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19121-04 - História Social e História Econômica - Turma 1 - 2021/1 - Prof.

Claudia Musa Fay


Aluna: Hariagi Borba Nunes
Doutoranda PPGH-UFRGS

Entrevista Eva Rodrigues1 dia 27/04/2021 na cidade de Noblia- UY


(duração 21 min:19 seg)

Eva Rodrigues, filha mais velha de Natalia Rodrigues, é mulher negra, mãe, católica e
inspetora de trânsito da cidade de Noblia (12 km de Aceguá-UY). Porém, muito além dessas
categorização de inteligibilidade social, Eva é alguém que conheço antes mesmo de me
conhecer. Parte da minha família, amiga de meus pais, companheira do meu tio, dona de um
lar que passei anos da minha infância. Assim, esta narrativa também fala de mim, e do que
sou eu quando estou com ela, com as mulheres da minha vida.
Eva é uma das interlocutoras na jornada da tese de doutoramento, junto com a mãe,
as filhas, as netas e as bisnetas. Dos muitos significados da escolha por esse tema de
pesquisa, creio que o mais importante tange a necessidade de que o próprio povo de Aceguá
resgate sua história feminina, negra e indígena. Natália, mãe de Eva, atravessou matos,
trabalhou em feituras de açudes, lavouras e fazendas. Construiu casas, paredes, cercas para
estancieros. Teve que deixar seus filhos em casa de família para que eles pudessem trabalhar
em troca de comida e roupas. Foi presa por defender sua família de violências domésticas.
A história de Natália, assim como a de Eva e seus irmãos, não é reconhecida na
cidade onde mora - e onde também nasci e me criei. Sabemos sobre a colonização açoriana,
de las islas canárias, pero no legitimamos o lugar onde Natalia nasceu como terra
quilombola. A vila da Lata foi reconhecida pelo estado brasileiro e pela instituição Palmares
como quilombo em 2010, porém para os habitantes de Aceguá “eles não fazem história''.
Falemos dos civilizados”2. Outro motivo pela escolha do tema relaciona-se ao lugar que

1
Esta entrevista faz parte do projeto de tese “Gênero e corpos fronteiriços: trajetórias de mulheres na cidade
binacional de Aceguá (Brasil-Uruguai) de 1913 até os dias atuais”, aprovado no programa de pós graduação em
História -UFRGS no ano de 2020. O objetivo central do projeto seria entender como se constituem,
experienciam e subjetivam corporalidades fronteiriças marcadas pela lógica do contrabando na fronteira sul
platina da cidade binacional de Aceguá-Acegua (BR-UY) a partir da trajetória de vida intergeracional das
mulheres da família Rodrigue[s/z], desde a matriarca, Natalia Rodrigues (106 anos), até a trineta Romina
Almeida (4 anos), orientada teórica e metodologicamente, nas concepções sobre fronteira sul, feminismos
decoloniais e na história oral. (Trecho retirado do Projeto de Tese apresentado por mim na seleção do doutorado
para o PPGH-UFRGS)
2
Da última vez que lá fui, apresentou-se para mim um homem “historiador de paixão”, cuja fortuna, ócio e
tempo de estudo o transformou na figura “daquele que sabe sobre Aceguá”. Ao me ver, perguntou: “estudias
história, no?! ” Respondi que sim, e que gostaria de saber mais sobre a história do lugar onde nasci. Ele contou
ocupo de sujeito político: sou uma mulher da fronteira, ou pesquisadora-fronteiriça. Através
dos feminismos entendi minha condição sociológica e pelas lentes da história percebi o
quanto nos falta sermos ouvidas, principalmente as mulheres negras. Nossas histórias serão
contadas, lançadas aos quatros ventos, rasgando os tímpanos do mundo ensurdecido.
Na noite em que entrevistei Eva Rodriguez havíamos passado o dia juntas, visitando a
Vila da Lata, casa de tias e parentes, e entrando em campos para relatar longas histórias.
Fomos de carro pelo extenso caminho da Avenida Internacional, a qual divide dois países ao
meio deixando fissuras irreversíveis: nós, sujeitos da fronteira. Os múltiplos marcos-límites,
ou mojones, decoravam a vegetação do trajeto percorrido. Altos, imponentes e demarcadores
de territórios-nação, ordenadores de linguagens e nacionalidades; para nós: meras pedras
figurativas.
Iniciamos a entrevista na sua casa, construída, segundo ela, pelas próprias mãos. Um
pouco de piña-colada, no queres?, já desfigurou a lógica de poder. Alguns pesquisadores
almejam a proximidade e descontração para melhor funcionamento da produção das fontes,
para mim: intensos fracassos para criar um lugar fora da condição “guria tu te criou aqui
porque essas perguntas?”. Talvez seja nesse mar de pedras e ondas turbulentas que eu
consiga extrair a pérola mais brilhante. As dificuldades e facilidades, pelo pesquisador, de
narrar a própria entrevista - eu diria a pré-fronte - também devem servir de análise, pois a
memória e a escrita são uma teia produzida por vários fios, tudo depende de onde a aranha
parte, os lugares que ela atravessa e para onde ela quer ir.
Ao ligar o gravador, após acender a lareira, Eva automaticamente passa a me chamar
de senhora e não mais de guria ou Hariagi. Estranho a atitude mas entendo que a presença do
gravador seja uma ruptura entre nós. Um objeto que reconfigura quem somos. Minhas
perguntas seguiam um pequeno roteiro produzido a partir dos eixos: mulheres, fronteira e
contrabando. Já havia feito as mesmas perguntas a minha avó, mãe, tia, primas e a dona
Natália, centro motriz da tese. Pedi que ela recontasse algumas coisas ditas durante a viagem
a Lata: nomes de pessoas, lugares importantes, situações chave na produção de narrativas
sobre si e sua história de vida. Após desligar o gravador, la piña colada havia alegrado nosso

curiosidades e situações da nobre colonização açoriana e, segundo ele, canaria “ de las islas canarias ”. Indaguei:
“ mas também há composição dos povos originários e da população negra ?!”. A resposta seca, dura e dolorida
foi: “ no, pero yo hablo de los civilizados ”. Do nocaute inesperado aquela resposta, eis que emerge um
desconforto cerebral em forma de dúvidas: “É este o sujeito que anuncia e autoriza narrativas históricas sobre
Aceguá e seus habitantes? É esta história eurocêntrica e extrativista que el pueblo está
ouvindo/reproduzindo/compondo para e sobre si? Qual função política assume meu corpo, enquanto historiadora
nascida en el pueblo , para a produção e reprodução de outras narrativas?” (Trecho retirado do Memorial
Acadêmico apresentado por mim na seleção do doutorado para o PPGH-UFRGS)
momento inquisidor. Com o clique no botão stop tudo voltou a funcionar: risadas, fofocas, e
meu nome.

Análise da entrevista

Das histórias e experiências narradas por Eva Rodriguez em nossa conversa gravada,
gostaria de pontuar algumas falas onde podemos traçar aspectos importantes da condição de
mulher negra, fronteiriça, pobre, mãe. Para isso usaremos a seguinte sistematização: 1)
Infância (trabalho doméstico, racismo, falta de oportunidade), 2) Vida adulta (estudos,
casamento, trabalho, filhos, casa); 3) mulher-fronteira (fronteira, contrabando, línguas e
nacionalidades).

Infância
Eva inicia a narrativa falando que mudou-se para Noblia quando tinha 5 anos. Ano da
diáspora de sua mãe Natalia. Foi em fuga, pelos matos “ e muitas vezes de noite, por dentro
dos campos… e muitas vezes nós dormíamos na geada… nós caminhava a pé na noite de
medo desse homem”. Esse homem era marido de Natalia e, “ele era uma pessoa muito …
violenta”. Segundo Eva, em uma dessas agressões cotidianas, a mãe deixou a Vila da Lata
(30km de Aceguá- BR) caminhando com seus filhos à noite para chegar em Noblia (12 km de
Aceguá-UY), percorrendo ao todo mais de 40 km. Assim, por violência doméstica, Eva passa
a morar no Uruguai com a mãe e os irmãos. Nesta parte da vida, Eva frisa que “não tive
infância”, pois Natalia, trabalhadora de estâncias, não poderia levar os filhos junto,
deixando-os assim em “casa de família pela roupa e comida”. Eva aponta com clareza, “a
mãe nunca nos deu. Ela sempre falava assim: ‘meus filhos não são cachorros. Eu não dou
meus filhos’”, evidenciando que não foi escolha da mãe e sim circunstâncias sociais. Nesse
momento da narrativa Eva também fala sobre o quanto essas “casas de família" eram racistas
e que mesmo ela sendo “apenas uma criança”, esses atos destituíram a possível infância feliz.
Para ela, racismo ainda existe “Mas nessa época tinha mais”. Foi nesse momento da sua vida
que também deixou a escola, não por escolha, mas pelo excesso de trabalho. Podemos
acompanhar em toda narrativa de Eva que deixar os estudos foi algo muito doloroso mas que
ela, “depois de grande, grande” conseguiu reverter. Para Eva a infância é esse espaço-tempo
de nostalgia e admiração, mas principalmente o momento de substituição do brincar pelo
trabalhar, “Eu não tive infância. Eu não tive infância porque eu tinha que trabalhar. Eu
brincava só assim: se fosse a patroa boa e dai eu pudesse brincar. Brincar com as crianças da
patroa”.

Vida adulta
Para a Eva a vida adulta começou quando foi trabalhar e deixou a escola, ou seja, com
oito anos. Porém, o que marca essa passagem de infância a vida adulta, pelas falas de nossa
interlocutora, é o momento do casamento, aos 19 anos, e o nascimento da primeira filha aos
20 anos “Aos 19 anos casei e aos 20 tive minha primeira filha Adriana - que hoje tem 41
anos”. Foi a ocasição, também, onde construiu, com ajuda do marido na época, a casa que
vive até hoje “Quando eu tava casada eu construí minha casa, com o pai das minhas filhas
(...) Então eu fiz a minha casa… eu tenho meu teto porque eu fiz a minha casa.”. Podemos
observar que Eva destaca “não ter parado no tempo” e o orgulho que sente dos seus filhos,
que apesar de não terem estudado, hoje trabalham bem e moram em casas próprias. Para ela,
ter voltado a estudar, sendo mãe solteira de 3 filhas foi um grande sacrifício compensatório,
pois só faltam alguns anos para sua aposentadoria: “Tá e os cursos que aparece eu faço. Eu
trabalhei também três anos na polícia municipal. E tá... faço cursos. Tenho auxiliar
administrativo de empresa; tenho os primeiros auxílios; tenho trabalhos comunitários; tenho
educação e direitos humanos. Ou seja, eu fiz bastante curso, me preparei depois de grande.
Depois de grande me preparei pra vida”. Ao finalizar, perguntei à Eva sobre a criação dos
filhos, e como se infância e vida adulta se ligassem ela responde: “Então como eu não tive
infância eu quis dar infância pros meus. Eu dei tudo que eu pude e o que eu não pude”,
frisando que: “É uma luita criar os filhos, criar os filhos é uma luita mas é uma luita que a
gente faz com prazer. Eu como mãe me sinto orgulhosa dos meus filhos”.

Mulher-fronteiriça
Eva ocupa um cargo burocrático ligado ao estado, inspetora de trânsito, e também
trabalha como gestora da fiscalização das fronteiras. Eva, ao mesmo tempo que vive
enquanto sujeita fronteiriça, também pertence ao órgão que controla e regula a passagem
nesse espaço. Ao iniciar as perguntas sobre fronteira e contrabando, Eva defende a condição
do fronteriço enquanto sujeito que contrabandea para sobrevivência, afirmando que o
contrabando em curta escala é um ato necessário, e fala de si nesse limbo do certo x errado,
legal x ilegal, “que tá bem e tá mal” ao mesmo tempo: “Faz parte da cultura porque eu
sempre falo assim: Eu no caso. Eu sou castellana e tenho carro brasileiro porque eu tenho
toda a documentação como estrangeira. Por isso tenho carro brasileiro. E é uma coisa assim:
tá mal e tá bem.”. Diz que o contrabando é quase incontrolável pois o fato da fronteira de
Aceguá ser seca a fiscalização não atua de forma contundente “contrabando não se termina!
Até porque não se termina pelo seguinte: nós estamos em uma fronteira seca… e já houve
esse aperto de querer fechar e escapa de um lado. Nós estamos em uma fronteira totalmente
seca. E mais: é uma das fronteiras mais fáceis”. Sobre isso, exemplifica que a fronteira de
Jaguarão, onde também atua como fiscalização aduaneira, torna-se mais difícil de passar pois
“O control é mais rígido lá”.
Outra questão a ser destacada sobre a condição de mulher fronteiriça está na
linguagem e na nacionalidade. Nós, sujeitas da fronteira de Aceguá, não falamos as línguas
nacionais de ambos países. Ao contrário, as juntamos e configuramos outro linguajar: o
portunhol. Ao fazer a transcrição da entrevista, esse aspecto linguístico foi cuidadosamente
evidenciado a partir de palavras em itálico, como: entonces, tareas, diferencia, entre outras.
Este entrelaçar de línguas pertence ao que podemos chamar binacionalização em espaços de
trânsito, resultado de casamentos, escolas, trabalhos, e laços afetivos binacionais. Como Eva
aponta, ela é uruguaia e a mãe brasileira. Já seus filhos são todos uruguaios, mas assim como
ela entendem bem o português, apesar de não falarem. Eva destaca sobre falar os dois
idiomas: “as duas porque eu tô bem na fronteira. Eu tenho família nos dois lugares. Eu
estudei no Uruguai … eu só não escrevo em brasileiro… não… me custa escrever. Eu me
administro o mais bem falando”. Esta miscelânea de nacionalidades também comporta o resto
da família de Eva, onde todos seus filhos são uruguaios, mas alguns dos seus irmãos são
brasileiros, assim como a matriarca Natalia.

TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA

H: Vamos falar um pouco com a senhorita Eva Rodrigues. Quantos anos tu tem mesmo, Eva?

E: 61

H: quando eu fiz o projeto, tu tinha,...

E: 59

H: As perguntas que eu ia fazer são mais ou menos as mesmas que eu ia fazer pra natalia,
mas tu pode responder do jeito que tu quiser… se quiser falar um pouco mais. é que a natalia
não falou muito, né… ela fala pontualmente.
E: pontualmente e tem outra coisa: ela tá surda, né!

H: primeira pergunta: como era a região quando tu era criança? Que tu me contou um pouco
lá. Lá que nós fomos na lata. Se quiser falar mais um pouco da lata… das coisas que tu te
lembra.

E: Aquilo das achuras tu já botou? (voz baixa?)

H: Não! que achuras?

E: Que eu ia com a mão fechada?

H: ah não.

E: Tá. Eu vim de lá daquele lugar que nós fomos hoje , Lata, caminho internacional. Um lado
da estrada é Brasil e o outro é Uruguai. Tá, eu vim com 5 anos de lá. É coisas que a minha tia
me conta, como te contó a tia Maria hoje. A tia Gleci. são coisas assim. Eu me lembro bem
do lugar, tudo. Fui no colégio lá, brasileiro. mas eu não… ou seja, uma criança com 5 anos.
quando nós viemos para o Uruguai , que minha mãe faz documentação para poder adquirir
um terreno, um lugar para morar aqui. Tinha muita pobreza. Seria no ano? eu tenho 61

H: Tu nasceu em que ano, Eva?

E: 59

H: Então deveria ser 65 por ai

E: Esse ano ai tinha muita pobreza. A mãe chegou num lugar que não conhecia com 5
filhos...

H: Veio para Noblia?

E: Sim, Noblia-Uruguai que fica 12km de Aceguá. Então, ela tinha 5 filhos em um lugar que
não conhecia. Não existia… hoje existe muitos planos de saúde. Existe muita ajuda por parte
do governo, entonces não tinha nada. Aqui tem o que dizem asignación: é toda aquela criança
que estuda recebe do governo, até terminar o secundário. Isso não existia nada. A gente era
muito pobre, o trabalho da mãe era assim: trabalhava nas estâncias, tinha lugares - fazendas -
que não deixavam levar todos os filhos. E acontecia o seguinte: a mãe nunca nos deu. Ela
sempre falava assim: ‘meus filhos não são cachorros. Eu não dou meus filhos ``. A minha
mãe nos colocava em casa de família, pela roupa e comida. Encontes era pela roupa e pela
comida.E nós, como eu no caso, meus irmãos, nós saimos. Eu, pontualmente, sai com 8 anos
de casa. Porque a mãe foi trabalhar em uma fazenda , não deixavam levar todos os filhos, e
tinha uma familia amiga e a mãe me deixou ai. Pela roupa, pela comida e pra ajudar na coisa
das tareas de casa… limpar a cozinha… ajudar. Dai eu já comecei… me tiraram do colégio,
porque eu tinha que trabalhar, dai não ia mais no colégio. E eu sai no terceiro ano do colégio
porque eu não podia.

H: terceira série?

E: sim, bem pequena. Dai segui eu trabalhando...meus irmãos também… uns por aqui e
outros por ali. Ninguém continuou estudando porque tinha que trabalhar. Outro irmão meu
que tem dois anos a mais que eu, ele foi trabalhar em uma granja com 12 anos.

H: Qual é esse?

E: O José. Depois eu tinha a outra irmã minha, a Manuela, que faleceu com 26 anos. Ela
também, trabalhava que nem eu assim: lavava roupa. depois começamos… ai ficamos mais
grande e começamos a trabalhar por conta. Dai nós já trabalhava um mês pra nós e um mês
pra mãe. Era a maneira que nós tinha de ajudar nossa mãe. E a mãe sempre trabalhando.
Trabalhava no mato cortando lenha. Cortava palha no banhado que se usava muito as casa de
palha. Toda de palha. Fazia a parede. A casa do tio Cabo que é irmão da mãe, que mora em
Aceguá, o princípio da casa dele era toda de palha. em cima e embaixo.

H: O Cabo morava onde?

E: Na Lata. Depois veio para aceguá. Ali onde ele mora agora. Seu Sidney é o nome dele. é
irmão da minha mãe. Tá, e tu queria saber sobre mais a minha vida?

H: é, tua infância.

E: A minha infância, como eu falei, hoje eu sou mãe de 4 filhos… sou mãe de 4 filhos., tenho
8 netos e 2 bisneto. mas eu não tive infância. Eu não tive infância porque eu tinha que
trabalhar. eu brincava só assim: se fosse a patroa boa e dai eu pudesse brincar. Brincar com as
crianças da patroa. Se deixassem, porque também existia o racismo. Tinha casas que eu
trabalhava que eu comia fora. Eu não podia comer na mesa, eu tinha que comer em uma
mesinha fora.

H: E tu era uma criança?

E: Eu era uma criança e tinha que comer fora. Porque eu era negra, né? Ou seja, eu não sou
bem preta mas eu sou descendência de preto. Então tem isso… tinha muito isso… existe
ainda. Mas nessa época tinha mais. Ai depois eu no colégio não fui mais… depois segui
trabalhando… trabalhando como doméstica já. Eu ajudava a mãe e aos 19 anos casei e aos 20
tive minha primeira filha Adriana - que hoje tem 41 anos - ; depois ganhei a Márcia, que tem
40, porque tem um ano de dicerencia. Depois tem a Ana que tem 35 e depois o José Carlos
que vai fazer 29. Mas o causo é que eu não fiquei no tempo… eu me separé, com as três
gurias pequenas, sem trabalho. Mas ai eu … quando eu tava casada eu construí minha casa,
com o pai das minhas filhas. Eu construí uma vivienda, no Brasil é as Pre molar… aqui é as
vivendas de ajuda mútua, que a pessoa paga metade da casa com trabalho.Então eu fiz a
minha casa...eu tenho meu teto porque eu fiz a minha casa.

H: essa aqui?

E: Essa aqui. Tá. Depois eu me separei. Depois que eu me separei eu tive o José Carlos, que
tem 28 anos hoje. Mas eu não parei. Eu depois de grande… grande, grande, terminei o
colégio… teve uma oportunidade de eu terminar o colégio. aqui onde eu moro, eu terminei o
colégio. depois eu fiz… o que pra nós aqui é ciclo básico. …não sei como é pra vocês no
Brasil…

H: ah é o EJA.

E: Secundário é o primeiro e o terceiro no de liceo… No ano de 1996 eu entrei na prefeitura


como inspetora de trânsito. E agora já tô pra me aposentar… já tenho idade pra me
aposentar… já tenho os anos de trabalho, porque eu trabalhei também fora da prefeitura. Tá e
os cursos que aparece eu faço. Eu trabalhei também três anos na polícia municipal. E tá.. faço
cursos. tenho auxiliar administrativo de empresa; tenho os primeiros auxílios; tenho trabalhos
comunitários; tenho educação e direitos humanos.. ou seja, eu fiz bastante curso, me preparei
depois de grande. Depois de grande me preparei pra vida. Não sei se tem outra pergunta?

H: Sim. Que tu falasse um pouco aquilo que tu me contou que eu não tinha gravado…. de
vocês saindo lá da Lata e vindo pra cá.

E: É porque nós levava uma vida assim, ô: o pai da minha irmã que faleceu, ele era uma
pessoa muito … violenta. porque antes existia muita violência, dos maridos darem nas
mulheres.. que existe até hoje mas antes não havia … pra que dar um exemplo, assim como
era a Lata, eles agarravam e era tipo cowboy/coboi… era um povo coboi… se pegavam a tiro
e ali ficava o morto dois três dias até ir um policial la. era um povo que não tinha acesso.
Então esse homem judiava muito da mãe , então nós caminhava a pé esses trinta quilômetros
que nós fizemos de carro hoje comodamente, nós fazia a pé. e muitas vezes de noite, por
dentro dos campos… e muitas vezes nós dormíamos na geada… tá porque tínhamos que …
nao tinhamos como ficar. minha mãe de medo dele se vinha , sempre buscando o uruguai até
que se veio. meu avô , o pai dela comprou esse terreno pra ela e ela se veio pra cá. Agora
mora aqui mas nós caminhava a pé na noite de medo desse homem.

H: E ele não apareceu mais?

E: Depois que ela veio pro Uruguai… é que aqui é diferente. Ele veio aqui e ela disse que ia
ficar aqui e ele disse que aqui não podia ficar porque não podia ter arma. Porque no Uruguai
tu não pode ter arma, né. Só se tu for policial… tu tem que ter um preparo e tu tem que ter
porte de arma pra usar uma arma. E ai ele não tinha isso dai. Ele era brasileiro e ele se foi pra
não perder a arma e não veio mais. não veio nunca mais.
H: E o que mudou dessa tua época pra cá? A população, por aqui...cresceu muita coisa?
Como era aqui?

E: Aqui quando nós chegamos, como eu te falei, eu tinha 5 anos… nos anos 1964, por ai.
Aqui onde nós moremos agora ...agora nesse momento tem 3, 900 habitantes… nesse tempo
teria 300, nem tantas. Tinha 4, 5 casas. Um armazén forte e depois casas. E muitas casas
feitas de torrão … se usava muito fazer torrão. A minha mãe era ela que fabricava as casas e
lixava e tudo. esse mesmo plano de vivendas que eu te disse… agora já estamos no sexto
plano de viviendas. agora tem 500 vivendas aqui.

H: bahhh

E: agora tão fazendo 27 más. mudou tudo.. mudou muito. cresceu. agora todo mundo tem
acesso a internet.. as crianças tem internet no colégio. não existe pobreza. não existe pobreza.
posso lhe dizer que esse povo aqui hoje em dia não existe pobreza.

H: E a tua mãe é umas das mais velhas daqui?

E: Hoje em dia é a mais velha. É a mais velha daqui. Ela mora sozinha, ela não toma remédio
- a não ser pro problema de coluna , de ossos - ela não toma. Se faz tudo ela mesma: ela
cozinha, se tem que fazer a horta faz a horta, ela mora sozinha com essa idade.

H: cuida dos cachorros

E: cuida dos bichos. ela só mora sozinha porque ela pode ainda morar sozinha.. o dia que ela
não puder ela não vai morar mais sozinha mas ela pode e ela quer agora. ela tá no mundo
dela.

H: fuma

E: fuma, toma cachaça

H: tá e a fronteira pra ti é o que, Eva?

E: a fronteira é onde eu me criei: comprando no brasil e trazendo pro uruguai. como nós
dizemos aqui: um caminho de quileiros. Quileros é o que a mãe já te disse hoje: é aquele que
compra no Uruguai .. compra no Brasil e vende no Uruguai por outro preço. Esses são os
quileros … só que… tá, já cambiou muito né. Começaram a cavalo e depois de bicicleta,
depois de moto , que tem até agora, famoso contrabando de moto , que é só aqui que tem. E
carro… nos ônibus contrabandeiam, ou seja, a fronteira pra mim é tudo. onde eu me criei,
lugar onde eu tô, capaz onde eu vou morrer. mas é assim.

H: e é bom morar aqui?


E: é bom.. muito bom. eu adoro meu povo. adoro a fronteira. tenho família dos lados.

H: É sempre uma travessia, né?

E: continua a travessia.

H: e tu fala espanhol ou portugues?

E: as duas porque eu tô bem na fronteira. eu tenho família nós dois lugar. eu estudei no
uruguai … eu só não escrevo em brasileiro… não.. me custa escrever. Eu me administro o
mais bem falando. Como eu te falei que sou inspetora de trânsito da prefeitura aqui , eu
também sou gestora. Eu faço todo o tipo de trâmites, como por exemplo os brasileiros, que
tem muito aqui na fronteira, que fazem a identidade uruguaia. Que é por meio de
consulado… ministério das relações exteriores, por meio da polícia federal, que exige
também um certificado de boa conduta e esse trâmite eu faço ele todo. Faço todo o trâmite.
Depois vem a pessoa, para assinar e fazer o que tem que fazer. Eu faço todo um
encaminhamento desses documentos, eu faço. Que é outro trabalho.

H: E tu como pessoa que está … é agente da polícia, ne, também, como tu vê essa coisa do
contrabando? Porque tu falou agora que ao mesmo tempo que é uma coisa errada também faz
parte da cultura do povo, ne.

E: Faz parte da cultura porque eu sempre falo assim: eu no caso. eu sou castellana e tenho
carro brasileiro pq eu tenho toda a documentação como estrangeira. Por isso tenho carro
brasileiro. E é uma coisa assim: tá mal e tá bem. Porque é sempre uma coisa que eu digo: o
contrabando não se termina! Até porque; não se termina pelo seguinte: nós temos em uma
fronteira seca… e já houve esse aperto de querer fechar e escapa de um lado. Nós estamos em
uma fronteira totalmente seca. e mais: é uma das fronteiras mais fáceis , é a fronteira Uruguai
x Brasil por aceguá.

H: De passar né?

E: Em todos os sentidos, é a fronteira mais aberta que tem. A mais aberta.

H: Mas o povo faz o que chamam de contrabando formiga, ne?

E: Isso, esse contrabando que é pouco. Tem o contrabando formiga que é pouco. Tem o
contrabando de moto, que já é bastante. Porque uma moto carrega até 20 botijão de gás de 13
quilos, daí já é uma formiga grande (risos). e tem o contrabando grande grande.. que esse é
grande.

H: e esse é o que, mais ou menos? drogas, armas?


E: tem contrabando de muita coisa: madeira, veneno.. e nas fronteiras hoje tá muito comum a
droga… droga, arma. isso vai e vem, né?... remédio.

H: Tá e tu acha que nos lugares que não tem fronteira seca é mais difícil passar?

E: É mais difícil. eu tô a 100km de rio branco… jaguarão. Igualmente se passa mas é mais
difícil. Eu faço essa fronteira aí também por causa que eu trabalho com tradutor … porque
pro meu trabalho eu trabalho com tradutor público e o meu tradutor público mora em
Jaguarão. Eu não contrabandeio lá mas eu vejo quando passo. O control é mais rígido lá.
Agora igualmente com o tema do covid dai tá o quartel. Dai tá fiscalização de todo mundo.
eles só não deixam entrar brasileiro. Mas igual entra na fronteira seca. Mas jaguarão já é mais
… igual Brasil abriu agora a fronteira. Só tá Uruguai com a fronteira fechada.

H: E como foi criar os filhos? melhor agora ou antes?

E: olha, eu acho que… criar os filhos… eu não queria que meus filhos se criassem como eu.
Como lhe disse eu não tive infância. Então como eu não tive infância eu quis dar infância
pros meus. Eu dei tudo que eu pude e o que eu não pude. Dei tudo por eles. Eles não
estudaram mas graças a deus todos eles tem seu trabalho e todos tem sua casinha. E tá. É uma
luita criar os filhos, criar os filhos é uma luita mas é uma luita que a gente faz com prazer. Eu
como mãe me sinto orgulhosa dos meus filhos.

H: Mas eles não estudaram porque não quiseram?

E: sim, porque não quiseram. Eles tiveram tudo, tudo pra estudar. Não estudaram porque não
quiseram. De repente agora que são mayores querem estudar. Mas não estudaram porque não
quiseram

H: Mas tua mãe falou que não se tem mais respeito.

E: ah sim, o respeito … é que o tempo que a minha mãe te falou existia muito mais respeito,
sim.. agora os filhos, como que se foi. Não tem respeito sobre o pai o filho, mas tem ainda
respeito. Mas não é como antes. Agora já tem a proteção ao menor… essas coisas.

H: E tu já trabalhou no comércio? Alguma vez?

E: Não, no comércio não. Nunca trabalhei em comércio.

H; E teus filhos são todos uruguaios?

E: Todos uruguaios.

H: E tu é uruguaia?
E: sim

H: Mas tua mãe é brasileira?

E: Mãe é brasileira. Só que ela fez os papéis aqui pra depois ter a propriedade desse lado.

H: E teus irmãos são brasileiros também?

E: Alguns brasileiros e outros uruguaios… porque nós nascemos na fronteira.

H: Mas teus filhos só falam espanhol?

E: só espanhol.

H: Tuas netas também?

E: também. Bisneto também.

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