ; ao chegar Outono
era fruta o que havia. Quando Inverno
vinha com a geada fender pedra
e gelo desviava os cursos de água
já ele ia mondando seu j acinto,
com ironia achava o Verão lento,
taxava de preguiça o próprio Zéfiro.
Também era o primeiro a ter enxames,
muita fecunda abelha e muito favo
de que ia recolher mel espumoso.
Para este homem não era avara a tília
nem mesquinho era o louro. Se flor nova
mostrava em qualquer árvore ir dar fruto,
maduro o tinha em casa ao vir Outono.
E transplantam também olmos já grandes
em filas os dispondo como o fez
a pereiras já duras ou espinhos
que já tinham ameixa ou até plátanos
que já estavam dando boa sombra
a quem bebesse a ela se acolhendo.
Mas tudo isto atrapalha o curto tempo,
para outros deixarei o que não posso.
Agora vamos ao que, natural,
o próprio Júpiter às abelhas deu
agradecendo o que fizeram vindo
tomadas por barulho dos Curetes
trazer ao rei dos céus em alimento
que o sustentou nos antros de Dicteu.
Só elas em comum criam os filhos,
só elas têm juntos seus abrigos,
só elas têm leis fundamentais
GEÓRGICAS 119

com que passam a vida em sua pátria,


Penates fixos, consciência deles,
só elas sabem que virá Inverno,
pois lembrando o trabalho do Verão
a todas dão de novo o que gastaram.
Têm umas encargo do sustento,
o cumprem trabalhando pelos campos,
enquanto as outras, dentro em seus limites,
as lágrimas transformam dos narcisos
ou o fazem com cascas e seus viscos
para que tenham alicerces os favos,
depois de cima a baixo os revestindo
de camadas de cera bem tenaz.
Outras fazem sair todas as crias
que são como esperança da nação,
outras condensam muito puro mel
e de límpido néctar enchem favos.
Outras, à sorte, são de guardar portas,
há as vigias de águas e de nuvens,
as que tomam as cargas das que chegam ;
outras ainda formam batalhão
para afastar vespões, os da preguiça.
O trabalho referve, todo o mel
exala uma fragrância de tomilho.
Assim, com suas massas de metal,
fundem raios a Júpiter os Cíclopes,
uns com peles de touro feitas fole
ao ar tomam dum lado e sopram noutro
enquanto outros mergulham em bacia
o bronze que sibila na caverna
que curva sob o peso das bigornas ;
os braços em cadência se levantam
e recaem com força segurando
as tenazes que prendem o metal
e volta sobre volta lhe vão dando ;
se pode comparar-se o que é pequeno
ao grande que o excede, o mesmo fazem
as abelhas de Cécrops que amassam
seu mel com paixão nelas inata.
As mais velhas se ocupam da cidade,
são elas quem os favos edifica,
são elas que constroem os abrigos ;
1 20 VIRGÍLIO

as mais novas regressam j á de noite


com patas carregadas de tomilho,
depois de rebuscarem medronheiros,
salgueiros verde-mar ou açafrão
dum amarelo ardente, a rica tília
e jacintos que são da cor do ferro.
Todas largam trabalho ao mesmo tempo,
começo de trabalho é para todas.
De manhã, sem demora, portas fora,
de tarde, quando é tempo de parar,
todas voltam a seus alojamentos,
aí restabelecem suas forças ;
um barulho se escuta, andam às voltas
nas bordas, nas entradas das colmeias.
Depois, quando se acolhem a seus ninhos,
com a noite que avança vem silêncio,
sono de que precisam todas toma.
Quando está para chuva não se afastam
de suas moradias, desconfiam
do tempo que fará se ventam Euros,
mas, se estão protegidas com seus muros,
lá vão a pontos de água, sossegadas,
mas sem demorar muito ; e, se há perigo
dum balanço de nuvem como em vaga,
consigo levam lastro de pedrinhas .
Muitas vezes também, em seu errar,
batem elas em pedras, asas quebram
e sob a carga ali acabam mesmo,
tanto por suas flores sentem paixão,
tão grande é seu orgulho de dar mel.
Há ainda na vida das abelhas
uma outra maravilha de espantar
que é não se abandonarem ao amor,
é não serem cobardes ante Vénus ;
nem é na dor que dão à luz os filhos :
sozinhas com a tromba os alevantam,
os recolhem das ervas e das folhas,
sozinhas dão reis novos se é preciso,
sozinhas a seus reis dão cidadãos
e sozinhas restauram suas cortes,
as do reino de cera a que pertencem.
Certo que chegam cedo ao fim da vida,
GEÓRGICAS 121

não indo nunca além de sete Estios ;


é contudo imortal a sua raça,
fortuna da família vence os anos,
fácil é encontrar avós de avós .
E não é tudo ; o rei que elas veneram
naquele reino é mais que rei de Egipto,
da vasta Lídia ou da nação dos Partos
ou ainda dos Medos lá de Hidaspes.
Enquanto o rei existe uma alma têm,
mas, quando o perdem, todo o pacto é nada.
Dão fim a todo o mel que ajuntaram,
e destroem os favos que fizeram.
É ele a garantia dos trabalhos,
é ele, o rei, quem elas mais respeitam,
é ao rei que rodeiam em fileiras,
é para ele que zumbem como guarda.
Muitas vezes aos ombros o levantam,
em combate o defendem como escudo,
ferimentos desprezam e, vencidas,
à morte correm como a belo fim.
Como é isto o que fazem se afirmou
que abelha tem em si uma parcela
do espírito dos deuses e que há nela
emanação do céu. Segundo os sábios,
Deus por tudo se alarga, pelas terras,
na vastidão do mar e no profundo
do dilatado céu, é dele o gado,
quer grande quer pequeno, e dele os homens
e dele os animais que são da selva,
todos, enfim, recebem ao nascer
os subtis elementos do que é vida.
É a ele que, ao fim de evoluir,
repousa todo o ser, pois não há morte,
que tudo, sempre vivo, vai, se evola
para o sidéreo eterno onde se aloja
nos íntimos do céu que nos espera.
Se queres algum dia abrir colmeia
que sagrada tu aches para veres
tesouros que estão dentro até ao mel,
tem cuidado de te aspergires de água,
purifica-te a boca, empunha tocha
cujo fumo penetre em toda a parte.
1 22 VIRGÍLIO

A cólera em abelhas ultrapassa


tudo quanto se possa imaginar,
picam logo se alguma se lhes faz,
nas picadas derramam seu veneno,
abandonam os dardos que nas veias
não podem distinguir-se ; ao mesmo tempo
a própria vida deixam nas feridas.
Duas vezes produtos armazenam
e duas estações há de colheita :
há uma quando a Plêiade Taugeta
o seu formoso rosto à Terra mostra
e com desdém repele água do mar,
outra quando o mesmo astro se retira
das estrelas de Peixes, suas chuvas,
e triste desce às vagas já de Inverno.
Se para abelhas temes seu rigor,
se pensas no futuro e te apiedas
do que lhes pode vir a suceder,
a colmeia fumiga com tomilho
e tira a cera velha de seus favos.
Pode ser que lagarto tenha entrado,
j á estejam roídos, ou baratas
inimigas da luz ali se escondam
ou pregutçosa vespa, sem se ver,
ali busque comida que é dos outros
ou com melhores armas tenha vindo
vespão audacioso, voraz traça
ou as aranhas que Minerva odeia
tenham ali deixado suas teias.
Quanto elas mais prejudicadas são
tanto mais buscam reparar as perdas,
os vazios que aparecem encherão
e de flores atestam os depósitos.
Mas se o corpo lhes cai numa doença,
pois como a nós o mesmo lhes sucede,
logo o verás pelos sinais que mostram.
A mudança de cor rápida vem,
magreza lhes altera inteiro aspecto,
transportam para fora da colmeia,
em tristes funerais, as que tombaram
ou se deixam ficar nos limiares,
patas entrelaçadas, ou então
GEÓRGICAS 1 23

todas juntas recolhem ao abrigo,


imóveis, abatidas pela fome,
entorpecidas pelo frio que sentem ;
o ruído que se ouve é de tom grave
e zumbem sem momento de descanso,
como em bosque sibila um álgido Austro,
como soa no mar o seu refluxo
ou um fogo referve se fechado .
Prescreverei então que aí se apliquem
os perfumes de gálbano queimado,
que em caniço se faça correr mel
para que a abelha, sem que a fome apure,
se recomponha com comida igual
à que tinha nos dias de saúde.
É bom que se lhes junte noz de galha
com rosas velhas, vinho bem espesso
ou uvas de psítia seca ao sol
e tomilho de Cécrops, centáurea.
Há também pelos prados uma flor
a que amelo chamou o camponês
e que é uma erva fácil de achar :
duma moita se eleva muito caule,
é como de ouro o centro desta flor
sobre uma folha de que há muita à volta,
se lhe entrevendo um violeta-escuro ;
coroas se entretecem desta flor
para ofertar aos deuses ; o seu gosto
é áspero na língua ; feita a ceifa,
a colhem os pastores pelos vales
que ficam junto ao sinuoso Mela.
Sua raiz, com vinho perfumado
em que sej a cozida pode pôr-se
até em cestos cheios nas entradas
das colmeias que tenhas . Se, porém,
de repente te falta a raça toda,
e não há jeito duma nova estirpe,
é tempo certo de lembrares tu
a descoberta do mestre da Arcádia,

a de ter produzido nova abelha


do sangue corrompido de novilhos
em sacrifício aos deuses abatidos .

Esta história vou e u contar agora


1 24 VIRGÍLIO

desde o princípio dela. No lugar


em que o povo com sorte de Canopo
vê o Nilo formar com suas águas
que ali saltam as bordas grande lago
e nuns barcos pintados corre os campos
em que não há os Partos com carcás,
em que o rio que fecunda com seu limo
o verdejante Egipto em sete bocas
se divide depois de ter deixado
trigueiros indianos, tudo à volta
só vê assegurada a salvação
pelo processo de que vou cantar.
Um espaço se escolhe que se vê
apropriado ao fim que se deseja,
um exíguo telhado se lhe encerra
entre estreitas paredes entalhadas
e com quatro janelas que se viram
aos quatro ventos que há e pelas quais
entra um pouco de lado a luz do dia.
Depois traz-se um vitelo cujos chifres
se recurvam em fronte de dois anos,
se cosem as nannas, nao resp1ra,
o - o

à pancada se abate de maneira


que a carne se desfaça sem que a pele
tenha a menor ferida ou rasgadura.
Assim se deixa no fechado espaço
pondo-se ao lado ramos aos bocados,
tomilho e pés de loureiro fresco.
Se faz este trabalho quando os Zéfiros
no mar começam impelindo as ondas
antes que os prados encarnados fiquem
ou antes que andorinha o ninho em viga
de novo prenda. Mas nos ossos moles
fermenta o líquido ; com estranhas formas
ainda sem ter pata agitam asas
que já fazem ruído, já se mexem,
já mais e mais dominam o leve ar,
até se jogar fora enxame inteiro,
como se fora bátega de chuva
em nuvem de Verão ou como as frechas
que ágeis Partos dos arcos arremessam
quando decidem começar combate.
GEÓRGICAS 125

Que deus, ó Musas, inventou o Jeito,


como passou aos homens o processo ?
Diz-se então que ficando sem abelhas
o pastor Aristeu por as perderem
a fome e a doença, ia fugindo,
sucumbido, dos vales do Peneu
quando triste parou junto da fonte
de que brotava o rio, muito queixoso,
e assim se dirigiu a sua mãe :
« Cirene, ó minha mãe, tu que te 'abrigas
no fundo deste abismo, que te fez
levar-me a que nascesse da famosa
raça ilustre dos deuses, se é verdade
que, como dizes, é meu pai Apolo,
o deus que tem um santuário em Timbra,
para que terás tu me dado à vida
se foi o meu destino desgraçado ?
Será que já não tens amor por mim ?
Porque me fazes tu esperar céu ?
Agora a honra mesmo de mortal,
esta honra tão difícil de ganhar
com os hábeis cuidados dispensados
ao gado e às culturas, eu a perco,
e és tu a minha mãe ! Vamos, arranca
por tua própria mão felizes bosques,
lança fogo inimigo a meus estábulos,
extermina as searas, queima o prado,
com o machado ataca as minhas vides,
já que tanto te abatem meus triunfos. >>
Só que a mãe escutou, vindo de cima,
o som da voz no leito da corrente.
À volta dela ninfas tratam peles,
as peles de Mileto verde-escuras,
Drimo, Xanto, Ligeia, Filódoce,
cabeleiras brilhantes sobre colos
de esplêndida brancura derramadas,
mais ainda Cidipe com Licóris,
uma virgem ainda, a outra já
tendo passado por primeira vez
as dores de Lucina, e mais a Clio,
com Béroe, irmã, filhas do Mar,
com cintos de ouro as duas, revestidas
126 VIRGÍLIO

de coloridas peles, com Éfira,


com Ópis e Deiópia do lago Á sia,
com ágil Aretusa sem as setas.
Entre elas a Clímene ia contando
o cuidado sem ganho de Vulcano,
os enganos de Marte, os doces roubos,
o caos de amores que envolvia os deuses.
Enquanto elas, tomadas deste encanto
soltavam de seus fusos brando peso,
de novo veio ferir materno ouvido
a queixa de Aristeu ; então as ninfas
imóveis nos assentos cristalinos
ficaram todas ; antes, porém, delas
das águas levantou cabeça loura
sua irmã Aretusa e gritou longe :
«Não é em vão, Cirene, que tens medo
do queixume que ouviste, que é daquele
que tanto te é querido, o de Aristeu
que junto da nascente do Peneu,
o nosso pai de todas, se lamenta
e te chama cruel . » Subitamente,
tomada de temor pelo que ouviu,
fala de novo a mãe : «Vamos, depressa,
trazei-o cá a nós ; tem o direito
de tocar ele o limiar dos deuses . >>
Ao mesmo tempo ordena que abra o rio
caminho largo por que possa o jovem,
com águas em montanha a toda a volta,
penetrar nas moradas tão em baixo.
Cheio de espanto de morar a mãe
em seu húmido império ia Aristeu
por entre lagos presos em cavernas
e por bosques de sons harmoniosos
naquele enorme movimento de águas
dos rios que correm sob a terra imensa.
Dum lado o Fásis, o Lico, com a fonte
donde o profundo Enipeu se despede,
por outro lado o ressoante Híspalis
ou o Caíco de Mísia donde sai
o nosso venerando rio Tibre,
depois as ondas de Ânio, o Erídano
com a taurina fronte, os cornos de ouro,
GEÓRGICAS 127

ele o mais violento dos rios todos,


o que através de todas as culturas
se precipita súbito no Roxo.
Quando chegou ao fundo do grutão
abobadado todo em pedra-pomes,
e viu Cirene serem todos vãos
os choros de seu filho, logo as ninfas,
todas suas irmãs, trazem as águas
que as mãos lhe purifiquem e toalhas
tecidas de seus velos preciosos.
Umas carregam mesas de comida,
outras servem as taças de bom suco,
enquanto nos altares ardem fogos
que recrescem de incensos da Pancaia.
E diz-lhe então a mãe : «Toma esta taça
de Baco da Meónia, para haver
a nossa libação ao Oceano.
Ao mesmo tempo ao Oceano seja,
ao Oceano pai de tudo que há
e às irmãs ninfas que são protectoras
de cem florestas e cem cursos de água. »
Por três vezes a Vesta ela saúda
com o líquido néctar e três vezes
culmina a chama ao máximo do tecto
e como brilha aí com seu fulgor.
Encorajando o filho, assim diz ela :
«Há no carpátio abismo de Neptuno
o cerúleo Proteu, um adivinho
que o mar percorre com um carro seu
puxado por corcéis de duas patas
que na verdade são metade peixes.
Vai visitar agora os portos pátrios
de Emátia e de Palene ; a este deus
o veneramos nós que somos Ninfas,
mas o próprio N ereu lhe tem respeito
porque tudo sabe ele do passado,
de tudo que hoje existe e do que, lento,
do futuro se vem aproximando.
Por favor de Neptuno é isto assim
porquanto lhe apascenta pelo fundo
uns rebanhos de focas, doutros monstros.
É a ele, meu filho, que tu tens
128 VIRGÍLIO

de primeiro apanhar e fazer dócil


para dizer-te a causa desse mal
e dele para sempre te livrar.
Não é sem violência que o fará
e não é por pedidos que o dominas,
emprega a força, nada de o poupar ;
boa amarra lhe deita, porque as manhas
que dele vêm poderosas são
e só por estes meios te defendes.
Eu mesma vou levar-te a seu lugar
às horas de meio-dia quando o sol
à terra envia seu ardente bafo,
as ervas têm sede e toda a sombra
o gado delicia. Ali vai estar
o velho bem cansado pelo j ogo
da vaga tanto tempo. Ataca-o forte
que dormindo estará todo estendido,
amarra-o bem seguro. Mesmo assim
tomará os seus jeitos de assustar-te :
se fará eriçado j avali
ou um medonho tigre ou um dragão
ou mesmo uma leoa, fulva a nuca,
ou crepitar de chamas ou até
de rio se fará para escapar-te.
Prende-o tu bem seguro o dominando
e por fim o verás como se fora
começar a dormir, molengo e manso. »
Assim o disse, logo derramou
sobre o corpo do filho de ambrosia
um líquido perfume ; a cabeleira
da doce exalação se penetrou
e seus membros ficaram poderosos
de vigor e de jeito habilidoso.
Na beirada dum monte há uma gruta
que roeram as ondas impelidas
pelo vento que volta sobre si,
ao fundo as acumula, assim formando
um porto bom para surpreso nauta.
Aí Proteu se abriga protegido
por um vasto rochedo que há na gruta.
É lá também que a Ninfa põe o moço
de costas para a luz, bastante oculto,
GEÓRGICAS 1 29

e depois se retira, se escondendo


numa nuvem que a faz ser invisível.
Já a rapace Sírio que indianos
queima lá de seu céu tinha ficado
sem metade do curso circular,
j á secavam as ervas, raios ardentes
faziam referver o leito aos rios,
sobretudo no lodo junto às barras,
quando Proteu das vagas emergiu,
se encaminhou à gruta do costume,
tendo em seu torno o povo que é do mar
e que saltando o rociava amargo .
Aqui, ali, na praia focas dormem
estendidas na areia; então Proteu
como se pastor fora na montanha
quando Vésper dos pastos ao abrigo
leva ela a que os veados se retirem
e que excitem os lobos carneirinhos
pelos balidos que inocentes soltam,
Proteu, ia dizendo, se sentara
em rochedo no meio de seu rebanho
focas examinava e punha em conta.
Vê Aristeu que era o momento certo,
mal deixa o velho descansar os membros
batidos de fadiga, solta um grito,
se lança em cima dele, o deita ao chão
e corrente lhe passa a segurá-lo.
Proteu, porém, o seu talento exerce,
se transforma de todas as maneiras,
em fogo, água corrente, feroz besta.
Contudo, ao ver que todos esses jogos
lhe não irão propiciar a fuga,
se conhece vencido, volta à forma
que é na verdade a sua e faz ouvir
o que é, como devia, humana voz.
« Quem é que permitiu, meu descarado,
que viesses a estes meus lugares,
para querer o quê, dize-me lá ? >>
«Tu o sabes, Proteu, e bem o sabes >> ,
lhe revida Aristeu. « Não é possível
que alguém te engane, sej a no que for
e não queiras tentar isso comigo.
130 VIRGÍLIO

É só para seguir sinais dos deuses


que venho aqui para te perguntar
o que devo fazer nesta desgraça. >>
E nada mais lhe disse. O adivinho,
sobre si próprio se fazendo força,
acabou por lançar-lhe olhar ardente
de luz esverdeada, rangeu dente,
abriu a boca, oráculo lhe deu :
« É um deus, sim, um deus que te persegue,
com toda sua raiva. Foi grave erro
aquele que terás tu de expiar.
O castigo que sofres é Orfeu,
Orfeu, tão digno de que o lamentemos
pela desgraça tão imerecida,
é, sim, Orfeu que sobre ti o chama,
a menos que os destinos se lhe oponham,
e se vinga da morte da mulher.
Corria a pobre para te escapar
pela margem do rio sem precaver-se
duma enorme serpente que aqui vive
e que lhe iria causar logo a morte.
Foi então que, da mesma idade que ela,
as Dríades em coro o monte encheram
de seus gritos de pena. Chora Ródope
nos cimos altaneiros, a Pangeia
pelos cumes o faz, como o faz Reso,
essa terra de Marte, o Geta, o Hebro,
Oritia de Atenas, com Orfeu
procurando encontrar em sua lira
consolação de amor tão desditoso
te cantava de sua doce esposa,
te cantava, Proteu, naquelas margens,
sozinho na desgraça ao abrir dia,
sozinho na desgraça ao fechar noite.
Nas gargantas ternárias entrou mesmo
e nas profundas portas do que é Diste
e no bosque sombrio, tenebroso,
que é a sede de todos os terrores,
como ousou afrontar os próprios Manes
e seu temido rei, corações todos
que nunca abrandará a prece humana.
Entretanto, do fundo das moradas
GEÓRGICAS 131

que ao Érebo pertencem, comovidas,


leves sombras avançam, os espectros
daqueles que perderam toda a luz,
em número tão grande como as aves
que em folhagem se escondem e que a noite
ou chuva em temporal vem e expulsa
das mais altas montanhas, que r;nães foram,
ou esposas ou corpos generosos,
de crianças, das jovens que morreram
antes dos himeneus, ou dos moços
que sob olhar dos pais foram depostos
e queimados nas piras funerárias .
Em torno deles há um lodo negro,
as odiosas canas do Cocito,
um pântano maldito de água podre,
Estige que os rodeia sete vezes.
Moradias da morte, fundo tártaro
foram presas de espanto ou as Euménides
de cabeleiras em que se entrelaçam
serpentes azuladas ; até Cérbero,
três goelas hiantes, se reteve
de se pôr a ladrar enquanto a roda
de Ixíon parava com o vento,
o próprio vento que girar a faz.
Voltando atrás, j á se furtara Orfeu
a todos os perigos, com Eurídice
restituída como fora à luz,
os passos lhe seguindo, que esta lei
Proserpina impusera, a loucura,
tomar, inesperada, seu marido,
loucura perdoável se soubessem
os Manes perdoar : Orfeu parou
quando já sua Eurídice tocava
nas portadas da luz, atrás olhou,
vencido da paixão, e logo perde
o fruto dos esforços pois quebrava
o pacto que fizera nos infernos .
Um violento estrondo fez-se ouvir
pelos pauis de Averno . " Que desvairo
que tudo perde assim ! Ah Orfeu,
de novo separados ! Outra vez
os destinos cruéis fazem que eu volte.
1 32 VIRGÍLIO

Já o sono da morte turva os olhos.


Toma conta de mim a noite imensa.
Adeus, Orfeu, as minhas fracas mãos
se estendem para ti, e não sou tua. "
Longe dos olhos dele, como fumo,
ela desaparece de repente,
em vão se cansa Orfeu a segurar
uma sombra que foge e que não volta,
a lhe querer falar, falar ainda,
quando já o não vê, nem o barqueiro
de Orco permitirá que ele atravesse
de novo o charco divisor dos dois.
Agora, que fazer ? Aonde irá
depois de duas vezes lha tirarem ?
Que lágrimas os Manes moveriam
e que outros deuses curvaria ainda?
Já na barca de Estígia sua Eurídice
gelada navegava. Sete meses
por baixo duma pedra, pelas bordas
dum Estrímon deserto chorou ele,
contou o seu desastre bem no fundo
de frios antros, só a tigres gosto
do canto transmitindo, ou a carvalhos
arrastando consigo, Filomela
gemendo pela perda de seus filhos
que lavrador cruel, de vigia,
arrancou de seu ninho, quando ainda
nem sequer tinham penas os coitados.
Pousada sobre um ramo, sem cessar
recomeça seu canto de tristeza,
leva a noite chorando sua dor,
tudo à volta é queixumes e lamentos.
E nenhum himeneu, nenhum amor
vieram ameigar seu coração ;
só, no meio de gelos hiperbóreos,
das neves do Tánais e dos plainos
que no Rifeu j amais viúvos ficam
das contínuas geadas, ia errante
chorando Eurídice, o vão dom de Diste.
Um dia as desprezadas mães cícones
contra ele se levantam nas sagradas
festas em que celebram Baco, o despedaçam,
GEÓRGICAS 1 33

lhe dispersam os membros pelos campos.


Mesmo quando a cabeça ia, arrancada,
rolando na corrente de Hebro Eagro
se lhe ouvia gritar gelada língua
"Eurídice" , teu nome, e repetia
sua expirante boca um eco : "Eurídice" . »
Assim falou Proteu e s e atirou
dum salto só naquele mar profundo,
a coluna de espuma ao céu erguendo.
Não se afastou Cirene, ao ver o filho
tremendo como estava, assim lhe disse :
«Tristezas e cuidados podes tu
banir do coração porquanto sabes
a causa da doença ; são as Ninfas
com quem danças sagradas celebrava
Eurídice nos bosques as que lançam
contra tuas abelhas seu castigo.
Oferendas lhes deves de levar
o perdão lhes pedindo e às Napeias,
indulgentes N apeias, presta culto,
atenderão às preces que tu faças,
deixarão sua zanga se extinguir.
Eu te direi, porém, de que maneira
tu o deves pedir. Tens que escolher
quatro prestantes touros de bom corpo
daqueles que nos cumes do Liceu
pastam agora por seus verdes altos
e, juntamente, quatro das novilhas
que não tenham sentido o peso ao jugo.
Armarás quatro altares em lugar
às deusas dedicado, aí farás
que das vítimas saia sacro sangue,
depois, abandonando os corpos delas
debaixo de folhagem nesses bosques.
Quando romper um dia a nona aurora
as papoulas do Letes oferece
que possam expiar Manes de Orfeu ;
para poder Eurídice ter paz
outra novilha tu lhe sacrificas
com a mais reverente invocação ;
por fim imolarás ovelha negra
e voltarás ao consagrado bosque. >>
1 34 VIRGÍLIO

Sem demora Aristeu cumpre os mandados


que lhe vêm da mãe ; no santuário
levanta ele os altares, conduz os touros,
logo depois novilhas cuja nuca
sempre livre do jugo tinha estado ;
depois, à nona aurora, o sacrifício
que expiará Orfeu ; na volta ao bosque
assiste à maravilha que é o ver
sair dos bois pela desfeita carne
de costados e ventres tanta abelha
que sobe como numa espessa nuvem,
pousa logo no cimo de certa árvore
e por fim se suspende como um cacho.
Do cultivo dos campos cantava eu
e do cuidado a ter-se com o gado
como também com árvores enquanto
o grande César lança contra Eufrates
toda a força da guerra e, vencedor,
dá leis aos povos que desejam tê-las,
assim se encaminhando para o Olimpo.
Alentava Virgílio nesse tempo
uma amiga Parténope, que o ia
ajudando a tratar de artes de paz
depois de ter composto bucolismo
e de ter, moço audaz, ousado ainda
a Títiro cantar que se deitara
à sombra duma faia bem copada.
ENEIDA
LIVRO I

Sou eu aquele que em passado tempo


meu canto confiei à frágil frauta
e levei a que campos meus vizinhos
ao desejo do dono obedecessem,
que bom trato agradasse ao camponês.
Sou eu agora quem celebra em canto,
nos horrores das armas de Mavorte,
o varão que primeiro veio de Tróia
à nossa Itália, às praias de Lavínia,
em fuga obedecendo a seu destino,
bem batido por mares e por terras,
pela divina força dos de cima
e por ira tenaz da crua Juno,
tanto sofrendo em guerra até fundar
a cidade que é sua, até trazer
ao Lácio os deuses, e, daí provinda,
a raça dos Latinos, avós de Alba,
depois muralhas da famosa Roma.
Musa, me lembra as causas que levaram
a rainha dos deuses, tão ferida
assim em seu poder, a lançar homem
de tanta piedade em tais trabalhos.
São as iras nos céus assim tão fundas ?
Houve outrora Cartago, possuída
por colonos da Tírea, que ficava
ao longe frente a Roma e foz do Tibre,
cidade rica em bens e dura em guerra,
que Juno mais amava que outras terras,
até mais do que Samos, ao que dizem.
Aqui armas, aqui seu carro estava,
fazer dela rainha das nações
138 VIRGÍLIO

era o querer da deusa, se os destinos


assim o permitissem. Mas ouvira
que um dia um descendente de troianos
derrubaria as fortalezas tíreas
e que povo saído de seu sangue
e soberbo na guerra chegaria
a destruir a Líbia, pois assim
tinham fiado as Parcas. Inquieta,
se lembrara também, Satúrnia a deusa,
da guerra que ela própria conduzira
para defender Argos contra Tróia
e de toda a razão de suas cóleras
e da dor que em sua alma ainda havia.
O juízo de Páris se gravara,
uma injúria à beleza desprezada,
uma raça odiada, com as honras
prestadas ao roubado Ganimedes,
com tudo isto crescera sua raiva.
Para longe do Lácio afasta a deusa,
no mar ilimitado os perseguindo,
os troianos que tinham conseguido
escapar-se de Dánao e de Aquiles.
Há quanto tempo erravam pelas ondas
ao gosto de destinos inimigos.
Que duro esforço o de fundar-se Roma.
Mas as velas soltavam da Sicília,
ao largo se metiam, bem alegres
com o bronze cortavam salsa espuma,
quando Juno ferida como sempre,
a si própria dizia : «Terei eu
de desistir daquilo que pensei,
sem ser possível afastar de Itália
o rei dos Teucros ? Mo proíbe o fado ?
Não pôde Palas destruir a fogo
a frota dos Argivos, sepultá-los
no mar imenso só por ser culpado
o furioso Ajaz, filho de Oileu ?
E não foi ela própria a dardejar
rápido o raio de Jove sobre os mares
com o sopro do vento o mar volvendo,
lhe pondo peito em turbilhão de chamas
até pregá-lo num rochedo agudo ?
ENEIDA 1 39

E serei eu, que reino sobre os deuses,


eu, que de Jove sou irmã e esposa,
a que tem de passar ano após ano
a combater o que é um povo só ?
Quem vai agora me adorar a força,
quem me vai sobre altar depor ofertas ? »
Com tais incendiados pensamentos
chega a deusa ao país do céu coberto,
àquela Eólia, mãe de tempestades.
Aqui, em vasta gruta, Éo!o, rei,
o seu poder impõe ao vento em luta,
aos temporais sonoros os domina
com grades e correntes e, raivosos,
as montanhas abalam seus rugidos.
Mas Éolo, no forte entronizado,
e de ceptro na mão acalma as fúrias,
moderação impõe a tanto ardor.
Se não fosse ele, a terra, o mar profundo,
tudo o vento levava em arrebato
e dispersava pelo vago espaço.
Mas, felizmente, um Pai tão poderoso
os encerrou em seus sombrios antros
e sobre eles lançou massas de montes,
lhes deu um soberano que, em lei certa,
por sua ordem enfreia ou solta as rédeas.
É a ela que Juno, num pedido,
assim se lhe dirige : «Já que a ti
te deu o pai dos deuses, rei dos homens,
a faculdade de abater as vagas
ou de, soprando, as levantar ao céu,
ó Éolo, direi que gente hostil
navega no Tirreno e sua frota
para Itália transporta Í lia cidade
e seus Penates que batidos foram.
Incute força ao vento, destrói popas
e pelo mar dispersa os corpos todos.
Duas vezes tenho eu as sete ninfas
que de perfeito corpo estão comigo,
Deiofeia, a mais bela, a mais capaz,
contigo juntarei em casamento,
tua mulher será, assim se paga
o favor que me fazes ; companhia
1 40 VIRGÍLIO

te será ela em toda sua vida


e pai te deixará de pulcra prole. >>
Em resposta lhe diz Éolo então :
«A ti cabe, rainha, pôr em feito
aquilo que escolheste ; de mim tens
aquilo que te devo obediência.
O que de ti me vem junta ao comando
que Júpiter me deu, o sentar-me eu
nos banquetes dos deuses e fazer
o que queira de vento e temporaL>
E mal o tinha dito vira a lança
e com a ponta empurra o cavo monte ;
logo os ventos em j eito de batalha
se escapam pela porta assim aberta,
em turbilhão se j ogam sobre a Terra ;
ao mar se precipitam Euro e Noto
que, juntos, vão, o tiram de seus fundos
ao Á frica o entregam borrascoso,
já todos impelindo para a costa
as poderosas vagas que levantam.
Gritam os homens, cabos sibilantes
são como um eco àquela voz dos céus
que nuvens logo cobrem, tiram luz
aos olhos dos Troianos, noite abismo
com trovejantes pólos, tanto raio,
em tudo morte se mostrando aos nautas.
Eneias de repente sente um frio
os membros penetrar e se lamenta,
aos astros ergue as mãos assim falando :
«Felizes foram três e quatro vezes
aqueles aos quais coube chegar morte
a colher ante os olhos de seus pais,
ante as altas muralhas dos Troianos,
ó valente da raça de Dánao,
ó filho de Tideu, não ter podido
cair eu, meu espírito exalar
nos sítios em que j az o bravo Heitor
pelo braço abatido dum Eácides
ou Sarpédon, guerreiro gigantesco,
sim, lá por onde vai rolando o Símois
sob as ondas em número tamanho
capacetes, escudos dos heróis
ENEIDA 141

e seus corpos em forças poderosos . »


Tempestade estridente d e Aquilão
se lança contra a vela do navio,
até aos astros joga as altas vagas.
Quebram-se os remos, se desvia a proa,
se expõe ao vagalhão todo o costado
e logo a massa líquida se abate,
uns ficando suspensos lá das cristas,
descobrindo outros terra dentre as ondas,
a toda a volta refervendo areia.
Consigo leva o Noto três navios
que destroça nas rochas invisíveis;
as rochas a que chamam os Altares,
um dorso monstruoso ao raso de água.
Penoso de se ver o Euro ao largo
a uns outros três barcos prende em banco,
os quebra, em torno põe muro de areia.
Sobre um deles, com Lício, com Orontes,
o seu fiel Orontes, um mar desaba,
na popa lhe dá mesmo, o seu piloto
atira às águas com tremendo choque,
enquanto à nau oprime sobre o fundo,
a faz rodar e sempre em turbilhão
a faz sumir lá por debaixo da água.
Aparecem depois, num ponto e noutro,
homens que nadam, armas dos heróis,
os tesouros de Tróia. O temporal
já venceu o navio de Ilioneu,
mais o do forte Acates com um outro
em que Abas ia a bordo, mais aquele
em que seguia o venerando Aletes.
Todos se inundam de inimiga chuva
pelas fendas que abriam nos costados,
todos são dominados e se afundam.
Entretanto Neptuno sente o mar
cheio de todo o ruído que o mau tempo
nele desencadeia, vê que o fundo
repele à superfície as suas águas
e sobre elas eleva a grave fronte,
movido da surpresa que o perturba,
com a frota de Eneias espalhada
nas ondas violentas que não dão
1 42 VIRGÍLIO

descanso algum ao infeliz troiano,


batido por um céu que se arruína.
Nem ficou escondida a seu irmão
a cólera dolosa que é de Juno.
A si chamou o deus a Euro e Zéfiro
e com estas palavras lhes falou :
«Já tanto a vós passou aquela audácia
que é a de vossa raça? E como ousais,
sem eu deixar, erguer e misturar
tão grandes massas como as que agitastes ?
ai que eu . . . ! Mas o que é mais preciso, e já,
é acalmar as vagas que movestes .
Me pagareis depois o cometido
e duma outra maneira. Fora, e depressa.
Direis a vosso rei não ser a ele
que dado foi o governar dos mares,
o temido tridente ; foi a mim
que a sorte o concedeu ; a ele as rochas
que, Euro, serão as vossas moradias .
Por aqueles domínios se enfatue
Éolo, neles mande, no fechado
cárcere desses ventos de que é rei.»
Assim diz ele. Mais depressa ainda
túmido mar acalma, às próprias nuvens
põe ele em fuga e restitui o Sol.
Ao mesmo tempo Cimótoe, Tritão
libertam os navios de aguda rocha,
com ele próprio a manejar tridente,
abrindo as vastas Sines, mar baixando,
com as rodas do carro toca as ondas.
Da mesma forma que revolta surge
e recresce num povo que não vale,
voam pedras e fogo, as armas de ira,
mas se aparece alguém que é respeitado
logo tudo se acalma, ouvido atento,
palavra abranda peito, rege as almas,
assim baixou todo o fragor do mar
logo que o deus correu em céu aberto
guiando seus corcéis de carro livre.
Os de Eneias, cansados, só procuram
chegar à costa perto que é da Líbia.
Há ali um lugar no qual uma ilha
ENEIDA 143

com o seu litoral abriga um porto


em que se quebra toda a vaga vinda,
com sossego dum lado e doutro lado.
Duas arribas firmes se levantam
e fazem que até longe água se cale.
Depois, como em teatro, desce um bosque
com sombra de mistério e de poder,
uma gruta abrigando de água amiga
com assentos de pedra, lar de Ninfas.
Não é precisa aqui âncora alguma
nem as correntes que navio dominam.
Ali Eneias entra com navios,
que sete são e que escolheu da frota,
com as tripulações que logo tomam
posse daquela desejada areia, -
os fatigados membros repousando.
Logo de início faz saltar Eneias
dum sílex faísca sobre folhas
que pronto ao fogo envolvem, alimentam
com a secura que faz parte delas
e que animando a chama a tudo queima.
Dispõem em seguida os navegantes
do que de Ceres ondas lhes tocaram
e das armas a tal adequadas .
Decerto estão cansados, mas grãos secam
no fogo que os ajuda, em pedra quebram.
Enquanto o fazem sobe a riba Eneias,
passeia os olhos sobre o mar que vê,
talvez descubra Anteu, trirremes frígias,
ou Cápis ou então em altas popas
as armas que consigo tinha Caíco.
Nenhum navio à vista, junto à praia
três cervos lentos vão, aos quais se segue
longa fileira doutros a pastar
o que nos vales de erva já nasceu.
Rápido arma seu arco, apanha as frechas
e logo os dardos do fiel Acates.
Como as cabeças alto levantavam
os cervos que já via com os chifres
agora semelhando ramaria
aos três abate Eneias, protegido
pelo coberto mato, e não mais pára
1 44 VIRGÍLIO

sem que tenha estendidos pelo chão


os sete cervos, cada barco o seu.
Logo vai o herói distribuindo
aquele vinho que em trinácrias praias
o bom Alceste tinha carregado
para os que iam embora, e consolando
com a sua palavra as tristes almas :
«Bem nos lembramos, companheiros, todos,
dos males que sofremos até hoj e ;
já o pior passámos, algum deus
a tudo isto dará também seu fim.
A fúria do que é Cila vistes vós,
o profundo soar de seus rochedos
como também sabeis da penedia
que a nós homens nos lembra dos Ciclopes.
Recobrai, pois, os ânimos, deixai
o que nos pôs outrora tanto medo ;
talvez até um dia nos alegre
lembrar o que connosco se passou,
Com tantos incidentes, tanta coisa,
ao Lácio navegamos, onde os Fados
nos mostram termos sossegado pouso
em que podemos ver de novo Tróia.
A tudo suportai, vos conservai
para os dias felizes que virão . »
Assim falou e , cheio d e cuidados,
faz que seu rosto seja de esperança,
enquanto o coração a dor reprime.
Diligentes vão todos ao trabalho
de preparar a sua refeição,
ficam sem couro os cervos e dispõem
toda a carne que irão aproveitar.
Aos bocados a cortam, palpitante
a cravam nos espetos, sobre a praia
colocam os suportes, as fogueiras
acendem com cuidado ; dentro em pouco
poderão já comer, reanimar-se,
regar de velho Baco as gordas carnes.
Logo que a fome sentem satisfeita
se deitam ali mesmo, descansando
e recordando amigos que perderam ;
entre esperança e medo fazem votos,
ENEIDA 145

por um lado, talvez que ainda vivos,


e por outro talvez que nenhum deles
dá por serem chamados tão de longe.
O piedoso Eneias se entristece
quando y ensa em Orontes tão ardente
ou em Amico ou no cruel destino
que foi o de seu Lico e bravo Gias
ou em Cloanto de valor igual.
Já iam terminando quando Jove
que o mar olha em que as velas vão voando,
depois as terras todas em sossego,
os litorais, os numerosos povos,
de súbito se fixa sobre a Líbia.
A ele então que tais cuidados tinha
se lhe dirige Vénus, triste a deusa,
o luminoso olhar banhado em pranto :
«Tu que conduzes pelas leis eternas
toda a sorte dos homens e dos deuses,
que crime cometeu o meu Eneias
ou contra ti ou contra seus Troianos,
para os quais, e depois de tanta morte,
se fecha o mundo inteiro por Itália,
quando é de Itália que em futuro tempo
hão-de vir os Romanos chefiar
a raça teucra que voltou à vida
e ter em seu poder terras e mares ?
Foi o que tu me prometeste, Pai,
que pensamento te mudou vontade ?
Era o futuro o que me consolava
da ruína de Tróia e compensava
de destino que foi o que seria.
Mas, ao contrário, a mesma sorte investe
contra os homens que tanto já sofreram.
Quando darás tu fim a seus trabalhos ?
Antenor, que escapou dentre os Aqueus,
penetrou pelos golfos dos Ilírios,
bordejou pelos reinos da Libúrnia
as fontes vendo mesmo do Timavo
donde por nove bocas sai um mar
cuj as ondas dominam todo o campo.
É ali que, contudo, estabelece
a cidade de Pádua, onde os Teucros
1 46 VIRGÍLIO

armas penduram, têm seu descanso,


enquanto nós, os que teus filhos somos,
aqueles a quem abres porta ao céu,
perdemos os navios, perseguidos
por iras duma só e longe estamos
dos desejados litorais de Itália.
Assim se paga a nossa piedade ?
Assim se reafirma nosso ceptro ? >>
Com sorriso para ela e com a face
de serenar o céu, as tempestades,
um beijo liba à filha o que é origem
dos homens e dos deuses, e depois :
« Não tenhas medo, Citereia, os Fados
para ti permanecem sem mover-se;
tu verás a cidade, as prometidas
muralhas de Lavínio, até aos astros
farás subir um dia o grande Eneias :
pensamento nenhum me fez mudar.
Teu filho, o dele falarei ainda,
pois tanto te atormenta esse cuidado,
sim, dele falarei para dizer-te,
para te revelar o seu destino,
grandes guerras fará por essa Itália,
altivos povos ficarão vencidos
e para os seus elevará muralhas,
leis firmará até que ao terceiro ano
no Lácio reinará depois que os Rútulos
sob o jugo passarem três Invernos.
Então Ascânio, se menino ainda,
a quem se dá também por nome Iúlo
pois Ilo era enquanto se manteve
o poder de Ílio, rei será de tudo
enquanto o céu em si voltas dará,
as trinta longas voltas ; mudará
para Alba Longa de Lavínio a sede,
de robustas muralhas a cercando.
Três centos de anos reinarão aqui
os que de Heitor descendem até quando
Ília sacerdotista pertencente
à família real terá gémeos
de que Marte é o pai. Todo valente
de ter mamado o leite duma loba,
ENEIDA 147

Rómulo irá tomar conta do povo,


márcia cidade dotará de muros
e de seu nome próprio o que é romano.
Para Roma não marco tempo e espaço
e sempre lhe darei império sem fim .
Melhor vai ser que Juno, agora
cansando terra e céu com seus temores,
de ideia mudará e já comigo
Roma vai proteger, povo togado,
e tempo chegará, lustros depois,
em que domine a casa de Assáraco
a famosa Micenas e Ftia
a que se juntará Argos vencida.
De pulcra origem vai nascer-vos César,
César Troiano, que dilatará
Império até ao Mar e Fama aos Astros,
do grande Iúlo Júlio j á chamado.
Segura em paz, receberás no céu
quem chega carregado de despojos
que trouxe do Oriente e que invocado
será por todos que na Terra ficam.
Posta de parte a guerra, já os tempos
abrandarão de todo. A branca Fé,
Vesta, Quirino o seu irmão que é Remo
serão quem dá as leis, as duras portas
da Guerra fecharão férreas junções .
Ímpio ânimo de raiva furiosa
dentro estará sentado em cruas armas
e preso atrás das costas por cem nós
que são de bronze e que tremente o põem,
todo eriçado e com sangrenta boca. >>
Assim Júpiter fala e das alturas
manda o filho de Maia a que os castelos
nas terras se abram de Cartago-a-Nova,
hospitaleiros sejam aos Troianos,
para que Dido, sem saber dos Fados,
os não afaste do que são seus reinos.
Lá vai ele voando pelo espaço,
batendo as asas como remo em vaga,
rápido chega aos litorais da Líbia.
Cumpre as ordens que traz e logo os Púnicos
põem de lado o mau humor que têm
148 VIRGÍLIO

já que um deus seu querer nítido mostram,


com a rainha à frente de alma aberta.
O piedoso Eneias que na noite
a tanto pensamento se entregava
resolveu-se a sair logo que a luz
criadora do dia se mostrou,
para ver o que havia em lugar novo,
a que outras costas o levara o vento
e quem nelas habita, feras, homens,
que tudo está inculto, para então
aos companheiros informar da terra.
Se esconde a frota num abrir de rocha
que bosques cercam de mistério e sombra ;
sobe só com Acates, vai armado
de dardo apenas mas com ferro largo.
E, de repente, lhe aparece a mãe
com todo aspecto de espartana moça
ou como quando Harpálice da Trácia
faz correr seus corcéis ultrapassando
as voadoras ondas do rio Hebro ;
como elas suspendera um arco ao ombro,
de caçadora a cabeleira ao vento,
nus os joelhos, com um nó apenas
a segurar a pregueada túnica.
Falou ela primeiro : « Olá, seus moços,
não vistes por acaso uma irmã minha
andando por aí, carcás à cinta,
um abrigo de lince todo às malhas,
ou fazendo correr com os seus gritos
um javali de boca espumej ante ? »
À s palavras d a deusa assim responde
o que da própria Vénus era filho :
«Dessas tuas irmãs não vi nenhuma,
nenhuma ouvi. Mas quem és tu, senhora,
não tens rosto mortal e tua voz
não soa como soa voz humana.
Decerto deusa és tu. Irmã de Febo ?
Ou serás mais de geração de ninfas ?
Quem quer que sejas, vê se nos ajudas,
e se nos dizes onde estamos nós,
a que parte do mundo nos lançaram.
Não sabemos que são estes lugares
ENEIDA 149

nem que gente há aqui ; vamos errando


impelidos por vento e vastas vagas.
A ti por nossa mão ante os altares
muita vítima iremos ofertar-te. >>
Vénus então : «Não sou decerto digna
de honra tão grande porque é só costume
de moças tírias este usar de aljava,
de púrpura em coturno nos calçarmos.
Púnico reino é este que tu vês,
os Tírios e cidade de Agenor,
mas Líbia é o país, de estranha raça,
de têmpera guerreira. Mas a rainha
é Dido, a que saiu da terra tíria
fugindo a seu irmão. Muita aventura
e grandes injustiças ; mas irei
contar-te só por alto o que ali houve.
Siqueu era o marido, rico em terras
dos reinos da Fenícia e que adorava
a mulher, infeliz, que o pai lhe dera
virgem ainda. Mas quem tinha Tiro
era Pigmalião, um criminoso
capaz de superar a qualquer outro.
Brigaram os dois homens entre si,
o ímpio a Siqueu vence, inesperado
o mata ante os altares sem pensar
nessa paixão que irmã por ele tinha.
Por muito tempo o que está feito oculta
vã esperança àquele amor engana.
Mas, uma noite, de insepulto esposo
vê ela o vulto, o descorado rosto,
ante o sangrento altar, vê desnudar-se
o peito pelo ferro atravessado,
se lhe revela o crime cometido.
Persuade Siqueu que a fuga apresse
e que abandone a pátria; como ajuda
para a viagem mostra-lhe enterrado
o tesouro que em vida acumulara.
Prepara Dido a fuga, chama amigos
e logo acorrem todos que ao tirano
odiavam de morte ou o temiam.
Apanham um navio que por acaso
já preparado estava, de ouro o enchem
1 50 VIRGÍLIO

que avaro Pigmalião podia ter.


E tudo organizado por mulher.
Com o navio chegaram ao lugar
onde agora se vê, muro alteroso,
surgir o forte de Cartago-a-Nova
na terra que compraram, daí Birsa,
e só o que podia recobrir
uma pele taurina. E quem sois vós,
de que terras chegais, por quais lugares ? »
Eneias suspirou, logo à s perguntas
respondendo arrancou do fundo peito
as seguintes palavras : «Deusa minha,
se tudo for contar desde o princípio
e se tiveres tempo de me ouvir,
antes que termine eu Vésper virá
para Olimpo cerrar e fechar dia.
Tendo partido nós da velha Tróia,
um nome que talvez tenhas ouvido,
e tendo atravessado muito mar,
viemos nós parar à costa líbia
por um desses caprichos de tormenta.
Sou eu Eneias cuja piedade
é conhecida pelos céus afora
e comigo trouxe eu nestes navios
os meus Penates que arranquei à força
da mão dos inimigos. Quero Itália,
terra de meus avós e sou da raça
que do supremo Júpiter descende.
Duas vezes dez naus tinha esta armada
quando nela entrei eu no mar da Frígia,
a deusa minha mãe traçava a rota
comigo obedecendo a todo oráculo.
Sete navios restam, maltratada
foi a frota das vagas e do vento .
Desconhecido agora, sem ter nada,
este deserto líbio vou correr,
repelido por Á sia e por Europa. >>
Não suportando Vénus mais lamentos
assim interrompeu as suas quetxas :
« Sej as tu o que fores, não creio eu
que tenha sido a cólera dos deuses
que te dê respirar, viver ainda,
ENEIDA 151

pois que chegaste a uma terra una.


Avança pois, e vai até à porta
da casa da rainha. Teus amigos
para aqui se dirigem, Aquilão
mudou o rumo para tua frota
te ser restituída, pois decerto
não deixaram meus pais de me ensinar
artes de augúrios . Olha-me esses cisnes,
são duas vezes seis e vão contentes
de irem voando juntos quando, há pouco,
ainda os dispersava ave de Jove
que de alto se lançou em céu aberto .
Em fila vêm eles como j á
tomando posse duma terra sua.
Assim como eles batem asa em festa,
dada uma volta ao pólo, e como cantam,
assim também virão os teus navios
com j ovens tripulantes bem contentes
de estar em porto ou de, com vela panda,
irem atravessando breve entrada.
Avança também tu. Basta que sigas
o caminho que se abre à tua frente. >>
Disse a deusa e voltou-se ; ao afastar-se,
fulge-lhe a rósea nuca da cabeça,
desprendem os cabelos perfumados
divino odor de ambrósia. Até aos pés
da túnica se solta toda prega.
Passos de deusa dá e vê Eneias
com quem tinha falado e lhe fugia:
«Oh como és tu cruel com teu filho,
como brincas com ele em falsa imagem,
como pudeste negar mão à mão
e não deixaste que voz verdadeira
à minha, que é verdade, respondesse ? >>
Assim se queixa, mas se dirige ele
para a cidade. Só que a deusa, então,
encobre os dois com um mantéu de névoa
de modo que ninguém desse por eles,
neles tocasse até ou perguntasse
o que andavam fazendo por ali.
Quanto a Vénus, a Pafo se dirige,
pelo céu chega e se revê contente
1 52 VIRGÍLIO

no seu palácio, com os seus altares,


são mais de cem, onde se vai queimando
incenso de Sabá, onde se exala
fresco perfume de grinaldas frescas.
Chegam os dois troianos ao lugar
que, da colina, dominava a terra
e fronteiro ficava à fortaleza.
Admira Eneias o conjunto imenso
que fora outrora um aduar somente,
as portas, o ruído, os pavimentos.
Todo o Tírio trabalha com ardor,
parte deles tratando das muralhas,
de erguer a fortaleza, rolam pedra,
outros escolhem um lugar de casa,
cada qual cercando duma vala.
Instituem as leis, os magistrados,
senado venerando, cavam portos,
assentam alicerces de teatro
e vão talhando em rochas as colunas
que formarão mais tarde seus cenários.
São como abelhas com o mato em volta
quando trabalham com um sol que abriu,
trazem fora seus filhos já crescidos,
juntam nos favos o perfeito mel,
de outras recebem cargas ou, em guerra,
afastam das colmeiras tonto zângão .
Trabalho ferve, do fragrante mel
se desprende perfume de tomilho.
«Gente de sorte, até muralhas tem.>>
Eneias assim fala, olha a cidade
e, depois, envolvido em sua nuvem
a todos vê sem que ninguém o veja.
No meio da cidade havia um bosque
de proveitosa sombra em que esses púnicas
tinham do chão tirado bom sinal
que lhes mostrara um dia a régia Juno :
um fogoso focinho de cavalo.
Fornecida de tudo que é preciso,
a todas pela guerra incomparável
lhes seria a nação por todo o tempo.
Dido de Sido aí elevaria
por honra à deusa Juno um templo enorme,
ENEIDA 1 53

das ofertas do povo na riqueza,


na riqueza de excelsa padroeira :
no cimo de degraus havia vigas
por bronze presas, limiar de bronze,
brônzeas portas em suas dobradiças
estridentes girando. Foi aqui
que, por pnme1ra vez, sem esperar,
viu Eneias o que lhe amansou dor
e lhe deu esperança de salvar-se,
de para trás deixar a sua angústia.
Foi quando examinava em pormenor
aquela maravilha, ao aguardar
que a rainha chegasse, que ele viu
em obra harmoniosa dos artistas,
resultado de todos os trabalhos,
o seguente apresentar das lutas
que em Ílio houvera e já levara a fama
ao mundo inteiro, os Atridas e Príamo,
com Aquiles a todos tão funesto.
Parou e disse, a tempo que chorava :
<<Será que existe, Acates, um lugar
que não saiba o que foram os trabalhos
por que todos tivemos que passar.
Eis Príamo. Aqui mesmo assim o louvam,
as tristezas do mundo as almas tocam.
Não tenhas medo, pois também a ti
a fama te dará a salvação. >>
Assim diz, o consola a vã pintura
e com suspiros se lhe inunda o rosto
dum largo rio de choro porque via
como dum lago iam fugindo os Gregos
sob a pressão da juventude em Tróia
e como de outro lado Aquiles vinha,
com seus penachos combater os Frígios.
Não muito longe reconhece em lágrimas
níveas tendas de Reso que traídas
por um primeiro sono devastava
o filho de Tideu sangrando morte
e desviando a seu acampamento
os fogosos cavalos sem deixar
que de Tróia tomassem gosto ao pasto
e bebessem das águas do rio Xanto.
1 54 VIRGÍLIO

Por outra parte ia fugindo Troilo


com as armas perdidas, pobre jovem,
tão desigual em luta com Aquiles,
e que lá ia a rastos pelo chão,
mas sem largar as rédeas de seu carro,
lança a traçar um sulco na poeira.
Entretanto ao templo duma dura Palas,
solto o cabelo viam-se as Ilíades
passar em suas súplicas, batendo
os magoados peitos com as mãos,
enquanto a deusa, não querendo vê-las
os olhos desviava para o chão.
Por três vezes, à volta das muralhas,
havia Aquiles arrastado Heitor,
só por dinheiro a Tróia oferecendo
o corpo já sem vida do guerreiro.
Um profundo gemido solta Eneias
quando vê os despojos, vê o carro
e vê o próprio corpo desse amigo
e Príamo a erguer as mãos inermes.
A si próprio se vê, ele, envolvido
com príncipes aqueus e com as forças
que são de Aurora ou até com armas
que o negro Mémnon para ali trouxe.
Fera Pentesileia é quem chefia
batalhões de Amazonas com escudos
em jeito de crescente ; entre milhares
vai ela andando, sustentado o seio
por um boldrié de ouro, e combatendo,
ousada virgem, tão viris heróis.
Enquanto tudo Eneias, o Dardânio,
maravilhado vê, sem. se mover,
chega a rainha Dido, a mais formosa,
ao templo em que ele está, acompanhada
por sua larga, jovem comitiva.
Tal como no Eurotas, pelas margens,
ou nos altos do Cino vai Diana
a chefiar seus coros, mil Oréades
que por todo o percurso se juntaram,
assim vem ela, com alj ava ao ombro,
superando ao andar aquelas deusas,
comovendo Latona em seu silêncio,
ENEIDA 1 55

assim estava Dido, radiosa,


naquela multidão que ela incitava
a trabalhar para o futuro reino.
Ante as portas da deusa, a meia nave,
tomava seu lugar, armas à volta
e sentada num trono que se impunha.
Aos homens concedia leis, direitos,
distribuía as fainas de trabalho,
ou todas justas ou tirando à sorte
quando súbito Eneias vê chegar
no meio de mais gente Anteu Sergesto
o valente Cloanto, outros troianos,
que turva tempestade dispersara
por todo o mar e por longínquas costas.
Interditos, Eneias com Acates
são feridos de medo e de alegria,
ardendo os dois por lhes darem as mãos
mas perturbados pelo estranho encontro.
Conseguem dominar-se e ficam vendo
do interior da nuvem que os reveste,
a si se perguntando qual a sorte
que pode ter cabido aos companheiros,
em que costa estarão os seus navios
e para que terão chegado ali,
pois que, escolhidos entre os nautas todos,
pedindo acolhimento ali vieram
e para o templo se iam dirigindo.
Depois que entraram e lhes permitiram
que falassem em público, assim disse,
com toda a calma de alma, Ilioneu,
o mais velho de todos : << Ó rainha,
a quem deu Júpiter o poderes tu
criar nova cidade e refrear,
com normas de justiça, ambiciosos,
a ti pedimos nós, pobres Troianos,
que o vento tem levado a todo o mar,
que não permitas que navios nossos
sejam presa de fogo abominado,
nos poupa, pois que somos piedosos,
mais de perto examina nosso estado.
Não vimos devastar Penates líbios
nem levar para a costa o que roubarmos,
1 56 VIRGÍLIO

não nos domina força alguma dessas


nem há soberba tal em derrotados .
Há u m lugar que Grego chama Hespéria,
a terra antiga poderosa em armas
e na fecundidade de seus campos.
Viveram lá Enótrios mas agora,
ao que se conta, uns outros mais recentes
do nome dum seu chefe Itália dizem.
Para ali nos trazia nosso rumo
quando por sobre as ondas se estendeu
nebuloso Oríon e nos lançou
a fundos invisíveis sob as vagas
que temerosos Austros dominavam
e para todo lado nos jogaram.
E para aqui, a vosso litoral,
só uns poucos chegámos. Mas que raça
é esta de homens ? Pátria existirá
que tão brutos costumes se permita ?
Não deixam descansar sequer na areia,
à guerra movem, não rremos mesmo
parar um pouco na primeira terra.
Se humanos desprezais e se temeis
as armas de mortais, não esqueceis
que lembram deuses o que é bem e mal.
Nosso rei era Eneias, jamais houve
alguém mais justo, alguém mais piedoso,
alguém melhor do que ele em arma ou guerra.
Se os destinos o poupam, se aura etérea
ainda lhe dá vida, e não repousa
entre as sombras cruéis, a nada temas,
não te arrependerás do que lhe prestes .
Temos ainda em terras da Sicília
armas, cidade, um ilustre Acestes
que é de sangue troiano. Se nos deixas
que em terra reparemos nossa armada
que os ventos fatigaram, que dos bosques
tábuas novas façamos, novos remos,
possamos para Itália navegar,
lá veremos de novo os companheiros
e de novo encontramos nosso rei,
todos alegres por Itália e Lácio.
Se, porém, salvação nos for negada,
ENEIDA 1 57

e se a ti, pai dos Teucros, já mar líbio


consigo tem ou se perdida está
esperança de Iúlo, pelo menos
teremos nós as águas da Sicânia
e lugar de viver, daqui partindo,
e de nós todos rei será Acestes. >>
O disse Ilioneu, logo os Dardânios
com ele o murmuraram todos j untos.
Baixando o rosto lhes diz Dido então
numas poucas palavras : «Todo o medo
de vosso coração largai, Teucros,
não tenhais mais cuidados. O ser novo
este reino que é meu me dificulta
a tarefa que tenho e que me leva
a pôr-lhe guarda em tudo que é limite.
Desse povo de Eneias quem não sabe,
quem não sabe de Tróia e dos heróis,
de seu valor e da funesta guerra?
Nós Púnicos não temos mente dura,
nem quando o Sol atrela seus corcéis
evita ele a cidade que é de Tira.
Que sej am vossos votos pela Hespéria,
ou por satúrnios campos, ou por Érix
com o seu rei Acestes, sereis vós
defendidos por mim quando o quiserdes,
com toda a necessária ajuda minha,
quereis ficar no reino, iguais a mim ?
A cidade que elevo é toda vossa,
Troiano ou Tírio, para mim o mesmo.
Bom seria que até chegasse Eneias,
o próprio rei que é vosso, pelo Noto
impelido para este litoral.
Posso até mandar eu homens seguros
que vão por todos os confins da Líbia
a ver se aqui chegou e se perdido
andará pelos bosques ou cidades . >>
Muito animados por palavras tais,
ardiam pai Eneias, forte Acates
por da nuvem se verem libertados .
Fala primeiro Acates a Eneias :
«Já que és filho de deusa, que decides ?
Tudo fora é seguro, armada ou homens,
158 VIRGÍLIO

faltando apenas um, nós próprios vtmos


como nas vagas ele se afundava,
de tua mãe se cumprem as palavras. >>
Logo que ele isto disse, de repente
cindiu-se a nuvem, ficou ar aberto,
com Eneias de pé na pura luz,
a face, os ombros como se um deus fora,
lhe punha a mãe a cabeleira bela,
lhe dava um brilho púrpura de jovem,
aos olhos a alegria de nobreza.
Como a beleza que um artista junta
a peça de marfim ou pode dar
ouro à prata ou à pedra que é de Pafo .
Se dirige à rainha, havendo à volta
a surpresa geral, assim lhe diz :
<<Aqui estou eu, presente como queres,
eu, Eneias de Tróia, ressurgido
de águas da Líbia e perante quem
sozinha teve pena das desgraças
que sofreu Tróia e de que nós, uns poucos,
pudemos escapar, nada sendo hoje,
de tudo desprovidos, acolhidos,
porém, por ti, nesta cidade tua
e, como companhia, em tua casa.
Não podemos, ó Dido, agradecer-te
nem o pode jamais Dardânia gente
dispersa pelo mundo como está.
Queiram os deuses, se poder existe
que esteja atento às almas piedosas,
se há lugar de justiça, se há um peito
que estej a aberto ao bem, queiram dar-te eles
as recompensas, Dido, de ti dignas .
Feliz o tempo que te viu nascer !
Felizes pais os que te deram vida!
Enquanto rios correrem para o mar,
enquanto houver pelas colinas sombras,
enquanto o pólo sustentar estrelas,
sempre terás tu honras, sempre o nome
te será conhecido, o teu louvor
todos tributarão, quaisquer as terras
que por mim tenham de chamar ainda . >>
Assim tendo falado, a mão direita
ENEIDA 1 59

estende ele ao amigo Ilioneu,


para Seresto a esquerda, após os outros,
o forte Gias, o forte Cloanto .
Bem surpresa ficou Dido Sidónia
quando primeiro o viu, depois
mais interdita ainda ante a desgraça;
por fim lhe diss e : « Como pode, Eneias,
o filho duma deusa assim passar
por perigos tão grandes, que destino
te persegue funesto, qual a força
q ue te lançou a nossas bravas praias ? >>
E o que diz, e logo ao mesmo tempo
ao palácio real leva Eneias,
ordena celebrar graças aos deuses.
Não deixa de enviar aos companheiros
que na praia ficavam vinte touros,
mais cem porcos de dorso nada belo,
mais cem gordos carneiros com as mães,
presentes de festejo pelo dia.
Tudo luxo real no palácio
em que lauto banquete se prepara,
são os panos os de arte realçada
por púrpura soberba, pelas mesas
a prata em quantidade com, em ouro,
os cinzelados feitos dos avós,
a longuíssima série de proezas
que há na história de raça tão antiga.
O paternal amor que sente Eneias
não deixa que não mande a seus navios
Acates que lhe traga o filho Ascânio,
com ele o ponha dentro da cidade,
ordenando em seguida que lhe dêem
o que pôde salvar do que foi Tróia,
um manto todo inteiriçado de ouro,
mais um véu em que outrora se bordara
um realce de acanto açafroado,
tudo trazido um dia de Micenas
pela Helena de Argos quando vinha
a se casar, o que não houve, em Pérgamo,
maravilhoso dom que lhe ficara
de Leda, sua mãe, e mais um ceptro
que era de Ilíone, filha de Príamo,
1 60 VIRGÍLIO

com um colar de pérolas que junto


trazia uma coroa redobrada
de pedraria e de ouro. O que, correndo,
foi Acates levar para os navios.
Citereia, porém, pensa e repensa,
novas ideias, novos artifícios
de modo a ser Cupido, não Ascânio,
mas com feições de Ascânio, o que apareça
no palácio real e com seus dons
apaixone a rainha e lhe inflame
o coração do mais ardente amor,
pois teme, com efeito, a casa incerta,
o povo tírio de forjada fala
e, tão grande tormento, é Juno hostil,
com, mais a mais, a noite de permeio.
Ao Amor, deus alado, fala então :
«Filho que és minha força, meu poder,
tu que desdenhas os tifeus dardos
que são do pai supremo, a ti venho eu
com flor e sombra em perfumado enlevo. »
Já então vai Cupido, obediente,
deixar aos Tírios seus reais presentes,
todo contente pela mão de Acates.
Ao chegar, Dido vê em leito de ouro
defendida por toldo maravilha
da luz, calor do sol, e no momento
entra também Eneias com guerreiros
se deitando cada um em pano púrpura.
Trazem fâmulos água, em cestos Ceres,
juntamente macios guardanapos.
Mais para dentro cinquenta moças
dispõem o serviço, lume acendem
diante dos Penates . Outras cem,
com uns criados de uma igual idade,
trazem os pratos da comida, copos.
Vem também muito tírio de ar festivo
a quem fazem deitarem-se em bordados,
que os presentes de Eneias elogiam,
que ante tudo se ficam como em êxtase,
tomados, pelo rosto tomados, pois é deus,
e por suas palavras estudadas,
pelo manto de acanto açafroado.
ENEIDA 161

Mas já entregue ao mal que há-de chegar


não descansa a Fenícia no seu peito,
perante o que sucede afogueada,
no gosto do menino e dos presentes.
Abraçado ele a quem não é seu pai
de amá-lo se dá jeitos, depois corre,
se dirige à rainha, fascinada
pelo que vê, pelo que sente na alma.
Acaricia-o Dido, e sem saber
que poderoso deus a está tomando.
Sempre lembrado da Acidália mãe,
a pouco e pouco faz que j á Siqueu
deixe de estar presente ; um coração,
em paz há tanto tempo é ocupado
por vivo amor que de surpresa o prende.
Primeira pausa, mesas se levantam
e nas crateras se coroa o vinho,
tudo ressoa com as altas vozes
e pelas salas o barulho voa,
acesos lumes pendem das paredes,
archotes vencem com a chama a noite.
Pede então a rainha a grande taça,
toda ouro e pedras, onde bebeu B elo
e, depois dele, todos ; no silêncio :
<<Dizem, Jove, que és tu o deus que dá
aos hóspedes que temos suas leis,
seja, pois, este dia que nos junta
feliz a Tírios, a quem vem de Tróia,
para sempre lembrado no futuro.
Baco estej a connosco, a boa Juno,
e vós, Tírios, a festa celebrai
que nos reúne assim nesta alegria. »
Falando assim deixa cair na mesa
gotas de libação e, tendo-o feito,
é a primeira a levantar a taça,
a passá-la nos lábios, logo a dando
para beber a Bitias que, sem mais,
já que se enchera o vaso, bebe à larga,
depois os outros chefes. É Iopas,
o de longos cabelos, o que tange
cítara de ouro e lhe foi mestre um Atlas .
Canta ele a lua errante mais trabalhos
1 62 VIRGÍLIO

que competem ao sol, daí vindo


a raça humana, o gado, a chuva, o fogo,
mais Arcturo ou as Híadas chuvosas
com os gémeos Triões, ou o motivo
por que tanto se apressa o sol de Inverno
a mergulhar no mar ou que se opõe
às noites que demoram a chegar.
Dobra aplauso o Tírio e vai Troiano atrás.
Assim passava a noite conversando
Dido infeliz que tanto amor bebia,
perguntava de Príamo e de Heitor,
como de Aurora o filho vinha armado
e que cavalos tinha Diomedes
e de quanta grandeza Aquiles era.
«Vai mais longe, meu hóspede, me fala
dessas perfídias gregas, das desgraças
que sofreram os teus, de vosso errar,
porque já uns sete anos se passaram
nesse correr de terras e de mares. »
Todos ficaram e m silêncio, atentos.
Então o pai Eneias assim fala
do leito em que sentara para a festa :
<<Mandas, rainha, que eu renove a dor,
de como os Dánaos derrubaram Tróia,
destruíram seu reino, vi tristezas,
delas participando em muita volta.
Quem é que deixaria de chorar,
mesmo que fosse Mírmidon ou Dólope,
soldado próprio do cruel Ulisses.
Já há, porém, no céu húmida noite,
descem os astros e nos chama o sono.
Mas tentarei, rainha, já que queres
saber dos sofrimentos que houve em Tróia,
mas a verdade é que minha alma treme
como fugindo de lembranças tais.
Batidos pela guerra e seus destinos,
j á passado tanto ano, vão os chefes
dos Dánaos retirando, quando Palas
lhes fornece a ideia de um cavalo
que constroem de altura de montanha
com um corpo de abeto aos tabuões.
O que se diz é que o devotam eles
ENEIDA 1 63

à intenção que têm de ir embora.


À sorte escolhem seus melhores homens,
aí dentro os encerram, nos costados,
e de soldados enchem todo o ventre.
Fica ali mesmo à vista uma ilha, Ténedos,
de todos conhecida e rica em bens
enquanto teve Príamo seu reino ;
agora é só baía, e mau abrigo
para todas as quilhas que se arrisquem.
Passaram para lá e se esconderam
do lado que é deserto, e nós julgando
que já tinham partido e, sob o vento,
vogado para os lados de Micenas .
Toda a nação troiana, já liberta,
abre de par em par as suas portas,
todos saem a ver o campo dório,
o lugar sem ninguém, a vácua praia.

Aqui havia os batalhões dólopes,


ali erguia Aquiles sua tenda,
aqui surgia a frota, ali combates.
Uma porção de gente vai pasmar
diante do cavalo formidável
à virgem que é Minerva consagrado.
É Timestes então quem nos exorta
a trazê-lo ao de dentro das muralhas,
talvez fosse traição, talvez somente
o destino de Tróia assim quisesse.

Mas Cápis, e com ele os mais sensatos,


era antes por lançar-se o monstro ao mar,
oferenda suspeita, insídia grega,
ou pôr-lhe fogo então, cavar-lhe o ventre.
A multidão, porém, incerta estava.
Então, à frente mas com bando atrás,
da cidadela vem Laocoonte
que, de bem longe, furioso grita :
" Compatriotas, que loucura é essa,
julgais que o inimigo foi embora,
q ue há oferta de gregos inocente ?
E dessa espécie que julgais Ulisses ?
Ou há aqueus metidos ali dentro
ou é engenho para, das muralhas,
espiar nossas casas e de cima
1 64 VIRGÍLIO

nesta cidade nossa penetrar.


Qualquer coisa há ruim, não acredito
que não enganem Dánaos com presentes. "
E , tendo assim falado, vem, arroja
com toda a força a lança que ao cavalo
acerta no costado, nas junções ;
vibrando se prendeu e se escutaram
de dentro da barriga sons profundos.
Se os destinos dos deuses não tivessem
com a nossa loucura atordoado
aqueles que ali estavam, logo nós
quebrávamos aquele esconderijo.
Ainda hoj e de pé estaria Tróia
com de Príamo altivas as muralhas.
Nesta altura, porém, trazem pastores
que dardânidas eram para o rei
um homem de mão presa atrás das costas
que ninguém conhecia e que viera
de propósito abrir Tróia aos Aqueus .
Firme de alma, disposto para tudo,
ali vinha ele com as suas manhas
ou a morrer de morte mais que certa.
Troiana juventude, ao vê-lo assim,
de todo o lado chega em confusão
a divertir-se com aquele preso.
Me vê agora como são os Dánaos
e só por este crime pensa os outros.
Mal parou olhando a toda a volta,
desarmado ele viu as tropas frígias :
" Que mar, que terras me receberão,
agora que não dão quartel os Dánaos
e que, ainda por cima, os da Dardânia,
contra mim todos, vêm exigir
que, executado, lhes dê eu meu sangue ? "
Esta queixa nos fere o coração
e toda a raiva abate dentro em nós.
Exortamo-lo então a que nos diga
· de que sangue nasceu, que nos traz ele,
e porque tem, já preso, tal ousar.
" Sim, meu Senhor, a ti tudo direi,
com inteira verdade, haja o que houver;
não negarei que sou de gente argólica
ENEIDA 1 65

e que se a Sorte desgraçou Sínon,


não o tornou traidor e mentiroso.
Não sei se já ouviste alguma vez
falar de Palamedes, que era filho
de Belo e que ganhou ilustre nome.
Estando ele inocente da traição
que uma falsa notícia propalou
à morte o condenaram os Pelasgos,
só porque ele se opunha àquela guerra,
hoje, porém, o choram já sem luz.
Porque parente e como companheiro
a ele me mandou meu pai, pois pobre,
para que nesta terra combatesse.
Enquanto vivo foi, firme no reino,
ouvido nos conselhos soberanos,
também tivémos nós a nossa fama.
Depois que os ódios do traidor Ulisses,
como todos o sabem, o tirou
do mundo cá de cima, também eu
sofri na escuridão e na tristeza
com a desgraça de inocente amigo.
Louco, não me calei e prometi
que se um dia voltasse vencedor
a Argos minha pátria o vingaria
se o meu destino assim o permitisse.
Com todo este falar levantei ódios
que foram o princípio de meus males.
Ulisses me inventava novos crimes,
espalhava no povo falsos ditos
e forças procurava contra mim.
A tudo teve com apoio de Calcas.
Mas para quê hei-de eu continuar?
Para quê demorar no conto ingrato ?
Se pensais ser o mesmo todo aqueu
já é mais que bastante o que escutastes ;
passai já ao castigo, é o que quer
esse homem de ltaca, é o que também
vos trará recompensa dos Atridas. "
Nos fartámos então d e interrogar,
de procurar as causas de tudo isto,
por não sabermos nós de tanto engano
e das manhosas artes dos Pelasgos.
1 66 VIRGÍLIO

Logo continuou como tremendo


aquele peito cheio de mentiras :
"Quiseram esses Dánaos muita vez
bater em retirada, deixar Tróia,
cansados, desistir da longa guerra.
Oxalá o tivessem eles feito,
só que sempre os teve a tempestade
e sempre Austro aterrou os retirantes,
e foi principalmente só depois
que se fez o cavalo de madeira
que rugiram as nuvens pelo céu.
Inquietos, mandámos fosse Eurípides
interrogar oráculo de Febo ;
quando voltou do santuário do deus
estas tristes palavras nos soltou :
'Pelo sangue acalmastes vós os ventos
quando em praias ilíacas saltastes.
Para daqui saírdes tereis vós
de sacrificar agora vida argiva
como virgem matastes ao chegar. '
Quando entra nos ouvidos a palavra
o mais profundo de alma fica frio
e corre pelos ossos um tremor ;
quem a o destino vai obedecer
para que Apolo fique satisfeito ?
Na confusão avança então o de Í taca
leva Calcas, o vate, para o meio
e lhe exige dizer que quer o deus
a tempo que já muitos murmuravam
da armadilha tramada contra mim
e suspeitavam do que já viria.
Dez dias escondido fica o vate
sem revelar quem deve ir e morrer.
Por fim movido porque insiste o Í taco
ao combinado vai e me designa.
Tudo esteve de acordo e o grande golpe
que era o temor geral logo aceita
por recair sobre este desgraçado.
Quando o maldito dia já chegava
me prepararam para o sacrifício,
fitas na fronte mais farinha e sal.
Confesso que fugi, fui bem feliz,
ENEIDA 167

todo o laço quebrei que me prendia,


me escondi num paul cheio de lama
até que desferrassem, se o fizessem.
Toda esperança se desfaz agora
de ver j amais a minha antiga pátria,
queridos filhos, suspirado pai,
talvez penas lhes dêem por fugirmos,
talvez com morte expiem minha culpa.
Se pelos deuses, pelos veros numes
ainda há nos mortais alguma fé,
apiedai-vos de infeliz coitado. "
Tanto chorou que vida nós lhe demos
em tudo o ajudámos que possível.
Primeiro ordena Príamo tiremos
as mãos de cima dele e as algemas
com amigas palavras lhe dizendo :
"Quem quer que sejas tu, esquece os Gregos,
para ti se perderam, és dos nos soo ;
responde com verdade ao que pergunte :
Fizeram para quê este cavalo ?
Quem foi que o inventou ? E que é que querem ?
É isto um voto ou máquina de guerra ? "
Isto dito levanta o outro a s mãos
já libertas de ferros e, sabido
nas manhas e nas artes dos Pelasgos,
assim falou: "Ó vós, fogos eternos,
ó poder que sois vós, inviolável,
sede meus testemunhos, vós, altares,
LIVRO II

Vós espadas malditas que evitei,


vós, ó fitas divinas de ser vítima,
agora é permitido escapar eu
à sagrada promessa feita aos Gregos,
agora poderei eu revelar
o que esconderam eles, lei alguma
me prende já agora a meu país .
Tens só que respeitar tuas promessas
e Tróia, uma vez salva, me acredite
porque te vou dizer sempre a verdade
e grande recompensa te darei.
Dos Dánaos esperança e confiança
nesta guerra que sobre si tomaram
sempre de Palas veio, de seu apoio.
Depois, porém, que o filho de Tideu,
ímpio tão grande como o foi Ulisses,
quis arrancar do templo seu Paládio,
e chacinando toda a guarda os dois
e roubando em seguida a sacra imagem,
tendo ousado tocar as virgens fitas,
que à deusa pertenciam, mãos sangrentas,
aí ruiu toda esperança grega
como água que depois de ter surgido
à terra volta entrando e se escondendo :
deles se afasta o espírito da deusa.
Não foram dúbios os sinais tritonianos
logo que a estátua foi deposta em campo
chamas arderam em seu fixo olhar,
no corpo se espalhou suor salgado
e, por três vezes, um prodígio incrível,
sobre o solo saltou com seu escudo,
ENEIDA 1 69

com sua lança trémula de fúria.


Logo diz Calcas que devem partir,
que devem eles afrontar as ondas,
que Pérgamo não pode obedecer
se não forem a Argos por auspícios
e à pátria a deusa não restituírem.
Por amor a levam eles no cavado
das quilhas em que vogam e se já
com ventos favoráveis arribaram
a Micena dos pais aí ajuntam
suas armas e deuses companheiros,
e , de novo os abismos franqueados,

aqui virão sem que ninguém espere.


Assim esses sinais entendeu Calcas.
Aquilo que ali está o construíram
a conselho do vate reparando
ofensa que fizeram ao Paládio,
efígie de expiar o sacrilégio.
Prescreveu ele que lhe levantassem
máquina enorme de ligadas traves
que ao céu chegasse para não poder
qualquer de vós metê-la pelas portas,
trazê-la para dentro das muralhas
e proteger asstm o vosso povo
com a guarde de antiga piedade.
Diziam que, se profanásseis vós,
oferta que faziam a Minerva,
grande ruína sobre vós caía,
queiram os deuses que presságio tal
seja do lado deles, não do vosso,
fim do reino de Príamo e dos Frígios.
Se a tivésseis levado para Tróia,
Ásia em total contra vós viria
a combater de Pélops os muros
e ficaria até igual destino
suspenso sobre vossos descendentes. "
Tudo isto acreditando pelos jeitos
manhosos e perjuros de Sínon
por lágrimas fingidas se perderam
aqueles que não foram dominados
em dez anos de luta por Aquiles,
o larisseu Aquiles, por Tidida
1 70 VIRGÍLIO

ou pelas numerosas naus da frota.


Outro caso mais grave, angustioso,
cai sobre os desgraçados que nós somos,
mais perturbando as almas já confusas.
Laocoonte, a quem a sorte dera
ser então sacerdote de Neptuno,
imolava em altar, o mais sagrado,
um fortíssimo touro. Mas de Ténedo,
pelas extensas águas do mar calmo,
vêm duas serpentes espantosas,
e com que horror te conto o que ali houve,
serpentes que se alongam nos abismos
e parelhas avançam para a margem ;
de peito levantado sobre as vagas,
de sangrenta cabeça sobre as ondas,
o corpo lhes desliza pelo mar
numa ondulada força de seus dorsos.
Ruidosas na espuma que levantam,
chegam a terra com olhar de chamas,
chamas e sangue, quando tudo lambem
com línguas de goelas sibilantes.
Exangues de pavor fugiram todos,
lá vão as duas para Laocoonte,
uma e outra serpente se enlaçando
nos corpos infantis de seus dois filhos
despedaçam, devoram os coitados,
depois, quando ele vai a socorrê-los
com as armas na mão, o prendem elas,
com seus anéis gigantes, duas vezes
lhe dão volta à cintura, no pescoço
se enrolam outras duas, escamosas,
e estão sobre ele de cabeça alçada.
Busca Laocoonte desprender
com toda a força seus horríveis nós,
já tem as fitas todas baba e sangue
e de negro veneno trespassadas,
ao mesmo tempo grita para os outros
com horrível clamor, igual ao touro
que mugindo se escapa dos altares
com machado suspenso do cachaço.
Fogem os dois dragões num só instante
para os templos que estão na cidade alta,
ENEIDA 1 71

a severa Tritónia já alcançam,


aos pés da deusa, sob o curvo escudo,
encontram finalmente seu abrigo.
Mas terror novo se insinua em peitos
que abalados estavam mais que nunca
e dizem todos que Laocoonte
merecia o que teve pois ferira
com seu dardo madeiro consagrado
e juntos gritam ter de se levar
aquela imagem para o santuário
e requerer a protecção da deusa.
As muralhas abrimos da cidade
que ficou sem defesa. No trabalho
todos participaram, pomos rodas
por debaixo das patas do cavalo,
lançamos-lhe ao pescoço estopa em cabo.
Pejada de armas passa o muro a máquina,
a máquina fatal. A toda a volta
as crianças e virgens cantam hinos
e contentes põem mão nas cordas,
Já lá desliza, avança, na cidade
aquela, para nós, dura ameaça.
Ó pátria, ó Í lion em que moram deuses,
ó dardânidas muralhas tão famosas
nas guerras que j á houve ! Quatro vezes,
mesmo no limiar, detém-se aquilo,
quatro vezes, no ventre, se ouvem armas .
Mas como vamos cegos, esquecidos
nesse nosso delírio, se continua,
se instala na sagrada cidadela
o monstro de desgraça que tomámos.
Cassandra dá ainda ao que é destino
a profética voz, mas o querer
dum deus impede que os Troianos ouçam.
Infelizes de nós, último dia
aquele para todos, mas cobrimos
de folhagens de festa, de alegria
os templos todos que a cidade tinha.
Roda entretanto o céu e surge a noite
do mar em torno, recobrindo a treva
a terra, o firmamento, com as manhas

dos Mirmídones. E nós, porém, Troianos,


1 72 VIRGÍLIO

todos deitados pelos baluartes,


entramos em silêncio porque o sono
se apodera de corpos tão cansados.
Já então a falange dos Argivos,
com os navios em muito boa ordem,
de Ténedo voltava no sossego
duma lua secreta, quando, súbito,
uma chama se ergueu na capitânia
assinalou a terra conhecida.
Então, coberto pela crua sorte
que os deuses nos destinam, vai Sínon
soltar os Dánaos que no ventre vinham ;
descerram-se os painéis, cavalo aberto,
se entregam eles aos nocturnos bafos,
alegres se libertam dos madeiros.
Esteleneu e Tessandro, dois dos chefes,
com o medonho Ulisses pendurados,
por uma corda descem do cavalo.
Vêm também Á camas e Toas,
com eles Neoptólemo Pelida,
Acão, Menelau e mais Epeu
que o artífice fora desse engenho.
Atiram-se à cidade mergulhada
no vinho que dá sono ; as sentinelas
são todas mortas ; pelas pandas portas
se mete a multidão dos companheiros,
se reúnem as tropas conjuradas.
Era esta aquela hora em que começa
para os pobres mortais primeiro sono
que por eles se infunde, dom dos deuses.
Me parece, sonhando, estar presente
diante de meus olhos triste Heitor
que dos olhos derrama farto pranto.
Exacto como outrora o vi na biga
recoberto de sangue e de pó negro,
de pés inchados presos por correias,
pobre de mim, como ele me aparece.
Tão diferente dum Heitor que volte
os despojos de Aquiles nos trazendo,
bem contente por ter incendiado
as popas dos navios que são dos Frígios,
com a barba encrespada com o sangue,
ENEIDA 1 73

colados os cabelos e todo ele


com os terríveis golpes que apanhou
em torno das muralhas dos avós.
Parece-me que eu próprio, tão choroso,
lhe falava primeiro e proferia
dolorosas palavras : " Luz Dardânia,
ó tu, forte esperança de nós Teucros,
que demoras puderam te reter,
de que margens vens tu, ó grande Heitor,
que j á há tanto tempo nos faltavas ?
Em que estado te vemos nós, depois
de já tantos dos teus terem morrido,
depois de tantos males terem vindo
sobre a nossa cidade, nossos homens,
e de estarmos nós próprios tão cansados ?
Que causa indigna pode perturbar
toda a serenidade de teu rosto,
porquê essas feridas que te vej o ? "
Nada m e responde ele e não s e fica
por estas vãs perguntas que lhe faço,
mas, num surdo gemido de seu peito,
me diz : " Ó tu que és filho de uma deusa,
vê se te salvas destas chamas todas,
nossas muralhas foram franqueadas,
dos altos da grandeza Tróia cai.
Já bastante se deu à pátria e Príamo.
Se Pérgamo pudesse defender-se
decerto se teria defendido.
A ti confia Tróia seu sagrado,
a ti confia Tróia seus Penates.
Leva contigo aqueles que os destinos
te deram companheiros de desgraça
para lhes construir fortes muralhas
depois que, percorrido o mar imenso,
lhes marques tu o ponto em que isso façam. "
Assim falou e m e mostrou nas mãos
as fitas sacras, Vesta, o fogo eterno
que de dentro do templo tirou ele.
Por toda a parte gritos de terror
se escutam na cidade mais e mais ;
mesmo da casa de meu pai Anquises,
apesar de mais longe e de atrás de árvores
1 74 VIRGÍLIO

se vai aproximando num tumulto


aquele horror das armas que se chocam.
Sacudo-me do sono e me levanto,
depois subo ao telhado, ouvido à escuta.
É então como se ao soprar do Austro
um campo se incendeia ou a torrente
que dos montes desaba tudo arrasta,
as ridentes searas, os trabalhos
que fizeram os bois, os grandes troncos ;
o pastor, assustado, que isto ouviu,
fica como pregado numa rocha.
Mas não há que hesitar, dúvida alguma,
é o feito de Aqueus que se revela.
A casa, a grande casa de Deífobo
se abate na vitória de Vulcano.
Como arde Ucalegonte, perto de nós.
Os passos do Sigeu visíveis ficam
nesse clarão de fogo que não pára.
Gritos de combatentes, as trombetas
que sempre estão tocando a tudo sobem.
Sem saber bem que faço pego as armas,
mas para que vão elas me servir.
Só o que há a fazer é juntar gente,
correr à cidadela, isto me impele,
a cólera, o furor acodem logo,
como belo será morrer lutando.
Eis que no mesmo instante dou com Panto
que se escapa correndo dos Aqueus,
Panto, o filho de Ótris, que é sacerdote
da própria cidadela e do deus Febo,
e que leva consigo o que é sagrado,
nossos deuses vencidos, puxa um neto
e se dirige para nossa casa.
"Em que é que estamos, Panto ? Que se passa
na nossa cidadela ? " Digo-lhe isto
e logo me responde num gemido :
"Veio o dia final, o termo certo
do temp o de Dárdano. Houve troianos,
houve Ilion, houve ingente o que nos foi
um orgulho de Teucros. Mudou tudo.
Para Argos o deu Júpiter. Os Dánaos
dominam a cidade incendiada.
ENEIDA 1 75

O cavalo vomita nas muralhas


tanto soldado. Vencedor, Sínon
os insultos mistura com incêndios.
Vão uns em massa contra as portas duplas,
milhares que vieram de Micenas,
como nunca vieram, mas há outros
que ocuparam os passos mais estreitos ;
uma frente de ferro que se opõe,
disposta a nos matar, mal os primeiros
guardas de porta estejam resistindo,
com cega militância. " Estas palavras,
as que o filho de Ótris me vai gritando,
enquanto sou levado para a guerra,
para as chamas da guerra pelos deuses,
pelo querer dos deuses contra nós,
e quem me leva é a funesta Erínis,
o barulho também, e todo o grito
que a terra inteira lança para o céu.
Junto de nós formam Rifeu, Épito,
de tão alta estatura sob as armas,
os dois surgindo do luar, da Lua;
também a nosso lado estão em grupo
Hípanis, Dimas e com eles Corebo,
o filho de Mígdon, o que chegara
a Tróia há poucos dias, por Cassandra
apaixonado sem limite algum ;
como genro trazia sua ajuda
a Príamo e aos Frígios, desgraçado
que não soube escutar de sua noiva
proféticas palavras. Mal os vi,
assim bem juntos, e com tanta audácia,
para irem ao combate, lhes disse eu :
"Mancebos, corações prontos a tudo,
se quereis realmente ser ousados,
olhai o que nos dá nossa Fortuna :
foram todos embora, abandonando
seus sagrados altares, com os deuses
que mantinham de pé o nosso Império,
e socorro trazeis a terra em chamas.
Vamos para a batalha, aqui morramos,
pois que, para vencidos, salvação
é só não se salvar de forma alguma. "
1 76 VIRGÍLIO

A valentia se lhes fez furor,


corno se fossem lobos predadores,
a raiva inarredável de seus ventres
os lançou para o fora de costume,
sabendo que seus filhos esperavam,
com a goela seca urna vitória ;
através de inimigos e de dardos
lá vamos nós para urna morte certa,
para as trevas que estão além da vida,
e para o centro mesmo da cidade,
corno se fosse em sombra, em noite escura.
Quem é capaz de dar no que disser
o sinistro que foram essas horas,
quem é que poderá com o seu pranto
igualar o tormento que ali houve ?
Rui a cidade antiga que tanto ano
a tudo dominou, e pelas ruas,
abatidos, no chão, corpos inertes,
corno por toda a casa ou limiar
que foi antes dos deuses. Mas não foram
também só os Troianos a pagarem
as culpas com seu sangue,
pois por vezes no peito dos vencidos
se renova a coragem, muito dánao,
apesar da vitória, ali acaba.
Por toda a parte só se vê desastre,
por toda a parte é o terror que reina,
por toda a parte a multiface da morte.
O primeiro que surge frente a nós
é Andrógeo com farta companhia,
corno não faz ideia do que encontra
j ulga que tem diante tropa amiga,
que dánaos somos e connosco fala
corno se fosse camarada nosso :
" Homens, andai, e que preguiça é essa?
Outros saqueiam Pérgarno e são outros
os que andam nos incêndios, vós, porém,
bem descansados vindes dos navios. "
Logo que estas palavras proferiu,
percebeu que caíra entre inimigos
por não entender nada das respostas
e reprimiu impulso, calou voz.
ENEIDA 1 77

Como homem que no mato pousa o pé


e por engano pisa uma serpente,
se abala, foge do mostrengo aquele
que colérico empina e todo se incha,
assim foi Andrógeo ao dar por nós,
procurando escapar de tal encontro ;
mas nós nos atiramos para a frente,
os cercamos armados, abatemos
os que de medo nem um passo davam .
E neste esforço nos sorri Fortuna.
Então Corebo que o triunfo anima
nos diz : "Amigos, já que a sorte ajuda,
tomemos o caminho que nos mostra
e que é mesmo o de nossa salvação ;
troquemos os escudos, avancemos
com as armas dos Dánaos como nossas . "
E tendo assim falado, o capacete,
penacho de Andrógeo para si toma,
como lhe tira o escudo com brasão
e à cinta cinge sua espada argiva.
Faz o mesmo Rifeu, depois o Dimas,
e bem feliz a nossa tropa toda
revestindo os despojos. E lá vamos,
misturados aos Dánaos e com deuses
que de modo nenhum eram os nossos.
Combatemos durante a noite inteira,
aquela negra noite de batalha,
para o Orco mandamos muito dánao.
Outros fogem correndo para a frota
ou procuram na costa segurança ;
outros ainda, em vergonhoso medo,
vão outra vez para o cavalo enorme,
se lhe escondem no ventre que afinal
já conhecem tão bem da permanência.
Mas, ai de nós, pois se estão contra os deuses,
nada adiante confiar-se neles.
Lá iam arrastando, esparsa ao vento,
desfeita a cabeleira, a própria filha
de Príamo, o rei nosso, que é Cassandra,
arrancada do templo de Minerva,
do sacro santuário de sua deusa,
para o céu levantando frustre olhar,
1 78 VIRGÍLIO

por lhe prenderem nós as doces mãos.


Corebo não o pôde suportar,
em fúria ante o que via se lançou
contra eles todos, se votando à morte.
Nós o seguimos para o grande embate,
mas, neste instante, do cimo do templo,
vêm dardos dos nossos sobre nós,
a pior matança que podia haver
por nossa manha de ter armas gregas.
Mas não foi isto só, visto que os Dánaos,
desvairados por ser roubada a virgem,
a nós se atiram, o valente Ajaz,
os dois Atridas, toda a força dólope.
Por vezes como que quebrando o céu
em turbilhão se bate todo o vento,
é Zéfiro com Noto mais um Euro,
todo ancho de guiar corcéis de Aurora ;
bradam os bosques e Nereu vem, brande,
recoberto de espuma, seu tridente
e desde o fundo do maior abismo
agita as águas num cega luta.
Surgem assim os que, na noite escura,
tínhamos nós por logro dispersado
e perseguido na cidade toda.
São eles quem primeiro reconhece
nossos escudos, nossas falsas armas,
o tom estranham que tem nossa fala.
Num instante nos batem pelo número.
Logo acaba Corebo, Peneleu
o mata ante o altar daquela deusa
que é soberana de armas em combate.
Também nos cai Rifeu, o mais justo homem
que havia entre os Troianos, servidor
exacto e puro de equidade guia.
Era outra mesmo a decisão dos deuses !
Por seu próprios amigos ali morrem
Dimas, Hípanis, também tu, ó Panto,
sem que seres tão pio te protegesse
da morte que chegava, como ainda
te não salvou de Apolo a fita em fronte.
Ó cinzas de Ílion, fogo dos meus,
bem testemunha foi o vosso ocaso
ENEIDA 1 79

de que muito evitei, por minha parte


nem dardo algum nem um qualquer acaso,
e de que se fosse esse o meu destino,
o ter eu perecido pelos Dánaos,
decerto o merecera este meu braço.
Depois dali corremos, e comigo
Ífito e Pélias, Í fito de idade
em que já deslocar-se era difícil,
Pélias, esse ferido por Ulisses,
e fomos ao palácio do rei Príamo,
assim como chamados pelos gritos,
pois que ali desmedido era o combate
como se porventura não houvesse
guerra por toda a parte da cidade,
se morresse ali só e mais nenhures.
Indomável é Marte no lugar,
todo o Dánao se joga no palácio
e do lado de entrada se formou
a tartaruga de tomar as portas.
Para as paredes se levanta escada,
pelos próprios barrotes vão subindo,
com a direita agarram-se ao telhado,
com escudo na esquerda se defendem
dos golpes que os recebem. Os Dardânidas
vão sempre resistindo, até arrancam
as torres, partes altas de edifício,
que lhes são armas, já no fim, agora
que limiar da morte está bem perto,
para ainda lutarem quanto podem.
Traves douradas vão todas abaixo,
adornos dos avós atiram fora,
de espada nua estão ao pé das portas,
as defendendo em densa formatura ;
se renova a coragem no palácio
para ajudar valentes, os vencidos
animar pois resistem e se batem.
Havia no palácio porta oculta
por onde se passava aos aposentos
que do rei eram, de que se servia,
quando ainda feliz era este reino,
a desgraçada Andrómaca em visita
a seus sogros reais ou ao avô
1 80 VIRGÍLIO

levava o pequenino Astíanax.


Subo ao ponto mais alto do telhado
donde os pobres Troianos despediam
uma chuva de dardo ineficaz.
Do cume se elevava torre a pique
donde se via Tróia até ao mar,
para os lados da frota que era dánao,
para os lados das tendas dos Aqueus.
Já de ferros munidos atacamos
da parte em que junção pouco segura
a ligava ao andar que era de cima,
de seu poiso a soltamos e dum golpe
para a frente a atiramos toda junta.
De repente desliza e vai com ela
tudo que era destroço dos assentos,
se abate aquela massa sobre os Dánaos.
Outros, porém, lhes tomam o lugar
sem que, no entanto, pedras, outras armas,
deixassem de chover sobre eles todos .
Mas n o pátio d e entrada Pirro exulta,
logo à primeira porta nos vem contra
em seu brilho das armas, no relâmpago
que delas desprendia cada golpe.
Dir-se-ia que saltara para a luz
uma serpente que se alimentasse
das ervas venenosas ; frio Inverno
por debaixo do chão a conservara ;
o que nada valia deixa agora,
e novo, de brilhante juventude,
escorregante corpo a cobra enrola,
o peito saliente, alta a cabeça,
afronta o Sol que vinha e faz vibrar
na goela feroz tríplice língua.
Com ele vem o Périfas gigante,
cocheiro dos cavalos aquileus
e vem Automedonte de escudeiro,
com ele tudo que é homem de Ciro
se atira ao edifício e chamas lança
por todos os telhados. Bem na frente,
ele próprio aparece com machado,
quebra · a sólida porta, ao eixo arranca
os montantes de bronze, trave salta
ENEIDA 181

e no carvalho hiante há só buraco.


Dentro aparece a casa, os longos átrios,
os aposentos íntimos de Príamo,
de nossos velhos venerandos reis,
donde se vêem os guerreiros logo
no limiar primeiro preparados.
Mais por dentro da casa interior
tudo é gemido e mísero tumulto,
no lamento que ululam as mulheres
se ergue um tal clamor aos astros de ouro.
Mães espantadas erram pelas salas .
de beijos cobrem, altas, as ombreiras,
a todas abraçando não as largam.
Pirro, porém, redobra, violento,
como seu pai o fora, nem os guardas,
nem as grades sequer o deterão,
as pancadas de aríete derrubam
as portas que se encontram pela frente,
desfazem as ombreiras abaladas.
A violenta força abre o caminho,
quem primeiro aparece logo morre,
não há nada que escape de invasão
e tudo os Dánaos com seus batalhões
recobrem, como cheia, de soldados.
Menos impetuoso rio espuma,
os taludes abate pelas margens,
engole os bosques que se vão opondo,
lança através do campo a massa de água,
estábulos arrasta com seu gado.
A N eoptólemo vi eu próprio
ficar presa da fúria de matar,
no limiar vi eu os dois Atridas,
vi Hécuba, as cem noras, e vi Príamo
a manchar com seu sangue nos altares
os fogos que ele próprio consagrara.
Abaixo vão as cinquenta portas
das câmaras de núpcia, as quais ornavam
ouro e despojos de vencidos bárbaros.
O que desdenha chama tomam Dánaos.
Talvez perguntes tu que houve com Príamo.
Quando viu a cidade em mãos alheias,
quando viu inimigo abater portas
1 82 VIRGÍLIO

de palácio real, apoderar-se


do que era moradia soberana,
foi buscar, já tão velho, as suas armas
que há tanto ano pusera para o lado
e com elas guarnece aquele corpo
que tremia de idade, cinge espada
que para nada iria lhe servir
e se joga no meio dos inimigos
para morrer aí como devia.
Ora no centro mesmo do palácio
havia um velho colossal altar;
tinha perto um loureiro cuja sombra
abraçava Penates . Junto dele
Hécuba se sentara com as filhas
a rodear as mesas consagradas,
exactamente pombas que se juntam
já vencidas por negra tempestade.
Ali estavam todas, mãe e moças,
os deuses apertando nos seus braços.
Diante lhes vem Príamo envergando
armadura de sua juventude,
mas Hécuba lhe diz : "Meu pobre esposo,
que inspiração funesta te levou
a cingir essas armas, não vês tu
que não é isso o que convém agora,
mesmo que meu Heitor aí estivesse?
Chega aqui, por favor, pois este altar
a todos nós nos há-de proteger.
Se assim não for, connosco mo-rrerás. "
Depois de assim falar puxou-o mais
e junto dela, num lugar sagrado,
sentou ao que viesse o velho rei.
Mas escapando das sangrentas mãos
de Pirro que o persegue vem Palites,
um dos filhos de Príamo, ferido,
mas vem fugindo, pórtico após pórtico,
passa aos pátios vazios ; só que Pirro
o segue de arma em punho, num delírio,
já o vão apanhar de lança em riste.
Quando chega Palites junto aos pais,
logo caiu, logo perdeu a vida,
como num rio de sangue, sem remédio.
ENEIDA 1 83

Então Príamo, embora já fechado


num círculo de morte, sem conter-se,
e sem poupar a voz nem o furor,
assim lhe grita : " Por um crime destes,
por tal audácia, os deuses, se no céu
ainda há piedade a isto atenta,
te vão pagar direito o que fizeste,
ter eu que ver a morte de meu filho
e teres tu manchado com o sangue
o rosto de seu pai. Mas esse Aquiles,
aquele de quem tu te fazes filho,
jamais teria procedido assim
com Príamo inimigo, pois direitos,
confiança de quem o suplicava
lhe deram ter vergonha ; sepultura
deu ele ao corpo exangue de meu filho,
de meu Heitor, e me deixou voltar
à cidade de que era soberano. "
Assim o velho disse, ainda um dardo
lançou sem força alguma que no escudo
pendurado ficou. Então foi Pirro
que falou em resposta : "Pois serás
tu um bom mensageiro e lhe dirás,
ao filho de Peleu que meu pai é
tudo o que viste, estes meus tristes feitos,
e não esqueças tu de lhe contar
como degenerou Neoptólemo.
Agora vais morrer. " Isto dizendo,
o leva ao próprio altar, trémulo, tardo,
no derramado sangue de seu filho,
segura com a esquerda seu cabelo,
com a direita arranca espada em raio
e pelo flanco a embebe até ao punho.
Dos destinos de Príamo este o fim,
esta morte que a sorte reservou,
nos olhos Tróia em chamas, abatida
Pérgamo toda, a ele que reinara
sobre tamanhas terras, tantos povos,
soberbo dominara toda a Á sia.
Ali j az, tronco enorme sobre a margem,
de espáduas a cabeça separada,
um corpo já sem nome para sempre.
1 84 VIRGÍLIO

Pela primeira vez horror atroz


inteiro me tomou, sem me mexer,
nada vi senão vulto de meu pai
enquanto olhava aquele velho rei
por ferida cruel assim soltando
seu último suspiro, logo o rosto
de Creúsa que sozinha me ficava,
nossa casa pilhada, mais os riscos
que afrontaria meu pequeno Iúlo.
Olhei então à volta. Que me resta ?
Ninguém existe mais, todos morreram,
ou do salto que deram para o solo,
ou do fogo nos corpos doloridos.
Estava, pois, sozinho quando vejo
refugiada no portal de Vesta,
em silêncio, escondida para um canto
mesmo a filha de Tíndaro, os incêndios
dão um vivo clarão, à sua luz
percorro com a vista o que ali está.
Temendo agora a raiva dos Troianos
pela perda de Pérgamo, o castigo
que decerto dos Dánaos lhe viria,
a cólera do esposo abandonado,
funesta Erínis para Tróia e pátria,
ali parara oculta, ali sentada,
por todos odiada, nos altares.
Um fogo ardeu em mim com um furor
que me incita a vingar a minha terra,
que assim se abate, a castigar o crime.
" Então esta mulher, sem sofrer nada,
retornará a ver Esparta, Micenas,
onde nasceu, desfilará rainha,
e terá triunfado, recobrado
seu lar e sua casa, seus avós
e seus filhos também, acompanhada
de escolta de troianos e de frígios
q ue por fim lhe serão todos escravos ?
E para isto que Príamo morreu,
para isto pereceu a Tróia em chamas,
para isto recobriu terra dardânida
já tantos anos um suor de sangue ?
Não, não será assim, e certamente
ENEIDA 1 85

nada valendo castigar mulher,


merecerá louvor o que farei :
sufocarei o monstro, serei justo,
me será um consolo vingar-me eu,
assim satisfarei cinzas dos meus . "
Com alma furiosa m e lançava
nestes tais pensamentos delirantes
quando mais claro se tornou o ver
e se me ofereceu em pura luz
que raiou através da escura noite
a minha própria mãe abençoada
como se fora deusa majestosa
das que contempla quem no céu habita,
me tomou pelo braço, me conteve
e seu lábio rosado assim me diss e :
" Filho querido, que ressentimento
assim te agita a mente numa cólera
que te vela o que mais tens de fazer ?
Não vais tu ver onde deixaste, velho,
sob o peso de idade o pai Anquises,
se ainda vive Creúsa e vive Ascânio,
pois que mulher e filho te são eles ?
Por toda a parte anda essa gente grega
e se eu os não tivesse protegido
já o fogo os teria arrebatado,
já espada inimiga os trespassara.
Não foi pela beleza da Lacónia,
dessa filha de Tíndaro odiada,
nem por Páris, o sempre detestado,
que desabou assim o nosso Império,
que de sua grandeza caiu Tróia.
Uma névoa que tens perante os olhos
perturba tua vista de mortal,
eu a vou dissipar e nada temas,
tua mãe assim manda e é a ela
que tens de inteiramente obedecer.
Aqui onde não vês senão ruínas
e pedras que de pedras destroçaram,
tudo num misturar de pó e fumo,
aqui Neptuno vai com seu tridente
sacudindo muralhas, alicerces,
toda a cidade arranca dos assentos.
1 86 VIRGÍLIO

Aqui Juno cruel em Portas Ceias,


e na frente de todos, cheia de ódio,
e de ferro cingida, chama aqueles
que aliados lhe são em naus da armada.
Olha tu como já Tritónia Palas
a cidadela ocupa e com Górgona,
as duas rodeadas de uma nuvem,
lançam seus raios contra o que resiste.
O próprio Pai sustenta a força audaz
das tropas triunfantes de seus Dánaos,
ele próprio animando os deuses todos
contra as armas que ainda tem Dardânia.
Foge, meu filho, foge, põe um fim
a todos os esforços que farias .
Jamais te faltarei com meu socorro,
um dia te porei em segurança
em terra de que faças tua pátria. "
Assim tendo falado se envolveu
com as sombras da noite. Em lugar dela
foram formas terríveis que surgiram
teimosas contra Tróia, foram deuses,
foram todos que são poder supremo.
Me pareceu então que Ílion inteira
se afundava nas chamas e que Tróia
por Neptuno criada se abatia
com aquela grandeza que já fora.
Como em cima de monte árvore antiga,
com seus machados, com as suas cunhas,
ataca o camponês, ninguém a larga,
para abatê-la lutam entre si.
Mas ele, até ao fim, bem ameaça,
se lhe agita a folhagem, treme o tronco
até ao seu mais alto, mas por fim,
vencido das feridas se lamenta,
geme uma última vez, depois ruína
prostrada no talude em que se erguia.
Quanto a mim, já desço, passo livre,
na protecção dum deus que me conduz,
entre inimigo e chama, todo o dardo
a mim me evita, o fogo se retira.
Mas quando chego à nossa casa antiga
o meu pai que eu pensava retirar
ENEIDA 1 87

para as altas montanhas e por isso,


só por isso voltava, se recusa
a prolongar a vida, Tróia morta,
a suportar os males dum exílio.
"Deves fugir, meu filho, pois teu sangue
não foi enfraquecido por idade
e tuas forças o vigor sustenta.
Por mim, se os deuses dessem vida longa,
teriam conservado esta morada.
Já é, porém, bastante que uma vez
haja eu sobrevivido ao fim que teve
esta nossa cidade. Vai embora
dizendo teu adeus a este corpo
já destinado ao leito funerário.
Por minha mão encontrarei a morte,
tudo o resto despojo de inimigo .
Já há muito, dos deuses detestado,
me arrasto de ano a ano desde o dia
em que nosso Pai de homens, Pai de deuses
me tocou com o sopro de seu raio,
me abateu com a chama de seu fogo . "
Tais eram as palavras, e teimava,
inabalável ante minhas lágrimas,
como perante Creúsa, Ascânio, a casa,
todos querendo que não decidisse
tudo arrastar com ele e mais gravoso
tornar ainda o peso do destino.
Recusa um vez mais, fica fiel
ao que j á resolvera, à sua casa.
Atraído me sinto então de novo
à fúria do combate, a morte quero
na dor imensa que me ultrapassava.
Que fazer eu e que esperar agora
duma sorte que assim contra mim vinha?
"Partir daqui a ti deixando, pai,
julgaste que eu podia fazer tal,
duma boca paterna pode acaso
brotar mesmo conselho tão sacrílego ?
Se estão os deuses por que nada reste
de famosa cidade e se tu queres,
se te parece bem que se acrescente
a tua perda à perda que há de Tróia,
1 88 VIRGÍLIO

e perda não só tua, mas dos teus,


pois bem, meu pai, tudo pode dispor-se
para se dar a morte que desejas.
Daqui a pouco nos chegará Pirro,
todo manchado com sangue de Príamo,
o Pirro bem capaz de matar filho
à vista de seu pai e matar pai
diante de um altar. Será para isto
que tu, querida mãe, me dás sair
por entre dardos, chamas, para eu ver
quem é meu inimigo em minha casa
assassinar-me pai, Ascânio, Creúsa,
todos no mesmo sangue que é o nosso ?
Trazei as minhas armas, camaradas,
que é a hora do fim de nós vencidos.
Aos Dánaos me entregai, volto ao combate.
Não morreremos hoje sem vingança. "
Cinjo de novo a espada, tomo escudo
com a minha mão esquerda, largo a casa.
Mas já no limiar minha mulher
se me prendia aos pés e me estendia
nosso pequeno Ascânio : "Vais morrer?
Então leva contigo todos nós ;
mas se tu tens ainda alguma fé
nas armas que tomaste, é esta casa
que tens de defender. A quem deixar
Iúlo, pai, mulher que tua foi ? "
Toda a morada gritos e gemidos
enchiam enquanto ela assim falava
quando, subitamente, há um prodígio.
Em nossos braços e perante os olhos
dos desolados pais nos sai de Iúlo,
da cabeça de Iúlo, leve chama,
como branda carícia que passava
no suave cabelo o ia ungindo
de luz consoladora que nas fontes
se alimentava de energias outras.
Ficámos espantados e. corremos
para com água pura lhe apagar
este fogo tão pouco natural.
Mas venerando Anquises, animado,
alegre levantou olhos aos astros
ENEIDA 1 89

e disse erguendo para o céu as mãos :


" Ó poderoso Júpiter, se deixas
que uma prece te abrande, olha em que estamos
e, se o merece nossa piedade,
nos dá o teu socorro, nos confirma
o presságio que nos mostraste agora. "
Mal o dissera, súbito fragor
troveja pela esquerda, em viva luz
do céu caiu estrela pela sombra.
Por cima do mais alto do telhado
a vimos deslizar marcando rota
até no bosque Ida se ocultar.
Como que fica a luz em longo sulco
e, largamente à volta, enxofre em fumo.
Então meu pai, cessando a resistência,
se levantou ao bafo que vem de alto,
e fala aos deuses, a seu astro adora.
"Não demoremos mais, vos seguirei,
deuses de nossos pais, onde quiserdes.
A casa protegei e nosso neto.
Augúrio é vosso, Tróia vós guardais.
Não me recuso, filho, vou contigo. "
Assim falou e j á distintamente
se escutava estalar o fogo perto,
o turbilhão de chamas se aproxima.
"Vamos, meu pai querido, com meus ombros
eu te sustentarei enquanto andamos,
me será leve a carga. O que aí venha
a todos nós virá, perigo igual,
a todos nós a salvação comum.
Iúlo vai comigo e Creúsa atrás
fechará nossa marcha. Agora, amigos,
tomai toda atenção ao que vos digo.
Ao sair da cidade há a colina,
ao lado o velho templo, Ceres só,
e logo perto esse cipreste antigo
a que a religião de nossos pais
deu conservar-se assim todo este tempo.
É ali, por caminhos diferentes,
que nos encontraremos dentro em pouco.
Leva tu, pai, o que nos é sagrado,
os Penates que vêm dos avós,
1 90 VIRGÍLIO

porque eu que tanto andei em rude guerra


que em tais carnificinas me meti,
nem os posso tocar antes que às mãos
as purifique em água clara e viva. "
Depois de assim falar, ponho eu aos ombros,
como se fora manto, fulva pele,
a pele dum leão, me curvo ao peso.
Iúlo pela mão, atrás vem Creúsa.
Seguimos através da escuridão,
e não tendo tido eu medo de dardos
nem do Grego em cerrados batalhões,
agora basta um sopro que me assuste,
agora um barulhinho me angustia,
todo o passo que dou me faz tremer,
pelo meu companheiro e por meu fardo.
la já perto às portas e pensava
que este seria o termo a mau andar
quando passos ouvi e meu pai grita :
" Foge, meu filho, que são eles mesmo ;
vejo brilhar escudo e faiscar
o bronze que persegue. " Nesta altura,
é que não sei que númen tão maligno
me tomou conta da alma que perdi
toda a noção que tinha dos caminhos ;
e foi neste momento de pavor
que se afastou para outro lado Creúsa,
Creúsa, minha mulher, ou o destino
assim determinou . e ma roubou
ou se enganou de rota ou se cansou,
só que jamais tornei a encontrá-la.
Também atrás não vim para a buscar
e só nela pensei quando chegámos
à colina que havia no lugar
que se sagrara com a antiga Ceres ;
quando nos reunimos faltou ela,
faltou aos companheiros, ao menino,
faltou a seu esposo. O mais cruel
que me feriu em Tróia destroçada
e de que me queixei a todo o deus
e de que eu acusei a todo o homem.
Ascânio, o pai Anquises, os Penates,
confio aos camaradas, os escondo
ENEIDA 191

numa recôndita vala. Tomo então


de novo meu caminho da cidade
as armas cinjo, quero combater,
expor-me a todo acaso em desafio
aos riscos que corria minha vida.
Chego primeiro aos muros, chego à porta
por onde eu acabava de sair
e torno atrás e sempre procurando
vestígios que podia ter deixado,
sempre os reconhecendo com meus olhos .
Por todo o lado horror para meu peito,
e ois até o silêncio apavorava.
A nossa casa volto para o caso
dela aí também ter regressado.
Gregos a tinham invadido toda,
a toda a ocupavam inimigos
e de súbito um fogo violento
empurrado por vento sobe ao tecto,
mas vão as chamas mais por cima ainda,
em turbilhão revolvem todo o céu.
Daqui sigo adiante e torno a ver
o palácio de Príamo na frente
do que já fora nossa cidadela.
Nos pórticos vazios, no templo mesmo
que de Juno era, guardas escolhidos
velavam sua presa, com Fénix,
o terrível Ulisses, outros mais.
Amontoado o que arrancado fora
dos incêndios de templos, as crateras
de ouro maciço, até as próprias mesas
que serviam aos deuses, vestes ricas,
todo o tesouro que por Tróia havia
e que tinham os Dánaos saqueado.
À volta, em pé, apavoradas mães
e filas de meninos. Tudo ousei,
gritos lancei no escuro e de clamor
enchi as ruas todas e por Creúsa,
em vão, Creúsa chamei de novo e sempre.
Enquanto procurava como louco
nas ruas da cidade, apareceu-me
o que era sombra, imagem, bem maior,
da própria Creúsa que buscando andava.
1 92 VIRGÍLIO

Não pude nem mover-me nem falar,


arrepiado, de cabelo em pé,
ouvi Creúsa dizer-me estas palavras
com que aplacar queria o meu tormento :
"Amado esposo, porque vais assim,
todo te abandonando à tua dor?
O que sucede só sobre nós vem
por vontade dos deuses. Levar Creúsa,
contigo levar Creúsa, não está
na linha dos destinos, não o quer
o Pai que é nosso no celeste Olimpo.
Tens diante de ti um longo exílio,
tens que lavrar o mar à tua frente,
só por fim chegarás à terra Hespéria
onde o Tibre da Líbia corre em paz
por campos fora em que trabalham homens .
Nessas terras terás o teu poder,
terás um reino, uma real esposa.
Não chores mais por Creúsa, meu querido.
As terras não verei dos Mirmídones,
soberbas terras deles e dos Dólopes,
nem serei serva das mulheres gregas,
eu, a filha de Dárdano, eu a nora
de Vénus, a divina. A grande deusa,
a mãe dos deuses me retém aqui.
Agora adeus, e que conserves sempre
o grande amor que a nosso filho temos ."
Logo que ela me disse estas palavras,
a mim que desejava prosseguir
e tanto mais falar-lhe, se afastou,
se retirou nas auras intocáveis.
Por três vezes tentei eu abraçá-la,
por três vezes dos braços se soltou,
como se fosse vento vago e leve,
como se fosse um sonho que se evola.
Pois que a noite j á ia para o fim,
voltei aos companheiros que deixara
e ali verifiquei com certo espanto
que se juntara a nós, para tr connosco,
um bom número de homens, de mulheres
e de jovens dispostos ao exílio,
todos dignos de nossa compaixão.
ENEIDA 1 93

De toda a parte tinham chegado eles,


com seus bens, seu ardor, sua coragem,
todos prontos para o que acontecesse,
para que os levasse eu de mar em fora,
para que alguma terra os recebesse.
Já então vinha a estrela da manhã,
pelos cimos Ideu trazia o dia.
As portas, ocupadas pelos Dánaos,
vedavam todo acesso. Só havia
o caminho do monte. A ele fui,
carregando nos ombros pai Anquises.
LIVRO III

Depois de os deuses terem decidido,


ainda que inocentes os de Príamo,
que fosse derrubada Ílio soberba
e que Á sia se perdesse enquanto o fumo
subia da cidade de Neptuno,
nos obrigaram os sinais do céu
a ir até ao longe procurar
terras desertas para nosso exílio.
Construímos então a nossa frota
junto aos muros Antandros perto de Ida
sem que nada saibamos dos lugares
a que nos levarão nossos destinos
e nos quais poderemos residir.
Juntamos nossos homens no Verão,
e, quase no começo, dá Anquises
a todos nós as ordens de soltar
velas ao vento que ordenasse o fado.
As paragens da pátria deixo em choro,
os portos, o terreno em que houve Tróia.
Para alto mar vou eu, com os amigos,
com meu filho pequeno, com Penates,
e com os grandes deuses que nos guiam.
Há, na distância, a terra que é de Marte,
com vastos campos que trabalham trácios
e que duro Licurgo teve outrora,
nação que foi sempre ligada a Tróia,
com seus Penates se juntando aos nossos
sempre enquanto durou a boa sorte.
Para aí guino proa e num abrigo
o que, porém, não era dos destinos,
começo a levantar muralhas nossas
ENEIDA 1 95

e de meu nome Eneias lhes chamo.


Ofertas levava eu a Dioneia,
nome de minha mãe, o mesmo aos deuses
que protectores são do que começa
e nas arribas sacrifico um touro
ao alto rei dos que no céu demoram.
Havia perto um alto em cujo cimo
brotavam pegas do que era corniso
com mirto feitas como para dardos .
Aproximei-me, procurei no chão
as varas verdes com que pudesse eu
de algum modo cobrir altar aos deuses.
Ao tirar a primeira houve um presságio
que ainda conto dum horror transido :
das raízes quebradas correm gotas
dum sangue negro que me infecta a terra.
Sinto por todo o corpo um arrepio,
e como que parado o sangue fica,
gelado pelo medo que me toma.
Recomeço com outra, vou tentar
arrancar vara verde, conhecer
a causa que se esconde do mistério,
mas eis que novamente corre o sangue.
Rogo então dirigi eu às ninfas,
ao poder que é Gradivo, soberano
dos campos que são getas, lhes pedindo
que para o bem revoguem o prodígio,
em só nosso favor o conjurando.
Mas quando eu vou, com um maior esforço,
ver se tiro do solo uma outra vara,
em luta contra a terra que resiste,
ouço que vem do fundo da colina
uma voz que ressoa a meus ouvidos :
"Eneias, porque vens despedaçar
o corpo de infeliz que aqui repousa,
não faças tuas mãos de piedade
criminosas ficarem por teu acto.
Não, não te sou alheio, pois foi Tróia
que me deu luz de vida ; não é de árvore
que te corre este sangue; é Polidoro
aquele que te fala; foi de dardos
a colheita a que vim e me prendeu
1 96 VIRGÍLIO

nestas agudas pontas que não soltam."


Então naquele espanto que me toma
fico paralisado, perco a voz,
cabelo se me ouriça na cabeça.
Tinha chegado em tempos Polidoro
com grande peso de ouro que o rei Príamo
em segredo enviava ao rei da Trácia,
quando já duvidava da Dardânia
e via os Dánaos investir-lhe Tróia.
Mas este rei da Trácia, quando nós
perdemos a cidade e nossa sorte,
se passou a Agamémnon e foi
incorporar-se às armas vencedoras.
Põe de lado a justiça, mata o jovem,
como ladrão que fosse rouba o ouro,
naquela fome de ouro que tanta força
a tanto mal tanto peito de homem.
Quando pude livrar-me de meu medo
contei aos principais, depois de ao pai,
o que fora prodígio dos divinos
e pedi que me dessem seus conselhos.
Todos disseram ter de abandonar-se
terra tão criminosa em que ofendida
fora hospitalidade em suas leis,
e confiar-se ao vento nossa armada.
A Polidoro funerais fazemos
segundo o que se deve e na colina
amontoamos terra sobre o morto,
altares levantamos para os Manes
com as fitas escuras, os ciprestes
e com nossas mulheres, pelo rito,
a toda a volta com cabelo solto.
Taças trazemos de amornado leite
e nas páteras sangue consagrado
para aquela alma repousar no túmulo,
adeus lhe damos numa voz solene.
Depois que vimos mar apropriado,
logo que o vento não soprou as vagas,
logo que um Austro brando chama ao largo,
pomos na água os navios junto da costa
que a multidão dos nossos ocupava.
Já largamos do porto, já se afastam
ENEIDA 197

os campos, as cidades que deixamos.


Ora há no meio das ondas uma terra,
sacratíssima terra que entre todas
ama a mãe das Nereidas, além dela,
a prefere a qualquer Egeu Neptuno.
Quando ela, errando, ia de bordo a bordo,
num ponto a fixou o frio arqueiro,
entre a alta Mícono e o que é Gíaro,
e lhe deu ser lavrada, conter vento.
Ali levo os navios, porto de paz
nos acolhe cansados. Desembarque,
saudamos a cidade que é de Apolo,
e vem ao nosso encontro  nio, que é rei
e também do deus Febo sacerdote ;
traz na cabeça fitas e loureiro,
Anquises reconhece, seu amigo.
As nossas mãos se juntam e na casa
todos entramos, hóspedes bem-vindos.
Um templo venerei de pedra antiga :
"Dá-nos, ó deus de Timbra, moradia,
casas nos dá, que não podemos mais,
dá-nos quem de nós nasça a todos nós
e cidade nos dá que sempre dure.
Conserva para Tróia, uma outra Pérgamo,
os que escapam dos Gregos e de Aquiles.
Qual é o nosso guia? Aonde ordenas
que vamos nós firmar a nossa sede ?
Dá-nos sinal, ó venerado deus,
a nosso peito desce, deus amado."
Acabei de falar e pareceu-me
tudo tremer em torno, o próprio templo,
com o louro do deus, até os montes
abalaram inteiros, o santuário
de súbito se abriu, dentro soou.
Prostramo-nos no chão e vem a voz
que nos disse, ao que ouvimos : "Duradouros
Dardânidas que sois, aquela terra
que primeira vos foi, acolherá
em seu profundo seio vossa volta.
Buscai a velha mãe. Casa de Eneias
dominará em torno toda a terra
como o farão seus filhos e, no sempre,
1 98 VIRGÍLIO

os filhos desses filhos." Assim Febo.


No tumulto que nos tomou a todos
só queria saber-se a que cidades
chamava Febo os que no mundo erravam
assim lhes ordenando que voltassem.
Então meu pai tirou do que lembrava
as tradições dos homens mais antigos :
"Ó chefes, escutai vossa esperança.
No meio do mar há Creta, ilha de Jove,
onde está o monte Ida, nosso berço.
Cem cidades de força nela existem
e dos reinos é esse o que é mais rico.
Foi partindo de lá, se bem recordo,
que Teucro, o nosso venerando pai,
veio, primeiro de todos, abordar
a costa reteia, decidindo,
que fundaria aí seu próprio reino.
Nem Í lio então nem outras cidadelas
se elevavam ao céu no que foi Pérgamo,
só no fundo dos vales se habitava.
De Creta veio mãe que anda em Cíbele,
de lá chegou o bronze Coribante,
de lá o bosque de Ida ou o silêncio
que é regra nos mistérios, de lá ainda
todo o leão do carro da que é dona.
Portanto, para a frente, dóceis vamos
aonde nos conduz ordem dos deuses ;
com o favor do vento alcançaremos
os reinos que são Cnosso, não é longe.
Nossa sorte é que Júpiter ajuda
e, na terceira aurora, nossa frota
se alinhará nos litorais de Creta."
Assim tendo falado, imolou ele
como devia vítimas aos deuses,
foi um touro a Neptuno, um outro a Apolo,
ovelha preta ao que é a Tempestade,
e branca ovelha ao que é um doce Zéfiro.
Corre que já partiu Idomeneu,
expulso enfim do reino de seus pais,
deserta está a terra que é de Creta,
inimigos se foram, casa é nossa.
O porto de Ortígia abandonamos,
ENEIDA 1 99

voamos pelo mar e, num desfile,


passam perante nós cumes Bacantes,
Donusa verde, a Oléaros e Paros,
branca esta como neve, logo as Cíclades,
dispersas pelas águas, onde as terras
vão uma após a outra sem falhar.
Os tripulantes gritam na viagem
que mais parece ser uma corrida
e todos querem que eu os leve a Creta
para aos avós longínquos se juntarem.
O vento pela popa nos escolta
e chegamos por fim ao que é Cureto.
As muralhas levanto da cidade
que sempre esteve em todo nosso voto,
lhe chamo Pergâmea, exorto o povo,
que tão contente está, a lhe querer,
a construir os necessários fortes .
Já a s popas estão n a seca praia,
casamento e campo ocupam jovens,
e estava eu dando as leis e dando as casas
quando do céu que assim se corrompera
sobre nós veio a peste, tudo infecta,
corpos, colheitas, árvores, dá morte.
Abandonavam uns a doce vida,
quando outros, já doentes, se arrastavam,
e calcinava Sírio a terra estéril,
secava toda a planta, até o trigo,
já ferido também, nos recusava
o que nos faz viver e dar a vida.
Aconselha-me o pai que naveguemos,
que ao oráculo Ortígio regressemos
para implorar todo o favor de Febo.
Quando porá fim ele às nossas provas,
onde manda ele que se peça ajuda,
que novo rumo quer que tomemos ?
Era d e noite, e pela terra toda
dominava os mortais a lei do Sono.
As sagradas imagens de meus deuses,
Penates frígios que comigo tinha,
que salvara das chamas da cidade,
vieram ante mim, presentes foram,
enquanto mergulhado nos meus sonhos,
200 VIRGÍLIO

nitidamente vistos no luar


da Lua cheia que no céu pairava.
E com estas palavras me acalmaram :
"Se fores a Ortígia eis o que Apolo
te vai dizer, o mesmo que por nós
o sabes tu agora. Te seguimos,
a ti e teus navios desde o fogo
em que sumiu Dardânia. À s tuas ordens
nesses navios vogámos sobre as ondas
e ainda aqui seremos os que guiem
teus netos na subida para os astros,
os que à tua cidade império dêem.
Vais preparar tu grandes muralhas
por esta longa fuga que não deixes.
Daqui tens de sair pois não é esta
a ordem que te dá Apolo Délio ;
não ficarás em Creta. Há um lugar
que o Grego diz Hespéria, terra antiga,
poderosa nas armas e nos campos
que tão fecundos são. Ali viveram
os chamados Enótrios ; em seguida
Itália foi o nome que lhes deu
um dos chefes que teve. A terra é nossa,
dela Dárdano veio e veio Iásio
que à raça que nós somos deu origem.
Vamos, de pé, alegre dize ao pai
que de nossas palavras não duvide,
que procure Corinto e terra ausónia,
pois Júpiter recusa o que é dicteu."
Atónito fiquei com o que vi,
com o que ouvi dos deuses, pois não era
sono o que havia; o que me parecia
era ter eu perante mim os rostos.
e velados cabelos, voz presente.
Um gélido suor de mim manava,
arranquei-me do leito, ergui ao céu
as mãos em prece, pura libação
derramei sobre o lume. Feito o rito,
corro a meu pai Anquises e lhe conto
ponto por ponto o que me acontecera.
Reconhecendo nossa dupla origem,
os nossos dois avós, me confessou
ENEIDA 201

que em muito se enganara até então.


"Meu filho, tu que tanto tens sofrido
pelos fados ilíacos, me lembro
que só Cassandra o mesmo me cantava,
tais feitos predizia à nossa raça.
Muita vez repetiu o nome Hespéria
e falava de reinos por Itália.
Mas quem podia crer que a tais lugares
iriam os Troianos, sentiria
verdade nas palavras de Cassandra,
que proféticas eram ? Mas cedamos
ao que nos manda Febo, prossigamos,
com seus avisos, em caminhos novos."
O que logo se fez de ânimo ousado.
Mais um lugar abandonamos pois,
deixando nele apenas alguns homens,
desfraldamos as velas e seguimos
dentro de nossas naus no vasto mar.
Depois que nos chegamos bem ao largo,
sem já ver terra alguma, só o céu,
connosco apenas o sulcar das águas,
começou a pairar nuvem escura
que logo se fixou sobre nós mesmo,
nos trouxe a noite, tempestade trouxe,
com as vagas de trevas coroadas.
Movimentam os ventos todo o mar,
altas ondas se elevam, somos todos
como o brinquedo dum imenso abismo.
Cobertura de nuvens dia apaga
com uma noite de água à nossa volta
e nos ares se cruza raio em fogo.
De nosso rumo tudo nos desvia,
somos uns vagabundos sobre as vagas
que cegas são . O próprio Palinuro
já não tem rota certa e não distingue
o que é treva, o que é luz, e por três dias,
três dias de incerteza em bruma escura,
por três noites sem astro que ilumine,
neste oceano erramos que nos prende.
Só numa quarta aurora há uma terra
que te parece emergir e com montanhas
como que em fumo erguendo-se e fugindo.
202 VIRGÍLIO

Ferramos logo as velas, todo esforço


ao remo logo passa, os marinheiros
sem repouso as espumas vão cortando
e varam sem repouso águas azuis.
Salvo das ondas, praia que me acolhe
é de uma das Estrófades, as ilhas
que se levantam sobre o mar da Jónia,
ilhas que habita a sinistra Celeno
com as outras Harpias, já depois
de interdita lhes ser casa fineia
e de lhes ter feito o medo abandonar
suas mesas primeiras. Jamais houve
um monstro mais funesto ou um flagelo
ou cólera divina mais cruel
que nos tenha surgido do mar estígio :
uns pássaros com rosto de menina,
uns dejectos horríveis, uma cor
que só a fome poderia dar-lhes.
Mal entramos num porto logo vemos
pelo campo espalhado muito boi
numas fartas manadas e rebanhos
de cabras sem pastor pelas pastagens.
Em cima vamos com as mãos armadas,
os deuses invocamos, Jove mesmo,
para que partilhassem esta presa,
e depois, em baía, festejamos
repousados nos leitos de comer.
Subitamente, em queda, eis as Harpias,
das montanhas desceram barulhentas,
asas sacodem, pilham a comida,
e tudo infecta seu contacto imundo ;
os gritos são sinistros, repelente
cheiro que de si deitam. Nós, de novo,
pomos as mesas em lugar coberto
por ponta de rochedo e, no retiro,
reacendemos lume nos altares.
Segunda vez também, dum outro ponto,
de obscuros abrigos chegam elas,
horda que voa em torno do que é carne
e tudo suja a boca, rapa a pata.
Ordeno aos companheiros peguem armas,
se faça a guerra àquela turba horrível,
ENEIDA 203

ao que logo obedecem ; pronta a espada,


se escondem entre as ervas, de seu ponto,
em que está de vigia, meu Miseno,
com trombeta nos dá o seu sinal.
Se atiram os amigos, todos tentam
em estranhos combates o ferir,
àquela tão sinistra ave marinha.
Mas as penas resistem, dorso escapa,
rápidas aos astros se dirigem
e fétido nos deixam o que resta.
Ceteno, profetisa de desastres,
em rochedo escarpado se sentou
e de seu peito solta estas palavras:
"Então é guerra ainda além dos bois,
dos abatidos touros que matastes.
Laomedonte, quereis a guerra
convosco nos trazer e perseguir
as Harpias que nada vos fizeram ?
Mas escutai, gravai em vossas almas
estas palavras que vos vou dizer,
que disse a Febo o poderoso Pai,
que Febo Apolo a mim própria me disse,
a mim que sou das Fúrias a primeira,
e que eu a vós transmito. O que quereis
é, por favor dos ventos, atingir
Itália, à qual ireis, e nos seus portos
vos será permitido fundear.
Mas antes que lanceis muros em torno
da cidade que dada vos será
sofrereis vós a fome impiedosa
que em pago de injustiças cometidas
vos irá obrigar a comer mesas,
em pó as reduzindo vossos dentes."
E, tendo ela dito isto, bateu asa,
para o bosque fugiu e se escondeu.
Ficou gelado o sangue de nós todos,
súbito nos tomou terror medonho,
coragem nos deixou inteiramente.
Querem agora que eu alcance a paz
não por meio das armas, mas por preces
e por votos aos deuses, que nos livrem
do que sobre nós veio, mesmo que deusas
204 VIRGÍLIO

ou só aves sinistras e malditas.


Da margem pai Anquises ergue as mãos,
invoca os grandes deuses, lhes promete
que merecidas honras serão dadas :
"Afastai, deuses, estas ameaças,
não nos deixeis perder, vosso favor
nos dai, portanto, a nós vossos fiéis."
Nos ordena depois que nós soltemos
das amarras a terra e que mudemos
seu jeito aos cabos. Infla o Noto as velas,
fugimos pelas ondas espumantes
nos rumos indicados pelo vento
ou no que determinam os pilotos.
Já no meio das ondas vem Zacinto
com seus imensos bosques, já Dulíquio,
Sarne, Nérito com abruptas rochas.
Já de Í taca evitamos os escolhos,
dessa ilha de Í taca em que Laertes rema
e cuj a terra, para nós funesta,
foi a que alimentou cruel Ulisses.
Logo depois, incertos entre as nuvens,
vemos altos do monte de Leucates
e seu Apolo que os marujos temem.
Para este lado vamos, fatigados,
e, perto da cidade, que é pequena,
ferro lançamos, com as nossas popas
viradas para terra. Tendo assim
conseguido alcançar o que era sonho,
perante Jove nos purificamos,
cumprindo junto ao fogo dos altares
os votos que fizéramos aos deuses.
Com os jogos troianos animamos
as praias que são de Á cio, desnudados,
com nossos corpos esfregados de óleo,
à ginástica de hábito nos damos.
Bem alegres estamos de escapar
às cidades argólicas, lográmos
passar por entre tantos inimigos.
Chega entretanto o Sol ao termo certo
dum ano de percurso ; frio Inverno
com os seus Aquilões vergasta as vagas.
Tinha eu, de bronze, escudo que era orgulho
ENEIDA 205

do grande Abante, pego nele, o fixo


na porta de fachada da cidade,
com uma frase que sagrada fica :
ESTA ARMA ENEIAS À VITÓ RIA TOMA.
Comando então que o porto nós deixemos,
que, sentados, rememos, e, rivais,
os companheiros todos, com esforço,
batem o mar e suas águas domam.
Sempre avançando, já não vemos mats
cidadelas aéreas dos Feaces,
pelas costas de Épio navegamos,
por fim porto caónio se nos abre
·
e daí prosseguimos às alturas
em que está a cidade de Butroto.
O que nem se acredita lá nos dizem,
que reina em meio de cidades gregas
um dos filhos de Príamo, um Heleno ;
é ele quem domina o lar e o ceptro
de Pirro, filho de É aco, o que faz
que por segunda vez possua Andrómaca
um esposo nascido em sua terra.
Fiquei estupefacto e fui, querendo
que logo o encontrasse e que pudesse
dele saber de casos tão notáveis .
Com navios no porto, saio da costa,
entro pelo país que, nesse dia,
tinha solenidade, oferta aos mortos.
Já num bosque sagrado ante a cidade,
nas margens dum Símois que era a fingir,
para as cinzas fazia libação
Andrómaca, ela própria, que invocava
os Manes junto a túmulo de Heitor,
um túmulo vazio que ela adornara
de verdes relvas, e com dois altares
em que depositava suas lágrimas.
Quando me viu chegar, armas de Tróia,
como louca ficou, duro seu rosto,
no terror de prodígio inesperado,
todo o calor lhe abandonando o corpo,
só ao fim de algum tempo me falou :
"É esse rosto de verdade o teu ?
Tu, filho de uma deusa, a mim tu vens,
206 VIRGÍLIO

és mensageiro mesmo ? Vives tu ?


Ou, se já luz da vida Heitor perdeu,
onde pode encontrar-se ?" Assim falou,
as lágrimas correram, tudo à volta
mergulhado ficou na sua queixa.
Perante tal abalo, bem difícil
foi para mim dizer alguma coisa,
na minha confusão só balbucio :
"Sim, vivo, e vivo na maior desgraça.
O que vês é verdade, não duvides,
mas de ti, que me dizes, tu, Andrómaca,
mulher de Heitor, depois de ter perdido
esposo como ele era ? Ainda estás
casada com rei Pirro ?" Baixou rosto
e murmurou com desolada voz :
"Só a que foi feliz entre nós todas
foi a virgem Priâmida que teve
de morrer em sepulcro de inimigo
frente aos muros de Tróia ; não sofreu
o ser tirada à sorte, em cativeiro
tocar-lhe leito de quem vence e manda.
Da pátria incendiada me trouxeram
por longe mar e sempre suportando
o desdenhar de quem de Aquiles veio,
um jovem insolente, a quem a serva
teve que dar um filho. Mas, seguindo
a Hermíone, neta que é de Leda,
num casamento que é lacedemónio,
passou-me como serva ao servo Heleno,
como se eu fosse coisa e não pessoa.
Só que ele, ardendo num amor de esposa
que assim lhe era tirada, e perseguido
pelas fúrias de crimes cometidos,
tomado de imprevisto por Orestes,
por ele morto foi ante os altares
a seus pais consagrados . Porém, quando
morreu N eoptólemo, o reino, em parte,
para Heleno ficou e foi então
que para memorar Cáon troiano
se chamaram caónios estes campos
e foi Caónia o nome do país ;
no cimo da montanha ergueu a Pérgamo,
ENEIDA 207

cidadela trOiana corno vês.


Mas, tu, então, que ventos te trouxeram,
sem nada revelar, para estes lados,
que fado foi o teu ? Será que Ascânio
ainda é teu, ser á que ainda vive
quem tu querias tanto ainda em Tróia ?
E será que lhe lembra ainda a mãe ?
E será que atraído s e sente ele
pelo valor antigo, o heroísmo
do pai Eneias, de seu tio Heitor?"
Tais foram as palavras, misturadas
com lágrimas correndo, estes gemidos
em vão ela soltava, quando Heleno,
um Priârnide herói apareceu
fora do baluarte, grande escolta,
aos seus reconheceu, logo os levou
a sua própria casa, mas chorando
entre cada palavra que dizia.
Enquanto vou andando vejo Tróia,
urna pequena Tróia, como Pérgarno
se construiu retendo por modelo
a que foi grande outrora ; há um regato,
bastante seco, que se chama Xanto
e beijo o limiar à Porta Ceia.
Os meus Troianos bem contentes vão,
corno eu estou, com a cidade antiga.
O rei os recebeu em amplos átrios
e, de taça na mão, a meio do pátio,
a Baco ofereceram os seus dons,
diante de comida em pratos de ouro.
Aqui um dia passa, um outro vem,
e já as brisas chamam nossas velas,
já o Austro, soprando, as arredonda.
Ao profeta me vou, assim lhe rogo :
"Filho de Tróia, intérprete dos deuses,
tu que conheces o querer de Febo,
tripés, os loureiros do deus de Claro,
tu que sabes dos astros, línguas de ave,
sinais que deixam as velozes asas,
vamos, fala comigo ; eu tanto andei
e sempre para mim houve esperança,
no que se revelou soube de rumos.
208 VIRGÍLIO

Os deuses todos j untos em mim põem


vontade de chegar àquela Itália,
àquelas terras que tão longe ficam.
Só a Harpia Celeno me anuncia
um prodígio espantoso que nem ouso
ante ti evocar, as ameaças
de sinistras vinganças, duma fome
que nem posso contar entre os perigos.
Olha, destes perigos quais serão
os que primeiro tenho de evitar?
De que modo posso eu ultrapassar
todas as provas que ante mim se põem ?"
Então Heleno, tendo, como deve,
vitelos imolado, inteira paz
aos deuses pede, desatando as fitas
que a sagrada cabeça lhe adornavam,
por sua própria mão me conduzindo
ao que é teu limiar, Febo, deus meu.
Perante a majestade que tu és
angustiado fico, mas logo ele,
porquanto é inspirado sacerdote,
oráculos profere deste modo :
"Ó filho de uma deusa, não duvides
que irás ao mar com o melhor auspício,
pois foi assim que o rei de nossos deuses
dispôs quanto ao destino, traçou voltas,
tudo segundo a ordem que vivemos.
Sendo isto assim, vão só minhas palavras
fazer que vejas claros certos pontos,
para haver navegar de menos riscos ;
o mar te acolherá e chegarás
a um porto de Ausónia em que te fixes.
Quanto ao resto, não o permitem Parcas,
Heleno nada sabe, a deusa Juno
não deixa que ninguém possa dizê-lo.
Primeiro, Itália, que tu crês j á perto,
e, por o não saberes, te preparas
para ancorares já em porto seu,
Itália é muito loge, dilatada
será tua viagem, muitas terras
terás tu de tocar antes que chegues.
Curvar-se-á teu remo com as águas
ENEIDA 209

que banham a Trinácria, teus navios


terão de conhecer o mar da Ausónia,
os lagos dos infernos, mais uma ilha,
que é de Circe Eeia, antes que alcances
algum lugar em que levantes muros.
Eu vou dar-te os sinais, os guardes tu
bem ocultos no peito em teus trabalhos.
Junto às águas dum rio que longe fica
irás tu encontrar um peixe enorme
com trinta filhos que acabou de ter,
todo estendido, branco, sobre o solo,
debaixo de arvoredo : ali será
o lugar da cidade em que descanses
de tudo o que tiveste de passar.
Não te assustes de nada haver nas mesas,
o destino virá, invoca Apolo
ele te ajudará a triunfar.
Mas destas terras que são já de Itália,
onde se espraia o mar que tu navegas,
foge tu bem depressa, que as cidades
têm por habitantes gregos maus.
Aqui ficaram Locros de Narícios
e Lício Idomeneu ocupa os campos
que salentinos são, e com soldados ;
aqui Petília humilde tem agora
como seguro apoio toda a muralha
que Filoctetes ergueu, o Filoctetes
que a Melibeu mandou. E sobretudo,
quando os navios já do outro lado estejam,
e que já tenhas tu disposto altares
para cumprir os votos que fizeste,
cobre a cabeça com mantéu de púrpura
a fim de que nas cerimónias sacras
não te surj a das chamas rosto hostil
que mudar venha todos os presságios.
E que este rito tu e companheiros
sempre conservem nos seus sacrifícios
e de vós passe a todos vossos netos.
Mas quando vento leve, ao te afastar,
às costas da Sicília e que um pouco abra
Peloro tão estreito sua barra,
deixa terra de esquerda e pela esquerda
210 VIRGÍLIO

mete-te tu ao mar em longa volta,


fugindo, por direita, à costa e vagas,
pois que todo o lugar, por violência
dum vasto desabar, foi arrancado
ao que fronteiro fica : vê tu como
pode o passar do tempo provocar
o que era inesperada convulsão.
As duas terras eram uma apenas,
mas veio entre elas furioso mar
e suas ondas brusco separaram
o que era Hespéria do que foi Sicília,
com cidades e campos divididos
por um estreito que no meio ferve,
para o flanco direito ficQu Cila,
a severa Caríbdis do esquerdo.
Uma imensa maré, e por três vezes,
se levanta no céu e bate os astros.
Cila, duma caverna tenebrosa,
põe de fora a cabeça e aos navios,
atraindo-os, os joga nos rochedos .
No de cima do corpo é ela humana,
com um peito perfeito até ao ventre,
o que há depois é forma monstruosa
de barriga de lobo e de uma cauda
que de golfinho vem. O que é melhor
é ao largo vogar do que é Paquino,
o Paquino Trinácrio ; ir devagar,
tão logo que se passe adiantar-se,
melhor do que ter visto informe Sila
e os escolhos batidos do ladrar
dos cães sombrios de que se rodeia.
Além disto, porém, se tem Heleno
capacidade alguma de profeta,
se merece que nele acreditemos,
e se é que o deus Apolo de verdade
lhe encheu o coração, um só conselho,
ó filho de uma deusa, te darei,
pois que sozinho vale os outros todos :
Adora antes de mais em tuas preces
divindade de Juno, te repito,
dirige a Juno os teus ferventes votos
e que essa tua oferta vença a deusa.
ENEIDA 21 1

Só então, triunfante, é teu caminho,


com o Trinácrio j á ultrapassado,
inteiramente livre até Itália.
Uma vez que lá chegues, te aproximes
da cidade de Cumas e dos lagos
que pertencem aos deuses e do Averno
com as suas florestas ressoando,
verás a delirante profetisa
que na rocha profunda os fados canta
e nas folhas inscreve seus sinais
e com eles os nomes que lhe importam.
Todo o prodígio que inscreveu a virgem,
nestas folhas que digo ela as guardou
na caverna em que vive em ordem certa,
mas se vento de entrada move as folhas,
de algum modo as dispersa, as desordena,
em nada ela se importa, não lhes volta
a marcar um lugar, a lhes dar ordem.
Quem então entra vai-se sem resposta
e raiva contra a casa da Sibila.
Mesmo, porém, que julgues perder tempo
e que teus companheiros sejam contra,
que navegar chame os navios ao largo
e que possas inchar as dóceis velas,
não deixes de encontrar a profetisa,
de pedir-lhe que cante seus oráculos,
e de fazer que ela descerre os lábios
e se ouça em sua voz o que é futuro .
Dos povos dessa Itália te dirá,
das guerras que hão-de vir e de que modo
podes fugir ou afrontar destino,
boa sorte te dando que tu sigas .
Eis aqui o que posso aconselhar-te :
vai, que te cumpras e que, pelos teus feitos,
se eleve a grande Tróia até aos astros."
Depois que o diz profeta em tom amigo
manda ele que se traga à nossa frota
e que em nossos porões se meta carga,
carga pesada de ouro e de marfins,
um tesouro de prata, uma couraça
entretecida de seus fios de ouro,
bacias de Dodona, um capacete
212 VIRGÍLIO

de arrogante penacho, uma armadura


que a Neoptólemo pertencia;
também meu pai recebe seus presentes,
e cavalos nos dá, nos dá pilotos,
e tudo o que podia equipar nau,
assim como armas para os companheiros.
Ordena então Anquises que aparelhe
e que demora alguma oponha ao vento.
Com um grande respeito assim lhe fala
aquele que ao deus Febo interpretava :
"Anquises, tu que um dia se julgou
merecer himeneu da grande Vénus,
tu, Anquises, que os deuses tanto cuidam,
por duas vezes salvo das ruínas
da cidade de Pérgamo, ali tens,
adiante de ti, a terra Ausónia
que tu deves tomar com tuas velas.
Todavia terás de ir adiante
porque ainda está longe aquela Ausónia
que a ti Apolo abriu." E continua :
"Vai, pois, ó pai feliz por teres filho
de tanta piedade. E já bastante
demorei eu os Austros com palavras."
Andrómaca então triste, nos momentos
que ainda existem antes que partamos,
traz panos de bordado em trama de ouro
e, por achar Ascânio digno de honra,
uma clâmide frígia lhe oferece,
lhe passa tais tecidos preciosos,
deste modo lhe fala: "Meu menino,
aceita isto, que sej a para ti
a mostra do que fazem minhas mãos,
que ateste todo amor que por ti tem
Andrómaca, a que foi esposa de Heitor.
Recebe uma dádiva última dos teus,
tu és a só lembrança que me resta
do meu Astíanax, porque seus olhos,
e porque suas mãos, porque seu rosto,
como os teus eram e também porque
seria o que serás quando homem fores ."
Com um choro que vinha ao afastar-me,
lhe disse a todos : "Que vivais felizes,
ENEIDA 213

pois sorte para vós se definiu,


enquanto para nós destino ordena
que ainda procuremos o que falta.
Descanso é para vós, não tendes mais
de lavrar estes campos que são de água,
de procurar sem fim terras de Ausónia
que diante de nós sempre recuam,
tendes junto de vós algo que é Xanto,
uma Tróia fizeram vossas mãos,
esta decerto com melhor presságio,
e possa esta vossa obra evitar Grego .
Se algum dia entrar eu num rio Tibre
e nos campos que ao Tibre estão vizinhos
e se eu vir as muralhas de meu povo,
então será uma cidade irmã,
nossos povos irmãos, Hespéria irmã
e próxima de Epiro, tudo tendo
Dárdano como autor, o mesmo autor,
com afinal um só destino tudo,
o de ser Tróia em nossos corações,
que isto queiram também os nossos netos."
Pelo mar avançamos, muito perto
das costas da Ceráunia, pois daí
mais curtas são distância e travessia
para Itália. Entretanto desce o Sol,
os montes, j á escuros, ficam noite,
nós no chão repousamos, junto ao mar,
tendo tirado à sorte os remadores,
as forças restauramos e, no seco,
o sono se apodera dos cansados.
Ainda a Noite que por horas vai
não estava em metade de seu orbe
quando o infatigável Palinuro
se levanta do leito, estuda os ventos,
em seus ouvidos recolhendo os sopros,
segue o povo dos astros pelo céu,
em silêncio Arcturo, chuvosas Híadas,
duas Triões vão, atento olha ele
ao Oríon armado todo de ouro.
Vê que tudo está calmo em céu sereno,
de cima então da popa dá sinal,
nós levantamos nosso acampamento,
214 VIRGÍLIO

a rota retomamos quando abrimos


as asas que nos são as nossas velas.
Já fugiam estrelas quando Aurora
enrubescida Aurora, se mostrava,
longínquas vemos colinas difusas,
e para a parte baixa havia Itália.
"Itália", Acates grita, é o primeiro,
os companheiros logo Itália salvam,
meu pai Anquises taça nos coroa,
depois enche-a de vinho, em pé na popa
os deuses invocando assim se exprime :
"
Ó deuses, vós que sois do mar senhores,
como senhores sois de terrá e céu,
dai-nos boa viagem e bom vento,
que vosso sopro seja favorável."
Vão aumentando as desejadas brisas
e já perto de nós um porto se abre,
num alto um santuário de Minerva.
Todos ferram as velas, proa à costa.
Do lado donde o Euro sopra as ondas
se curva o porto em arco, com espuma
os molhes aspergindo, ao próprio porto
não o mostrando muito com rochedos
que, na forma de torre, estendem braços
que são como muralhas, com o templo
se afigurando agora mais distante.
Vejo quatro cavalos, bom augúrio,
pelas ervas pastando que, de longe,
pareciam brilhantes como neve.
Então meu pai Anquises : " É a guerra
que tu nos mostras, terra, ao receber-nos,
pois que cavalos se armam para a guerra,
é com guerra que estão ameaçando.
Mas é a corcéis destes que se dá
hábito de puxar carro, usar um freio,
de acordo com o j ugo a que se doma.
É esperança de paz que nos dão eles."
Invocamos então a deusa Palas,
deusa de armas sonoras, que primeiro
nossa alegria acolhe ; ante os altares,
de cabeça coberta com véu frígio,
aos conselhos de Heleno todos dóceis,
ENEIDA 215

honrando Juno argiva, em ritual,


as devidas ofertas nós queimamos.
Sem demora nenhuma, após cumprirmos
os votos que eram nossos, preparamos
tudo para a partida, aparelhando
vergas e velas como de preceito,
e dos Gregos deixamos moradias
e campos inseguros. Descobrimos
logo depois o golfo de Tarento,
ao que se diz, cidade que era de Hércules ;
ergue-se mesmo em frente o que é Lacínia,
a divina Lacínia, Cáulon logo,
com sua cidadela, e com Cilaceu,
o de quebra-navios. Mais ao longe
se divisava o Etna da Trinácria
e pelo vasto espaço ressoava
o lamento do mar sobre os rochedos,
todo o ruído feito ao se quebrar,
os fundos que refervem, o refluxo
que chega misturado com areia.
Disse então pai Anquises : "Vede bem,
o que tendes diante é o medonho
Caríbdis funesto, escolhos, rochas,
que Heleno anunciou. Força nos remos,
fujamos já daqui." Obedecemos,
e manda Palinuro virar proas
para o lado de esquerda; com a ajuda
dos ventos e dos remos se faz isto
e no rumo de esquerda nos livramos.
Por vezes vamos nós até ao céu,
por vezes mergulhamos para os Manes
conforme a vaga eleva ou se nos furta.
Por três vezes nos vem clamor de rocha
e por três vezes à vista ferve espuma,
os astros como que banhados de água.
Já se foram de nós o sol, o vento,
exaustos de fadiga e sem sabermos
onde é que estamos, abordamos nós
as terras dos Ciclopes . Abrigado
do vento está o porto, enorme porto.
Bem perto sobe o Etna em que retumba
o trovão dum terrível desabar,
216 VIRGÍLIO

de quando em quando ao éter projectando


nuvem negra de fumo que é de pez,
suas cinzas ardentes ou esferas
que de chamas são feitas e que lambem
as estrelas do céu ; e, num soluço,
faz ele subir rochas, as entranhas
que arranca da montanha ou amontoa
por debaixo do céu pedra em fusão
e tudo ferve fora quando sai
do fundo dos abismos que ele é mesmo.
Diz-se que, meio queimado pelo raio,
é o corpo de Encélado o que enterra
aquele monte sob a sua massa;
é pesando sobre ele que Etna imenso
flameja das fornalhas que rebentam ;
a cada volta que o gigante dá
Trinácria treme, ruge, cobre o céu.
Essa noite passámos nós no bosque
entre prodígios que eram monstruosos
sem podermos saber qual era a causa
do tumulto de som. Nenhuma luz
brilhava de astros ou cercava o pólo,
vapor escurecia todo o céu,
noite negra retinha lua em nuvens.
Já no dia seguinte, amanhecendo,
com a estrela núncia veio Aurora
e do céu afastou húmida sombra.
É então que impensado sai do bosque
estranhíssimo vulto mais que magro,
o de um desconhecido cujo aspecto
era de lamentar e que estendia
suas mãos suplicantes para nós.
Ficámos a olhá-lo, a ver aquele
sinistro sujo, recoberto o rosto
de barba parecendo devorá-lo ;
roupa rasgada, presa por espinhos,
que era grego nós víamos, um daqueles
que armados tinham atacado Tróia.
Logo que percebeu sermos Dardânios,
com as armas troianas conhecidas,
um instante hesitou em seu temor,
parou de andar, só que depois correu,
ENEIDA 21 7

sem fôlego ficou, mas sempre disse


o que dizer queria em prece e choro :
"Pelos astros vos rogo e pelos deuses
e pela luz do céu que a nós nos cobre
que vós, Troianos, me tireis daqui.
Levai-me vós sej a para onde for,
sair é o que importa. Bem sei eu
que fui daqueles dos navios dánaos,
confesso que aos Penates dos Troianos
a guerra fiz ; se para vós é crime
o de que sou culpado, castigai-me,
precipitai nas ondas o meu corpo,
o meu desfeito corpo, no mar largo
podereis afogar-me, que, se morro,
pelas mãos doutros homens morrerei."
Depois de ter falado ali ficou
prostrado a nossos pés, com os seus braços
nos cercando os joelhos. Nós, porém,
todos o animámos a dizer-nos
quem era e de que sangue era ele herdeiro
e que destino assim o maltratara.
Meu próprio pai Anquises dá a mão
àquele desgraçado, com o gesto
forças lhe restitui para acalmar-se
e tendo enfim deposto seu temor
assim nos fala tudo revelando :
"Sou de Í taca, meu nome é Aqueménides
e companheiro fui do triste Ulisses.
Meu pai era Adamasto, sem fortuna,
e sorte tivesse eu igual à sua,
para Tróia parti e companheiros
sozinho me deixaram na saída,
metido na caverna do Ciclope.
lnsana moradia, sanguinário
todo o repasto havido, sempre noite,
casa desmesurada, ele um gigante
às estrelas chegando pelo céu,
deuses, livrai o mundo dessa peste
que não se pode olhar nem conversar.
De carne, negro sangue se alimenta
dos miseráveis que na mão lhe caem ;
eu lhe vi apanhar os pobres corpos
218 VIRGÍLIO

de dois dos nossos e quebrá-los todos,


deitando-se de costas, num rochedo,
de rubras manchas todo o chão manchando.
Eu o vi mastigar membros humanos
donde um líquido negro se escapava,
eu vi que entre seus dentes palpitava
carne que era de gente. Na verdade,
não ficou sem castigo, pois Ulisses
não pôde suportar um tal horror,
em si próprio pensou o filho de Ítaca.
Logo que, embriagado, se estendeu,
hediondo, o gigante sobre o solo
dessa imensa caverna em que vivia,
mesmo dormindo a vomitar sujeira,
bocados em que havia vinho e sangue,
invocámos os deuses e tirámos
à sorte o que devíamos fazer;
o cercámos depois e com verruma
lhe vazámos na fronte o único olho,
um como escudo argivo ou a candeia
como as que Febo tem, assim vingando
os nossos companheiros feitos sombra.
O que deveis fazer pobres de vós,
é fugir mesmo, quebrar as amarras
que vos prendem a terra. Pois medonhos
como é um Polifemo no seu antro
quando recolhe o gado e tira o leite,
há uns cem como ele que na costa
vivem aqui, ali, por toda a curva,
uns Ciclopes horríveis na montanha.
Já extremos da Lua por três vezes
em pura luz brilharam. Vivo em mato,
em lugar solitário de animal
e duma rocha espio os tais gigantes
e tremo com seus passos, sua voz.
Á rvores me alimentam, duras bagas,
vou comendo as raízes que eu arranco.
E sempre olhando para um lado e outro
só hoje vi, pela primeira vez,
uma frota surgindo que era a vossa,
a seus homens me dei e bem me basta
ter escapado vivo, raça horrível.
ENEIDA 219

Fareis de minha vida o que quiserdes


e lhe dareis o fim que acheis melhor."
Falava ainda este homem quando vimos
no cimo da montanha Polifemo
que apascentava o gado. Massa enorme
em direcção aos campos conhecidos,
um monstro a quem a luz fora roubada,
monstro, sim, horroroso, informe, enorme.
Um pinheiro partido guia a mão.
lhe dá firmeza ao passo, enquanto ovelhas
cheias de lã lhe fazem companhia,
são elas o seu gosto, o seu consolo
nos males em que vive. Chega às águas
em seu líquido campo se adianta,
lava o sangue que sai de olho vazado,
entre gemidos, dentes a ranger
e num instante está no meio do mar
sem que água cobrir possa aquela arriba.
Nós, porém, a tremer, nos apressamos
a tudo preparar para fugir,
e, levando connosco quem salvámos,
que bem o merecia, nos soltámos,
as amarras cortámos, e, remando,
com todo o nosso esforço, nos furtámos.
Mas ele deu por nós e se voltou
para o lado em que os passos lhe soaram,
quis deitar-nos a mão, mas não o pôde
que já íamos longe em onda jónia.
Um imenso clamor abala o mar,
ao profundo de Itália lhe dá medo
e faz rugir ao Etna nas cavernas.
Mas, saindo do bosque e da montanha,
corre aos portos a raça dos Ciclopes,
toda a linha da costa cobrem eles.
Bem os vemos em pé, de torvo olhar,
os seus irmãos do monte rugidor
com as cabeças a tocar o céu,
e são como se fossem arvoredo,
uns carvalhos aéreos, uns ciprestes
numa floresta que de Jove fosse
ou num sagrado bosque de Diana.
Um aguilhão de medo nos apressa
220 VIRGÍLIO

e, só pensando nisto, carregamos


e velas desfraldamos para o vento.
As instruções de Heleno dissuadem
de entre Cila e Caríbdis passarmos,
porque 1r por um ou outro é quase morte.
O que parece certo é recuar
e, soprando do estreito de Peloro
vem Bóreas ajudar-nos. Já dobramos
as bocas do Pantágias e nas rochas
se abre o golfo de Mégara com Tapso
ao rés das águas vivas. Tais as praias
que nos mostrava, por as ter outrora
bordejado ao contrário Aqueménides,
o companheiro do perdido Ulisses.
É mesmo em frente do golfo de Sicânia
que se encontra, entre as ondas do Plemírio,
uma ilha, Ortígia, j á de nome antigo.
Diz-se que Alfeu, rio de É lida, tomou
um secreto caminho para aqui,
embora hoje, nas bocas de Aretusa,
se junte ele com águas da Sicília.
Com toda obediência veneramos
os deuses do lugar e daí passo
ao rico solo do estagnado Eloro.
Depois rasamos as arribas altas
mais as rochas em frente de Paquino.
Nos aparece ao longe Camerina,
que os destinos fixaram para sempre,
logo em seguida o campo que é de Gela,
a que o nome tomou dum rio bravo.
Sobre um monte escarpado e bem distante
mostra Agrigento os poderosos muros,
Agrigento, a que outrora produzia
magníficos cavalos. Pelo vento
levado sou e deixo Selinunte
com as suas palmeiras, Lilibeia,
a de fundos rochosos e de escolhos.
Logo o porto de Drépano me acolhe,
mas são costas que matam alegria,
pois que dali, depois de tão batido
por temporais marinhos, se me vai
meu pai Anquises, o que me ajudava
ENEIDA 22 1

a suportar os males que sofria.


Pai querido, depois de ter podido
de tão grandes perigos te salvar,
me vejo sem a tua protecção
para todo o cansaço em que mergulho.
Só esta dor, depois de tantas outras,
não ma predisse Heleno
nem sinistra Celeno anunciou.
Foi a prova suprema e, na viagem,
o ponto decisivo ; ao afastar-me
me trouxe um deus a esta vossa terra.»
Assim o grande Eneias a quem todos,
a ele só, prestavam atenção,
ia contando sua vida errante,
a diversa vontade que é dos deuses.
Por fim calou-se e, terminando aqui,
entrou no descansar que merecia.
LIVRO IV

A rainha, porém, Ja tao ferida


daquele golpe que não tinha cura,
com o sangue das veias nutre o mal
e numa oculta chama se consome.
Em seu peito ficaram as feições
e nele permanecem as palavras,
o cuidado é tamanho que não dá
sossego algum ao fatigado corpo.
Na seguinte manhã, já quando Aurora
com luz de Febo iluminava o mundo,
tendo há pouco acabado húmida sombra,
assim Dido falou a sua irmã,
que era espírito unânime com ela :
«Ó querida Ana, que visões nocturnas
me dão desassossego e me dão medo.
Que homem este que entrou em nossa casa!
Que segurança brilha em sua fronte!
Que força no seu peito e suas armas!
É da raça dos deuses, não me engano.
À nobreza é o medo que a revela,
e de que modo os fados o provaram.
Quanta guerra contou, todas passadas .
Se não havia em mim e na minha alma
senão o voto de não mais casar,
depois que a morte me levou amor,
se o himeneu a mim me repelia,
quem sabe não é ele o único homem
para o qual poderia ceder eu.
Te confesso, minha Ana, após os fados
terem trazido a morte de Siqueu,
manchados os Penates por um crime,
ENEIDA 223

foi este quem tocou meu coração,


quem me deu força neste vacilar.
A velha chama em mim brilha de novo .
Mas que a terra me engula em seus abismos,
que me fulmine o poderoso Pai,
me prec ip ite na cerrada noite
que de Erebo é o reino, antes que possa
infringir eu a lei do que é pudor.
O primeiro que a mim se me ligou
consigo sepultou os meus amores
que em seu túmulo guarde bem seguros. »
E , tendo assim falado, com as lágrimas
Dido molhou as pregas do vestido.
Ana responde então : « Querida irmã,
bem mais querida do que a luz do Sol,
vai-te passar assim a mocidade
sem teres conhecido o que é ter filhos
e sem gozares do favor de Vénus ?
Achas que cinzas, Manes, disto cuidam ?
Certo que em teu desgosto nenhum houve
que, pretendendo, fosse satisfeito,
não houve aqui em Líbia nem em Tiro.
Só desdém teve Jarbas, só o mesmo
receberam de ti os chefes de Á frica.
Repelirás amor que tanto queres ?
Não sabes em que povos moras tu ?
Por aqui são do Getúlio as cidades,
do Getúlio jamais vencido em guerra,
vêm depois os Númidas, guerreiros
de cavalo sem freio, depois Sirte,
para ninguém acolhedora terra,
por sede desolada, ou invasões
desses Barceus em fúria; nem direi
das guerras com as quais Tiro ameaça,
ou que pode pensar o teu irmão.
Creio que foi sob um divino auspício,
que foi por um favor da deusa Juno,
que o vento encaminhou às nossas costas
estes navios ilíacos chegados.
Como irá ser nossa cidade, irmã,
que império verás tu engrandecer-se
se houver a sorte deste casamento.
224 VIRGÍLIO

Com a ajuda troiana que proezas


espalharão no mundo a fama púnica.
Invoca tu os deuses, que te apoiem,
cumpre o sagrado para bom augúrio,
inteira te dedica ao acolher,
entretece as razões de haver demora,
enquanto o tempo é mau de navegar
com chuvoso Orionte, fracos barcos,
e sem que esteja o céu de confiar. »
Com o que disse lhe inflamou o espírito
dum amor sem medida, assim lhe dando
na dúvida que havia, uma esperança,
a liberdade para além do escrúpulo.
Logo as duas se vão aos santuários
e de altar em altar pedem a paz,
ritualmente ovelhas escolhidas
sacrificam a Ceres, a das leis,
a Febo e a Lieu, o venerando,
porém à deusa Juno antes de todos
por ser ela a que cuida dos enlaces
que se afirmam depois em casamento.
Com a taça na mão a própria Dido,
lindíssima, derrama o sacro vinho
entre os chavelhos duma vaca branca
ou em solene marcha ante seus deuses
dá a volta aos altares tão solenes,
começa o dia com sagrados votos
e busca nas entranhas das ofertas
o que lhe podem elas revelar.
Ah! como não conhecem nada os vates!
Para que servem votos ou altares
a quem em si não está, a quem o fogo
devora o mais interno, o mais secreto
que se pode abrigar em peito humano ?
Queima-se a pobre Dido e na cidade
por todo o lado vai em seu delírio,
como iria nos bosques que há em Creta
uma cerva ferida pelas setas ;
pastor que a perseguia com seu arco
de longe a atingiu, à imprudente,
e, sem saber, deixou cravado o ferro.
Bem corre ela por bosques e gargantas,
ENEIDA 225

só que a arma ali fica no seu flanco.


Ora vai às muralhas com Eneias,
lhe mostra com orgulho quanto tem,
como a terra Sidónia o está esperando,
e começa a falar, logo se cala.
Chegado o fim do dia, no que pensa
é em voltar a um repasto igual,
ouvir de novo dos desastres de Ílion,
em delírio suspensa do que narra
outra vez uma boca que revê.
E depois, quando todos vão embora
e quando a Lua vai perdendo o brilho,
quando os astros, descendo, chamaq�. sono,
sozinha em sua casa fica triste,
estendida nos leitos do banquete.
Quem ausente se encontra ausente vê,
ausente escuta mesmo e nos seus braços
ao Ascânio retém porque do pai
relembra ele as feições que a ela prendem,
assim tentando Dido disfarçar
aquele amor que quer e não aceita.
Já não avançam torres começadas,
já não há para os jovens exercícios,
ninguém trabalha pelos cais do porto
ou baluartes de frustrar ataque
e que, se iniciadas, se suspendem
até muralhas ameaçadoras,
toda uma construção ao céu erguida.
Logo que a viu, porém, tão atingida
por um golpe tão fundo, sem cuidado
por sua própria honra a proteger,
se dirigiu a Vénus a Satúrnia
cara esposa de Júpiter, lhe disse :
«Que coisa tão bonita, que famosa
a vitória que tu e teu menino
tiveram sobre uma mulher sozinha,
vencida pela astúcia de dois deuses.
Decerto me não foge que temendo
o que possam fazer nossas muralhas
te são suspeitas casas de Cartago.
Mas não haverá fim às dissensões
que há tanto tempo existem entre nós ?
226 VIRGÍLIO

O que nós temos é que conseguir


a paz eterna com este himeneu.
Tens tu o que querias com fervor,
Dido ardendo de amor, com a paixão
que toda a penetrou. Seja este povo
o povo de nós duas, mesmo auspício
lhe concedamos nós em sua marcha.
Deixemos que ela sirva esposo frígio
e que te dê a ti todos os Tírios
que serão o seu dote de casar. »
Mas Vénus percebeu que estas palavras
ditas sem ser sincera pela deusa
só pretendiam desviar à Líbia
a realeza que ia ser de Itália.
Então, o tendo visto, assim responde :
«Quem seria tão louco que pensasse
que ia recusar ele a bela oferta
ou que de armas na mão afrontaria
o poder soberano que tu tens ?
Mas o que falta é que, feito o que pensas,
o pudesse aceitar quem é Fortuna.
Mas a verdade é que eu estou incerta
quanto aos destinos, tanto me confundem ;
será mesmo que Júpiter deseja
que só uma cidade tenham tírios,
todos aqueles que deixaram Tróia,
que dois povos se juntem e pactuem ?
Tu és a sua esposa, a ti compete
saber que preces tuas dele tiram.
Vai tu, e, no que houver, te seguirei. »
Assim lhe respondeu a régia Juno :
« É mesmo o que farei. Mas o que tenho
de te dizer em breve fala e logo
é o que há a fazer de mais instante :
A pobre Dido, Eneias se preparam
para caçar um pouco pelo bosque,
quando amanhã Titã soltar os raios
com que ele irá iluminar o mundo.
Vou lançar sobre eles, envolvendo-os,
escura nuvem com saraiva um tanto ;
enquanto os servidores lhes trabalham
rodeando os maciços com as redes,
ENEIDA 227

abalarei o céu com meus trovões.


Os companheiros todos se dispersam
na noite negra que sobre eles veio,
mas Dido e o Troiano se reúnem
na mesma gruta em que estarei também,
e, se posso contar com tua ajuda,
ali dentro os junto eu em casamento,
casamento seguro e duradouro. »
A Citereia, sem s e mostrar contra,
diz a tudo que sim, mas se está rindo
dessa imaginação que astúcias tece.
Aurora se levanta, deixa o mar.
Logo que surge a luz a flor dos jovens
sai da cidade com as suas redes,
suas armas de caça, agudo ferro.
Cavaleiros massilienses precipitam-se
tudo farej am vigorosos cães.
A rainha demora-se no quarto
e Púnicos, à frente, a esperam fora,
com os seus brilhos de ouros e de púrpura
o cavalo ali está e com um freio
todo branco de espuma e com patadas
que percutem sonoras. Aparece
finalmente a rainha com seu grupo,
vem de Sidónia túnica bordada,
o seu carcás é de ouro, de ouro o laço
que lhe prende os cabelos, gancho de ouro
o vestido lhe fecha sobre a púrpura.
Os convidados frígios se apresentam
com entre eles Iúlo tão alegre,
o próprio Eneias mais que todo belo,
vai instalar-se ao lado dos da casa,
os dois grupos congrega. Quando Apolo
de Inverno sai da Lícia e xântias águas,
revê materna Delos, nos altares
renova com Cretenses os seus coros,
com Dríopes frementes, Agatirsos,
com seus pintados· corpos, vai em frente
pelos cimos do Cinto, com folhagem
que lhe contém, modela a cabeleira,
a cercadura é de ouro, com os seus dardos
nos ombros pessoando; assim Eneias
228 VIRGÍLIO

vai com o mesmo ousar, beleza igual


lhe resplandece no seu nobre rosto.
Depois que aos montes chegam em lugares
em que bem difícil era penetrar
cabras bravas se jogam dos rochedos,
de ponta em ponta vêm ; de outro lado,
os cervos a galope em campo aberto
atravessam em fuga, mas refazem
o juntar-se em manadas que abandonam
tudo quanto é montanha, Ascânio, jovem,
pelos vales, feliz, segue montado
em fogoso cavalo que ultrapassa
ora um ora outro, sempre no desejo
que, no meio deste gado de pouco ânimo,
lhe surja espumejante j avali
ou que fulvo leão do monte desça.
Entretanto começa a haver no céu
como uns sons de trovão, é tempestade
que vem logo a seguir, com saraivadas.
Assustados os Tírios que são de escolta
ou os jovens Troianos, com o neto
descendente de Vénus e Dárdano,
procuram pelo campo algum abrigo.
Dos montes vem cascata de torrentes,
Dido, o chefe troiano vão parar
a uma mesma gruta ; a deusa Juno,
disposta ao casamento, após a Terra,
lançam os seus sinais ; no cúmplice éter
raio rebrilha em fogos para as núpcias
ao tempo em que nos montes se ouvem ninfas .
Lhe foi aquele dia a causa toda
da morte que ela teve, das desgraças,
pois nem conveniência nem a honra
a podem defender, já que não pensa
ser um amor furtivo : é casamento,
com este nome cobre sua falta.
Logo às grandes cidades vai a Fama
por toda a Líbia, a Fama, aquele mal
pior que qualquer outro, pois, andando,
é que ela aumenta as forças poderosas.
Ao princípio é um nada, aumenta logo,
se liberta do medo, corre os ares,
ENEIDA 229

passos marcam o chão, mas a cabeça


por sobre as nuvens vai, nelas se esconde.
A Terra sua mãe, desesperada
pela raiva dos deuses, lhe deu vida
como à última irmã de Céu, Encélado,
forte de pés e de asas, monstro horrível,
que tantos olhos vigilantes tem
como penas no corpo e tantas línguas
quanto bocas que falam, tanto ouvido
quantas orelhas prontas para escuta.
Voando à noite pela terra e céu,
sempre estridente, sempre pela sombra,
jamais seus olhos cedem ao dormir.
Durante o dia fica vigilante
no cimo dos telhados ou nas torres,
pelas cidades medo semeando,
é com ardor igual que ela espalha
o que imagina falso ou é verdade.
E foi então anunciar aos povos
o feito ou o não feito por igual :
Assim disse ela que, chegado ali,
às terras em que estava, o grande Eneias,
herói que vinha duns avós troianos,
tanto o favorecia a bela Dido
que desejava tê-lo por esposo ;
por isso, nesse tempo, que era Inverno,
sempre um com outro estavam, só fazendo
o que lhes dava gosto, de seus reinos
em nada se ocupando, presos eles
em paixão vergonhosa. Deste horror
enchia a deusa toda a boca humana.
Vai direita ao rei Jarbas, incendeia-o,
com o que comunica o põe em fúria.
Era ele filho de Hanão que nascera
de ninfa Garamante que esse deus
tinha um dia raptado, e dedicara
a Júpiter uns cem templos grandiosos
em todo o vasto Império, cem altares,
e consagrara-lhe um perpétuo fogo
com que velava os deuses ; todo chão
se empapara com sangue das ovelhas,
toda a porta grinalda coloria.
230 VIRGÍLIO

Diz-se que, desvairado por ouvir


o que dizia a Fama, se prostrara
diante dos altares, mãos ao céu,
assim rogava longamente Jove :
<<Omnipotente Júpiter, vês isto
quando hoje o povo mauro te festeja
em seus leitos bordados, libações,
Leneias libações, a ti oferta,
Júpiter, vês tu isto ? Serás, Pai,
que quando brandes raios nada serve
que nós te veneremos com temor,
que são cegos teus fogos que amedrontam,
inúteis os rugidos que escutamos ?
A mulher vagabunda em nossas terras
que teve de pagar para fazer
uma cidade sem valor algum,
a quem nós demos leis de comportar-se,
que repeliu pedido de himeneu
que lhe fizemos nós, assim recebe
Eneias como dono em nosso reino ?
Agora um belo Páris com eunucos
que são de sua escolta se apresenta
com a fita meónia de seu queixo,
seus húmidos cabelos, ante nós,
como senhor do que nos foi roubado ?
Sem dúvida é por isto que levamos
ofertas que fazemos a teus templos,
sem dúvida é por isto que apoiamos
uma grandeza que equivala a nada. >>
Quando rogava assim ante os altares
ouviu-o Jove, o Todo-Poderoso,
os seus olhos voltou para o palácio,
morada da rainha e para aqueles
que por fugaz amor punham de parte
uma tão alta fama prometida.
Depois fala a Mercúrio, lhe dá ordens :
<<Vai depressa, meu filho, chama os Zéfiros,
desce com tuas asas, te dirige
aonde encontrarás D árdano chefe
que na Tírio Cartago fica à espera,
sem olhar as cidades que os destinos
de há muito já lhe deram, vai falar-lhe
ENEIDA 23 1

e lhe transmitirás minhas palavras


pelas rápidas brisas em que atente.
Não é homem assim que a bela mãe
prometeu que seria, nem para isso
que o salvou duas vezes de seus Gregos ;
o que ele tem de ser é o que rege
Itália que se bate e cria impérios,
aquele que prolonga a nobre raça
que vem de Teucro e põe em seu domínio
um inteiro universo. Se um tal fado,
se brilho do futuro o não anima
a tentar o que for de sua fama,
será que o pai vai enviar a Ascânio
as colinas de Roma que dele eram ?
Que lhe anda na cabeça ou que esperança
o demora num povo que lhe é contra,
em lugar de já ver os descendentes
que Ausónios lhe serão e seu Lavínio ?
Que volte já ao mar. E nada mais .
Este recado nosso lhe darás. >>
Depois de assim falar, logo Mercúrio
se preparou ao que mandava o Pai.
Calçou primeiro a sandalinha de ouro
que, com asas, ao ar o transportou,
quer por cima do mar quer sobre a terra,
e voando depressa como o vento.
Depois na vara pega, pois com ela
evoca de Orco as tão lívidas almas,
outras envia ao Tártaro sinistro,
exacto como dá ou tira o sono
ou abre olhos que a morte já selou.
A vara emprega no dar rumo aos ventos
ou quando nada por confusas nuvens.
Já em seu pleno voo ele distingue
os cumes, as escarpas que são de Atlas,
desse Atlas, o gigante que sustenta,
com toda a sua altura, os largos céus.
Toda a cabeça cobrem-lhe pinheiros,
cinge coroa de sombrias nuvens,
ventos o batem juntos com a chuva,
neve espargida cobre-lhe as espáduas
e do queixo do velho correm rios
232 VIRGÍLIO

por barba enrijecida pelo gelo.


É aqui que primeiro, com as asas,
pousa o deus de Cilene, o mensageiro,
de lá, num só impulso, salta ao mar
como uma ave que voa rasa às águas,
entre rochedos com os seus cardumes.
Não é de outra maneira que ele voa
por entre céu e terra à líbia areia
e que corta ele os ventos quando vem
de junto desse deus, avô materno,
aquele que em Citera foi nascido.
Logo que os pés alados o desceram
para entre os aduares viu Eneias
que andava a levantar suas muralhas
ou se ocupava em construir as casas.
Uma espada trazia realçada
por jaspe fulvo, lhe brilhando aos ombros
um manto que todo era em tíria púrpura,
ricos presentes da opulenta Dido
que ao manto entretecera um fio de ouro.
Logo Mercúrio avança : «Aqui estás tu
a lançar alicerces de Cartago,
uma altiva cidade que será
bela também, que tu assim constróis
como se fosses só um bom marido
quando afinal és príncipe esquecido
do reino seu e de altaneiros fados.
O próprio rei dos deuses me enviou,
ele que faz girar o céu e a terra,
de seu ilustre Olimpo me mandou
para através dos ventos te lembrar
que não deves passar tempo ocioso
neste país da Líbia que não pode
a ti fazer raiar uma esperança.
Se te não move a ti alto destino
vê como Ascânio cresce e que esperança
há para teu herdeiro, aquele Iúlo,
a quem pertencerá Itália e Roma. »
Assim tendo falado desta forma,
já não conversa mais o deus Cilénio,
foge a olhos humanos e se escapa
num leve sopro que ninguém mais sente.
ENEIDA 233

Fora de si, emudeceu Eneias,


seus cabelos se eriçam, voz lhe falta.
A pressa que há é de partir, fugir,
é de deixar a terra hospitaleira;
foi como se o tivesse raio ferido
naquela ordem solene de seus deuses.
Que vai ele fazer? Como dizê-lo
à rainha já tão apaixonada ?
Como vai começar? Rápido espírito
o leva a uma ou outra decisão,
em posições opostas, lhe dá voltas
entre as escolhas várias e possíveis.
Nesta incerteza faz o que melhor
lhe parece no caso. Menesteu chama,
com ele vão Sergesto e Seresto,
lhes ordena que equipem os navios,
sem palavra a ninguém, e que reúnam
os companheiros todos pela praia,
que tenham pronto tudo o necessário,
sem explicar razão de tais medidas.
Por seu lado ele, pois que nada sabe
a excelente Dido nem suspeita
de terminar assim todo este amor,
terá que ver como chegar-se a ela,
um momento oportuno aproveitar
e ver a forma de encerrar-se tudo.
Os companheiros, cheios de alegria,
põem-se às suas ordens e depressa
se desempenham da tarefa entregue.
Mas a rainha pressentia o fim,
já que impossível enganar quem ama,
e foi ela a primeira a reparar
naquele movimento que emergia
quando pensava tudo decidido .
A Fama, no que diz, lhe traz delírio
ao relatar como armam os navios,
como todos se aprestam à partida.
Seu juízo se vela, ardendo corre
através da cidade como louca,
à maneira de Tíades exaltada
pela passagem do que lhe é sagrado,
quando, ao grito de Baco, trietéricas,
. 234 VIRGÍLIO

as orgias excitam-se na noite,


a convoca o Citéron em seu clamor.
Decidida a falar, diz a Eneias :
«Tu, pérfido, julgaste que podias
dissimular acção de tanta monta
e sair em silêncio desta terra ?
Nem nosso amor e nem sequer as juras
que trocámos um dia te retêm,
nem Dido, a que vai morrer decerto
de morte tão cruel ? Com este céu
em seus astros de Inverno larga a frota,
sôfrego tu de atravessar o mar,
no meio dos Aquilões, impiedoso ?
Se não fosses buscar um campo alheio,
lugares que te são desconhecidos,
se ainda houvesse tua antiga Tróia,
será que iam a ela teus navios
assim cortando vagas alterosas ?
É de mim que tu foges ? Mas em nome
do choro que derramo e da direita
com que juraste teu amor por mim,
em nome das primícias de himeneu
em nome do só isto que me fica,
e se é que alguma vez eu te agradei,
tem pena desta Casa que vacila ;
se ainda a prece vale alguma coisa,
te peço que desistas do pensado.
Por tua causa só a mim odeiam
as nações líbias, príncipes dos Nómadas,
os próprios Tírios meus me são hostis.
Minha honra se perdeu por tua causa,
esta fama de outrora que me abria
o caminho dos astros. Tu me deixas,
a quem me deixas tu ?, pois que, de esposo,
já não resta mais nada excepto o nome.
Que tenho eu que esperar? Que meu irmão
Pigmalião aqui venha e me destrua
esta cidade ou que o getulo Jarbas
me leve em cativeiro ? Mas, se ao menos,
pudesse ter por ti um descendente,
se um menino pudesse em sala minha
brincar perante mim e me lembrar,
ENEIDA 235

porque pequeno Eneias, o teu rosto,


já me não sentiria tão perdida,
já em tal abandono não estaria. »
Assim ela falou ; ele, porém,
ao conselho de Jove obediente,
ficou de firme olhar, o seu desgosto
no mais fundo do peito se ocultando.
Depois lhe respondeu : « Ü que pudesses
me dizer, ó rainha, j amais nego
que meu dever seria. Enquanto possa
de mim próprio lembrar-me, lembrarei
do que Elissa me foi, enquanto possa
minha alma governar o corpo meu.
Não julgues tu que foi meu pensamento
dissimular a fuga ou defender-me
com direitos de esposo, pois não foi
com propósitos desses que cheguei
à terra em que ora estou, pois se os destinos
tivessem permitido reger vida
segundo meus auspícios ou por mim
ordenar meus trabalhos, a primeira
a ter minha atenção seria Tróia,
para que honrasse os restos que há dos meus,
para que houvesse casa para Príamo,
para que nova Pérgamo fundasse
aos que foram vencidos. Nada disso,
pois agora me ordenam que depressa
ocupe a grande Itália Apolo Grínio
e vaticínios Lícios ; sem demora.
É ela a minha pátria, ali minha alma.
Tu mesma, que és Fenícia, ficas presa
aos muros de Cartago, pelo jeito
de ser da terra líbia: há motivo
para contrariares que troianos
queiram ficar na Ausónia? Bem podemos
também buscarmos nós terras alheias.
Penso em meu pai Anquises. Quando a noite
com sua húmida sombra cobre o mundo,
quando os ígneos astros se levantam,
sua imagem zangada me dá pressa,
em meus sonhos me vem atormentar.
Em Ascânio também, o tão querido,
236 VIRGÍLIO

na fraude que cometo por frustrá-lo


do reino que é o seu e das campinas
que na Hespéria lhe foram destinados .
Mas agora, insistindo, veio d e Jove
o mensageiro seu ; por nós dois juro
que por rápidos ares me trouxe ordens ;
eu próprio vi o deus luminescente
atravessar paredes, meus ouvidos
as ordens escutaram que, falando,
esse deus transmitia. Deixa então
de aos dois atormentar com tuas queixas.
Não é minha a vontade que me faz
prosseguir para Itália. >> Enquanto Eneias
estas palavras diz, ela, de lado,
o fixa num olhar enlouquecido,
que inteiro o toma, e lhe responde assim :
«Não, deusa não te é mãe nem é o Dárdano,
ó pérfido, a origem de teu povo,
Cáucaso te gerou nas suas rochas,
na Hircânia te criou leite de tigres.
Porquê dissimular e porque hei-de eu
guardar-me para males bem piores !
Será que ele gemeu quando eu chorei,
será que olhos voltou para me olhar,
será que ele, vencido, me chorou,
será que lamentou quem o amava?
Qual destas crueldades é pior?
Mas já, decerto, nem a grande Juno
nem o sagrado Satúrnio nos contempla
com qualquer piedade, alguma ajuda.
Lançado à costa, sem nenhum recurso,
fui eu a recebê-lo, eu, desvairada,
lhe dei lugar no reino, a seus amigos
os salvei eu da morte, à sua frota
que estava já perdida dei abrigo.
Agora, enlouquecida, sou das Fúrias.
De áugure Apolo e dos vates Lícios,
de todos lhe trouxe ordens, de que treme,
intérprete dos deuses que Pai Júpiter
lhe enviou ele próprio. Será essa
a tarefa dos deuses, são cuidados
como estes que perturbam a paz deles ?
ENEIDA 237

Pois então não te prendo, nem refuto


tudo que me disseste. Para Itália
segue tu com o vento que te leve,
procura pelas ondas reino teu.
O que espero, entretanto, é que entre escolhos,
se é que deuses fiéis assim o podem,
terás até ao fim o teu tormento
e muita vez invocarás a Dido.
Ausente, te sigo eu com negro fogo
e quando a fria morte separar
minha alma de meu corpo ; tu verás,
seja onde for que estejas meu fantasma,
que tu serás punido, miserável,
e disso saberei, pois hei-de ouvi-lo,
mesmo de lá, dos mais profundos Manes. »
Com isto quebra encontro e , dolorida,
foge às brisas do céu, toda se oculta,
e não mais ele a vê ; fica temendo,
cheio de hesitação, quando queria
longamente falar. As suas servas
recolhem a rainha, logo a levam,
desfalecida, aos mármores do quarto,
a depõem, inerte, no seu leito.
O piedoso Eneias, mesmo tendo
todo o desejo de abrandar-lhe a dor,
de consolá-la, de afastar as mágoas,
e de chorar, e muito, o grande abalo
sofrido por amor, vai, como deve,
cumprir ordens dos deuses, volta à frota.
Redobram os Troianos seu esforço,
tiram do litoral as altas naves,
e já flutuam cascos luzidios
do pez negro que tinham preparado.
Do bosque trazem ramos com as folhas,
madeira sem trabalho, tanta pressa
tinha toda esta gente de largar.
Dos bairros da cidade saem prestes,
como quando as formigas, quase Inverno,
vão numa negra fila pelos campos,
com o trigo pilhado, o armazenam
debaixo do que nelas é telhado ;
uma empurra com força grão enorme,
238 VIRGÍLIO

outra estimula fila sem demora.


Com o trabalho delas ferve a senda.
Que sentimentos tinhas tu, a Dido,
quando da cidadela tudo vias,
que lamentos havia quando longe
ou perto tuas praias referviam
dum incessante esforço ou os teus olhos
só águas inquietas encontravam.
Impiedoso amor, como perturbas
o peito dos mortais! A vês aqui
sempre ao choro forçada, mas tentando
a prece ainda, magoando orgulho,
em súplica abaixando o seu poder :
não queria deixar de fazer tudo
o que fosse possível, com o risco
de · perecer sem nada conseguir.
«Olha, Ana, como a praia assim se agita,
como de toda a parte eles vieram.
Já vela chama o vento, em suas popas
o marinheiro, alegre, põe coroas.
Se tive de aguardar tão grande dor,
também a posso, irmã, aguentar.
E também me farás, Ana, um favor,
já que só para ti tinha atenções,
até te confiando seus segredos
esse pérfido Eneias, capaz tu,
entre todos sozinha, de saber
quais os momentos bons e de que modo
alguém dele podia aproximar-se.
Vai junto dele, irmã, e lhe dirás,
ao soberbo estrangeiro, não ter estado
em Aulis com os D ánaos a j urar
que iria destruir nação troiana,
que não fui eu a que enviou navios
que Pérgamo batessem, que não fui
quem arrancou as cinzas ou os Manes
de Anquises, o seu pai ; porque recusa
com seus cruéis ouvidos escutar
o que tenho a dizer-lhe ? Para onde é
que ele se precipita? A quem o ama
pode ele conceder só um favor,
o de esperar que tempo venha ainda
ENEIDA 239

da fuga lhe ser fácil e dos ventos


o levarem aonde se dirige.
Não peço que recue na traição
que fez a nos casarmos, se despoje
desse seu belo Lácio e reino perca.
Só queria um momento, um quase nada,
só um pouco de calma, enquanto a sorte,
me ensina a suportar o quanto sofro.
Este último favor lhe pedirás,
perdoa, minha irmã, e, se mo der,
com minha própria morte o pagarei. »
É esta a sua prece, estas a s queixas
que a pobre irmã também guarda e repete.
Mas a ele não há lamentação
que possa demovê-lo, nem palavras
que, embora as escutando, modifiquem
o que já decidira ; seus destinos
se opõem, para tal há algum deus
que os ouvidos lhe tapa. Como em bosque
carvalho endurecido pelos anos
resiste aos Bóreas de Alpes que se batem,
com sopro contra sopro, por tirá-lo,
com arranque, do solo a que se prende ;
sibila ar pela copa folhas voam
pelas pancadas que recebe o tronco,
se agarra ele, porém, a seus rochedos,
se, por um lado, afronta etéreo vento,
por outro lado vai raiz ao Tártaro.
Assim vem ao herói rogo incessante,
o coração lhe ecoa essa desgraça,
mas a resolução em nada muda,
as lágrimas que rolam são inúteis.
Então, mais que perdida ante seus fados,
invoca Dido a morte e já se cansa
de abóbada do céu olhar em vão.
Para que haja o que quer e perca a luz
vem ainda o que vê pelos altares,
quando um incenso queima : água sagrada
negra lhe fica e, quando oferta é vinho,
ó sinistro presságio, a sangue passa.
Mas disto ninguém sabe, nem irmã.
Também no seu palácio tem um templo,
240 VIRGÍLIO

que ao esposo de outrora consagrara,


de mármore o fizera, lhe prestava
honras especiais, durante as festas
com os velas de neve e com as folhas
de ocasião solene. Pareceu-lhe
nele se ouvir falar e que era a voz
de esposo que a chamava, quando a noite
cobria a terra com as suas sombras ;
um mocho solitário muitas vezes
se carpia no cume em tom funesto,
o seu pio chegando quase ao choro ;
havia vaticínios muito antigos
de profetas que medo lhe metiam.
Um Eneias severo, em sonhos dela,
que eram como de louca, a afugentava;
e sempre lhe parece estar sozinha,
sempre, sem companheiro, vai a caminho,
a procurar os Tírios no deserto,
da mesma forma que em delírio Penteu
vê diante de si a força euménide,
duas vezes o Sol, ou que um Orestes,
o filho de Agamémnon foge em cena
duma morte de folhas e serpentes
quando no limiar estão esperando
as Fúrias resolvidas a vingar-se.
É quando então, vencida pela dor,
aceitou a loucura e decidiu
que havia que morrer, ajustou ela,
somente para si, o modo, a hora,
depois à irmã fala, esconde ideia,
e, já que ela se aflige, compõe o rosto,
faz brilhar esperança em sua fronte :
«Encontrei, minha irmã, caminho certo
de me ser dado Eneias ou soltar-me
desse amor que lhe tenho. Há um lugar
nos limites do mar de pôr-se o Sol,
nos longes de Etiópia onde o grande Atlas
faz rodar em seus ombros todo o céu,
as ardentes estrelas, daí mesmo
me veio sacerdotisa de Massília
que por lá ao dragão dava comida
e velava por que, nas sacras árvores,
ENEIDA 24 1

líquido mel houvesse com papoilas


que tão profundo sono nos provocam.
Com seus encantamentos tem poder
de aliviar os corações amigos,
introduzindo noutros os tormentos,
quando quer, água pára nos riachos
e faz voltar os astros para trás,
move nocturnos Manes, muge a terra
quando ela a vem calcar e das montanhas
faz que desçam os olmos. Juro, irmã,
pelos deuses to j uro e por cabeça
tão querida por mim como é a tua,
é sem as desejar que recorro eu
a estas artes mágicas. Vais pôr
no pátio do palácio sobre pira,
sem que seja quem for possa sabê-lo,
as armas que deixou, o que trazia,
o leito conjugal que me perdeu.
Quero eu, como ordenou sacerdotisa,
destruir a lembrança do maldito. »
Depois que ela isto disse s e calou.
Não crê Ana, entretanto, que por baixo
de estranha cerimónia esconda irmã
decisão de morrer e nem suspeita
que lhe chegou loucura a ponto tal
ou não seja o pior morrer Siqueu.
Cumpre, portanto, as ordens . A rainha,
quando já no palácio está a pira,
de lenha resinosa, de azinheiras ;
as grinaldas pendura em todo o pátio
com folhagens funéreas misturadas.
Depõe em cima todo o vestuário,
espada que deixou e sua efígie.
Em torno estão altares. Por três vezes
sacerdotisa de cabelo solto
invoca por três vezes, voz troando,
os cem deuses, o Caos, a tríplice Hécate,
mais É rebo, os três rostos de Diana.
Com alguma água derramada ainda
representou as águas do Averno,
segadas ao luar, foice de bronze,
se tinham recolhido ervas peludas
242 VIRGÍLIO

cheias dum suco de veneno negro,


e junto se pusera amor à mãe
extraído de fronte de cavalo
nascido há pouco tempo. Depois ela,
de mãos purificadas, despejara
uma farinha santa nos altares,
com um só pé descalço, veste solta,
no limiar da morte j uras dando
a deuses, astros que destino sabem,
com as preces a deus que tenha a cargo,
um deus fiel e justo, os que prendeu
amor sem esperança de resposta.
Era de noite e, pelo mundo afora,
os corpos fatigados de trabalho
no sono descansavam quando os astros
vão no cimo do curso, terra cala,
os bichos, aves de irisada pena,
quer nos límpidos lagos, quer no campo,
também repousam entre suas moitas,
com um dormir tranquilo, enquanto a noite
os embala, propícia, em seu silêncio.
A Fenícia, infeliz, nem um instante
se liberta no sono, nem recebe
o que lhe seja noite em alma ou olhos ;
nela amor se reergue, se exaspera,
sacudido nas vagas do furor.
Pára então ela e volta a seus projectos :
«Será que tenho, após esta desonra,
de voltar eu a quem me pretendia,
de pedir casamento àqueles Nómadas
que tanto desdenhei para maridos ?
Ou deverei seguir navios de Í lion,
aceitando o que exigem os Troianos ?
Bem gostaria de ir com os que outrora
a tanto ajudei eu, porque o favor
gravado fica em corações fiéis .
Se, porém, o faço eu, quem mo permite,
quem me recolhe em frota que me odeia?
Ah desgraçada, como não te lembras
de quanto perjúrio há em toda a gente
que é de Laomedonte ? Fugitiva,
fugitiva e sozinha, iria eu
ENEIDA 243

com sua triunfante marinhagem ?


Ou então com meus Tírios, todos eles
me porei navegando, com aqueles
que tão difícil foi arrancar eu
da cidade Sidónia? Novamente
os farei embarcar, dar vela ao vento ?
O melhor é morrer como mereces,
com ferro eliminando a tua dor.
É s mesmo tu, querida irmã, vencida
pelas lágrimas minhas que me incitas
que assim responda a nossos inimigos ?
Não me foi concedido que vivesse
sem censura nenhuma, como fera,
por ter renunciado a casamento,
evitanto eu assim o quanto sofro.
Tudo porque traí, sem o pensar,
o ser fiel às cinzas de Siqueu.>>
Entrecortadas queixas de alma vinham.
Eneias na alta popa, decidido
a partir para o mar, com tudo pronto,
sossegado dormia quando um deus
igual ao que já fora, apareceu ;
Mercúrio era decerto, a mesma voz,
o esplendor da face, a cabeleira,
inteiramente loura, a juventude,
e vinha preveni-lo : <<Como podes,
tu que és filho de deusa, assim dormir
quando tanto perigo te rodeia?
Não ouves como sopram, favoráveis,
os Zéfiros do céu, ao passo que ela
só em manhas medita, até um crime
disposta a cometer, o de matar-se,
com a cólera em vagas incitando ?
Porque não foges tu e não te escapas
quando escapar ainda te é possível ?
Depressa tu verás que o mar se agita
por baixo dos navios, que tocha ardente
bem perto já flameja e que estas praias
de chamas se encherão se Aurora vem
e se te encontra aqui neste parado.
Parte portanto, nada de demoras.
Mulher é vária e muda a cada passo. >>
244 VIRGÍLIO

E com a noite negra se fundiu.


Então Eneias, todo temeroso
perante esta visão inesperada,
ao sono o corpo arranca, Ja não larga
os companheiros seus : «Acordai logo !
Tudo aos bancos, aos remos ! Desferrai
as velas dos navios ! Deuses um deus
nos mandam a tocar-nos de aguilhão.
Apressemos a fuga, amarras cortem.
Nós te seguimos, deus sacro entre os sacros,
alegres tuas ordens cumpriremos.
Não nos deixes sozinhos, vem connosco
e por nos querer bem faz que brilhem
em céu aberto os astros protectores. »
Desembainha a fulgurante espada,
com a lâmina nua corta os cabos.
A todos comunica o mesmo ardor,
tudo se precipita, se atropela,
a costa deixam, com o mar sumindo
sob o velame enquanto batem remos
as espumas das águas que se apagam.
O leito açafroado de Titono
j á, para a luz trazer, deixava Aurora
quando a rainha viu de sua torre
haver a claridade e se afastar
a todo o pano a estrangeira frota;
vazio estava o porto, os remadores
tinham partido todos; ela, então,
por três ou quatro vezes bate o peito
e seu louro cabelo arranca ardente :
«Júpiter, lá se foi ; um forasteiro
veio troçar de minha realeza.
Não nos vamos armar e persegui-lo,
nós, a cidade toda, nos navios
que estão nos arsenais ? Ide, depressa.
Venham chamas e dardos e remai !
Mas que estou eu dizendo ? Em que lugar?
Que loucura invadiu a minha mente ?
Pobre da Dido ! A fere impiedade !
Mas era eu quem devia ter pensado
em tudo que sucede quando outrora
o meu ceptro largava ! Eis em que deu
ENEIDA 245

a jura que fazia quem levava


os Penates da pátria, quem trazia
consigo o pai quebrado pelos anos.
Como é que não pude eu apoderar-me
daquele corpo, o dispersar no mar.
Como não matei eu seus companheiros
e como é que pude eu, na mesma altura,
poupar o próprio Ascânio, não o dar
para que o devorassem nos banquetes ?
Talvez ficasse em dúvida o combate,
talvez ficasse, mas nenhum temor
devia ter tido eu, pronta a morrer.
Devia ter ido eu onde acampou,
com tocha em minha mão, pegando fogo
ao convés dos navios, matando assim
o filho, o pai e toda aquela raça,
a mim própria sobre eles dando fim.
Ó Sol que com teu fogo trazes luz
a tudo que se faz em nossa Terra,
e tu, Juno, que sabes e que tratas
de tudo que é cuidado como este é,
tu, Hécate, que evocas nas cidades
os uivos em que ululam cruzamentos,
ó Fúrias vingadoras, vós, ó deuses
duma Elisa que morre, olhai tudo isto
e dai aos maus a sorte que merecem,
satisfazendo as preces que elevamos.
Se tem de ser que essa execranda fronte
um porto atinja, a uma terra aborde,
se os destinos de Jove assim o querem,
se nada pode vir dum outro modo,
que seja ele atacado pela guerra
e pelas armas dum altivo povo,
que seja posto fora duma terra
que pátria lhe seria, que o arranquem
dos braços dum Iúlo, que tenha ele
de mendigar socorro e triste fim
veja a todos que pode chamar seus.
E que, depois da mais injusta paz,
nunca vindo a ser rei nem a gozar
dos desej ados dias, morra cedo
sem sepultura em meio das areias.
246 VIRGÍLIO

Tal é a minha prece, · esta a palavra


que de mim brota com o sangue meu.
Agora, Tírios, haveis de perseguir
com vossos ódios esta gente, sempre,
tudo que dele venha. É esta oferta
a que consagrarei às minhas cinzas.
Que nunca haja amizade entre os dois povos
e que jamais celebrem um acordo.
Que surj as de meus ossos, não sei quem,
e meu vingador sej as pelo fogo,
com tua espada expulsarás Dardânidos,
não só agora como em todo o tempo
em que força tenhamos para tal.
Que costas contra costas e que vagas
contra mares se batam para sempre,
que as armas contra as armas se levantem,
que todos os seus filhos se guerreiem,
sem jamais se cansar, imprecação
que eterna lanço aos deuses a que vou. »
Tais foram as palavras d a rainha
que a todo o ponto lança pensamento,
que o mais cedo deseja ver-se livre
da luz do dia a que tem ódio agora.
Rapidamente se dirige a Barce
que de Siqueu foi ama porque a sua
era só negra cinza em pátria longe :
<<Ama que me és querida, chama-me Ana,
dize-lhe que água viva ao corpo jogue
e que as ovelhas traga já consigo
com tudo que é preciso a expiação.
Que venha pois, enquanto cinges tu
com piedosa fita a tua fronte.
Honrando Jove Estígio preparei
com todo o ritual a cerimónia
a que desejo agora dar um fim ;
o sofrimento quero terminar
e dar ao fogo a pira do dardânio. »
Mal o disse ela, apressa o passo a ama
com um zelo de velha que se cumpre.
Mas Dido, desvairada, enlouquecida
pelo que contra si já decidiu,
olhos de sangue lança lado a lado,
ENEIDA 247

com, a tremer, a face já manchada


por palidez da morte que aí vem,
se precipita para o pátio interno,
à pira sobe sem que se domine,
dardânia espada empunha que não fora
dada como presente a duro fim.
Depois de olhar as vestes de troiano,
o conhecido leito, e de chorar,
no pensamento que toda era agora,
se deita duma vez e pronuncia
estas palavras com que se despede :
«Saudosas relíquias desse tempo
em que o destino, um deus o sustentavam,
minha alma recebei, me libertai
dos cuidados que assim me estão prendendo.
Eu vivi, percorri até ao fim
a rota a que Fortuna conduziu,
agora o que vai ser lembrança minha
à terra vai descer em que eu repouse.
Fundei uma cidade que é sem par,
ergui muralhas que eram mesmo minhas,
vinguei o meu esposo e castiguei
um irmão que se fez meu inimigo.
Feliz eu fui e mais feliz seria
se em tempo algum tivessem abordado
naves dardânidas estas costas nossaS . >>
E, comprimindo com a boca o leito,
continuou assim : «Embora a morte
nos venha sem vingança, pois morramos.
É deste modo que me agrada a mim
descer para entre as sombras, os fantasmas,
e que nos altos mares ao Dardânida,
aos olhos do Dardânida, chegue o fogo
que ali está em altar de nossos deuses,
que ele leve consigo o meu augúrio,
augúrio que é da morte que me toma. >>
Mesmo antes de acabar a vêem servas
caída sobre a espada recoberta
de sangue, espuma, com as mãos sem vida.
Um clamor corre então de sala em sala ;
com o que a Fama espalha na cidade
se levanta a desordem, com lamentos,
248 VIRGÍLIO

gemidos de mulher que abalam casas,


retumba pelos ares toda a queixa.
Dir-se-ia que é Cartago, ou velha Tiro,
que desaba em ataque de inimigos
e que mais furiosas rolam chamas
por onde vivem homens, pairam deuses.
Tudo ouviu a irmã; corre perdida,
sem poder respirar, ferindo o rosto
com as unhas, com punhos bate o peito
atravessando tanta gente j unta,
e chama a moribunda pelo nome :
«Foi portanto para isto, ó minha irmã,
que pretendias tu que eu me enganasse,
foi portanto para isto que essa pira,
os fogos, os altares predispunham.
De que se vai queixar primeiro a pobre,
assim abandonada? Desprezaste,
quando morrias, ter por companheira
a tua irmã que poderia ser
de fado igual àquele que escolheste ?
O mesmo ferro, no mesmo momento,
nos podia levar a nós duas.
E fui eu trabalhar nesta tarefa,
invoquei eu deuses de nossos pais,
para vir encontrar-te assim deitada,
sem estar junto a ti como devia?
Tua luz extinguiste, minha irmã,
com isto te perdeste, nos perdeste,
a mim, povo, senado, Sídon toda.
Dai-me com que lavar sua ferida,
se houver suspiro ainda o que desejo
é recolhê-lo com meus próprios lábios. »
O s últimos degraus ela transpunha
enquanto assim falava sem deixar
de abraçar sua irmã que falecia,
de tentar aquecê-la com seu corpo,
de com o seu vestido lhe ir limpando
manchas de negro sangue. A cada esforço
de reabrir os olhos que fechavam
de novo Dido toda se abatia
com um soprar do golpe que se dera.
Três vezes se firmou no cotovelo,
ENEIDA 249

três vezes recaiu na prostração,


de quando em quando olhava para o céu
à procura da luz que lhe fugia
e que, mesmo fugindo, a esperava.
Então a deusa Juno, poderosa,
com piedade de tão longa dor,
do Olimpo enviou Í ris que soltasse
aquela alma da luta violenta
em que tentava abandonar o corpo,
pois a morte não vinha de destino
nem de condenação que fosse justa,
morria antes do tempo e por desvairo,
não havia Prosérpina arrancado
da cabeça nenhum louro cabelo
nem entregado a vida ao Orco Estígio.
Í ris então, descendo como orvalho,
com asas de açafrão pelo céu fora,
voava frente ao Sol em cambiantes
que banhavam o rosto da rainha.
Paira sobre ela e deste modo fala :
«Tenho ordem de levar este cabelo
que só a Dite pertence e te liberto,
são as ordens que tenho, de teu corpo. »
Tudo acabou, vida voou ao vento.
LIVRO V

Entretanto na armada o firme Eneias


certo na sua rota prosseguia
cortando-lhe Aquilão escuras ondas,
ao tempo em que detrás ficavam muros
em que ele via luz dum chamejar
que era o do corpo de infeliz Elissa.
Ninguém, porém, sabia qual a causa
daquele grande fogo que avistavam,
mas os laços quebrados, o furor
que em mulher pode haver e que lembravam,
muito pesavam com sinistra cor
de mau augúrio em peito de Troianos.
Já a frota navega em alto mar,
terra alguma se via em qualquer lado,
só há o céu, as águas, nada mais,
quando sombria nuvem vem sobre eles,
uma nuvem de noite e tempestade
que pelas vagas lança suas trevas.
O próprio Palinuro diz da popa :
« Porquê pesadas nuvens pelos ares,
ó nosso pai Neptuno, que preparas ? »
Ordena então que ferrem o velame,
algum, porém, deixando de viés,
e que aos remos se atirem poderosos :
«Meu grande Eneias, não, mesmo que Júpiter
me garanta o contrário, posso esperar
que se chegue à Itália com um céu
como este que nos vem cortar viagem.
Saltearam os ventos de través,
dum sombrio poente nos acorrem,
ares todos são névoa, nem lutar
ENEIDA 251

nos irá ser possível, quanto a rumo


não há também maneira de o seguir.
Já que a sorte é mais forte, obediência,
que vá a nossa rota como ordena.
Penso que costa amiga estará perto,
e que será uma fraterna É rice
ou os portos sícanos, se o que lembro
é o mesmo que o certo e se é eu aos astros
que outrora eu observei que reencontro. >>
Responde então o piedoso Eneias :
«Creio também que assim o quer o vento,
vira de bordo, manda soltar vela,
que batalhando estás contra o que podes.
Por mim com gosto irei aonde possa
dar um descanso à fatigada frota
melhor que em frotas que no seio encerram
nosso Dárdano Acestes, pai Anquises. »
Logo que isto foi dito vão aos portos,
Zéfiros favoráveis tendem velas,
rápida sobre abismo segue a frota,
todos chegam por fim e bem contentes
a praias que lhes eram conhecidas.
Eis que ao longe, do cimo da montanha,
tendo reconhecido esquadra amiga,
acorre Acestes todo cheio de dardos
e vestido de pele de ursa líbia.
Acestes mesmo cuja mãe troiana
o tinha concebido do Criniso.
Seus avós não esquece, felicita
os Troianos que voltam e recebe
com alegria e festa camponesa.
Mal o dia seguinte o limiar
de leste iluminou e pôs em fuga
as estrelas da noite, manda Eneias
que os companheiros todos se reúnam
e de alto de colina assim lhes fala :
«Meus ilustres Dardânidas, que vindes
de sangue que é dos deuses, já uns meses
passaram e se chega ao fim dum ano,
um ano que se foi desde que os restos

de meu divino pai nós sepultámos


e luto consagrámos nos altares.
252 VIRGÍLIO

Se não me engano é esta mesmo a data


em que houve para mim dia de dor,
pois assim o quisestes vós, os deuses,
por isso dia sacro e venerando.
Mesmo que houvesse exílio para mim
nas Sirtes getulas ou nos mares de Argos,
ou, ainda, em Micenas, cumpriria
os votos anuais, ordenaria
as mais solenes pompas, nos altares
poria eu as rituais ofertas.
Hoje, porém, muito melhor em tudo,
pois é junto das cinzas de meu pai,
e certamente por querer dos deuses,
que aqui nos encontramos penetrando,
trazidos pelo vento, em porto amigo.
Vinde, pois, celebrai-lhe gratas honras
e que preces aos ventos dirijamos
para que ano após ano se repita
esta homenagem nossa na cidade
que tiver eu fundado, em todo o templo
que nalgum dia lhe consagraremos.
Para todo o navio oferta Acestes,
Troiano como nós, um par de bois.
Rogai à boda venham os Penates
que são de nossos pais mais os Penates
a que presta honra hospitaleiro Acestes.
Ainda não é tudo : se vier
para nós nova Aurora, que nos traga,
a todos os mortais, favor do dia,
o mundo renovando com seus raios,
farei convite a todos os Troianos
para que se dispute entre os navios
prémio de ser veloz ; como também
convocarei a todo o corredor,
a todo o que confie em sua força
para dardos ou frechas ou, na luta,
luvas de couro e chumbo, ao que apareça
sem que haj a medo de combate vivo
e brigue por ganhar a recompensa
de palmas que bem tenha conquistado.
E que todos respeitem o silêncio
e com os ramos cinjam suas frontes. »
ENEIDA 253

Assim tendo falado adorna Eneias


com o mirto materno suas têmporas ;
o mesmo faz É limo, como o mesmo
em si próprio pratica o forte Acestes
ou o jovem Ascânio ; toda a gente
prestamente os imita. Sai o chefe
daquela assembleia com milhares,
ao túmulo directo se encaminha
num imenso cortejo. À s libações
procede como deve, derramando
no solo duas taças de bom vinho,
duas de leite fresco, ainda duas
de sangue consagrado, com as flores
que de púrpura são e, simultâneo
assim falou : « Meu venerando pai,
pela segunda vez, salve, meu pai ;
salve de novo, cinzas mais que mortas,
almas e sombras que de meu pai são.
Não me foi dado que contigo, pai,
navegasse eu à terra italiana,
aos campos que o destino me marcou
como ao Tibre de Ausónia me aportou,
me sej a ele o que for que venha a ser. >>
Mal tinha acabado ele quando serpe
saiu do santuário em sete giros,
em sete enormes voltas, mas em paz,
a toda a sepultura se enlaçando
e coleando por entre os altares.
Manchas escuras tinha pelo dorso,
mas nas escamas uns rebrilhos de ouro,
exactamente como um arco-íris
frente ao sol irradia várias cores.
Dum espanto varado fica Eneias
ao ver como a serpente deslizou ou
pelas taças polidas, pelas páteras,
provou prados sagrados e tornou
ao fundo do sepulcro, abandonando
os altares em que se alimentara.
Retoma então, com mais ardor ainda,
as cerimónias com que honrava o pa1,
sem saber se devia no que vira
reconhecer o génio do lugar
254 VIRGÍLIO

ou servidor de herói, e sacrifica,


segundo o ritual, duas ovelhas,
cada uma de dois anos, e dois porcos,
dois vitelos também, de negro lombo.
Logo esvazia as páteras de vinho,
invoca os Manes de seu pai Anquises.
Na mesma os companheiros, e segundo
o que pode cada um, com alegria
trazem suas ofertas aos altares,
touros imolam enquanto uns outros põem
em ordem pelo chão brõnzeos suportes
e, estendidos nas ervas, fogo atiçam
para assarem a carne que ali está.
Tinha chegado o dia que esperavam
e, numa luz sem nuvem já traziam
cavalos de Fáeton nona Aurora.
O que corria e também o nome
do conhecido Acestes atraíam
povos à volta que se acumulavam,
contentes, pelas praias, desejosos
de verem todos os que eram de Eneias
ou competir nos jogos que haveria.
No meio do redondel estão os prémios,
com os tripés sagrados, as coroas,
as palmas que serão dos vencedores,
as armas, os tecidos encarnados,
talentos de ouro e prata. Uma corneta
a meio já ressoa anunciando
que vai dar-se começo àqueles jogos.
Quatro naves iguais, todas velozes,
prontas estão com seus pesados remos
a virem afrontar o desafio.
Comanda Menesteu rápida Prístis
com os seus tão fogosos tripulantes,
aquele Menesteu que dentro em pouco
será italiano, dele vindo
o nome de família a nossos Ménios ;
Gias é da Quimera, massa enorme
construída à maneira de cidade,
com os seus marinheiros em três filas
que num tríplice bater abrem as águas.
Na potente Centauro vem Sergesto
ENEIDA 255

que dará o seu nome à casa Sérgio ;


Cila, da cor do mar, é de Cloanto,
o que foi origem de Cluêncio em Roma.
Há, a meia distância quanto à costa,
que de espuma se cobre, certa rocha
que fica sob as ondas quando o Cauro
chega, de Inverno, a esconder os astros.
Mas, se o tempo está calmo, é em silêncio
que sobranceira às vagas fica a rocha,
ponto perfeito para o mergulhão,
tão amigo do sol, ir pular na água.
Foi mesmo aí que de azinheira grande
fincou ilustre Eneias um sinal
para indicar a marinheiros seus
que nesse ponto devem dar a curva
e voltar para trás depois que a sorte
marcou a cada nave o seu lugar.
Os próprios capitães em suas popas
luzem de longe com púrpuras, ouro,
os jovens marinheiros se coroam
de folhagem de choupo, os ombros nus
brilham ao sol com camada de óleo.
Assentam-se nos bancos, estendido
braço está sobre o remo, olham sinal,
ansioso lhes bate coração,
o desejo de fama apressa o sangue.
Logo que a tuba solta o claro som
parte cada navio da linha imposta,
já à frente se encontra, já os gritos
ecoam pelos ares, já o braço
deu seus puxões ao remo, já as ondas
ficam de espuma feitas, cada nave
prossegue no seu sulco, com os remos,
com esporões tridentes abre o mar.
Jamais carros em luta de corrida
tiveram mais forte ímpeto que as proas
quando se precipitam da partida,
quando os cocheiros, rédeas sacudindo,
incitam as parelhas que lhes cabem,
quando jogam o corpo para a frente
a brandir o chicote como uma arma.
Todo o bosque ressoa com aplauso,
256 VIRGÍLIO

com gritos de triunfo ou de animar,


de colina a colina vão os ecos
de todo esse clamor que o circo abala.
Bem à frente dos outros vai o Gias,
é primeiro entre todos no confuso
entrelace de gritos e de pressas ;
Cloanto logo atrás, que seus marujos
são do melhor que existe, mas o peso
do navio o demora ; depois dele,
a par seguindo os dois, Centauro e Prístis
tentando ultrapassarem-se um ao outro :
ora Prístis avança, ora é Centauro
que se vê adiante, ou são os dois
que vogam lado a lado em linha igual,
cortando água do mar com longas quilhas.
Já próximos estavam do rochedo
e da marcada meta quando Gias,
que ia à frente de todos interpela
o piloto Menetes do navio :
«Porque me levas tu tanto à direita?
Dá depressa de proa ao outro lado,
mais perto venha a borda que na esquerda
quase toquem escolhos nossos remos ;
os outros, ó Menetes, ao mar livre ! »
Apesar d o que disse, seu piloto,
com medo dos escolhos invisíveis,
roda a proa, ao invés, para o mar largo.
« Vais perder-te, Menetes ! Vem às rochas ! »
E tanto mais bradava o capitão
quanto via Cloanto aproximar-se
a forçar a passagem, como fez.
Entre os escolhos e o navio de Gias,
se abre caminho estreito pela esquerda,
rápido se adianta ao vencedor,
alcança num instante águas seguras .
Então ao jovem lhe penetra os ossos
uma profunda dor que em suas faces
lhe faz correr as lágrimas, o leva
a se esquecer do que a si mesmo deve
e do que deve à salvação dos outros ;
pega o mole Menetes e da popa
o joga para o mar em fúria ardendo.
ENEIDA 257

Depois faz de piloto e vai ao leme,


mas não deixa de ser o comandante,
exorta os marinheiros e vira a nave
para o lado da terra. Mas Menetes,
embora velho já e com a roupa
toda embebida de água, vem à tona,
sobe ao alto da rocha, a sítio seco,
e se senta no chão . Todo o Troiano
que já tanto se rira ao ver a queda
se ri ainda mais quando ele nada
e, já salvo, vomita em quantidade
água salgada que engolido tinha.
Sergesto, Menesteu, os que atrás vinham,
animados ficaram, na esperança
de adiantar-se a Gias que entretanto
algum tempo de atraso já sofrera.
Sergesto, percebendo que ganhava,
se aproxima da rocha, não igual
ao que era o comprimento do navio ;
de proa estava além, mas, pela popa,
via o rostro do Prístis já bem perto.
Por seu lado, no meio dos companheiros
se postou Menesteu e lhes falou :
«Vamos, amigos, força nesses remos,
vós que fostes de Heitor e que escolhi
para comigo virdes de viagem
quando Tróia perdeu e foi vencida,
mostrai como sois fortes, corajosos,
como o fostes perante as Sirtes getul as,
nas ondas do mar Jónio e nas bravias
vagas maleicas, Menesteu não quer
ser o pnmeiro, sim, não é vencer
aquilo por que luta, embora . . . não ;
ganhem aqueles que Neptuno apoia,
mas é uma vergonha vir no fim,
e disto nos livremos, cidadãos ! »
Com tanto quanto podem vão e m frente
e no navio até o bronze treme,
parecem águas lhes fugir dos remos,
respiração os membros lhes sacode,
lhes fica seca a boca, com suor
todo corpo se inunda aos marinheiros.
258 VIRGÍLIO

Vem por acaso a honra desej ada,


porque Sergesto, louco, guia a proa
como que para dentro do rochedo,
entra em passo difícil e se prende
nas pontas dos escolhos que o ladeiam.
Quando acabou a fala, do profundo,
onde o coro de Forco e das Nereidas
o havia escutado juntamente
com Virgem Panopeia veio ajuda
surgindo de Fortuna, o venerado,
impulso para a frente de maneira
que pôde ele, mais rápido que Noto
e que uma alada seta, vir a terra
e penetrar em abrigado porto.
Logo o filho de Anquises, ante o povo
disposto em ordenada assembleia,
manda arauto clamar que é vencedor
Cloanto a quem sem intervalo cinge a fronte
com as folhas do louro que é devido.
Para cada navio, em recompensa,
dá três touros à escolha e dá o vinho
mais um talento de ouro a repartir ;
além de tudo, aos capitães, as honras
que insignes foram, pois ao vencedor
coube clâmide de ouro em cuja borda
púrpura Melibeia ia correndo
em dobrado meandro e, no tecido,
em Ida recoberto de folhagem
um príncipe real força cervos
a lhe fugir diante com seus dardos
. .

e com suas carretras em que va1


todo anelante num ardente passo.
Foi um guarda de Júpiter que, rápido,
o fez descer com uma aguda garra
das alturas desse Ida em que os mais velhos
em vão levantam suas mãos ao céu,
em vão desencadeia uma matilha
seu ladrar contra os ventos. Vem depois
o segundo na meta que recebe,
feita de malhas de ouro em três camadas,
a cota de armas que arrancou Eneias,
o próprio Eneias, a Demóleo outrora
ENEIDA 259

junto ao ligeiro Símois de alta Tróia,


em que era vencedor, a cota de armas
que é defesa na luta, honra em vitória:
servos, Fegeu e Ságaris, do grego
mal a podiam transportar os dois,
mas Demóleo, sozinho, a revestia
ao perseguir Troianos derrotados.
Duas brônzeas bacias eram o prémio,
com as taças de prata que em relevo
adornavam figuras, conferido
ao que chegara em último lugar.
Desfilavam agora, com orgulho
nos tesouros que tinham conquistado,
os que levavam fronte guarnecida
duma púrpura em fita, ao tempo em que
solto do cru rochedo, vem Sergesto,
com um costado fora de serviço,
muito remo quebrado, honra manchada,
seu barco manobrando entre risadas.
Muitas vezes também uma serpente
surpreendida atravessando estrada
é apanhada de través no bronze
duma roda que passa ou pela pedra
que viandante t>rn fúria lhe jogou
e, meio morta, já quebrada a espinha,
em dores se retorce, com, dum lado,
os olhos fuzilando e sibilante,
mas doutro a trava golpe que sofreu
e para nada serve o colear.
Assim passou a nave de Sergesto
na lentidão dos remos que conserva,
mas lá consegue desferrar a vela,
entrar no porto já de vento em popa.
Eneias lhe dá prémio prometido,
todo contente de salvar-se o barco,
de terem alcançado terra os homens.
Recebe pois Sergesto como escrava
entendida em trabalhos de Minerva
uma moça cretense, Fóloe,
com meninos que ainda trás ao peito.
Terminado o certame dos navios,
vai piedoso Eneidas para espaço
260 VIRGÍLIO

que era todo relvado e todo plano,


cercado de colinas com seus bosques,
havendo neste vale um bom teatro
com arena no meio, e na tribuna
se sentou o herói anunciando
que prémios haveria para quem
quisesse disputá-los em corrida.
D e toda a parte se reúnem Teucros
e, com eles, Sícanos, vindo à frente
Euríalo com Niso, sendo Euríalo
o mais notado, pela juventude
e por pura beleza, mas sabendo-se
de todo o puro amor que pelo jovem
Niso sentia ; logo, como um rei,
seguia-se Diores, descendente
duma augusta linhagem, a de Príamo,
e, depois, juntos, vinham Sálio e Pátron,
um de Acarnânia, outro de Tégea,
arcádica família, mais atrás
os dois moços Trinácrios corredores,
É limo e Pânope, dois habituados
a tudo que era mato, companheiros
dum ancião, Acestes, mais ainda,
nomes todos perdidos para nós
nas sombras de imprecisa tradição.
Em seguimento Eneias assim fala :
«Prestai ao que direi muita atenção,
uma atenção alegre, destes bravos
nenhum irá embora sem seu prémio
dado por minha mão e, para todos,
passarei eu um par de dardos cnóssios,
com ferro tão brilhante de polido,
juntamente machado em que se vêem
uns gravados de prata. Terão todos
esta comum lembrança e distinção,
mas dos primeiros três um prémio à parte,
na cabeça coroa de oliveira.
O que a todos vencer terá cavalo
com fáleras brilhantes que o distingam ;
o segundo um carcás dos de Amazona
cheio de frechas trácias, boldrié
todo adornado de ouro e com um fecho
ENEIDA 26 1

realçado por pedra preciosa;


argivo capacete é do terceiro. »
Tendo todos tomado seu lugar
partem numa carreira mal escutam
o sinal de largar, se precipitam
como se foram nuvens de mau tempo.
Quando estão já chegando a um final
vai Niso muito à frente pois que corre
mais depressa que vento ou raio alado ;
logo depois mas com bom intervalo
o segue Sálio, Euríalo é terceiro,
com distância maior quanto ao primeiro.
É limo após Euríalo, ao pé dele
vai voando Diores, com o pé,
o pé calcando do que lhe está perto,
com ombro lhe tocando, de maneira
que, se houvesse mais campo, ultrapassava
de um salto só o que corria à frente
e deixava indeciso seu rival.
Já no fim do percurso, já sem fôlego,
iam chegando à meta quando Niso,
pobre dele escorrega e fica incerto :
quando do sacrifício feito aos deuses
sangue de bois correra para o chão,
molhara as verdes ervas ; o triunfo
ao jovem, já vencendo, lhe escapava ;
não pôde firmar pé, titubeou,
cai de cabeça ao solo no molhado,
num imundo mau cheiro desse sangue ;
mas não esquece Euríalo, a amizade
que aos dois sempre ligou ; ao levantar-se
pôs-se à frente de Sálio na passagem
do lugar perigoso, o que levou
a que Lélio, rolando, se encontrou
estendido na areia ali espessa ;
Euríalo se atira e, vencedor,
graças ao seu amigo, voa em frente,
no meio dos aplausos e dos gritos.
Em seguida vem É limo, e Diores
acaba por ganhar terceiro prémio.
Então no centro desse circo imenso,
enchendo com seu clamor a todo o espaço
262 VIRGÍLIO

reclama Sálio que lhe restituam


as honras de que assim ficou frustrado.
Há quem defenda Euríalo, apoiado
por uma multidão, favorecido
pela beleza que realça o mérito.
Diores o secunda protestando
com sua forte voz pois que ficou
bem perto da vitória e lhe fugiu
ter pelo menos último lugar
e vem cair a Sálio ser primeiro.
Então assim falou divino Eneias :
«Vossos prémios estão assegurados
e não se trocará uma ordem certa.
Mas deixai-me, meus caros, ter eu pena
de amigo que não teve muita sorte. >>
Dá ele então a Sálio enorme pele
dum leão da Getúlia, bem pesada
com seu pêlos imensos, garras de ouro.
E Nisa nessa altura assim falou :
«Se presentes recebem os vencidos
e presentes que são como esse agora,
se tens tu pena dos que não ganharam,
que vai caber a mim, aquele Nisa
cujo valor é de primeiro prémio,
se, como o Sálio, não tiveram sorte,
a que foi contra mim ?>> Ri-se Eneias,
ordena venha escudo trabalhado
por Didimeu, roubado pelos Gregos
duma porta do templo de Neptuno,
com esta oferta honrando, como justo,
a valentia que mostrara Nisa.
Em seguida, depois de tudo feito :
«Se algum de vós tem força e tem coragem,
que calce suas luvas, se apresente,
de braço levantado >> , disse Eneias
e propôs os dois prémios do combate.
«Ao vencedor um touro guarnecido
com ouros e com fitas. Ao vencido,
para assim consolá-lo, boa espada
e capacete do melhor que houver. >>
Nem teve de esperar, pois logo Dares
com sua alta estatura se levanta
ENEIDA 263

a todos demonstrando sua força


e com todos em torno o aplaudindo
porque outro não havia para ousar
com Páris se medir, tendo sido ele
que bem junto do túmulo de Heitor
desafiara o invencível Butes,
o que se apresentara como sendo
da família Bebrícia dum  mico,
e na arena o prostrara moribundo.
Dares então avança para a luta
cabeça levantada e fones braços
exibindo orgulhoso um após outro,
batendo o espaço à volta com seus murros.
Procuram quem se oponha, mas ninguém,
havendo tanta gente no teatro,
se propôs combatê-lo com as luvas
combinadas de couro e de metal.
Então como em triunfo e por pensar
que ninguém se atrevia a combatê-lo,
se lança aos pés de Eneias, sem tardar,
com a esquerda agarra o chifre ao touro
e solta estas palavras : «Se não há
quem queira combater-me, para quê
me reter por mais tempo, tu que és filho
de venerada deusa? Dá logo ordem
para que eu leve o prémio que é o meu . »
A o mesmo tempo todos os Troianos
murmuravam apoio, solicitavam
que se lhe desse o prometido prémio.
Neste ponto é que Acestes fortemente
increpa aquele que deitado estava
em muito de verde erva junto dele :
«Entelo, tu que noutro tempo foste,
embora para nada herói perfeito
entre todos que havia, deixarás
que prémios destes fiquem sem combate ?
Onde estará agora o que nos foi
É rix, mestre e deus, como tu próprio
nos dizias a nós ? Onde essa fama
que na Sicília inteira se espalhava?
Onde as lembranças dele que guardavas ? »
Entelo lhe responde : « Nem vitórias
264 VIRGÍLIO

nem meu amor da fama se esqueceram


levados pelo medo. É só idade
que pesa como gelo no meu sangue
e que resfria tudo que é ardor,
as forças esgotando no meu corpo.
Ah se eu tivesse agora a juventude
que outrora foi a minha e ainda exalta
a insolência dele, não é prémio
nem beleza de touro o que movia,
já que presente algum me faz marchar. >>
E, tendo assim falado, joga ao chão
duas luvas dum peso monstruoso,
aquelas de que armou É rix as mãos,
com as duras correias para os braços.
Tudo fica espantado : sete peles,
sete peles de boi, grandes, cosidas,
ainda as reforçando chumbo e ferro.
O generoso filho de um Anquises
mexe e remexe toda aquela massa,
o correame tão desmesurado.
O próprio Dares fica estupefacto
e de longe dá mostras de recusa.
Então lhe grita o velho estas palavras :
« E que seria se se visse a luva,
as armas que trazia Hércules mesmo,
quand o aqui nesta praia combateu
numa luta que foi sem piedade.
É rix as trazia, o teu irmão,
com as nódoas de sangue ainda as vês,
pedaços de miolos têm elas.
Contra o filho de Alceu as usei eu,
como sempre serviram quando sangue
ainda sustentava minha força,
enquanto uma velhice ciumenta
não me cobriu as têmporas de branco.
Mas se o troiano D ares se recusa,
se Eneias piedoso assim decide
e se o aprova incitador Acestes,
tenhamos meios iguais para o combate.
Te farei o favor de pôr de parte
as luvas que eram de É rix, não temas,
as tuas calça que troianas são . >>
ENEIDA 265

Tendo dito isto se livrou do manto,


do duplo manto que trazia aos ombros
e despido mostrou como a seus membros,
bem ligados ao corpo, sustentava
a sólida ossatura; em meio da arena
se postou o colosso. Como um deus,
mandou Eneias que trouxessem luvas
dum peso igual e com iguais correias
armou braços e mãos dos lutadores.
Um e outro tomaram posição,
quase em ponta dos pés se levantando,
mas com inteira calma erguendo os braços
para os sopros dos ares e recuando
ao máximo a cabeça, a evitar
os golpes que viriam. Logo as mãos
moveram eles, começou a luta.
Hábil um move as pernas e confia
em sua juventude, conta o outro
com seu tamanho e com musculatura ;
tem contudo mais lentos os joelhos
que lhe vacilam, fazem que ele trema;
além de tudo um respirar difícil
sacode os membros que tão grandes são.
Com golpes renovados se ameaçam
sem no entanto tocar-se ; mas redobram
e nos flancos se batem, já os peitos
ressoam no profundo ; nos ouvidos,
nas têmporas procuram ao acerto,
com as mãos que não param de tentar
os socos vêm rudes, queixo estala.
Um Enteio maciço nem se move,
foge aos golpes com olhos vigilantes
e com j eitos de corpo que se esquivam.
Se porta o outro como quem cercou
uma alta cidadela ou acampou
em frente de barreiras de montanha;
ora dum lado ora dum outro lado
sonda o terreno, atento ao que haja aberto
e teima nos assaltos em que é hábil.
Enteio se ergue todo alçando o punho
e com a mão direita tenta o golpe,
mas rápido o descobre seu rival,
266 VIRGÍLIO

prontamente se furta a ser um alvo.


A toda a força de se opor ao vento
a perde Enteio, se desequilibra,
pesadamente cai ele no solo,
se abate a grande massa. Como em montes
dum Ida ou de Erimanto há um pinheiro
meio roído por dentro que se solta
das raízes que ainda preso o tinham.
Arrebatados, Teucros e Trinácrios
se levantam num grito, sendo Acestes
o pnmeiro a com pena o erguer
do chão o seu amigo e companheiro .
Mas o herói sem que na queda perca
nada do seu valor, volta ao combate,
até mais a vergonha aumenta ainda.
Dares, cabeça baixa, foge em frente
enquanto Enteio com direita e esquerda
os seus golpes redobra. É como a chuva
quando o mau tempo vem, a faz soar
em cima dos telhados. Ambos punhos,
repetidos e com que violência,
fazem Dares voltar-se, o derrubando.
Então o pai Eneias que não quer
que se dilate a fúria que é Enteio
dá um fim ao combate e diz a Dares
estas palavras de consolação :
«Que excesso de loucura te tomou ?
Não sentes tu que uma divina força
passou ao outro lado e te derrota?>>
Bastou a sua voz a separar
os dois que assim lutavam. Lá vai um
. .

que os amigos amparam ao navio


arrastando os joelhos, a cabeça
indo dum ombro ao outro, com o sangue
a sair-lhe da boca mais os dentes.
Logo, porém, aos companheiros chamam
e lhes entregam capacete e espada,
ficando para Enteio palma e touro.
Este, porém, vencendo, todo orgulho
de se ver com seu touro, assim falou :
« Ó tu, filho de deusa, e vós, Troianos,
agora vedes quanta força eu tinha
ENEIDA 267

na minha juventude, e bem sabeis


de que morte, chamando-o, salvais Dares. »
Logo após as palavras s e firmou
diante de seu prémio, o forte touro,
todo se endireitou e levantou
o seu braço direito para trás

e com a dura luva lhe assentou


um soco na cabeça, entre os dois chifres ;
lhe entrou por ali dentro e fez saltar
bocados de miolos, abatido
cai o boi para a frente, já sem vida,
mas como se estivesse palpitante.
Ao que juntou, falando : «Em vez da morte,
que Dares merecia, te ofereço,
esta vida, meu É rix, e decerto
ela te agrada mais que a , vida dele.
E aqui, deuses, deponho minhas luvas
com esta arte suprema que era a minha. >>
Logo em seguida Eneias faz convite
a todos que quiserem defrontar-se
no que seja lançar velozes frechas,
ao mesmo tempo anunciando os prémios.
Com sua forte mão levanta um mastro
que ao navio de Seresto pertencera
e no cimo lhe prende com um laço
a voadora pomba que alvo seja.
Juntam-se os concorrentes, já as sortes
que estão num capacete vão tirar-se;
a primeira a sair é de Hipocoonte,
o filho de Hírtaco, e todos o celebram,
vem depois Menesteu, o vencedor
do concurso naval, traz cingida
sua verde coroa de oliveira;
é terceiro Ê urito, teu irmão,
meu famoso Pândaro, o primeiro
que, quebrando o tratado, foi lançar
seu dardo entre os Aqueus. Mas, lá no fundo,
outra sorte há ainda, é a de Acestes
que se atreve a ser parte em todo o grupo
em que se podem integrar os jovens.
Então com grande esforço curvam arcos
que despedem as setas dos carcases.
268 VIRGÍLIO

É a do filho de Hírtaco a pnme1ra


que fende a brisa alada e vai ao mastro
enquanto queda a corda ressoando.
Tremeu o mastro, a pomba, apavorada,
bate asas com o medo, tudo ecoa.
Quem depois se coloca em posição
é Menesteu ardente, tende a corda
e para o alto aponta com os olhos
como que já voando com a seta.
Mas não atinge o alvo, pouca sorte,
só ao laço desfaz e, livre a pomba,
logo ela se dirige para o Noto
e para escuras nuvens mais distantes.
É Ê urito, que estava preparado,
quem ao irmão invoca e faz os votos,
aponta para a pomba que, j á solta,
alegre festejava o bater de asas,
e com a frecha a fere a derrubando
por debaixo de nuvens mais sombrias.
De lá cai ela inerte e deixa a vida
entre os etéreos astros e do céu
traz nos ossos a seta que a matou.
Com o seu jogo, agora sem o prémio,
só Acestes ficava, mas o mestre,
para provar como na sua arte
arco valia mais que em qualquer outra,
aponta para o céu como querendo
varar aéreas brisas. Foi então
que um estranho prodígio se mostrou
no que devia ser um grave augúrio.
A cana que voava pegou fogo
e depois que se visse o que viria
lembrariam os vates os sinais
que já prenunciavam o sucesso.
A seta, incendiada, consumiu-se
e se perdeu nos impalpáveis ventos
exactamente como muitas vezes
deixam astros no céu a cabeleira.
Atónitos ficaram os Troianos
e com eles os Teucros, nem Eneias
negou um tal auspício ; abraça Acestes,
presentes lhe acumula, assim lhe fala:
ENEIDA 269

« I sto aceita, p ai meu, o grande rei


que no Olimpo governa assim o quer
em ti honra o que vimos. É de Argivos
que te vem esta oferta, é uma taça
que outrora Cisseu trácio cinzelou
para podê-la dar como lembrança
e como garantia de amizade b>
Depois destas p alavras cinge a fronte
com um verde loureiro anunciando
que o primeiro entre todos é Acestes.
Não fica o bom Êurito despeitado,
embora tenha sido quem à pomba
dos ares fez tombar. O próximo é
quem o laço desfez, vindo por fim
quem no mastro cravou a sua seta.
Mas Eneias, o grande, antes que encerre
o j ogo que acabava, chama Epítida,
que era tutor de Iúlo e companheiro,
isto lhe passa a seu fiel ouvido :
«Vai ter j á com Ascânio e se ele tem
preparados e prontos seus rapazes
e certo o movimento dos cavalos ,
dirás que venha aqui e se apresente
perante seu avô o batalhão,
ele próprio se armando como deve. »
Por outro lado manda que se arrume
o povo todo que invadiu o circo
e que lhes deixem toda a pista livre.
Se adiantam os moços e desfilam
montados nos cavalos, ante os pais
enquanto a mocidade da Sicília
com a que veio de Tróia os louva e pasma.
Como é de hábito trazem na cabeça
coroa que os adorna, mas na mão
segura cada um deles os dois dardos
com a ponta de ferro, alguns ao ombro
ostentam uma alj ava bem polida,
além dum colar de ouro no pescoço .
São três os pelotões em que evoluem,
com chefe no comando, a que obedecem
duas vezes seis moços, dois a dois,
e com dois aj udantes . Os da frente
270 VIRGÍLIO

vêm com muito orgulho da chefia


ser a do j ovem Príamo que o nome
conserva ainda do famoso avô.
É ele, Palites, um filho teu,
filho de ilustre raça cujos feitos
serão força de Itália; seu cavalo
é da Trácia, de branco salpicado,
orgulhoso de ter as patas brancas
e de ser branca a fronte alevantada.
É Á tis o segundo, de quem vêm
nossos Á cios de Lácio, uma criança,
de Iúlo, outra criinça, muito amigo.
Para acabar Iúlo se adianta,
o belo Iúlo, o mais perfeito deles ;
o cavalo é de Sídon, quem lho dera
fora Dido, a tão alva, desejosa
de que fosse lembrança e penhor fosse
da ternura que sempre lhe votara.
Os outros moços, todos da Trinácria,
montavam animais do velho Acestes ;
tímidos chegam, mas os da Dardânia
têm gosto em os ver, os aplaudem,
neles rosto de avós reconhecendo.
D epois de desfilarem a cavalo,
pela frente de todos que assistiam
e perante parentes a olhá-los,
pararam, para Epítida, de longe,
lhes dar sinal de grito e de chicote.
Perfeita simetria os separou,
com cada um de seus grupos em dois coros.
Depois, a ordens novas, regressavam,
de lanças preparadas, outras voltas
para um ou outro lado foram dar,
mas sempre face a face se afrontavam
fingindo-se em combate, ou, doutras vezes,
as costas davam como se fugissem,
para logo tornarem, dardos prestes,
até que paz viesse e, lado a lado,
pudessem cavalgar os bons amigos.
Diz-se que outrora em montanhosa Creta,
guardava 6 labirinto entre seus muros,
sempre de escuridão, dédalos cegos
ENEIDA 271

que ofereciam rota e que, de súbito,


sem que por tal se desse terminava
e de que era impossível o regresso.
Pois tal era a parada em que esses JOVens,
e filhos de troianos todos eles,
passos entrelaçavam divertidos,
em fugas e regressos, semelhantes
aos golfinhos que em mares meio frios
cortam a nado as ondas dos Cárpatos
ou brincam entre vagas já da Lídia.
Pois estas cerimónias a cavalo,
este jogo de passos e compassos,
foi Ascânio o primeiro a revivê-lo
enquanto levantava os muros de Alba,
aos antigos Latinos ensinando,
o que, menino em Tróia, ele aprendera
com outros dos que tinham sua idade.
Assim Albanos instruíam filhos,
deles Roma, a maior, vai recebê-lo,
levando-o à perfeição, aquele culto
que celebrava venerado pai,
até que um dia o transformou Fortuna
no muito diferente do que fora.
Enquanto honras solenes se prestavam
ao túmulo de Anquises, manda Juno,
a Juno de Saturno, a sua Í ris
ao encontro da frota dos Troianos,
entre muito projecto lhe fazendo
que ventos a impulsem, pois faltava
ainda muita calma a refazer
daquela deusa no sereno rosto .
Sem que ninguém a visse vai a virgem
por dentro de arco de matizes mil
em direcção à terra e seu olhar
já descobriu, mas não nítido ainda,
deserto porto, abandonado barco.
Mas um pouco mais longe estão troianas
em praia solitária, a lamentar
terem perdido Anquises e, chorosas,
consideram como é profundo o mar,
quanta perfídia de águas, quanta vaga,
novo cansaço espera à nossa frente.
2 72 VIRGÍLIO

Estas palavras todas repetiam,


pois o mais desejado é a cidade
em que possam por fim terem sossego
depois do que no mar sofrido haviam.
Í ris então que bem sabia como
podia fazer mal fica entre elas
e põe de parte a veste, o ar de deusa.
Passa a ser Béroe, a velha esposa
de Dóriclo de Tmaro, a qual outrora
tinha tido seu nome, posição,
se cercara de filhos ; se mistura
às mulheres dardânidas e lhes grita :
« Ó pobres de vós todas, as que os Gregos
não puderam na guerra liquidar
ainda quando junto ao muros pátrios ;
ó desgraçada raça, a que fim triste
vos não terá a sorte destinado ?
Depois de Tróia ser arruinada
já sete anos passaram sobre nós.
Tanto mar percorremos, vimos terras
de todas as espécies, ora rocha
que a nós abrigo algum oferecia,
ou céus que se seguiam uns aos outros,
enquanto nos fugia a nossa Itália
e vagas a nós todas nos rolavam.
Este é o país de É rix, irmão nosso,
Acestes nos acolhe ; quem impede
que aqui ergamos muros e cidade
demos a cidadãos ? Pátria nossa,
Penates para nada recolhidos,
não haverá então uma cidade
que nos possa de Tróia herdar o nome ?
Não poderemos nós tornar a ter
rios de Heitor, um Xanto ou um Símois ?
Não pode ser. Vamos a estas popas,
estas malditas popas, as queimemos.
Vi em meu sono a sombra de Cassandra,
Cassandra, a profetisa, me estendendo
tochas acesas, me dizendo a mim :
«Tróia buscai aqui, vosso lugar
é este em que ora estais. E mais ainda,
chegou hora de agir ; há uns prodígios
ENEIDA 273

perante os quais não pode haver demora.


De Neptuno aqui tendes tanto altar,
o próprio deus nos dá vontade a todas . »
Pega logo n o fogo que destrói,
levanta a mão bem alto, a toda a força
o joga por diante. Estão troianas
de espírito vencido e dominado.
É então que uma delas, a mais velha,
que ama fora real e que tomara
sobre si o criar filhos de Príamo,
lhes fala deste modo : «Amigas minhas,
quem vedes ante vós não é a esposa
de Dóriclo nem reteia e Béroe,
os olhos que rebrilham, a firmeza,
sua face imortal, o tom de voz,
não são da terra, mas do céu dos deuses.
Além de tudo, acabo de deixar
doente Béroe e toda triste
ou com raiva de ser a que é, privada
de tomar parte em festas, de prestar
como vós a Anquises suas honras . »
A s mulheres que olhavam com maus olhos
para os navios na praia e que, hesitantes,
se dividiam entre amor da terra
em que ali estavam, mas funesto amor,
e do reino futuro de destino
e que por dentro delas as chamava.
Neste momento abriu Í ris as asas
e se elevou no céu, cortou os ares,
lançando pelas nuvens arco imenso.
Desvairadas então pelo prodígio,
em seu delírio gritam todas juntas,
pilham os fogos de sagrado altar,
e jogam ramos, lenha, jogam tochas.
Vulcano, sem grilhão, desencadeia
seu furor pelos bancos, pelos remos,
pela madeira das pintadas popas.
Ao túmulo de Anquises traz Eumelo
notícia de que está ardendo a frota,
ao mesmo tempo que os Troianos vêem
nuvem se levantar de negra cinza.
Ascânio, todo ainda na alegria
2 74 VIRGÍLIO

de lhe terem entregue jogo equestre,


vai galopando a seu acampamento,
sem que ninguém pudesse sofreá-lo.
«Mas que loucura é esta ? Que fazeis ?
Desgraçadas Troianas, o perdido
não é qualquer acampamento argivo,
é o vosso futuro o que queimais .
Eu sou Ascânio ! Vede ! Vosso Ascânio ! >>
E deita ao chão o capacete inútil,
aquele capacete com o qual
se tinha ele metido em falsa guerra.
Eneias vem também a toda a pressa,
e traz com ele a multidão troiana.
Elas, porém, fogem por todo o lado,
atravessam a praia, vão ao bosque,
se escondem em buracos de rochedo.
Já não suportam nem a luz do dia
que lhes mostra os enganos por que foram ;
que mudança houve nelas pois que vêem
o diverso que são do que julgaram
e de seus corações expulsam Juno.
Não é, porém, por isso que os incêndios
perderam sua força chamejante :
por fendas das madeiras encharcadas
tem vida estopa num pesado fumo,
calor tudo devora quilha a quilha,
destruição penetra toda a nave,
de nada servem águas ou heróis.
Então Eneias rasga suas vestes,
ombros desnudos, mãos levanta ao céu,
para implorar aos deuses piedade.
« Ó poderoso Júpiter, se é que ainda
nesse furor que é teu não jogas fora
tudo quanto é troiano sofrimento,
se tua veneranda piedade
contempla ainda o que é desgraça humana,
deixa que nossa frota escape às chamas
que destruindo a estão e não lhes dês
o que resta a Troiano do que é sorte.
Ou então, Jove, se este é mesmo o fim,
pega em teu raio e, se a culpa é minha,
que me j ogue ele à morte onde me encontro,
ENEIDA 275

que tua mão me esmague neste sítio . »


Mal punha Eneias ponto n o falar
quando se solta tenebroso tempo
num desabar de cataratas de água;
todo o lugar do céu se abre na chuva,
todo o campo ribomba de trovões,
todas brumas de Austro em toda a vaga
em turbilhões de noite se transformam,
enchem-se as popas a deitar por fora,
chupam água costados meio queimados.
Já por fim se dissipa o calor todo,
quatro navios se salvam do desastre
e se perdem os outros para sempre.
Abalado por golpe tão cruel
ia Eneias para um e outro lado
sem poder definir com nitidez
a que ponto devia dirigir-se.
Ficaria nas terras da Sicília,
esquecido dos fados que sabia
ou teimaria em atingir Itália
obedecendo às ordens do destino ?
Mas junto dele chega o velho Nantes
a quem Palas Tritónia revelara
numerosas respostas e saberes,
e se, nisto ou naquilo, se tratava
ou de uma grande cólera dos deuses
ou dum encadeamento dos destinos,
conforta então Eneias deste modo :
<<Quando o destino puxa para um lado
há que segui-lo, filho de uma deusa,
e quando nos retira de outro lado
é o mesmo que tem de se fazer.
Qualquer que sej a a sorte que vier
podemos ganhar sempre : é suportá-la.
Contigo tens Acestes que descende
de deuses, como tu ; com ele então
deves traçar proj ectos, as vontades
os dois devem ligar. Fiquem com ele
os que já são tão velhos, as mulheres
tão cansadas de mar, os sem vigor,
os que temem perigos, os dos barcos,
que no fogo perdeste, aqueles todos
2 76 VIRGÍLIO

que só te embaraçavam nesta empresa;


até podem, se queres, ter cidade
a que darão o nome bom de Acesta.»
Reanimado por seu velho amigo
a seus tantos cuidados olha Eneias
enquanto escura noite ocupa o céu.
Pareceu-lhe então ver de lá descer
a face mesmo de seu pai Anquises,
o qual estas palavras lhe dizia :
«Filho querido, que enquanto eu vivia
caro me foste mais que a própria vida,
filho que tanto sofres com a carga
dos destinos de Tróia, a ti eu venho
por mandado de Jove, o que apagou
o fogo em nossa frota e que por fim
no firmamento seu de nós tem pena.
Segue os conselhos que te dá o Nantes.
São os de mais coragem, os melhores
que tu tens de levar à tua Itália
é o Lácio que tens de dominar,
um duro povo de costumes rudes.
Mas penetra primeiro nas moradas
de Dite, nas dos infernos, é a mim
que tu terás de vir pelos Avernos.
Mas realmente não me tem o Tártaro
com suas ímpias sombras, onde estou
é na junção das almas piedosas,
as que de Elísio são. Irá levar-te
casta Sibila após ter derramado
sangue abundante das ovelhas negras.
Então conhecerás tu toda a raça
que é tua, filho meu, e verás tu
muralhas das cidades que terás .
Adeus agora, já que se aproxima
a noite dos orvalhos e sinto eu
o bafo dos cavalos resfolgantes. »
Assim falou e s e sumiu e m nada
como um sopro nos ares impalpáveis.
E grita Eneias : « Mas aonde vais ?
Porque partes assim com tanta pressa?
De quem estás fugindo ? Ou há alguém
que te queira roubar o nosso braço ? >>
ENEIDA 277

Depois de assim falar, acorda as cinzas,


os fogos que dormiam, junta os homens
aos Lares venerandos que são Pérgamo,
ao altar de adorar a branca Vesta,
com puro trigo e com incenso muito .
Manda logo chamar os companheiros
e com eles Acestes e lhes diz
o que Jove ordenou e quais as regras
que pai Anquises deu, tudo bem firme
em seu peito daqui para diante.
Não deve haver demora nem Acestes
. .

se negou a cumpnr o que se ouvm.


Abre-se a lista de quem vai partir,
sem esquecer mulheres, mas de fora
os que não sonham com futuro e fama.
Instalam bancos novos nos navios,
fabricam o que o fogo devorou,
apuram os seus remos e seus cabos.
São menos do que foram, mas vivaz
lhes persiste coragem para a luta.
Mas entretanto Eneias, com arado,
limites de cidade vai marcando
e tira à sorte o que será de cada:
«Tereis aqui a vossa Í lio Nova,
tereis aqui de novo o que foi Tróia. >>
Fica troiano Acestes bem feliz
de ser rei da cidade e, como tal,
designando os dias de senado
e dá, para os mais velhos, que chamou,
o código de leis que devem ter.
Nos altos de É rix, dedicado a Vénus,
um templo faz chegar quase às estrelas,
sacerdote terá o pai Anquises
em seu túmulo sacro, um bosque inteiro
lhe será consagrado como abrigo.
Toma parte em repastos funerários
durante nove dias todo o povo,
honras recebem todos os altares.
Um pacífico vento ondas acalma,
pois, soprando de novo, sem descanso,
incitam Austros o fazer-se ao mar.
Pelas curvas das praias quanto choro,
278 VIRGÍLIO

já que todos se abraçam ; nova noite


e novo dia seguem-se uma ao outro .
Mesmo as próprias mulheres, mesmo aqueles
para quem navegar era medonho
só ao nome de mar, querem partir
e suportar exílio até ao fim.
Eneias, indulgente, os reconforta,
com palavras amigas recomenda
que deles todos tome conta Acestes.
A É rix três vitelos sacrifica,
uma cordeira para as Tempestades,
depois vem ordem de soltar amarras
com os cuidados todos que se devem.
De pé, na proa, Eneias, com coroa
de folhas de oliveira, ergue uma taça
e joga ao mar as vísceras das vítimas
sobre as quais verte ainda calmo vinho.
O vento, lá da popa, é de partida
e, rivais nos esforços, marinheiros
o mar batem com remos que o dominam.
Mas Vénus, entretanto, atormentada,
assim fala a Neptuno e se lhe queixa:
«Juno me preocupa, a sua raiva
e seu rancor me levam a rogar-te,
pois não há tempo algum em que desista
de ser tão dura em sua teimosia.
Júpiter, o destino, são contra ela,
mas no mesmo prossegue, nada a quebra.
Não lhe bastou que dessa nação frígia
tenha ela derruído uma cidade
e de dor para dor tenha arrastado
a tudo que de Tróia lhe sobrava,
dela persegue ainda ossos e morte.
Só ela saberá porque isto faz.
Lembras tão bem como eu que há pouco tempo
suscitou no mar líbio massas de água
que misturou ao céu e como ousou
fazer isto em teu reino, confiando
num É olo que em vão lhe obedeceu.
Já depois disto ela incitou ao crime
as mulheres troianas que aos navios
tentaram com o fogo destruir.
ENEIDA 279

E após ter sido neste incêndio vil


os obrigou a abandonar amigos
em terras que não eram conhecidas.
Oxalá possam eles, por favor
que teu será, chegar até ao Tibre.
E bem sabes que estou pedindo apenas
o que nos foi já dado : são as Parcas
as que as novas muralhas concederam. »
Lhe respondeu o filho d e Saturno,
o que domina o mais profundo mar :
<<Tu tens bem o direito, Citereia,
de te fiares neste império meu
em que afinal esteve tua origem.
E também o mereço que assim faças
pois tanto tenho sofreado as raivas
que nos desencadeiam mar e céu.
Pelo Xanto e Símois te garanto eu
que mesmo em terra fiz tudo o que pude
para evitar sofresse teu furor.
Quando atacava Aquiles os Troianos,
os seus já esgotados batalhões,
quando morriam homens aos milhares,
quando as águas do Xanto nem podiam
ir para o mar rolando, quando Eneias
com ele combateu, tão desigual
em armas e favor que deuses davam,
fui eu quem o salvou, pois escondi
por dentro duma névoa, isto apesar
de ser eu contra Tróia, que traíra,
a mim, que a própria Tróia construí.
Agora o protegendo vai entrar
sem o menor perigo em porto Averno,
como tu mesmo queres. Só um homem,
apenas uma vida, nos será
garantia bastante de escaparem
todos os outros que com ele estão . »
Logo que assim deu alegria e paz
à deusa que o buscara, atrela o Pai
seus cavalos ao carro e lhes impõe
um freio de ouro a seu galope ardente,
depois lhes solta as rédeas à vontade.
Todo de cor anil o carro voa
280 VIRGÍLIO

pela crista das ondas, vagas doma,


já mar revolto acalma suas águas
mesmo que o céu troveje, fogem nuvens
por éter sem limites. Aparecem
os inúmeros vultos duma escolta :
baleias monstruosas mais os velhos
que do coro de Glauco fazem parte,
Palémon, filho de lno, ou os Tritões
que tão velozes são e toda a tropa
a que dá ordens Forco ; para a esquerda
vão Tétis e Mélite, Panopeia,
a virgem Panopeia, com Niseia,
Espio, Tália com Cimódoce.
É neste instante que doce alegria
invade o coração que em ânsia estava
do venerando Eneias que dá ordem
para que se ergam mastros e que as vergas
recebam suas velas com escotas ;
depois, dum lado e outro soltam rizes,
manobram vergas altas, de favor
vão impelindo os ventos os navios.
À frente Palinuro, a frota o segue,
por ele se obrigando a manter rumo.
Já quase toca a noite o meio do céu
quando os nautas deitados sob os remos
e sobre os duros bancos dormitavam,
quando também o sono ágil desliza
das alturas dos astros, afastando
escuros ares, sombras repelia,
a ti vai, Palinuro, a ti te leva
visões fatais que tu não merecias .
Se assenta o deus na popa, semelhante
ao que era Forbas, solta estas palavras :
«Filho de Iásio, Palinuro meu,
as águas por aí serenas levam
a frota que é a nossa, a brisa é calma,
temos agora tempo de repouso.
A cabeça descansa, fecha os olhos
que fatigados vão destes trabalhos .
Em vez de ti eu fico de vigia. >>
Mal o vê Palinuro, mas lhe diz :
« É a mim que aconselhas que não olhe
ENEIDA 281

ro sto de mar tão calmo e repousado ?


Tenho eu de confiar neste prodígio ?
Vou entregar Eneias ao falaz
de brisas e de céu, e logo aquele
que tanta vez traiu serenidade ? >>
Ao tempo em que o dizia, mais firmara
no leme o braço seu como um só corpo,
sempre fitando os altos com seus astros.
O deus, porém, pegando num raminho
que já molhara dum leteu orvalho
e recolhera em si forças estígias,
lho leva à fronte, dum e doutro lado.
Hesita o homem pois o deus do sono
olhar lhe afoga com o seu feitiço.
Mas logo que a surpresa do repouso
principiava a relaxar-lhe os membros,
sobre ele cai o deus, o precipita
nas ondas transparentes com o leme,
uma parte da popa, de cabeça,
enquanto com seus gritos repetidos
procurava acordar os companheiros.
Como ave voa o deus em leve céu.
Mas a frota prossegue em rumo certo
já que cumpre Neptuno o prometido
e pode ela vogar sem susto algum.
Próximos dos destinos decididos,
seguiam os navios a sua rota
ao longo dos escolhos das Sereias
outrora perigosos, tendo em si
tanto despojo de navegador;
enquanto vagas, num perpétuo assalto
faziam ressoar roucos rochedos,
percebeu nosso herói que sua nave
sem piloto vogava e sem domínio.
Dirigiu-se ele àquele mar de noite
e lamentou, de coração quebrado,
infortúnio de amigo assim perdido :
« Confiança de mais tiveste em mar
que tu só vias, como o céu, sereno.
Agora, Palinuro, companheiro,
desnudo jazes numa incerta areia. >>
LIVRO VI

Choroso assim falava, mas de novo


dá velas aos navios e toca enfim
os litorais eubeus que vão por Cumas.
Pouco depois j á âncora assegura
com seu peso tenaz que cada popa
é firme junto à costa como em cais.
Salta em terras de Hespéria a juventude
que dela toma posse. Buscam uns
as sementes de chama que se ocultam
em veios silicosos, outros vão
apressados ao bosque em que animais
procuram seu abrigo, outros ainda
virão dar a notícia de águas vivas .
Mas piedoso Eneias se encaminha
para os cimos que são do deus Apolo,
depois, pouco mais longe, para os antros
da temida Sibila, aquela a quem
o profeta de Delas comunica
seu largo pensamento, seus projectos,
o que vai suceder para o futuro.
À medida que avança se aproxima
do bosque que é de Trívia, dos telhados
em que ouro brilha sob a luz do Sol.
Diz-se que Dédalo, ao fugir de Minas,
ao céu se confiou ousado em asas
e por caminhos que ninguém sabia
passou nas Ursas de perpétuo gelo
e pousou leve em cidadela cálcia.
Pela primeira vez à terra entregue,
Febo, te consagrou seu remo de asa
e para ti fundou um templo enorme.
ENEIDA 283

Pôs sobre a porta a morte de Andrógeo


com os Cecrópidas a sofrer castigo
com sete filhos seus todos os anos,
já dispostas as sortes dentro de urna.
Em frente, com altura sobre o mar,
lhe correspondem terras de Cnossos,
nas quais se vê cruel amor de touro
que num furtivo enlace faz soltar-se
o sangue a Pasífae assim nascendo
esse fruto biforme, o Minotauro
tudo a lembrar uma medonha Vénus.
Aqui a moradia em labirinto
que exigiu tanto esforço de confuso
mas, na verdade, amor duma rainha
fez que Dédalo mesmo com seu fio
guiasse os passos no palácio ambíguo.
Se a dor o permitisse, tu terias
aqui lugar também, infeliz Í caro :
tentou, por duas vezes, teu desastre
representar em ouro, duas vezes,
e também duas vezes mãos paternas
tiveram que escusar-se do trabalho .
Iam eles olhar os painéis todos,
se já Acates, enviado à frente,
não tivesse chegado com Deífobe,
que filha era de Glauco e do deus Febo
e de Trívia também sacerdotisa.
E foi ela que assim falou ao rei :
<<Senhor, não é agora o tempo certo
de tudo examinar que aqui se vê.
O que importa fazer neste momento
é que se sacrifiquem sete touros
de manada disposta para tal,
também com sete ovelhas escolhidas
e vitimadas pelo mesmo rito. »
Tendo ela assim falado com o grupo
que vinha com Eneias, os conduz
para a sacra morada de seu deus .
Cavada no profundo do rochedo
oculta aquela arriba gruta imensa
e que cem largos corredores levam
com sete portas em que sete vezes
284 VIRGÍLIO

se repetem respostas da Sibila.


Já chegado se havia ao limiar
quando a virgem lhes diz : << É aqui mesmo,
diante deste deus, que temos nós
de inquirir dos destinos que são eles . »
Quando isto proferia antes de entrar
subitamente lhe mudou o rosto,
carnação se apagou, a cabeleira
toda se emaranhou, mas o seu peito
louco resfolegou, o coração
foi bravo de furor e cresceu ela,
sua voz não é mais a de mortal
depois de receber o bafo e espírito,
agora já bem perto, de seu deus :
<<Tardas, troiano Eneias, no dizer
que votos são os teus no formular
mas que os profiras tu com tua voz. >>
E com estas palavras terminou.
Mas Febo ainda assim não a domina,
pois o que pretende ela é libertar-se
do poderoso deus dentro em seu peito.
Mas Febo não desiste, faz que a boca
se lhe cubra de espuma e que se dome
seu coração altivo, acabando ela
por ser o que seu deus assim lhe ordena.
Já sozinhas se abriram as cem portas
e deixam que as respostas da Sibila
livres nos ares passem : <<Tu agora
atrás deixas perigos do que é mar,
mas terra te reserva outros piores,
aos reinos de Lavínio vão chegar
os Dardânidas todos, como devem,
mas como quererão não ter chegado.
E descortino guerras, grandes guerras,
duma espuma de sangue vejo o Tibre.
Não vão faltar-te nem o campo dório,
nem o Símois ou Xanto, um outro Aquiles
para o Lácio nasceu, também de deusa,
jamais se afasta Juno dos Troianos,
por mais que tu lho peças sem recursos .
Quantos povos de Itália e que cidades
não terás tu, Eneias, implorado.
ENEIDA 285

A causa das desgraças dos Troianos


é só, mais uma vez, uma estrangeira
tomada como esposa, um himeneu
que fora se buscou ; não cedas nunca,
vai para frente e com maior audácia
quanto menos pareça teres sorte.
A primeira saída em que nem pensas
é cidade da Grécia a que vai dar-te.»
Temerosos enigmas a Sibila
assim faz reboar de antro profundo
donde vem seu mugido, seu rugido
com palavras obscuras envolvidos.
É este o freio de que se serve Apolo
e lhe atiça furor e no seu peito
uma vez, outra vez, volve e revolve.
Assim que a ela passa este delírio
logo começa nosso heróico Eneias :
«Nenhuma espécie de trabalho, virgem,
me vai ser nova agora ou imprevista.
Tudo adivinho eu já dentro de mim,
e dei ainda a tudo seu fim certo .
Um só favor quero eu : ao que se diz,
é aqui que é a porta que nos leva
ao reino dos infernos, ao paul
donde Aqueronte volta para trás .
Permitam que vá eu ao pai querido,
que reveja o seu rosto ; para tal
abre as portas sagradas e me mostra
o caminho que devo tomar eu.
Através de inimigos o salvei
transportado nos ombros entre chamas .
Meu companheiro foi nestas viagens,
comigo suportou a mar e céu
apesar da fraqueza, para além
das forças permitidas por idade.
Ainda mais fazia pois ele era
quem me pedia ou antes ordenava
de vir a ti fazer o meu pedido,
de vir ao limiar de tua casa.
Ó deusa veneranda, te apieda
deste filho e do pai, pois tudo podes,
já que não foi em vão que te deu Hécate
286 VIRGÍLIO

ser senhora dos bosques dos Avernos,


se é verdade que pôde Orfeu chamar
os Manes de uma esposa por encantos
das harmonias duma trácia cítara,
e se também pôde Pólux ao morrer
resgatar seu irmão, se tanta vez
pôde ele refazer este caminho.
E que direi de Alcides e Teseu
eu que venho de Jove, o Soberano ? »
Estava ele esta prece formulando
com sua mão pousada sobre altar
quando a sacerdotisa assim falou :
« Herói nascido de divino sangue,
filho de Anquises e troiano inteiro,
fácil é o descer para o Averno,
porque a sombria porta que é de Dite
patente se encontra ela dia e noite,
mas o que custa mais é o regresso,
o tornar a ser livre a todo o vento,
pois aqui é preciso todo o esforço.
Bem poucos o fizeram, foram homens
que Júpiter amou ou, por virtude,
até ao céu levou, ou que dizemos
dos deuses terem sido puros filhos.
Aqui há tudo à morte impenetrado
e Cocito o rodeia em negras voltas.
Mas se em teu peito tens um tal ardor,
um tal desejo de, por duas vezes,
cruzar as mortas águas duma Estige,
de duas vezes ver sombrio Tártaro,
de te esgotar um insensato esforço,
tens de saber primeiro o que fazer.
Em árvore, em ramos bem difíceis
de serem desviados, há um deles,
de brando caule e de folhagem de ouro
o consagrado à Juno dos Infernos.
Bosque inteiro o defende, sombra oculta
no mais cavado dos escuros vales.
Mas a ninguém é dado aproximar-se
do mistério que é terra por debaixo
antes de ter tirado desse ramo
pequeno enxerto de cabelos de ouro
ENEIDA 287

que decidiu Prosérpina seu fosse,


é presente que tem de lhe ser dado .
Arrancado o raminho, nasce um outro
que é igualmente de ouro e que não deixa
de brotar novamente com folhagem
que é do mesmo metal. Busca-o pois,
trabalhem os teus olhos, quando o vires
com tua mão o colhe, ritual.
Deixará docilmente que assim faças
se os destinos te forem favoráveis,
pois que, se assim não for, não poderás
alcançar com esforço o que pretendes,
mesmo que duro ferro tu empregues.
Depois, se o corpo de um dos teus amigos
repousa já sem vida e com a morte
a tua frota infecta enquanto estás
em nossos limiares a consultas,
leva o primeiro ao pouso que convém,
ao túmulo em que tens de o encerrar,
depois traz ao altar ovelhas negras
te purifica com o sacrifício.
Só assim tu verás bosques de Estige,
o reino que não se abre a quem é vivo . >>
Seus lábios se fecharam e se cala.
Eneias, de olhos baixos, com tristeza,
começa logo a andar e deixa a gruta,
mas · em seu coração tudo revê
deste misterioso acontecer.
Marcha a seu lado o tão fiel Acates
em cujos passos pesa igual cuidado.
Por muita conjectura vaguearam
enquanto conversavam um com outro :
quem será este companheiro morto,
o corpo a que aludiu sacra Sibila.
Pois ao chegarem vêem que Miseno,
estendido na praia é esse morto,
Miseno, o filho de É olo, sem par
para levar os homens ao combate,
para despertar luta ao som guerreiro
duma trompa de bronze. Tinha sido
camarada de Heitor; junto a Heitor,
quando estava em batalha, ele se impunha
288 VIRGÍLIO

por seu toque de guerra e pela lança.


Depois de Aquiles ter vencido a luta
e roubado da vida seu rival,
tinha entrado o valente, dedicado,
no batalhão de Eneias, se portando
com bem igual coragem de ser digno.
Mas o que acontecera foi que enquanto
soprava numa concha sobre as águas,
desafiando os deuses para a luta,
como se fosse louco, vem contra ele
invejoso Tritão, quem o diria,
que em ondas espumantes de rochedos
logo afoga o Troiano confiado.
Todos em torno, sobretudo Eneias,
gritavam e tremiam de tristeza.
Depois, porém, e sem demora alguma
trataram de cumprir o da Sibila.
Chorando buscam lenha que será
seu altar funerário de ir ao céu.
Entram no velho bosque que é morada
de bravos animais. Caem abetos
soa carvalho aos golpes do machado,
abrem troncos de freixo suas cunhas,
roble bom de fender e grandes olmos
fazem rolar dos altos da montanha.
Dirige Eneias todo este trabalho,
anima os companheiros, usa com eles
as mesmas ferramentas ; mas ainda,
e cheio de tristeza, vai pensando
em tudo o que acontece, sempre os olhos
pregados na floresta que ali vê :
«Se agora o ramo de ouro se mostrara
como aquele outro neste imenso bosque,
como disse a Sibila que não mente,
e como não mentiu no que afirmou
deste pobre MisenO . >> Ao dizer isto,
viu ele duas pombas vir do céu
e baixar na verdura junto dele.
Reconheceu Eneias serem aves
como as de sua mãe e lhes rogou :
« Sede vós guias, se há aqui caminho
e voai ao lugar mais que sagrado
ENEIDA 289

em que dá sombra à terra generosa


um precioso ramo. E tu, ó mãe,
minha divina mãe, não me abandones. »
Assim falando retardou a marcha
cuidando dos sinais que iam deixando
e vendo aonde iriam elas dar.
Continuavam, sempre debicando,
sem muito se afastarem no seu voo,
sempre vistas por quem ia atrás delas.
Quando chegaram ao entrar de Averno,
que tão mau cheiro tem, levantam voo,
deslizam pelos ares transparentes
e pousam no lugar que procuravam,
o daquela árvore em dois seres feita
onde através dos ramos rebrilhava
um estranho reflexo de ouro puro.
Assim, no bosque, quando os frios chegam
verdej a visco na folhagem nova,
sem que tenha nascido daquela árvore
que o sustenta na luz e cujo tronco
envolve com rebento açafroado ;
assim naquele azinho sobre o escuro
aparecia o ramejar dourado,
cuj as lâminas finas crepitavam
ao vento leve que passava nelas .
Depressa o colhe Eneias, logo quebra
a branda resistência oferecida,
às moradas o leva da Sibila.
Por seu lado, os Troianos, pela praia,
choravam seu Miseno e lhe prestavam,
à sua morta cinza, honras finais.
Levantam antes pira colossal
feita de roble, resinosa lenha,
os lados cobrem com escuras folhas,
erguem diante fúnebres ciprestes,
armas põem em cima cintilantes.
Uns águas aquecem em caldeiros
que fervem em seu bronze sobre as chamas,
e levam outros o gelado corpo.
Entre gemidos, deitam em seu leito
esses membros de lágrimas cobertos,
tapam-no todo com purpúreos panos
290 VIRGÍLIO

e das roupas por ele conhecidas.


Outros ainda vão levando aos ombros
aquele enorme féretro sinistro
e, se voltando, pois de tradição,
aproximam de lado a tocha acesa.
Tudo arde, as oferendas, os incensos,
carne de vítima ou azeite e taças.
Acamadas as cinzas, frouxo o fogo,
lavam com vinho os restos, a poeira.
Ossos do morto junta Corineu
e logo os deposita em brônzea urna.
Com água pura dá depois a volta
ao grupo dos amigos que ele asperge
dum orvalho ligeiro com um ramo
de oliveira com suas azeitonas ;
purificados todos, diz então
as últimas palavras. É Eneias,
o piedoso Eneias, que ao herói
dispõe túmulo ao pé de um monte aéreo,
com seu remo, trombeta, suas armas.
É esse o monte que, nos nossos dias,
se chama de Miseno ; a ele o guarda
por séculos e séculos que passem.
Isto feito executa prontamente
o que a Sibila tinha já previsto.
Havia uma caverna monstruosa,
duma fundura enorme que se abrira
como que num bocejo de espantar;
eriçada de rochas, defendida
pelas trevas do bosque e lago escuro.
Pássaro algum voava ali impune,
tal era o bafo que subia aos céus.
Manda a sacerdotisa antes de tudo
que tragam quatro touros, dorso negro,
e na fronte lhes deita vinho puro ;
dentre os chifres lhes corta uns poucos pêlos
que vão, primeira oferta, ao sacro fogo,
ao tempo em que invocava Hécate, a deusa
de tão grande poder em céu e Cérbero .
Outros metem as facas e recolhem
tépido sangue numas taças próprias.
Eneias mesmo, para a mãe de Euménides
ENEIDA 291

e para a sua poderosa irmã,


empunha espada, abate negra ovelha
e vaca estéril para ti, Prosérpina.
Para o rei Estígio ergue ele altar nocturno
e nas chamas depõe carne de touro
com o seu ritual azeite gordo.
Foi então que ao nascer mesmo do Sol
debaixo de seus pés mugiu o chão,
montanhas se moveram com seus bosques ;
julgou-se que se ouviam as cadelas
uivando pela sombra ao vir a deusa.
Grita a sacerdotisa : « Ide, profanas,
retirai-vos de toda esta floresta.
E tu mete ao caminho, pois agora
é que é preciso ser valente, Eneias,
afrontar o que vem com forte peito . »
S ó diz estas palavras, desvairada,
e se lança à caverna; nosso herói
com o seu passo segue o de seu guia.
Oxalá que passe eu, deuses reinantes
no que é império de almas, sombras mudas,
ó Flegetonte, Caos, sítios vagos,
oxalá que possa eu ter permissão
de dizer o que vi, de revelar,
de, com vossa licença, descrever
o que enterrado está nas profundezas
do mundo em que vivemos. Iam eles
entre sombras na noite solitária,
pelos palácios vácuos do deus Dite,
e por todo o seu reino de aparências,
do mesmo modo em que, por leve incerto,
numa abertura que se não define,
se caminha no bosque quando Júpiter
o céu mergulha em sombra e noite escura
a cor tirou a tudo quanto existe.
Antes até do pátio, no princípio
de tudo que é o Orco, se instalaram
os Lutos e Cuidados vingadores ;
ali moram as lívidas Doenças
ali moram Velhice, Medo e Fome,
a medonha Miséria, toda a forma
horrorosa de olhar, Sofrer e Morte ;
292 VIRGÍLIO

vêm depois o Sono, irmão da Morte,


os Maus prazeres de Alma, vem a Guerra
que tanto gosto tem de assassinar ;
no limiar o cárcere de Euménides,
delirante, a Discórdia, de cabelos
que umas víboras são, todos atados
com as fitas sangrentas que os seguram.
No meio só um ulmeiro enorme, espesso,
que seus ramos estende como braços
dos quais se diz que ali moram os Sonhos,
enganadores Sonhos, confundidos,
ocultos entre folhas que os recobrem.
Há lá ainda multidão de monstros,
Centauros que parecem guardar portas,
Sila biforme, os cem que é Briareu,
selvagem Lerna de estridente horror,
Quimera de quem chama é armadura,
as Górgonas, Harpias, uma sombra
que aparenta três corpos. Mas Eneias,
com súbito terror, puxa da espada,
lhes apresenta a ponta sem bainha,
e, se não fora a sábia companheira,
logo avisar que todos são um nada
e que sem corpo voam, sombra apenas,
decerto os atacara, em vão fendendo
fantasmas com seu ferro. Dali parte
uma via que vai até ao Tártaro,
na direcção das águas de Aqueronte ;
é voragem de fogo que referve
e toda areia joga para o Cocito.
Caronte é quem vigia aquelas ondas
e quem passa dum lado para o outro,
esse imundo Caronte, puro horror,
no queixo pêlos brancos eriçados,
olhos de fogo eternamente fixos,
com um sórdido manto pendurado
duns ombros que são nojo. É ele próprio
quem de vara na mão impele a barca
e quem manobra a vela, em negro esquife
transporta os corpos para a outra margem.
Certo que é velho mas sua velhice
é de rij a firmeza e vivo sangue.
ENEIDA 293

Para as margens de rio tão sinistro


se precipita multidão de sombras,
são homens, são mulheres já sem vida,
magnânimos heróis, ousados jovens,
e moças por casar, e tanto filho
numa pira de morte exposto aos pais.
São tantos quantas folhas que nos bosques
se desprendem ao toque dos Outonos
tantos quantas as aves que voando
fogem de frias terras aos países
em que sol as recolhe, as acarinha.
De pé se conservavam, só pedindo
que os passassem depressa à outra borda,
mas o patrão do barco os escolhia,
ora estes ora aqueles embarcava,
repelia os restantes, empurrava-os
para além das areias em que estavam .
Eneias, perturbado no tumulto :
«Dize, virgem, que fazem nestas margens,
que desej am as almas que aqui estão,
e porque é que uns se afastam da corrente
enquanto remam outros lívida água. >>
Numas poucas palavras lhe responde
a velha servidora : <<Tu decerto
és o filho de Anquises, mais ainda
uma cria dos deuses, e vês hoje
o parado Cocito, estígio pântano
que mesmo os deuses temem invocar
quando uma jura têm de fazer.
Todos os que tu vês são miseráveis
que em parte alguma têm sepultura.
Quem os passa é Caronte e só aqueles
que transporta conseguem seu sepulcro,
pois não pode passar dum lado a outro
nestas roucas correntes quem não tem
seus ossos repousando em moradia;
por um século inteiro andam errantes
até poderem, quando recebidos,
visitar essas águas desej adas. >>
Para o filho de Anquises seu andar,
a muito remoendo em pensamento,
pesado o coração de piedade
294 VIRGÍLIO

por tão injusta sorte para tantos.


Pôde reconhecer, triste, frustrado
das honras funerárias um Orante,
outrora capitão da frota lícia,
e Leucáspis, os quais partido haviam
juntos com ele da perdida Tróia,
e que por mar tempestuoso foram
com navio e com outros engolidos.
E também avançava Palinuro
que saindo da Líbia, quando à popa
a seus astros olhava, sobre as águas
caído tinha. Eneias entreviu-o
naquela espessa sombra e lhe falou :
«Que deus, ó Palinuro, te afogou
assim de nossa ajuda defraudado ?
Dize-me por favor porque jamais
vi Apolo enganar assim alguém
pois que me prometera não haver
nesse mar risco algum à sua vida
e chegares connosco à terra Ausónia.
É isto ser fiel ao que se disse ? »
Respondeu ele : «Não, filho d e Anquises,
Febo não te enganou em seu tripé
nem foi um deus que me afogou no mar,
foi prodígio de força o que arrancou
o leme aquele de que eu era o guarda
e ao qual eu governava em nossos rumos ;
na minha queda o levei eu comigo.
Te juro pelo mar que nunca tive
tanto medo por mim como o senti
por teu navio sem leme e sem piloto,
sem poder escapar aos vagalhões.
E durante três noites de mau tempo
No to e suas borrascas me arrastaram
por todo aquele ilimitado mar
e só ao quarto dia pude eu ver
de cima duma vaga Itália ao longe.
Para terra nadei eu lentamente,
salvo me via, quando aquele povo,
oh que gente cruel, assim estando
eu de roupa molhada, com que peso,
mas tentando agarrar-me às asperezas
ENEIDA 295

daquela dura arriba, me atacou


com seus ferros desnudos por supor
que lhe havia eu de ser presa avultada.
Agora sou da vaga e já o vento
me joga para a costa. Mas tu podes,
porque invencível és, me socorrer,
me soltar destes males. Eu te peço
pelas brisas do céu, a luz da vida,
e por teu pai, pela esperança ainda
do moço Iúlo, desta dor me livra,
tu, aquele a quem mal jamais vence.
Alguma terra lança sobre mim,
pois bem o podes tu, depois procura
onde o porto de Vélia. E, se há um meiO,
se tua mãe divina to inspira,
e decerto não é sem querer deus
que estás pronto a passar um rio destes,
indo depois ao pântano de Estige,
estende para mim a tua mão
e contigo me leva pelas ondas
a fim de que eu na morte possa ao menos
repousar num lugar em que haj a paz . >>
Mas a sacerdotisa interrompeu :
«Porquê, ó Palinuro, chegas tu
a propor-nos tão grande sacrilégio,
sem estares enterrado, queres tu
ver as águas de Estige, e vir tão perto
do rio das Euménides, passar
à outra margem sem que a ti te chamem ?
Não julgues tu que podes com as preces
modificar dos deuses o destino,
mas ouve o que eu te digo, te consola
duma sorte tão dura como a tua.
Muito perto daqui serás levado,
a cidade habitada, por prodígio
que do céu há-de vir, a ti darão
o sossego dos ossos que tu queres,
sepulcro te farão e sacrifícios
ali celebrarão de provimento,
para sempre tomando este lugar
nome de Palinuro. >> Estas palavras
a toda a sua dor puseram fim,
296 VIRGÍLIO

deixou seu coração de estar tão triste,


ficou feliz por dar seu nome à terra.
A terminar percurso começado
se aproxima do rio. Quando o barqueiro
os viu, do meio de águas estígias,
atravessando os bosques para a margem,
sem demora lhes fala deste modo :
« Quem quer que sejas que assim vens armado
e te diriges para nossos rios,
pára aí já e dize-me o que queres.
Aqui moram as sombras, mora o sono
e mora ainda a morte que adormece ;
não posso transportar um corpo vivo
em barca que é Estígia. E não foi bom
ter aceitado neste lago Alcides,
nem Teseu, Pirítoo ou outros tais,
mesmo que fossem de divina raça
ou heróis que ninguém tinha vencido .
U m veio p o r sua mão lançar algemas,
ante o trono de nosso próprio rei,
a quem guardava o Tártaro, o levando
consigo a tremer todo. Quanto aos outros,
tentaram afastar a nossa dona
do tálamo sagrado do deus Dite.>>
A isto respondeu a vate Anfrísia :
«Armadilha nenhuma existe aqui,
não te ponhas colérico pois armas,
as que temos, não trazem violência,
embora possa gigantesco guarda
com seu ladrar eterno encher de medo
sombras exangues que vierem perto,
embora até Prosérpina castíssima
defenda o limiar do que é seu tio.
Eneias, o troiano tão ilustre
por sua valentia e piedade,
desceu a ver o pai aonde habitam
as sombras de nosso É rebo profundo.
E se te não comove a piedade,
talvez possas saber que ramo é este.>>
E mostra o que escondia sob as vestes .
A raiva, então, não mais lhe está no peito,
também Anfrísia. lhe não diz mais nada.
ENEIDA 297

Ele se acalma ao ver augusto ramo


que já há tanto tempo não olhava,
para eles volta a popa, se aproxima.
Outras almas, depois, que também vinham
em seus bancos dispostas, ele as afasta,
abre lugar ao gigantesco Eneias.
A barca ao peso geme, até o casco
deixa passar as águas pela fenda,
mas para lá do rio aonde deve
pôr sem dificuldade a profetisa
Eneias desembarca em lama informe,
entre um canavial esverdeado.
Cérbero enorme com as três goelas
faz estes reinos ressoar ao longe
ali deitado na caverna em frente.
Vendo a sacerdotisa que os pescoços
se lhe eriçavam todos de serpentes
deita-lhe um bolo de semente e mel
que logo lhe provoca fundo sono.
Enquanto está o guarda em seu torpor
Eneias se apodera da passagem
e rápido se afasta pela margem
daquele rio em que ninguém retorna.
Logo se escutam num vagido imenso
chorosas queixas de recém-nascidos
privados de viver ao ir viver
a doçura da vida, pois roubados
por um dia sombrio ao seio materno,
à sepultura vão antes do tempo.
Ao lado está o condenado à morte
por falsa acusação cair sobre ele,
e não sem ter havido decisão
dum júri, dum juiz, em instrução
que a Minas coube pois que presidiu
ao se tirar à sorte quem fez parte
do conselho fatal que em silêncio
as vidas examina que se acusam
e que, batidas, perto se conservam
junto inocentes que, sem culpa,
por detestarem luz à morte vão,
preferindo sofrer nos altos ares
duros trabalhos de pobreza imensa;
298 VIRGÍLIO

só que a ordem dos deuses o proíbe,


pântano triste de águas represadas
os prende nove vezes no que é Estígio.
Os Campos de Chorar, assim os dizem,
a todo o ponto vão ; ali se prostram
as que Amor vitimou e que, sem ânimo,
numas secretas sendas, pelas murtas
procuram ocultar-se ; mas a dor
nem nos braços da morte lhes dá tréguas .
Ali vê ele Fedra e Prócris vê
e mesmo a triste Erifila que mostra
a cruel agressão dum ímpio filho,
e Pasífae, Evadna, e com elas
aparecem Laodamia e o Ceneu
que em tempos foi um j ovem e destino
restituiu à forma primitiva.
Entre elas erra Dido, ainda perto,
pobre Fenícia, do que a vida trouxe.
Quando o troiano herói lhe chega ao lado
e vê que é ela embora pelas sombras
semelhantes às sombras que entremostra
a lua incerta àquele que duvida
ser lua o que aparece numa névoa,
lágrimas não retém e fala assim
a quem ele ama ainda como outrora :
« Infeliz Dido, que verdade havia
no que disseram de te ter o ferro
posto seu termo à vida que era tua.
De tua morte terei sido a causa?
Juro por astros e celestes deuses
e pela fé que sob a terra exista
que se deixei os reinos que eram teus
foi bem contra vontade que eu o fiz.
Mas as ordens dos deuses que me forçam
ir entre sombras percorrendo agora
decrépitos lugares que estes são
em tão profunda noite mergulhados
me levaram então a que o fizesse
e nem pude supor que o afastar-me
tão grande dor pusesse no teu peito.
Pára de andar, não fujas donde estás
porque é esta decerto a última hora
ENEIDA 299

em que me é dado assim poder falar-te. »


Tentava então Eneias abrandar
aquele fogo no coração dela,
aquele olhar bravio a que chorasse.
Ela, sem se voltar, fita no chão,
só mostrava a firmeza que teria
se da mais dura pedra fosse feita,
se em mármore Marpesso ali estivesse.
Por fim lá parte e para o bosque foge
onde Siqueu, o seu esposo outrora,
sofre da mesma dor, igual amor,
insatisfeito amor, lembra e lamenta,
enquanto Eneias, por injusta sorte
punido nele próprio, longe a segue
e chora na desgraça que é de todos .
Mas com forte vontade vai no rumo
que o destino lhe abriu e chega ao termo
em que tanto guerreiro tem descanso.
Aqui Tideu lhe surge por diante
e vem Partenopeu debaixo de armas
que tão brilhante glória lhe trouxeram
como ao lívido Adrasto aconteceu.
Destinados à morte pela guerra
é aos filhos de Dárdano que choram
os lamentos de Eneias quando os vê
em suas longas filas, um Medonte,
um Glauco, um Tersíloco, os de Antenor,
que foram três, ou, consagrado a Ceres,
um Polibetes, ou então Ideu
que ainda tem seu carro e suas armas .
Almas o cercam à direita e esquerda,
inumeráveis almas, nem lhes basta
o verem-no passar; querem que fique
muito tempo com eles e saber
quais as razões daquela sua vinda.
Só que os chefes dos Dánaos, as falanges
que de Agamémnon eram, quando o viram
com armas cintilantes entre as sombras,
de medo estremeceram, havendo uns
que voltam costas como quando outrora
corriam aos navios, outros ainda
só falam em voz baixa, se mais alto
300 VIRGÍLIO

na boca escancarada morre o grito.


Deífobo viu ele, o que era filho
de Príamo seu rei, mas tinha o corpo
como desfeito, a face mutilada,
as fontes destruídas, sem orelhas,
e cortado o nariz, ferida horrenda.
Logo que o viu assim apavorado
e tentando esconder os seus suplícios,
interpelou em língua conhecida :
«Deífobo, meu forte combatente,
descendente de Teucro em nobre sangue,
quem de ti quis tirar vingança crua?
Quem teve sobre ti tanto poder?
O que a fama me deu a conhecer
foi que naquela noite que era a última,
cansado de abater tanto Pelasgo,
tu tombaste de frente sobre o monte
dos inimigos mortos. Foi então
que em cabeço vazio túmulo abri
nas margens do Reteu e por três vezes
em voz altissonante invoquei Manes.
Teu nome e armas guardam o lugar,
mas te não encontrei, amigo meu,
e não pude, ao partir, pôr-te em repouso
na terra pertencente a nossos pais . »
E d e Príamo o filho assim responde :
«Não, meu amigo, nada te esqueceu,
todo dever cumpriste com Deífobo
à sombra de seu ·corpo. Foi destino,
este destino meu, foi a Lacónia
não expiar o crime cometido
o que a mim me lançou em tantos males.
Sabes tu bem como naquela noite
a passámos em festa enganadora,
e demais a lembramos todos nós.
Quando a desgraça que o cavalo trouxe
e se instalou pulando em alta Pérgamo
era no ventre dele que pesava
infantaria armada que num coro
iria acompanhar em seus volteios
a criminosa orgia dessas Frígias.
Foi Lacónia que em meio de tais bacantes
ENEIDA 301

ergueu em suas mãos uma alta chama


e para a cidadela chamou Danos .
Eu, quanto a mim, cansado d e inquieto
e tomado de sono no meu quarto,
em minha triste cama conseguia
repouso tão suave e tão profundo
que era, mais que repouso, morte calma.
Foi durante esse tempo que uma esposa
tão boa parecendo as armas todas
da casa que era nossa retirou
e veio até à minha cabeceira
roubar-me espada tão fiel e pronta.
Chamando Menelau lhe abriu a porta
achando que o presente que ali tinha
era de bom amor e poderia
acabar com boatos que corriam
sobre o que tinham sido antigos erros.
Para quê dizer mais ? É nesse quarto
que irrompe toda a turba, nela vindo
um companheiro alma de todo mal,
o que era filho de É olo. Ó meus deuses,
dai aos Gregos o mesmo, se está certo
que piedoso sej a orar vingança.
Mas, a ti que aventuras te trouxeram
a um lugar como este, ainda vivo ?
Vá, dize-me se foi um mar errado,
se conselho dos deuses, se é a Morte
que assim te prende nuns lugares tristes,
em regiões em que não brilha o Sol. »
Enquanto desta forma se falava
ia correndo em seu etéreo espaço
uma outra Aurora na quadriga rósea
e já tendo passado o meio do céu.
Talvez fossem gastando todo o tempo
saudando os companheiros, mas Sibila
assim lhes disse em rápidas palavras :
«Eneias, cai a noite, j á é tarde
e passamos as horas a chorar.
É o lugar, aqui, em que esta via
em duas se divide : a da direita
é a que vai parar ao Eliseu
pelos muros que são do nobre Dite ;
302 VIRGÍLIO

se pela esquerda formos é caminho


para os castigos justos, já que vai
onde o Tártaro espera, impiedosO. >>
<< Grande sacerdotisa, não te irriteS>>,
lhe respondeu D eífobo, «retiro-me,
alcançarei comigo o ponto certo
que deve haver nas trevas, e vai tu,
porque és o nosso orgulho, a um destino
bem melhor do que nós . >> Nada mais diz
e passos seus dirige a outro lado.
Eneias olha atento e vê à esquerda,
por tríplice muralha defendido,
em torno o rio do Tártaro, corrente,
de chamas que devoram, Flagetonte
fragorosos rochedos revolvendo .
Em frente porta enorme com pilares
que força alguma humana ou deuses mesmo
em guerra se juntando o pretendessem
podiam derrubar pois eram de aço,
com uma torre imensa ao céu se erguendo .
Sentada está Trifónia com um traje
que de sangue se tinge e guarda a porta,
de dia e noite sem jamais dormir.
Dali se ouvem gemidos, as pancadas
de chicotes cruéis que nunca param,
o ranger de grilhetas e de ferros.
Ante o ruído em que ressoa tudo
Eneias pára com terror que sente :
<<Que crimes tais castigos assim punem ?
Dize-me tu, ó virgem, que torturas
assim esmagam quem os praticou ? >>
Sacerdotisa então assim se escuta :
<< Ó meu famoso chefe de Troianos,
alma pura nenhuma poderia
ir para além dum limiar como este.
Mas Hécate, ao me dar este domínio
sobre os bosques de Averno me ensinou
o que pede vingança que é dos deuses
e me levou por tudo que é lugar.
Radamante de Cnosso fez que reine
duro rigor em tudo que há de volta,
oculto como está assim persegue,
ENEIDA 303

tudo escuta obrigando a revelar


o que homens se permitam pela terra
quando passam a vida sem penar
depois de todo o horror que cometeram
como tencionando repará-lo
só nas tardias horas de morrer.
Logo para vingar vem Tisífone,
de chicote à cintura, não perdoa,
com a esquerda lhes mostra ela as serpentes
que suas são, e todas horrorosas,
suas cruéis irmãs chama em seguida.
É só então que num tremendo estrondo
se abrem portas malditas com seus gonzos.
Vê tu a guarda que vigia o pátio,
que vulto está ali de sentinela,
uma hidra monstruosa com goelas,
cinquenta goelas bem abertas.
É o Tártaro mesmo, é o abismo
que paira sobre as sombras e mais fundo,
duas vezes mais fundo do que o céu
se eleva sobre nós até chegar
ao Olimpo dos páramos etéreos.
Velhos filhos da Terra, vão Titães,
abatidos do raio, na voragem.
Os corpos gigantescos dos Aloidas
ainda vi aqui porque quiseram
forçar o céu imenso com as mãos,
Júpiter arrancar ao alto trono.
Também vi Salmoneu quando sofria
os mais cruéis suplícios, que imitara
o chamejar de Jove ou o rugir
que ressoa no Olimpo, ia arrastado
pelos quatro cavalos, com archote,
por entre os povos gregos, na cidade
que está no meio de É lida, num triunfo
em que exigia as honras de ser deus ;
insensato, julgava que podia
com falsas tempestades enganar
ou iludir com bronze o ser o raio
ou fabricar-se cascos de cavalo.
Mas o Pai poderoso, lá das nuvens,
um dardo lhe jogou que o abateu,
304 VIRGÍLIO

um dardo que não era apenas tocha


ou só os restos de outra, mas um dardo
que o apanhou num turbilhão de chamas.
Tito também, criado pela Terra,
matriz universal pôde ver-se,
o corpo a ocupar uns nove côvados,
abutre enorme com seu bico em gancho
o fígado imortal lhe roía
numas entranhas em que a dor reinava
o peito penetrando sem dar folga,
a tanta fibra logo rouba a vida.
Que dizer dos Lápitas, Pirítoo,
até Ixião ? Sobre as cabeças
havia pedra preta sempre prestes
a desprender-se e lhes cair em cima.
Os leitos são de festa, apoios de ouro,
comida pronta como a rei faustoso,
só que ao lado se deita velha Fúria
que não deixa nenhum chegar a mão
à mesa que está perto, logo erguendo
um archote que tem e trovejando
com a voz que é a dela. Estão aqui
aqueles que odiaram os irmãos
e mais aqueles que durante a vida
repeliram o pai ou que burlaram
algum freguês que vinha confiante
ou quem, ficando rico, o escondeu
e nada repartiu com os parentes,
e destes quantos houve pelo mundo ;
outros por adultério foram mortos,
havendo quem entrou em ímpia guerra
e traiu a palavra dada ao chefe ;
todos, j á presos, seu castigo aguardam,
nem procuram saber como será,
nem como estarão eles na prisão,
nem que duro destino assim lhes coube.
Uns rolam um rochedo monstruoso,
outros atados vão a raio de roda,
o pobre de Teseu sentado está,
sentado vai ficar por todo tempo
e Flégias, o que foi de pior sorte,
faz que todos escutem o que afirma
ENEIDA 305

uma voz clamorosa dentre as sombras :


«Agora que sabeis o que sabeis
aprendei que há justiça e vos deixai
de desprezar os deuses que vos guardam. >>
Este vendeu a pátria por dinheiro
e senhor poderoso veio impor-lhe,
por preço certo fez e desfez leis,
e no quarto da filha entrou este outro
himeneu proibido cometendo.
Todos ousaram crime monstruoso
e de interdito fruto se gozaram.
Poderia ter eu umas cem línguas,
com mais cem bocas, uma voz de ferro
que nunca era capaz de enumerar
as formas destes crimes com o nome
que caberia a cada punição . >>
Quando a sacerdotisa do deus Febo
acabou de falar ainda disse :
«Mas vamos retomar então a marcha,
acaba o que tu próprio começaste,
aceleremos este nosso andar.
As muralhas j á vejo que os Ciclopes
construíram outrora, vejo as portas
por debaixo da abóbada em que temos
de deixar nossa oferta. >> Lá prosseguem
por escuros caminhos e vivamente
vencem já a distância, se aproximam
duma entrada que havia. Avança Eneias
e com uma água fresca asperge o corpo
logo depondo o ramo onde devia.
Feito tudo o que tinham de fazer
e prestada uma homenagem a essa deusa,
entraram eles em ridente espaço,
felizes prados duns amenos bosques,
onde um aberto céu veste de púrpura
toda a planície com o Sol, os astros.
Há uns que se divertem sobre as relvas
se exercitam lutando em fulva areia.
Dança uma parte acompanhando coro
que poemas entoa; sacerdote,
Trácio de hábito longo, uma cadência
marcava ao exprimir com os seus dedos
306 VIRGÍLIO

ou com o plectro de marfim que tem


os intervalos éntre as sete notas ;
a linhagem de Teucro, tão antiga,
e raça abençoada pelos deuses,
com os grandes heróis do melhor tempo,
um Assáraco, um Ilo com um Dárdano,
o fundador de Tróia aqui vai toda.
Um pouco desviando admira ele
as armas dos guerreiros ou os carros
a que não sobem mais ; estão as lanças
espetadas no chão, soltos cavalos
vagueiam por aqui e por ali.
Mas o gosto da vida que eles tinham,
com armas e bons carros e corcéis
que com tanto cuidado eram tratados
não o perderam nunca, os segue ainda
apesar de ficar tudo de parte.
A outros ele vai dum lado e outro,
da direita e da esquerda pelas ervas,
tomando as refeições, cantando em coro
uns cantos de triunfo e de alegria
em perfumado bosque de loureiros.
De lá corre Erídano as suas águas
com poderosa força vão rolando
através da floresta para a foz.
Aqui os que sofreram de feridas
por terem combatido pela pátria,
aqui os sacerdotes cumpridores,
aqui pios profetas que palavras
dignas de Febo em vida proferiram
ou os que mereceram existir
por se terem às artes dedicado
ou quem, fazendo o bem, deixou memona
naqueles que ajudou a ser inteiros,
todos eles à volta da cabeça
cingem fita de neve porque puros .
Como faziam roda, então vem Sila
com eles fala, sobretudo a um
que Museu se chamava e tinha em torno
mais gente junta porque era mais alto,
dominando de cima e sendo nele
que mais fácil os olhos se fitavam :
ENEIDA 307

«Dizei, ditosas almas, dize tu,


que és o melhor profeta, em que país,
em que parte, do mundo está Anquises,
porquanto foi para ele que viemos,
que atravessamos de É rebo as correntes. >>
Então aquele herói lhe respondeu
com as poucas palavras de que usou :
«Nenhum lugar marcado tendes vós,
habitamos em bosques cheios de sombra
ou nas margens de rios repousamos
em prado sempre fresco de regatos.
Mas vós, se assim quereis, ide e passai
aquele monte além e vos porei
num caminho bem fácil entre todos . >>
Assim dizendo já lhes vai à frente
e dos altos lhes mostra pradarias
que de luz esplendem, atrás deixa
toda a linha de cimos que anteviam.
Num verde vale o venerando Anquises
examinava as almas do lugar
a ver quem tinha por destino a luz,
tarefa a que voltava sem cansar-se.
Naquele mesmo instante renovava
essa escolha de seus caros parentes,
a sorte de cada um tentando ver,
os caracteres vários, as proezas.
Ao ver que Eneias vinha ao seu encontro,
no prado caminhando, aquele pai
alegre lhe estendeu as duas mãos,
se lhe cobriu de lágrimas a face
e assim falou como se fosse em grito :
«Por fim chegaste e tua piedade,
como teu pai pensava, triunfou,
venceu áspera estrada e posso agora
contemplar o teu rosto, ouvir-te a voz,
de ti saber, meu filho, o que queria,
e dia a dia ia passando o tempo,
sempre contando com o dia de hoje,
como foi afinal o meu destino.
Quanta terra tu viste e quanto mar
até que realmente te encontrasse,
depois de tanto risco te atacar.
308 VIRGÍLIO

E como tive medo de na Líbia


sofreres os efeitos de seus males. >>
<<Meu pai>> , respondeu ele, <<tua imagem,
a tua dor que tanta vez olhei
foi ela que me trouxe até aqui,
estas tirrenas águas em que ancoram
meus navios cansados de viagem.
Deixa, meu pai, que tua mão aperte,
a meu abraço não te furtes, pai.>>
Enquanto assim falava iam as lágrimas
inundando seu rosto e quantas vezes,
quando tentava tê-la nos seus braços,
o vulto que era sombra se escapava,
ligeiro como vento, como o sonho
que em sono desvanece e se liberta.
Vê entretanto Eneias em seu vale
num bosque um pouco ao longe, retirado,
uma abertura com pequenas árvores
e pelo meio correndo o rio Letes
que em lugares de paz desliza manso.
Dum lado e doutro voam as nações
e numerosas como em prado abelhas
quando, por calmo Estio, pousam juntas
num variado, num florido manto
em que há uns lírios brancos, todo campo
como embalado num murmúrio brando.
Eneias, que o não sabe, se pergunta
qual a causa do súbito espectáculo,
e logo o pai lhe fala : <<São as almas
às quais reservam corpos os destinos,
é nas margens do Letes que elas bebem
os filtros que lhes dão calma, esquecer-se
por muito e muito tempo. Mas é delas
que desejo eu falar-te há tanto e tanto
e trazer-tas, e pôr-vos frente a frente,
é a prole dos meus que vou mostrar-te
para que tu, comigo, mais te alegres
de ter enfim reencontrado Itália. >>
<< Ó meu pai, mas será que vamos crer
que algumas destas almas ao céu voltam
e vão de novo regressar à Terra,
a ficar como presas p elo corpo?
ENEIDA 309

Será funesto o gosto que elas têm


de tornar para a luz ? >> «Te vou dizer,
meu filho, pois não quero que mais tempo
fiques tu sem saber o que se passa. >>
E logo, ponto a ponto, ordem perfeita,
Anquises continua, assim lhe fala:
«Primeiro, quanto a céu e continentes,
àqueles prados e da Lua à luz,
aos radiosos astros de Titão,
é bafo interior que os faz viver,
pois que se infunde em universo inteiro,
move essa massa imensa e se mistura
a tudo quanto é corpo em nosso mundo.
Daí nos vem a nossa raça de homens,
a raça de animais, seres que voam
e monstros que no mármore das águas
o mar os escondendo sempre cria.
Todos eles centelha que é celeste
trazem consigo em brilho que amortece
o que na terra encontram, impurezas
q ue, de matéria feitas, há nos corpos.
E então que não sentem medo algum
ou o consolador sopro do céu,
desejos, alegrias e temores
que em infectadas almas se conservam
porquanto em trevas vivem, na prisão
que nada deixa ver do que se faz.
Mesmo no último dia, quando a vida
afinal as desprende, não se livram
de acumuladas pestes que de facto
foram crescendo lentas lá do fundo.
Sofrem então severas penitências,
o castigo das febres que se foram.
Umas, suspensas, as açoita o vento
outras em vasto abismo a vaga pune
ou o fogo devora sem remédio.
É o que a todos nós nos traz a morte.
Vamos por fim a uns Etéreos paços,
ficando alguns nesses felizes campos
até que um longo dia além do tempo
tenha extinguido inveterada nódoa,
dê de novo celeste inteligência,
310 VIRGÍLIO

já com toda a pureza e vivo fogo.


As almas que tu vês levam mil anos
a fazer que se volva a roda ao tempo,
depois à multidão um deus evoca
nas margens do rio Letes, verifica
se já tudo esqueceram ; se é assim
tornam a ver abóbada celeste
e começa de novo em todas elas
desejo de outra vez voltar aos corpos. >>
Depois, tendo acabado sua fala,
leva a Sibila o filho ao meio dos grupos,
a um cabeço sobe donde os vê
e pode distinguir o rosto a todos :
«Já aqui tens a glória que, futura,
raça dardânida irá acompanhar,
j á raça italiana, netos nossos,
que nosso nome levarão ao mundo.
Tos vou apresentar, te informarei
dos destinos que deles e teus são .
O primeiro ali está, o que se apoia
em lança pura, já banhada em luz :
será também primeiro a levantar-se
com a brisa celeste e juntará
a nosso sangue sangue italiano,
é Sílvio, nome Albano, último filho
que de Letónia, tua esposa, nasce
em bosque e que será teu sucessor
quando te alcance tempo de velhice,
e será rei mais tarde, pai de reis,
pelos quais a nossa descendência
seu trono firmará em Alba Longa.
Esse outro perto dele será Procas,
famoso vulto da nação troiana,
depois é Cápis, Numitor aquele,
o que te vai fazer tornar à vida,
pois que nome terá de Sílvio Eneias,
nome ilustre por sua piedade
e pela glória de guerreiros feitos,
se conseguir tomar como seu reino
a cidade que é Alba. Que homens estes,
olha a força que mostram, olha a sombra
que na fronte lhes faz coroa cívica
ENEIDA 31 1

tecida de folhagem de carvalho.


Para ti fundarão Nomento e Gábios,
a cidade Fidena e cidadelas
de Pomécia, Colácia, Castro e Bola,
de Cora impõem nomes ilustres,
hoje de terras que ninguém conhece.
Por fim aquele que ao avô ajuda,
o Rómulo de Marte que Í lia augusta
dum Assáraco sangue dá ao mundo.
Vês dois penachos que tem na cabeça?
Com seu sinal o honra o Pai dos deuses ;
sob os auspícios de tão grande herói
Roma vai igualar-se ao universo,
que dela sej a império e, por coragem,
Olimpo lhe será também igual,
cidade abençoada pelos homens
e nas sete colinas defendida
pela muralha que ninguém derruba.
No carro dele vai como no seu
a mãe do Berecinto que se adorna
de combatentes torres, entre as cidades
que na Frígia se contam toda alegre
de ver seus filhos deuses, de abraçar
seus netos que cem são, todos do céu,
todos em altos cimos em seus tronos.
Mas volta teu olhar para este lado,
vê a tua nação, os teus Romanos ;
César está aqui e tem consigo
a descendência toda que é de Iúlo
quando a cobrir abóbada de céu.
Este homem que aqui tens, Augusto César,
é mesmo aquele de que todos falam
e te está desde sempre prometido
como filho de um deus. Renovará
século de ouro que Saturno outrora
fez demorar nestes latinos campos.
Indo mais longe do que os Garamantes
ou de que os Indianos, nosso Império
vai ele dilatar além dos astros,
para além dos caminhos por que vão
o Sol e meses de ano até à Terra
em que o grande Atlas que sustenta o céu
312 VIRGÍLIO

nos ombros faz girar a vasta abóbada


de estrelas esmaltada por seu fogo.
Já ao saber dele os reinos cáspios
tremem ouvindo oráculos dos deuses,
como a terra meótida se abala
e como se horrorizam e perturbam
as bocas, que são sete, do rio Nilo.
Não afrontou Alcides tantas terras,
apesar de abater a estranha cerva,
a das patas de bronze, e de impor paz
aos bosques de Erimanto, e com seu arco
ter feito estremecer o grande Lerna.
Nem aquele que é Líbero, vencedor,
que seu carro conduz por meio de rédeas,
seus tigres leva desde os altos cimos
que são do monte Nisa. Hesitaremos
em mostrarmos valor nos grandes feitos
ou será que algum medo nos retém
de ir ocupar a terra ausónia?
Mas quem vem lá em baixo, que imponente,
adornado de ramos de oliveira,
e trazendo consigo o que é sagrado ?
Ah sim, é o cabelo, a barba branca
daquele rei romano, o que primeiro
deu à cidade leis, o que nos veio
de Ceres, terra humilde, e que chegou
a este grande Império que é o nosso.
Será seu sucessor quem interrompe
os pacíficos dias que decorrem
no que é a pátria sua, aquele Túlio
que a combater ensina cidadãos
à paz habituados, e soldados
já desacostumados de triunfos.
Logo a seguir vem Anca, um tanto altivo,
e mesmo aqui sensível em excesso
ao favor popular. E queres tu
ainda ver nossos tarquínios reis
e Bruto, vingador de alma soberba,
que soube recordar os nossos Feixes ?
Será ele o primeiro a receber
machado impiedoso, o que a seus filhos
castiga com a morte, defendendo
ENEIDA 313

a santa liberdade posta em risco


pelas guerras por eles provocadas.
Não teve sorte, seja como for
que julguemos nós hoj e o que ele fez,
mas amor da nação nele venceu,
com gosto apaixonado de ter fama.
Mais longe vês os Décios, vês os Drusos,
e mais Torcato vês, o que não teve
em seu machado piedade alguma,
Camilo que nos traz nossas insígnias.
Aqueles dois das armas tão brilhantes,
agora almas amigas, noite as cobre,
mas quanta guerra estalará entre eles
quando as luzes da vida lhes tocarem
e que batalhas, que carnificinas
vão eles provocar, descendo o sogro
da muralha dos Alpes, do Moneco,
mas ao encontro dele vindo o genro
com os povos de Aurora que o ajudam.
Meus filhos, não deixeis habituar
o vosso coração a essas guerras,
contra as próprias entranhas não leveis
o que é da vossa pátria força viva.
E tu então que tens a tua origem
no próprio Olimpo, generoso sê,
deita fora essas armas, sangue meu.
Aquele, triunfando de Corinto,
vencedor levará o carro seu
até ao Capitólio e colhe a fama
que lhe cabe por ter batido aqueus.
Aquele outro Argos toma e vencerá
Micenas de Agamémnon ou Eácides,
Eácides ele mesmo, ilustre neto
de Aquiles invencível, em vingança
de seus avós batidos, de Minerva,
dos ultrajados templos dos Troianos.
Quem poderia não falar de ti,
grande Catão, ó Corso, nem de ti ?
Ou da raça de Graco ou dos dois homens,
dos dois raios de combate, os Cipiões,
que tal flagelo foram de ti, Líbia,
ou de Fabrício, com poder por pobre,
314 VIRGÍLIO

de ti, Serrano, o da semente ao campo.


Aonde, Fábio, queres tu que eu vá
quando cansado estou ? Mas tu, ó Máximo,
tu, sozinho, com tua sensatez,
em ti conténs todo o valor do Estado.
Outros com mais talento forjarão
nus bronzes que parecem respirar,
de mármore farão uns rostos vivos,
ou causas podem discutir melhor,
mais hábeis apontar as rotas de astros,
dizer de seu poente, seu nascer :
mas, Romano, a tua habilidade
é a que para a paz dá suas leis,
a que respeita humildes que obedecem,
o que desarma altivos que protestam. >>
Assim falou o venerando Anquises
a ele e companheiros que o estimam,
dizendo ainda mais : «Vê como avança
Marcelo triunfante com despojos
e como, vencedor, olha de cima
a todo o camarada à sua volta.
Na confusão de todos os tumultos
dará ele firmeza ao Estado, a Roma,
o rebelde Gaulês derrotará,
com fará ao Púnico, e pendura
uma armadura em honra de Quirino,
a terceira tirada ao inimigo . >>
Aqui falou Eneias porque via
um jovem ir com ele, maravilha
de beleza de corpo, e cujas armas
refulgiam à luz, mas em que a fronte
sombria se mostrava, o mesmo os olhos,
o rosto se baixando para o chão :
«Quem acompanha, pai, o que vai indo,
será que é filho ou já um descendente
na estirpe de seus netos ? Que ruído
o de todos que o cercam ! Que presença
tão majestosa a sua ! Mas no rosto
as sombras são de dó e de tristeza. >>
Súbito chora Anquises e responde :
«Não queiras saber, filho, do desastre
que será o dos teus, porque este aqui
ENEIDA 315

apenas pela terra passará,


não é permanecer o seu destino.
Grande raça seria a dos Romanos
se uma dádiva assim fosse a dos deuses.
Quanto lamento subirá do Campo
que fica na cidade que é de Marte,
e que luto em teus olhos, Tiberino,
quando águas tuas campa lhe tocarem.
Moço nenhum que venha de troianos
terá essa esperança para orgulho
de seus avós latinos, nunca a terra
que a Rómulo dará vai exaltar
como a ele faria filho seu.
Ó piedade, tão venerada honra,
ó dextra triunfante em toda a guerra.
Perante um tal herói ninguém impune
ficava, quer ataque fosse a pé
quer espora a cavalo atormentasse.
Ah pobre jovem, se pudesses tu
travar, vencer destino rigoroso,
tu que serás Marcelo . Dai-me lírios
dai-me montes de lírios, dai-me o brilho
de toda a flor que houver, e possa ao menos
consolar eu a alma de seu neto,
se consolo há algum em dor assim. »
Com uns lamentos tais é que eles vão
dum lado a outro lado em vastos campos
como são os que se abrem pelos ares,
tanta extensão olhando sem parar.
Tendo guiado o filho no mistério,
depois de ter-lhe incendiado o peito
de ardente zelo pela fama a vir
logo Anquises lhe conta das batalhas
que tem de aguentar, como dos povos
que serão Laurentinos, da cidade,
que pertence a Latino, da maneira
por que há-de triunfar das provações.
Dizem que há duas portas para o Sono,
pela qual se dá saída fácil
às almas namoradas da verdade,
outra de arte perfeita pela qual,
de esplêndido marfim, lançam os deuses
316 VIRGÍLIO

para o céu em que ficam ilusões


que de noite enxameiam nossos sonhos.
A ela vai Anquises com Sibila,
por ela faz que passe com Eneias
que para as naves corre, a todos vê,
e logo chega ao porto de Caieta,
no mesmo litoral. Forte a proa,
âncora ali arreia, enquanto as popas
se apoiam e descansam pela praia.
LIVRO VII

E tu também que sustentaste Eneias


pela morte nos deste fama eterna,
ainda hoje, Caieta, veneramos
que em nossa grande Hespéria guardes tu
o nome com os ossos desse herói.
Cumpriu Eneias ritos funerários,
o túmulo elevou como devia;
depois que águas do mar se retiraram
as velas desferrando deixa o porto.
Durante a noite soprou sempre a brisa,
aos navios favorece a Lua cheia,
enquanto o mar, por ela iluminado,
é todo como um brilho palpitante.
Passam junto da costa que é de Circe,
é lá que entre tesouros enche os bosques
filha do Sol com seu perpétuo canto,
debaixo dum abrigo que a orgulha,
queima ela para luz cheiroso cedro,
enquanto a carda lhe percorre a teia.
Só que debaixo soltam seus rugidos
os leões que repelem as correntes
e já noite avançada ainda soam ;
há também por ali porcos peludos,
raivosos ursos que nas j aulas urram
mais uns lobos de formas gigantescas
que outrora foram homens, mas que Circe
com temíveis poderes e com ervas
despojou das feições para lhes dar
costados e focinhos de animal.
E para que os Troianos piedosos
pudessem não sofrer um bravo ataque
318 VIRGÍLIO

se para o porto fossem impelidos,


enche Neptuno as desfraldadas velas
de ventos favoráveis, dá-lhes fuga,
os faz passar os fundos referventes .
Já era o mar iluminada púrpura,
já nas alturas rebrilhava Aurora
por sobre o mar com sua rubra cor
e no carro de rosas, quando o vento
de súbito cessou, lutando os remos
em águas que eram mármore parado.
Avista então Eneias bosque imenso
entre árvores correndo em brando curso,
mas com seus turbilhões, o Tiberino
todo louro de areia ao mar descendo.
Dum lado a outro coloridas aves,
habituadas à corrente, às margens,
encantadoras voam pelo bosque
com o seu canto de harmonia e vida.
Ordena então Eneias que os navios
voltem proas à terra e que penetrem
alegres marinheiros nesse rio
q ue em protectora sombra os acolhia.
Erato, agora dize tu que reis,
que circunstâncias eram as do Lácio
nessas horas em que, primeira vez,
uma frota estrangeira com guerreiros
velejando abordava terra ausónia.
Vou então fazer eu a narrativa,
evocar o princípio dos combates :
ensina tu, ó deusa, o teu poeta.
Direi agora das terríveis guerras
e de exércitos postos em batalha,
de soberanos que, de ressentidos,
a morte impiedosa se dispunham ;
exército tirreno, toda Hespéria
à luta coagida. Grande encargo,
maior que nunca o que ante mim me surge,
tarefa que empreendo dado à sorte.
O rei Latino, já envelhecendo,
governava umas terras e cidades
que longuíssima paz adormecera.
Nascera ele de Fauna e de Maricas,
ENEIDA 319

a ninfa laurentina, sendo Fauno


um dos filhos de Pico, o que dizia
que era mesmo Saturno o deus seu pai.
Pelo querer dos deuses rei latino
não tinha em sua casa outro rapaz,
pois que roubado fora ainda moço ;
só uma filha lhe sucederia
naquela casa e trono tão augusto,
filha já em idade de casar.
E muitos a pediam quer do Lácio
quer de todos os pontos de uma Ausónia.
De todos o mais belo e poderoso
era Turno, por seus avós ilustre
e que a esposa real desejava
ter por seu genro com inteiro empenho.
Mas o que era verdade é que prodígios
mandados pelos deuses eram contra.
No meio do palácio, bem a dentro,
um loureiro se erguia cuja copa
sagrada se dizia e se guardara
com um certo temor anos e anos.
Venerando Latino, ao que contava,
esta árvore encontrara há muito tempo
quando fundava a sua cidadela
e logo a tinha consagrado a Febo,
daí chegando ao nome de Laurentes
que tinha posto aos habitantes todos.
Um dia abelhas, com barulho intenso,
em céu limpo voando vinham vindo
pousar sobre o loureiro e, que prodígio,
de patas enlaçadas se prenderam
à folhagem dum ramo em grande enxame.
E disse um adivinho : «Vemos nós
chegar herói de fora e do lugar
donde também vieram as abelhas
que todas em torpel já ocupam
essa nossa cimeira cidadela. »
Mas houve ainda mais : Lavínia, a virgem,
com suas castas tochas dava lume
aos altares dos deuses quando o fogo
passou às longas tranças e queimou
aos adornos que tinham, logo a chama
320 VIRGÍLIO

incendiando a cabeleira toda,


pondo em brasa a coroa guarnecida
de preciosas gemas e daí
a Vulcano espalhando pela casa.
O ter acontecido um tal desastre
foi visto como péssimo e profético,
porquanto por um lado se previa
que Lavínia teria fama e sorte
mas que por outro lado era seguro
VIr pavorosa guerra a seu país.
Então o rei, com medo dos prodígios,
recorreu aos oráculos de Fauna,
que lhe era deus profeta além de pai,
e nos altos Albúneos se aconselha
com sacra aberta que no bosque havia.
Era o bosque de todos o mais vasto,
nele uma santa fonte ressoava
e da sombra fazia que surgissem
uns vapores estranhos em seus bafos.
Era aqui que buscavam a resposta
às dúvidas que tinham os de Itália
mais os da terra enótria que ali vinham.
Quando ali, num altar, o sacerdote
depôs as oferendas, se deitou
no silêncio da noite sobre as peles
das ovelhas que tinham imolado,
e veio o sono, se apoderou dele,
viu ele estranhas formas, uns fantasmas,
voar por toda a parte, como ouviu
as vozes que soavam perto e longe
num partilhar de deuses conversando,
assim como Aqueronte interrogou.
Enquanto o sacerdote assim dormia,
sacrificou Latino, rei augusto,
suas cem ovelhinhas de dois anos,
para, segundo os ritos, ter respostas ;
se deitou, esperando, nos tosões
que já se tinham posto pelo solo
quando nessa clareira de repente
uma voz se elevou que bem se ouvia.
«Não tenhas a ambição, ó filho meu,
de virem à menina casamentos
ENEIDA 32 1

que do Lácio ofereçam ; não a dês


a um leito que tenham preparado ;
virão de fora genros cujo sangue
levará nosso nome até aos astros
e netos nos darão que deles vindo
ao universo todo hão-de alargar-se
e com o Sol irão de mar a mar,
vendo, como ele vê, o mundo inteiro
rodar-lhes sob os pés, obediente
às leis que lhe tiverem formulado. >>
Respostas estas que, vindas de Fauno,
não ficaram nos lábios de Latino,
mas a Fama as levara a toda Ausónia.
Quando os que vinham de Laomedonte
chegaram, amarraram sua frota
pelas relvadas ribas litorais.
Já Eneias, os chefes principais,
o belo Iúlo estendem os seus corpos
debaixo da ramada de árvore alta.
Preparam um repasto com, na relva,
uns bolos de farinha que inspirado
o próprio Jove tinha e com a fruta
que o bosque dava e Ceres lhes servia.
Depois de terem já comido tudo
porque mais não havia, deitam dente
à modesta oferenda dessa deusa
os bolos repartindo com a mão.
Até Iúlo, por graça, assim falou :
«Somos capazes de comer a mesa. >>
Foram estas palavras que marcaram
o fim de seus trabalhos porque Eneias
logo ouviu o que o filho proferira
e com toda emoção assim lhes disse :
<<Salve, terras que sois de meus destinos,
e salve também vós, nossos Penates,
ó Penates de Tróia, é esta a casa,
é esta a pátria por que eu suspirava.
É o meu pai Anquises que hoje lembro
por me ter confiado noutro tempo
o segredo de toda a minha sorte. >>
<<Quando a fome, meu filho, se sentir
na costa a que serás tu conduzido,
322 VIRGÍLIO

e te vires forçado ao aceitar


que a própria mesa comerias tu,
nessa altura é que tens de te lembrar
de desej ar morada em que descanses,
de construíres tu primeiras casas
e de as fortificar com as muralhas. »
«Era esta então a fome tão temida,
isto nos aguardava ao fim de tudo
para nossa desgraça ter seu termo.
Coragem, pois, amigos, bem alegres
logo ao romper do dia vamos ver
que terra é esta, que gente é que a habita
onde estarão os muros da cidade.
Vamos partir do porto e percorrer
a extensão inteira à nossa volta.
A Júpiter saúdem nossas taças,
pai Anquises invoque nossa prece
e volte o vinho que há à nossa mesa. »
E tendo assim falado, com um ramo
de folhas guarnecido a fronte cinge,
faz oração ao Génio do lugar,
logo à Terra entre os deuses, mais as Ninfas,
depois aos Rios que ainda desconhecem ;
também invoca a noite e seus sinais
quando nela despontam, Jove Ideu,
e, por ordem, a Mãe Frígia, seus pais,
a mãe que está no céu e pai Anquises
que em espaço É rebo tem sua sede.
Então o poderoso Pai dos deuses
por três vezes troveja em céu sereno
e, com a mão o sacudindo mesmo,
faz que apareça sobre um fundo etéreo
nuvem ardente de ouro e luz aos raios .
Logo e m seguida corre entre o s Troianos
ter-lhes chegado o dia em que afinal
vão construir os muros que são seus.
As crateras dispõem para o vinho
que com ramos coroam como devem.
Quando ao romper do dia vem a luz,
dispersos reconhecem a cidade,
os confins, os ribeiros do país ;
eis as paradas águas donde vêem
ENEIDA 323

surgir-lhes o Numício, aqui o Tibre,


e junto a ele moram os Latinos
com toda a sua força e valentia.
Mas o filho de Anquises lhes ordena
que embaixadores venham dentre todos
em número de cem e se encaminhem
ao augusto palácio que é do rei,
com os ramos de Palas a velá-los
para pedirem paz para os Troianos.
Sem demora obedecem e depressa
vão levar os presentes que traziam.
Eneias entretanto traça um sulco,
humilde sulco com que liga os pontos
em que terá muralha de passar,
a praça fortifica e já na margem
ao j eito militar talude se ergue
e paliçadas dum primeiro pouso.
Já no fim do caminho os enviados
viram torres e casas dos Latinos,
dentro em pouco transpõem a muralha.
Diante da cidade, a juventude
no que é a flor de idade, se exercita
com cavalos e carros ou à seta
em seus nervosos e vibrantes arcos,
que são os de corrida e de combate.
Então um deles se adianta aos outros
e vai dizer ao pai que fortes homens,
vestidos com uns trajos diferentes,
acabam de chegar e logo o rei
dá ordem de levá-los ao palácio,
enquanto ele, cercado de vassalos
os aguarda no trono dos avós.
Era imponente, enorme este seu paço
com suas cem colunas no mais alto
que havia na cidade. Em volta bosques
se juntavam às crenças dos antigos
enchendo tudo dum temor sagrado.
Aí recebe ceptro, reais feixes
trazia ao rei todo o poder divino,
a um tempo era cúria e templo era,
de banquetes solenes sede certa.
Ali ao longo de compridas mesas,
324 VIRGÍLIO

se sentavam os pares, só depois


de terem imolado seu carneiro.
Havia estátuas dos antepassados,
todas por ordem e dum antigo cedro .
Í talo estava ali, Sabino augusto
que vinha introduzira e na mão tinha
em seu talhe perfeito curva foice,
em seguida Saturno, depois Jano,
o deus bifronte posto no vestíbulo,
com eles outros reis desde o princípio,
heróis que combatiam pela pátria
e de Marte sofreram as feridas.
Penduradas nas portas muitas armas,
algum carro tomado ao inimigo
e machados de lâmina redonda,
capacetes, ferrolho de cidade
que haviam conquistado, muito escudo,
os esporões de proa de navio.
O próprio Pico, de bastão Quirínio
e com ancila de seu lado esquerdo,
em seu descanso de domar cavalos,
ali também se via, ele que a esposa,
a deusa Circe, com os seus encantos
e com a vara de ouro transformara,
tomada de paixão, em ave de asa
de cores semeada, num delírio .
Foi então neste templo, moradia
aos deuses pertencente, que Latino,
em seu trono subido trouxe a si
os Troianos que vinham venerá-lo.
Quando os olhou lhes disse com bondade :
« Ó Dardânidas, já que bem sabemos
por fama que trouxeram as viagens,
da cidade que tínheis, do que sois,
dizei-me que quereis, e que motivo
ou que necessidade aqui vos traz,
depois de terdes vós tão longe andado
nesses vossos navios à terra ausónia.
Se houve acaso convosco erro de rumo
ou o furor de alguma tempestade
ou qualquer outra prova frequente
em quem tanto viaje que vos trouxe
ENEIDA 325

a tomar porto às margens deste rio


numa terra que é nossa, não deixeis
de aceitardes de nós acolhimento
e de ficardes vós conhecedores
do povo de Saturno, dos Latinos
que justos são sem coacção, sem leis,
a si mesmo governam, modelados
pela lição dum deus de antigos tempos.
Lembro-me ainda, embora a tradição
vá ficando delida pelos anos,
que nos contaram os Auruncos velhos
que Dárdano, nascido nestes campos,
foi até às cidades de Ida Frígio,
na Trácia àquela Samos que se chama
Samotrácia hoje em dia. Foi daqui,
da cidade tirrena de Córito,
que ele partiu até cortes do céu,
as consteladas cortes que lhe deram
um trono soberano no qual ele
com seu altar aumenta para nós
o número de deuses que são nossos . »
Seguiu-se, ao que dissera, Ilioneu :
«Raça ilustre de Fauno, rei, não foi
a negra tempestade com as vagas
que nos levou a vir às tuas terras,
como não foi a costa ou as estrelas
o que de nossa rota desviou.
Foi por nossa vontade que o fizemos
e chegámos ao que é cidade tua,
expulsos dum Império que era o maior
que sempre o Sol veria quando vinha
duns longínquos extremos dum Olimpo.
Foi Jove o criador de nossa raça,
Eneias, o Troiano nosso rei,
é do sangue de Júpiter, foi ele
que nos fez navegar até aqui.
O furacão que a raiva de Micenas
soprou tão forte sobre os plainos de Ida,
o destino que fez que uma Á sia, Europa,
de que todos ouvimos já falar,
viessem encontrar-se deste modo,
foram eles a causa de chegarmos
326 VIRGÍLIO

para além das origens de Oceano,


colocadas em terras bem de fora
ou de nós afastadas pela zona
em que o Sol, o que em nada nos perdoa
no meio reina doutras que são quatro.
Saímos dessa espécie de dilúvio
e navegámos pelos vastos mares,
pedindo só que nossos pátrios deuses
tenham algum descanso numa terra
em que haja límpido ar, águas, a paz
que todos pelo mundo devem ter.
Aqui nós honraremos vosso reino,
de nós não vos virá pequena fama,
e nunca passará o sermos gratos
a tão grande favor como é o vosso.
Não se arrependerão homens de Ausónia
de haver Tróia acolhido como o fazem.
Não irão desprezar-nos, firme juro,
pela sorte de Eneias, sua força,
de que tantos já têm experiência,
por serem aliados ou na guerra.
Não ireis desprezar-nos por chegarmos
assim como pedintes e nas preces,
quando houve tantos povos pelo mundo
que nos solicitaram o ficarmos
com eles juntos no que a vida fosse.
Oráculos dos deuses obrigaram
a que em vossa nação desembarcássemos.
Dárdano aqui nasceu, aqui Apolo
nos chama com as ordens mais constantes
para o Tibre tirreno, águas sagradas
donde brota depois Numício rio .
Além disso te damos, já tivemos,
estas pobres ofertas, escaparam
dos incêndios de Tróia, nestes ouros
fez libações Anquises aos altares,
estas insígnias são as que rei Príamo
usava para dar as leis aos povos,
este ceptro era dele, esta a tiara,
este o manto bordado por troianas. »
Isto disse ele, mas o rei Latino
continuava de cabeça baixa
ENEIDA 327

como perdido em vagos pensamentos,


em seu lugar imóvel, na verdade
não o prendiam púrpuras nem ceptros,
mas revolvia no seu peito o dito,
que viera de Fauna, quanto à filha,
ao casamento que haveria um dia
com um herói de terras estrangeiras,
disposto por destino a ser-lhe genro.
Ei-lo aqui estava o que seria rei
com auspícios iguais, ei-lo aqui estava,
o que seria pai de raça ilustre,
de bastante valor, bastante força
para ter em domínio o mundo inteiro.
Por fim, com alegria, assim gritou :
<<Bom fim dêem os deuses aos augúrios,
e bom fim dêem eles às empresas
em que nós nos metermos. Tu, Troiano,
terás o que desejas . Não desdenho
o que dais de presente. É mesmo a vós
que vos não faltará enquanto reine
fecundidade de uma rica terra
ou aquela opulência que era Tróia.
O próprio Eneias, se tem tanto empenho
e tanta pressa de ser o nosso hóspede
ou de passar a ser nosso aliado,
que venha então e que não tenha m e do
de conhecer o rosto dos amigos.
Apertar-lhe-ei a mão, será metade
de acordo que faremos, lhe direis,
a esse vosso rei, que tenho filha
que não posso casar com os da terra :
mos proíbem oráculos que ouvi
em santuários que eram de meu pai
ou em tanto sinal que céu nos deu.
Genros virão de fora, é o que dizem
os recados celestes para o Lácio.
Deles o sangue que erguerá aos astros
o nome que é o nosso. É ele, certo,
e segundo o que penso, o que é destino,
e, se entendo o futuro, o que desejo.>>
Tendo isto dito, foi o rei escolher
uns trezentos cavalos bem tratados
328 VIRGÍLIO

dos que criava nas cavalariças.


A cada um dos troianos deu o seu,
um de pata veloz e recoberto
duma excelente manta, com colar
que do peito pendia, colar de ouro
como era de ouro o fio que mordia.
Para Eneias, ausente, carro aparta
com dois cavalos de perfeita raça
e de ardente focinho, dos que Circe
consegue que lhe nasçam, dumas éguas
que bem esconde e que junta aos cavalos
que pertencem ao pai. E com presentes
de tão grande valor vão os de Eneias,
garbosos de montados e contentes
com tudo o que Latino lhes dissera.
No seu regresso paz trazem consigo.
Só que impiedosa Juno, que deixava
Argos Ináquia por cidade sua,
pois que esposa de Jove, se movia
pelos lugares que passava o vento,
viu da Sicília, ao longe, no Paquino,
a frota dos Dardânidas com Eneias.
Iam eles, na terra confiantes,
deixar os seus navios e construir
as permitidas casas. Pára a deusa
como pregada por aguda dor.
Sacudindo a cabeça assim falou :
«Oh estes Frígios, raça detestada,
com um destino tão hostil ao meu,
será que vão deitar-se no Sigeu,
será que finalmente os temos presos ?
Sei que Tróia nas chamas os queimou
ou que pelos incêndios se escaparam.
Mas talvez o que tenha sucedido
é que divina força em nós se esgota
ou que, já farta, me deixei de raivas.
Quando da terra deles expulsei
aqueles que odiava, os persegui
de vaga em vaga no mar infinito
eu me ergui firme contra sua fuga
e fui até ao fim de todo o espaço
que podia estremar de céu e de ondas.
ENEIDA 329

De que afinal me serviram Sirtes


ou ter em mão Caríbdis e Cila?
Os vejo aqui no sossegado leito
de seu rio Tibre tanto desejado
sem ligarem ao mar nem a mim própria.
Pode Marte perder bravos lápitas
e mesmo o pai dos deuses entregou
à fúria de Diana a Caledónia.
Mas eu, esposa augusta, pude em cólera
nada deixar sem marca de ousadia,
e nunca triunfei. Então que crime
teriam cometido os Caledónios
ou os Lápitas feito que ao perdão
jamais o conseguiram ; quanto a mim,
é Eneias que vence após eu ter
tanto inventado para assim puni-lo ?
Se poderes divinos me não bastam
porque hei-de eu hesitar em conseguir
o mais que possa de qualquer socorro ?
Se não posso atrair deuses de cima,
ao Aqueronte saberei mover.
Não me irão impedir que o faça rei
de todos os Latinos e que a sorte
Lavínia lhe não dê como mulher.
Mas podem já me demorar em tudo,
podem tempo alargar, não decidir
e dos dois reis aniquilar os povos.
Pois bem, que a preço tal se combinem
o sogro com seu genro, se a menma
tiver como seu dote isto que digo.
A Belona reservem para as festas.
Não terá sido a filha de Cisseu
a única a levar em peito seu
um fogo de brandão, daí parindo
casamento que seja só incêndio,
pois Vénus produziu um outro Páris
sob os mesmos auspícios, como a Pérgamo
outra vez alcançou tocha funesta. >>
Logo que estas palavras foram ditas
metendo medo à terra desce a deusa
e dentre deusas muitas que residem
nas trevas infernais faz subir ela
330 VIRGÍLIO

Alecto que é dos lutos, só tem alma


para guerras e raios de surpresas
que são sempre traidoras e mortíferas .
Até Plutão, seu pai, detesta o monstro,
como a detestam as irmãs tartáreas
já que é capaz de a todo tempo dar
horrorosos aspectos a seu rosto
e são tão numerosas as serpentes
engendradas por íntima negrura.
Juno assim a incita, assim lhe fala:
«Virgem, já que nasceste tu da Noite,
ajude-me o teu ser, e vai, trabalha;
não que minha honra, minha fama,
diminuídas fiquem, não se afirmem ;
oxalá que não possam os de Eneias
assediar Latino nos projectos
que tem de casamento ou instalar-se
a dominar a terra que é de Itália.
Mas tu sabes armar um contra o outro,
até irmãos que tenham alma igual,
derrubar casas em tormentas de ódio,
nelas introduzir os golpes brutos
e tochas de ruína com disfarces,
tudo o que pode provocar um dano.
O teu génio é fecundo, quebra a paz
entre aqueles que nela concordaram,
as causas de batalha ele semeia,
e faz que num instante a juventude
venha querer as armas, exigi-las
ou arrancá-las se preciso for. >>
Sem tardar nada vai Alecto ao Lácio,
toda infectada de gorgónea raiva,
sobe às altas moradas em que está
o rei que é dos Laurentes e se senta
no sossegado limiar de Amata.
Terem vindo os Troianos ou haver
esse himeneu de Turno é o que exalta
aquela que é mulher além de tudo.
Joga-lhe a deusa logo uma serpente
que foi tirar da cabeleira negra
e faz que lha penetre até ao íntimo,
junto do coração, para que Amata,
ENEIDA 331

enfurecida por aquele ataque


solte a desordem pela casa toda.
Escorrega a serpente entre camisa
e delicado peito, não se sente,
suas curvas a tempo ondula e estria,
sem que por ela dê quem ali dorme
e lhe não sente o viperino ardor;
no pescoço parece até a cobra
um adereço de ouro, nos cabelos
se vai metendo sem denunciar-se,
sem que os membros a sintam perpassar.
Quando, porém, um húmido veneno
dá o mais leve toque nos sentidos
um fogo se insinua pelo ossos
sem que entretanto fique furiosa
aquela mãe, apenas se enternece
e chora haver um casamento frígio
duma filha que tem e de estrangeiro.
«Vamos nós dar nossa Lavínia a gente
que pátria alguma tem, a uns troianos,
sem que tu piedade tenhas, pai,
da filha que te dei, e de ti próprio ?
Nem da mãe, que um patife até sem fé
vai receber, a filha lhe levando,
logo que um Aquilão sopre no mar ?
Não foi, porém, assim que o pastor Frígio
pela Lacedemónia penetrou
e depois arrastou para cidades
que de Troianos eram a Helena
que era de Leda bela, bela filha ?
E a fé que tu puseste no que fazes,
tua velha bondade para os teus,
o socorro que deste tanta vez
ao parente que é Turno ? Se buscamos,
para nosso Latino genro vindo
de nação estrangeira, o que fazemos,
se Fauno que é teu pai, assim se impõe.
O que te digo é que não é dos nossos
qualquer nação que, fora das fronteiras,
a nosso ceptro foge, e mais te afirmo
que é este mesmo o parecer dos deuses.
Turno, além disso, o temos nós de ver
332 VIRGÍLIO

nas pnmetras origens duma casa,


é descendente de Í naco e de Acrísio,
que são os dois de coração micénico. >>
Mas tudo foi em vão, querer, falar,
e quando viu Latino inabalável,
quando lhe penetraram lá bem dentro
venenos infernais e quando inteira
deles se possuiu, a desgraçada
vagueia pelas ruas da cidade
como se fosse louca sem remédio,
se diria um pião que umas crianças
no jogo imerso vão chicoteando
dum pátio a outro pátio de morada :
aquelas largas curvas não entendem,
mas lá seguem o buxo que o chicote
anima sem cansaço ; assim, rainha
corre de povo em povo, terra em terra.
Algum Baco a domina e, desvairada,
voa de bosque em bosque com a filha
para a furtar aos olhos dos Troianos
e retardar as tochas de himeneu,
lá vai gritando mesmo «Viva BacO>> ,
vociferando que t u só é s digno
de possuir tal virgem, que ao teu coro
se junta consagrando-se cabelo.
Por todo o lado o sabem, o meditam
as mães que incendiadas pelas Fúrias
domina o mesmo ardor e que procuram
em novas residências gritar livres,
revestir-se de peles de animais
e pâmpanos brandir em seu delírio ;
enquanto elas a seguem, a rainha
leva pinheiro ardendo, canta em hinos
com olhos desvairados e sangrentos
casamento de Turno com a filha.
Depois, já dando medo, grita « lo,
lo, ó mães do Lácio, escutai vós,
se tendes por Amata algum afecto
e se o cuidado ainda existe em vós
do que é vosso direito e se vos punge
perdê-lo deste modo, a cabeleira
soltai e celebrai comigo orgias. >>
ENEIDA 333

Assim pelos desertos, pelos bosques


até por entre feras corre Amata,
por Alecto incitada, desvairada
com aguilhões que são mesmo de Baco.
Depois que pareceu ter tudo feito
para com o furor se destruir
de Latino o projecto, voa a deusa
com suas negras e sinistras asas
para os rútulos muros da cidade
fundada por Acrísio, ao que se diz,
quando o Noto soprou em tais paragens .
Para nossos avós foi ela Á rdea,
e, se agora perdeu o seu poder,
dela ainda ficou a grande fama.
Ali Turno repousa em noite escura.
Então Alecto troca sua face
e seu corpo de Fúria, faz-se velha,
a testa enruga. Põe cabelo branco
e folhas de oliveira, fica sendo
Cálibe que de Juno e de seu templo
era sacerdotisa, vai ao jovem
e lhe diz o seguinte : « Será, Turno,
que tanta provação te foi inútil
e que então nada impede que teu ceptro
vai passar a colonos de Dardânia ?
O rei te nega esposa e mais um dote
e vai herdar o trono um estrangeiro.
Vai fazer-te ridículo em perigos,
vai derrotar exércitos tirrenos,
vai proteger com tua paz Latinos.
É isto o que a Satúrnia me ordenou
te viesse dizer, a ti que dormes.
Prepara a juventude para as armas,
consome em chamas os navios, os chefes
que vêm instalar-se em nosso rio.
Entre os deuses é grande quem o manda.
Quanto a Latino, ao rei, se ele recusa
a ti a tua esposa, experimente
o que pode fazer um Turno armado. »
O jovem, rindo, assim começa então :
«Não penses meter medo com dizer-me
que frota penetrou pelo rio Tibre,
334 VIRGÍLIO

Ja o sabia antes por ouvi-lo,


escusas de julgar que me assustaste.
Também já sei que Juno se não esquece
de que existimos nós . E tu, ó mãe,
vencida por velhice além de idade,
o certo não distingues e bem sofres.
Pobre sacerdotisa, ela te engana
com todo esse tormento sem razão.
Há as armas do rei ; o teu encargo
é cuidar das estátuas e dos templos.
Queres a paz e não refregas de homens . >>
Ao ouvir isto se enfurece Alecto
e estava o jovem a falar ainda
quando lhe treme o corpo de repente,
fica de olhos parados, tantas hidras
Erínis faz soprar e gigantesca
se lhe torna a estatura, enquanto o fixa
com um olhar de fogo que intimida.
Procurou ajuntar umas palavras,
mas ela o repeliu e dos cabelos
obrigou a sair duas serpentes,
deu estalo um chicote e logo disse
com boca espumejante : «Ora eis-me aqUI,
aquela em que velhice triunfou,
impedindo que possa distinguir
o falso do real, assim levada
a servir-se de horror sem fundamento.
Não te esqueças que venho das moradas
de sinistras irmãs e que me cabe
ocupar-me de guerras e de morte.>>
Falando assim lhe joga ela uma tocha
e lhe enterra no peito seu brandão
que soltava de si sombrio fumo.
Um terror sem limite corta o sono,
os membros se lhe inundam de suor,
de cabeça perdida pede as armas,
as procura na cama e pela casa.
Se lhe desencadeia amor dos ferros
e cólera terrível, a das guerras.
À s vezes com ruído sem limite
fogo em lenha miúda alto se ateia
em torno de caldeira que é de bronze,
ENEIDA 335

dentro dela água ferve e se derrama


ou na vasilha com furor espuma,
se derrama de novo e de si solta
um sombrio vapor que voa ao vento.
Assim faz Turno, ordena a seus guerreiros,
po1s que a paz se turvou, que tomem armas,
que vão a toda a pressa ao rei Latino,
que se defenda Itália e das fronteiras
se expulsem inimigos perigosos.
Ele próprio lá vai como a bastar
a todos os Latinos e Troianos.
Depois de tudo pronto, invoca os deuses
e logo o Rútulo a servir se exorta
procurando cada um ser o primeiro,
uns por ardor de sua juventude,
outros por virem duns avós reais,
outros ainda por famosos feitos.
Enquanto Turno os enche de coragem,
Alecto de asa estígia põe-se à pressa
do lado dos Troianos ; com malícia
que usava ali pela primeira vez
nota um lugar em que caçava Iúlo
ora com rede ou com perseguição
de animais que surgiam, com ajuda
de virgem do Cocito que açulava
com repentina raiva os cães que tinha
os focinhos lhes pondo sobre a trilha
que deixara um veado e boi tudo isto
causa primeira da desgraça imensa
e do furor campónio que atiçou
combates, guerra que ninguém previa.
Era um belo veado, grandes chifres,
alimentado, por tirado à mãe,
pelos filhos de Tirro, que era o guarda
dos rebanhos do rei, e dava conta
do que no campo todo se passava.
Sílvia, que lhe era filha, habituara
a entender as ordens o veado
e com todo o carinho lhe enfeitava
os chifres com grinaldas preciosas,
trazia-o penteado, dava banho
na mais límpida fonte que encontrava.
336 VIRGÍLIO

O veado, mansissimo, ate 1a


junto à mesa dos donos, passeava
no bosque preferido, mas à tarde,
já mesmo a anoitecer voltava a casa,
à porta descansava fielmente.
Um dia em que pastava mais por longe
vieram atacá-lo, furiosas,
as cadelas de Ascânio que caçava,
enquanto ele boiava na corrente
ou no fresco da mata repousava.
O próprio Ascânio, amigo de proezas,
com seu arco recurvo aura seta,
com algum deus guiando a mão do moço,
e veio a frecha ao ventre do veado,
se enterrou nas entranhas, pobre bicho.
Refugiou-se em casa, se deitou
nas palhas dum estábulo que tinha,
chamando por socorro com gemidos.
Sílvia foi a primeira que chegou
e gritou que viessem, agitada.
Viu a deusa cruel ocasião
a que a sua maldade se entregasse,
com a curva trombeta atroa o bosque
com sinal aos pastores logo ouvindo
águas do lago Trívia, mais distantes
as que são de alvo Nar, depois as fontes
de que bebe Velino, até ao ponto
de mães ficarem trémulas de medo
nos colos protegendo seus meninos .
Sílvia, batendo as palmas, alarmou
os duros camponeses que vieram
com ramos e cacetes, cada qual
com o que tinha perto, ali à mão ;
em tudo encontra a raiva uma arma pronta.
Até acorre Tirro que fendia
um tronco de carvalho em quatro partes
nele cunhas metendo ; traz machado
e cólera respira. Mas a deusa,
como sempre cruel, viu de novo
a boa ocasião de fazer mal ;
deixa o ponto em que estava, a um telhado
mais que ligeira sobe e lá de cima
ENEIDA 337

repete seu sinal aos dos rebanhos.


O bosque se arrepia com o som
que tartáreo reboa, todos correm,
chegam os camponeses com as armas,
vem mesmo a juventude dos Troianos,
deixando o campo aberto, e se lançou
em socorro de Ascânio. Entra-se agora
em linha de batalha. Com dois gumes
espadas aparecem onde havia
as camponesas armas de pau feitas.
É a perder de vista que se estendem
sementeiras de ferros e de bronzes
que brilham e rebrilham sob o Sol,
relâmpagos de luz soltam as armas.
Um dardo ao jovem Alma cravou ponta
no fundo da garganta, o sufocou
com o sangue que irrompe e mais não deixa
ouvir-se a sua voz. À volta dele
cai muito combatente e também tomba
Galesa, o velho que pregava a paz
aos que lutavam dum e doutro lado.
Era o homem mais justo, afortunado,
que então vivia nesta terra ausónia,
tinha cinco rebanhos que baliam,
cinco de gado grosso que à tardinha
voltavam de lavrar com cem charruas.
Enquanto na planície se combate
com Marte a ser igual dos dois lados,
a poderosa deusa, já cumprido
todo o trabalho que se prometera,
haver sangrenta guerra bem funesta,
Hespéria deixa e pelos ares fora
vencedora e soberba a Juno fala:
«Aí tens pronta a guerra que querias,
mas a batalha acaba, dize a todos
que o melhor é voltar a ser amigo
e firmar os acordos necessários.
Graças a mim que foi de ausónio sangue
que Teucros se banharam ; se quiseres,
poderei eu até continuar,
levar a guerra para outras cidades,
abalar com boato, incendiar
338 VIRGÍLIO

com a fúria de Marte os corações,


trazer até reforços, semear
em todo o campo as armas necessárias. »
Lhe diz Juno e m resposta : «Já s e fez
o que era mais preciso ; temos nós,
por terror e mentiras, os motivos
de se alargar a guerra, o corpo-a-corpo,
de haver nas armas sangue descoberto.
Aqui estão afinal os himeneus
que podem celebrar o rei Latino
mais o broto de Vénus. Mas decerto
não é isto o que quer augusto Pai,
soberano de Olimpo. Vai embora,
se mais alguma coisa tem de haver,
eu própria tomo conta da tarefa. >>
Ditas estas palavras pela deusa,
abre as asas Alecto em sibilo
que soa das serpentes, ao Cocito
regressa como deve de altos cimos.
Há no Centro de Itália, j á famoso,
o vale de Ampsancto, comprimido
entre as arribas de sombrios bosques,
no meio uma torrente ruidosa
que em turbilhões se choca nos rochedos.
Ali existe uma caverna horrenda
como um respiradouro do que é Dite,
abismo enorme em falha de Aqueronte,
com pestíferas fauces em que Erínis
desaparece, livra céu e terra
dessa sua odiosa divindade.
Entretanto a Satúrnia não se priva
de, rainha dos deuses, dar um toque
à guerra que travara, é a entrada
que na cidade fazem os pastores,
carregando seus mortos, jovem Almo,
e Galeso de rosto lastimável.
Turno também está, a protestar
contra toda esta morte, este terror:
vão os Teucros tomar-lhes o poder,
vai povo frígio misturar-se a eles,
vão a ele expulsá-lo do palácio.
Então aqueles todos cujas mães
ENEIDA 339

desvairadas por Baco, vão nos bosques


que nem caminho têm agitar
seus tíasos de orgia, no respeito
que Amata lhes inculca, Marte invocam,
de todo o lado vêm, se reúnem
e já contra presságios, contra oráculos,
contra vontade mesmo de seus deuses,
querem maldita guerra, em desafio
cercam as casas de seu rei Latino.
Ele resiste como rocha imota
que firme está no mar enquanto as vagas
uivam em torno dela, enquanto escolhos
das espumas se cobrem ou as algas
arrancadas da massa às águas voltam.
Mas o rei venerando que não tem
meio nenhum de conseguir que deixem
cega resolução pois tudo vai
conforme o quer Juno e nada serve
testemunho de deuses e de ventos,
assim lhes diz por fim : « É o destino,
o destino nos quebra, a tempestade
nos arrasta a nós todos. E sois vós,
e sois vós, desgraçados, que o castigo
chamais contra vós mesmos, no sacrílego
derramar que fazeis de tanto sangue.
Até, ó Turno, um suplício horrível
te será reservado, certamente
imprecarás os deuses, mas é tarde.
Quanto a mim, vou partir, e nada perco
senão o fim feliz que ter podia.>>
Se recolheu e tudo abandonou.
No Lácio hespério havia cerimónia
que sempre foi a das cidades Albas
e que Roma, a maior, cultua ainda
quando se move Marte a combater
ou quando é necessário levar a guerra
aos Getas, aos Hircanos ou aos Á rabes
ou mesmo até aos Indianos, longe,
para os lados de Aurora ou ir aos Partos
para trazer de volta insígnias nossas.
Duas Portas da Guerra, assim chamadas
por sentimentos de sagrado e medo
340 VIRGÍLIO

e por inspiração do mesmo Marte,


por cem barras de bronze estão seguras,
pela força do ferro sustentadas,
e de que nunca deixa Jano a guarda.
Quando os mais importantes decidiram
que haveria combate é mesmo o cônsul
já revestido de seu manto branco,
manto que é Quirinal e que é Gabino,
q ue vai à porta e lhe descerra entrada.
E ele quem a batalhar nos chama
com o resto da tropa obediente
quando as trombetas soltam rouco som.
E foi assim que j á naquele tempo
se levou rei Latino a anunciar
que a todos os de Eneias uma guerra
se declarava por abrir as Portas.
O venerando rei nelas não toca,
se afasta delas como em sacrilégio
e na treva sumiu, ninguém o via.
Mas, descendo do céu veio a Satúrnia,
a rainha dos deuses, empurrar
com sua própria mão a lenta Porta
assim abrindo para guerra haver.
Se entusiasma Ausónia ainda em paz.
Uns se treinam em marchar pelo campo,
outros, fogosos, montam os corcéis
e lá rompem cobertos de poeira
com todos desejosos de bater-se.
Há quem está limpando seu escudo,
ou os dardos brilhando, quem apura
o gume dos machados ou prefira
carregar as insígnias ou ouvir
o toque das trombetas . Mais ainda :
cinco grandes cidades em bigornas
fazem as novas armas e são elas
Atina forte ou orgulhosa Tibur,
Á rdea, Crustumério com Antemnas
de torres coroada. Se arredondam
as coifas das cabeças, se afeiçoam
as pegas de salgueiro dos escudos,
as couraças de bronze, enquanto há outro
que polainas de prata faz esbeltas.
ENEIDA 34 1

Há orgulho na foice, mas charrua


já não atrai ninguém, bem ao contrário
de espadas que se herdaram dos avós.
Tabuinhas dão ordens de batalha,
repetem os clarins o seu tocar.
Vão buscar capacetes, atrelar
os cavalos aos carros, traz escudo
este aqui, sabre amigo, cota de armas.
Agora, deusas, descerrai vosso Hélicon
e cantai que reis foram para a guerra,
que exércitos formaram pelos campos
ou que heróis deu de si terra de Itália
como se flores fossem, por divinas,
tudo podem dizer, quando a nós outros
só leve murmurar chega aos ouvidos.
Foi o fero Mezêncio que primeiro
armou seus batalhões. O filho, Lauso,
o mais belo de todos, fora Turno,
Lauso, o dos cavalos que domava,
o caçador de feras, o que trouxe
de sua Agila, em vão, um milhar de homens,
mas que não teve sorte com o pai,
digno ele doutro pai que não Mezêncio.
Depois deles veio um que ornou seu carro
de palmas e cavalos vencedores,
é o belo Aventino filho de Hércules
que até no bom escudo lembra o pai
com suas cem serpentes, no meio hidra.
Foi no monte Aventino, no seu bosque
que num parto furtivo o deu à luz
sacerdotisa Reia, misturada
com um celeste deus depois que herói
provindo de Tirinte e vencedor
de Gérion chegou aos vastos campos
que dos Laurentes eram e banhou
no rio Tirreno ibéricos bovinos.
À guerra trazem dardos, curtos ferros
e, de cabo redondo, seus punhais.
O próprio herói, a pé, e tendo à volta
a pele dum leão, hirsuto, enorme,
e na cabeça seu feroz focinho,
no palácio real entrou assim
342 VIRGÍLIO

e mais, atado ao ombro, o manto de Hércules.


Deixam tibúrios muros dois irmãos
que são Catilo com ardente Coras,
os dois j ovens argivos que penetram
bem para a frente da primeira linha.
São como dois Centauros que descendo
dumas altas montanhas atrás deixam,
brancos de neve o Ó tris com o Hómole
entre árvores pequenas, outras grandes.
Estava ali também o fundador
da cidade Preneste, era o círculo
que Vulcano engendrou para ser rei
e se encontrou perto duma fogueira.
Com ele chega a legião que tem
campos da Gália Juno, congeladas
as águas do rio Ânio, entre os penedos
que tantos são na opulenta Anágnia.
E tu, velho Amaseno. Mas nem todos
têm carro, couraça ou um escudo,
bolas de chumbo lança a maior parte,
na cabeça barrete que é talhado
numa pele de lobo, o pé esquerdo
vai sempre sem calçado, no direito
bota de couro cru a protegê-lo.
Entretanto Messapo, amansador
dos cavalos que trazem, e não podem
a ele derrubá-lo, pois que os deuses
assim determinaram, chama à guerra
povos que eram pacíficos, mas hoje
retomaram seus ferros de matar
e guarnecem as linhas de Fescénia,
ao passo que couberam aos Faliscos
os cimos do Soracte, a Flavina,
os campos de Capena ou, com seus bosques,
o lago de Cimino. Nas fileiras
o rei vinham cantando como fazem
cisnes brancos que voam pelas nuvens
de volta de comer e melodias
espalham pelo rio e de tal modo
que são os pauis de Ásia a dar-lhes eco.
Ninguém diria que é daqui que saem
tão valentes guerreiros quando, ao longe
ENEIDA 343

são como aves selvagens com seus gritos.


Velho sangue sabino o de um Clauso
a comandar um grande batalhão,
sozinho, o valendo ele todo inteiro,
como aqueles sabinos que hoje ocupam
quase todo o Lácio e se propagam
como família Cláudia, coxa tribo,
desde que deles foi parte de Roma.
Juntamente, a coorte poderosa
dum Amiterno e de quirite antigo,
juventude de Ereto e de Mutusca,
dos que habitam cidade de Nomento,
os campos roseanos de Velino,
os ásperos rochedos de Tétrica,
monte Severo, Fórulos, Caspéria,
tendo rio de Himela mais que bela,
águas do Tibre ou águas do Fábaris,
aqueles que mandou a fria Núrsia,
os homens de Orta, os povos de Latínio
e mais aqueles cujos campos banha
Ália, nome sinistro, depois menos,
onda que rola em mármore da Líbia,
quando Oríon esconde vaga fria
e menos abundantes as espigas
queimadas pelo Sol em campo de Hermo,
loura terra de Lícia. Com seu passo
lodo se agita e treme, abala escudo.
Deste lado há um homem de Agamémnon,
um inimigo até do nome Tróia,
um que Haleso se chama e que cavalos
atrela a carro seu, trazendo a Turno
quanto bravio povo, todos que
trabalham em colina abençoada
que se dedica a Baco, no Mássico,
tudo o que pais mandaram dos Auruncos,
de sidicino chão ou os que vêm
de Cales e dos passos do Vulturno,
de Satícula mesmo ou de entre os Oscos.
Têm estes como armas os seus dardos
que prendem a correias, leve escudo
sobre seu braço esquerdo, e que combatem
em corpo a corpo com espadas curtas.
344 VIRGÍLIO

E tu, É balo, não te irás embora


sem que a ti te nomeie canto nosso,
pois foi Télon, parece, que te teve
duma ninfa Sebeta quando, velho,
reinava nos Teléboas de Cápreas,
j á também quando o filho dominava
os Sarrastes, mais ao longe,
nas campinas regadas pelo Sarno
ou a gente de Rufa, do Bátulo,
de Celeno também, que são senhoras
das muralhas de Abela e de grandes
pomares de maçãs que ali cultivam.
Cateia de ida e volta lançam eles
como o fazem teutões e com cortiça
se cobrem na cabeça e lhes rebrilham
escudetes de bronze ou brônzea espada.
E a ti, Ufente, te mandou a Nersas,
a Nersas das montanhas, por tu seres
tão conhecido pelo teu valor
e pela sorte que há em tuas armas ;
povo rude entre todos, sempre à caça
passa de bosque a bosque, armado lavra
de equícula nos campos tão difíceis ;
do que mais gosta é de voltar com roubo
e com roubo viver. Também chegou
lá da margem marrúvio sacerdote
com folha de oliveira em capacete,
é ele, o valente umbro, quem o manda
é o seu rei Arquipo. O que ele sabe
é mergulhar em sono toda a víbora
ou toda a hidra dum infecto bafo,
o que consegue com seu canto e dedo,
amansando-lhe a cólera e com arte
purificando as mordeduras dadas .
Não pode ele, porém, curar o golpe
que gente da Dardânia veio a dar-lhe,
nem sono lhe serviu para as feridas
como ervas de montanha não bastaram ;
por ti choraram bosques de Angícia,
por ti choram Fúcino e suas águas,
o cristal dessas águas ou o lago,
também ele de tanta transparência.
ENEIDA 345

Vinha o filho de Hipólito com eles,


Vírbio belo na guerra, esse mandado
por sua mãe Arícia, o que atraía
as atenções de todos, pois criado
no bosque egeriano em que se eleva
propício ao sacrifício o sacro altar
da deusa que é Diana, a qual, um dia,
depois que sucumbiu o pobre Hipólito
aos hábeis artifícios da madrasta,
depois que satisfez ele a seu pai
vingança desejada por o terem
arrastado no solo seus cavalos,
o vir tornado aos céus, à luz dos astros,
entre ligeiras brisas, grande feito
das ervas da Peónia, mais que tudo
do poder de uma deusa, amor de mãe.
Foi então que Pai todo-poderoso,
não suportando ressurgir mortal
de sombras infernais à luz da vida,
com raio derrubou um inventor
de estranha medicina, o mergulhando
quem de Febo era filha em onda estígia.
Mas só que a boa Trívia esconde Hipólito,
em seguida o confia à ninfa Egéria,
para viver em bosque italiano,
mas não com nome seu, sim como Vírbio,
e por isso no templo que é de Trívia
se perseguem cavalos com cornizo,
só porque àquele jovem destruíram
quando com medo do marinho monstro .
Mas nem por isso se deixou o filho
de atrelar seus corcéis para lutar.
Agora é Turno, campeão de altura,
que passa e que repassa todo armado
enquanto aos outros todos vê de cima.
O capacete que usa tem nos altos
três vezes cabeleira com Quimera
que da garganta jorra fogos de Etna
e que mais ruge e mais selvagem fica
quanto mais corre sangue nos combates.
Mas lo, de alto chifre, iluminava
o seu escudo com uma luz de ouro,
346 VIRGÍLIO

mas lo, já adulta, dominava


e com uma urna que soltava um rio
se mostravam Í naco mais o guarda,
o protector da virgem que Argos era.
Infantaria vinha atrás de Turno,
que escura nuvem de homens em colunas,
a juventude de Argos, os Auruncos,
Rútulos e Sícanos, os de Sacra,
com os Labicos de pintado escudo.
E depois, Tiberino, os que teus vales
trabalham com charrua, como o fazem
nas margens do Numício ou os que vêm
das rútulas colinas e do monte
que se chama de Circe, campos todos
a que preside Júpiter Ânxuro
com Ferónia orgulhosa de seus bosques,
onde gelado está Sátura, o pântano,
mas onde corre Ufente procurando
qual a maneira de esconder-se em mar.
Por fim, de nação volsca, vem Camila,
mulher guerreira com cavalaria
e com mais tropas de luzente bronze ;
não foi a roca que ela manejou,
mas o que a virgem fez como exercício
foi sofrer os combates e, correndo,
adiantar-se aos ventos mais velozes ;
era como voar por sobre um campo
de abundante colheita já capaz
sem uma só espiga ela quebrar,
era como um voar por sobre as ondas
sem que os rápidos pés ela molhasse.
Jovens e mães saem de campo ou casa
para a verem passar, e tão atentos,
tão ávidos de olhá-la j á ao longe,
com púrpuras reais nos ombros seus
e seu prendedor de ouro no cabelo
aquele j eito de levar aljava,
a lícia aljava, ou mirto de pastor,
mas, com o mirto, o ferro de uma lança.
LIVRO VIII

Assim que Turno em sua cidadela


estandarte de guerra desfraldou
e que soaram roucas as trombetas,
que se impelem cavalos para a frente
e se brandem as armas para a luta,
as almas agitadas se perturbam,
desencadeia-se o furor dos homens
e Lácio inteiro a combater se lança.
Os chefes principais, Messapo, Ufente,
Mezêncio, aquele que despreza os deuses,
reúnem suas forças de socorro,
dos campos tiram quem lavrando estava.
À cidade do grande Diomedes
Vénulo vai solicitar auxílio,
dizer-lhe que chegaram os Troianos
para o Lácio ocupar, que vem Eneias
com toda a sua frota ali fixar
os Penates vencidos, repetindo
que os destinos ordenam seja rei
e que povo e mais povo vem formar
ao lado mesmo do Dardânio herói
e que por todo o Lácio se não fala
senão no nome dele e nas empresas
a que, como parece, se entregou.
A Diomedes diz Vénulo ainda
que lhe compete mais do que a Latino
ou do que a Turno um entender directo
se a sorte vai acompanhar Eneias
no que prepara de futuro ao Lácio,
qual o alvo geral a que se atira.
Ao ver assim como está tudo em torno
348 VIRGÍLIO

voga em mar de cuidados quem viera


do sangue ilustre de Laomedonte,
seu espírito rápido vacila,
ora pende a um lado ou vai a outro,
por caminhos opostos faz seguir,
ou volta para aqui, para acolá,
toda escolha parece de abraçar
do mesmo modo que em bacia brônzea
se reflecte na água a luz que chega
ou do Sol ou da Lua e sem parar
todo o canto da sala tem e larga
e pulando do chão o tecto atinge.
Era de noite e sobre toda a terra
já um sono profundo dominara
tudo que havia de homens, aves, feras,
quando Eneias na margem, ar gelado,
coração perturbado se estendeu
para seu corpo ter tardio repouso.
Entre choupos então lhe apareceu
o deus daquela terra, Tiberino,
parecendo surgir do calmo rio
com todas as feijões de ser um velho.
Glaucos tecidos finos o vestiam
e na cabeça havia, como sombra,
leve canavial. Assim falou :
«Descendente dos deuses que nos trazes
a Tróia que está livre de inimigos
e nos conservas como eterna Pérgamo,
aqui esperam por ti nossos Laurentes
e nos latinos campos te recebem.
Aqui vais ter tua morada certa
e seguros Penates. Não nos faltes,
ameaças de guerra não te assustem,
hostilidade alguma há entre os deuses.
E para que não j ulgues que tudo isto
será apenas ilusão de sono,
vais encontrar debaixo dos azinhos
que estas margens sombreiam uma porca
que tem à sua volta trinta filhos
que acabam de nascer e que alvos são.
Aqui também, ao fim de outros trinta anos,
irá fundar Ascânio Alba famosa,
ENEIDA 349

e não é vão presságio o que te canto.


Como em breves palavras te direi
vais sair vencedor de teu aperto.
Árcades, cuja raça vem de Palas,
aqui chegaram com Evandro e escudo,
aqui fizeram terra de morar,
nestas nossas colinas Palanteu
tirado o nome do da antiga Palas,
fundaram eles que, em contínua guerra,
se batem com Latinos. Este povo
passará de teu lado e te será
o mais firme aliado. E sou eu próprio
quem vai guiar-te pelas minhas margens
e sulcarei contigo minhas águas.
Teus remadores triunfarão da riba
e sempre para avante irão levar-te.
É s filho de uma deusa, quando vires
que já primeiros astros dão sinal
de entrar em seu declínio, honrarás Juno,
com teus votos abate seu rancor,
sua dura ameaça. Quando venças
é a mim que me prestas homenagem.
Sou o cerúleo Tibre o que tu vês,
com abundantes águas pelas margens,
ir cortando estes campos, sou o rio
preferido dos deuses entre todos.
Aqui é meu palácio, a capital
é o que eu sou de todas as cidades. >>
Eis o que disse o rio, logo a seguir
se ocultou ele nas profundas águas,
alcançando secretas moradias.
Pela noite e por sono abandonado,
Eneias se levanta e vendo a leste
os fogos que lhe dão calor e luz,
no côncavo da mão, segundo o rito,
colhe uma água do rio e para o céu
dirige estas palavras : «Ninfas, ninfas,
vós que laurentes sois, e tu, ó rio,
que és pai de todos nós, curso sagrado,
recebe então Eneias, dele afasta
a todos os perigos que o cercaram.
Qualquer que seja a fonte que detém
350 VIRGÍLIO

as águas que são tuas, as do deus


que de nosso infortúnio se lastima,
qualquer que seja o solo de que se ergue
essa tua beleza, sempre a ti
irão as minhas preces, oferendas,
a ti, ó rio de poderosos chifres,
soberano das águas desta Hespéria.
Fica sempre connosco e nos confirma
o que tua vontade é para nós . »
Duas birremes toma e m sua frota,
remadores embarca, ao mesmo tempo
armas dá ele a todo companheiro.
É então que se vê prodígio incrível,
dentro do bosque uma porquinha branca,
da mesma cor que seus bravos filhotes,
tudo estendido pela verde margem.
O piedoso Eneias ta consagra
a ti, rainha Juno, vai buscar
o que é do ritual, tudo leva
para o altar que é teu. Durante a noite
já o Tibre acalmou o seu tumulto,
parando de correr, onda se cala,
há sossegado lago, águas dormindo,
é todo o rio a superfície unida
em que remos não têm que lutar.
Com alegre ruído é mais veloz
e deslizam as tábuas de pinheiro,
até vaga se espanta, até o bosque
olha com gosto escudos de guerreiros
ou a cor no costado dos navios .
A noite inteira remam sem descanso,
todo o dia transpõem os meandros,
sombreados por copa de arvoredos,
com a verde floresta companheira.
Havia um sol de fogo a meio do céu
quando viram ao longe umas muralhas,
cidadela, telhados, casa esparsa,
pois que poder romano a elevar-se
até ao firmamento, por enquanto
era apenas de Evandro o pobre sítio.
À cidade, virando, chegam proas.
Ora era nesse dia que rei árcade
ENEIDA 351

solene sacrifício oferecia


para quem é de Anfitrião o filho
e para ante a cidade os deuses todos,
tendo consigo ao lado o filho mesmo
que de Palas viera, os mais notáveis
de todos os guerreiros que seus eram.
Um modesto Senado com incenso
os ritos venerava, num altar
tépido sangue ainda fumegava.
Quando viram os barcos que chegavam,
quando, através do bosque cheio de sombras,
deram eles por termos preparado
desembarque já próximo, pararam,
receosos do que ia acontecer,
das mesas se levantam. Só que Palas
com firmeza proíbe que interrompam
aquela hora sagrada, pega em armas,
corre ao encontro dos desconhecidos
e com toda altivez os interroga :
«Seus moços, que motivo vos levou
a tentar os caminhos que eram novos,
de que nada sabíeis ? Aonde ides,
qual é a vossa raça, a vossa pátria,
que nos trazeis a nós ? A guerra, a paz ? »
Então d e uma alta proa ilustre Eneias,
tendo na mão um ramo de oliveira,
garantia de paz, assim responde :
«Somos os que tu vês, filhos de Tróia,
com armas que só vão contra os Latinos,
uns exilados que eles repeliram
com ímpia hostilidade. Procuramos
Evandro para dar-lhe o que aqui tenho
e que peço leveis, e lhe direis
que somos os melhores capitães
de guerreiros troianos e pedimos
que nos seja aliado em nossa luta. »
Palas fica interdito ao escutar
aquele nome da famosa gente :
«Quem quer que vós sejais, desembarcai
e vem mesmo falar com o meu pai,
pois como hóspede vais ser acolhido
pelos nossos Penates . » Mão lhe estende
354 VIRGÍLIO

Logo que isto ele disse manda pôr


de novo pronta a taça e senta os outros
nos lugares de relva aconchegante.
Com honra especial instala Eneias
em almofada de leão peludo
em cadeirão de bordo fabricado.
Então jovens a isto destinados
e o próprio sacerdote deste altar
trazem a carne assada de bovinos,
Ceres bem trabalhada, óptimo Baco.
Eneias, os de Tróia, se serviram
de bons lombos de boi e de miúdos.
Já depois de comerem, já sem fome,
de novo o rei Evandro lhes falou :
«Não, estas cerimónias, o repasto
ou este altar de poderoso deus
não nos foram impostos só por crença
ou por nada sabermos do divino.
Nós assim procedemos porque salvos
fomos, hóspede nosso, de perigos
e são de gratidão as homenagens .
Não vês a picareta ali suspensa,
a massa de rochedos abatidos,
o bocado de monte assim deserto ?
Havia aqui no fundo do cavado
uma enorme caverna de que um ser,
que nem um rosto humano apresentava,
proibia a entrada. Era ele Caco
que até sol afastava do buraco.
Sempre havia algum morto ainda quente,
nas ombreiras pregadas as cabeças
desfiguradas de horroroso pus.
Deste monstro era pai o deus Vulcano.
Boca enorme ao andar se escancarava
e dela lhe saíam negros fogos.
A nós, porém, um dia trouxe ajuda
um deus que apareceu por nossas preces :
foi Alcides, o grande justiceiro,
orgulhoso da morte e dos despojos
do triplo Gérion. Vencedor,
nos campos apascenta rijos touros,
com manada ocupados vale e rio.
ENEIDA 355

Mas o selvagem Caco, desvairado,


não deixa crime algum por cometer
e do pasto desvia quatro touros
duma enorme estatura e quatro vacas
duma perfeita forma. Não querendo
que a direcção dos passos indicasse
para onde os levaria, os arrastou
para a caverna hiante pela cauda,
logo escondendo a presa que fizera.
Busca nenhuma iria descobri-los,
vestígio algum conduziria ao antro.
Aconteceu, porém, que no momento
em que tirava o gado apascentado
de Anfitrião o filho, se puseram
os touros a mugir como em alarme
com avisos e queixas ecoando
por todas as colinas, todo o vale.
Mas uma das vaquinhas respondeu
do fundo da caverna que a prendia
desiludindo em Caco as esperanças.
Logo uma negra bílis põe raivoso
o nosso herói Alcides que armas toma,
empunha a massa com os nós pesando
e trepa pela escarpa da montanha
que para o céu se erguia mesmo em frente.
Pela primeira vez viram os nossos
cheio de medo, Caco, o seu olhar
que nem fitar podia, o seu correr
mais rápido que o de Euro, como sendo
umas asas, não pés, o que o levava
àquela gruta que lhe dava abrigo.
Logo que se fechou quebrou correntes
que por artes do pai lhe suspendiam
um enorme rochedo entremeado
de ferro que apoiava toda a porta,
mas que, entretanto, em nada poderia
opor-se à fúria dum herói tiríntio
que, dentes a ranger, só procurava
um caminho de acesso que galgasse.
Colérico, fervendo, por três vezes
corre todo o Aventino, por três vezes
ataca em vão o limiar de pedra,
356 VIRGÍLIO

cansado, por três vezes desce ao vale.


Mas lá em cima havia uma alta rocha,
uma agulha de sílex cercada
de enormes pedregulhos tão abruptos
que para aves do mal eram perfeitos.
Como, posta no cimo, ela pendia
para rio que corria pela esquerda,
vai herói à direita, ali empurra,
desaba tudo num tremendo abalo.
Reboam céu e margens, rio recua.
Então, sem cobertura, se desvenda,
monstruoso, o palácio que é de Caco,
a sombria morada se descobre
até ao mais profundo, mais escuro,
a abrir nos odiados pelos deuses,
e de cima se vêem mesmo os Manes,
como que desvairados pela luz.
Luz que permite descobri-lo Alcides
fechado pelas rochas e com uivos
que jamais dera, depressa alvej ado
por setas e mais setas, outras armas,
pedras enormes e pernadas de árvore.
Então Caco, não tendo outra saída,
vomita ondas de fumo e faz que treva
o recinto lhe invada, assim cegando
quem mais quisera vê-lo, é uma noite
de fumaça, relâmpagos de fogo.
Não se contém Alcides e se atira
dum salto só atravessando as chamas,
aquele fogo misturado às trevas.
Agarra Caco que vomita chamas
em inúteis incêndios, forte aperto
como se fosse um nó e tão cerrado
que lhe saltam os olhos do lugar
expelindo a garganta todo o sangue.
Agora todo esse antro está aberto,
as vitelas se escapam, se vê claro
o que era sua vida de roubar,
o que tanto ocultava é já um morto,
horroroso cadáver que é puxado
pelos pés e jogado para fora.
Então agora, à vista olhos temidos,
ENEIDA 357

todo o rosto do monstro e todo o peito


recoberto de pêlo, na garganta
já extintas as chamas que lançava.
É desde então que se celebra a festa
que às novas gerações dá alegria,
os cultos que Potício inaugurou.
A casa de Pinário continua
prestando a Hércules as devidas honras,
colocando no bosque aquele altar
que sempre chamaremos o maior
e que o maior será por todo o sempre.
Vamos, portanto, jovens, cingireis
de folhagem as frontes, erguei taças,
invocai esse deus que é de nós todos,
com todo o gosto em libação de vinho. >>
Evandro cobre então sua cabeça
com choupo bicolor de sombra hercúlea
que se havia colhido num choupal,
com o sagrado cifo em sua mão,
e logo todos eles sem demora
derramam pela mesa a libação
com que funda homenagem dão aos deuses.
Já Vésper se aproxima, num Olimpo
que se vai inclinando, já Potício
dos sacerdotes seus marcha na frente,
todos cingindo peles como é de uso
e levando cada um a sua tocha.
Retoma-se o banquete, já aos deuses
em segundo serviço prestam-se honras,
travessas cheias põem nos altares .
O s Sálios s e ordenaram para o canto,
todos à volta dos sagrados fogos,
com as fontes de choupo coroadas ;
para um lado ficou coro de jovens,
doutro lado o dos velhos todos juntos,
cantam eles a fama, os altos feitos
que de Hércules celebram, como ter
sufocado os dois monstros que a madrasta
havia suscitado, os apertando
em suas duas mãos ou então como
derrubou as cidades de combate,
uma Tróia, uma Ecália, e, no domínio
358 VIRGÍLIO

do rei que Euristeu era, suportou


as difíceis cem mil provações
a que Juno o levou, injusta deusa.
«Jamais vencido, tu tens dispersado
as nuvens que aparecem e seus filhos,
a dupla natureza de alguns seres
como Falo ou Hileu, em Creta os monstros,
o leão gigantesco da N emeia.
Tremeram ante ti pauis estígios
como tremeu em seu antro sangrento
e deitado sobre ossos mal roídos
quem de Orca era porteiro. Não te assusta
aparição nenhuma, nem Tifeu
com toda a sua altura e com tais armas.
Ficou firme a razão ao atacar-te
cobra de Lema com cabeça tanta.
Salve, filho de Júpiter, ó glória
que jamais entre os deuses se mostrara,
oxalá que nos sejas favorável
e que estejas connosco nesta festa. »
Nos cantos que celebram tantas graças
põem eles ainda, com o próprio
a soprar o seu fogo, Caco em antro.
Todo o bosque ressoa como ecoam
as colinas que havia em torno dele.
Depois que terminou a cerimónia
à cidade regressam todos juntos.
Ia o rei carregado com seus anos,
estando perto Eneias e seu filho,
e com suas palavras bem directas
aligeirava a marcha que faziam.
Eneias olhos dóceis dirigia
a tudo que ia vendo, com agrado
deixava que o lugar assim prendesse ;
com amor interroga, logo escuta
narrativa de tudo que lembrava
os melhores dos homens que passaram.
Então o rei Evandro, que fundou
cidadela romana, assim lhe diz :
«Este bosque habitava noutro tempo
quem por aqui nascia, fauno, ninfa,
e aquela raça humana que surgiu
ENEIDA 359

de tronco de carvalho duro e forte,


as tradições não tinham nem costumes,
não jungiam os touros, não sabiam
acumular recursos, governar
algum bem que tivessem, caça brava
ou árvores bastavam ao comer.
O primeiro que veio foi deus Saturno,
fugitivo de Júpiter armado.
Deixara de ser rei, vinha em exílio.
Reuniu homens bravos e dispersos
pelas altas montanhas, deu-lhes leis
e Lácio deu de nome a estas terras.
Um retiro seguro aqui montou.
Idade de ouro foi esta no reino,
tão longa e calma paz ele mantinha
até chegar o tempo em que esta vida
se tornou menos boa, degradou-se
em gosto de riqueza e na discórdia.
Chegou um bando ausónio, muita gente,
entre a qual os Sícanos, veio de fora,
e toda a terra que era de Saturno
perdeu nomes antigos. Reis vieram
e depois o gigante que era Tibris
e cujo nome, já Italianos,
demos nós ao rio Tibre enquanto Á lbula
deixava para traz seu próprio nome.
Poderosa Fortuna me expulsou
do que era a minha pátria e me levou
aos limites do mar ; foi um destino
a que se não podia resistir
o que me pôs aqui, nestes lugares.
Oráculos temíveis duma ninfa,
Carmenta, minha mãe, que era inspirada
por Apolo, ele mesmo, o grande deus . >>
Quase j á acabando, a alguns passos,
lhes mostrou ele o que os Romanos chamam
a Porta Carmental e seu altar,
tudo isto em honra de Carmenta, a ninfa.
Foi ela a servidora, foi o vate
que primeiro cantou toda a grandeza
dos que de Eneias vêm, de Palanteu,
o conhecido herói. Mostra em seguida
360 VIRGÍLIO

o grande bosque em que ardoroso Rómulo


asilo instituiu, o Lupercal
sob pálida rocha, o que seu nome
de Parrásio, segundo a tradição,
tirou de Pã, deus do Liceu. Também
lhes deu a conhecer como sagrado
o bosque de Argileto e lhes contou
a morte que ali teve Argos, de fora.
Dali os conduziu para a Tarpeia
e para o Capitólio, agora de ouro,
então de arbusto bravo recoberto.
Já então santidade do lugar
de terror penetrava toda a gente
e fazia tremer floresta e rocha.
« Este bosque», lhes disse, « esta colina
de cimo tão sombrio, quem os habita
é realmente um deus. Que deus, porém,
ninguém o sabe, mas é mesmo um deus,
até acreditando estes meus Á rcades
ter visto por aqui o próprio Jove.
Muita vez agitava égide negra
e com ela chamava tempestade.
Este sítio que tu aqui vais vendo
com árvores caídas teve outrora
o movimento de homens do passado ;
este trecho de forte o construiu
augusto Jano, este outro é de Saturno ;
ou Janículo aqui, ali Satúrnia,
pois eram estes nomes os do tempo. >>
Iam assim andando e conversando
até onde morava o pobre Evandro,
ouvindo aqui, além, como mugiam
rebanhos que pastavam onde estão
nosso Foro romano ou as Carinas,
nosso bairro elegante e sumptuoso.
Logo que lá chegaram disse Evandro :
«Aqui entrou Alcides vencedor
e foi este palácio a recebê-lo.
Ousa então, meu amigo, desprezar
toda a riqueza que podia haver,
coragem em manter a dignidade
com que podes ser deus como este o foi,
ENEIDA 361

sê, como ele, indulgente ao que é pobreza.»


E pela estreita porta fez entrar
aquele Eneias de estatura enorme,
lhe dá para deitar-se uma folhagem
coberta pela pele de ursa líbia.
Cai a noite entretanto, abraça a terra
com suas asas de uma cor de sombra.
Não foi, porém, em vão que tremeu Vénus
movida da ameaça dos Laurentes.
Então fala a Vulcano em quarto de ouro
e, como ali foram as núpcias, passa
em tudo que lhe diz divino amor:
«Em todo aquele tempo em que os reis de Argos
faziam guerra a Pérgamo, a ser deles,
ou aos fortes da terra destruíam,
jamais te vim pedir qualquer socorro,
qualquer ajuda àqueles desgraçados,
feito nenhum de tua essência ou arte,
pois não quis, meu esposo, te cansar
sem proveito nenhum para ninguém,
isto apesar de ser eu grata, e tanto,
e de ter eu chorado assim a Príamo,
às duras provas que afrontou Eneias.
Obediente agora ao que é de Júpiter
se firmou ele no país dos Rútulos,
e como suplicante venho a ti,
pois que, mãe para um filho, o que te peço,
o que espero de teu sacro poder,
são armas para que ele se defenda.
As lágrimas da filha de N ereu
puderam convencer-te, como o mesmo
sucedeu com esposa de Titão.
Olha tu como os povos se combinam,
como as cidades fecham suas portas,
como os ferros afiam contra mim,
contra os meus conjurados entre si. »
E, depois de falar, o envolve ela
com seus braços de neve, e sente o deus
como é que seus enleios põem termo
a toda hesitação que ainda tinha.
Sente que dentro dele j á crepita
a conhecida chama e que o calor
362 VIRGÍLIO

o corpo lhe penetra até aos ossos.


Assim também, ao choque do trovão,
rasto de fogo e luz corta uma nuvem.
Também o percebe ela, bem feliz
com sua habilidade, e confiante
no que pode a beleza que é divina.
Preso nos laços de um eterno amor,
lhe diz o deus : «Mas porque vais tão longe,
será que não te fias mais em mim ?
Se tivesses outrora feito o mesmo,
teríamos os dois armado Tróia.
Nem o Pai poderoso nem Destino
impediriam que eles resistissem
ainda mais dez anos e que Príamo
se tivesse escapado do desastre.
E se hoje te preparas para a guerra,
se é esse realmente o teu querer,
terás de mim o que asseguram artes
de trabalhar electro ou ferro em forja
com as ajudas que me dão os ventos.
Não me peças mais nada, não duvides
do que tua vontade pode em mim . »
Lhe deu depois carícias para o s dois
e de abandono em braços de uma esposa
lhe veio a todo o ser sossego e paz.
Já noite em curso chega a meio do tempo,
já corpo descansado larga o sono.
É então que a mulher a quem a vida
obriga à fiação mais aos trabalhos
que outros são de Minerva, acende o lume,
apresta a noite ao tempo de tarefa,
fatiga os servos numa longa acção
à luz dumas candeias, para casto
ser sempre o leito que é comum dos dois
e poderem criar os seus meninos.
Com a mesma coragem por seu lado
se levanta ele dum colchão amigo,
se entrega a seu trabalho de forjar.
Junto às arribas que Sicânia são
existe uma ilha perto de Lípara
que é de eólico reino e se guarnece
de rochedos que vão deitando fumo.
ENEIDA 363

Por baixo dela se abre uma caverna


que enche o trovão dos antros Etneus
cavados pelos fogos dos Ciclopes
em que toda a pancada na bigorna
longo gemido acorda em que sibila
toda a fundida massa dos Cálibes
em seu resfolegar pelas fornalhas,
q ue a terra é de Vulcano, então Vulcânia.
E neste ponto que o senhor do fogo
quando desce do céu demora e forja.
Numa caverna imensa os Ciclopes
o ferro atormentavam, assim Brontes,
Estéropes, Píramo, este nu mesmo.
A raio já polido davam forma,
os raios que deus Pai despede à terra,
outros punham de lado, inacabados.
Tudo faziam com três raios de chuva
e três de água contida numa nuvem
e três de chamas com um Austro vento.
Ao que faziam davam som terrível,
com ruído tremendo, espanto e raiva.
Também, por outro lado, trabalhavam
a serviço de Marte, lhe fazendo
aladas rodas com que o deus exalta
aos homens e cidades. Para Palas
sua colérica arma, aquele escudo
a que davam um brilho com escamas,
umas, escamas de ouro, outras, de serpe,
e, no peito da deusa, até Górgona,
de pescoço cortado, olhar em fúria.
«Parai vós com tudo isso >> , disse o deus,
«suspendei os trabalhos entre mãos,
vamos fazer as armas dum valente
e para tal empregareis as forças,
a rapidez de mãos, as vossas artes,
essa vossa suprema habilidade. >>
E mais não disse, enquanto os forjadores
dividiam tarefa e se apressavam.
Os metais, bronze ou ouro, são fundidos,
derrete o ferro na fornalha vasta.
Primeiro sai escudo que, sozinho,
repelirá os dardos dos Latinos,
364 VIRGÍLIO

com as sete camadas que lhe dão.


Fazem uns que nos foles entre vento
e logo o jogam fora a outro ponto,
outros em pia vão mergulhar bronze
que nas águas sibila, se endurece.
Bigorna mais bigorna naquele antro
a tudo enche de gritos e gemidos.
Conjugam os gigantes seus esforços,
em cadência perfeita vão os braços
dando voltas à massa que atormentam
com os firmes apertos das tenazes.
Enquanto em terra eólia o deus de Lemnos
apura seu trabalho, sai Evandro
de sua humilde casa, já desperto
pela luz criadora, canto de ave.
Sua túnica veste e mete os pés
nas tirrénias correias das sandálias,
espada de Tégea prende à cinta
e dorso de pantera lança atrás,
fazendo que descaia para a esquerda.
Vai ele com seus cães e com dois guardas,
há uns à frente dele, outros ao lado,
até à casa em que ficara Eneias
para falar com ele e prosseguir
a conversa que tinham começado
e dar também a prometida ajuda.
Nessa mesma manhã viu Eneias
trazendo Acates como companheiro,
com Evandro avançando o filho Palas.
Param uns ante os outros, mãos apertam
e falam à vontade, como querem.
Primeiro diz o rei : «Supremo chefe,
nunca direi enquanto vivo sejas,
que o domínio de Tróia foi batido ;
modesto é o reforço que vos damos,
bem humilde perante vosso nome.
Dum lado nos limita a rio toscano,
noutro sentimos a pressão do rútulo
pots suas armas cercam nossos muros.
Mas a ti juntarei a forte gente
do reino poderoso que um acaso
nos traz neste momento. E tu nos chegas
ENEIDA 365

como uma oferta dada por Destino.


Perto de nós Agila se situa
em que, já no passado, um povo lídio,
famoso pela guerra, se fixou
em colinas etruscas. Prosperara
esta cidade amiga quando um rei,
Mezêncio de seu nome, a sujeitou.
Para que hei-de eu contar agora as mortes
mais os terríveis feitos do Tirano ?
E bom será que tudo ordenem deuses
para que venha o mal a ele, aos seus.
Costumava ligar vivos a mortos,
as mãos lhes ajuntando, como as bocas,
abraços de tortura que banhavam
em podridão e pus por quanto tempo.
A tudo os cidadãos puseram fim
a casa lhe cercando, incendiando,
com os seus companheiros todos mortos .
Conseguiu escapar-se da chacina
e fugir para os Rútulos, com Turno
a servir de hospedeiro e protector.
Com justa causa se revolta Etrúria,
para tomar o rei, eliminá-lo.
É desta gente que milhares conta,
que tu, Eneias, poderás ser chefe
por minha intervenção. Os barcos deles
tremem de raiva junto ao litoral,
esperam só os homens que se parta,
mas há um velho arúspice a detê-los,
dizendo o que é vontade do Destino :
«Jovens guerreiros de meónio escol,
que valentia herdastes dos heróis,
decerto é justo estar contra Mezêncio
de punidora raiva possuídos.
Só que não pode italiano algum
comandar um tal povo, grande e nobre.
Chefes virão de fora e vencerão. »
E foi assim que toda a tropa etrusca
parou nestas campinas, temerosa
dos avisos que os deuses enviaram.
Quem neles reina agora me mandou
uma embaixada para oferecer-me
366 VIRGÍLIO

a coroa de rei com o seu ceptro,


e tudo isto me dá para que eu próprio
vá ao acampamento e seja nele
autorizado rei de seus Tirrenos.
Mas a velhice veio, lento e frio,
não tenho forças para usar poder,
é tudo para mim um fim de dia.
Meu filho indicaria, mas sucede
que Sabina é a mãe e que isso o prende
demais a estas terras. É a ti
que cabe esta tarefa porque és novo
e por saber Destino tua origem ;
a vontade divina assim o quer ;
toma o comando, sê heróico chefe
duma nação conjunta : Tróia, Itália.
De mim terás também uma outra ajuda :
contigo irá meu Palas, que é esperança
e que é consolo do que sobreveio.
Tu serás o seu mestre de servir
ao senhor exigente que é deus Marte.
Verá ele teus feitos, desde jovem
te será ele guia venerado.
A ti te darei eu duzentos árcades,
a nata do que tenho, outros duzentos
o próprio Palas os escolhe e leva. >>
Quando acabou, Eneias, o de Anquises,
e seu fiel Acates, ambos tinham
os olhos baixos porque viam já
que tinham de vencer dificuldades.
Citereia, porém, lhes deus sinal
lá do límpido céu, os animou,
os arrancou de seu abatimento ;
relâmpago brilhou no firmamento,
um ruído ecoou que parecia
que tudo desabava pelo mundo
ao toque de trombeta da Tirrénia
que de etéreas alturas comandava.
Levantam seu olhar, o reboar
vem um e outra vez e no céu vêem
luz súbita cair em montes de armas
que nos rubros clarões e no clangor
se mostram em combate de vitória.
ENEIDA 367

Ficam os outros todos espantados,


mas o Troiano herói bem reconhece
que está cumprindo a mãe suas promessas.
E, para Evandro : «Não, atnigo meu,
não busques que anunciam tais prodígios,
a mim Olimpo quer. É uma deusa,
e deusa criadora no divino
que outrora me predisse este sinal,
se guerra começasse, me afirmando
que por ares e ventos nos daria
as armas de Vulcano. Quanta morte
ameaçando está pobres Laurentes
e que castigo, Turno, tu já tens
por minhas próprias mãos. E quanto escudo,
e quanto capacete e quanto corpo
farás rolar, ó Tibre, em tuas águas.
Pois bem, que seja assim. Quebrem a paz,
rasguem eles tratados e comecem
batalha que desejam. Pronto estou. >>
Se levanta do trono que o alteia,
as hercúleas fogueiras reacende
nos quietos altares, se aproxima
do lar em que se encontram desde a véspera
seus humildes Penates. Logo Evandro
e Troianos ovelhas escolhidas
vão imolar aos deuses, é o rito.
Depois volta aos navios, aí revê
todos os companheiros, deles diz
quais levará à guerra, os mais seguros,
enquanto outros deslizam na corrente
para dizer a Ascânio o que se passa,
em que situação se encontra o pai.
Depois se dão aos Teucros os cavalos
que irão pastar em campos dos Tirrenos,
mas não tiram à sorte o que é de Eneias,
que fulva pele de leão adorna
e cujos cascos trazem já dourados.
Corre logo uma voz pela cidade
de que cavalaria parte à pressa
para as margens que são do rei Tirreno.
Redobram preces de inquietas mães,
e mais premente torna o risco o medo,
368 VIRGÍLIO

a imagem de Marte que é j á grande,


aumenta ainda porque está mais perto.
Ao jovem que partia aperta a mão
Evandro que é seu pai, e não a larga,
pois consolo não tem, e chora, chora,
despedindo-se diz estas palavras :
« Que bom seria dar-me agora Júpiter
os anos que passaram e ser eu
o que, perante os muros de Preneste,
se lançou para a linha de batalha,
e derrotou, queimou tantos escudos,
ao Tártaro mandou o rei É rilo,
a quem Ferónia, a mãe, dera ao nascer
três almas de ter vida e que consigo
levava três couraças e por isso
três vezes se lhe tinha que dar morte,
e três mortes lhe deu e três couraças
lhe esfacelou o j ovem que era então.
Jamais me privaria deste abraço,
não tivesse Mezêncio desprezado
os vizinhos que tinha, os estimasse,
não cometesse tanto crime assim,
não tivesse a cidade posto em luto
por tanto cidadão que ele matou.
Mas o poder celeste e Jove, o Pai
de todos que são deuses se apiedem
dum triste rei de Arcádia, deste pai
que preces lhes dirige. Se quereis
e se quer o Destino que meu Palas
não deixe de viver e volte a mim
para vivos nos vermos um ao outro,
então que seja assim, porque só vivo
para que isto aconteça; estou disposto
a passar toda a prova, a suportar
a dor que experimente a vida em mim.
Se, porém, a Fortuna me ameaça
com aquilo em que penso e que não quero,
se bom matar aqui, agora,
esta vida cruel se acabando,
enquanto te conservo junto a mim,
enquanto há a presença e, sossegado,
posso tocar-te a ti, o meu tesouro,
ENEIDA 369

e que j amais uma funesta nova


o meu ouvido fira e me destrua. >>
Tais foram as palavras deste pai,
depois desfaleceu e seus criados
o levam para casa como morto.
Pelas portas saíam cavaleiros,
à frente Eneias com fiel Acates,
depois os outros chefes dos Troianos.
Palas ficava a meio no desfile
e por todos olhado em suas armas
todas pintadas e por sua clâmide.
Era como se fosse o cavaleiro
estrela da manhã, astro que Vénus
entre todos prefere quando emerge
do mar, banhada de águas, elevando
para o céu rosto belo que dissipa
as trevas que uma noite acumulou.
Ficam de pé as mães, coração triste,
apoiadas na borda da muralha,
olhando ao longe a nuvem de poeira
de reflexos de bronze atravessada.
Eles vão a direito no caminho,
de vez em quando a ordens obedecem
e se sente o galope dos corcéis.
Perto do rio Ceres, gélida água,
um bosque existe que de tempo antigo
se vê como sagrado a toda a volta,
no meio de colinas de arvoredo.
É dedicado o bosque ao deus Silvano,
deus protector dos gados e dos campos,
como ao princípio o foi pelos Pelasgos,
primeiro povo deste nosso Lácio.
Perto dali Tárcon e seus Tirrenos
tinham um campo em forte posição
e já dos altos duma das colinas
se vêem suas tropas, suas tendas.
Ali o grande Eneias e seus homens
param para . um repouso em sua marcha,
descanso para os homens e cavalos.
Vénus então entre as etéreas nuvens
mostrava já a luz do corpo seu
e com ela trazia as oferendas.
3 70 VIRGÍLIO

Quando avistou o filho um pouco longe,


afastado das tropas e das águas,
logo se revelou assim falando :
«Eis aqui meus presentes, os das artes
de quem é meu esposo, prometidos
para não hesitardes num ataque
ao que é esta soberba dos Laurentes,
ao que é o duro orgulho desse Turno. »
A seu filho abraçou a Citereia
e pôs as cintilantes oferendas
à sombra dum carvalho ali ao pé.
Não pode ele fartar-se de as olhar,
uma por uma, tão perfeitas são,
o capacete vira a todo o lado
com o penacho que vomita fogo
e depois a couraça cor de sangue
tão rígida no bronze de que é feita
que ao longe é chama se lhe toca o sol ;
há ainda as polainas de ouro, electro,
a lança, escudo, mais do que obras-primas.
Nelas tinha gravado o deus do fogo,
que escutara os poetas, a futura
história de Itália e feitos dos Romanos,
a raça que de Ascânio partiria,
ordenação de guerras e combates.
Ali, nos antros verdes do deus Marte,
mostra também a loba que, deitada,
acaricia os seus recém-nascidos
que nela mamam, loba de ternura,
que, lambendo, os enforma para a vida.
Em seguida era Roma que se via,
o roubo das Sabinas, tão estranho,
durante os jogos num anfiteatro,
depois a guerra, nova de feição,
que rebentava para o velho Tácio,
para os filhos de Rómulo, ou ainda
para os Cures de povo tão severo.
Havia reis que tinham feito a paz
e que, armados, de pé ante um altar,
que de Júpiter era, se aliavam,
com a taça na mão, mas tendo j á
imolado uma porca e m sacrifício.
ENEIDA 371

Em sentido contrano, duas quadrigas


despedaçaram Mécio por ter ele
perjurado a palavra que empenhara
e com Tulo arrastando pelo mato
os bocados de quem assim falhara
e cujo sangue as moitas poluía.
Noutro lugar Tarquínio fora expulso,
Porsena dava as ordens de acolhê-lo,
depois conseguiria ingente cerco
com, para defender a liberdade,
Enéades correrem à batalha.
Podia ver-se o rei enfurecido
por ter ousado Cocles cortar ponte,
por Clélia se haver às águas dado.
Num alto, Mânlio, o guarda da Tarpeia,
se mantinha de pé em frente ao templo,
defendia bem firme o Capitólio,
e de romúleo colmo se cobria
a casa que era régia. Noutro sítio
um ganso prateado dava alarme
por estarem gauleses entre as moitas
cercando a cidadela, se ocultando
nas sombras duma noite mais fechada.
Dourados os cabelos, vestes de ouro,
brilham sai os às riscas ; cada um deles
em dois piques alpinos brande ferro
e com comprido escudo se defende.
Em relevo se via Sálio aos saltos,
depois Lupercos nus, boinas de lã,
umas castas matronas que em seus carros
tomavam parte em procissão sagrada.
Um pouco mais distante põe o Tártaro,
altos portais de Dite, com os castigos
que punem todo o crime cometido.
E, Catilina, tu, preso na rocha
e cheio de terror perante as Fúrias .
Ao lado, dando leis, os piedosos
e com eles Catão, o nosso guia.
Ao centro das figuras mar às ondas,
um oceano de ouro, com espumas
no sombrio do geral e com golfinhos
que, rodeando tudo, com as caudas
3 72 VIRGÍLIO

batem, fendem as vagas que redobram.


Frotas de bronze a mais, a guerra de Á cio,
uma inteira Leucates refervendo
sob a pressão de M arte, sempre as ondas
com uns brilhos dourados nelas todas.
Dum lado Augusto César conduzindo
ao combate os de Itália com os Pais,
ou Penates, o Povo, os grandes deuses,
César de pé sobre as altivas popas.
Nas fontes, radiosas, duas chamas,
com astro que é o Pai sobre a cabeça.
Com ajuda dos ventos e dos deuses,
comanda Agripa o corpo principal,
com as insígnias do valor guerreiro,
a coroa naval sobre a fronte,
toda eriçada de atacantes rostos.
Com barbáricas armas variadas
avança António com vitórias suas,
trazidas de Oriente, mar Vermelho,
ao Egipto arrastando e com a Báctria
do fundo de universo deslocada.
Consigo traz a sua esposa egípcia.
Já todos eles se adiantam juntos,
espuma cobre a vaga nos embates
dos remos e dos rostos de três dentes.
O largo alcança, se diria até
que navegam as Cíclades nas águas
ou que as altas montanhas vão chocar-se
contra as outras montanhas que se opõem,
tantas as massas de homens que aí lutam
nas popas levantadas como torres.
Chamas de estopa, setas ganham ares
e todo espaço rompem pela força
de quem as disparou ; carnificina
rubros tornou domínios de Neptuno.
A rainha, no centro dos combates,
clama à tropa, no sistro de seus pais
e não consegue ver por detrás dela
as ferozes cabeças das serpentes.
Uns deuses monstruosos se misturam,
o próprio Anúbis ladra, outros ainda
jogam seus dardos a Minerva, Vénus
ENEIDA 373

e contra o poderoso deus Neptuno.


Entre os que lutam Marte ferve em ra1va,
para ele trabalhou ferro o cinzel
e vêm de éter as sinistras Fúrias.
Com que alegria vai e vem Discórdia,
vestes todas rasgadas, vai Belona
com seu chicote que marcou de sangue.
Ao ver isto Á cio Apolo arma seu arco
e de cima dispara, apavorados
fogem Egipto, as Í ndias, as Arábias,
juntamente com todos os Sabeus .
A rainha, ela própria, chama os ventos,
desferra as velas e mais solta os cabos.
No meio de tanta morte, em lividez,
já prenúncio do fim, fá-la arrastar
a sombra que é do fogo pelas ondas
por Iápige o rio mais que cruel.
Em frente está o Nilo, o grande corpo
de tristeza abatido, desfazendo
as pregas do vestido, enquanto chama
a seu colo azulado, a seus canais
os corpos dos vencidos na batalha.
César entra, porém, em três triunfos
nas muralhas de Roma, consagrando
e como eterna oferta a nossos deuses
trezentos templos, todos na cidade.
Que alegria nas ruas divertidas,
e quanto aplauso se ouve, mães em coro,
em todo o santuário, em cada altar,
diante de cada um touros se imolam.
O próprio César que assentado está
no limiar de neve que é de Febo
vê dádivas dos povos, as suspende
em pilar imponente, imperial.
Nações unidas vêm num cortejo,
diferentes em línguas como em armas
como em vestes que envergam, Africanos,
de largas roupas Nómades, Léleges,
e Cares e Gelonos com as setas
Mulcíbero fixara em seu trabalho,
com um Eufrates de correntes águas,
depois Mórinos dos confins do mundo,
3 74 VIRGÍLIO

bicorne Reno, Daas indomados,


um Araxes insultado pela ponte.
Escudo de Vulcano, que da mãe
recebeu nosso herói, faz que se veja
e que assim se admire o que é imagem,
por longínquo o real, e leve ao ombro
fama grande e destino de seus netos.
LIVRO IX

Enquanto isto se passa lá bem longe,


já a Satúrnia Juno do céu manda
Í ris a ter com esse Turno audaz.
Se encontrava ele então no sacro vale
em que o avô Pilumno bosque tinha,
e lhe fala a Tamânia, róseos lábios :
«Ü que nenhum dos deuses poderia,
Turno, te conceder a teu pedido,
aqui chega espontâneo no seu tempo.
Deixou Eneias frota e companheiros,
da cidade saiu, indo ao encontro
do ceptro e do palácio em que reside
Evandro Palatino . Mas não basta
e terá de ir às últimas cidades
da terra de Córito, ali armando
os Lídios camponeses que juntou.
Que hesitas tu ? É este o tempo certo
de atrelar os cavalos, dois por carro.
Acaba com demoras, toma logo
o campo dele agora perturbado. »
E , dito, ao céu voou com suas asas
que nas nuvens traçaram arco tmenso.
Então por isto o herói as duas mãos
para os astros ergueu e com palavras
deste modo seguiu a que fugia :
« Í ris, honra do céu, quem te ordenou
que das nuvens viesses ter comigo
à terra onde ora estou, mas donde vejo
aberto o firmamento, com estrelas
girando com o pólo como centro ?
Pois eu a tais auspícios obedeço,
3 76 VIRGÍLIO

contigo, com quem és, irei às armas . >>


E, tendo assim falado, foi às ondas,
tirou um pouco de água revolvida
e com as muitas preces ante os deuses
de seus votos encheu éter à volta.
Lá ia toda a tropa em campo livre,
cheia de ouro e bordados e cavalos,
Messapo no comando da vanguarda,
na retaguarda os filhos que tem Tirro,
no meio da coluna Turno, o chefe.
Dir-se-ia que era um Ganges que corria,
com silêncio nas águas mais profundas,
cheio dos setes rios que nele acalmam
ou então como o Nilo, se reflui
as nutridoras águas e, dos campos,
j á volta ao que é seu curso habitual.
É então que de súbito os Troianos
vêem diante deles levantar-se
a nuvem de poeira acompanhada
de trevas e que Caíco vê primeiro
do cimo de uma torre que a enfrenta.
<<Que turbilhão é este, cidadãos,
que negra escuridão vem sobre nós ?
Depressa, trazei armas, passai dardos,
e trepai às muralhas, pois que contra,
sim, contra vós virá quem ali vem.>>
Com um grande clamor enchem os Teucros
as portas e muralhas de seu campo,
que assim mandava a ordem que deixara
seu avisado Eneias antes de ir,
a de que, se viesse a acontecer
alguma coisa estranha antes da volta,
j amais deixassem de formar as linhas
contra o perigo que de fora vinha,
assegurando inteira protecção
a seu acampamento e bastiões ;
mesmo que a honra ou ira os incitassem
à luta corpo a corpo, não deixassem
de guarnecer as portas, esperando,
ao abrigo de torres, que o contrário
avançasse ao ataque que viria.
Turno, voando à frente da vanguarda,
ENEIDA 377

precedia a coluna poderosa


e lhes surgiu diante da cidade
com vinte cavaleiros dos melhores ;
traz na cabeça um capacete de ouro
com cimeira vermelha e diz, audaz :
«Quem de vós, camaradas, vem comigo
e é dos primeiros contra os inimigos ? >>
E, brandindo seu dardo, o joga ao ar
para abrir a batalha que haverá;
Com um grito respondem companheiros
e vão antes batendo com as armas
num barulho que a todos mete medo.
Se espantam dessa inércia dos Troianos
que não ousam sair a campo aberto,
mas que homens são aqueles que não vêm
à carga de arma em punho, num combate,
tímidos quedam quedas nos abrigos.
Turno, a cavalo, pára ante a muralha,
passa e repassa procurando porta
ou outra entrada que servi-lo possa.
Parece um lobo que a rebanho ataca
e não vê como chegue a mansa ovelha ;
ante o que barra preso à chuva atura,
o mesmo faz ao vento, e já metade
da noite se passou ouvindo só
o balir de cordeiros junto às mães ;
ataca o que não há, todo eriçado,
impaciente, à fome, à raiva cede,
e na goela só sede de sangue.
Assim então o rútulo, colérico,
ante aquelas muralhas de outro campo,
ao fogo do furor aumenta sempre
e chama brota nos seus rijos ossos.
Como é que vai poder forçar entrada,
obrigar os Troianos a sair
da linha de trincheiras ao chão livre,
lhe virem ao encontro como quer ?
A frota está oculta, pois fechada
por paredes de terra e pelas águas
que de outro lado a cercam e protegem.
Resolve-se ao assalto enquanto os seus,
que trazem com que possa incendiar,
378 VIRGÍLIO

o cobrem dum aplauso incitador;


j á tem na mão pinheiro ardendo em chama,
como em chamas ardendo tem o peito.
Animados por ele, todos vão
finalmente ao ataque, quanto podem
pilhando nas fogueiras, e já levam
o que dá para chama erguer aos astros,
com Vulcano que às cinzas se mistura.
Que deus, ó Musas, veio livrar os Teucros
de tão cruel incêndio, naus salvar
de todas acabarem ? Sabeis vós ?
Pois o que sucedeu é bem antigo,
mas duradoura fama a nós o trouxe.
Nos tempos em que Eneias no monte Ida,
em frígias terras, preparava a frota
para poder largar para alto mar,
o que se diz é ter ido até Jove
a própria Berecíncia, Mãe dos Deuses,
que assim falou ao deus : «Vamos, concede
à sua prece aquilo que ela roga,
o que eu mesmo, meu filho, a ti te peço
neste Olimpo que inteiro te obedece.
Durante muitos anos tive eu própria
maciço de pinheiros preferidos
que eram bosque sagrado naquele alto
em que a mim me levavam as ofertas,
à sombra dos larícios e dos bordos.
Dei eu os troncos ao herói Dardânio,
sem pena o fiz por ele precisar
de naus para a viagem ; mas agora
me assalta um medo que me dá angústia.
Livra-me dela e dá esse poder
a tua mãe que vem aqui pedir-to.
Que nada, filho, os possa destruir,
nem a própria fadiga que o mar traz
nem o soprar em turbilhão dos ventos .
Possa tudo gozar o privilégio
de ter nascido lá nos nossos montes. >>
Disse-lhe então o filho a cujo mando
giram constelações nos vastos céus :
«Aonde queres, mãe, que vão destinos ?
Que pedes tu para essas tuas árvores ?
ENEIDA 3 79

É que essas quilhas feitas por mortais


tenham a sorte de imortais ficarem ?
Que possa Eneias franquear sem risco
os passos mais difíceis de transpor?
Que deus teve j amais tanto poder?
Ou, mais ainda, que os navios possam,
depois de estar cumprida esta missão,
chegar um dia aos portos dessa Ausónia,
depois de se escaparem do que é vaga
levando eles aos campos laurentinos
o teu Dardânio chefe ? Que eu então
as despoje da forma que é mortal,
as ordene de deusas do mar alto
como é a filha de Nereu, a Doto,
ou como é Galateia que com ela
afronta as extensões cheias de espuma? »
Com u m sinal q u e fez indicou Júpiter
que a tudo ele jurava pelo Estígio,
o seu irmão Estígio, pelas costas
de pez queimadas, negro turbilhão,
o sinal ele faz e, por fazê-lo,
tremeu logo, e que forte, Olimpo inteiro.
Chegava, pois, o dia prometido,
prescrito estava o tempo para as Parcas,
quando o que Turno ia tentar fazer
levou a Mãe a impedir que aos barcos,
barcos sagrados, destruíssem chamas.
A princípio uma luz desconhecida
fez deslumbrar os olhos e depois,
ao parecer atravessado o céu,
veio dos lados de Aurora enorme nuvem
que também foi cobrir os coros de Ida.
Uma tremenda voz do firmamento
chega aos ouvidos dos Troianos, Rútulos
e faz parar os batalhões formados.
<<Não vos preocupeis, Troianos meus,
na defesa da porta que é a minha,
não armeis vosso braço. Talvez Turno
possa até deitar fogo a todo o mar,
mas no pinho sagrado nunca mesmo.
E vós, deuses marinhos, ide embora,
vossa Mãe vos ordena que o façais. »
380 VIRGÍLIO

Cada popa as correntes quebra então,


fica livre da costa que o prendia,
e como se passasse a ser golfinho
mergulha toda a proa sob as ondas,
e logo, maravilha, surge virgem
abrindo o mar que tem à sua frente.
Os Rútulos ficaram estupefactos,
até Messapo com os seus cavalos
se perturba de medo, até o rio,
que é mesmo o Tibre, hesita com um ronco
e volta atrás do rumo que levava.
Turno, porém, não perde a confiança,
incita os seus a resitir, increpa:
«Estes prodígios são contra os Troianos,
o próprio Jove lhes retira ajuda ;
não esperam dos Rútulos ataque
ou de aljava ou de fogo. Mas não fogem.
É para eles que as vagas vão fechar-se,
j á não têm esperança de escapar,
j á metade das coisas lhes tiraram
e toda a terra está em nossas mãos.
Muito milhar defende nossa Itália.
Fatalidades não me metem medo,
sei que com elas Frígios perdem pé
pois decisão dos deuses não temo eu.
Se os destinos quiserem, tudo certo,
porque j á os Troianos alcançaram
desta fertil Ausónia largas terras.
Mas também eu terei os meus destinos,
agora que roubaram minha esposa;
é meu destino destruir com armas
a nação celerada que aqui vemos .
Tal ofensa não é só para os Atridas
nem só Micenas tem direito à guerra.
Mas, se dirá, não basta que uma vez
tenha esse povo perecido j á ?
Não seria tão m á a vez primeira
se tivessem à raça das mulheres
detestado depois a todo o sempre.
O que está dando a eles a coragem
é haver a barreira entre os dois campos,
é existir o fosso que os separa,
ENEIDA 38 1

tudo pouco recurso contra a morte.


Não viram eles como os muros lá,
na cidade de Tróia, tomou chama,
apesar de Neptuno os ter erguido ?
Mas vós que escolhi eu, não estais prontos
a derrubar essa separação
com as armas que empunha a vir comigo
semear o terror em suas tendas ?
Nem de armas de Vulcano ou mil navios
tenho eu necessidade contra Teucros,
nem mesmo vindo todos os Etruscos
duma só vez a se juntar a elefi .
Não temam que façamos nós o mesmo
que sucedeu com trevas ou com tredo
roubar-se do Paládio, morta a guarda,
nem vamos nós também meter soldados
no ventre tenebroso dum cavalo.
É bem à luz do dia, todos vendo,
que já decidi eu cercar de fogo
seus muros de defesa. Bem verão
que não é contra Dánaos que se batem,
contra uma juventude de Pelasgos
que durante dez anos Heitor vence.
Agora que passou a melhor parte
do dia que vivemos, descansai,
reparai vossas forças, companheiros,
todos contentes com sucesso nosso,
pensai que se prepara uma batalha. »
Encarrega Messapo de postar
uns guardas ante as portas, de acender
fogos em torno das trincheiras deles ;
uns Rútulos, catorze, de vigia
com cem homens armados cada um deles ;
têm todos penacho que é vermelho
sobre farto metal de ouro vivo.
Correm dum lado a outro, fazem turnos
ou, deitados à sombra, bebem vinho,
as crateras de bronze esvaziando.
A guarda joga para espantar sono .
Por cima das defesas, os Troianos
tudo isto que se passa vão olhando
sem deixar o domínio das alturas ;
382 VIRGÍLIO

por também terem medo guardam portas,


com pontes ligam postos avançados,
acumulam os dardos. O comando
ficara com Mnesteu e com Seresto,
o valente Seresto pois que Eneias
lhes confiàra a eles, se preciso,
a chefia dos homens, o dar ordens,
enquanto o campo todo, nas muralhas,
tendo tirado à sorte o que faria,
guardas rendia, pronto na defesa.
Niso, o que havia de melhor em armas,
por ser filho de Hiparco e companheiro
de Eneias que o trouxera do monte Ida,
uma porta guardava, e muito bem,
porque era experiente em dardo e seta.
Um outro camarada, que era Euríalo,
também ali estava ; era o mais belo
de todos os que vinham com Eneias
e revestiam armas dos Troianos,
embora fosse ainda muito j ovem.
Uma paixão da guerra era comum
a todos que se viam e num grupo
tomavam a defesa de uma porta.
Então lhes disse Niso : «São os deuses
que, Euríalo, nos dão toda esta raiva
ou é cada um de nós que vê um deus
na vontade que temos de combate ?
Eu tenho há muito tempo uma ambição
de meter-me em proezas das maiores,
este não fazer nada não me agrada.
Não vês tu como os Rútulos estão
tão descansados, com fogueiras poucas,
vacilantes fogueiras, como dormem
abatidos por sono e pelo vinho.
Este silêncio ao longe faz que tenha
uma ideia comigo : Todos nós
os grandes e pequenos que aqui estamos,
desejamos que nos regresse Eneias,
se lhe mandem notícias do que vemos.
Se todos prometerem o que quero,
acção para quem queira e, para mim,
se nada mais houver, a glória só :
ENEIDA 383

o que estou crendo é que, por baixo, ali


poderemos passar para as muralhas
e chegar à cidade de PalanteU.>>
Tocado do desejo de ter fama,
assim responde Euríalo ao amigo
de tanta valentia : « Certamente
não podes, Nisa, nem sequer supor
que não queira ir contigo a tais grandezas
e partilhar contigo os seus perigos,
pois que assim me formou meu pai Ofeltes
entre ameaças de Argos, dor de Tróia,
além de ter contigo feito o mesmo,
que foi seguir-se Eneias nesta empresa.
Meu coração despreza a luz do dia
e aquilo que tu queres vale a pena
mesmo que tenha de perder-se a vida.>>
E, retorquindo, Nisa : «Ímpio seria
que outra coisa pensasse a teu respeito.
Eu não quero afrontar-te vencedor,
e nem quero fazê-lo a qualquer outro.
O que eu tinha pensado era poder
um acaso ou um deus me dar azar,
e ser preciso que escapasses tu
porque és mais novo, toda a vida é tua.
O que desejo é que haja mais alguém
que à terra restitua o que sou eu,
conseguido por luta ou por resgate,
ou então, se for outra a minha sorte
que traga as funerárias oferendas
e túmulo me dê assim honrando .
Também não quero que, por minha causa,
fique infeliz a tua pobre mãe,
que te seguiu, sozinha dentre todas,
sem pensar na cidade que é de Acestes. >>
Diz o outro para ele : «As razões todas
que foste apresentando são inúteis.
O que disse está dito, nada muda.
Andemos é depressa.>> Acorda a guarda
que logo os rende e pega no serviço.
Sai ele de seu posto, vai com Nisa,
seguem os dois a procurar o rei.
Já pela terra tudo que era vivo
384 VIRGÍLIO

de cuidados, trabalhos descansava


no sono que dormia. Mas, nos Teucros,
os que tinham comando discutiam
do que mais importava em seu domínio,
que haviam de fazer e quem teriam
de mandar a Eneias com as novas.
Apoiados, de pé, nas longas lanças,
segurando os escudos, se mantinham
no meio de acampamento de guerreiros.
Com toda a pressa pedem Niso, Euríalo
que os deixem tomar parte no conselho
para assunto importante e tão urgente.
Primeiro os recebeu, curioso, Iúlo
logo ordenando a Niso que falasse.
Então assim falou de Hírtaco o filho :
«Vós que de Eneias sois, nos recebei
com toda a paciência, sem pensar
nos poucos anos nossos . Há silêncio
nos Rútulos ao sono sucumbidos,
e também pelo vinho ; descobrimos
maneira de os poder surpreender
em lugar para tal a que se chega
de nossa dupla porta indo ao ramal
que mais perto do mar nos conhecemos.
De apagadas fogueiras sobe aos astros
a negra fumarada. Se deixais
que tentemos a sorte de encontrar
em Palanteu nosso chefe Eneias,
mais depressa o tereis aqui convosco,
com seus despojos por combate ganhos.
Nosso caminho é mais do que seguro,
o percorremos quando caçar vamos
e dos profundos vales avistamos
a cidade a que iremos ; todo o rio
também já conhecemos. >> Logo Aletes,
tão de provecta idade e são juízo :
«Vós, deuses, que nos sois de antepassados
e que sempre sereis deuses de Tróia,
vós, poderosos deuses, não teríeis
qualquer ideia de abater de vez
a todos que aqui estão, filhos de Teucro,
já que a jovens vós destes, favor vosso,
ENEIDA 385

as almas decididas que estes mostram.>>


Enquanto isto dizia tinha as mãos
lhes apertando as mãos, ou descansadas
nos ombros dos dois jovens, com o choro
dos olhos lhe correndo pelas faces.
«Que recompensa poderia eu dar-vos,
meus valentes guerreiros, como prémio
de tudo que em vós dois tanto merece ?
Primeiro os deuses, por virtude vossa,
as mais belas mulheres oferecem
e, quanto ao resto, o piedoso Eneias
fará o que puder, sendo que Ascânio,
já que uma vida inteira tem na frente,
jamais esquecerá vossos serviços. )>
«Certamente que nãO>>, replica Ascânio,
«como é que eu viverei se me não trazem
outra vez a meu pai junto de mim ?
Vos conjuro, a vós dois, pelos Penates,
Niso, a vós dois, e pelo lar de Assáraco
e pela adoração da branca Vesta,
a trazer-me meu pai, pois em vós ponho
a tudo que em mim há de sorte e fé.
Encontrá-lo de novo é afastar
o que houver de sombrio em nossa vida.
Duas taças de prata com adorno
que o pai trouxe de Arisba derrotada
vos darei eu e, com mais dois tripés
e dois talentos de ouro, uma cratera
que foi presente da Sidónia Dido.
Se na realidade for possível
tomar eu, vencedor, Itália toda
e dizer-vos que presa cabe a quem,
já ficas a saber que prémio tens :
o cavalo de Turno com as armas,
mais escudo que tinha na batalha
e que era todo de ouro, como, igualmente,
os penachos vermelhos que ostentava.
E também, Niso, te dará meu pai
doze mulheres das de mais nobreza
e pnstonetros com as suas armas,
com, ainda por cima, o campo todo,
este campo latino que é do rei.
386 VIRGÍLIO

E, quanto a ti, quase da minha idade,


moço que tanto estimo, serás tu
meu companheiro em tudo que aconteça
na vida que terei, pois para mim
vitória alguma existirá sem ti,
quer vitória de paz quer das de guerra ;
falando ou sendo te serei fiel . >>
Em resposta lhe disse então Euríalo :
«Oxalá nunca venha nenhum dia
em que eu não ouse o mesmo que ora faço,
quer sej a ou não a sorte a meu favor.
Há, porém, um coisa que te peço :
eu tenho mãe, e da casa de Príamo,
comigo veio, não ficou em Tróia
nem muralhas de Acesta a retiveram.
Eu hoje a deixo sem saber dos riscos,
até sem dela ter-me despedido,
como tu bem o sabes, não podia
suportar eu o quanto choraria.
Vais consolá-la de ficar sozinha,
vais ajudá-la a ela em tudo que haja.
Permite-me sair seguro disso
e mais audaz serei ante o que venha. >>
Dardânidas choraram ao ouvi-lo
e mais que todos excelente Iúlo,
porque foi a lembrança de seu pai,
pai tão amigo a constrangê-lo assim.
«Fica seguro tu que assim será,
com tudo que mereça a nobre empresa.
Mãe para mim será a tua mãe,
só o nome de Creúsa faltará;
todos lhe somos gratos porque teve
um filho como tu, seja o que for
que se seguir ao feito que for teu.
Pela minha cabeça é que eu to juro,
como meu pai fazia ontem ainda.
O que prometo é que haja quando voltes,
no caso de ter sido boa a sorte,
tudo que possa inteiramente dar
a tua mãe, a todos que são teus. >>
Assim disse, e chorando ; ao mesmo tempo,
de seu ombro desprende espada de ouro,
ENEIDA 387

trabalhada por um Licáon de Cnosso,


e de espantosas artes, ajustada
a marfim de bainha também dele.
Pele arrancada a um leão hirsuto
lhe oferece Menesteu, como igualmente
troca com Niso o capacete seu
o mui leal Acestes . Sem tardar,
iniciam a marcha acompanhados,
e com todos os votos, por guerreiros
e pelos vinte chefes do conselho.
Vinha também com estes belo Iúlo,
tendo, com sua idade, a força de alma
e todos os cuidados que são de homem,
Iúlo que mandava para o pai
recados seus em boa quantidade.
Mas todas as palavras sopra o vento
até serem nas nuvens bem inúteis.
Tendo saído pulam os dois fosso
e nas sombras da noite irão ao campo
onde tudo lhes deve ser contrário,
também onde, bem antes, matarão
muitos dos inimigos, os quais vêem
estendidos no chão de sono e vinho,
com os carros na margem, sem cavalos ;
entre rédeas e rodas estão homens
e também armas, cântaros de vinho.
Então por sua boca lhe falou
mesmo o filho de Hírtaco que isto disse :
«Temos que ter agora audácia e calma
que a situação a tanto nos obriga.
Caminho é por ali e tu vigia
que ninguém nos assalte por detrás
e tenta logo vê-lo, até de longe.
Vou limpar o terreno, amigo Euríalo,
e guiar-te eu a ti por boa estrada. »
Depois calou-se e se atirou à espada
contra orgulhoso Ramnes que o seu sono
ia mantendo e respirava fundo,
deitado sobre um monte de tapetes.
Era ele rei e áugure também
e por isso querido do rei Turno ;
mas a verdade é que não houve augúrio
388 VIRGÍLIO

que pudesse salvá-lo do fatal.


Aqui, ao lado, Niso se lançou
sobre três servos que, sem precauções,
se tinham estirado no meio de armas ;
e depois que ele ao escudeiro de Remo,.
a um cocheiro perto dos cavalos,
lhes cortou o pescoço dum só golpe,
logo foi a cabeça do patrão
que rolou pelo solo e cujo corpo
ia soltando sangue jorro a jorro,
e dele se encharcavam solo e carros.
Coube depois a vez a Lamo e a Lâmiro,
mais ao jovem Serrano que passara
grande parte da noite com o jogo ;
era um homem perfeito, uma beleza
e beleza demais, nada sentia
por tanta devoção ter ao deus dele ;
pouca sorte tivera em não jogar
mais tempo ainda, até romper manhã.
Tudo ali foi naquele acampamento
como seria se um leão faminto
tivesse entrado num redil de ovelhas,
despedaçasse a dente os pobres bichos,
com a goela mais e mais sangrenta.
Euríalo não fez menor matança,
cheio de raiva ele abateu soldados
em grande quantidade, não notáveis,
mas lá foi Fado, Herbeso, Reto, Ábaris,
e todos mortos sem aviso prévio ;
só Reto despertara, mas, com medo
por detrás de cratera se escondera.
Com Euríalo perto levantou-se
mas este espada lhe cravou no peito,
e morreu vomitando sangue e vinho
num sopro derradeiro em sua vida.
Euríalo, contente das surpresas,
no que pensou foi em juntar-lhes mais
e já ir para o lado em que Messapo
com os seus companheiros retirara,
e dali viu que as últimas fogueiras
se estavam extinguindo e que os cavalos,
como é de uso e costume estavam presos.
ENEIDA 389

Foi aí que então Niso à pressa disse :


«Acabemos com isto. Nasce o dia,
que virá contra nós. Já nos vingamos
temos agora que ir para diante. »
A muita presa deixam para o lado,
pratas maciças, taças e tapetes ;
viu Euríalo em Ramnes as faleras
mais o seu boldrié pregado a ouro,
o que rico Cedício tinha dado
a Rémulo de Tíbur noutro tempo,
quando eles dois, distantes um do outro,
haviam formulado os votos seus
duma hospitalidade os reunir;
mas Rémulo, ao morrer, o deu ao neto ;
depois de este morrer, tinham os Rútulos
pilhado o boldrié nalgum combate.
Nele pegou Euríalo e cingiu
com ele, para nada, os fortes ombros.
O capacete de Messapo então,
com penachos de guerra a enfeitá-lo,
pôs logo na cabeça, e bem ficava.
Saem os dois do campo e se dirigem
para lugares de menor perigo.
Neste momento cavaleiros vindo
da cidade latina são vanguarda
de legião que em ordem de batalha
lenta marchava no chão solo à volta;
eram estes guerreiros uns trezentos,
todos de escudo ; vinham, comandados
pelo seu chefe Volscente, bem directo
e já se aproximavam quando viram
os dois homens metendo pela esquerda.
Naquele meio escuro em fim de noite
o capacete atraiçoou Euríalo:
todos deram por súbito relâmpago
que alguma claridade provocou
no bom metal de que o tinham feito.
Foi Volscente quem gritou, precipitado,
do meio do batalhão em que ali vinha:
«Parar, parar! Que fazem cá por fora?
Quem sois, com essas armas ? Vão aonde ? >>
Ninguém pensa, porém, em atacar.
390 VIRGÍLIO

Vão ocultar-se em bosque, sendo à noite


que eles confiam sua protecção.
Ocupam as entradas de que sabem,
guardas colocam em passagens certas .
Uma floresta havia por ali
de maciços de negras azinheiras
cercados por silvais intransponíveis,
havendo de onde a onde um caminhito,
mas que era sempre pista duvidosa.
Custa muito a Euríalo avançar
naquela escuridão que os ramos fazem,
com a carga pesada que levava,
e, como ia inquieto, se enganava
quanto ao sentido em que devia andar.
Niso também se afasta e nenhum pensa
senão em como pode pôr-se a salvo.
Já, porém, se escapavam do perigo
e nos lugares estavam que, mais tarde,
vieram a chamar-se de Albaneses,
um nome derivado mesmo de Alba,
nos quais o rei latino estabulava
os animais que tinha retirados.
Quando parou e procurou em vão
aquele seu amigo e companheiro :
«Meu infeliz Euríalo, onde será
que eu assim te deixei abandonado !»
Logo voltou atrás sobre seus passos,
naquele enredamento de caminhos,
para um e outro lado se dirige,
quando ouve de repente o cavalgar,
a confusão de sons dos que o perseguem.
Não passa muito tempo sem que chegue
a seus ouvidos o clamor que teme
Euríalo que já um grupo enorme
impotente tornara e leva preso,
mas tenta ainda resistir, na ajuda
que os nocturnos lugares podem dar.
Que tem ele a fazer, como é que pode
arrancar camarada aos inimigos ?
Ou irá ele, em direcção da morte,
lançar-se em todo aquele turbilhão,
procurando deixar com honra a vida?
ENEIDA 391

A toda a pressa atira um de seus dardos


e, levantando os olhos para a Lua,
é esta a sua prece : «Ó deusa minha,
honra de astros, protege meu esforço,
ó filha de Latona, que és a guarda
de todo o bosque que no mundo existe.
Se jamais pai Hírtaco a teus altares
por mim se dirigiu com sua oferta
a que eu próprio juntei a caça feita
que pendurei dos tectos de teu templo
ou te depus ante o frontão sagrado,
concede-me que eu bata aquela gente,
sê a guia, nos ares, de meus dardos . »
Com toda a força joga o corpo o ferro
que célere atravessa as densas trevas,
fere de frente escudo de Sulrnão ;
ali se quebra, salta fora o pau,
mas vai directa a ponta ao coração.
Rola o homem no chão a vomitar
em jorro violento sangue ardente.
Gelo lhe corre os membros, sobressaltos
sacodem longamente esses seus flancos.
Olham os cavaleiros tudo em volta,
quando Niso, animado pelo golpe,
outro dardo balança ao pé de ouvido.
Enquanto eles se agitam chega o dardo
e sibila atingindo Tago em cheio ;
vai de têmpora a têmpora e no cérebro
que furado ficou aquece um pouco.
Volscente perde a cabeça, furioso,
não vê em parte alguma quem agride
nem pode divisar um alvo certo
em que possa verter a sua raiva.
«Mas, seja corno for, vais tu pagar
por meus dois homens com teu quente sangue» ,
a o tempo e m que corria, espada e m punho,
para atacar Euríalo. Mas Niso,
que, espantado e desvairado, sai
do refúgio de treva que tornara,
um grito solta pois que não suporta
aquela imensa dor: <<Fui eu, fui eu
o que do que se passa teve a culpa.
392 VIRGÍLIO

Rútulos, contra mim é que deveis


usar as vossas armas ; este aqui
nada ousou, nada pode, o que, em verdade,
pelo céu juro e pelos astros juro,
que sabem que assim é; seguiu demais
um desgraçado amigo. » Assim falou.
Mas a espada cravada a toda a força
por dentro das costelas, foi fender
um branco peito: morto cai Euríalo,
com sangue em fluxo pelo corpo todo,
a cabeça pendente sobre um ombro.
Assim se abate qualquer flor purpúrea
que um arado cortou, assim papoula
que chuva recobriu forte de mais.
Nisa se atira ao grupo dos contrários,
e só a Volscente busca, a Volscente vai.
Reunidos à volta de seu chefe,
atacam-no inimigos ; não desiste
e relampeja a espada em suas mãos ;
logo, porém, que chega bem em frente
do procurado rútulo que ulula
lhe enterra o ferro pela boca dentro,
no seu morrer matando um inimigo.
Cheio de golpes, cai inanimado
sobre o corpo de Euríalo ; é a morte,
morte que tudo apaga e que repousa.
A todos dois os deuses abençoam.
Se tem este meu canto algum vigor,
nenhum futuro apagará lembrança
do feito que foi vosso enquanto a casa
que de Eneias será se mantiver
na firme rocha que é o Capitólio
enquanto seu império tiver Roma.
Os vencedores, com despojo e presa,
levam, chorando, a seu acampamento
o cadáver de Volscente. Mas no campo
não é menor a dor, visto que deram
com Ramnes abatido e tantos chefes
que também sucumbiram na chacina,
como Serrano e Numa. A multidão
se mantém junto aos corpos já sem vida
ou tão feridos que não vão salvar-se.
ENEIDA 393

Até está quente o chão com a matança


tão grande que ali houve, estão regatos
a correr sem parar com sangue e espuma.
Despojos examinam, reconhecem,
o capacete de Messapo brilha,
mas foi duro o resgate das faleras.
Já por então se aproximava Aurora
da terra que banhava em nova luz
por ter deixado o leito de Titão,
açafroado leito em que dormira.
Já despontou o Sol e se espalhou
a dissipar a treva ali reinante.
Manda Turno que os homens se armem todos,
ele próprio reveste suas armas.
Ordena logo aos batalhões de bronze
atentos se seguirem uns aos outros,
enquanto o que se diz apura a raiva.
Espetadas em lanças levam eles
as cabeças de Euríalo e de Niso .
Nas defesas que ficam para a esquerda
dispõem os de Eneias, tão valentes,
seus corpos de batalha j á que o rio
os limita à direita. Nas trincheiras
há gente que as ocupa. As altas torres
têm as guarnições de sua guarda.
A face vai sombria, os corações
angustiados ficam mais que nunca
quando passam cabeças empaladas,
cabeças conhecidas, tão queridas,
que deixam derramar uns grumos negros,
as cabeças de Euríalo e de Niso.
Enquanto isto, o ruído dá alarme
e se passam notícias que lá chegam
aos ouvidos da mãe do pobre Euríalo.
Os ossos da coitada se regelam,
sua roca se solta e suas lãs
arrumadas no colo prestes caem.
Corre ela para os muros, já na frente,
naquele ululado uivo das mulheres,
corre sem se lembrar de que há guerreiros,
de que há dardos, perigo, o céu enchendo
de queixas e tristeza : «És tu, Euríalo,
394 VIRGÍLIO

que aqui vejo ante mim ? És tu, meu filho,


de quem tardo repouso esperaria?
Como é que tu sozinha assim me deixas
sem que sequer tenhamos dito adeus
quando foste afrontar tão grandes riscos ?
Jazes em terra que não conhecemos,
és presa abandonada aos cães do Lácio,
às aves de rapina. Organizar teu funeral
nem sequer eu o pude, ou te cobrir
daquele vestuário, mortalha agora,
que te estava tecendo, dia e noite,
e que me consolava dos cuidados
que sentia esta velha que ora sou.
Onde hei-de procurar-te, que lugar
possui teu corpo agora, os teus despojos,
teus arrancados membros? Isso deixas ?
Foi para isto que eu vim sempre contigo,
por terras e por mares ? Rútulos, vós,
matai-me já de mim apiedados ;
venham os vossos dardos e que seja eu
a primeira a cair morta no chão.
Que, soberano Pai dos deuses, possas
te apiedar também e com teu raio
a mim, pobre mulher, jogues no Tártaro,
já que dum outro modo não posso eu
destruir, acabar vida cruel. »
Todo este lamentar-se abala as almas,
a todos vem gemido de amargura,
ardor dos combatentes fica em nada.
Lutos gerais com isto se apresentam.
Ilioneu, Iúlo, que chamaram,
dão ordens a Ideu mais a Actor,
nela peguem ao colo e para casa
a levem com carinho e piedade.
Mas trombeta de bronze faz soar
seu canto tenebroso mais de longe,
um clamor semelhante lhe responde
e mugidos no céu são o seu eco.
Num movimento só formam os Volscos
tartaruga de ataque, logo avançam
e se preparam para encher o fosso,
para arrancar barreira donde esteja ;
ENEIDA 395

até buscam uns deles uma escada


de subir às muralhas, repelir
a linha defensora, assim chegando
ao alto bastião que bem se via
mais livre de se oporem os guerreiros.
Por seu lado os Troianos lhes atiram
tudo que pode retardar assalto
e com varas compridas os empurram,
habituados como estão à guerra
em que muralha tem de assim se opor.
Tentam fazer cair pesadas pedras
para quebrar aquele tecto em marcha,
enquanto os inimigos, protegidos
por sua tão segura carapaça,
com mais facilidade se ,defendem
de tudo que de cima os outros jogam.
Mas finalmente têm de ceder :
num ponto em que há maior concentração
fazem cair Troianos massa enorme
que esmaga tudo que se encontra em baixo,
os Rútulos abate, separando
escudos uns dos outros. Mas, audaz,
abandona inimigo o que fazia
e tenta nas trincheiras penetrar
com as armas de tiro que possui.
Por outro lado, com medonho aspecto,
vem Mezêncio que traz pinheiro etrusco
e que faz avançar sua fogueira
donde nuvem de fumo espessa sobe.
Também Messapo, o que cavalos doma,
e que descende de Neptuno mesmo,
faz uma brecha na barreira em frente
e mais escadas pede de transpor
muralha que tão alta se lhe opõe.
Que vós todas, Calíope, o que peço,
é que ao poeta mostrem batalhões,
os homens derrubados pelo ferro
que Turno aqui maneja, os inimigos
que cada herói precipitou em Orco,
ante mim se desdobre o que está sendo
boa tapeçaria duma guerra.
Uma torre ali tinham que entre todas
396 VIRGÍLIO

era prodígio pela sua altura


e pela posição do que ocupava :
a toda a volta havia umas passagens
também de boa altura que os de Itália
pretendiam limpar de defensores
ou até desta torre se pudessem.
Respondiam Troianos à pedrada
e dos cantos lançavam os seus dardos.
Turno foi o primeiro a deitar fogo,
soprado pelo vento favorável,
às tábuas dum dos lados ; logo passa
às traves-mestras meio carcomidas.
Dentro da torre se agitavam todos
numa grande desordem, procurando
destruir a ameaça que ali vinha.
Para isso se juntaram no lugar
que não fora atingido pelas chamas,
mas o que sucedeu foi que essa torre
de súbito caiu com grande estrondo
sobre o terreno que ficava em frente.
Quando os guerreiros chegam lá em baixo
todos vão meio mortos, atingidos
pela tremenda massa que desaba,
atravessados pelas próprias lanças
ou por bocados do madeiramento.
Deste desastre se salvaram dois :
um chamado Helenor com outro, Lico.
O jovem Helenor fora criado
por escrava, Licímnia de seu nome,
na corte da Meónia. Já crescido,
e por lhe serem interditas armas,
por ela foi mandado para Tróia.
De espada nua se levanta o jovem
lá dentre o destroçado, e sai correndo,
apenas com pequeno escudo branco
que lhe não dava distinção alguma.
Quando se viu entre os guerreiros mil
que Turno tinha sob as suas ordens
com as linhas latinas mesmo ao lado,
ficou como uma fera que cercada
foi pelos caçadores, às lanças vai
e sabendo que só assim se escapa
ENEIDA 397

da morte que tão perto dela está


pula por cima do que se lhe opõe,
assim Helenor salta e logo corre
para o lado em que os piques mais se mostram
convicto de que só morrer lhe resta.
Mas Lico, cujos pés são bem mais ágeis
ao inimigo mete, se lhe furta
e consegue chegar ao pé do muro ;
ali procura segurar as mãos
dos camaradas que de cima lutam.
Só que o persegue Turno que contra ele
vai disparando dardo sobre dardo
ao tempo que lhe grita, triunfante :
«Julgavas tu, meu louco, que escapavas
das mãos que se dispõem a matar-te ? »
E , quando diz, agarra-o pendurado,
o puxa num arranco, e faz cair
com ele um bom pedaço das defesas.
Foi assim como lebre ou como cisne
de refulgente corpo que tirou
o servidor de Jove dumas garras
e que por isso voa nas alturas,
ou como um cordeirinho procurado
pela mãe com balidos que não param
e que o lobo de Marte antes levara
de dentro do redil. Todos gritam,
com terra enchem o fosso, enquanto há outros
que lançam achas a que deitam fogo
em tudo que é mais alto. Ilioneu,
com pedregulho enorme deixa morto
Lucrécio que, já perto de uma porta,
uma chama brandia. Mata Líger
Emátion, tal como a Corineu
Asilas abateu. O dardo segue
propósito de Líger e são frechas
o que utiliza Asilas mais de longe.
Por Ceneu morre Ortígio, mas derruba
Turno quem vence e que ficou vivendo,
como é ele também que mata Clónio,
Ítis, Prómolo, Dioxipe e Ságaris,
assim como Idas que defende a torre.
Cápis mata Privemo que primeiro
398 VIRGÍLIO

a lança de Temila já ferira ;


como louco deitara fora escudo
e mão pusera no lugar sangrando
e seta deslizara até tocar-lhe
no corpo, lado esquerdo, aí entrando
e tão profundamente que lhe abriu
como se fosse o dar respiradouro
ao que de alma saía. Resistia
o filho de Arcente, de armas preciosas,
e clâmide bordada, rutilante
com ibérica púrpura. Que belo!
Pai Arcente o mandara, já crescido
nos bosques do deus Marte e rio Simeto,
ali onde cultua altar Palico
protectora gordura, onde Mezêncio,
pondo de lado os dardos, manejava
funda cheia de chumbo ; pois com ela,
de frente o alcançando, lhe abriu fronte,
estendido o deixou naquela areia.
Foi nessa altura que, primeiro feito,
dispara Ascânio uma daquelas setas
com que atemorizava bicho em fuga
e assim abate o tão forte Numano,
que muito outro de Rémulo chamava.
Tinha ele desposado irmã de Turno,
sua segunda irmã, assim ficando
l?arentesco a ligá-los um ao outro.
A frente mesmo da primeira linha,
vociferando como lhe calhava,
todo cheio de ser próximo ao rei,
fazia-se importante pelos gritos :
«Será que, Frígios, não tendes vergonha
de ficardes cercados nas defesas
e de quase a morrer tomar um muro,
depois de uma vez mais nós conquistarmos
os fortes que eram vossos ? Que gente esta,
que ainda vem aqui fazer-nos guerra
pelas mulheres nossos e bem nossas.
Que deus ou que loucura vos impele
ao ataque de Itália? Aqui não há
nenhum Atrida nem manhoso Ulisses
tão hábil em falar, e nossa raça
ENEIDA 399

em fonte vigorosa tem origem.


Assim que temos filhos os levamos
para margem de rio, aí fazemos
que fiquem rijos por tomar contacto
com água e gelos de áspero rigor;
passam seu tempo na caçada em mato,
e no que brincam é em domar cavalo,
armar os arcos e lançar as setas.
Fortes em seus trabalhos e sabendo
viver com pouco são bons lavradores,
terra dominam com os seus ancinhos
e se querem conquistam as cidades.
A vida passam manejando ferro,
velhice não abala nossa força,
com a lança ao contrário fatigamos
o dorso a nossos bois ; os capacetes
acabam por cobrir cabelo branco,
a presa é sempre fresca e nos dá vida
aquilo que tomamos. Vós, porém, não ;
sois uns vadios e do que vós gostais
é de uma roupa com bordado e viva
de púrpura brilhante com que dancem,
de túnicas com mangas, fita em mitra.
Ó Frígias que vós sois, que Frígios não,
ide aos cimos de Díndimo, ao encontro
da flauta dupla que é de vossos usos
e também vos espera com o buxo
que Berecinto é, da Mãe do Ida.
Obedecei às armas que são de homem.>>
Nem suportou Ascânio ouvir assim
todos esses orgulhos execráveis :
para este homem se volta, frecha ajusta
à corda de seu arco que retesa ;
depois, sem se mexer, para que prece
pudesse dirigir ao deus que é Jove :
«Ó poderoso Júpiter, favor
que de ti possa vir à nossa audácia
é o que desejamos. Minhas mãos
solenes oferendas levarão
até o teu altar do templo teu.
Um touro branco com focinho de ouro
que tão alto levanta como a mãe ;
400 VIRGÍLIO

e já cornadas dá, enquanto as patas


revolvem as areias em que pisa. »
Ouviu o Pai dos deuses e, na parte
mais serena do céu, à sua esquerda,
faz ressoar estrondo de trovão .
Ao mesmo tempo dá ruído um arco,
já portador da morte. Atrás trazida,
logo sibila a seta, a tudo passa
e de Rémulo acerta na cabeça,
e, por detrás da testa, lado a lado.
«Vai, tolo falador, que teu insulto
lanças contra a coragem . Eis resposta
que aos Rútulos enviam estes Frígios
duas vezes tomados em seu forte. »
E mais não disse Ascânio, que os Troianos
com grandes gritos dão inteiro aplauso
e sua valentia aos céus exaltam.
Por cima disto, e nos seus plainos de éter,
numa nuvem sentado estava Apolo,
o dos belos cabelos, dali vendo
exército de Ausónia e da cidade.
Falou então o deus ao vencedor Iúlo :
«É por se descobrir esse valor
que se chega, meu jovem, até astros ;
de deuses vens, a deuses darás ser.
É de toda a justiça que, reinando
o povo que de Assáraco virá,
cessem todas as guerras, que os destinos
assim o determinam. Não se é mais
para ficar detido no que é Troia.»
Ditas estas palavras, vem o deus
de seus etéreos cimos, pára o vento,
chega perto de Ascânio, mas com rosto
que era do velho Butes, escudeiro
que foi outrora do dardânio Anquises
e sempre lhe guardara o limiar ;
depois Ascânio um dia o recebera,
da parte de seu pai, por companhia.
Apolo se mostrava com o jeito
que já fora do velho, mesma voz,
a mesma cor do rosto, em tudo iguais
os seus cabelos brancos ou as armas
ENEIDA 40 1

com o seu entrechoque impondo medo.


E deste modo fala ao bravo Iúlo :
«Filho de Eneias, bem contente fiques
de, sem teres sofrido mal algum,
haveres abatido assim Numano.
Este início de fama te concede
o poderoso Apolo e, pelo que és,
nunca terá de ti qualquer inveja.
Quanto ao resto, meu jovem, o melhor
é jamais te meteres noutras guerras. »
Dado o conselho e, sem haver resposta,
deixaram os mortais de ver Apolo
que só, pouco mais longe, em breve sopro
desvaneceu nos ares. Comandantes
dardânios escutaram, afastando-se,
um som de armas divinas e dum coldre.
Nas palavras de Febo se apoiando,
com sua autoridade impedem eles
que um ardoroso Ascânio mais combata.
São eles que se lançam à batalha,
expondo suas vidas ao perigo.
De posto a posto se propagam gritos,
em todo o muro se preparam arcos,
a correia dos dardos se volteia.
Pelo chão vêem-se armas de arremesso,
capacetes, escudos ; vai seguir-se
o mais áspero choque. Assim também
como é quando, chegando um temporal,
se levanta chuvoso do poente,
toda a terra vergasta com saraiva,
as nuvens a descer ao fundo mar,
quando os Austros a Júpiter rodeiam
e solta o deus sua borrasca brava
e nuvem após nuvem céu abate.
Pândaro e Bítias, filhos de Alcanor
que vinha de Ida, em que silvestre lera
o mais sagrado bosque dera a Jove,
os dois , que eram iguais em sua altura
aos montes, aos pinheiros dos patrícios,
abriram, bem armados, o portão
que, por ordem do chefe, eles guardavam
e como que convidam inimigos
402 VIRGÍLIO

a franquear os muros de defesa.


Entretanto eles à direita e à esquerda,
metidos dentro corno duas torres,
vestidos de armas e com os penachos
lhes ondeando sobre os capacetes,
num jeito estavam mesmo de carvalhos
nas margens do rio Pó ou dum Ádige,
com cimos levantados para o céu
sem que algum lenhador ouse abatê-los.
Dos Rútulos, ao verem porta aberta,
se atiram juntos Quercente e Aquículo,
com este muito belo na armadura,
e mais Trnaro, o de coragem firme,
e Héron ainda cujo pai é Marte ;
com eles vão seus homens, só que logo
são todos repelidos, viram costas
ou então à entrada vem a morte.
No coração de todos os contrários
ardor guerreiro corno que renova
e já Troianos, num só corpo unidos,
se atrevem ao duelo e vão em frente.
Enquanto Turno, o chefe, doutro lado,
dá largas ao furor, incita os outros,
chegam dizendo que inimigo agora
desencadeia urna batalha nova :
é diante das portas já abertas
que se dá ao ataque. Vira Turno
e num impulso incrível aparece
ante a porta dardânia, onde os irmãos
no combate prosseguem. Turno entrou
e lançou o seu dardo, o derrubando,
contra Antífates, de troiana mãe
e do nobre Sarpédon corno pai ;
aquela arma de Itália por ar voa,
lhe entra pela garganta, vai ao peito,
ferida faz corno caverna grande,
ondas de espuma logo derramando :
e só no pulmão quente pára o ferro.
Depois abate Mérope, Érirnas,
é a seguir Afidno, logo Bítias,
o de olho ardente, coração fremindo ;
este não foi a dardo porque dardo
ENEIDA 403

jamais podia lhe acabar a vida :


falárica lhe chega como raio,
sem que detê-lo possa o redobrado
couro de boi ou a fiel couraça
com sua também dupla escama de ouro.
O corpo gigantesco cai no chão,
a terra treme, há um trovão de escudo.
Do mesmo modo é que na praia em Baias
tomba nas águas um penedo imenso
que se inclina, depois desliza aos poucos,
acaba por parar já sobre o fundo,
com o mar agitado, areias negras
subindo em turbilhão à superfície.
Faz barulho também alta Próquita,
e, por ordem de Jove, Inárime
que cai com todo o peso em dura cama,
o corpo de Tifeu. Então deus Marte,
omnipotente no que tange à guerra,
dá aos Latinos uma força nova,
seus aguilhões lhes finca em coração,
contra os Troianos solta seus demónios,
os demónios do medo e triste fuga.
De todo lado acorrem, que nas almas
lhes entrou com demora o deus das lutas.
Pândaro, quando viu morto o irmão,
e percebeu que tudo iria errado,
com sua força enorme empurra a porta,
a faz girar nos gonzos, a detém
com sua enorme espádua que resiste.
Só que boa porção de camaradas
fica fora dos muros, empenhada
naquela resistência, mas a outros
é ele próprio que franqueia entrada,
mas que, sem dar por isso, deixa o re1
com eles penetrar na cidadela,
o rei que no rebanho será tigre.
Seu olhar se incendeia de repente,
com suas armas faz grande ruído,
na cabeça se agitam os penachos,
escudo relampeja de valor.
Os de Eneias dão súbito, com susto,
pelo rosto medonho que detestam,
404 VIRGÍLIO

por gigantesco corpo. Mas é Pândaro,


a quem morte de irmão esquenta a raiva,
que lhe salta na frente, assim increpa:
«Não é este o palácio de teu dote,
que Arnata prometeu, nem é Árdea,
que pode conservar a tua vida
com muralhas de teus antepassados.
Entraste em campo hostil. Já não sais. >>
Turno, porém, sorrindo, assim lhe disse :
« Começa tu então, se tens coragem,
maneja as armas, que dirás a Príarno
que de novo encontraste aqui Aquiles. >>
Pândaro joga lança meio tosca,
mas só vento a recebe, até fincar-se
numa próxima porta, pois que Juno
a desviou de se cravar em Turno.
«Pois não escapas deste golpe meu,
que sou eu quem o dá, e com minha arma. >>
Levanta a espada, com furor a abate
e lhe quebra a cabeça em duas partes,
urna face dum lado a outra doutro,
com ferida horrorosa, cai o corpo
e corno era gigante abala a terra,
cérebro, sangue, tudo se mistura,
banha cada metade da cabeça.
Fogem Troianos para toda a parte,
a tremer de terror, e se rei Turno
tivesse mesmo, o que lhe não lembrou,
aberto a porta por quebrar os gonzos
e feito entrar os companheiros todos
teria sido aquele infausto dia
o derradeiro da nação e guerra ;
o que valeu foi que, de fúria cheio,
embriagado por matança feita,
se virou contra os que eram dos contrários.
Falero foi primeiro a sucumbir,
a Giges o jarrete lhe cortou,
os dardos lhes tirou, logo os lançando
contra os que iam fugindo, pois que Juno
lhe dava novas forças e coragem.
Aos outros juntou Hális, e Fegeu,
de escudo perfurado, vai atrás,
ENEIDA 405

e mais alguns que estavam nas muralhas,


que não sabiam do que se passara
e ali desafiavam o deus Marte :
assim foi com Alcander e com Hálio,
com Noémon, Prítanis e Linceu,
que vinha contra com seus camaradas ;
e Turno a este vai pela direita,
lhe passa à frente, a um talude sobe
e com espadeirada fulminante
o decapita, capacete e tudo,
no solo o estende, até mais para dentro.
Amilo se seguiu, bom caçador de feras,
que envenenava os ferros de que usava ;
foi ainda Criteu de quem as Musas
se tinham namorado e não pensava
senão em suas cítaras e cantos
nos quais dizia de armas e cavalos
e dos feitos de heróis que celebrava.
Por fim chegam os chefes dos Troianos
que viam chacinarem-lhes os homens ;
à frente vêm Menesteu, Seresto,
que encontram seus guerreiros bem dispersos,
com inimigos dentro das muralhas.
E grita Menesteu : «Para onde fogem ?
Será que têm longe mais defesa?
Mais muro a que se abriguem se salvando ?
Vejam só como é isto : um homem só,
cercado como está por nossos muros,
comete tais estragos sem castigo,
ao Orco envia tantos dos melhores ?
Não tendes pena nem respeito algum
pelos deuses antigos, pobre pátria,
por nosso grande Eneias ? Não há honra,
piedade nenhuma, salvação
da cobardia que vos toma assim ? »
E são estas palavras que o s animam,
lhes despertam as forças e que fazem
que cerrem as fileiras e resistam.
Já Turno vai deixando seu combate
e se dirige ao rio, àquele lado
em que as águas limitam posição.
Foi isto o que levou todo o Troiano
406 VIRGÍLIO

a avançar com mais força e com mais gritos


e também cada vez em maior número.
Quando caçadores leão cercam,
lhe apontam suas lanças, o dominam,
fica a fera inquieta, mas mais brava,
embora a pouco e pouco se retire,
recue o mais possível. Não lhe deixam
nem raiva nem coragem que não fite
de frente caçadores, mas também
não tem j eito de ao cerco desfazer,
atirando-se aos dardos mais aos homens.
E, lentamente, é Turno que regride.
sem saber muito bem que há-de fazer
e com o peito a referver de fúria.
No meio de tudo, ainda duas vezes
atacou inimigo, o pôs em fuga,
sem nenhum medo às armas que se empunham ;
mas os homens insistem na defesa,
cada vez mais aumenta sua massa,
de todo o campo acodem à batalha,
até que a própria Juno de Saturno
não ousa socorrê-lo com mais força :
Júpiter, de facto, a sua irmã, o duro
tinha enviado Íris, a mensageira,
com ordens muito estritas de que Turno
saísse das muralhas dos Troianos.
Já não pode insistir esse valente,
nem por meio de escudo nem de espada,
tanto é o dardo que lhe atiram contra.
Capacete não faz senão vibrar,
vibrar fazendo as têmporas mais dentro ;
todo o bronze das armas j á se entreabre
com o choque das pedras que lhe lançam,
já penacho voou, nada resiste
aos golpes que inimigo lhe repete.
Os Troianos com piques, Menesteu
que voltou como um raio não dão folga ;
tem o corpo coberto de suor,
o fôlego lhe fica mais penoso,
a força se lhe esgota, não redobra.
Então, ainda armado, dá um salto,
de cabeça se atira para o rio
ENEIDA 407

que, manso, luminoso o recebeu,


depois o sustentou em brandas ondas,
o vai restituir aos camaradas,
já lavado, refeito do combate.
LIVRO X

Entretanto de Olimpo se abre a sede,


na qual o pai dos deuses, rei dos homens
convoca a reunir no céu dos astros
o seu conselho próprio, e lá dos altos
pode olhar terra inteira, com o campo
em que estão os Dardânios, mais as terras
que aos Latinos pertencem. Seus lugares
tomam os deuses numa grande sala
em que há as duas portas . Principia
Júpiter sua fala que assim foi :
«Habitantes tão nobres destes céus,
porque mudou vossa resolução,
porque é que se voltou tanto ao passado,
porque lutais com tanta má vontade ?
Já tinha eu dado as ordens de que Itália
não se afrontasse em guerra com os Teucros.
Porquê esta discórdia que afinal
não é mais que regresso ao proibido ?
Que temor os levou, a uns e outros,
a tomar suas armas, os seus ferros?
Nada de se apressar tempo marcado,
o de só combater contra Cartago,
quando vier ruína para Roma
e não forem os Alpes a defesa.
Aí é que haverá ocasião
de lutar, de odiar e de ganhar.
Agora poreis vós isso de lado,
concordareis no pacto que pensei.>>
Tais foram as palavras, e bem curtas.
Mas logo na resposta Vénus áurea
não ficou pelo mesmo, foi-lhe contra :
ENEIDA 409

«Ó pai, poder eterno do que é tudo,


tanto homens como coisas, que outra força
será capaz de ouvir nossos pedidos ?
Bem vês tu como o s Rútulos assaltam
o que nós defendemos, como Turno,
todo apoiado no fervor de Marte,
aparece com seus belos cavalos,
cercado de guerreiros contra nós.
Metidos nas muralhas, os Troianos
não têm protecção pois os combates
já são ao pé das portas, até dentro
de bastiões e muros, vão os fossos
cheios do sangue deles. Longe, Eneias
não sabe o que se passa. Não nos deixas
que se levante o cerco ? Outra vez temos
de exército contrário aparecer
ante as muralhas de uma nova Tróia?
Agora com o filho de Tideu
vêm de novo lá de Argos Etólia
os que são contra nós ? O que acho mesmo
é que a mim, tua filha, atacam eles,
e que talvez tenha eu de receber
o golpe que me assente algum mortal.
Se foi sem tu quereres que os Troianos
se lançam contra Itália, se foi tudo
contra vontade tua cometido,
é justo então que sofram o castigo,
que paguem o pecado a que se entregam.
Mas se, ao contrário, vão pelo caminho
que lhes marcaram M anes com os deuses,
com que direito alguém se pode opor
ao que tu decidiste e que razão
se terá para haver outros destinos ?
Será que torno a ver aquela armada
consumida por fogo em costa Ericina,
com rei das tempestades, vento em fúria
sair de lá duns antros como Eóli�s,
ou Íris enviada pelos ares ?
Até aos Manes vai, zona de paz,
Alecto, em liberdade nas cidades,
quanto tumulto espalha por Itália.
Mas não, não é império que entristece,
410 VIRGÍLIO

dele tive esperança enquanto sorte


comigo estava. Mas agora, pai,
que tenham a vitória os que proteges,
aqueles a quem tu vitória dás.
E se não há no mundo terra alguma
que tua dura esposa possa dar
a meus pobres Troianos, é a ti
que eu dirijo uma prece : é a de que,
pelo destroço sempre fumegante
daquela extinta Tróia, do meio de armas
eu possa retirar Ascânio incólume,
que eu a meu neto possa ter comigo.
Que atormente a Eneias mar ignoto,
que seja seu destino o que a Fortuna
lhe tenha dado a ele, mas que eu possa
salvar esse menino da batalha.
Sou dona de Amatunte e de alta Pafo
e de Citera e do lugar que !dália
me deu como pertença. Passe aí,
sem fama alguma, a vida que lhe cabe
e bem longe de tudo que combate.
Ordena que Cartago bata Ausónia
e que nada por lá vá contra os Tírios.
Senão de que serviu ter escapado
a todas as chacinas de uma guerra,
ou fugir entre fogos dos Argivos?
Quantos perigos houve em terra e mar
enquanto procuravam os Troianos
chegar ao Lácio e restaurar a Pérgamo.
Não seria melhor terem ficado
nas terras e nas cinzas que foi Tróia?
Peço a ti, Pai, que dês a tais coitados
o Xanto mais Símois e que prossiga,
pois que os Troianos são de tais destinos,
o tecido de males que Ílion foi.»
Então a régia Juno, furiosa :
«Porque me obrigas a quebrar silêncio,
a divulgar a dor de que não falo ?
Foi deus ou homem que obrigou Eneias
a começar a guerra e v1r a ser
contra este rei latino ? Aceitaremos
querer Itália por ser seu destino,
ENEIDA 41 1

levado por loucuras de Cassandra.


Fomos nós quem lhe fez deixar seu campo
e confiar aos ventos sua vida?
Dar o fardo de guerra a um menino,
e, nos seus próprios meios, a fazer
aliança Tirrena, provocar
povos que em paz viviam ? Mas que deus
nestas dificuldades o meteu,
ou andou nisto alguma crueldade
do poder que me cabe? Que tem Juno
que ver com isto tudo ? Será ela
gue fez Íris sair de nossos cimos?
E uma indignidade Italiano
cercar de chamas Tróia que ora nasce
ou Turno se manter na sua pátria,
ele que é só o neto de Pilumno
e tem por mãe a diva que é Venília?
Que se dará então quando Troianos
vêm de tocha em punho contra o Lácio,
oprimem as campinas que são de outros
e que roubam e pilham o que querem ?
Que é isso então de se escolherem sogros
e de se ir às famílias arrancar
as virgens que já foram prometidas ?
De vir de mão aberta para a paz
e de armas pôr na proa dos navios ?
Podes tu, certo, retirar Eneias
das mãos dos Gregos e lançar a névoa
no lugar em que estava, fazer ninfas
de tudo que faz parte de uma frota,
mas achas, quanto a nós, que é grande cnme
ajudar na defesa o povo rútulo
por pouco que em defesa eu tenha estado ?
Eneias está longe, nada sabe?
Pois bem, que longe estej a, nada saiba.
Tu tens Pafo, !dália, Alta Citera :
que vai interessar-te uma cidade
que estará sempre pronta a parir guerras
e que é de corações tão violentos ?
Somos nós quem procura destruir
o que aos Frígios trouxeram os acasos ?
Não foi então quem pôs pobres Troianos
412 VIRGÍLIO

SUJeitos à vingança dos Aqueus,


quem a cabo levou que Europa e Ásia
se armaram deste modo uma contra outra
e que tratados fossem violados
por escondido raptar de alguém ?
Foi guiado por mim Dardânio adúltero
que Esparta maltratou como em conquista,
fui eu quem lhe deu armas, sustentou
uma guerra por artes de Cupido ?
Aí é que devias ter cuidado
daqueles que são teus, agora é tarde
para expnmtres quetxas, censurar
. . .

os que não provocaram nada disso. >>


Isto dizia Juno enquanto os deuses
no pensar deste caso divergiam.
Tal era exactamente como os sopros
pelos quais damos nós em nossos bosques
e que vão aumentando no surgir
até chegar a ser os vendavais
que atormentam depois os marinheiros .
Então o Pai que é todo-poderoso,
soberano do mundo, vai falar.
O palácio divino entra em silêncio
e nos seus alicerces treme a terra
sem que se escape de éter nem um som ;
até o próprio Zéfiro se cala,
o mar imenso pacifica as vagas.
«Recebei dentro em vós, em vós gravai
o que vos vou dizer. Como não houve
de fazer-se que os de Ausónia
pactuassem acordo com os Teucros
e de vossa disputa não há fim,
não tomarei partido neste assunto,
qualquer que seja a sorte dum ou doutro,
ou seja dum ou doutro seu desejo,
para mim são iguais Troiano ou Rútulo ;
aceitarei, portanto, que este cerco
possa imputar-se ao que é puro destino
ou dos Italianos ou de Tróia,
levada nesse caso ao que se faz
por funesto conselho obedecido.
Os Rútulos não solto desta lei,
ENEIDA 413

a cada um caberá desgraça ou sorte,


conforme o que vier do que empreenda :
Júpiter é o rei dos povos todos,
Destino escolherá o seu caminho. »
Por testemunha toma o deus Estige,
o rio de seu irmão, o rio das margens
com negros turbilhões de pez queimado ;
fez então um sinal que abalou
Olimpo inteiro e logo se levanta
com todos que à saída acompanharam.
Enquanto isto se passa vão os Rútulos
toda a porta atacando da cidade
nos esforços contínuos de abater,
de derrubar a todo o defensor
e de cingir de chamas as muralhas.
A legião inteira dos de Eneias
continua encerrada nas trincheiras
sem que surj a esperança de sair.
Quem as torres guarnece está de pé
e, cada vez mais raras, as fileiras
coroam as muralhas como podem.
Numa primeira linha está o Ásio,
de Ímbraso filho, assim como Timetes,
que é filho de Hicetáon, os dois Assáracos,
com pouco mais idade Castor, Tímbris.
Têm por companheiros dois irmãos
de Sarpédon, chamados Claro e Témon,
que, vindos da Alta Lícia, ali se batem.
Com toda a grande força de seu corpo
traz Ácmon de Lirnesso grande rocha,
uma parte do monte, e vale tanto
com seu pai Clício ou Menesteu
que irmão seu é, a se defender uns
com dardos ou com pedras ; trazem outros
engenhos chamej antes, ou ajustam
as flechas que já têm a seus arcos.
No meio de todos vai o protegido
da deusa Vénus, o Dardânio moço,
cabeça descoberta, na beleza
com que pedra cintila em ouro fulvo,
para adorno de colo ou de cabelo,
ou como resplandece o que é marfim,
414 VIRGÍLIO

quando ele se encastoa no que é buxo,


terebinto de Orico do melhor;
ordem estabelece em seus cabelos
com um círculo de ouro, assim os leva
a descansar na nuca cor de leite.
Também, Ísrnaro, viu nosso bom povo
vibrares os teus golpes, pôr veneno
em mortíferas canas, tu que vens
da família rneónia, aquela terra
em que tanto homem lavra campos de ouro.
E também aparece Menesteu,
todo orgulhoso de ter posto fora
o valente rei Turno. Ao lado Cápis,
aquele que deu nome, na Carnpânia,
a urna das cidades. Eneias neste tempo
navegava de noite no mar alto .
Logo que entrou no campo dos Etruscos
se apresentou ao rei e lhe falou
das armas conseguidas por Mezêncio,
e das fúrias de Turno, e do que pode
na vida nos guiar e proteger.
A tudo, sem demora, junta preces.
Tárcon urna aliança estabelece,
de modo que, segundo seu destino,
embarque a nação lídia nos navios
que comanda estrangeiro cuja nau
na frente voga, confiada a proa
a seus Frígios leões, e com Eneias
que medita nessa Ida que os domina.
A seu lado vai Palas que o não deixa,
lhe pergunta dos astros que orientam
e do que já passou em terra e mar.
Vosso Hélicon, ó deuses, descerrai
e dizei-nos nos cantos que entoais
quais são as forças de que é chefe Eneias
depois que por Etrúria armou navios
e largou para o mar da travessia.
Mássico com seu Tigre é o primeiro
a cortar essas águas ; junto leva
um corpo de mil homens que deixaram
fortes de Clúsio e Cosa, urna cidade ;
vão armados de setas com, aos ombros,
ENEIDA 415

aljavas mais os arcos que dão morte.


Abas tem um comando e suas tropas
levam armas soberbas : no navio
Apolo de ouro se levanta à popa.
Sua mãe, Populónia, lhe entregou
seiscentos homens óptimos na guerra;
mais trezentos lhe deu a ilha de Ilva
onde há, inesgotáveis, suas minas.
Um terceiro é Asilas que decifra
o que lhe comunica deus ou homem
pelas fibras das vítimas ou astros
ou as línguas das aves ou auspícios
nos proféticos fogos que raio traz ;
são mil os seus guerreiros, cujas filas,
eriçadas de pique, são tão fartas.
De Pisa os recebeu, cidade etrusca,
que nos lados de Alfeu tem sua origem.
Astur se segue de chefia certa,
seguro de cavalo e suas armas,
as coloridas armas. São trezentos
todos firmes em ânimo comum ;
lhos deram os de Cere, Mínion, Pirgo,
até os de Gravisca em que o céu pesa.
Não podia esquecer-te, aí, Cíniras,
tão corajoso em guerra e que comandas
teus lígures soldados. Nem Cupano,
com alguns companheiros. Na cabeça
tens penacho de cisne, o que perdeu
amor de Faetonte e, de desgosto,
mas de algum modo até se consolando,
cantava nuns choupais irmãs de amigo
e que, já velho, sempre branca a pena,
largou a terra, foi cantar estrelas.
Esse seu filho que, na expedição,
acompanhava um bando de guerreiros,
todos remando em gigantesco barco,
Centauro se chamava, erguia os braços
quando havia rochedo ameaçando
as vagas que confusas se enrolavam,
e fazia que a quilha, muito longa,
o seu sulco traçasse em mar profundo.
Havia ainda um Ocno que da pátria
416 VIRGÍLIO

seus soldados trazia. Era ele filho


de Manto, a profetisa, o pai um raio;
foi ele, Mântua, quem te deu teus muros,
com nome que tirou de sua mãe,
Mântua rica em avós de várias raças :
reúne três nações, cada uma delas
sua unidade dando a quatro povos ;
mas ela, na chefia, tem as forças
que vêm todas de seu sangue etrusco.
Mezêncio de lá traz quinhentos homens ;
Míncio, filho de Benaco, é quem guia,
equipado de canas verde-mar,
aquela nau de aspecto temeroso.
Assim avança o bem pesado Auleste
e, quando se levanta de seu banco,
logo batem as águas os cem remos,
a todos os cobrindo com espuma.
Tritão a leva, com cérula concha
aterroriza as sombras dos maus passos.
O nadador peludo até ilharga
tinha algum jeito de homem, mas depois
já ventre dava corpo diferente,
com forma que mais era de animal
em que espumavam mares que cortava.
Em três vezes dez barcos vão tais chefes
ajudar os Troianos ; brônzeas proas
traçam salgado espaço decididas.
Já saíra do céu a luz do dia
e já suave Febe percorria
com seu carro nocturno todo Olimpo,
ainda Eneias ia no seu banco
atento ao leme ou ao maneio das velas,
que não deixam cuidados repousar.
No meio do percurso se ouve um coro
de suas companheiras, são as ninfas
que Cibele fizera dos navios
e vão agora dominando os mares.
Nadando vinham elas ao encontro,
em número tão grande quanto outrora
eram proas de bronze junto à costa.
De longe reconhecem a seu rei
e formam um redondo à volta dele.
ENEIDA 417

Cimodoceia, delas a mais douta


nas artes de falar, segura a popa
com sua mão direita enquanto o dorso
um tanto sai das águas que se sulcam,
e com esquerda rema no silêncio
em que mergulham ondas. Assim diz
de surpresa a Eneias que ia alheio :
«Desperto estás, Eneias ? Acordado,
filho dos deuses, tua escota solta.
Viemos dos pinheiros do monte Ida,
fomos os teus navios, agora ninfas,
por sagrado favor de nossa mãe,
e te buscamos no revolto mar
por atacar o traiçoeiro Rútulo
com seu ferro e seu fogo, assim levando
a quebrarmos os laços que a nós todas
nos ligavam a ti tão fielmente.
A compaixão de mãe nos transformou,
nos deu um novo rosto, fez-nos deusas,
para a vida cumprirmos entre vagas .
Mas o jovem Ascânio, tão menino,
fechado está nos muros, limitado
pelo fosso que faz sua defesa,
assediado pelo tiro a dardo,
por Latinos que Marte enfureceu.
Ocuparam cavaleiros da Arcádia
com valentes Etruscos combinados,
as posições firmadas pelos nossos.
Resolveu Turno opor seus batalhões
para que o campo dele não tomassem.
Vamos, levanta, e, no romper de Aurora
dá ordem de se armarem aliados,
maneja escudo que o senhor do fogo
foi ele próprio a dar-te, já com ouro .
Amanhã, se não segues meus conselhos,
só haverá, e na primeira luz,
montes de mortos, que é o que resulta
da matança que os Rútulos farão. »
Isto disse ela e , s e afastando, empurra
a popa com a mão que logo rompe
mais rápido que frecha, igual a vento,
o navio de Eneias. Vão os outros
41 8 VIRGÍLIO

na carreira veloz. Estupefacto,


por não compreender o que se passa,
fica o filho de Anquises ; o prodígio
a coragem lhe exalta e breve prece
ao céu ele dirige ao alto olhando :
«Ó criadora Ideia mãe dos deuses,
que tanto amas Díndimo nas cidades
coroadas de torres, nos leões
que um jugo só sujeita, sê a guia
nos combates que tenho de travar,
apressa que se cumpra teu augúrio
e vem, correndo, sustentar os Frígios . »
Enquanto isto dizia, já a luz
tomara inteiro o céu, fugira a noite.
Para começo ordena o chefe aos seus
que sigam as insígnias e que às armas
dêem toda a atenção, assim já prontos
para as batalhas em que vão ser parte.
Na alta popa de pé descortinava
Troianos no seu campo e levantava
com sua esquerda escudo que lampeja.
Por seu turno lançava grita aos céus
a dardânida tropa em que a coragem
desponta no reforço de esperança
e faz que em multidão se lancem dardos .
Exactamente como, sob as nuvens,
fogem grous estrimónios, voam célere,
atravessando os ares, impelidos
por seus gritos felizes ante os Natos.
Maravilham-se Rútulo e seus chefes
até verem no mar a tanta popa,
águas e velas deslizando contra.
O penacho do rei é uma chama,
e de escudo em seu ouro saem fogos.
Assim também por vezes, limpa a noite,
passam rubros e lúgubres cometas,
assim se nos desperta Sírio ardente,
esse astro que traz sede e traz doença
aos pobres dos mortais, ao firmamento
entristecendo sua luz sinistra.
Não vacila, porém, nosso audaz Turno,
seguro de que pode, antes dos outros,
ENEIDA 419

tomar o litoral e repelir


quem ali for tentar o desembarque :
«Ü que vós desejastes aí chega;
os ireis desfazer com vossos golpes.
Nas mãos dos bravos se apresenta Marte.
Que cada um relembre a sua casa
com a sua mulher e que renove
os feitos mais famosos dos avós.
Corramos para o mar à frente deles,
sem demora nenhuma, o desembarque
os seus passos irá embaraçar.
A sorte nossa audácia nos ajuda. »
Isto diz ele e pensa quais serão
os que com ele irão para o ataque,
quais aqueles que os muros guardarão.
Eneias por seu lado desembarca
por pontes que das popas vão à costa
os que são companheiros no combate.
Uns esperam que as águas, deslizando,
comecem a voltar e saltam na água
fiados em não ser o fundo longe,
outros vão apoiando-se nos remos.
Tárcon que a toda a praia examinava
viu que havia um lugar de mais fundura
que em nada perturbava a superfície.
Ordena para lá virar as proas
e fala aos que ali vão desembarcar :
«Vós outros que escolhi, força nos remos,
que as naus avancem logo e suas quilhas
abram sulco de entrada nessa praia.
É a terra inimiga, a tomaremos
mesmo que algum navio venha a quebrar-se. »
Quase nem acabava de falar
quando todos se lançam sobre os remos
e chegam os navios fazendo espuma
ao que já era campo dos Latinos.
Abrem o solo seco, nele ficam
as quilhas dos navios todas imóveis.
Mas, Tárcon, tua popa se chocou
com um fundo mais alto, em equilíbrio,
nela batem as ondas, abre o lado
e vão parar os homens dentro de água.
420 VIRGÍLIO

Remos quebrados, tábuas aos bocados


dificultam a marcha, os pés arrastam.
A Turno, por seu lado, nada pára
e demora nenhuma o leva lento ;
impetuoso impele seus soldados
contra os Troianos, os dispõe em frente
com trombetas soando para ataque.
Eneias, bom augúrio, é o primeiro
a destroçar as tropas camponesas
e derruba Téron, que era um gigante
e viera afrontar o próprio rei :
foi através das ligações do bronze,
da túnica vestida em que ouro havia
que o sabre se cravou em sua ilharga.
Depois a Licas fere, o que saíra
dum corpo já sem vida ao ter nascido
e Febo a ele o tinha consagrado,
mas do que lhe valeu sobreviver
quando pequeno ainda ao ferro, à morte ?
Não longe desses dois pôs fim à vida
do valente Cisseu, do bravo Gias
que abatiam à maça pelotões.
De nada lhe valeu o forte braço,
de nada as armas que usaria um Hércules,
de nada o pai Melampo que de Alcides
foi sempre companheiro nos mais rudes
trabalhos a que a terra desafia.
Enquanto Faron fala só à toa,
volteia Eneias dardo e lho enfia
pela boca que abrira para grito.
O mesmo te sucede, infeliz Cídon,
que a Clítio acompanhas cujas faces
de penugem primeira se cobriam,
e que era tão querido, já que tu
te davas ao amor que atrai os jovens,
se não te surge em frente um outro grupo,
o dos filhos de Forco, sete irmãos
que atiram sete dardos cada qual ;
mas Vénus te protege, benfazeja,
todo o ferro ressalta de armadura,
de capacete, escudo, assim te salvas
de que algum deles te atingisse o corpo.
ENEIDA 42 1

A seu fiel Acates fala Eneias :


«Passa-me dardos que a nenhum eu falho
quando a Rútulo atiro, como em Ílion
os deixei espetar-se em corpo grego. >>
Pega em comprido pique que atravessa
a Méon duma vez couraça e peito.
Um irmão, Alcanor, acorre, ampara
a Méon que tombava; logo um dardo
o braço lhe atravessa e fica a mão
suspensa de seu ombro por tendões.
É este Numitor que à arma arranca
do corpo desse irmão e visa Eneias ;
não consegue alcançá-lo, o dardo passa
de leve pela coxa ao grande Acates.
Então lhes chega Clauso, vem de Cures,
e com áspero dardo fere Dríops
por debaixo do queixo ; o rude golpe
lhe atravessa a garganta, ao mesmo tempo
lhe cortando a palavra mais a vida.
Bate forte no chão com a cabeça,
vomita sua boca espesso sangue.
Abate ainda com diverso ataque
três trácios que de Bóreas descendiam,
e três outros que haviam enviado
Ísmaro, sua pátria, seu pai Idas.
Com sua tropa aurunca vem Haleso,
o reforça Messapo, o de Neptuno,
com notáveis cavalos que são seus.
Tentavam uns e outros pôr em fuga
os que tinham na frente ; se combate
no próprio limiar do que é Ausónia.
Assim lutam os ventos no etéreo
e se batem em fogo e força iguais ;
ninguém cede ao que é outro, nem as nuvens
nem o mar que resiste a tais impulsos.
A mesma coisa fazem os Latinos,
de modo igual se comporta Tróia.
É como pé a pé prendendo ou homens
a homens não largando no combate.
Por outro lado havia enorme espaço
em que torrente tinha acumulado
árvores derrubadas, grandes pedras ;
422 VIRGÍLIO

já os de Ausónia, pouco habituados


a ser de infantaria e que os cavalos
tinham posto de parte em chão difícil,
iam voltando costas aos Latinos,
dado o furor com que estes atacavam.
Quando Palas viu isto lançou mão
duma única saída que haveria,
falou aos companheiros e procurou,
com os pedidos, com censura amarga,
lhes dar nova coragem de bater-se :
«Para onde ides fugindo, camaradas ?
Sede dignos de vossos grandes feitos
e do nome de Evandro, nosso chefe,
por guerras que vencemos tanta vez,
por esperança minha de igualar
a fama de meu pai, por isto tudo,
não confieis nas pernas, combatei.
É ferro que nos tem de abrir o passo,
aonde eles são mais temos nós de ir,
é ali que por nós a pátria chama,
e vos dou ordens eu, o vosso chefe.
Não são os imortais que nos derrotam,
são mortais como nós os que nos batem
e mortais como nós os inimigos.
Temos vida e dois braços, iguais somos .
O mar com suas ondas barra a marcha.
a terra agora faltará também
se é esta fuga um último recurso.
Mas para que jogar-se num abismo ?
Daqui teremos nós de alcançar Tróia? »
Ditas estas palavras s e lançou
no mais espesso grupo à sua frente.
Foi Lago que encontrou em seu avanço,
Lago de mau destino, que arrancava
uma pesada pedra, mas foi Palas
que lhe varou o corpo no lugar
em que espinha se encontra entre as costelas .
E foi o mesmo Palas, retirando
a lança presa em ossos, que atacado
por Hísbon, o que chegava de surpresa,
furioso por morte dum amigo,
espada lhe enterrou em um pulmão
ENEIDA 423

que raiva, ao que parece, tinha inchado.


Depois Esténio ataca, é em seguida
Anquimólio, o que tinha desonrado
o leito de madrasta, embora fosse
familiar de Reto. Então, dos Rútulos,
caíram logo Lárida e Timbro
que a Daúco pertenciam, tão iguais,
que os pais a cada passo se enganavam.
Palas, filho de Evandro, decepou
a cabeça de Timbro, em ti Lárida
a mão em vão procura corpo seu
com os dedos meio vivos que palpitam
e se crispam ainda sobre o ferro.
Os Árcades e Palas imprecados,
cheios a um tempo de vergonha e raiva,
se lançam com vontade ao inimigo.
Palas fura Reteu que ia fugindo,
passa por ele em carro de parelha.
E para Ilo foi só um intervalo,
pouco antes de Reteu um novo golpe
ter sofrido de Teutras e de Tiras ;
derrubado do carro, cai convulso
em terra que era já dos mesmos Rútulos.
Assim como em Estio, soprando o vento,
pastor começa fogo aqui, ali
atravessando o mato e de repente
é incêndio total o que devasta,
com tropas de Vulcano e suas armas,
agindo como dardos doutra espécie,
também agora, como o deus faria,
é Palas, são os seus que num só grito
celebram a coragem que lhes deu
essa grande alegria da vitória.
Mas valoroso Haleso ao inimigo
se joga e num momento já imola
a Ládon, a Feres, a Demódoco,
corta a mão de estrimónio que avançava
para sua garganta e com pedrada
no rosto agride Toas cujos ossos
se misturam com cérebro sangrento.
O seu pai, que sabia de destinos,
esse Haleso escondera em certo bosque,
424 VIRGÍLIO

mas, quando ele morreu, vêm as Parcas


e votam que seu filho sej a entregue
ao ataque de Evandro e de seus dardos.
É Palas que o assalta após dizer :
«Dá sorte, grande Tibre, a esta arma
que vou jogar a Haleso e faz que tenha
caminho bem aberto e bem certeiro.
É a carvalho, deus, que eu irei dar
seus despojos mortais e suas armas. >>
Ouviu Tibre o voto enquanto Haleso
a lmáon protege : a seta voa,
acerta o peito a que se dirigia,
o peito desarmado que era Haleso.
Lauso, porém, da guerra bom suporte,
não deixa consternadas suas tropas,
Abas abate mesmo à sua frente,
esse Abas que vitória retardava.
E se abate também a prole arcádia,
o mesmo acontecendo com Etruscos,
até convosco, Teucros, que nem Gregos
tinham podido destruir de todo.
Com seus chefes iguais, tropas iguais,
avançam batalhões uns contra os outros,
os que ficam no extremo mais se apertam
e já ninguém se mexe em braço ou arma.
É Palas que ameaça e quem empurra,
mas é Lauso que tem ali diante ;
não diferem de idade os dois tão belos,
mas Fortuna lhes tinha recusado
que pudessem voltar à sua pátria.
Todavia o senhor do grande Olimpo
não deixa que se afrontem por enquanto :
inimigo virá maior ainda,
aí se cumprirão os seus destinos.
Então divina irmã manda que Turno
de Lauso se desvie e voe em frente
o carro que atravesse aquele exército.
Quando viu camaradas lhes gritou :
«Retirai-vos agora do combate
que eu tratarei de Palas que é só meu
e bem queria que estivesse aqui
o pai que teve, a ver o que se passe. >>
ENEIDA 425

Deixam-lhe os outros todo espaço livre ;


os Rútulos se afastam ; jovem Lauso,
espantado com ordem tão severa,
fica perante Turno sem que saiba
o que terá agora de fazer ;
o corpo que ali vê é gigantesco ;
então, rosto fechado, olha de fora
toda aquela visão do campo em guerra
e com estas palavras lhe responde :
«Hoje me caberá a maior fama,
com despojos do rei meu inimigo,
ou com a morte que ninguém olvide.
Meu pai certo verá o que aconteça.
Não é com ameaças que me vences. >>
E, dizendo isto, avança no terreno
enquanto gela o sangue em peito arcádio.
Turno salta do carro, vai bater-se
a pé e de mais perto ; qual leão
que vê de seu rochedo um touro longe,
se apura para a luta, desce logo.
É isto o que parece fazer Turno.
Quando julga que tem a seu alcance
quem assim lhe é adverso, toma Palas
a sua iniciativa de atacar,
sem se saber se alguma vez a sorte
protegeu quem ousou, sendo mais fraco.
Éter imenso olhando, assim se exprime :
«Em nome de meu pai que a ti, Alcides,
te foi hospitaleiro, a ti estranho,
eu te faço um pedido, o de que apoies
aquilo a que me lanço e que é tão nobre :
que Turno veja em moribundo olhar
eu lhe arrancar as armas por vencer
e que leve com ele a minha imagem. >>
Ao jovem escutou filho de Alceu
que, no que mais profundo é em seu peito,
sufoca seu gemido e chora em vão.
Então o Pai ao filho, com afecto
lhe diz estas palavras : «Todos têm
o seu dia marcado. Para todos
é tempo de viver finito e breve.
Mas alargar seu nome pela fama
426 VIRGÍLIO

é que está ao dispor de ânimo firme.


Quantos filhos de deuses sucumbiram
junto às altas muralhas dos Troianos.
Sarpédon, o meu filho, foi um deles.
também há para Turno seu destino,
e destino o convoca, que é já tempo. >>
Assim diz ele e logo olhar desvia
das campinas dos Rútulos se esconde.
Lança Palas seu pique a toda a força
_e da bainha tira espada ardente.
O pique no seu voo toca um ombro
no cimo do mais alto das defesas,
atravessa a beirada dum escudo
e roça mesmo o corpo que é de Turno.
Então Turno balança muito tempo
uma vara que tem na ponta um ferro
e para Palas grita : «Vamos ver
se este dardo não entra mais direitO. >>
Pois escudo que tinha tanto ferro
e lâminas de bronze e muito couro,
logo o dardo atravessa, mais couraça,
até que em largo peito vai cravar-se.
De nada serve Palas puxar forte
o dardo de seu corpo, vai com ele
o que é sangue, o que é vida, cai o jovem
sobre a própria ferida, sobre o corpo
ressoam suas armas, sua boca
sangrenta como está no solo pesa.
E grande Turno, em pé, acima dele :
<<Árcades todos, que ninguém esqueça
o que vos vou dizer e saiba Evandro.
É Palas que lhe envio naquele estado
que ele bem mereceu. E pode dar-lhe
as honras dum sepulcro, consolá-lo
com esse seu enterro, o mais que queira,
pois tudo lhe concedo, que bem paga
a hospitalidade para Eneias. >>
Tendo isto dito calca o corpo morto,
o boldrié arranca decorado
com o crime que fora cinzelado
com ouro à farta, pelo grande Clónio
que foi filho de Êurito : Numa noite,
ENEIDA 427

aquela que lhes foi também de núpcias,


tanto jovem foi morto ao mesmo tempo,
os tálarnos deixando cheios de sangue.
Agora é Turno o dono, bem contente.
Que pena não saber homem nenhum
do destino que tem, de seu futuro,
para não se exaltar com tais triunfos.
Um tempo irá chegar do próprio Turno
em que desejará o ter deixado
Palas sem lhe tocar, detestará
o dia em que então houve com despojos.
Entretanto, com lágrimas, lamentos,
levam os companheiros Palas morto,
deitado em seu escudo, e com que pompa.
Vais voltar a teu pai com fama e dor,
e se foi para ti dia perdido
o primeiro que em guerra tu tiveste,
quando deixaste rútulo caído.
Por outro lado, não foi só notícia
de tão grande desastre ter Eneias,
pois que urna outra mensagem lhe chegou,
a de estarem os seus quase a perder,
e ser esse o momento de socorro.
Com espada na mão a tudo abate,
um largo caminho abre, de alma ardendo,
e te procura, Turno, com seu ferro,
a ti, tão orgulhoso dessa morte.
Lembrando vai Eneias o ter visto
a Palas com Evandro, aquelas mesas
que foram as primeiras a ter ele,
de fora assim surgindo, a recebê-lo,
as mãos que se estendiam e se davam.
Quatro filhos de Sulrnão apanha vivos,
todos os quatro que Ufente educara
os oferece às sombras infernais,
com seu sangue cativo asperge o fogo.
Depois, de longe, atira contra Mago
a mortífera lança que ele evita
e lhe passa por cima da cabeça.
Abraçando de Eneias os joelhos,
deste modo lhe fala e lhe suplica :
«Por Manes de teu pai e pela sorte
428 VIRGÍLIO

que se espera a Iúlo em seu futuro,


por tudo isto te peço que me poupes
e que a meu pai, meu filho, dês a vida
que agora me não tires. Tenho casa
em que escondi a prata cinzelada
e quantidades de ouro em parte bruto,
em parte trabalhado. Há a certeza
de que a vitória aqui é dos Troianos
e não será por uma vida de homem
que se vai decidir o que suceda»,
mas desta forma lhe responde Eneias :
«Todos esses talentos de ouro e prata
de teus filhos serão se assim o queres.
Mas paz entre inimigos teve fim
quando Turno matou a nosso Palas.
Os Manes que me são de pai Anquises
isto mesmo é que pensam, como Iúlo. >>
E tendo assim falado, deita mão
ao capacete a Mago e, descoberto,
lhe empurra para trás todo pescoço,
em que logo, apesar das preces dele,
espada lhe mergulha até o punho.
O filho que Hémon tinha estava perto,
sacerdote de Febo e deusa Trívia,
cingia sua fronte a sacra fita,
adornada de branco tinha a veste ;
mas Eneias ataca, pelo campo
o segue até que pode derrubá-lo,
cobri-lo com a sombra gigantesca,
imolá-lo afinal. Então Seresto
pega as armas do morto, as põe ao ombro,
as leva de troféu ao rei Gradivo.
O combate entretanto se renova
com Céculo, de estirpe de Vulcano,
e com Umbro que vem dos montes Marsos.
Em frente quem ataca é o Dardânio,
que escudo corta em parte e que decepa
mão esquerda de Ânxur, que ainda diz
as sagradas palavras que esperava
ainda evitariam sua morte,
no céu entrando o voto que fazia.
Tempo a si se teria prometido,
ENEIDA 429

chegar a velho de cabelos brancos


e muito longos anos ter de vida.
Tárquito salta em frente em brilho de armas,
tinha-o ninfa Dríops dado a Fauna,
o que andava nos bosques, mas Eneias
se opõe com seu furor, recua a lança
e depois arremete, fura juntos
couraça, escudo, decapita um homem
que preces elevava, ainda certo
de que tempo teria de falar.
Rola o tronco no chão e grita Eneias :
«Fique aí, seu medonho ! Mãe alguma
virá apiedada te enterrar,
ou te depor no túmulo de avós ;
as aves bravas te terão em conta,
ou as águas te arrastam na corrente
e peixes te virão comer feridas. »
Com um impulso s ó assalta Anteu
e Lucas, os primeiros do rei Turno,
o valoroso Numa, o fulvo Camerte
que era filho de Volscente, o mais rico
dono de terra ausónia e fora rei
no tempo de Amiclas, a do silêncio.
Como Egéon na lenda, com cem braços,
e monstro de cem mãos, a vomitar
de cinquenta peitos, tantas bocas,
lume que dentro tinha e se chocava
com os raios por Júpiter vibrados ;
com cinquenta espadas se batia,
assim também se comportava Eneias,
que, vencedor, corria pelo campo.
Até mesmo afrontou ele os cavalos
do carro em que Nifeu ia à batalha;
os cavalos, porém, vendo-o tão perto
e de tão grande raiva acometido,
medo tiveram, se viraram todos,
atrás se precipitam, jogam fora
a quem os conduzia, carro levam
até onde o mar bate nessa costa.
É então que os irmãos Lúcago e Líger
intervêm na luta com seu carro
de dois cavalos brancos, sendo Lúcago
430 VIRGÍLIO

quem com rédeas dirige os animais


e Líger quem volteia espada nua.
Eneias não suporta um tal ardor
e contra eles se atira aparecendo
com sua alta estatura e lança em riste.
E lhe diz Líger : «Tu não estás vendo
cavalos Diomedes, nem o carro
de Aquiles nem os campos que são frígios . »
São palavras que voam, insensatas,
e nada lhes responde herói troiano ;
o dardo vira contra os dois no carro.
Lúcago, debruçado nos cavalos,
os mctta com ptque a que mats corram
o • • •

e deita para fora o pé esquerdo


para também ter parte no combate,
só que a lança de Eneias se atravessa
no bordo inferior de seu escudo
e lhe fere a virilha. Cai do carro,
rola no chão morrendo . E pio Eneias
lhe joga estas palavras bem amargas :
«Não, Lúcago, teu carro não traiu
preguiça ou lentidão de teus cavalos,
mas desviado foi por qualquer sombra,
uma vã sombra vinda de inimigos.
Tu, por teu salto fora, os abandonas . >>
Assim falando, agarra os dois cavalos.
Também já fora está o outro irmão,
as mãos erguidas para prece prontas,
e sem arma nenhuma : «Por ti próprio,
pelos pais que geraram tal herói,
Troiano, poupa a vida, dá ajuda
a quem assim to pede.>> Mas Eneias :
«Não era assim que há pouco tu falavas .
Mas tu tens de morrer, já que um irmão
a seu irmão não deixa abandonado. >>
Depois, de perto, lhe abre do que é vida
o secreto reduto que é o peito.
Assim chefe dardânio ia espalhando
por todo o campo a morte que levava ;
era como torrente, ou tempestade,
que se desencadeia e tudo leva.
Por fim jovem Ascânio e companheiros
ENEIDA 43 1

que em vão tinham estado assediados,


para trás deixam campo construído.
É então que deus Júpiter, falando,
assim diz para Juno : «Ó minha irmã,
que também és esposa, e bem querida,
é o que tu pensavas, que o sentir
a ti jamais engana, é mesmo Vénus
que assim mantém a força dos Troianos,
porque esse braço virtuoso em guerra,
esta firmeza de ânimo ante o risco
não é própria dos homens que são eles. »
Juno então lhe responde d e olhos baixos :
«Mas então, nobre esposo, porque levas
a tais tormentos a que, por desgraça,
só teme tuas duras decisões ?
Se teu amor por mim tivesse ainda
aquele ardor que um dia foi o seu,
e que é o que me deves, não dirias
que não ao que te peço, que tu poupes
meu Turno nos combates, e que vivo
ele seja a seu pai restituído,
a seu pai Dánao . Não, tem de morrer,
para que asstm pague, com seu sangue,
os crimes cometidos contra Tróia.
Não vem sua ascendência até nós dois ?
Não foi seu quarto pai Pilumno, aquele
que generosa oferta levou tanto
aos templos que são teus ? » Ao que responde
em rápidas palavras rei de Olimpo :
«Se teu pedido tem por fim livrar
duma morte iminente homem votado
a que desapareça, e se percebes
que é mesmo tsto que eu penso,
faze que Turno fuja a seu destino
que deste modo o prende, já que vai
minha benevolência a tais larguezas.
Mas se o perdão que pedes com esse ar
de súplica que tomas vai mais longe
e queres tu que toda a guerra mude
e que vá dirigida ao que é seu alvo,
então, Juno, esperança tua é vã. >>
Ela, porém, assim lhe diz :
432 VIRGÍLIO

«Ah se teu coração me desse mesmo


o que tua palavra não garante,
se fosse confirmada a vida a Turno !
Mas quê, ao inocente firme fica
qualquer fim bem cruel ou não entendo
o que de verdadeiro há nisto tudo.
Oxalá que ilusão me seja o medo
e que possa passar para melhor
o que esteja nas tuas decisões. »
Sem demora s e lança ela d o céu,
levando à frente um forte temporal
e de nuvem cingida até chegar
às tropas dos Troianos, a Laurento.
Então de vapor vago a deusa forma
um fraco vulto que semelha Eneias,
lhe dá dardos dardânios, um escudo
que se parece ao que usa, mais penacho
que ondeia na cabeça desse deus,
lhe dá palavras falsas, uma voz
que em nada participa da sua alma,
até mesmo lhe dando andar parelho.
Tudo como nas formas que, se diz,
se deslocam em voo além da morte
ou nos sonhos que temos nos iludem.
Pois lá vai esse engano até às linhas,
se atira triunfante, e com os dardos
ao Rútulo provoca lhe gritando.
Turno vem ao encontro disparando
de longe um dardo seu. Mas logo esse outro
dá meia volta e foge. Quando Turno
crê mesmo ser verdade aquela fuga
e que se furta Eneias ao que teme
assim lhe diz : «Para onde vais, Eneias,
tálamo prometido não evites,
a terra que procuras pelos mares
é este braço meu o que vai dar-ta. >>
Isto vociferando brande espada
e depois o persegue sem saber
como sua alegria o vento leva.
Ora, junto a rochedo, havia um barco,
com escadas e ponte para entrada,
que de Clúsio trouxera rei Osínio.
ENEIDA 433

Ali se refugia essa ilusão


que Turno julga Eneias e que segue
até chegar à proa do navio.
Aí a de Saturno corta amarra,
o barco leva em águas agitadas,
sempre Eneias fugindo, sempre Turno
acorrendo ao chamado de combate
em que aparece morto muito herói.
Num momento ilusão já não se esconde,
para as alturas vai, junta-se à nuvem,
enquanto no mar alto um turbilhão
envolve Turno numa fúria insana
por se ver impedido de batalha.
As mãos eleva aos astros e profere :
«Ó poderoso Pai, mereço assim
que sobre mim desabe esta desonra,
queres que este tormento assim me tome ?
Donde vim eu ! Até onde me levas ?
Voltarei eu a ver essas muralhas,
os valentes guerreiros que eram meus
e que assim abandono a morte infame ?
Até gemidos ouço dos que morrem !
Há terra que bem fundo me devore ?
Ó ventos piedosos, me arrastai
com este barco contra qualquer rocha
e me lançai em fundo tão oculto
que nem Rútulo ou sombra de desonra
possam jamais me vir a encontrar. >>
Enquanto fala, vai daqui, dali,
como que em vagas de alma ele flutua,
sem saber se se mate com espada,
a cravando no peito, ou se se lance
às águas em que está. Dá volta à costa
e novamente vai contra os Troianos.
Três vezes se esforçou por o fazer,
três vezes o deteve a grande Juno,
a Juno piedosa ante o delírio.
Por fim desliza, nada no mar alto
em que vaga e corrente o favorecem,
até ver-se levado ao burgo antigo
que de seu pai Dauno um dia foi.
Entretanto Mezêncio, move-o Jove,
434 VIRGÍLIO

na batalha intervém, cheio de ardor,


e se lança aos Troianos triunfantes.
Por sua vez as tropas dos Tirrenos
tomam o contra-ataque, vão ao homem
que sozinho os afronta e querem ver
esmagado por ódios e por dardos.
Ele, porém, se porta como rocha
que pudesse avançar no vasto mar,
de frente aos ventos loucos mais à vaga,
sujeita à violência de água e céu,
sem que em nada se abale a decisão.
Ao chão atira ele Hebro de que é pai
Dolicáon e, prontamente, vai Látago
e vai Palma, ligeiro no fugir;
Látago atinge pedra que parece
bocado de montanha, quanto a Palma
já rola pelo solo com jarrete
que cerce lhe cortou seu inimigo ;
dá as armas a Lauso que as envergue
e que os penachos ponha no seu elmo.
Logo a seguir, a vez do frígio Evantes
e depois a de Mimas, companheiro
de Páris que lhe tem idade igual.
Teano o dera ao mundo, ao pai Âmico
o passara depois, na mesma noite
em que a rainha filha de Cisseu
e prenhe de uma tocha pariu Páris.
Páris repousa em terras dos avós,
a costa laurentina possui Mimas
que dela não sabia e não cuidava.
Um tão forte animal, um javali,
expulso a dente de cão lá de seu Vésulo,
que tanto o protegeu com seus pinheiros,
talvez também com os pauis laurentinos,
e sustentado nos canaviais,
todo em si se contrai quando se vê
metido na armadilha dumas redes,
e rosna violento, sem ninguém
ter, quando o vê assim todo eriçado,
coragem de o matar chegando perto,
de longe dardo assesta sem se expor
e só para assustar grita o que pode.
ENEIDA 435

Assim também sucede com Mezêncio,


que doutros suscitou a justa raiva :
não há quem vá sobre ele ferro em punho,
a prudente distância soltam dardo
e não dão intervalo a seus clamores.
Mas faz Mezêncio como o javali,
que sem medo nenhum salta e assalta
o dente sobre dente faz soar
e sacode do couro os frouxos dardos.
Das terras mais antigas de Córito
Ácron, que era grego, tinha vindo,
deixando, por exílio, de casar.
Mezêncio o viu de longe a espalhar
a desordem nas tropas com penacho
encarnado e também com manto púrpura
que oferecido tinha sua noiva.
Como leão com fome que, em jejum,
já correu pelos campos de pastagem
e que súbito vê alguma cabra
ou um veado que seus paus agita,
sente um ânimo novo no seu peito,
abre a boca medonha, grave ruge,
a juba se sacode, salta então
e fica à presa preso, se estendendo
nessa carne aos pedaços sem que o sangue
lhe satisfaça a sede das goelas,
assim pula Mezêncio para o meio
do mais espesso que há em seus contrários.
Ácron tomba, os calcanhares batem
naquela terra negra em que caiu,
expira todo em sangue que correu
do dardo que em ferida se quebrou.
Mezêncio prosseguiu e não deixou
de derrubar Orodes que fugia,
mas não o fez de longe, a dardo ou lança,
foi em duelo de homem contra homem,
pela força das armas triunfante.
Por fim o derrubando ainda o tem
de pé fincado e lança a segurá-lo
quando a seus camaradas breve fala:
«Eis aqui está batido o grande Orodes,
um dos melhores nesta nossa guerra. »
436 VIRGÍLIO

Os companheiros canto de alegria


levantam em apoio. Mas Orodes,
já mesmo a sucumbir assim lhe diz :
«Alguém me vingará. Não ficarás
contente muito tempo, haja o que houver.
Tens um destino igual a este meu
e terás também tu a mesma terra. »
Entre um meio sorriso e violência
assim fala Mezêncio : «Por agora,
és tu quem morre e, no que me respeita
decide o pai dos deuses, rei dos homens. »
Depois arrancou lança d o vencido,
logo num firme sono o mergulhando,
com olhos a fechar-se em noite eterna.
Cedício a Alcátoo corta a cabeça,
Sacrator a Hidaspes e Rapo a Orses,
Messapo mata a Clónio, a Ericate,
a um por uma queda de cavalo
que sem freio seguia e tropeçou,
ao outro foi, porém, em luta a pé.
Ágis Lício também avança a pé,
mas o bate Válero em quem renasce
todo valor de seus antepassados.
A Trónio mata Sálio quase logo
por Nealces também vencido e morto,
morto, porém, por manha, pois de longe
vêm, sem ele as ver, a lança, a seta.
Já o terrível Marte torna iguais
dum lado e doutro as mortes e seus lutos,
já que os vencidos, como os vencedores
com o mesmo vigor vão ao combate,
pois nenhum jamais soube o que é fugir.
Os deuses, no palácio de seu Pai,
lamentam a vã raiva desses homens,
os grandes sofrimentos dos mortais.
Aí estão, face a face, Vénus, Juno,
vendo o da terra. Nela Tisífone,
sinistro exerce entre homens seu furor.
Aparece Mezêncio lá no campo
como se fosse alguma tempestade.
Assim marcha Oríon, se mete ousado
nas quietas funduras de Nereu,
ENEIDA 437

sempre, porém, com ombros fora de água,


ou então, já em terra, é um carvalho
cuja copa se perde pelas nuvens ;
assim Mezêncio avança as armas gigantescas .
Eneias, que o distingue entre os guerreiros,
naquela longa fila, se prepara
para a luta que vem. «É o meu braço
o deus que, com meu dardo, me protege.
É a ti, Lauso, que eu vou consagrar
as armas do bandido aí em frente :
serás tu o que tem troféu de Eneias. »
Assim que o disse lançou longe o dardo
que repelido foi por um escudo
e se cravou entre barriga, ilharga
do que já fora de Hércules, Antores,
que de Argos tinha vindo para Evandro
e ficara na terra italiana.
O desgraçado cai com a ferida
a outro destinada, olhando o céu
e se lembra, ao morrer, de Argos, a boa.
É então que seu pique joga Eneias,
atravessando escudo de três bronzes,
panos de linho, pele de três touros,
e por uma virilha penetrando.
Eneias, tão contente ao ver correr
o sangue de Tirreno, puxa espada,
ataca com a dor seu inimigo .
Lauso, ao ver o seu pai assim ferido,
solta um grito de dor e quanto choro.
«Não, não me vou calar ante um desastre
que assim te leva a ti a ser herói,
o que deve por nós recelebrar-se.>>
Vai o pai recuando passo a passo,
com o dardo espetado em seu escudo
e como que impedido no combate.
Logo o jovem se lança no duelo
e quando o vencedor já desferia
o golpe da vitória é ele que entra
a deter no lugar o próprio Eneias.
Os companheiros, vendo que este filho
o pai defende com o leve escudo,
lançam os dardos sobre seus contrários.
438 VIRGÍLIO

Eneias, furioso, toma abrigo.


Como se passa quando uma chuvada
de súbito rebenta em campo aberto,
e todos que trabalham põe em fuga,
mas fica em seu abrigo o viajante,
como se fosse em forte, quer se trate
de arriba que há em rio ou dum rochedo
a fim de retomar sua viagem
quando a chuva suspenda esse cair,
assim também Eneias se protege
duma chuva de dardos que lhe jogam,
sempre increpando, ameaçando Lauso :
«Porque é que vais correndo para a morte ?
Ousas o que ultrapassa tuas forças,
piedoso imprudente que tu és ?»
Lauso, porém, o brado não escuta
e só aumenta a cólera dardânia,
enquanto as Parcas fiam fim de vida.
Eneias brande poderosa espada
que leve escudo passa na defesa
e vai ferir a túnica de Lauso
que lhe fizera a mãe com ouro fino.
O sangue toda a banha. A vida, triste,
pelos ares retira para os Manes,
abandonando o corpo que animara.
Quando o filho de Anquises vira o rosto
do moribundo, olhou suas feições,
gemeu de piedade a mais profunda,
como um pai, ante aquela palidez.
« Coitado, que vou dar-te de ti digno ?
Pois piedoso Eneias dá-te as armas
que tanto te alegravam. Mas a ti,
eu aos Manes te dou, bem como às cinzas
de teus antepassados, se isso queres.
Mas mais em tua morte te consola:
caíste pela mão do grande Eneias. »
Exorta os seus que estavam hesitantes
e levanta do chão o pobre jovem
cujos cabelos sempre tão cuidados,
de sangue derramado se sujavam.
Entretanto seu pai, junto do Tibre,
se encostava a um tronco e procurava
ENEIDA 439

tratar sua ferida com as águas,


pendurado dum ramo o capacete
e depostas as armas pelo chão.
De pé, o rodeando, os escolhidos,
ele, debilitado, deixa a barba
no peito lhe pousar e só pergunta
que sucedeu a Lauso e pede a todos
que o tragam junto dele ou que lhe passem
as notícias do pai. Mas já lhe chega,
trazendo-o os camaradas, Lauso morto,
com enorme ferida, sobre as armas.
Pressente o pai a dor que vai sentir,
poeira deita em seu cabelo branco,
suas mãos ergue ao céu, pega no corpo.
«Terá sido, meu filho, em mim tão fundo
o gosto de viver que fui a ponto
de deixar se expusesse a tanto risco
a criança a que eu próprio dei viver?
Será que devo a vida à tua morte ?
Tua ferida a mim me conservou ?
É com esta desgraça que só hoje
começo duro exílio, que só hoje
chegou o golpe ao fundo que podia.
Afinal, ó meu filho, grande nódoa
eu te pus no teu nome, quando inveja
me levou a perder esse meu trono,
o ceptro de meus pais. O que eu devia
era sacrificar alguma coisa
à minha pátria, aos ódios pelos meus.
A tudo me devia ter eu dado
para com as mil mortes resgatar
esta vida de culpas que é a minha.
E continuo vivo, em luz, em homens.
Agora os vou deixar. » Assim dizendo,
apesar da ferida lhe tornar
muito penoso todo o movimento,
ordena que lhe tragam o cavalo
que era bem seu orgulho, seu consolo,
que lhe dera vitória em toda a guerra.
Como ele estava triste, lhe falou :
«Se muito é o que basta a nós mortais,
nós já muito vivemos, Rebe amigo.
440 VIRGÍLIO

Se hoje vencermos nós, tu levarás


a cabeça de Eneias com seu sangue,
odiados despojos que são seus,
e juntos vingaremos dor de Lauso.
Se nada conseguirmos neste ponto
é comigo que tu sucumbirás,
pois valente como és, não vais sofrer
em ti mandar a gente dos Troianos . »
Montou naquele dorso acostumado
com suas mãos de dardos carregadas,
capacete de bronze rebrilhante,
de crina de cavalo empenachado.
No combate se lança com seu peito
raivoso, envergonhado ao mesmo tempo.
Depois, em voz bem alta chama Eneias,
que logo o conheceu e lhe pediu :
<<Se assim o querem Júpiter, Apolo,
ataca tu primeiro » e, muito alegre,
toma da lança e vai ao seu encontro.
Gritou-lhe o pai de Lauso :
<< Como é que poderia temer-te eu,
depois que tu, com tanta crueldade,
me roubaste meu filho ? Só assim
podias tu vencer-me. Quanto à morte,
nenhum medo lhe tenho, quanto aos deuses,
também a nenhum temo. Vem então :
Estou pronto a morrer, mas, antes disso,
quero fazer-te oferta destes dons . >>
Atira um dardo, depois outro e outro,
procurando envolvê-lo. Escudo de ouro
com Eneias está, o defendendo.
Três vezes o cavalo vem de esquerda,
três vezes o ataca doutro lado,
sempre com dardo vindo ; como um bosque
cai tanto dardo em vão sobre seu bronze.
Por fim, já fatigado pelo esforço
de sacudir as armas que lhe chegam,
joga a lança à cabeça do cavalo
que, levantando as patas dianteiras,
corta o ar com os cascos, a seu dono
atira ao chão, depois lhe cai em cima,
com seu peso e de espádua deslocada.
ENEIDA 44 1

De Troianos, Latinos, o clamor


ao céu como incendeia com a fúria.
Eneias voa, arranca a sua espada
e grita : «Onde estará Mezêncio agora,
com sua valentia e raiva de alma?>>
O Tirreno, porém, ao céu olhando,
retoma sua calma e lhe replica :
«Porquê tanto increpar, tanta ameaça?
Nenhum crime a punir. Não vim aqui
nessa disposição nem foi assim
que Lauso contra ti se comportou.
Eu um rogo te faço, se és capaz
de atender inimigo que venceste :
o de que terra possa recobrir-me.
Muito bem sei que encarniçados ódios
os dos meus contra mim, me estão cercando :
afasta o furor deles e permite
que haja sepulcro meu e de meu filho. >>
Assim diz e recebe sem repulsa
o golpe duma espada na garganta.
Com o sangue correndo sobre as armas
é alma o que lhe sai do pobre corpo.
LIVRO XI

Aurora sobe, deixa o mar em baixo.


Preocupado Eneias com o tempo
de que tem que dispor para enterrar
os companheiros seus que foram mortos
e por quantos cuidados além deste,
não fique, e logo quando nasce o dia,
de cumprir as promessas a seus deuses.
O tronco dum carvalho sobre um monte
cobre com armas e com os despojos
sangrentos de Mezêncio, com penachos,
com os dardos quebrados, com couraças
em muito perfuradas ; toma o escudo,
que ata à sua mão esquerda, põe ao peito
espada de marfim, tudo em troféu
consagrando ao senhor de toda a guerra.
A seguir, rodeado pelos chefes,
e por todo o conjunto de seus homens,
camaradas exorta deste modo :
<<O mais alto está feito. Todo o medo
de parte vamos pôr. Eis os despojos
de Mezêncio vencido por meu braço.
O caminho se abriu até ao rei,
mesmo até às muralhas dos Latinos.
Evitemos a guerra pela calma,
prontos, porém, à luta se vier.
Logo que os deuses dêem o sinal,
deste campo saímos desfraldando
o que nos for insígnia, sem demora,
sem temor de batalha ou de conquista,
depois de sepultarmos nossos mortos,
esta honra lhes prestando em Aqueronte.
ENEIDA 443

Sejam nossas ofertas as supremas


que dedicamos aos valentes peitos
que esta pátria nos deram com seu sangue.
A Palas deporemos ali, tristes ;
valor não lhe faltou, hora sombria
o mergulhou em morte tão amarga.»
Chorando volta Eneias ao lugar
onde, guardado pelo velho Acestes,
que a Evandro Parrásio já servira,
jazia, morto, Palas, tendo em torno,
com um grande concurso de Troianos,
mulheres que eràm de Ílio e que os cabelos,
segundo o ritual tinham soltos.
Alta porta de entrada passa Eneias
e logo toda a gente ao céu eleva
seus gemidos, seus gritos, seus lamentos,
no palácio real ressoando.
Quando rosto de Palas viu sem cor,
com a ferida aberta em branco peito
pelo dardo de Ausónia, assim falou,
com doloridas lágrimas nos olhos :
<<Fortuna, pobre jovem, não deixou,
nesta hora de vitória para mim,
que estivesses presente e nosso reino
connosco visses, sendo vencedor,
ao que foi para ti o lar paterno,
como tanto o quis eu para teu pai,
quando tomei, por ele, este comando,
e me avisou da luta que haveria
com indomáveis homens desta terra.
Talvez agora esteja formulando
numa esperança vã todos os votos,
quando choramos nós seu filho morto,
já em paz com os deuses, quando ainda
leva ele as oferendas aos altares.
Pelo menos, Evandro, não recebes
alguém que, desonrado pela morte,
lamentarias tu ter escapado.
Que perda para Ausónia é esta nossa,
quanto com ela perdes, meu Iúlo. »
Logo que o lamentou, ordenou ele
que mil homens nas tropas escolhidos
444 VIRGÍLIO

o pobre corpo morto acompanhassem


e lhe prestassem a maior das honras,
juntando suas lágrimas de luto
àquelas que chorasse o próprio pai,
um pequeno consolo ao infeliz.
Outros armam com restos de carvalho
e ramos de arvoredo a padiola
com tecto de folhagem a dar sombra,
neste campestre leito deitam Palas,
como se flor fosse recolhida
por dedo virginal, violeta,
a de tanta ternura, ou um jacinto
com sua languidez de natureza,
sem que beleza alguma perca a flor,
mas já sem sustentá-la a terra mãe.
Depois manda buscar dois grandes panos
ricamente tecidos de ouro e púrpura
em que Sidónia Dido trabalhara
com alegria para o próprio Eneias.
Cheio de dor com um envolve o corpo
e como com um véu cobre o cabelo
que vai ser consumido pelo fogo.
Junta todo o despojo que tomara
dos vencidos Laurentes num cortejo
em que também cavalos, armas entram .
De mãos atrás das costas seguem homens
que ele quer enviar à sombra eterna,
para espargir as chamas com seu sangue ;
revestidos das armas inimigas
levam os chefes troncos de que constam
seus detestados nomes. Vem também
infortunado Aceste, já tão velho,
que bate com os punhos no seu peito
ou o seu rosto arranha com as unhas
ou se estende no chão em desespero.
Trazem ainda o carro que está tinto
com o sangue dos Rútulos. Depois
é Éton, o cavalo das batalhas
que avança despojado das insígnias
e derramando lágrimas nas faces .
Outros legam a lança, o capacete,
pois Turno, vencedor, o resto tem.
ENEIDA 445

De tudo uma falange se formou


de Troianos, Tirrenos e de Arcádios
com suas armas para o chão viradas.
Depois de terem começado a marcha,
Eneias se detém e, com gemido,
com um alto gemido, assim lhes fala :
«Nós agora partimos, que outros choros
nos estão reservando feios destinos,
os destinos das guerras a travar.
Um adeus a ti, Palas. Para sempre.»
E, sem dizer mais nada, se dirige
para as altas muralhas de seu campo.
Da cidade latina tinham vindo,
com ramos de oliveira quem pedia
que lhes dessem os corpos dos que as armas
tinham enchido toda a terra à volta
e que lhes permitissem sepultá-los
em túmulo a erguer ; não há mais luta
quando alguém é vencido e já perdeu
o poder contemplar a luz do céu.
Procuraram Eneias os que dantes
chamava de hospedeiros ou de sogros.
Acolhe o rei, benevolente, o rogo
que justo ele julgava, e depois disse:
«Que pouca sorte vos meteu na guerra,
assim nos recusando como amigos ;
para os mortos a paz vindes pedir,
quando eu queria dá-la, mas aos vivos,
aos que livres estão do querer Marte.
Não foi para isto que abordei aqui,
destino me marcou lugar e tempo,
não quero eu combater vossa nação.
Hóspedes fomos nós de vosso rei,
mas tudo ele esqueceu e preferiu
nas armas de seu Turno confiar.
É Turno quem devia ter morrido,
como era de justiça. Se queria
com a guerra acabar, bater Troianos,
comigo é que devia ter lutado
e venceria o que tivesse um deus
ou sua valentia a protegê-lo.
Agora ide, fazei os funerais
446 VIRGÍLIO

de vossos infelizes cidadãos. »


O disse Eneias, eles, em silêncio,
ficaram entreolhando-se no grupo.
Então o velho Drangas, o que sempre
a Turno se opusera como em ódio,
sua boca descerra e fala assim :
«Pela fama és tão grande, pelas armas
ainda maior és, herói troiano.
Com que méritos ia o que sou eu
a dizer-se no céu o teu igual ?
Seria na justiça ou nas batalhas ?
Nós, gratos, à cidade levaremos
tudo que nos disseste e que nos deste.
Se Fortuna vier em nossa ajuda
maneira encontraremos de juntar-te
a que procure Turno outro aliado.
Teremos muito gosto em ter vizinhos
os muros que Destino mesmo quis,
e para a nova Tróia vamos nós
trazer-vos toda a pedra que é precisa. »
Todos os seus lhe dão ao que dissera
um murmurar de apoio e de certeza.
Aproveitando a trégua desses dias,
Troianos e Latinos ficam juntos
sem perigo nenhum para ninguém,
e pelos bosques, pelos montes andam.
Aos golpes de machado soa freixo,
pinheiro abatem que ia até ao céu,
abrem as cunhas cedros de bom porte
e carro gemebundo traz ulmeiras.
Já voadora Fama leva lutos
que vão até Evandro, sua casa,
toda a sua cidade, quando há pouco
o que ela anunciava era o triunfo
que Palas alcançara na batalha.
Por um velho costume vão Arcádios
correndo para as portas com as tochas
que irão usar no grande funeral :
é a estrada de chamas após chamas
e até nos campos se lhes vê o brilho.
A tropa frígia que na frente vem
já seus lamentos junta aos que são deles.
ENEIDA 447

Vêm as mães chegando, com seus gritos


já como que incendeiam a cidade.
Nada, porém, pode reter Evandro
que ali anda no meio da multidão.
Palas na padiola jaz inerte.
Sobre o corpo, gemendo, lamentando,
se joga o velho num profundo choro.
E com dificuldade, pela dor,
são estas as palavras que profere :
«Não é, ó Palas, o que prometeste,
era maior prudência quanto a Marte.
Não é que eu não soubesse da atracção
que tem para um guerreiro o triunfar
no primeiro combate que sustenta.
Duras tuas primícias de ser jovem,
do gosto de brilhar no que inicia.
Não ouviram os deuses minhas preces.
E, querida mulher, feliz tu foste
na morte que tiveste, não sofreste
tão violento abalo como este é.
Mas eu, o pai, o que venceu Destino
enquanto vivo foi, não escapei.
Porque não me aliei com os Troianos ?
O s Rútulos m e agridem com seus dardos,
teria eu próprio dado a minha vida,
o que me levaria aonde estás,
a mim, que era culpado, não a Palas.
Não vos vou acusar a vós, Troianos,
nem de nossa aliança, nem de mãos
que muito se apertaram de acolher-vos ;
tinha a velhice a sorte que era sua.
Mas visto que uma morte prematura
aguardava meu filho, ah sim me alegro
por ter caído quando conduzia
os Troianos ao Lácio sobre os corpos
de tanto volsco que ele vitimou.
Nem poderia eu dar-te, a ti, meu Palas,
funerais como deu o pio Eneias,
com ele os nobres Frígios, os Tirrenos
cujo troféu é o maior de todos,
o dos que tuas armas abateram.
Estarias também, Turno, de pé,
448 VIRGÍLIO

com os bronzes vestido, monstruoso,


se ele tivesse idade igual à tua,
com aquele vigor que os anos trazem.
Mas o que estou causando é que os Troianos
se estejam demorando a tomar armas.
Esta mensagem dai a vosso rei :
Se ainda me conservo nesta vida
que odiosa me é hoj e morto Palas
é só pelo que espero de teu braço,
o braço que nos deve, a pai e filho,
que Turno se nos dê ; tudo confio
aos méritos que tens, à tua sorte.
Não para viver mais nessa alegria,
mas para a dar nos Manes a meu filho. >>
Trazia já então Aurora a luz
benevolente aos olhos dos mortais,
os pobres dos mortais, para voltarem
a todo o seu trabalho, seu desgosto .
Já Eneias, Tárcon acendem piras
ao abrigo dum vale ; todos trazem
corpos dos seus, o que é costume antigo.
Com o fumo que sobe de seus fogos
em trevas mergulhando os altos céus,
três vezes, suas armas num rebrilho,
galoparam em torno das fogueiras
os cavaleiros tudo lamentando.
O choro se derrama em terra, em armas,
se ouvem gritos guerreiros e trombetas.
Ao lume atiram uns restos troianos,
capacetes, espadas, freios, rodas
que outrora se moviam com ardor;
trazem outros também e como oferta
os escudos que tanto conheciam
e dardos que não tinham tido sorte.
Matam-se bois à volta, os imolando,
se abatem porcos para os dar às chamas
ou ovelhas tiradas de seus campos.
Por tudo quanto é margem desse rio
velam os homens camaradas seus
que já fogos devoram ; permanecem,
sem poder afastar-se, mesmo doutros
que são apenas restos do que foram,
ENEIDA 449

até que venha vindo húmida noite


que de estrelas ardentes céu pontua.
Também pobres Latinos, por seu lado,
acendem tantos fogos funerários,
enterram muito corpo, outros transportam
para as aldeias perto ou à cidade,
outros queimam sem honras e sem nome,
o prado se ilumina de fogueiras .
Pela terceira vez desponta o dia,
do firmamento expulsa as frias sombras ;
sempre de luto, cinza em monte abatem,
recolhem ossos junto com carvão,
depois os cobrem com tépida terra.
Mas agora é nas casas da cidade
de opulento Latino que mais fortes
ressoam gritos, expressão de dor,
com mães, irmãs e noras tão amadas
que lamentam crianças cujos pais
nessa funesta guerra foram mortos,
a terra que em paixão Turno acendeu.
Era ele quem devia resolver,
pela luta a travar, toda a questão,
já que desej a ser o rei de Itália,
ambicioso das mais altas honras .
Drances, pela dureza, agrava as queixas :
era Turno, e só ele, quem devia
reabrir o combate. Mas há outros
que a Turno favorecem ; se respeita
o nome da rainha que o protege,
a fama que lhe trouxe a quantidade
e troféus levantados por seu braço .
No meio do movimento, do tumulto,
chegam embaixadores que já voltam
de estar com Diomedes na cidade
e trazem as respostas que ele deu.
Em despesa e trabalho gasto grande,
mas, na verdade, nada conseguido,
nem realmente houve ouro, houve presentes
ou preces que alcançassem resultados.
Outras armas tem Lácio que buscar
ou então fazer paz com os Troianos.
O próprio rei Latino desanima;
450 VIRGÍLIO

Eneias é um homem do Destino,


a vontade do céu com ele está ;
a cólera dos deuses, campas frescas
são mais do que bastantes a prová-lo.
Em seu grande palácio reuniu
o supremo conselho dos maiores
por ordem própria sua os convocou.
Juntos enchem as ruas que vão ter
ao palácio real. É mais idoso,
mais poder o que tem o rei Latino ;
se senta no meio deles, pensativo .
Chama os embaixadores que voltaram
dessa Etólia cidade e lhes pergunta
que resposta tiveram, nas palavras
que foram empregadas, e sem falhas .
O silêncio se faz a toda a volta
e Vénulo, por ordem recebida,
desta forma inicia a sua fala :
«Já vimos, cidadãos, rei Diomedes,
e fortaleza de Argos também vimos
e já a muita coisa ultrapassamos
depois que começou o nosso caso,
a mão tomamos de quem perdeu Ílio.
Nos campos lapígios, vencedor,
fundou ele Argiripa, com o nome,
que já vinha da terra dos avós.
Pois logo que nos deu ele audiência
os presentes lhe demos que levamos,
lhe dissemos o nome e de que terra,
e da guerra trazida por contrários,
mais a causa que nos trazia a Arpos.
Nos escutou, disse, benevolente :
«Nação de sorte, reinos de Saturno,
ó antigos Ausónios, que Fortuna
agita a vossa apaz, vos leva à guerra
de que nada de certo vós sabeis ?
Com sacrílego ferro profanámos
os campos de Ílio, já não vou falar
dos males que sofremos nos combates
junto às suas muralhas, dos guerreiros
recobertos por águas do Símois,
dos castigos de crimes pelo mundo,
ENEIDA 45 1

nós, um punhado de homens, de que Príamo,


até ele, teria piedade.
Bem o sabem estrelas de Minerva,
os recifes eubóicos, Cafareu.
A seguir à campanha longe fomos,
Atrida Menelau fica exilado
nas colunas proteicas, viu Ulisses
os Ciclopes dos montes que são de Etna.
Irei falar de N eoptólemo ?
E dum Idomeneu e seus Penates
ou dos Lacras em sua costa líbia?
Mesmo o rei de Micenas, que era o chefe
de Aqueus, foi abatido no palácio
por execranda esposa ; Ásia vencida
era expiada num amor culposo.
Era preciso contra mim os deuses
altares de meus pais me recusarem
e me não permitirem que revisse
o meu lar na beleza de Cálido ?
Agora, além de tudo, me perseguem
prodígios horrorosos, os amigos
transformados em ave e com seus gritos
me porem triste perto de rochedos ?
Mas era tudo o que devia eu ter
por armado atacar seres celestes
e ter ferido a mão da própria Vénus .
Não quero acompanhar-vos nessa guerra,
lutar contra Troianos após Pérgamo.
Não me dão alegria essas desgraças.
Os presentes trazeis daquelas terras
que são de vossos pais ; as dareis antes
ao grande Eneias que conheço bem ;
lutámos corpo a corpo. É espantoso
quando com sua altura impele escudo
e quando joga a lança é como raio.
Direi ainda que se a terra de Ida
tivesse produzido dois como ele
tinha vindo Dárdano até Ínaco,
hoje seria a Grécia a que chorava
ao chegar o Destino em rota inversa.
Em todo o tempo que passei em Tróia,
indomável cidade, foi Heitor,
452 VIRGÍLIO

e foi Eneias quem levou decerto


a só haver vitória ao décimo ano.
A coragem dos dois aos dois impunha,
as armas deles dois eram melhores,
mas Eneias primeiro em piedade.
De sua mão a paz vos traga à vossa,
contra quem pode mais nada de ataque. >>
Eis o que ele nos disse, bom rei nosso,
estas são as respostas doutro rei,
o que ele achou ser esta grande guerra.
Mal tinha acabado o embaixador,
um tremor percorreu esses Ausónios
e foi a emoção de peito a peito.
Exactamente como nas torrentes,
quando um penedo cai, refervem águas
e se abala no choque toda a margem.
Quando a calma voltou, invoca o rei
de cima de seu trono os deuses todos,
depois começa assim a sua fala :
«Ü que nós deveríamos, Latino,
era ter decidido bem mais cedo,
em vez de convocar este conselho
quando há um inimigo junto aos muros.
Esta guerra de agora é importuna,
pois que nós a fazemos, cidadãos,
contra quem é dos deuses e de forças
que ninguém vence, que batalha alguma
os pode fatigar, ou pôr em paz.
E se alguma esperança vós tivestes
em ajuda de Etólios, deixai disso,
para nós, esperança, só em nós.
Já somos poucos como bem o vedes,
o resto por aí foi abatido.
Olhai : tendes na mão tudo o que sobra.
Não acuso ninguém, houve valor,
tanto quanto possível, todo o reino
se meteu na peleja. E vos direi
o que pensando estou, e duvidoso,
sobre o que deveremos nós fazer.
Serei breve, tomai bem atenção.
Sou eu o dono, desde há muito tempo,
dumas terras à beira do rio Tusco
ENEIDA 453

e que vão para os lados do poente,


mais longe que a fronteira dos Sícanos.
Aí semeiam Rútulos, Auruncos,
com arado aí rasgam duros montes
ou ao que há de pior levam rebanhos.
Com pinheiros no cimo de montanhas,
tudo isto cederemos aos Troianos .
e sejamos amigos, companheiros,
aliados nós todos, leis iguais.
Que lá se instalem eles, que lá fundem
a cidade que tanto querem ter.
Mas se preferem ir a lugar outro,
tratar com outros povos, pois o façam,
se podem ir embora. Arranjaremos
vinte navios de madeira itálica
e navios façam eles se puderem.
Toda árvore possível temos nós,
de quilhas dirão eles forma e quantas,
bronze também terão, os nossos braços,
estaleiro igualmente, tudo, enfim.
Para lhes transmitir nossa proposta
e para se firmar qualquer tratado
lhes mandarei eu uns cem latinos,
do melhor escolhidos. Com seus ramos
que já sejam de paz e com presentes,
com os talentos de ouro e de marfim
e com a sela e trave deste reino.
Isto discutireis e proporeis
o que possa cansaço aliviar. >>
Mas Drances se levanta furioso.
Com inveja de Turno pela fama,
sentia-se incitado a ser amargo ;
era largo de bens e bom de língua,
mas no combate era de gelo a mão,
em conselho sabiam excelente,
tirando seu partido das discórdias ;
da mãe tinha a nobreza que o ligava
à gente de bom tom, mas de seu pai
ninguém sabia nada de seguro.
Levanta-se ele então e com palavras
vai aumentar agravos e recalques :
«Para nós, meu bom rei, não há mistério
454 VIRGÍLIO

e nossa opinião não é precisa.


Sabem todos, e bem, o que fazer,
mas ânimo não têm de o dizer.
Que nos dê liberdade de falar
e se não julgue assim tão importante
aquele que é de auspícios infeliz
e de costumes assim tão funestos,
o que não poderá jamais calar-me,
embora me ameace com a morte ;
por ele pereceram chefes nossos,
que eram perfeitos guias da nação,
por ele anda de luto uma cidade
só por ser provocante quanto a Tróia,
fiado no seu jeito de fugir
e nas armas que ao céu atemorizam.
A todos os presentes que disseste
deveremos nós mandar para os Dardânidas
poderias, bom rei, juntar ainda,
sem que te impeça violência alguma,
juntar uma só coisa, tu que és pai,
oferecer a filha ao grande genro,
celebrar casamento dela digno,
prender com laço eterno a nova paz
que pensamos e tanto desejamos.
Mas se é coração nosso que tem medo,
vamos falar com ele e lhe pedir
que favor nos dispense sua boca;
que ceda a nosso rei e dê à pátria
os direitos que julga que são dele.
Mas com que autoridade tanta vez
nos pões tu em perigo, sem defesa,
lanças concidadãos nesses teus riscos,
tu que és ao Lácio a causa de tais males ?
Turno, nada de bom vem duma guerra,
é paz que te pedimos para todos,
a paz que dela própria é garantia.
Sou eu, que sem razão odeias tu,
o que tanto me faz, devo dizê-lo,
sou eu quem a ti vem, a suplicar
que tenhas piedade de nós todos,
que teu orgulho ponhas tu de lado
e por fim, pois vencido, te retires.
ENEIDA 455

Já derrotas nos deram muita morte,


já muito território é um deserto.
Mas se fama te move e tens firmeza,
se palácio tu queres ter em dote,
ganha coragem e vê se te aguentas
de peito forte face ao inimigo.
Então, para que Turno possa um dia
ter esposa real, somos nós,
gente de que ninguém quer saber
que temos, mortos, de cobrir os campos ?
Mas, se tens na verdade alguma força,
se há em ti algum Marte de teus pais,
olha bem para mim, que aqui te chamo. »
Ao ouvir isto enfureceu-se Turno
e de dentro do peito lhe saiu
um profundo gemido. Assim lhes disse :
«Drances, tu gostas mesmo de falar,
sobretudo se a guerra exige pulso.
És sempre nos discursos o primeiro,
contanto que as muralhas te protejam
e que não corra sangue em nossos fossos.
Então fala o que queiras, pois que podes,
dizer que tenho medo, se te agrada,
já que teu braço de troianos mortos
cobriu todo este campo, tão famoso
o tornando os troféus a ti devidos.
Bem fácil é sabermos do que faz
tão viva valentia. Os inimigos
tens junto a nossos muros. Porque hesitas ?
Será que só tens Marte na palavra,
na palavra de vento ou nos teus pés
tão hábeis em fugir nas horas certas ?
Eu derrotado ? Meu nojo, eu derrotado
quando se vê o Tibre cheio de sangue,
e de sangue troiano, ou se extinguiu
dinastia de Evandro, ou os da Arcádia
já não podem dispor de qualquer arma?
Não é, decerto, o que de mim diriam
ou Bítias ou o Pândaro gigante
ou esse milhar de homens que, num dia,
ao Tártaro mandei de lá dos muros,
ou fechado nos campos de inimigo.
456 VIRGÍLIO

Não há ganhos na guerra ? És um demente,


és oráculo bom para Dardânios
ou para o que tu andas a fazer.
Não te detenhas tu : atemoriza
tudo o que possas, dá nova coragem
à nação já vencida duas vezes,
vira ao contrário as armas dos Latinos.
Os chefes mirmídones bem vão fugir
perante as armas frígias, como o fazem
o filho de Tideu ou esse Aquiles
que a Larissa pertence. O rio Áufido
retira suas águas do Adriático.
Finge esse teu fervor dos feitos meus,
artífice excelente em enganar
e fazer de seu medo um crime meu.
Não fujas tu, porque, da minha parte,
jamais irei a te arrancar essa alma
que para nada a quero . De ti fica
e para todos que contigo estejam.
Mas agora, rei pai, a ti falando,
em resposta à consulta que fizeste,
direi que se não esperas nada
do que são nossas armas, se a derrota
assim nos abateu e se a Fortuna
para sempre abandona a nossa causa,
devemos certamente pedir paz,
erguer ao inimigo fracas mãos ;
mas, quanto a mim, se ainda nos sobrasse
alguma coisa do que foi valor,
melhor será que pense ser feliz
e ter a recompensa de seu gesto
o que não estará em tal vergonha
por ter ele afrontado os inimigos
e por, ao cair morto sobre o solo,
o morder com os seus raivosos dentes.
Mas se temos ainda algum socorro,
se nossa juventude está intacta,
e se nos podem ajudar também
povos de toda Itália à nossa volta
e se troianos derramaram sangue
para alcançar a glória que é a deles,
porque vamos parar logo à entrada
ENEIDA 457

num abandono que é uma desonra?


Porquê este tremor de todo o corpo
antes que soe a voz duma trombeta?
Às vezes basta um dia ou algum tempo
para que tudo mude e rompa a luz
e regresse a Fortuna que sumira
e seja uma desgraça passageira,
logo recuperado um infeliz.
Não nos ajudarão Etolo e Arpos,
mas Messapo teremos e Tolúmnio,
os chefes que mandaram tantos povos.
Vale a pena pensarmos nós a glória
que seguirá no Lácio e nos Laurentes
a essa maravilha de guerreiros.
De nação volsca temos nós Camila
com esse seu esquadrão de cavaleiros
com esses batalhões de vivo bronze.
Se, porém os Troianos me reclamam,
a mim, sozinho, para seu combate,
se vós estais de acordo, se convém,
que se arrede o que sou contra o futuro,
não detesta a vitória as minhas armas,
de minhas mãos se não afaste a forma
de intentar eu tudo o que for possível,
mesmo que ante mim venha um outro Aquiles
com as armas forjadas por Vulcano.
Eu, Turno, dediquei a minha vida
a Latino, meu sogro, e vos direi
que sou tão corajoso como foram
os grandes que tivemos no passado.
A mim me chama Eneias ? Pois que venha.
Se a cólera dos deuses nos for contra
ou se a nós nos esperam honra e fama,
não é Drances que é digno de ser alvo. >>
Enquanto se batiam nestas zangas
movia Eneias campo e suas forças .
A notícia que veio provocou
no palácio real e na cidade
acesso de temor. Já os Troianos
e tropas dos Tirrenos, tudo em forma,
avançavam em linha de batalha
ante o Tibre, seu ponto de partida,
458 VIRGÍLIO

e para atravessar as terras chãs.


A grita se levanta até aos céus,
impaciente o povo pede as armas,
tristes os velhos choram e murmuram.
Tudo lembra o clamor de bandos de aves
pelos cimos dum bosque ou quando os cisnes
os pauis do Padusa enchem de som.
«Muito bem, cidadãos», e Turno grita,
«OS que mais gostam de ficar sentados,
louvem a paz então, os outros venham,
tomem as armas pelo nosso reino. »
Sem mais falar s e larga d o palácio
e vai dar ordens : «Tu, Vóluso, manda
que se armem os manípulos dos Volscos,
traze também os Rútulos. Messapo,
depois tu, Cora, com o teu irmão
dispões os cavaleiros pelos campos.
Defendam os acessos da cidade,
outra parte nas torres. O restante
comigo marche para o que eu disser. »
Tudo corre à muralha. Até Latino,
venerando Latino, adia assuntos
e se censura por não ter chamado
como devia seu oposto Eneias,
à cidade o trazendo como genro.
Trincheiras vão cavando junto às portas,
outros carreiam pedras e madeiros
e se ouve a voz sangrenta da buzina.
Mulheres e crianças, reunidas,
coroam as muralhas, esperando
o supremo chamado que pressentem.
A rainha, de carro, leva a Palas
com muita companhia as oferendas,
vai com ela Lavínia, a disputada,
com os seus belos olhos baixo, humildes.
As mãos de incenso vão enchendo o templo
e tristemente invocam : «Tu, ó deusa,
que és senhora da guerra, quebra o dardo
desse frígio ladrão. Tritónia virgem,
no chão o deita, de cabeça em prece,
ao pé das altas portas, esmagado. »
Turno, com pressa e raiva, está j á pronto
ENEIDA 459

para entrar em combate. Brilha a cota


com escamas de bronze, tem as pernas
com ouro protegidas ; prende espada
mesmo antes de ter posto capacete,
desce correndo de ânimo exaltado
como se já aos outros os tivesse.
Parece ele um cavalo que se livra,
se lança para os pastos, para as éguas,
ou para se banhar no rio que sabe,
e relincha, alta a fronte, a crina solta.
Vem Camila, com Volscos, ao encontro,
são eles sua guarda; ao pé da porta,
se atira esta rainha da montada,
o mesmo faz escolta com que chega.
«Se na coragem pode confiar-se
deixa-me, Turno, pôr à prova a minha,
atacando os de Eneias e barrando
o caminho aos cavalos dos Tirrenos.
Irei à frente, posta a todo o risco.
E tu com teus infantes guarda os muros
e dirige a defesa da cidade. >>
E Turno lhe responde, olhar fitando
a temerosa virgem : «Grato estou,
ó orgulho de Itália, mas agora,
já que o ânimo à luta assim te impele,
deixa que dividamos o trabalho.
Por tudo que sabemos, manda Eneias
à frente cavaleiros de armas leves,
a nos correr os campos, enquanto ele
vem mais por cima, atacará cidade.
No bosque lhe preparo uma surpresa,
tapando-lhe o caminho dos dois lados.
Recebe tu Tirrenos a cavalo,
contigo tens Messapo que não cansa,
os batalhões latinos e Tiburno.
E tomas tu conta do comando. >>
Assim tendo falado, anima à luta
os chefes aliados com Messapo.
Há por ali um vale todo em curvas
próprias às emboscadas, com arribas
cobertas de arvoredo o protegendo.
No cimo da montanha é chão o solo
460 VIRGÍLIO

com abrigos dos quais podem rolar-se


os pesados penedos ou sair-se
ao ataque imprevisto. O j ovem chefe
para ali se dirige numa rota
que lhe é bem conhecida, se escondendo
no bosque traiçoeiro que a guarnece.
Na morada dos deuses, entretanto,
a filha de Latona chama a si
a Ópis, a mais pronta e decidida
das virgens consagradas que são dela,
e lhe diz, abatida, estas palavras :
« Camila vai entrar em dura guerra,
se cinge de armas nossas, mas inúteis,
ela que me é querida entre vós todas.
Este amor de Diana não é novo
nem é novo o suave que lhe é ele.
Métabo, que expulsaram de seu reino
em virtude dos ódios despertados
por violento ser, trouxe consigo,
ao fugir da cidade de Privemo,
atravessando as lutas duma guerra,
uma filha pequena, companheira
daquele exílio que ia começar.
A mãe era Casmila e por um corte,
ligeiro corte se chamou Camila.
Levando-a nos seus braços tentava ele
chegar até aos bosques solitários
já que dardos cruéis o perseguiam,
visto espalharem Volscos os soldados.
No meio de sua fuga o Amaseno,
rasava suas margens com as águas,
em torrentes de espuma, j á que a chuva
dumas nuvens desfeitas não cessava.
Pensou lançar-se a nado, o desviou
amor de sua filha tão querida.
Tomou então o dardo que levava,
que era enorme, maciço, todo em nós
e de madeira endurecida ao lume.
A isto junta a filha, resguardada
por cascas e cortiças desse bosque,
na mão balança tudo e diz aos astros :
"Virgem Latónia, pois no céu tu moras,
ENEIDA 46 1

esta pequena serva eu te consagro,


à vida vai com este voo nos ares,
fugindo a inimigos. O que peço
é que tu, deusa, a tomes para ti,
aquela que confio às incertezas. "
Puxando o braço atrás lança ele o dardo,
as águas ressoaram, sobre o rio
ia a filha em seu curso, mas Métabo,
com todos os seus homens a consegue,
das ervas a levanta e logo à Trívia
a dedica ele ainda sobre o dardo.
Nunca cidade alguma acolhe o pai
que altivo não aceita ser vencido
e que, pastor, a vida vai passar
nos montes solitários que aí estão.
No mato nutre a filha com o leite,
com o leite selvagem duma burra,
tenros lábios à mama habituando.
Mal a criança começou a andar
pôs-lhe ele ao ombro com as frechas arco,
sem ouro na cabeça, sem vestidos,
com a pele dum tigre só coberta.
Com mão ainda branda joga dardo,
a funda sabe usar e com as setas
abate grou estrimónio e cisne branco.
Muitas mães a quiseram para nora,
mas ela se contenta com Diana,
a fiel de amor ser ela a virgem.
«Bem a queria eu livre da guerra,
sem desferir ataques aos Troianos,
e preferia, tanto lhe quero eu,
que ficasse só minha companheira.
Mas o Destino obriga. Então, ó ninfa,
desce do céu e vai às terras lácias,
entra numa batalha tão infausta.
Tira de meu carcás uma só seta,
ela me vingará nalgum guerreiro,
ou de Itália ou de Tróia, da ferida
que profanar o corpo consagrado.
Depois, em nuvem, a tiro eu dali
e com as armas que ninguém lhe rouba
a deponho na campa em sua pátria. »
462 VIRGÍLIO

Assim foi dito e logo a ninfa em ar


desliza pelo céu, o corpo envolto
em negro turbilhão ; ninguém a via.
Se aproxima dos muros entretanto
toda a força troiana com etruscos
que ali servem de chefes, cavaleiros,
e todos em estrita formatura.
Os cavalos relincham, batem casco
pela campina fora procurando
libertar-se da rédea que os domina.
Muita lança também, e campo inteiro
se reveste de brilhos chamejantes.
Estão agora as tropas frente a frente,
com Messapo seus rápidos latinos,
Coras com seu irmão e, com Camila,
por ela comandadas, suas alas.
Uns aos outros apontam eles armas,
há um surdo rugir em todo o campo.
Depois, súbito, um grito, aí vão eles,
furiosos cavalos e guerreiros
em duelos de dardos e de lanças,
tudo cerrado em névoa de tormenta,
com sombra, que não há, cobrindo o céu.
Os primeiros a chocar a toda a força
são Tirreno, Aconteu, os seus corcéis
com tal ímpeto vão que os ossos quebram
quando os corpos embatem peito a peito.
Aconteu, desmontado, como sendo
atirado por funda, vai ao ar
e, projectado, logo sua vida
no vento se dispersa, não há mais.
A desordem triunfa, num instante,
os Latinos recuam e já fogem,
jogam fora os escudos e se viram
do lado das muralhas da cidade.
Troianos os empurram, sendo Asilas
o primeiro a lançar-se nessa carga.
Já quase tinham alcançado as portas
quando os Latinos se dominam, voltam,
pondo inimigo em fuga. É como um mar
que em balanço de abismo corre à costa,
depois foge das rochas, rola areia,
ENEIDA 463

se afasta do que é praia ou é arriba.


Duas vezes Etruscos jogam Rútulos
contra a muralha em frente e duas vezes
sobre si mesmo vêm com escudos
a proteger os dorsos que se expõem.
Mas, em terceiro assalto, quando os homens
já se confundem todos uns com outros,
a luta é corpo a corpo entre inimigos
que, de algum modo sós, ali combatem.
Só se ouvem os gemidos dos que acabam,
oceano de sangue engole as armas,
cavaleiro e cavalo morrem juntos,
só a dura batalha ali existe.
Em frente a Rémulo, Orsíloco se bate,
fere a dardo o cavalo que, raivoso,
ergue as patas da frente e, na pancada,
o desmonta num golpe, o joga ao chão .
Catilo vence Iolas, logo Hermínio ,
gigante na coragem, corpo e ombros,
de cabeleira fulva, espáduas nuas,
as feridas não teme tanto é forte
o peito que resiste, mas um dardo
vibrando o atravessa lado a lado,
a dor lhe dobra o corpo, um sangue negro
corre por toda a parte. Vence à vida
o ferro mais agudo que lhe atiram.
Morrer com honra é só que lhe resta.
No meio da matança uma Amazona
salta para o combate flanco à vista,
Camila, de carcás, é quem é ela.
Ora dispara dardos ora empunha
poderoso bipene, tendo ao ombro
os ouros de seu arco, para o resto
as armas de Diana. Se a persegue
algum dos inimigos corre e vira
e na fingida fuga lança as setas.
Em tonro dela estão as suas virgens,
Latina, Tula e Tarpeia, a que já brande
um machado de bronze. São de Itália,
a divina Camila as escolheu,
e como guarda de honra as considera,
para a paz lhe servindo e para a guerra.
464 VIRGÍLIO

São mesmo assim as Amazonas traCias


quando vão marginando o Termodonte
ou rodeiam Hipólita na luta,
Pentesileia às vezes, se aparece
essa filha de Marte na batalha
a seu carro de guerra governando.
Ululante tumulto o das guerreiras
com seus pulos de ataque enquanto ag1tam
os escudos com pontas como luas.
Áspera virgem, quem será aquele
que primeiro derrubas com teu dardo
ou que te fica para fim de encontro ?
Quantos corpos estendes tu no chão ?
O primeiro é Eneu, filho de Clício,
a quem ela com dardo rasga o peito :
vomita sangue o pobre e, já morrendo,
morde a terra com dores da ferida.
Em cima dele vão Págaso e Líris
um que tinha caído do cavalo
e procurava segurar as rédeas,
o segundo que vinha levantá-lo.
A estes dois junta ela logo Amastro,
que nascera de Hípotes, e, com lança,
vai atrás de Tereu, Crómis, Harpálico
e de Demofoonte. A cada dardo
que ela lhes vibra e joga cai um frígio.
Lhe surge ao longe o caçador Órnito
com muito estranhas armas : nas espáduas
usa uma pele que arrancou a touro
e, como capacete, boca aberta
e dentes rebrilhantes de brancura,
é cabeça de lobo o que ele pôs.
Dum cajado com ferro está munido
e vai e vem por entre os esquadrões
que domina de cima pela altura.
Quando rédea voltava nada custa
que Camila o surpreenda na carreira,
o fura num instante e diz com ira :
«Julgavas tu, Tirreno, que era à caça
que andavas tu nos bosques ? Te enganaste,
pois que chegou o dia de mulher
dar a justa resposta a teu bradar.
ENEIDA 465

Tu vais levar aos Manes dos avós


título que te orgulhe : Se caíste
foi a ferro brandido por Camila. >>
Sem intervalo algum abate Butes,
Orsíloco, troianos gigantescos,
a um lhe mete a lança entre a couraça
e um elmo que levava, no luzir
que era o de seu pescoço e tinha preso
escudo de defesa ao lado esquerdo.
A Orsíloco foge, ele a persegue,
ela, porém, se escapa, dentro vai
e já persegue o seu perseguidor.
Ao se ver apanhado solta prece,
mas ela não atende e com machado
lhe quebra armas e ossos, sobre o rosto
são miolos que escorrem da cabeça.
Mais adiante outro guerreiro encontra
que detém num espanto de surpresa :
é ele o filho de Auno, de Apeninos,
e que seria o derradeiro lígure
se destino deixasse que fugisse.
Ao ver-se sem escape usa umas manhas :
<<Que maravilha vir uma mulher
fiada no vigor de seu cavalo.
Mas agora não foges . Apeados,
muito perto daqui nos bateremos,
aí aprenderás quem vai ficar
com a fama dum vento que se evola. »
E é isto que ela faz : cheia de raiva
entrega seu cavalo a companheira,
se posta perante ele, espada nua,
e, na mão, seu escudo sem adorno.
Ao vê-la assim, dá ele meia volta,
esporeia o cavalo numa fuga.
<<Ah Lígure sem fé, seu presumido,
igual ao que em vós é habitual.
Mas nada conseguiste, não é vivo
que voltarás ao refalsado Auno . >>
Mais rápida que fogo corre a virgem,
ultrapassa o cavalo, agarra o freio
e se vinga no sangue detestado.
Tão singelo foi tudo como quando
466 VIRGÍLIO

se desprende um falcão de alto rochedo


e pomba agarra em elevada nuvem,
segura-a bem, a despedaça à garra
e logo sangue e penas arrancada,
pairam pingando nos etéreos céus.
Lá do cimo do Olimpo onde se senta
olha quem semeou homens e deuses
atento ao que no mundo se passava ;
incita ele a lutar Tárcon Tirreno,
a cólera lhe infunde com empenho.
Tárcon monta a cavalo entre os guerreiros
que recuam, também por entre os mortos,
anima a todos venham combater,
a cada qual chama ele por seu nome,
às hesitantes tropas dá firmeza.
« Tirrenos, que temor assim vos põe,

vós que vos não queixais, embora lentos,


que medo é esse que jamais tivestes ?
Homens, aqui, batidos por mulher !
A voltar para trás quando ela enfrenta ?
Para quê as espadas, nossos dardos ?
Só nas lutas de Vénus tendes alma ?
Só quando alguma flauta anima Baco ?
Só banquetes e taças interessam ?
Então aguardareis que vate venha
sacrifício anuncie em bosque sacro ? »
A o dizer isto à confusão s e atira
como para morrer, ataca Vénulo,
derruba-o do cavalo, ergue-o do chão,
em corpo a corpo o leva pelo campo.
Olha todo o Latino com que força
Tárcon já o não solta. Quebra dardo
de seu próprio inimigo e lhe procura
onde pode cravar-lho para a morte.
Tudo sucede como se fulva águia
voasse com dragão por ela preso
e lhe fincasse poderosa garra
enquanto a serpe com seu corpo ondula
e, ferida, sibila, resistindo,
mas o recurvo bico vale mais que ela,
nem as asas detêm o seu voo.
·

É assim que Tárcon levava a presa,


ENEIDA 467

dando exemplo aos Meónios, que lá vão.


Então Arrunte, obediente aos Fados,
Camila espreita e cuidadoso, calmo,
a segue sem falar; quando ela acaba
de derrubar alguém, puxa da rédea,
ao outro lado vira, sempre atento,
e tem o dardo pronto ao que lhe surja.
Por sua vez Cloreu, o sacerdote,
que se consagra ao culto de Cibele,
toda a atenção atrai com suas armas,
com seu corcel sobre o qual fio de ouro
prende escamas de bronze que o guarnecem ;
de púrpura vestido, o arco é lício,
de ouro também como é o capacete,
como é de ouro a fivela que mantém
as pregas de uma túnica de linho.
Talvez pensasse a virgem em tomar
essas armas troianas, pendurá-las
em divino sacrário. Ou talvez mais
em enfeitar-se com esse ouro todo.
Ou duma forma ou doutra só a ele
olhava no tumulto da batalha
sem se cuidar a si, apaixonada,
como mulher que era, pela presa.
Mas foi então que Arrunte que espiava,
o dardo balançou com prece aos céus :
«Apolo, deus supremo dentre os deuses,
Apolo que adoramos e que és guarda
do sagrado Soracte, sempre o pinho
arderá nas fogueiras que acendemos
e sempre calcaremos com os pés
um tapete de brasas ; Pai, concede
que da desonra nos lavemos nós .
Não é, deus, para mim que solicito
os despojos da virgem que eu abato,
já que outros feitos me darão um nome.
Se eu, porém, não a mato, voltarei
sem a glória que devo à minha pátria.>>
Febo ouviu numa parte o seu pedido,
mas outra a desprezou e deu aos ventos.
Poderia matar ele Camila
com súbito arremesso de arma sua,
468 VIRGÍLIO

mas não teria entrada em sua terra


com desejada fama. E tudo foi
como soprar os votos tempestade.
O dardo que lançou vibrou nos ares
e todo o Volsco olhou sua rainha ;
sem dar ela por nada, já o ferro
lhe penetrara o peito sob o céu,
e, varada, bebeu seu sangue virgem .
Companheiras acorrem, a sustêm
quando ia caindo ela para a frente.
Arrume, apavorado, pôs-se em fuga,
ao mesmo tempo alegre e temeroso,
nas armas que ficaram não confia
nem quer expor-se às que jogar a virgem.
A mesma coisa que acontece a lobo
que teme uma vingança e que se esconde,
bem longe de caminhos, na montanha,
quando matou pastor ou touro forte ;
consciente da audácia de seu peito,
ao bosque se dirige, ali se fica
com a cauda ocultada sob o ventre.
Da mesma forma Arrume, perturbado,
se furta a todo olhar e, satisfeito
por assim escapar, vai confundir-se
com todos os guerreiros na batalha.
Camila, moribunda, puxa o dardo,
mas está preso, fundo, entre as costelas .
Já desfalece, exangue, com os olhos
gelados pela morte, e no seu rosto
nem vestígio de cor. E, quase morta,
para Aca fala, companheira sua,
fiel entre as fiéis de sua idade :
«Pude lutar, irmã, mas a ferida
já não perdoa, tudo fica negro.
Depressa leva a Turno estas palavras,
que tome ele o lugar que deixo agora
e que afaste os Troianos da cidade. >>
E nisto larga as rédeas do cavalo,
desliza até ao chão e se abandona,
com um gemido parte para as sombras .
À volta dela um clamor se eleva,
até aos astros vai enquanto a luta
ENEIDA 469

mais renhida se torna, combatendo


os Troianos e chefes dos Tirrenos,
cavaleiros de Arcádia por Evandro.
Mas já há muito que Ópis, a de Trívia,
dos altos da montanha tudo vê :
quando Camila cai entre guerreiros
geme e murmura : «Virgem, que tortura
a da morte que sofres por ter vindo
lutar contra os Troianos. Foi em vão
que toda a vida foste de Diana
e sempre andaste com alj ava ao ombro.
Mas a rainha não deixou de honrar-te,
tu a fama terás entre os maiores
e não será a morte sem vingança.
Quem te feriu perece como tu. »
Túmulo antigo havia junto ao monte
e nele repousava o rei Dercénio ;
de terra era o sepulcro e sombreado
por copada azinheira, sendo aí
que a deusa pára o voo de beleza.
Arrunte vê ao longe com as armas
de que toma, seguro, vão orgulho.
«Não é para esse lado que tens de ir.
Para aqui te dirige : vais morrer
para pagar a morte de Camila.
A seta de Diana vai prostrar-te. »
Tira o Trácio a flecha d o carcás,
a mete no seu arco de que puxa
a corda com a dextra para o peito
enquanto mão esquerda, junto ao ferro,
ajuda a que se dobre o arco ao meio.
Ouviu Arrunte logo um sibilar,
sentiu a vibração e lhe entra a seta,
a morte lhe causando. Os companheiros,
enredados na luta, nem o vêem,
desconhecido o largam na poeira.
Ópis a seu Olimpo dura voa.
Perdido o seu comando, todo o grupo
de que é chefe Camila se dispersa.
Rútulo foge como foge Atina
um abrigo seguro busca a tropa,
quanto pode correndo para os muros.
470 VIRGÍLIO

Ninguém se opõe à carga dos Troianos


quer a dardo que fosse quer à mão,
os arcos, fatigados, vão ao ombro,
galope de cavalo a quatro cascos
é o que mais ressoa pelo campo.
Um negro pó em nuvem cobre muro,
nas torres quanta mãe bate no peito
e para o céu levanta sua grita.
Os que entraram primeiro pelas portas
se vêem envolvidos de inimigos,
em triste morte caem, um a um ;
morrem mesmo no que era de defesa,
como morrem nas casas que eram deles
e na cidade sua perdem vida.
Alguns fecham as portas, impedindo
que escapem camaradas a seu fado,
às preces que lhes chegam não atendem.
Uns aos outros se abatem, na desordem,
e num louco furor matam e morrem.
As próprias mães, por seu amor da pátria,
e pelo q�e a Camila tinham visto,
continuam lutando a puro dardo,
endurecem ao fogo pau, estaca,
são as primeiras a afrontar a morte.
Entretanto no bosque escuta Turno
toda a notícia que Aca lhe vai dando,
de como aperta o risco ou como os Volscos
já nem podem supor que ainda existem,
a Camila morreu, Marte ganhou
e vem com os contrários, já o terror
sem dúvida transpôs toda a muralha.
Com ânimo perdido, por ser esta
a vontade que Júpiter mostrava,
abandona as alturas ocupadas,
se retira dos bosques protectores.
Ia chegando ao plaino ia fugir,
quando Eneias, o chefe, sai também
da floresta que tinha atravessado,
depois de ter galgado o monte em frente.
No mesmo instante em que descobre Eneias
os campos numa nuvem de poeira
e neles batalhões que são Laurentes,
ENEIDA 471

vê Turno, perto, armado, fero Eneias


ouve a marcha dos homens, sente o sopro
que dos cavalos vem. Decerto os dois
travariam batalha sem demora
se ainda não viesse um róseo Febo
a banhar seus cavalos fatigados
no mar que é das Ibérias ; some o dia,
vê-se a noite que chega e que domina.
Se entrincheiram os dois ante a cidade
e reforçam os dois suas defesas.
LIVRO XII

Logo que Turno vê que seus Latinos,


sendo Marte contrário, se batiam
com tão pouca vontade, sem coragem
resolve pôr-se à frente, com ardor,
com uma violência que se exalta.
Exactamente como em terras púnicas
leão ferido pelo caçador
se atira para a luta sacudindo
a juba com a nuca musculada,
o dardo quebra, em sangue ruge ainda,
assim também um excitado Turno
se torna violento e diz ao rei :
«Não se furtará Turno aos que de Eneias
faltarem a palavra tão solene.
Irei pois ao combate. Ordena, rei,
que o sagrado nos tragam, os tratados.
Ou o Dardânio vai, por este braço,
como desertor de Ásia para o Tártaro,
assentem-se os Latinos a ver bem
como esta espada acaba com o caso,
ou então que nos vença a todos nós,
que Lavínia lhe dêem como esposa. »
Latino, sossegado, lhe responde :
« Quanto mais teu valor assim se exalta
tanto mais deverei eu ter cuidado
em pensar, consultar o que fazer.
De teu pai Dauno herdaste tu um remo
e tens muitas cidades conquistado,
e Latino tem ouro, é generoso,
e nos campos laurentes outras virgens
existem que são dignas do que és tu.
ENEIDA 473

Vou dizer-te eu com toda a liberdade


o que nem sempre satisfaz ouvir;
jamais iria dar a minha filha
a quem a pretendia noutro tempo
pois que deuses com homens eram contra.
Como gosto de ti, és meu parente,
para não desgostar a minha esposa,
a genro tirei noiva, entrei em lutas
que sacrílegas são, ao que hoje penso.
E bem vês que desgraças e que guerras
vieram sobre mim, aquelas mesmo
em que despendes tu maior esforço.
Vencidos duas vezes, é aqui
que o futuro de Itália defendemos.
Vão as águas do Tibre ainda quentes
com o sangue dos nossos, como os campos
com os ossos dos mortos ficam brancos.
Porquê voltar atrás e tanta vez ?
Se morres terei eu que recebê-los
como meus aliados . É melhor,
ao que parece, Turno, que isso faça
sem combates, enquanto vivo estás .
Que nos dirão os consanguíneos Rútulos,
que diria toda a Itália, se for eu
a te expor a morrer, quando buscavas
casar com minha filha e ser dos meus ?
Olha quanta incerteza há nestas guerras,
lembra-te de teu pai, tão longe e triste
em Árdea sua pátria, sem te ver. »
Mas o furor de Turno a nada cede,
até aumenta quando alguém acalma.
Quando por fim falou, assim o disse :
«Cuidados que, bom pai, tu tens comigo
eu te peço que deixes e permitas
que minha morte aumente minha fama.
Nós também, grande rei, com braço forte
podemos verter sangue, causar danos.
E como vai a deusa sua mãe
proteger esse Turno que se escapa
quando tantas cautelas tem com ele,
cautelas de mulher em vácua nuvem ?>>
A rainha, porém, com todo o medo
474 VIRGÍLIO

de imprevisto combate, e se sentindo


como para morrer, tentou ainda
abrandar a seu genro, enternecê-lo :
«Por este choro meu e pelo caso
que fazes, Turno, de honra que é de Amata,
vê tu como és agora único apoio
duma velhice que faz tanta pena,
e como só em ti tem segurança
o reino de Latino, o seu prestígio.
A nossa casa tomba, és o remédio.
Só um pedido faço, que abandones
as lutas que tu travas com Troianos.
Seja ele como for, o teu combate
é igualmente o meu, pois também nele
à luz que odeio fecharei os olhos
e não verei, cativa, Eneias genro. »
A s palavras d a mãe ouviu Lavínia
com lágrimas no rosto derramadas,
rubras as faces de um interno fogo
que o corpo inteiro estava percorrendo.
As cores das feições dessa menina
eram agora como as que um artista
usa para animar um marfim de Índia
a que púrpura dá j eito de sangue
ou como dumas rosas encarnadas
tomam um certo tom lírios brancos.
Turno, torvo de amor, olha Lavínia
e lhe recresce a fúria de lutar,
o que faz que responda a Amata assim :
<<Peço não me acompanhes com teu choro,
não lances sobre mim um tal presságio
quando acorro à dureza que é de Marte ;
não tenho eu o poder de afastar morte
e lá irá Ídmon, meu mensageiro,
transmitir as palavras que são estas
ao tirano da Frígia que as detesta :
Amanhã quando Aurora no seu carro
avermelhar o céu pode deixar
que não venham Troianos contra os Rútulos
e que também repousem armas destes .
Com nosso sangue se decida a guerra.
É em campo cerrado, com duelo,
ENEIDA 475

que se conquista mão de Lavínia. >>


Ao palácio voltou com toda a pressa
e seus cavalos pede ; quando vêm
e frementes os vê é mesmo Orítia
quem os dá a Pilumno de presente,
mais nítidos que neve e como vento
se de correr se trata. A criadagem
as mãos passa no peito dos corcéis,
e lhes ordena as crinas tão compridas.
O próprio Turno enverga uma couraça
de ouro adornada e de oricalco branco,
passa a vista na espada e no escudo
e nas pontas de seu rubro penacho.
O próprio deus de senhorio do ferro
forjara aquela espada, a tinha dado
a seu pai Dauno após a mergulhar
ainda incandescente em água estígia.
A lança que levou era a que estava
a meio do palácio pois troféu
de Actor Aurúncio, lança enorme e grossa.
Nela pegou, brandiu, altissonante
estas palavras ante todos disse :
«Nunca faltaste, lança, ao que te quis,
o mesmo tens agora que fazer ;
com tantos estiveste, agora é Turno
e na mão dele estás em tempo certo.
É contigo que vou eu derrubar,
prostrar no chão o semi-homem frígio,
despedaçar a sua cota de armas,
arrastar na poeira seu cabelo
todo frisado, perfumado a mirra.>>
Assim é seu furor, o rosto em brasa
com palpitar de fogo em duros olhos,
como se fora um touro já mugindo,
já pronto a combater que com os cornos
árvore abala ou, perseguindo o vento,
se exercita, com ele voa areia.
Por outro lado, Eneias, tão temível
como ele com as armas que a mãe deu,
afia Marte dentro de seu peito,
a cólera desperta, tão contente
ao ver que o fim da guerra é o tratado
476 VIRGÍLIO

que 1mmigo oferece. Os companheiros


acalma ao mesmo tempo que sossega
o seu jovem Iúlo e dá resposta
ao rei Latino em condições de paz.
Já o dia que vinha amanhecia,
nada claros ainda os altos montes,
quando do fundo abismo galopando
os cavalos do sol sopram forte
e com o sopro jogam luz ao mundo.
Os combatentes, Rútulos, Troianos,
medem espaço junto das muralhas,
preparam o terreno do duelo,
erguem ao meio altares em que os deuses
parte serão de tudo que se trate.
Outros ainda trazem água fresca,
trazem o lume; vestem-se de linho
e de verbena cingem suas frontes.
A legião ausónia com seus piques
rompe de toda a porta, enquanto, em frente,
são Troianos, Tirrenos quem avança,
armados como os outros se apresentam.
Ao chamado de Marte ninguém falta
Em todo o lado andam também os chefes
com preparos de púrpuras e de ouros :
É Menesteu, da raça de Assáraco,
é o robusto Asilas, é Messapo,
de quem é pai Neptuno e que é famoso
por aos corcéis domar, depois treinar.
Quando se deu sinal avançam todos
para o lugar marcado, cravam lanças
a elas encostando os seus escudos.
Mulheres curiosas, fracos velhos,
todos aqueles que não trazem armas
se acumulam nas torres, nos telhados,
ou nos cimos das portas até ficam.
Juno, porém, nos altos da montanha,
que hoje se chama de Alba, mas ao tempo
não tinha nome algum, nem glória ou honras,
olhava o campo que cerrado tinham,
as tropas de Laurentes e Troianos
com a cidade que era de Latino.
Logo a seguir, de deusa para deusa,
ENEIDA 477

fala assim Juno àquela irmã de Turno


a quem, como honra à sua virgindade,
Júpiter dera o ser a protectora
de rios, fontanários : «Ninfa amiga,
pelas águas ilustre, tu bem sabes
como te distingo eu entre as do Lácio
que alguma vez puderam penetrar
no leito ingrato de que é dono Jove,
todo gosto que tive em te instalar
no céu que é de nós todas, mas agora
vou eu, Juturna, dar-te este desgosto,
de que de facto não é minha a culpa.
Foi na medida em que Fortuna o quis,
em que as Parcas deixaram que os Latinos
tivessem boa sorte em seu viver,
que eu ajudei a Turno e protegi
a cidade que é tua. Mas o que vejo
é que vai nosso herói entrar na luta
contra fatalidades poderosas.
Chegou o dia de vencerem Parcas,
de ganhar o poder que é contra nós.
Se tens audácia para que empreendas
alguma coisa que nos favoreça,
não hesites, avança, talvez ganhes,
talvez nos libertemos do desastre. »
Só isto disse. Lágrimas, porém,
logo brotam dos olhos de Juturna
que três ou quatro vezes bate o peito.
Diz a Satúrnia Juno : «Não é tempo
de podermos corar. Anda depressa.
Se há jeito salva teu irmão da morte
ou reacende a guerra, se possível,
de modo que não possam assinar
aquele acordo que eles combinaram,
de mim tens tu licença para ousar. »
Assim a exaltava a grande Juno
sem ter ideia do que se faria,
ferido o coração de dor aguda.
Mas eis que entram os reis. Latino vem
numa quadriga e doze raios de ouro
as fontes cingem no que é o emblema
do Sol, o seu avô. A Turno coube
478 VIRGÍLIO

carro de dois cavalos, como em mãos


dois dardos ele traz de longo ferro.
Já de outra parte vinha o forte Eneias,
origem ele da romana raça
com rebrilhante escudo como em fogo
um astro ofusca olhar e com as armas
que desceram do céu. Ao lado, Ascânio,
outra esperança da futura Roma.
Vem sacerdote, sua veste pura,
traz com ele um porquinho já de cerdas
e mais uma ovelhinha, tosão limpo.
Os leva ao pé de altar onde arde fogo ;
olham os circunstantes Sol que sobe,
com as mãos oferecem as farinhas,
cabeça de animais a ferro marcam,
de taça em punho fazem libações.
De espada sem bainha Eneias ora :
« Sol e Terra me sejam testemunhas
de quanto eu invoquei e me esforcei
em tão duros trabalhos por chegar
ao lugar que sonhei e que alcancei ;
Pai todo-poderoso e tu, Satúrnia,
oxalá tão severa não me sejas,
e tu, famoso Marte, o do poder
que toda a guerra move, e vós, ó fontes,
e vós também, ó rios, que se adoram
como a tudo de etéreo firmamento,
como à sombria força de oceano,
me sejam testemunhas do que peço.
Se a próxima vitória, por acaso,
couber a Turno Ausónio, está assente
que à cidade de Evandro vamos nós,
pois que fomos vencidos, e que Iúlo
destas terras se ausente para sempre,
que jamais os de Eneias se revoltem
e recorram às armas contra o reino.
Se, porém, a vitória consentir
que Marte nos proteja, como quero
e como certamente os deuses querem,
nunca direi que sej am os de Itália
a prestar vassalagem aos Troianos,
não quero a realeza para mim :
ENEIDA 479

que estas duas nações jamais vencidas


em eterna aliança se combinem.
Eu próprio lhes darei deuses e ritos
que deles hoje são e deles sejam ;
de Latino, meu sogro, é a chefia
de toda a tropa que haja; de meu sogro
autoridade que divina seja.
Troianos para mim construam muros
e Lavínia à cidade dê seu nome. »
Primeiro fala Eneias, e m seguida
é Latino que ao céu olhos levanta
e que aos astros em prece ergue a direita :
«Ü mesmo digo, Eneias, ante o mar,
como ante a terra e quanto ao firmamento,
e perante os dois filhos de Latona,
ante bifronte Jano ou ante os deuses
que dominam as forças infernais,
ou os sacrários de Dite que não perdoa.
Que escute nosso Pai estas palavras
pois dos tratados é sanção seu raio.
É minha testemunha altar que toco,
como a fogueira que no meio está,
como todo o poder que têm deuses :
haj a o que houver j amais Italianos
romperão o tratado que se firme
e jamais força alguma me fará
mudar esta vontade que é a minha,
mesmo que algum dilúvio leve a terra,
mesmo que céu e Tártaro um se façam. »
Com o ceptro n a mão assim prossegue :
«Tudo isto é tão verdade como é certo
que este ceptro que empunho nunca mais
de si dará ou ramos ou folhagem,
ou sombra espalhará, já que no bosque
um dia foi cortado, perdeu mãe,
os braços lhe cortaram o cabelo,
até que artífice ao que já foi árvore
encerrou neste bronze, o confiando
às mãos do mais antigo dos Latinos. »
Foram estas palavras as que o s dois
pronunciaram garantindo o trato
à vista dos maiores de seus povos.
480 VIRGÍLIO

Se celebrou depois o sacrifício


de vítimas que às chamas se expuseram
e de que a viva entranha se arrancou
para pesada oferta nos altares.
Mas o que era verdade era que há muito
não aprovavam Rútulos a luta
e neles se agitava o duvidar;
nada agora lhes era mais seguro
ao verem os dois homens desiguais
no vigor de combate que mostravam.
Maior confirmação ainda foi
verem Turno marchar para os altares
em perfeito silêncio, com os ares
de quem vai venerar em pura súplica.
Lá ia de olhos baixos, ele, um jovem,
pálido como se outra sua idade.
Então irmã Juturna, quando deu
por crescer o murmúrio que se ouvia,
como se o sentimento já mudasse,
não se conteve mais, tomou o rosto
de Camerte, soldado de alta estirpe,
filho de um pai com fama de bravura,
se mete nas fileiras, vai e vem,
hesita no que diz e por fim fala :
« Não é vergonha, Rútulos, que nós,
em número e valor iguais a todos,
só a um arrisquemos na defesa?
Troianos aqui estão com os da Arcádia,
com os Etruscos que detestam Turno,
todos temos em frente um como nós,
só com dois era justa esta batalha
e apenas um vai combater sozinho ?
O que se está prostrando ante os altares
fama terá que chegue até aos deuses,
sempre vivo será em nossas línguas.
Mas nós, sem pátria, servos é que somos,
e de donos injustos e soberbos,
só por ficarmos hoje neste campo
metidos na vileza da preguiça. >>
E mais e mais as almas dos guerreiros
se animavam ouvindo estas palavras,
murmurava-se mais nos batalhões
ENEIDA 481

já diferem Laurentes e Latinos.


Contavam com repouso dos combates
e com a garantia de seus bens,
mas agora o que querem é bater-se,
pedir aos deuses que não haja pactos
e lamentar o mal feito a Turno.
Muito melhor do que isto o fez Juturna
pois que, subida ao céu, dele enviou
um seguro sinal tão poderoso
que todo Italiano perturbou.
A fulva águia de Júpiter voou
e dispersou em luz que era meio rubra
as aves que voavam junto ao rio,
e, se lançando bruscamente às águas,
com as unhas pegou um belo cisne,
o mais belo de todos os que havia.
Então a passarada que fugira
os de Itália deixou boquiabertos
quando em grande alarido se juntou,
àquela águia de Jove perseguiu
e tanto fez num ensombrar de céu
que ela largou a presa que levara,
de novo a pôs no sossegado rio
e, regressando aos deuses, se ocultou.
Com largo brado os Rútulos saúdam
o promissor augúrio e se preparam
a tempo que falou Tolúmnio, o vate :
<<Eis aqui o presságio que implorei
tanta vez com meus votos e em que vejo
o que é revelação de nossos deuses.
Vinde comigo, trazei vossas armas
e não temais estranho que com guerra
a vós assusta como aquela aos pássaros.
Desta terra que é nossa e que ele assola
ponhamos nós em fuga os seus navios
e que desapareçam de horizonte.
Coragem para todos e formai-vos
e defendei com vosso braço armado
o rei de que pretende despojar-nos.»
Avança, joga o dardo ao inimigo
com estridente som que o ar difunde,
e logo os batalhões se agitam, gritam,
482 VIRGÍLIO

com espírito ardendo de furor.


Em frente nove irmãos formaram grupo,
todos de altivo porte, e que uma esposa,
uma Tirrena só, havia dado
a Gilipo de Arcádia, por fiel.
Atinge a arma um deles a meio corpo,
no ponto em que pusera o boldrié,
e passa entre as costelas, o derruba,
prostrado o deixa sobre a fulva areia,
jovem egrégio e rebrilhante de armas.
São, porém, corajosos seus irmãos,
agora acicatados pela dor,
puxam uns das espadas, outros arcos
disparam prontos contra o inimigo.
Correm, opostos, batalhões laurentes,
depois, da gente deles, são Troianos,
os Etruscos de Agila ou os Arcádios,
os de armas adornadas de pinturas.
Uma paixão os toma a todos eles,
a de que o ferro tome a decisão.
Pilham altares, passam pelo céu,
em tempestade, as armas de arremesso,
e vasos, ornamentos, tudo roubam.
O próprio rei Latino põe-se em fuga,
atestando ante os deuses o que foi
todo aquele desprezo dum acordo.
Muitos outros atrelam os seus carros
ou pulam nos cavalos e combatem.
Nota Messapo um rei, Tirreno Auletes
com todas as insígnias do poder;
impaciente de quebrar o pacto
lhe dá um empurrão com o cavalo.
Recua o outro e cai sobre os altares,
com seu bordão Messapo bate forte
e grita, sem ouvir prece nenhuma:
« Üra aqui está e foi a melhor vítima
que podia servir aos grandes deuses. »
Despojam-no o s d e Itália. E Corineu,
que se interpõe, agarra num tição
e vai com ele deitar fogo à barba
de Ébiso que entretanto ali chegara
e que na chama solta um acre cheiro.
ENEIDA 483

Vantajoso no golpe, o seu contrano


lhe agarra a cabeleira o deita ao chão
e, de joelho em cima, o fere à espada.
Ataca Podalírio Also, pastor,
que se batia na primeira linha,
e vai de espada nua ao inimigo ;
este, porém, com seu machado em punho,
lhe abre a cabeça desde a fron� ao queixo
e de sangue lhe inunda suas armas ;
sono de ferro num repouso duro
lhe faz sumir olhar na noite eterna.
Mas piedoso Eneias, de mãos nuas,
e sem pôr capacete, grita aos seus :
«Aonde correis vós ? E que discórdia
é essa de repente ? Deixai fúria,
já se chegou a acordo em todo ponto.
Só eu tenho direito a combater,
que fique isso comigo, não temais.
Sou eu quem vai o pacto garantir.
Mas agora e segundo combinámos
é só Turno que tem de me ser dado . »
N o meio d e tudo isto, entre a s palavras,
se ouviu o sibilar de alguma seta,
a qual, por acaso ou pelos deuses,
veio aos Rútulos dar um grande orgulho,
sem que culpado algum se apresentasse
como tendo ferido o rei Eneias.
Quando viu Turno Eneias retirar-se
e com seus capitães desanimados,
se reacende nele uma esperança,
manda vir seus cavalos, suas armas,
com um salto se instala no seu carro
e com a sua mão pega nas rédeas.
A mais de que um guerreiro voando mata
e mais de que um valente lhe cai morto,
a batalhões esmaga com o carro
e com seus dardos criva os que lhe fogem.
É mesmo assim que, junto aos gelos de Hebro,
quando o deus Marte bate em seu escudo
desencadeia a guerra e seus corcéis
precipita velozes mais que Noto
ou Zéfiro que voa. Trácia inteira
484 VIRGÍLIO

geme sob as patadas. O Terror,


as Iras, as lnsídias são cortejo
de que o deus se acompanha na batalha.
Pois é assim também que Turno, em campo,
sem fatigar-se incita seus cavalos
que suando galopam sobre os mortos,
os calcam com os cascos, sangue soltam
e toda a terra fartam de matança.
Já matou Esténelo mais Tâmiris
e também Folo, sendo os dois primeiros
em luta corpo a corpo, que não Folo,
e como Folo morrem Glauco e Laso,
que eram filhos de Ímbraso, que ele próprio
tinha criado em sua Lícia pátria,
tinha provido de armas semelhantes,
tinha ensinado a combater de perto
ou, se a cavalo, adiantar-se aos ventos.
Doutro lado se lança na batalha
Êumenes que era filho de Dólon,
tão ilustre na guerra e cujo nome
era de seu avô, alma do pai,
que para ir espiar o campo Dánao
quis ganhar carro ao filho de Peleu.
Mas sucedeu que ao filho de Tideu
se compensou audácia de outro modo
e cavalos de Aquiles já não quer.
Quando Turno, de longe, o viu no prado,
o feriu com um dardo ; larga o carro
se aproxima daquele moribundo,
lhe põe pé no pescoço, tira a espada,
lha mete na garganta e diz assim :
«Pois muito bem, Troiano, tens agora
com o teu próprio corpo nossa Hespéria
que tu tanto querias conquistar.
Estás como estará quem me atacar. >>
Dá-lhe depois um companheiro, Asbutes,
a seguir é Cloreu, Síbaris e Dares,
e Tersíloco e Timetes, desmontado
de seu próprio cavalo. Quando o sopro
de Bóreas vem de Édon, lá distante,
e Ja ressoa, ecoa em mar Egeu,
jogando toda a vaga contra a costa,
ENEIDA 485

quando as nuvens tocadas pelo vento


pelo céu fogem como espavoridas,
tudo se passa como quando Turno
abre caminho, afasta os batalhões
e faz que as linhas cedam, se confundam,
e que o penacho voe no carro ao tempo.
Fegeu não aguenta um tal assalto
e se atira diante dos cavalos,
a desviá-los, mas sempre correndo.
Assustado, porém, exposto fica,
e vem a lança, quebra-lhe a couraça;
mas não desiste, numa tentativa,
desembainha a espada, só que a roda,
um eixo sobretudo bate nele
o derruba no chão. Turno, de um golpe,
a cabeça lhe corta e deixa o corpo
estendido na areia, abandonado.
Enquanto Turno, em campo, espalha a morte
é Eneias, ferido, que seus passos
ampara com a lança, acompanhado
de Menesteu e seu fiel Acates,
até de Ascânio que j amais o larga.
Muito sangue derrama, mas ordena
que lhe arranquem o dardo, abram o golpe
ainda mais e busquem nele o ferro
que se soltou do pau que segurava,
logo perdeu de novo no combate.
Junto dele, porém, estava lápis,
que era filho de laso ; a ele Febo,
de quem era querido, lhe ensinara
as artes que eram suas nos augúrios,
na música das cítaras e nas frechas ;
mas preferia conhecer o jovem,
e para socorrer seu pai um dia,
os remédios que havia com as ervas,
medicina aprendera, se entregava
às artes de modéstia e de serviço.
De pé estava Eneias, furioso,
e sem largar da mão o pique enorme,
com, à volta, guerreiros e com Iúlo
sem poder consolar-se. Mas Eneias
não se deixa abater pelos lamentos.
486 VIRGÍLIO

Agora, já de idade, trata lápis,


com saber e cuidado, de buscar
o desviado ferro. Não consegue,
diligência nenhuma lhe dá certo.
Assim Apolo o deixa sem ajuda.
Os temores recrescem, risco aumenta,
poeira ensombra o céu, os cavaleiros
já próximos estão, o dardo chove.
Por toda a parte gritos de soldados
que, por Marte batidos, ali morrem.
Então Vénus, perante o sofrimento,
que sobre um filho seu assim desaba,
colhe ditano em Creta, monte ldeu,
com o macio caule, a rubra flor,
que bem conhecem cabras atingidas
por setas de caçada. Envolta em nuvem,
para assim a não verem, deita Vénus
esta eficácia de ervas em bacias
com as águas que lavam as feridas,
juntamente com sucos de ambrósia
e com as panaceias contra a dor.
O velho lápis a ferida banha
com as águas tratadas pela deusa
e, sem saber porquê, vê como a dor
não atormenta Eneias, como o sangue
de dentro de seu corpo já não corre.
Por fim a frecha cai e suas forças
retornam ao herói a quem lápis
manda trazer as armas : «Venham elas !
Passai-lhas logo. De que estais à espera? »
Não foi a arte nem o poder d e homem
que isto nos conseguiu. A minha mão
não te salvou a ti. E foi decerto
um socorro divino que chegou
para que a mais altura subas tu. »
Ávido d e combate pôs nas pernas
umas polainas de ouro e não suporta
qualquer demora que haja para a lança
que tanto brilha. Ao lado prende escudo
e com uma loriga envolve o tronco ;
das armas revestido beij a Ascânio
por intervalo que há no capacete.
ENEIDA 487

«Tens que aprender comigo o que é valor


e com outros, talvez, o que é a sorte.
Minha mão te defende nesta guerra
e por ela te leva ao que é triunfo.
Quando cresceres mais lembra-te disto
e por modelo torna os que são teus :
teu pai, Eneias, e teu tio, Heitor,
ânimo te darão para o combate . >>
Depois de assim falar sai pelas portas
e, gigantesco, brande enorme lança,
em espessa coluna, ao mesmo tempo,
com ele vão Alceu e Menesteu
e são as tropas corno um rio que corre.
Com a poeira se escurece o campo,
se abala a terra com os passos dados.
Os viu saindo das trincheiras Turno
corno igualmente os viram os da Ausónia
num calafrio que foi até os ossos.
Antes de outro Latino ouviu Juturna
o barulho que vinha e recuou
por ter compreendido a sua origem.
Vai o som pelo campo e ao aberto
traz consigo sombrios batalhões.
Corno noutros lugares vem a nuvem
que nos parece devorar o dia,
os mares atravessa e camponeses
pressentem, temerosos, o que chega,
pois vai derrubar árvores, nas terras
assolará searas que destrói,
e tudo arrasará em vasto espaço.
Assim chefe Reteu faz com os seus,
os arrasta consigo ao inimigo
e já formando a cunha de atacar.
Fere Tirnbreu o poderoso Osíris,
Menesteu mata Arcécio, corno Acates
elimina a Épulon, Gias a Ufente,
cai o vate Tolúrnnio, o que primeiro
tinha atirado contra os inimigos.
A grita sobe ao céu, Rútulos fogem
com o dorso coberto de poeira.
Mas Eneias não mata fugitivos,
nem vai aos que o esperam dardo em punho,
488 VIRGÍLIO

naquela confusão apenas busca


a Turno com quem quer combater.
Perante esta ameaça já Juturna,
com uma força de homem, deita abaixo
o cocheiro de Turno que é Metisco.
Assim como andorinha, toda negra,
corre a propriedade de homem rico
com que alimenta prole tão loquaz,
ou pipila nos pórticos desertos
ou à volta dos pontos em que há água,
assim também Juturna entre inimigos
passa com seus cavalos e mostrando
um irmão triunfante, sem deixar
que ele fique ao alcance de um ataque.
Eneias, por seu lado, atento segue
todo esse tortuoso itinerário
e chama seu contrário a grande brado,
ansioso por luta em que o derrube ;
só que Juturna se desvia e foge,
de incerteza rodeia pio Eneias.
Neste instante Messapo, que bem corre,
e que leva na mão dois ágeis dardos,
um deles lança contra o inimigo ;
Eneias, atingido, mas no cimo
do capacete perde seus penachos,
e cólera o possui, não se domina,
vai então, sem escolha, contra todos,
a Júpiter imprecando e se queixando
do pacto profanado. Marte ajuda
na matança que faz, de rédea solta
às iras que o invadem e manejam.
Mas que deus poderia me guiar
neste desastre todo que percorro,
e que poema poderia dar
a confusão, os mortos, tropa e chefes,
causada pela ideia que os tomou,
a uns de abater Turno, outros Eneias.
Como é que pode, Jove, acontecer
que assim sejam contrários estes dois povos
cujo destino é o da paz eterna?
É Eneias quem vê Rútulo Súcron
deter esta ofensiva dos Troianos :
ENEIDA 489

não há hesitação, sobre ele vai


e lhe crava uma espada triunfante
pelo peito, na caixa das costelas,
lá donde sobrevém, rápida, a morte.
A pé avança Turno contra Âmico,
caído do cavalo, e logo investe
Diores, seu irmão, a um à lança
ao outro com espada, e prende ao carro
as cabeças dos dois que escorrem sangue.
Eneias junta aos mortos Talo, Tánais,
o valente Cetego, os três num só.
Com eles pobre Onites, cujo pai
Equíon se chamava, a mãe Perídia.
Turno ataca, por ele, dois irmãos
de terras lícias vindos, das campinas
que deus Apolo rege, mais Menestes
que seu ódio da guerra não salvou,
Arcádio que vivia, em pobre casa,
da pesca que fazia no rio Lerna ;
trabalhava seu pai numa outra terra
tomada de aluguer, já que eles dois
longe estavam de serem poderosos.
Como em floresta seca, se dois fogos
começam nos extremos ou em monte
duas torrentes brotam se encontrando,
assim, num mesmo impulso, Eneias, Turno
se procuram no meio da batalha,
em cólera refervem os seus peitos,
vão estoirar da luta que não há.
Em alta voz Murrano proclamava
o nome antigo dos antepassados
que dos Latinos tinham sido reis.
Eneias precipita-o de seu carro,
o faz jazer no chão com pedregulho,
mas as rodas o jogam para a frente,
os cavalos o pisam, o maltratam,
sem qualquer atenção pelo seu dono.
Hilo ataca com raiva que não doma,
mas Turno lança um dardo que lhe acerta
no capacete de ouro e dentro vai.
Nem teu braço, Creteu, valente grego,
conseguiu desse Turno te salvar,
490 VIRGÍLIO

nem deuses que Cupenco bem servia


o protegeram quando Eneias veio,
se encontrou ante o ferro o peito seu
nem protegeu a vida ao infeliz
o bronze dum escudo. Como a ti,
mandou, Éolo, destino te apanhar
nos campos laurentinos, tua altura
ficar no chão deitada; aí caíste,
tu, aquele que Argivos não puderam
abater, nem Aquiles sequer o conseguiu,
ele que destruiu o reino a Príamo ;
o fado de morrer aqui tiveste,
tu, com casa tão alta no Lirnesso,
tua casa em monte Ida, teu sepulcro
nas terras dos Laurentes. Foi assim
esta guerra em que entraram os Latinos,
e todos os Dardânios, Menesteu,
Seresto, o que não cansa, até Messapo,
o que doma cavalo, bravo Asilas,
as falanges etruscas ou de Arcádios,
os esquadrões de Evandro, com esfotço
supremo dos guerreiros. Sem descanso,
sem paragem nenhuma no combate,
multidão se afrontando sem saber
de que modo ia tudo ter seu fim.
A bela mãe de Eneias deu-lhe então
ideia de marchar para a cidade
e de tomar os muros perturbando
os planos que tivessem os Latinos.
Enquanto ia por Turno reparara
que escapava a cidade à guerra atroz
e logo decidiu outro combate.
A Menesteu, Sergesto e Seresto
chamou para o seu lado e lhes deu ordem
de reunir as hostes dos Troianos
numa altura dispostas, sem largar
nem escudos nem dardos, suas armas.
De pé, no meio deles, assim fala:
« Sem demora nenhuma obedecei,
que Júpiter está do nosso lado,
e que o termos mudado de repente
não vai prejudicar vosso valor.
ENEIDA 49 1

A cidade que é causa desta guerra,


a própria realeza de Latino
abaterei eu se recusarem
perceber-se vencidos com as casas
em destroços ardendo em todo o lado.
Iria agora esperar eu que Turno
aceite desafio de nos batermos ?
A verdade segura é que vencemos,
o que tendes, portanto, de fazer
é de pegar em tochas, ir a eles,
e de assinar tratado à luz das chamas. »
Formando e m cunha marcham às muralhas,
e com escadas surgem, imprevistos,
e para o fogo todos preparados.
Correm uns para as portas e chacinam
os que querem opor-se, enquanto há outros
que brandem suas armas e, com setas,
ao éter escurecem, tantas são.
Eneias, junto ao muro estende as mãos,
acusa o rei Latino, atesta aos deuses
que já por duas vezes os de Itália
faltaram ao que tinham prometido.
Quem defende a cidade não entende
o que é este abrir portas aos Dardânios,
querem outros levar o rei aos muros,
enquanto ainda uns outros dão reforço
a: tudo que parece ser defesa.
É isto que acontece se pastor
encontra abelha em rocha de refúgio
e decide expulsá-la pelo fumo ;
as abelhas, perante as ameaças,
correm de um lado a outro pela cera,
coléricas, zumbindo quanto podem,
enquanto um negro cheiro anda por cima
largado pelo fumo que se evola.
Então novo infortúnio cai no Lácio,
abalando a cidade já confusa :
Quando a rainha viu que o inimigo
assaltava as muralhas e que o fogo
rolava sobre as casas sem que houvesse
dos Rútulos defesa, por talvez
ter sucumbido em luta heróico Turno,
492 VIRGÍLIO

com alma enlouquecida pela dor,


por julgar que foi ela quem causou
toda aquela desgraça, rasga as vestes,
suas purpúreas vestes, com palavras
que já são dum espírito em delírio,
numa trave ata nó de triste morte.
Quando as Latinas sabem deste fim,
e com Lavínia à frente que desfaz
a cabeleira de ouro, arranha a face,
se reúnem num bando de lamentos
que do palácio a toda a parte ecoam,
como se fossem presa da loucura.
A funesta notícia se difunde,
todos sentem que perdem a coragem ;
descomposto, Latino chora a morte
da mulher, a ruína da cidade,
o seu cabelo branco todo cobre
duma poeira imunda, penitente.
Entretanto, no campo, bem distante,
Turno prolonga a guerra, perseguindo
inimigo que foge, mas mostrando
que já não tem o ânimo de início,
decerto por não ver nos seus cavalos
o cumprir das proezas que esperava.
De súbito lhe chegam aos ouvidos,
trazidos pelo vento como um choque
os gritos da cidade já entrada,
em sinistro presságio do que venha.
«Ai de mim, que tristeza nas muralhas,
porque vem tanto grito da cidade ?»
Sem saber o que faça puxa as rédeas,
o seu carro detém. Só que Juturna,
que guia disfarçada de Metisco,
lhe diz estas palavras : «Por aqui,
por aqui vamos, Turno, que a vitória
abre nosso caminho entre os Troianos.
Outros irão a defender as casas.
Eneias nos ataca, a nós de Itália,
semeemos nós morte entre os Troianos.
Não lhes ficas abaixo nos combates,
em número de tropas és igual . »
E Turno lhe responde : «Minha irmã,

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ENEIDA 493

eu te reconheci há pouco ainda


com tua habilidade no tratado
e porque te meteste nesta guerra.
Mesmo agora é em vão que tu me ocultas
a tua divindade, que querer
te levou a descer do grande Olimpo
para vir suportar trabalhos destes ?
Onde é que deves ver a crua morte
dum infeliz irmão ? Que faço aqui
q uando há uma promessa de salvar-me ?
A minha vista me morreu Murrano,
que tão querido me era, e me chamava,
vencido por ferida formidanda.
Morreu, Ufente, o pobre, mas não vê
esta desonra nossa, que os Troianos
possuam o seu corpo e suas armas.
Tenho eu que aguéntar que nossas casas
derruídas nos sejam ? Não desminto,
pela força do braço, o que afirmou
Drances perante nós ? Vou voltar costas,
deixar que meu país me veja em fuga?
Generosos comigo sejais, Manes,
já que morrer não custa, já que os deuses
me suspendem o ser benevolência,
para vós descerei, com alma sacra,
já que virgem de opróbrio ; nunca fui
de meus grandes avós menos que digno. »
Mal havia falado quando Saces,
atingido por seta no seu rosto,
em cavalo de espuma recoberto,
corre para ele e diz : «Agora, aqui,
és, Turno, uma esperança derradeira,
tem pena de nós todos porque Eneias
é raio sobre nós com suas armas,
vai derrubar os fortes que nós temos
e já as suas tochas pegam fogo
às casas que são nossas. Piedade !
Todo o Latino para ti se volta,
as preces te dirige, a ti te quer.
O próprio rei Latino até nem ousa
saber que genro escolhe ou que tratado .
Além de tudo, mata-se a rainha,
494 VIRGÍLIO

que te foi tão fiel e com terror


à luz da vida foge. E só Messapo,
só o valente Atinas, frente às portas
sustêm os ataques. Mas, à volta,
as falanges são densas, com espadas
que, levantadas, são seara férrea.
E tu levas teu carro onde há só ervas. »
J á Turno fica mudo, embaraçado
por tudo que tão vivo lhe apresenta,
tomado ao mesmo tempo pela força
de seu sentido de honra e por loucura
onde se juntam dor, o seu amor
que as Fúrias agitaram, e também
a consciência do que é seu valor.
Quando começa a ver com mais clareza,
para as muralhas vira ardentes olhos
e de cima do carro é a cidade
que inteira vê cercada de inimigos.
E neste instante que um braseiro imenso
se apodera da torre que fizera
de tudo quanto é trave, roda ou ponte,
em turbilhão de chamas para o céu.
«Agora, irmã, triunfam os destinos
e não tentes retê-los ; fui chamado,
me sinto, pelos deuses, por Fortuna.
Com Eneias me bato e me preparo
para essa violência do duelo
e não tornas a ver-me sem que eu tenha
assegurado o que de mim é digno,
sem que em mim, já em fúria, furor cresça. >>
Disse e do carro deu um salto e foi
por entre os inimigos, suas armas,
com irmã toda triste, ali ficando.
Muitas vezes do cimo de montanha
rochedo se desprende com o vento
ou então com as chuvas em torrente,
ou até por o solo envelhecer,
passa ele a ser montanha que ressalta
de monte para monte e que consigo
vai arrastando bosques e rebanhos
e todos os que vivem pelos campos .
Da mesma forma vai aos muros Turno,
ENEIDA 495

por esse chão de sangue amolecido,


pelos ares que vibram com os dardos.
Sua mão dá sinal e com voz forte
a todos se dirige : «Vós, Latinos,
vós, Rútulos, também, cessai batalha.
Tudo agora é comigo e com Fortuna.
Vou eu, sozinho, assegurar o pacto,
vou eu, em vosso nome, dar combate. »
Todos s e afastam, deixam campo livre.
Mal Eneias ouviu nome de Turno,
deixou logo as muralhas, cidadelas,
não teve mais demoras, nem tarefas,
fez como trovoada com as armas.
Pareciam ser grandes como um Atos,
ou como o é o Érix ou até
como o pátrio Apenino quando faz
vibrar os seus carvalhos ou se alegra
com a neve de Inverno até aos céus ;
e Rútulos, Troianos, os de Itália,
para ver tais guerreiros gigantescos
viram o seu olhar; ao mesmo tempo
os que já se encontravam pelos muros
ou já os abalavam o aríete,
largam de si as armas que traziam.
O próprio rei Latino vê, espantado,
colossos que chegavam para a guerra,
doutro lado do mundo tendo vindo,
prontos a decidir tudo que houvesse
pela força dos braços e dos ferros.
Eles, logo que esteve o campo aberto,
lançam, rápidos, dardos, em seguida
começam os embates do deus Marte
com o sonoro bronze, com escudos.
Geme a terra, redobram as espadas
os golpes que cumulam dos dois lados,
a sorte e a coragem num se juntam.
Quando no Sila imenso ou no Tibumo
dois touros se combatem, com que raiva,
trémulos donos dão-lhes todo o campo
e todo outro animal quedo fica,
pois varado de medo e as vitelas
a si mesmas perguntam quem dos bosques
496 VIRGÍLIO

vai o comando ter, quem segmrao


rebanhos um a um. Furam-se os touros,
as feridas misturam num só sangue
que lhes lava cabeças, as ilhargas,
os cornos impelidos pela massa
penetram-lhes o corpo enquanto o sopro
faz mugir todo o bosque em derredor.
Assim chocam escudos, com vigor,
troiano herói Eneias com herói
que é o filho de Dánao. Soa espaço,
e Júpiter segura uma balança
que pôs em equilíbrio em seus dois pratos,
já tendo em cada um deles colocado
destino dos dois homens que se batem.
Quem será condenado pelo feito,
quem a morte terá segundo o peso ?
Turno salta julgando que é impune,
todo o corpo levanta, alça uma espada,
a abate, com que força, gritam juntos
Troianos e Latinos, com que susto,
e se levanta a tropa dos dois lados.
Pérfida espada quebra e deixa inerme
guerreiro tão ardente sem saída
senão a de fugir, e foge mesmo,
mais rápido que um Euro, quando vê
o punho solto e desarmada a mão.
O que se diz é que, sem dar por isso,
ao subir no seu carro no princípio
de toda aquela luta o que ele fez
foi pegar, em lugar de sua espada,
a que era de Metisco, seu cocheiro.
Bastou em todo o tempo em que os Troianos
fugiam dum herói que assim surgia,
quando, porém, bateu espada de homem
na armadura forjada por Vulcano
rebentou ela como um gelo frágil,
só pedaços havia em fulva areia.
Perdido, Turno foge, rumo incerto,
para um ou outro lado se dirige
sem ter muito por onde se escapar,
já que os Troianos cercam o duelo,
além de tudo em campo que é fechado,
ENEIDA 497

daqui pelo paul, de outra parte


pela escarpada altura das muralhas.
Mas Eneias prossegue perseguindo,
embora seus joelhos lhe fraquejem
pela ferida feita pela seta.
Acaba por pisar um pé ao outro.
Quando um cão tem a sorte de encontrar
um cervo que é detido por um rio
ou pelo medo duma rubra pena,
não o larga ladrando sem parar,
enquanto o cervo, no terror do rio
ou susto de espantalho ali fincado,
vai e vem, explora mil caminhos,
sempre sem conseguir livrar-se de Úmbrio
que, vigoroso, lhe não dá quartel
e de goela aberta quase o fila,
até faz um ruido de queixada,
se desilude porque não mordeu.
Um clamor se levanta, lagos, ribas
lhe fazem eco em toda a terra em torno,
até no céu troveja este tumulto.
O fugitivo continua sempre,
só que, de quando em quando, fala a Rútulos
e pergunta da espada bem sabida.
Eneias, ao invés, promete a morte,
um fim imediato a quem vem perto,
os enche de terror, os faz tremer,
os ameaça de arrasar cidade,
ainda que ferido, não suspende
aquela caça ao outro que fugia.
Cinco voltas inteiras dão correndo
e cinco contravoltas sem falhar.
É prémio precioso o que procuram,
prémio daquele jogo que consiste
em tirar sangue e vida a esse Turno.
Uma árvore sagrada havia ali,
a Fauna dedicada, uma oliveira,
mas oliveira brava, folha amarga,
madeira veneranda a marinheiros :
Quando alguém se salvava dum naufrágio
ali deixava oferta ao deus Laurente,
e, de promessa, a roupa que vestia.
498 VIRGÍLIO

Os Troianos, porém, sem se importar,


tinham cortado o tronco de maneira
a terem os contrários campo limpo
em que deviam todos afrontar-se.
Até hasta de Eneias ali estava,
pregada por impulso vigoroso
e de tenaz raiz prisioneira.
Dardânida se curva para a frente
e procura arrancá-la, uma arma certa
para deter quem não podia nunca
apanhar na corrida em que se andava.
Mas Turno, com mais medo, assim pediu :
«Ó Fauno, por favor tem piedade,
e tu, ó boa terra, prende o ferro,
que eu sempre vos honrei, bem ao contrário
do que fazem os que andam com Eneias
que nesta guerra a tudo profanaram. »
Não deixa o deus d e lhe escutar a prece,
pois não houve maneira por que Eneias
pudesse triunfar da mordedura
da sagrada madeira, embora esforço
tenha esse sido muito na demora
que teve que fazer quanto à corrida.
De novo neste tempo e disfarçada
outra vez de Metisco veio a ele
deusa filha de Dánao lhe trazendo
sua perdida espada. Mas foi Vénus
que, pela audácia dela se irritando,
num instante arrancou pique de Eneias
da profunda raiz. Agora os dois,
com as armas que tinham recobrado,
um já de espada em punho, outro com hasta,
renovam sua força, seu valor,
e diante um do outro ficam prontos
para os combates de anelante Marte.
Então o rei de omnipotente Olimpo
assim falou a Juno que, de nuvem,
e duma fulva nuvem via a luta :
«Que fim vai isto ter, esposa minha,
que falta ainda que vejamos nós ?
Bem sabes que é Eneias, deus da terra,
e que será levado aos altos astros,
ENEIDA 499

e e tsso o que tu queres. Como pode


ser ele então ferido por mortal ?
Como sem ti não tem poder J utuma,
como é que é isso de pegar espada
e de a passar a Turno, dando força
a quem está para ficar vencido ?
E quais são os teus planos, o que pensas
aqui metida nessa fria nuvem ?
Já é agora o tempo de que cedas
ao que tanto pedimos ; não me agrada
que um desgosto qualquer se possa dar-te
e que de ti a mim venha por vezes
no que diz essa boca tão querida.
Mas é agora o tempo de acabar.
Nas ondas e por terra perseguiste
essa gente de Tróia, e tua guerra
foi de facto medonha, numa casa
por ti houve vergonha, vindo luto
a perturbar o que era de himeneu.
O que proíbo é que isso continue.»
Ao terminar a sua fala Jove
assim disse a Satúmia, rosto baixo :
«Ü que é tua vontade bem sei eu,
por isso abandonei a terra e Turno,
só assim tu me vês em sede etérea
a suportar o que me agrada ou não.
Se assim não fosse, meu lugar seria
na frente de batalha, a combater,
de chamas coro�da contra Tróia.
Certamente que foi com meu apoio
que Juturna ajudou a seu irmão,
mas não lhe permiti que usasse dardo.
Isto juro eu pelos estígios lagos
no preceito sagrado que é dos deuses.
Mas sim, irei embora, deixarei
toda esta luta de que nada gosto,
sem que isto impeça de cumprir-se o fado
no que respeita ao nosso Lácio, aos teus.
Que paz arranjem com seus casamentos,
que no tratado ajustem suas leis,
mas não permitas que tenham Latinos
outro nome qualquer, como se fossem
soo VIRGÍLIO

descendentes de Trós, até Troianos,


conservem sua lígua, suas vestes.
Que o Lácio continue com reis albanos,
que haja raça romana com a força
que sempre foi de Itália. Morreu Tróia,
com ela o próprio nome também morre.»
Então o criador de homens e deuses,
sorrindo para Juno, assim lhe disse :
«És a irmã de Jove, e de Saturno
és a segunda cria; não se entende
que tais vagas de raiva tenhas dentro.
Também eu não, eu dou-te o que tu queres,
me confesso vencido, obediente.
Todo o povo de Ausónia terá sempre
a língua e tradição dos avoengos,
um só nome terão, o que é o deles.
Os Troianos, depois, darão mestiços
e com eles reforço, os ritos sacros
eu próprio ordenarei e farei tudo
para latinos serem quando falem.
De sangue ausónio nova raça surge,
mais piedosa para deus ou homem,
te prestará mais honras povo alegre
do que estes, Juno. » Eis o que a deusa escuta,
com tanto gosto que lhe muda a mente,
a faz sair do céu, deixar a nuvem.
Praticada esta acção se volta o Pai
para Juturna se afastar da luta
em que entrou seu irmão. Diz-se que existem
dois seres pestilentos : são as Diras,
que, com Megera, que é do mais ruim,
são as filhas da Noite, que as criou,
as rodeou de serpes tortuosas
e lhes deu asas que do vento gozam.
Junto ao trono de Júpiter aguardam
as ordens que ele dê e que são sempre
as que maior terror dão aos mortais,
avisos de doença, fim de vida,
ameaças de guerra de castigo
contra as cidades que culpadas sejam.
Logo Júpiter manda uma, veloz,
para ser um presságio ante Juturna;
ENEIDA 501

rápido, um turbilhão a leva a terra,


tal como a seta que despede o Parto
atravessando as nuvens com veneno
ou mensageiro do que é sem remédio,
ignota sibilando sombra a sombra.
Chegada a terra, vê a Dira as tropas,
umas que são de Ílio, outras de Turno,
se faz igual ao pássaro que à noite
paira por sobre as campas, os telhados,
com pios agoirentos se anuncia.
Pela frente de Turno passa e passa
até que bate escudo com as asas .
Um torpor esquisito vem ao corpo,
cabelos se levantam com horror,
a voz não sai da boca e da garganta.
Juturna, ao longe, sente logo as asas,
o sibilar de Dira, se apavora,
a pobre irmã, desfaz a cabeleira,
magoa a face, o peito com os punhos.
«Que vai fazer agora a tua amiga
para ajudar seu Turno ? Desgraçado,
que luz posso eu reter para ta dar,
como vou resistir a monstro destes ?
Pois bem, pois bem, eu deixarei a guerra.
Não me aterreis, já temo, aves sinistras,
pois é ordem de Jove que me atinge.
É esta a recompensa de ser virgem ?
E porque me deu ele vida eterna?
E porque é que terei vida imortal ?
Pelo menos da dor me liberto eu,
às sombras acompanho meu irmão.
Eu imortal ? E que haverá de bom
para mim, meu irmão, se te não tenho ?
Oxalá para mim se abra uma terra
e tão profunda se abra que me leve,
a mim, que deusa sou, até aos Manes . >>
Parando de falar, cobre a cabeça
com mantéu verde-mar, e, deusa, some
sempre gemendo nos abismos de água.
Eneias não descansa em sua fúria,
dá voltas a seu pique que é como árvore
e grita sem conter-se : « Que demora
502 VIRGÍLIO

é essa tua, Turno, que não vens ?


Não temos de correr, é corpo a corpo
que virá o combate e com as armas
que não são de poupar quem as afronte.
Podes tomar a forma que quiseres,
vigor e génio podes tu juntar,
podes voar aos astros que estão longe
ou entrares no chão a nossos pés . »
Sacudindo a cabeça fala Turno :
«Üs teus ferozes ditos não me aterram.
Só aos deuses eu temo, Jove hostil. »
Sem dizer nada mais olha uma pedra,
um pedregulho enorme que aí estava
como marca do dono do terreno.
Mesmo uma dúzia de homens que o quisessem
só com dificuldade poderia
pegar-lhe, manejá-lo, mesmo os homens
a que é capaz a terra de dar corpo.
Ele, porém, lhe pega num momento,
a faz rodopiar a toda altura,
para a jogar contrária ao inimigo.
Mas, mesmo assim fazendo, se sente outro,
e se remove a pedra, se a levanta,
e com ela ameaça, na verdade
nota bem que joelhos lhe fraquejam,
que o sangue se lhe põe como gelado.
A própria pedra ainda rola um pouco,
mas logo cai sem nada ter quebrado.
É como quando a noite nos traz sonhos
e queremos correr com todo esforço,
mas quê, as pernas bambas se recusam,
vigor que em nós havia não sentimos,
a língua é muda e nada pronuncia.
É isto o que sucede ao grande Turno.
Tenta ter energia, mas a deusa,
sua sinistra deusa, lhe está contra.
Em sua mente um turbilhão de ideias,
no corpo todo hesitação e medo.
Para a cidade olhou e para os Rútulos,
mas é como se o dardo já viesse,
resolução alguma, falha a força,
em parte alguma vê Juturna e carro.
ENEIDA 503

Neste entretanto faz girar Eneias


o dardo que é fatal pois que viu
ser esta a hora certa de jogá-lo.
Jamais máquina deu um tal impulso
a pedra que lançasse contra muro,
jamais raio provocou um tal estrondo.
A arma voa em negro turbilhão
e faz saltar a borda da couraça,
vara as sete camadas dum escudo
e ainda vai atravessar a coxa.
Turno dobra o jarrete, vai ao chão.
Com um grito de dor erguem-se os Rútulos,
muge a montanha à volta, pelos bosques
ecoa o baque de almas e de corpos.
O guerreiro abatido estende as mãos
e suplicante diz, olhar em prece :
«Desta vez acabou-se, não te peço
que me poupes à morte, a sorte é tua.
Mas se te pode comover lembrança
dum pai que é infeliz, e o foi Anquises,
tem pena da velhice de meu Dauno
e restitui-me aos meus, e nem que sej a
apenas corpo sem a luz que tinha.
Tu foste o vencedor, viram Ausónios
erguer este vencido a mão pedindo ;
te casa com Lavínia. Cessem ódios. »
Eneias, sob as armas, freme incerto,
e para o arremesso, já desiste ;
as palavras de Turno tudo abalam.
Mas de súbito vê num ombro em frente
correia de carcás, em cinturão
a cabeça de pregos que bem lembra
da armadura de Palas, jovem Palas,
que Turno vencedor abateu mesmo
e de quem retirara seu troféu.
Colérico por ver o que fizera
aquele Turno agora ali vencido,
lhe grita numa fúria sem perdão :
«Talvez de minhas mãos tu te salvasses,
mas quem vai imolar-te é um dos meus,
esse Palas de que usas os despojos,
504 VIRGÍLIO

nisto se vinga do que lhe fizeste.»


Cheio de raiva crava sua espada
no derrubado peito, gela o corpo,
a vida se desprende num gemido,
envergonhada foge para as sombras.

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