MATTOS e SILVA, R. V. O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas.
São Paulo: Parábola, 2004.
O texto é dividido em cinco seções: “Preliminar: variação em torno de um
tema”, “O português são dois”, “Um esboço da sócio-história do português brasileiro e do desenvolvimento da escolarização no Brasil”, “O ensino do português no contexto da heterogeneidade dialetal brasileira” e “Para finalizar”. Na parte “Preliminar”, a pesquisadora Rosa Virgínia Mattos e Silva informa os objetivos para seu texto: explicar, por meio de dados empíricos e sócio-históricos, porque antes a escola parecia dar conta da transmissão do padrão da língua aos seus estudantes e hoje isso não é possível. Na seção “O português são dois”, a autora se serve de obras de literatos brasileiros como Drummond de Andrade e Graciliano Ramos, bem como das pesquisas de Geraldi (1991) e Mary Kato (1993), para explanar como se dava o ensino de português nas escolas antes do que chama de “falsa democratização” escolar (termo de Geraldi), ocorrida na década de 1960. Explica ainda que a abertura de vagas no sistema educacional público trouxe grande quantidade de matrículas, ainda insuficiente, mas não qualidade pedagógica, pois faltava estrutura e foram solicitados muitos professores, cuja função não era profissionalizada na maioria dos casos, o que os levava para o trabalho sem qualificação. Houve então um choque entre o modo como a escola estava acostumada a trabalhar, com seus poucos estudantes já oriundos da cultura letrada, e a necessidade de lidar com a massa que agora adentrava os muros escolares, vindas dos mais diversos meios, tendo pouco ou nenhum contato com os espaços de prestígio, onde habitualmente circula a norma culta. Segundo a autora, esse embate perdura até hoje. Em seguida, no terceiro tópico, Mattos e Silva traça um breve panorama histórico da constituição do português brasileiro e da escolarização em nosso país. Segundo ela, só a partir de meados “do século XVIII é que o Brasil pode começar a ser definido como um espaço de língua dominante portuguesa, devido à conhecida política linguístico-cultural desenvolvida pelo Marquês de Pombal”, a qual reprimiu as línguas indígenas (de base tupi), tão frequentes naquela época, bem como as africanas, como banto e ioruba. Outro fato importante é a instituição da primeira rede pública de ensino leigo, após a expulsão dos jesuítas, os quais tinham mais intenção de catequizar que de letrar. Contudo, os professores de origem laica não tinham qualificação para tal, o que contribuiu para resultar na baixa qualidade do ensino e no fracasso escolar dos que não tinham berço. A autora também critica a afirmação de Serafim da Silva Neto (1960) de que as pessoas marginalizadas rejeitaram a escola, porque omite as questões ideológicas desse fato, por exemplo, o esforço da elite brasileira de homogeneizar e “embranquecer” a população, por conseguinte, a escola. Isso gerou uma divisão entre o português da elite e a “linguagem adulterada dos negros e índios”, já que os últimos não encontravam lugar junto aos primeiros, ocasionando, assim, “um português brasileiro heterogêneo geograficamente, mas, sobretudo, na escala social”. A vinda da família real, em 1808, reforçou esse distanciamento sociolinguístico, devido à idealização que sua linguagem lusitana produziu nos círculos sociais da corte brasileira. A partir desse período, a quantidade de letrados saltou de 0,5% da população, no século XVIII, para 20% a 30% no início do século XX, devido a, depois da primeira constituição e da Independência, instaurar-se uma “intenção de tornar o ensino universal e obrigatório no Brasil”. Nesse meio tempo, ao longo do século XIX, explicita-se a “normatização linguística” e o “policiamento gramatical”, por parte da elite, provavelmente, como forma de separar claramente as classes sociais. Sequencialmente, Mattos e Silva apresenta vários dados estatísticos levantados por instituições oficiais e por pesquisadores como Houaiss (1985) e Magda Soares (1986), para reforçar o descalabro por que passava o sistema educacional brasileiro, com suas inúmeras reprovações e evasões, chegando ao ponto de, ao fim do século XX, ainda termos menos de 30% dos estudantes alcançando a 2ª série do Ensino Fundamental, antes chamado de Primeiro Grau, praticamente o mesmo percentual do início do século. Essa situação é explicada pela “explosão do número de matrículas”, por causa do aumento em dez vezes da população (17 milhões, no início do século, para 170 milhões, no final), do qual a escola pública não deu conta (e talvez não quisesse dar). Outro ponto que revela a ideologia por trás dos números é o fato de o governo investir, na década de 1990, 0,6% do PIB nas universidades federais, com 300 mil estudantes, contra o investimento de somente 0,8% do PIB nas escolas básicas, com 28 milhões de alunos. Ou seja: quem tivesse condições de, por si, chegar ao ensino superior, teria amparo; os demais, ficariam apenas com a ilusão de que estavam tendo acesso à igualdade de oportunidades. Na seção 4, sobre o ensino do português, a autora retoma a ideia da abstração do padrão do idioma materno ensinado nas escolas:
A escola brasileira, falsamente democratizada nas últimas décadas,
no que diz respeito ao ensino de língua materna, persegue, no geral, a tradição normativo-descritiva cujo modelo é um português padrão idealizado, fundado originalmente no português europeu.
Em consonância com a pesquisadora, esse modelo foi reforçado,
oficialmente, a partir da década de 1970, após o aumento exponencial das matrículas, com a criação de comissões (1975, 1986) para “sanar” os problemas de “carência linguística” dos alunos, ao mesmo tempo em que a evasão e as reprovações excluíam mais da metade da população escolar, antes de chegar à 2ª série. Concomitantemente a essas comissões, surgia o projeto NURC (1969), cujo objetivo era descrever as normas cultas, de modo a diminuir a distância entre elas e o padrão ensinado. Fica claro aqui que não adianta transmitir o padrão na escola, sem propiciar ao aluno a vivência com a cultura letrada, nos espaços de prestígio. A conclusão da autora neste ponto, portanto, é que o ensino de português vai mal no Brasil, porque “a escola vai mal em decorrência do quadro socioeconômico e político” em que se situa. Assim, os estudos linguísticos foram avançando, em busca de descrever os usos, subsidiando o ensino. Na década de 1950, com a dialetologia, o estudo da heterogeneidade contribuiu para favorecer a ideia de homogeneidade do português brasileiro (é um idioma, mesmo com tantas variações) e, na década seguinte, foi a vez de a sociolinguística progredir, com a análise da variação social urbana. Já em 1957, Mattoso Câmara Jr. foi pioneiro em analisar erros escolares de estudantes de 11 a 13 anos de uma escola particular do RJ e interpretá-los “como tendências de mudanças próprias do português brasileiro”. Míriam Lemle retoma esses estudos em 1978, e seu grupo de sociolinguistas, liderado por ela e depois por Anthony Naro, em 1983, publica o relatório de “Estruturas da fala do Rio de Janeiro e a aquisição da língua padrão”, gerando outros corpora e, pela primeira vez, integrando a pesquisa linguística pura ao ensino de português. Os dados coletados conseguiram distinguir os casos de variação daqueles que se tornariam mudanças linguísticas, definindo algumas: dele, no lugar de seu, e a gente, em lugar de nós. Ao longo da década de 1980, outros dois estudos sociolinguísticos se destacaram: o de Stella Bortoni, em Brasília, e o de Fernando Tarallo (sociolinguista laboviano), com a gerativista Mary Kato, em São Paulo. Matos e Silva mantém seu foco nos trabalhos paulistas, porque, segundo ela, possibilitam “uma interpretação globalizante de aspectos característicos da sintaxe brasileira que demonstraram estar interligados” e também porque seus resultados “indicam que a sintaxe brasileira se apresenta como um caso típico de mudança paramétrica, que já estava em processo desde o século XIX”. A autora ainda enfatiza que a pesquisa sociolinguística paulista é de grande interesse não somente teórico, mas fundamentalmente para a questão do ensino de português no Brasil. Se a sintaxe brasileira está em mudança desde o século XIX e marca, até hoje, as falas ditas cultas, será muito difícil reverter essas mudanças e incutir o padrão tradicional (de origem europeia) na escola, principalmente com as condições que ela apresenta. O que ocorre, portanto, é um caso de “extrema diglossia” entre a fala do estudante e a norma que ele é forçado a adquirir, e essa aquisição só poderá acontecer como sendo uma língua estrangeira. Para ensinar o padrão, o professor deve conhecer todas as possibilidades de uso da língua, como no caso das conjugações verbais correntes e padronizadas (distinção apenas na primeira pessoa do singular; distinção apenas da primeira pessoa do singular e da terceira do plural etc.), tendo o cuidado de tratar com flexibilização as exigências gramaticais normativas para não discriminar outros usos. Outro tópico trazido pela pesquisa de Tarallo e Mary Kato, de 1991, é a dificuldade em definir o que é variação e o que é mudança em curso na fala culta brasileira. Chegam à conclusão que os usos estigmatizados impedem a mudança, ou seja, a fala das classes privilegiadas dita o que permanece ou não na língua. Nesse ponto do artigo, Matos e Silva discute dados de vários corpora, com dados de São Paulo e de Minas Gerais, meios urbano e rural, identificando variações que são indicativos de mudanças linguísticas: a simplificação do paradigma de conjugação verbal, na fala cotidiana, de seis conjugações para três, na maioria dos casos; o uso do pronome sujeito de terceira pessoa (ele, ela) como objeto direto (ou o objeto nulo como “estratégia de esquiva”); e a preferência pela estrutura de relativização “não-padrão cortadora”, como no exemplo “Ganhei uma blusa que gostei muito”, no lugar da padrão “Ganhei uma blusa da qual gostei muito”. A autora finaliza dizendo que, diante dessas possíveis mudanças sintáticas da língua, a escola precisa encontrar o equilíbrio, adequando seus instrumentos de ensino à realidade linguística que se apresenta. Porém, sua prospectiva, no início dos anos 2000, quando foi escrito o artigo, não era das mais otimistas, dada a situação educacional brasileira da época (já descrita anteriormente). Assim, ela assevera: “o português brasileiro ‘é um português à solta’”. Não obstante a isso, podemos dizer que, na atualidade, é possível ter uma visão diferente, principalmente no que tange à formação dos professores e à constante evolução da taxa de alfabetização. Segundo o IBGE de 2019, ainda temos 11,3 milhões de pessoas, com mais de 15 anos, analfabetas, mas já é quase metade do que menciona Matos e Silva na ocasião de sua pesquisa: 20 milhões. Em relação aos professores, de acordo com o Censo Escolar da Educação Básica (INEP, 2019), 83,2% dos professores do ensino fundamental (1º ao 9º ano) têm nível superior completo com licenciatura, realidade muito melhor do que aquela do início da escolarização laica no Brasil. Assim, concluímos que a pedagogia linguística brasileira ainda tem muito a conquistar (principalmente porque o português são muito mais que dois!), mas já alcançou significativas pequenas vitórias e, mantendo o crescente avanço, poderá chegar a uma educação que, de fato, seja instrumento de equidade social, como versa a Constituição.