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Artigo Científico Original

Diferença colonial e antagonismo:


investigando a alteridade da América Latina
Colonial difference and antagonism:
searching otherness in Latin America

Laurenio Leite Sombra

Resumo
Este trabalho visa discutir os conceitos de “diferença colonial” e “pensamento liminar” de Walter
Mignolo, em articulação com uma discussão filosófica das questões da diferença e do antagonis-
mo, especialmente de acordo com a proposta de Ernesto Laclau, mas também com reformulações
do próprio autor. De acordo com a hipótese do artigo, as relações de alteridade e os antagonismos
que compuseram os processos de constituição da modernidade e da colonialidade podem ser
compreendidos a partir de uma gramática filosófica estruturada no modo com o qual a questão da
diferença foi investigada, especialmente a partir do século XX. Pensá-la em contraposição à ideia
marxiana de contradição dialética torna-se um bom recurso para esta análise.
Palavras-chave: Diferença colonial; pensamento liminar; antagonismo.

Abstract
This paper aims to discuss Walter Mignolo’s concepts of “colonial difference” and “border thinking”,
in articulation with a philosophical discussion of the questions of difference and antagonism, es-
pecially according to Ernesto Laclau’s proposal. According to the main argument of this paper, the
relations of otherness and antagonism that informed the processes of constitution of modernity and
coloniality can be understood from a philosophical grammar structured in the way in which the
question of difference has been investigated, at least from the beginning of the twentieth century.
To think of this question in contrast to the Marxian idea of dialectical contradiction becomes a good
resource for this analysis.
Keywords: colonial difference; border thinking. antagonism.
Laurenio Leite Sombra

Introdução Ao mesmo tempo, uma espécie de “outro” for-


jado numa perspectiva sempre insuficiente de
A América Latina padece de uma situação pecu-
ocidentalização. Segundo Mignolo, “as Índias
liar no âmbito mundial. Tendo sido “descoberta”
Ocidentais (...) e mais tarde a América (...) eram o
pelos europeus, os povos que dela fazem par-
Extremo Ocidente, não sua alteridade. A América,
te viveram diversos processos de domínio e re-
ao contrário da Ásia e da África, incluía-se como
sistência, desde que Colombo chegou ao “novo
parte da extensão da Europa e não como sua
mundo” em 1492: em medidas diferentes a cada
diferença” (2003, p. 91). Isso colocava a América
território e cada povo, houve conquistas militares,
Latina numa espécie de espaço-entre, um “outro-
subjugação dos povos indígenas, tráfico de es- -mesmo” que nem sequer lhe permitia a conso-
cravos africanos, cristianização e aculturação dos lidação de um imaginário “orientalista”. De outro
povos subjugados, processos de mestiçagem (em lado, a condição subalterna da América Latina
muitos casos, com violência sexual, raptos etc.); também se fazia por um aspecto complementar.
houve também diversos processos de resistência A imagem europeia (distorcida) que lhe servia era
por parte da população indígena, negra e mesti- a de Espanha e Portugal, países que progressiva-
ça, mas também de negociação e transformações mente perdiam seu poder simbólico no âmbito
culturais por parte de opressores e oprimidos. Por europeu. Mignolo fala da alegada
outro lado, a população de origem europeia na
América, normalmente nomeada na América es- superioridade da ‘raça branca anglo-saxônica’
panhola como criolla, aos poucos produz uma cujo destino era civilizar o mundo sobre os ‘bran-
“identidade” própria e reivindica aspectos particu- cos cristãos católicos e latinos’. A ideia de ‘latino’
foi introduzida pela intelectualidade política fran-
lares em relação à sua origem, ao mesmo tempo
cesa e usada na época para traçar as fronteiras,
em que mantém diversos mecanismos de opres-
tanto na Europa como nas Américas, entre anglo-
são com a população negra, indígena e mestiça. -saxônicos e latinos (2003, p. 91).
Para além disso, o processo histórico que conso-
lida a América Latina se faz por meio de diversas Este processo ganha um caráter particular, na
fases. Se o domínio europeu se deu, inicialmen- modernidade, com o desenvolvimento da ideia
te, a partir da hegemonia católica e imperial de de progresso. Segundo Koselleck, a partir dessa
Espanha e Portugal, este domínio cedeu lugar, perspectiva fortemente desenvolvida no fim do
progressivamente, à emergência da Holanda e, século XVIII, gesta-se uma noção de tempora-
lidade irreversível, um “singular coletivo” que a
principalmente, da França e da Inglaterra. No sé-
tudo atravessa e a tudo alcança (KOSELLECK,
culo XIX, deu-se o avanço do poder estaduniden-
2012). Isso se manifesta, por exemplo, na ideia
se, inicialmente a partir de grandes conquistas
de “evolução do espírito” de Hegel e, posterior-
territoriais do México. Mais ao final do século,
mente, do desenvolvimento da humanidade
com a vitória na guerra hispano-americana, esse
em direção à “ciência positiva” em Comte. De
poder se ampliou, especialmente sobre a Amé-
acordo com essa perspectiva evolutiva, o “outro”
rica central. Poder que se tornou hegemônico
não é apenas um subalterno inferiorizado, mas
mundialmente com a 2ª Guerra Mundial e seus
alguém que ainda não alcançou o progresso
desdobramentos. (MIGNOLO, 2003)
inexorável. Assim, “ser civilizado é ser moder-
Esta progressão histórica funda uma ideia de no e ser moderno significa estar no presente”
América Latina estruturada numa dupla condi- (MIGNOLO, 2003, p. 385). Foi esta perspectiva
ção subalterna. De um lado, pela grande popu- que alimentou, já no século XX, a ideia de paí-
lação mestiça, negra e indígena, ela é gestada ses “subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimen-
simbolicamente a partir do “outro” do europeu. to”, categoria que abarcava todos os países da

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América Latina, diferenciados apenas pelo “está- analisar determinados conceitos postos em diá-
gio de desenvolvimento” que teriam alcançado. logo no decorrer do texto. Fréderic Cossutta pensa
a análise filosófica, justamente, como “reexame e
A noção de progresso, entre outras, foi fortemen-
redefinição do conceito” (1994, p. 40). Por meio
te questionada pelo pensamento pós-modernista
dessas operações, “unidades de sentido são fixa-
europeu (se o pensarmos amplamente a partir
das, ligadas, hierarquizadas para constituir um
de pensadores como Nietzsche, Freud, Heidegger,
universo autônomo de significação” (p. 40), bus-
teóricos críticos, estruturalistas e pós-estrutura-
cando, ao mesmo tempo produzir “um quadro de
listas, por exemplo); e pela sua contraparte pós-
inteligibilidade do real” (p. 41). É exatamente por
-colonialista (desde Fanon, Césaire, passando por
meio desse recurso que o texto em questão pre-
Said, Bhabha, Spivak e os pensadores latino-ame-
tende, por meio dos conceitos analisados, repen-
ricanos). Apesar disso, ainda são testemunhadas
sar a questão da América Latina.
visões triunfalistas, como a do “fim da história” de
Fukuyama (1989), embora cada vez mais ques-
tionadas até mesmo pelo establishment. De todo Diferença colonial:
modo, apesar de uma forte crítica interna, a visão
o paroxismo da diferença
de progresso não está morta e ainda influencia
fortemente o imaginário. O conceito de “diferença colonial” de Mignolo
parte do conceito de “colonialidade do poder”,
Diante desse cenário complexo, como pensar desenvolvido por Aníbal Quijano a partir de
a condição da América Latina? Como pensar 1992, conforme já abordado em outra publica-
certa gramática conceitual que possa contri- ção (SOMBRA, 2015b). Quijano articula (1992,
buir, eventualmente, com a possibilidade de um 2005) a nova relação de poder instituída a partir
olhar diferenciado em relação a essa condição? da “descoberta” da América ao menos em três
O pensador argentino Walter Mignolo, a partir do dimensões: (1) econômica, com um amplo pro-
livro História locais/projetos globais, desenvolveu cesso de exploração desde o mercantilismo do
importante reflexão a esse respeito. Nele, pensa século XVI até o desenvolvimento maduro do
algumas noções fundamentais, como “diferença capitalismo, com diversos tipos de explorados: o
colonial” e “pensamento liminar”. Contudo, ape- proletário (inicialmente) branco, o servo indígena,
sar de algumas definições provisórias ao longo o escravo africano, por exemplo; (2) identitária,
do livro, os termos formulados são apresentados com o processo crescente de consolidação das
muito mais frequentemente de forma descritiva, “raças”, incluindo a própria autoidentificação do
a partir das diversas “histórias locais” que eles “branco” europeu, processo que deriva no racis-
articulam, histórias que se confrontam com os mo científico do século XIX; (3) epistemológica,
“projetos globais” hegemônicos da modernidade. a partir da imbricação fundamental na relação
O desafio que se coloca é: como pensar a “dife- sujeito-objeto, com concomitante fortalecimen-
rença colonial” filosoficamente? De que forma é to de novas dualidades, como cultura-natureza,
possível depreender dessa construção a possibi- mente-corpo, entre outras, que favoreceram me-
lidade de um “pensamento liminar”? Para tanto, canismos de controle cada vez maior. Além disso,
pretende-se evocar aspectos da produção teórica faz parte dessa configuração uma ênfase à ideia
de alguns autores, de modo a tentar compreen- política e epistemológica de indivíduo.
der mais aprofundadamente a ideia de diferença
O grande aporte trazido por Quijano decorre da
colonial e seus desdobramentos.
profunda imbricação entre esses três aspectos.
Metodologicamente, a investigação em questão Exemplo: os mecanismos de exploração operados
se dá no âmbito filosófico. Como tal, pretende desde o mercantilismo só são possíveis de serem

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materializados a partir da diferenciação das raças e tornou-se a ‘essência’ da modernidade” (2003,


e, nelas, porque os povos subjugados são trata- p. 385). Em contraposição, Mignolo defende
dos prioritariamente como “objetos”, “natureza” uma historiografia que “espacializa o tempo e
e “matéria-prima” da ação do “sujeito” europeu. evita narrativas de transição, progresso, desen-
Nessa perspectiva, poderíamos dizer, para usar volvimento e pontos de chegada” (2003, p. 281).1
uma terminologia marxista, que a “infraestrutura” Assim, pensar a diferença colonial como um
(item 1) se constitui e materializa em profunda “espaço” parece significar, para Mignolo, a reto-
conexão com um modo particular de “superes- mada essencial desses lugares de confrontação,
trutura” (itens 2 e 3), imbricação que já torna ao sem permitir que as “histórias locais” subalternas
menos parcialmente anacrônica a própria sepa- sejam pensadas como meras possibilidades “em
ração nesses termos. extinção” a serem superadas pelo caminho avas-
Mignolo parte explicitamente do conceito de co- salador do progresso.
lonialidade do poder para pensar a diferença co- O outro ponto importante é o próprio substantivo
lonial. Esta é definida assim: utilizado por Mignolo para pensar esse espaço,
“diferença”. A filosofia, especialmente a partir do
A diferença colonial é o espaço onde emerge a
século XX, desenvolveu diversas formulações em
colonialidade do poder. A diferença colonial é o
torno da ideia de diferença, muitas vezes em con-
espaço onde as histórias locais que estão inven-
tando e implementando os projetos globais en- fronto com certa noção pretensamente pacífica
contram aquelas histórias locais que os recebem; de identidade. Para um pensador como Derrida,
é o espaço onde os projetos globais são forçados por exemplo, há sempre uma diferença primei-
a adaptar-se, integrar-se ou onde são adotados, ra (que ele nomeia como différance) que funda
rejeitados ou ignorados. A diferença colonial é, as nossas significações mais essenciais. E esta
finalmente, o local ao mesmo tempo físico e ima- diferença se institui a partir de dualidades fun-
ginário onde atua a colonialidade do poder, no
damentais. Para citar um caso emblemático: na
confronto de duas espécies de histórias locais vi-
conferência “O círculo linguístico de Genebra”, ao
síveis em diferentes espaços e tempos do planeta
(2003, p. 10). abordar O ensaio sobre a origem das línguas de
Rousseau, Derrida fala em uma recorrente oposi-
Há alguns aspectos importantes a ressaltar a par- ção sul-norte, oposição que Rousseau, em defesa
tir dessa citação. Em primeiro lugar, vale a pena do “selvagem”, eventualmente associa positiva-
registrar a insistência de Mignolo em abordar a mente ao sul e a uma origem humana.
diferença colonial inserida em um espaço. Esta
No polo da origem, mais próximos do nascimen-
insistência é mais bem compreendida se perce-
to da língua, é a cadeia origem-vida-sul-Verão-
bermos, ao longo do seu livro, que ele pensa a
-calor-paixão-acentuação-vogal-metáfora-canto,
transformação da ideia de progresso ao final do etc. No outro polo, à medida que nos afastamos
século XVIII como a conquista de uma primazia da origem: decadência-doença-morte-norte-Inver-
do tempo em relação ao espaço: “a partir do sé- no-frio-razão-articulação-consoante-propriedade-
culo 18, o tempo reordenou a história universal -prosa-escrita (DERRIDA, 1986, p.184).

1
Seria mais adequado dizer que o que se transformou no século XVIII foi um modo peculiar de se falar no tempo: este passou a ser pensado como
progresso, como evolução irreversível e inexorável. Nesta linguagem, os povos hegemônicos ficam associados, de modo valorativo, aos estágios evolutivos
dessa temporalidade e às perspectivas de futuro que elas ensejam. As épocas anteriores são carregadas de outras temporalidades possíveis, como a ideia
de tempo cíclico ou do tempo dos povos metaforicamente pensados como um organismo (nascimento, crescimento, maturidade e morte) (KOSELLECK,
2012). Não se trataria, portanto, de uma primazia do tempo, mas da primazia do tempo como progresso. Por outro lado, já antes do século XVIII, a moder-
nidade viu uma crescente uniformização do tempo e do espaço, como grandezas matemáticas. Diante desses aspectos, , mais do que uma “volta ao
espaço”, o que está em disputa é a retomada do conceito de lugar, noção que abarca uma articulação complexa de temporalidade e espacialidade vividas
(SOMBRA, 2015c). Esta diferença “gramatical”, contudo, não inviabiliza um diálogo essencial com a obra de Mignolo.

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Subjacente a essas oposições, “a oposição na- suas maneiras de questionar, Foucault, Deleuze,
tureza/convenção, natureza/arbitrário ou ani- Derrida” (LARUELLE,1989, p. 15).
malidade/humanidade, os conceitos de signo
Laruelle pensa o conceito de diferença tendo “nas-
(significante/significado) ou de representação cido aparentemente da disseminação da dialética
(representante/representado)” (DERRIDA, 1986, p. [hegeliana e, posteriormente, marxiana]” (1989, p.
191). Derrida vê nestas oposições uma série de 15). Mesmo que esta afirmação não seja necessa-
correlações duais, feitas desde o mundo grego, riamente precisa, é interessante, de fato, contrapor
muitas delas iniciadas a partir da oposição da a contradição dialética com a noção de diferença.
ideia de physis com nomos ou techné, base da A ideia hegeliana de contradição pressupõe uma
oposição da natureza com a lei, a convenção, a transformação da noção aristotélica, fundamental
arte, a sociedade, a liberdade, a história, o espí- para a sua lógica. Na Ciência da lógica, Hegel
rito, a cultura etc. Todas elas são fundadoras de afirma que faz parte da natureza do pensar que
diversas formulações teóricas, políticas e mesmo ele “deve necessariamente cair no negativo de si
do nosso sistema de direitos. Mesmo quando es- mesmo – na contradição; isto é, perde-se na rígida
sas oposições invertem o valor dominante, como não-identidade dos pensamentos” (Hegel, 1995, p.
eventualmente faz Rousseau, permanece o fun- 51). É inerente ao processo evolutivo do espírito,
damento mesmo que as divide. uma “superação” [Aufhebung]2 dessa contradição
Sob a perspectiva de autores como Quijano e em prol de um estágio posterior e mais integrado
Mignolo, no entanto, a dualidade fundada pela do conhecimento e da consciência. Este processo
colonialidade e pela “descoberta” da América deve superar qualquer contingência e se realizar
acentua uma separação inédita que, sob o pon- em totalidades cada vez mais amplas, numa con-
to de vista epistemológico, é fundadora da mo- jugação de liberdade com necessidade. Para Hegel,
dernidade – separação que pode ser definida, “o todo se apresenta como um círculo de círculos,
de forma entranhada, na relação sujeito-objeto. cada um dos quais é um momento necessário, de
Perspectiva, como apontada anteriormente, total- modo que o sistema de seus elementos constitui a
mente imbricada com uma crescente separação ideia completa, que igualmente aparece em cada
identitária das “raças” e um modo de produção elemento singular” (Hegel, 1995, p. 55-56).
econômica que a acompanha e materializa, em Como se sabe, Marx adotou aspectos importan-
última instância. tes da dialética hegeliana, embora transformados.
No “posfácio da segunda edição” do Capital, ele
afirma que a dialética hegeliana pode ter um fim
Diferença como antagonismo revolucionário “em sua configuração racional”,
Pensar a diferença colonial sob a perspectiva filo- porque, “no entendimento positivo do existente,
sófica da diferença resulta em algumas apropria- ela inclui ao mesmo tempo o entendimento da
ções importantes do ponto de vista conceitual. sua negação, da sua desaparição inevitável; por-
François Laruelle defende o conceito de diferença que apreende cada forma existente no fluxo do
como fundamental para o pensamento do sécu- movimento, portanto também com seu lado tran-
lo XX, conceito operado, de maneiras diferentes, sitório” (MARX, 1996, p. p. 141).
por autores como Nietzsche, Heidegger e “aque- Para a perspectiva da diferença, há algo de in-
les que acentuaram, aceleraram ou agravaram as teressante na negatividade da dialética, em sua

2
Como já foi largamente discutido por seus estudiosos, o termo “superação” traduz de modo imperfeito a ideia hegeliana de Aufhebung, visto que ela
conjuga diversos elementos para além de uma mera superação – inclusive a manutenção, em um grau mais alto, do que foi “superado”. É nesse sentido,
que outras traduções são preferíveis, como suprassunção. Não é necessário, entretanto, um maior aprofundamento do conceito neste artigo.

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possibilidade de captação do “lado transitório” e significativa da grande obra desses autores,


do “fluxo do movimento”. Por outro lado, ela reme- Hegemonia e estratégia socialista, é dedicada a
te à “desaparição inevitável” de cada fenômeno, mostrar aporias do pensamento marxista3. Logo
numa perspectiva racional de totalidade que pare- na Introdução, eles afirmam:
ce remeter cada negatividade a uma “superação”
igualmente inevitável, a um “círculo de círculos”, o que ora está em crise é toda uma concepção
de socialismo que repousa sobre a centralidade
como afirmou Hegel, que sugere uma síntese
ontológica da classe trabalhadora; sobre o papel
cada vez mais racional dos fenômenos supera-
da Revolução com “R” maiúsculo, como momento
dos. Certamente, foi nesse sentido que Marx per- fundante na transição de um tipo de sociedade
cebia certa “inevitabilidade lógica” de superação para outro; e sobre a expectativa ilusória de uma
do capitalismo, por exemplo. Talvez não seja difícil vontade coletiva homogênea e absolutamente
observar que este modelo de pensamento só é unitária que tornaria inútil o momento da política.
totalmente válido tendo como pressuposto a tem- O caráter plural e multifacetado das lutas sociais
poralidade inserida pelo iluminismo, a noção de contemporâneas finalmente dissolveu o último
fundamento deste imaginário político (LACLAU &
progresso que ela proporciona. Nessa perspectiva,
MOUFFE, 2015, p. 52).
cada Aufhebung corresponde a uma superação
inexorável do estágio anterior, num avanço desse Ou seja: o próprio fundamento da visão iluminis-
“singular coletivo” que é o progresso. ta de progresso, uma história concebida no sin-
Se a diferença colonial for pensada em termos gular, é esgarçado nesta proposição, crítica que
de contradição dialética, torna-se necessário: (1) aproxima os autores, nesse aspecto, da denúncia
imaginar uma “contradição lógica” entre a moder- de Mignolo à “hegemonia do tempo” a partir do
nidade e a colonialidade, contradição que já traz século XVIII. Em contraposição, Laclau e Mouffe
em seu seio a potência de sua superação; (2) em pensam as lutas sociais embasadas em pro-
termos marxistas, fundamentar essa contradição cessos fortemente contingentes, que produzem
a um estágio de desenvolvimento das forças pro- “necessidades” provisórias. Eles afirmam que “a
dutivas, em tensão com as relações de produção; necessidade só existe como limitação parcial do
aqui, os aspectos discursivos e simbólicos seriam, campo da contingência. É neste terreno, onde
prioritariamente, efeitos e, no máximo, mecanis- não é possível nem uma interioridade total nem
mos de consolidação desses estágios; (3) pensar, uma exterioridade total, que o social se constitui”
acima de tudo, uma “síntese” ou uma “superação” (2015, p. 185).
desses estágios contraditórios, ao menos até uma
Em obra posterior, na qual o conceito de antago-
nova etapa. Ou seja: a modernidade-coloniali-
nismo é novamente tematizado, Ernesto Laclau
dade deveria ser pensada como uma etapa da
afirma que a tentativa marxiana de pensar o
civilização humana “em progresso”; daí, o posi-
antagonismo como uma contradição lógica co-
cionamento dos povos latino-americanos como
loca este pensamento em dificuldade. O caráter
“subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento”.
contingente e precário das lutas sociais não se
Em grande parte, é possível ser dito que é em encaixa perfeitamente no modelo lógico que esta
contraposição a essa perspectiva que Laclau e formulação tenta encerrar. Para Laclau, o marxis-
Mouffe desenvolvem uma formulação concei- mo sempre viveu uma tensão entre a contradição
tual em torno do conceito de antagonismo. Parte dialética lógica, que não pode permitir o antago-

3
Os dois primeiros longos capítulos de um livro de quatro capítulos são dedicados a desenvolver como o conceito de hegemonia foi gestado, no pensa-
mento marxista, no bojo de uma tentativa de solucionar as próprias aporias desse pensamento, de modo a captar a fragmentação das lutas sociais, em
contraposição a uma suposta “classe universal”.

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nismo contingente em seu modelo, e a admissão Entretanto, sob a perspectiva contingente das re-
do antagonismo, que fragiliza a lógica da neces- lações antagônicas, outras possibilidades teóricas
sidade hegeliana. É nesse sentido que ele diag- deverão ser evocadas. Segundo Laclau e Mouffe,
nostica o “sumiço” da luta de classes no Prefácio
da crítica da economia política, justamente um O antagonismo constitui os limites de toda
objetividade, a qual se revela como objeti-
texto que tenta determinar “logicamente” o pro-
ficação parcial e precária. Se a linguagem
cesso de transformação dialética da economia. é um sistema de diferenças, o antagonismo
Como pensar os antagonismos, se é rejeitada sua é o fracasso da diferença4: neste sentido,
aproximação com uma contradição lógica, como ele se situa nos limites da linguagem e só
pode existir como uma interrupção desta –
no caso da dialética? Uma primeira tendência
ou seja, como metáfora. (...) O antagonismo
seria considerar estas oposições em um “sistema escapa à possibilidade de ser apreendido
de diferenças”, mais ou menos como Saussure pela linguagem, uma vez que a linguagem
pensou a língua e influenciou toda uma geração só existe como esforço para fixar aquilo que
de pensadores estruturalistas. Para ele, “a língua o antagonismo subverte (2015, p. 202).
é um sistema do qual todas as partes podem e
devem ser consideradas em sua solidariedade Aqui, há uma inversão fundamental. O antago-
sincrônica” (SAUSSURE, 2012, p. 102). Nesta pers- nismo é descrito de modo fortemente contingen-
pectiva, as diferenças estabelecidas explicam mu- te. Se ele aparece como o “limite de toda objeti-
tuamente os elementos em oposição, mas não vidade”, não há uma definição lógica que possa
como uma contradição dialética, que moveria su- abarcá-lo em última instância. Pensar o antago-
postamente uma transformação no tempo. Para nismo nessa perspectiva significa pensar, com
Saussure, quando uma modificação particular ressonâncias de Derrida, que há sempre um ex-
acontece, “não foi um conjunto que se deslocou, terior que constitui, pela força do que precisa ser
nem um sistema que engendrou outro, mas um excluído, o interior de determinada “identidade”.
elemento do primeiro mudou e isso basta para Este “exterior” é formado por outras possibilida-
fazer surgir outro sistema” (2012, p. 100). des discursivas que, no contexto do antagonismo,
abalam a estabilidade de um discurso. Segundo
Aqui, entretanto, permanece uma busca lógica Laclau e Mouffe,
de compreender as relações diferenciais entre
aqueles elementos que se opõem. Para Laclau É a natureza discursiva do exterior que cria as
e Mouffe, o estruturalismo, filho de Saussure, condições de vulnerabilidade de todo discurso,
deriva de uma visão voltada a um sistema de uma vez que nada finalmente o protege contra a
deformação e a desestabilização de seu sistema
diferenças fechado, tornando-se “uma nova for-
de diferenças por outras articulações discursivas
ma de essencialismo: uma busca pelas estruturas que agem fora dele (LACLAU e MOUFFE, 2015,
subjacentes que constituem a lei inerente a toda p. 228).
variação possível” (LACLAU E MOUFFE, 2015, p.
187). No caso da diferença colonial, teríamos que Não se deve, entretanto, pensar que essa descri-
compreender, sob essa leitura, qual a “lógica dife- ção instaure um reino de pura contingência. Este
rencial” que subjaz a este pensamento. suposto reino seria tão abstrato e idealista quanto

4
Aqui, é importante uma diferenciação de termos: a “filosofia da diferença” evocada anteriormente só cabe no sentido de uma diferença inapreensível a
qualquer objetividade, como será desenvolvida em seguida. É o caso, por exemplo, da ideia heideggeriana de “diferença ontológica” e do conceito derivado
de différance, em Derrida. O termo “diferença” em Saussure e na maioria dos pensadores estruturalistas ainda tem uma natureza lógica que, embora se
configure como importante antecedente, não se encaixa no que aqui foi nomeado como “filosofia da diferença”. É neste sentido que autores como Deleuze,
Foucault e Derrida são localizados como “pós-estruturalistas”.

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a sua contraparte, um reino de pura necessidade. lidade de transformação social. Estas transforma-
O que há, segundo esses autores,são “fixações ções decorrentes dos efeitos do antagonismo cor-
parciais”: respondem ao que Laclau, posteriormente ao seu
trabalho com Chantal Mouffe, passa a chamar
mesmo para que se possa diferir, subverter o sen- de deslocamento. Laclau afirma que “os efeitos
tido, há de haver um sentido. Se o social não
do deslocamento serão contraditórios. Se, por um
consegue fixar a si mesmo, nas formas inteligí-
veis e instituídas de uma sociedade, o social só
lado, ameaçam as identidades, por outro estão
existe, no entanto, como um esforço para cons- na base da constituição de identidades novas”
truir esse objeto impossível. (...) Chamaremos os (LACLAU, 2000, p. 55).
pontos discursivos privilegiados desta fixação de
pontos nodais (LACLAU e MOUFFE, 2015, p. 187).
Alteridade latino-americana, relações
Para eles, os “pontos nodais” são “significantes de poder e pensamento liminar
privilegiados que fixam o sentido de uma cadeia
significante” (LACLAU e MOUFFE, 2015, p. 187). Se estas relações de poder, antagonismo e des-
Ou seja, correspondem a uma produção discur- locamento forem pensadas na constituição do
siva privilegiada que articula determinados “nós” que posteriormente será nomeado como América
de sentido que suturam, ainda que de modo Latina, será possível uma dimensão mais concre-
precário, certa configuração discursiva hegemô- ta do que Mignolo chama de diferença colonial,
nica. É desse modo que são produzidas “fixações”, bem como do pensamento liminar necessário
como as ideias de democracia, racionalidade, in- para pensá-la criticamente. Partindo do pensa-
dividualidade, civilizado, mas também categorias mento de Aníbal Quijano, as transformações
identitárias, como branco, negro e indígena, oci- identitárias, epistemológicas e econômicas por
dental e oriental. Elas constituem “pontos nodais” ele descritas decorrem de diversos processos de
sempre que forem fundamentais para a articula- deslocamentos discursivos, frutos de complexas
ção de discursos e práticas e eles associadas. relações de poder. Não há uma estabilidade nos
agentes coletivos que participam dessas relações.
Em função da precariedade desse processo, ele só Eles mesmos já compunham diversos processos
pode ser consolidado a partir da luta política, ou de disputa política antes da chegada do europeu,
seja, a partir de determinadas relações de poder, assim como diversas (auto) identificações, que
visto que não há nenhuma necessidade lógica foram transformadas no decorrer dos enfrenta-
anterior que garanta a sua existência. Segundo mentos vividos. A “descoberta” da América forjou
Laclau, “Se dois grupos diferentes optaram por
novas nomeações: indígenas, negros, negros da
decisões distintas, como não há fundamento ra-
Guiné, pretos, criollos, mestizos, brancos, escravos,
cional último para decidir entre ambas, a relação
livres, forros. Associadas a elas, “qualidades” que
entre os dois grupos será uma relação de anta-
acompanhavam diversas práticas sociais. Como
gonismo e de poder” (LACLAU, 2000, p. 48). Nesse
afirma Eduardo Paiva, as “qualidades”
contexto, “a constituição de uma identidade é um
ato de poder” e “a identidade como tal é poder” diferenciavam, hierarquizavam e classificavam
(Idem, Ibid., p. 48). Para Laclau, se uma identidade os indivíduos e os grupos sociais a partir de um
“consegue afirmar-se parcialmente como objetivi- conjunto de aspectos (ascendência familiar, pro-
dade, isto só pode dar-se sobre a base de reprimir veniência, origem religiosa, traços fenotípicos, tais
aquilo que a ameaça” (Idem, Ibid., p. 48). como a cor da pele, o tipo de cabelo e o formato
do nariz e da boca), pelo menos quando isso era
Os processos de luta política que afetam as iden- possível. Quando não era possível essa conjun-
tidades constituídas tornam-se a grande possibi- ção, os elementos mais aparentes e/ou conve-

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nientes eram acionados para que a identificação modo geral, as relações de antagonismo podem
se efetuasse, o que certamente variou de região ensejar negociação ou enfrentamento de sentido,
para região, de época para época (PAIVA, 2015, mas também processos de dominação e submis-
p. 33).
são” (SOMBRA, 2015b, p. 66).
Em momentos de instabilidade e de transforma- Estas negociações de sentido e as relações an-
ção, esse processo certamente se deu a partir de tagônicas aqui delineadas resultam em transfor-
profundos efeitos de deslocamento, no bojo de mações identitárias (deslocamentos, no jargão
incômodas e continuadas relações de antago- de Laclau) justamente porque elas cobram o seu
nismo. Laclau e Mouffe afirmaram que “quanto preço. Em alguma medida, cada grupo luta para
mais instáveis as relações sociais, menos exitoso manter as fixações que lhes são mais caras, para
será qualquer sistema definido de diferenças e garantir o seu modo de vida, sua religiosidade,
os pontos de antagonismo proliferarão” (2015, p. seus valores. Em determinadas situações, como
209). Certamente, foi isso o que ocorreu em di- ocorreu com os europeus na América, eles que-
versos momentos da história da América Latina. rem expandir esses valores, mesmo que à custa
de exploração e até mesmo extermínio de outros
Mas se as disputas que envolvem antagonismo
povos. É nesse sentido que dominação e sub-
se dão a partir das relações de poder, é funda-
missão são os dois extremos dos processos de
mental a compreensão de mecanismos comple- negociação/enfrentamento de sentidos.
tamente assimétricos neste aspecto. Não é difícil
perceber que sempre houve grupos hegemônicos “Poder”, em última instância, corresponde à capa-
em cadeias complexas de relações e em diversas cidade de cada grupo nesses processos de en-
gradações: desde as elites europeias que coman- frentamento, que pode ser diferenciada em mo-
davam à distância o processo de colonização; as dalidades possíveis: força física ou armada, poder
elites “criollas” que habitavam o novo território, econômico, simbólico, entre outros. A assimetria
grupos mestizos que, em algum momento, alcan- acima citada corresponde justamente às diferen-
çavam certo grau de autonomia, até povos escra- ças percebidas na capacidade de cada povo exer-
vizados e/ou em situação de servidão. cer seu domínio, evitar a submissão ou ao menos
resistir às tentativas de domínios de outros povos,
Como pensar filosoficamente essa assimetria angariando maior capacidade de negociação de
das relações de poder e seus desdobramentos? sentidos. Essas diferenças não impedem, entre-
Em trabalho anterior, inspirado nas formulações tanto, que as trocas de sentido aconteçam:
de Laclau e Mouffe, foi pensado o antagonismo
como a situação em que os sujeitos “disputam va- em ambientes de negociação de sentidos, os
lorações e posições hierárquicas não totalmente enunciados, frequentemente, incorporam, mesmo
aceitas pelos outros sujeitos” (SOMBRA, 2015a, p. que de forma crítica ou depreciativa, elementos
das redes de sentido adversárias. Os sujeitos pas-
107)5. No âmbito das relações antagônicas, “iden-
sam, frequentemente, a compor sistemas de clas-
tificam-se cada vez mais diversos modos de ne- sificação instáveis, numa valoração que também
gociação ou enfrentamentos de sentido, ou seja, está em disputa (SOMBRA, 2015a, p. 108-109).
os sujeitos precisam encontrar modos diversos de
conformação de uma prática de acordo com as Para pensar o que significa esse enfrentamento
redes de sentido em disputa” (SOMBRA, 2015a, p. de sentidos no contexto da diferença colonial,
108). Posteriormente, foi acrescentado que “de um portanto de forte assimetria de poder, ressalte-se

5
A totalidade precária que constitui estas valorações e posições hierárquicas foi nomeada como rede de sentidos (2015a e 2015b). O aprofundamento a
respeito deste conceito, desenvolvido parcialmente nos artigos anteriores, não será possível aqui.

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a correlação evocada por Mignolo entre “projetos Em alguma medida, há sempre uma transforma-
globais” e as “histórias locais”. De um lado, falar ção de ambos os lados.
de “projetos globais” é falar de ações e discursos
Pensar a partir das “histórias locais” não signifi-
com grande capacidade de expansão, e um forte
ca (não pode significar) meramente um “pensa-
domínio sobre outros povos. Com a modernidade-
mento puro” a partir da identidade “original” de
-colonialidade, esse processo se deu com um dis-
cada povo. No contexto da diferença colonial, os
curso cada vez mais forte de “universalidade”, tal-
diversos povos atingidos por ela já estão afeta-
vez como todo mecanismo ideológico, nos termos
dos pelos efeitos intertextuais de enfrentamentos
de Marx e Engels6. Mas o que dá materialidade
de sentido, eles já carregam em suas marcas as
a esses “projetos globais” é sua capacidade de
relações de enfrentamento, negociação e even-
domínio em diversas partes do globo. Para além
tualmente submissão com os projetos globais.
da evidente hegemonia militar e econômica, isso
No entanto, elas ensejam uma possibilidade pri-
significa uma expansão cada vez mais ampla de
vilegiada de pensamento, justamente pela con-
seus valores, afetando a percepção política, estéti-
dição fronteiriça nelas contidas. O desconforto
ca, religiosa, econômica e social das populações
decorrente dessa condição exige uma maior per-
afetadas. O pensamento (e a ação a ele associada)
cepção de alteridade e uma maior capacidade
produzido a partir dos “projetos globais” é, assim,
de reflexividade (SOMBRA, 2015a, p. 109). Não
um pensamento velado por certa promessa de
é viável, nesse contexto, a “naturalização” típica
“universalização”. Em certa medida, ele é etnocida
dos projetos universais. À medida que esses pro-
e esterilizante, pois desconsidera, desqualifica ou
cessos acontecem, cresce a capacidade de uma
mesmo exclui diversas experiências locais, diver-
reflexão mais poderosa, fincada localmente nas
sas possibilidades de vida.
margens da diferença colonial.
Mas se a história da modernidade-colonialidade
Mignolo formula essa condição como pensa-
se resumisse a esse domínio, não haveria diferen-
mento liminar, pensamento que ele vê produzido
ça colonial. Ou ela seria uma etapa provisória até
de modo exemplar em “chicanas” como Gloria
a completa ocidentalização de todas as popula-
Anzaldúa e Cherríe Moraga, mulheres que vive-
ções. No entanto, os enfrentamentos de sentidos
ram na fronteira entre as “histórias locais” estadu-
são sempre mais complexos que isso. O que se
nidenses e mexicanas; mas também nas próprias
manifesta em termos de “projetos globais” só ga-
histórias mestiças (como no caso de Anzaldúa),
nha materialidade ao se exercer nas “histórias lo-
entre o espanhol e o nahuatl, ou mesmo na fron-
cais”, na vida prática de cada povo que já carrega
teira da sexualidade e do gênero – cada uma
consigo um histórico de valorações, percepções,
dessas fronteiras dominadas por seus próprios
cosmologias; modos de vida, enfim, com histó-
“projetos globais”, mas enfrentando igualmente
rias variadas e com graus variados de poder de
resistências “locais”.
manutenção, resistência e expansão. O confronto
dos “projetos globais” e das “histórias locais” – a Para Mignolo, “o pensamento liminar é mais
diferença colonial – engendra um modo espe- do que uma enunciação híbrida. É uma enun-
cífico de antagonismo, com os enfrentamentos ciação fraturada em situações dialógicas com a
de sentidos e deslocamentos dele decorrentes. cosmologia territorial e hegemônica” (2003, p.
Os efeitos são incertos e variados, e dependem 11). “Fraturada” justamente porque incorpora em
do modo com que cada povo assimila, digere, ne- sua ambiência diversas fixações dos “projetos
gocia ou resiste em relação aos projetos globais. globais” dominantes, mas resiste parcialmente a

6
“Os pensamentos dominantes serão cada vez mais abstratos, ou seja, assumirão cada vez mais a forma de universalidade” (MARX e ENGELS, 1998, p. 50)

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eles, eventualmente utilizando-se de parte des- ção política e epistemológica que supere, ao me-
ses mesmos projetos em nome das suas próprias nos parcialmente, o domínio dos “projetos globais”.
lutas.7 O modo com que estas enunciações se
apropriam das suas próprias histórias está sem-
pre afetado, reflexivamente, pelas posições do- Considerações finais
minantes, exigindo complexos (e muitas vezes Uma “hermenêutica pluritópica”, como um modo
dolorosos) desafios de mediação. Mas são esses múltiplo e resistente de enfrentar a diferença co-
desafios que, quando encarados politicamente, lonial, só é possível, pela sua própria condição
possibilitam um grau maior de reflexividade e a liminar, em diálogo com os “projetos globais” da
capacidade de produção de um pensamento crí-
história ocidental, negociando com a produção
tico e transformador.
iluminista de certo ideário de democracia, direitos
A possibilidade de um pensamento liminar não humanos, liberdade individual etc. Estará incluí-
se destina, necessariamente, a um conjunto de da, inevitavelmente, a negociação com a própria
particularismos isolados, que recusam qualquer “história local” que gerou o capitalismo e, recente-
universalidade. Como afirma Laclau, “se a parti- mente, o neoliberalismo, com todo o seu aparato
cularidade se afirmar como mera particularidade de “projeto global”.
numa relação puramente diferencial com as ou-
A questão que se impõe, e que depende de com-
tras, estará sancionando o status quo das relações
plexas condições, é quanto à capacidade dessas
de poder entre os grupos” (2011, p. 55). Nessa
outras narrativas de arregimentar forças, desejos e
perspectiva, é possível se pensar “outra universali-
discursos que permitam uma verdadeira resistên-
dade”, fora do contexto vazio de uma razão pura e
cia e transformação. A produção de uma “herme-
hegemônica. Julio Cabrera, por exemplo, pensa a
nêutica pluritópica” exigirá dos diversos grupos
universalidade como “uma criação histórica feita
e indivíduos “locais” uma capacidade de enfren-
desde alguma perspectiva. Problemas filosóficos
tamento e negociação para ao menos atenuar a
que, de uma maneira ou outra, atingem a todos
(...) têm uma procedência e atingem as pessoas força assimétrica dos “projetos globais”. Em rela-
de acordo com suas circunstâncias existenciais e ção à América Latina, isso significa uma reação
pensantes” (CABRERA, 2015, p. 9). cada vez mais articulada nos âmbitos simbólico,
político e econômico. Não é fácil, certamente. Mas
Sob essa perspectiva, o desafio de “outra univer- esta pode ser a possibilidade fundamental de su-
salidade” poderia se dar a partir de articulações peração das desigualdades que nos impõem, de
complexas e não etnocidas de diversas histórias modo recorrente, à condição de uma espécie de
locais. Mignolo, nesse sentido, pensa, na perspec- ocidentalismo de segundo grau.
tiva de ruptura com os projetos globais, em “uma
totalidade alternativa concebida como uma rede
de histórias locais e múltiplas hegemonias locais” Referências bibiliográficas
(2003, p. 48). Isto produziria uma “hermenêutica
CABRERA, Julio. 2015. Europeu não significa universal,
pluritópica” (Idem, Ibid., p. 40), ou seja, a produção brasileiro não significa nacional (acerca da expressão
de um pensamento que articulasse diversos “lu- “filosofar-desde”). In: Revista Nabuco (2), 1-46.
gares”, diversas “histórias locais” em diálogo. Esta COSSUTTA, Frédéric. Elementos para a leitura dos textos
articulação de diversos “pensamentos liminares” filosóficos. Tradução de Angela de Noronha Begnami et
pode ensejar, ao mesmo tempo, uma transforma- at. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

7
Por exemplo: se “pontos nodais” hegemônicos como igualdade, democracia e direitos humano, mas também negros e indígenas, frequentemente foram
utilizados de modo excludente, em diversas situações grupos subalternos puderam se valer deles como parte de suas lutas.

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Laurenio Leite Sombra

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Laurenio Leite Sombra


É professor Adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana. Doutor em Filosofia (2015) pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e Mestre em filosofia pela Universidade de Brasília (Unb).

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