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opiniães

revista dos alunos de literatura brasileira


ano 2, número 3
Catalogação na Publicação Opiniães é uma publicação dos alunos de pós-graduação do programa de
Serviço de Biblioteca e Documentação Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Opiniães: Revista dos alunos de Literatura Brasileira /
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Comissão editorial e executiva Ariovaldo José Vidal (DTLLC-USP), Carlos Augusto
Ana Amélia Coelho (DLM-USP) Novais (UFMG), Cristiano Augusto da Silva Jutgla
Universidade de São Paulo. Departamento de Letras Ana Lúcia Branco (DLCV-USP) (UESC-BA), Cristiano Perius (UEM/PR), Daniela
Clássicas e Vernáculas. – v. 1, n. 3 (2011). – São Paulo: Bruna Paola Zerbinatti (DL-USP) Mantarro Calipo (Unesp/Assis), João Santiago
FFLCH: USP, 2011. Edilson Dias Moura (DLCV-USP) (Deltec- Cefet-MG), Maria José Motta Viana
Emmanuel Santiago (DLCV-USP) (UFMG), Marcos Natali (DTLLC-USP), Roberto
Semestral Gabriela Viacava (DLCV-USP) Acízelo de Souza (Uerj), Sônia van Dijck (UEFS),
Lucius Provase (DTLLC-USP)
Editora convidada
Márcia Regina Jaschke Machado (DLCV-USP)
ISSN 2177 3815 Maria Elaine Andreoti (DLCV-USP)
Laura Penna Alves (DTLLC-USP)
Mario Tommaso (DLCV-USP)
1. Literatura Brasileira. 2. Crítica Literária. I. Título. Coeditora
Monica Gama (DLCV-USP)
Maria Elaine Andreoti (DLCV-USP)
Pedro Martins Reinato (DLCV-USP)
CDD 869 09981 Rogério Fernandes (DLCV-USP) Projeto gráfico
Cláudio Lima
Copidesque
Diagramação
Eulália Faria
O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do ZapDesign
Governo Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos. Conselho editorial
Ilustrações e Capa
Professores do Programa de Pós-graduação em Liter-
Phabulo Mendes
atura Brasileira (DLCV-USP): Alcides Villaça, Alfredo
a formaÁ„o
„ de recursos humanos.
O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para Bosi, Antonio Dimas, Cilaine Alves Cunha, Eduardo Agradecimentos
a formação de recursos humanos. de Almeida Navarro, Flavio Wolf de Aguiar, Helio Julio Miranda Canhada
Seixas Guimarães, Ivan Francisco Marques, Jaime Vagner Camilo
Ginzburg, Jefferson Agostini Mello, João Adolfo Valdeni Faleiro
Hansen, João Roberto Gomes de Faria, José Alcides
Ribeiro, José Antonio Pasta Júnior, José Miguel Contatos
Soares Wisnik, Luiz Dagoberto de Aguirra Roncari, Blog: http://revistaopiniaes.wordpress.com
Marcos Antonio de Moraes, Murilo Marcondes de Contato: revistaopiniaes@gmail.com
Moura, Simone Rossinetti Rufinoni, Therezinha Ap-
parecida Porto Ancona Lopez, Vagner Camilo, Val-
entim Aparecido Facioli, Vima Lia de Rossi Martin,
Yudith Rosenbaum e Zenir Campos Reis
Convidados de outros departamentos e
2
FFLCH instituições para esta edição:
3
ínDICE
4 5
princípio de sururu no Futilidades levíssimas
pacato galinheiro Laura Penna Alves (DTLLC-USP)
9 Debate do conto “A ideia”, de Wagner Lacerda,
e do poema “Turbulência”, de Rafael Coelho 77

Fuzilaria a Muito cuidado


descoberto com o óbvio!
Uma polêmica da colônia: católicos versus calvinistas 107
Maria Elaine Andreoti
Dossiê polêmicas literárias “Léry et Thevet: como falar de um mundo novo?” 111
Graciliano Ramos versus Octávio de Faria:
o confronto entre autores “sociais” e “intimistas” nos anos 1930 17 Michel Jeanneret
Tradução: Julio Miranda Canhada e Mario Tommaso.
Thiago Mio Salla (ECA-USP)

No surgimento de Sagarana
Daniel Reizinger Bonomo (DLM-USP)
33
Extra! extra!
Coletânea de excertos sobre polêmicas literárias recentes 127
Artigos livres
A criação do teatro nacional?
Alencar, Machado e a cena dramatúrgica brasileira 49 Vamos, vamos, responda!
Jorge Marques (UFRJ) Entrevista com os professores 143
Raul Pompéia, leitor de Baudelaire:
da teoria das correspondências às Canções sem metro 63 *O título do editorial foi retirado do texto “Bota na conta de Galileu, se ele não pagar nem eu”, de Antonio Carlos de Brito (Cacaso); os títulos das seções “Fuzilaria
Franco Baptista Sandanello (UNESP) a descoberto”, “Vamos, vamos, responda” e “Futilidades levíssimas”, do livro Zeverissimações ineptas da crítica, de Sílvio Romero; e o título “Muito cuidado com
6 7
o obvio!”, do texto “19 princípios da crítica literária”, de Roberto Schwarz.
princípio de
sururu no
pacato galinheiro

Laura Penna Alves* A escolha do tema polêmicas literárias para o dossiê do


terceiro número da revista Opiniães tem algo de ale-
atório, pois surgiu como um dentre vários outros que
poderiam mais facilmente provocar uma relação ativa
com o presente. Talvez também tenha surgido, quem
sabe, da falsa impressão de que teria interesse coletivo
por si só, fato que não se verificou. Apesar de ser vista,
enquanto gênero discursivo, com “maus olhos” – opos-
ta ao entendimento aristotélico de argumentação dia-
lética, a erística seria vista por muitos filósofos como
contradita à busca pela verdade –, a polêmica tem cum-
prido um papel importante nas discussões literárias.
Dos tempos de Sílvio Romero até hoje, tende-se a lan-
çar mão cada vez menos de apelidos, xingamentos, no-
* Editora da revista Opiniães n. 3 e mestranda do Programa de Pós- meações diretas etc. Historicamente parece haver cer-
Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada do Departamento de to desprestígio dessa forma de polemizar que não se
Teoria Literária e Literatura Comparada (DTLLC) da Universidade de São Paulo preocupa em fazer a mediação entre o espaço privado
8 9
(USP). Contato: laura_penna@yahoo.com.br – com sua linguagem, temas, preocupações específicas
– e a dimensão pública. Contudo, o “avanço” que imagi- e metodológico procedimentos valorizados ao extre- criamos um espaço não de todo previsível. Os textos sele- Humberto de Campos. Além de indicar as razões lite-
namos foi aparente em certa medida, e, nas polêmicas mo. A precisão exigida, contudo, se choca com um pa- cionados trazem em seu bojo elementos que ajudam a en- rárias envolvidas na época, o artigo também levanta
recentes, a precariedade dessa mediação se mostrou râmetro de avaliação pautado por um conhecimento tender a antiguidade de nosso presente e produzem um hipóteses sobre possíveis razões não literárias que po-
evidente. De todo modo, mais interessante que nossas prático, adquirido a partir das diferentes recepções de distanciamento no tempo que poderá, quem sabe, tanto deriam estar envolvidas nessa primeira recepção.
intenções em relação ao tema seria pensar em que tipo ensaios literários assinados por críticos formados em pôr o passado sob novas lentes como revisitar o presente
de preocupação com o presente ela aqui se insere. uma época de valorização, por exemplo, da interdisci- em temporalidades ainda implícitas e que podem contri- A subseção “Artigos livres”, por sua vez, compreende
plinaridade. buir para criar possibilidades de ruptura com a idealização “A criação do teatro nacional? Alencar, Machado e a ce-
Como qualquer outro veículo de comunicação, tam- dessa invenção que se chama contemporâneo. na dramatúrgica brasileira” e “Raul Pompéia, leitor de
bém nesta revista estão pressupostos alguns consen- Esse traço, por si só, implicaria a constituição de um Baudelaire: da teoria das correspondências às Canções
sos que permitem a viabilização de uma publicação hiato entre o modo como atribuímos valor aos artigos Nessa direção, os artigos que compõem a seção “Fu- sem metro”. O primeiro retoma um momento crucial do
que decide coletivamente o que será publicado. Isso e o nosso atual modo de produção do conhecimento. zilaria a descoberto” tentam, de alguma forma, fugir a ambiente literário no século XIX e nos convida a acom-
não impede, entretanto, que possamos pensar critica- Junto a ele ainda temos outros: reinventar o ensaio; uma espécie de “controle da imaginação acadêmica”, panhar sua dúvida: se, desde fins da década de 1850,
mente os termos em que eles têm se dado, refletindo criar imagens totalizantes; economizar citações; em- ao buscar, de formas mais ou menos explícitas, arris- o Teatro Ginásio passa a apresentar peças de autores
sobre um lugar de poder com o qual não estamos acos- pregar recursos poéticos; referir-se a outras artes ou car na criação de objetos que construam um lugar de brasileiros como Martins Pena, por que o teatro nacio-
tumados, qual seja, aquele que permite interferir na in- a uma grande extensão de qualidades de objetos em relevância para si no presente. Essa fuga, assim, não é nal era tido como inexistente pelo jovem Machado e
clusão ou exclusão de um determinado texto. No caso diferentes tempos e espaços; criar analogias etc. – ne- romântica e nem óbvia, mas tentativa válida de ultra- José de Alencar? O texto recompõe o projeto estético
dos artigos, os critérios são pautados por um processo nhum desses recursos tem valor positivo a priori; mas passagem de uma radical falta de sentido e motivação e pedagógico de ambos autores e os apresenta inseri-
crescente de reificação das atividades acadêmicas im- é necessário chamar a atenção para a tendência à de- que ameaça a pesquisa em torno da literatura. O “Dos- dos em lutas literárias da época sob um prisma diverso
plicado no atual modo de avaliação e controle dessas preciação atual de procedimentos valorizados nos en- siê polêmicas literárias” compreende os artigos “Graci- àquele que costumamos ver. O segundo artigo traz, a
atividades, em que verificamos uma exigência e uma saios de antigamente, o que parece ter implicado uma liano Ramos versus Otávio de Faria: o confronto entre partir de uma análise detida, uma comparação entre
urgência – ambas materiais e simbólicas – por publicar espécie de “policiamento mútuo do estilo”, no qual o autores ‘sociais’ e ‘intimistas’ nos anos 1930” e “No sur- poemas de Raul Pompéia e Charles Baudelaire. A re-
um grande número de artigos. Ora, mas se o que vale interdito é a grande meta. Ainda que não tenham valor gimento de Sagarana”. O primeiro retoma, na década flexão proposta se dá em torno tanto desse momento
são quantos artigos se publica, por que demorar muito em si, a rejeição sem mais a esses recursos demonstra a de 1930, uma polarização ainda muito presente na per- do poema em prosa no Brasil como acerca de seu valor
tempo na produção e na avaliação de um único? pouca relevância dada tanto ao trabalho de criação im- cepção dos romances atuais: romance social e romance literário.
plicado na concepção e feitura da pesquisa acadêmica intimista. Ao trazer os termos em que essa oposição se
Essa exigência em relação ao tempo da produção do quanto à construção de sua relevância, sendo este últi- dava na época, por meio das intervenções de Graciliano Em seguida, na seção “Futilidades levíssimas”, temos a
trabalho intelectual vem acompanhada de outras que mo algo que poderia trazer mais vivacidade aos artigos. Ramos, Otávio de Faria e outros, o artigo remonta um publicação do conto “A ideia”, de Wagner Lacerda, e do
dão pouca margem ao desenvolvimento de atividades momento importante do chamado “romance do Nor- poema “Turbulência”, de Rafael Coelho. Como já apon-
independentes do calendário e do espaço universitário Pretendendo fugir das reivindicações ingênuas de retor- te”, no auge de seu sucesso, e do “romance psicológi- tamos na edição passada, a escolha dos textos literários
previsto, bem como parecem excluir o interesse por lei- no ou apagamento do passado, olhamos para trás sem co”, gênero que ainda lutava por reconhecimento foi ainda mais difícil do que a dos artigos. Sabemos que,
turas, cursos, reflexões, exercícios de escrita etc. que receio de virar pedra, com menos desconfiança e mais ao longo da graduação em Letras, poucos são os exercí-
não tenham uma contrapartida imediata dentro dessa disposição para a reflexão de práticas atuais com as quais O segundo artigo, “No surgimento de Sagarana”, reto- cios de crítica, no sentido de criação e recriação do valor
lógica acumulativa. Há muitos indícios de que os perí- podemos dialogar e fazer dialogar entre si. Este é o esfor- ma a primeira recepção do livro e levanta, numa espé- literário de um texto. Assim, ao nos depararmos com
odos da década de 1960 e 1970 ainda funcionem como ço da revista Opiniães ao encarar os textos que chegam cie de contraintuição de pesquisa, o emprego que essa discursos cujas assinaturas são anônimas, estamos em
alternativa, na maior parte das vezes idealizada, ao atu- tanto como momento de um processo de escrita, de de- crítica fez de romances assinados por outros escritores, geral despreparados para pensar, por nós mesmos, seus
al modo de produção de pesquisa1 . Um exemplo a dar senvolvimento de uma hipótese etc., quanto instante como, por exemplo, Coelho Neto, de modo a tê-los co- problemas e qualidades. Tendo isso em vista, optamos
seriam as séries de restrições que parecem estar postas de compartilhamento de uma experiência mais geral de mo parâmetro para o julgamento e avaliação do que por escolher os textos que no momento tivemos por ri-
hoje ao pesquisador no que diz respeito à extensão e à mundo2. Procurando oferecer a estes um pouco mais do seria a novidade da escrita rosiana. Essas referências cos o bastante para fazerem surgir o que consideramos
diversificação de seus objetos de estudo, sendo a espe- que um parâmetro “prático de qualidade”, acabamos por apontariam para uma falta de unanimidade em torno ser um exercício de crítica literária. Durante o período de
10 cialização e as definições “precisas” do recorte teórico introduzir outro elemento que nos anima a dizer que aqui do livro, evidenciada pelo segundo lugar no prêmio alguns dias, integrantes dessa revista e pós-graduandos 11
preservam o que seria seu menor denominador comum, ao mesmo tempo
de diferentes programas discutiram por e-mail – e jun- três blocos de perguntas respondidas por professores
em que perdem sua historicidade. Esse processo constrói a identidade
tamente com o autor, no caso do poema “Turbulência” de diferentes universidades. A maior parte das pergun-
heroica de uma geração, cujo peso para as gerações posteriores tem sido
– os dois textos selecionados. Essa discussão é publicada tas vai na direção de investigar o diagnóstico de que há
considerável, senão desmedido” (p. 93).
aqui integralmente e se pretende ao que podemos cha- uma escassez de debates de teor artístico e propor ou-
mar de “um experimento crítico”, cuja finalidade é de na- tras discussões tanto no âmbito da produção do livro
2 Pensando nisso, por exemplo, a revisa Opiniães, a partir do próximo
tureza interventiva e cooperativa. Em que medida esse como propriamente literárias.
número, aprofunda a concepção de que intervém em diferentes processos
nosso intento foi alcançado, caberá ao leitor julgar.
de escrita e implementa dois procedimentos: a) os artigos deixam de ser
Por fim, este número é o primeiro a ser impresso em
“aceito”, “aceito mediante alterações” e “recusado”; agora eles serão “aceito
A seção intitulada “Muito cuidado com o óbvio” traz a concomitância com o recém-inaugurado blog da re-
para a edição presente”, “aceito mediante alterações para a edição presente”,
tradução do artigo do crítico francês Michel Jeanneret, vista Opiniães. Coincidentemente, ao longo de sua
“aceito mediante alterações para uma edição futura”; b) os pareceres passam
intitulado “Léry et Thevet: como falar de um mundo no- feitura, chegaram dois e-mails comentando o epílogo
a ser concebidos como atividades de orientação, não burocráticas, de modo
vo?”, que integra o livro inédito D’encre de Brésil – Jean de da segunda edição, intitulado “Reflexões acerca da
que possam contribuir para a construção dos artigos.
Léry écrivain, organizado por Frank Lestringant e Marie escrita na atualidade”, o que nos permitiu publicá-los
Christine Gomez-Géraud. Analisando as particularida- neste outro espaço, mais dinâmico para a discussão
des de duas obras que geralmente são relembradas ape- dos textos publicados. Esses e-mails dão continuidade
nas pelo apelo polêmico – conforme o texto introdutório à reflexão proposta no número anterior e, certamente,
aponta –, o texto perscruta os princípios de composição estimularão debates futuros. Esperamos, dessa forma,
que cada autor seguia, restabelecendo desse modo a im- que os leitores desta edição não só apreciem o que aqui
portância e a função dos respectivos gêneros, narrativa vai publicado, mas também discordem, desconfiem e
e cosmografia, adotados no século XVI. questionem, sabendo que, se o fizerem publicamente,
poderão contar com este lugar para serem ouvidos e
Após a seção de arquivo, relembramos, na seção “Ex- terem interlocutores.
tra! Extra!”, duas polêmicas ocorridas em 2010. A pri-
meira se deu em torno do Prêmio Jabuti em sua cate-
goria de melhor livro de ficção do ano; a segunda, em
torno do parecer do Conselho Nacional de Educação Referências bibliográficas
(CNE), que exigia a anexação de uma nota explicativa
ao livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, re- CARDOSO, Irene. “A geração dos anos de 1960: o peso de uma
ferente à representação literária de estereótipos. Parti- herança”. In: Tempo Social, vol.17, n. 2, São Paulo, nov. 2005. Dis-
mos da avaliação de que, de modo geral, as polêmicas ponível em: <http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/
recentes têm tido como motivação inicial o âmbito da mostraArtigo.php?id=331>. Acesso em: 20 de março de 2011.
produção do livro, ainda que toquem questões literá-
rias. Não se trata de reivindicar “pureza dos valores lite-
rários” em nome de algum grande ideal de arte, mas de
Notas
perceber que, dentre tantos interesses em torno do que
deve ser discutido, escrito, valorizado etc., alguns se fa- 1 Segundo a avaliação geral que Irene Cardoso faz em “A geração dos
zem prevalecer mais facilmente do que outros. E, no in- anos de 1960: o peso de uma herança” (2005), “as mudanças decorrentes
tuito de ajudar a pensar de modo mais profícuo esse ce- do movimento histórico de uma geração – de amplitude internacional,
nário, assim como de gerar outras questões, contamos mas com características particulares nos seus diversos contextos –, ao se
12 com a seção “Vamos, vamos, responda”, composta de congelar em uma unidade imaginária, “geração anos 60” ou “geração 68”, 13
Fuzilaria a
descoberto

15
graciliano ramos
versus
Octávio de faria:
o confronto entre autores
“sociais” e “intimistas” nos anos
mil novecentos e trinta
Thiago Mio Salla* Resumo
O presente artigo tem o objetivo de recuperar e dis-
cutir alguns elementos concernentes a certa polêmica
ocorrida em 1937, envolvendo os escritores Graciliano
Ramos e Octávio de Faria, da qual também tomou par-
te Jorge Amado. Tal controvérsia ocorre num momento
de polarização política e ideológica no qual se confron-
tavam duas perspectivas divergentes de conceituação
do romance nacional, que procuravam se afirmar: a

Dossiê polêmicas “social”, praticada, sobretudo por escritores nordes-


tinos, e a intimista, de orientação católica, focada em
dramas individuais. A partir da análise dos textos de
época, procurar-se-á examinar os diferentes matizes

16
literárias * Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social pela
Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São paulo (USP) e
Bacharel em Letras (FFLCH/USP) e em Jornalismo (ECA/USP). Contato: tmsall@
que nortearam esse embate, que dominou o meio lite-
rário brasileiro até a instauração do Estado Novo.
17
gmail.com.
Palavras-chave: Graciliano Ramos; Octávio de Faria; em moda literária, em seguida atravessará uma fase detalhes, de reles “espiritismo literário”, desconectado imposto; Jorge Amado, o contraponto mais imedia-
Jorge Amado; romance social; romance intimista. de esgotamento e de críticas por parte dos adeptos da vida e dos problemas do país. Não por acaso, Octá- to de Octávio de Faria nas fileiras do romance social e
do “romance psicológico”. É nesse cenário de embates vio de Faria, crítico que se convertera no mais ferrenho proletário, participou do embate contra este autor em
Abstract acirrados entre uma e outra tendência que, em 1937, to- opositor dos romancistas do Norte e, por conseguinte, duas oportunidades7. Primeiramente em “Um roman-
mou corpo a polêmica envolvendo Graciliano Ramos e na principal ponta de lança dos intimistas, é quem se ce corajoso”, artigo publicado no Boletim de Ariel, em
This article aims to retrieve and discuss some facts re- Octávio de Faria. habilitará a redarguir, sem muito tardar, ao autor de junho de 1937, e, depois, no prefácio de seu romance
lated to one literary controversy occurred in 1937, in- Angústia. No longuíssimo “O defunto se levanta”, ar- Capitães da areia, no qual, em caráter deliberadamente
volving the writers Graciliano Ramos and Octávio de Logo depois de sua saída do cárcere, em janeiro de tigo publicado um mês depois, em maio de 1937, no ofensivo, qualifica os romances intimistas de vã “mas-
Faria, which also took part Jorge Amado. This contro- 1937, Graciliano decide se fixar no Rio de Janeiro e dedi- carioca O Jornal, Faria responde de maneira direta e turbação intelectual”.­
versy comes at a time of political and ideological polari- car-se à carreira literária. Ao mesmo tempo, como for- circunstanciada à crônica “Norte e Sul” de Graciliano.
zation in which two divergent perspectives of the novel ma de completar o orçamento, passa a escrever contos, Partindo de sua visão elitista absolutista do fenômeno Opiniões divergentes de um mesmo crítico
conceptualization fight among themselves looking for crônicas e artigos para inúmeros periódicos cariocas2. artístico, adota uma postura crítica superior, carregada
statement: the “social novel“, practiced, especially by Em tais textos, sobretudo naqueles produzidos em a um só tempo de ironia e condescendência4 para re- Com o objetivo adensar a discussão, convém recuar
writers from the Northeast, and the “intimist novel”, seus primeiros meses de liberdade, volta sua artilharia futar os argumentos do escritor alagoano e, uma vez até o final de 1933, quando Octávio de Faria, autor até
focused on individuals dramas with catholic orien- contra os ataques sofridos pelo romance nordestino, mais, rebaixar o romance nordestino enquanto “tapea- então de dois livros de orientação fascista8, publica a
tation. From the analysis of the texts of the time, we de viés social e documentário, empreendidos por críti- ção ou propaganda de ideias sociais”5. série de artigos “A resposta do Norte”, estampada no
intend to examine the different questions that guided cos afeitos ao romance intimista. Essa orientação pre- periódico Literatura, dirigido por Augusto Frederico
this clash, which dominated the national literary esta- domina em “O fator econômico no romance brasileiro”, Ao longo de 1937, depois de ter atacado o romance dito Schmidt e Sabóia Medeiros9. Neste momento, aquele
blishment until the beginning of the Brazilian Estado longa análise da produção literária nacional, publicada psicológico e recebido a dura resposta de Octávio de que viria a ser o principal opositor dos romancistas nor-
Novo. na revista Observador Econômico e Financeiro e, princi- Faria, Graciliano reduz o tom dos questionamentos, destinos, saúda com grande otimismo e entusiasmo a
palmente, em “Norte e Sul”, escrito ligeiro estampado mas continua alfinetando de maneira indireta, vez por safra de romances advinda da porção setentrional do
Keywords: Graciliano Ramos; Octávio de Faria; Jorge no 1º Suplemento do Diário de Notícias, que circulava outra, os autores ditos “intimistas” em seu trabalho ro- país. Segundo ele, os livros de José Américo de Almei-
Amado; social novel; intimist novel. aos domingos na capital federal. tineiro como crítico literário. Faria, por sua vez, insiste da, Rachel de Queirós, José Lins do Rego, Jorge Ama-
ainda em malsinar a produção dos nordestinos, sobre- do e Amando Fontes deveriam ser tomados como uma
Introdução Ambos os textos mencionados datam de abril de 1937. tudo o romance proletário a la Jorge Amado, como se réplica à solicitação feita por Tristão de Athayde, numa
No segundo deles, apesar de não citar nomes, Graciliano pode depreender do artigo “O ódio na literatura nacio- crônica de 1927, intitulada “Norte-Sul”:
Segunda metade dos anos 1930. À esquerda, auto- parece fazer referência ao polêmico “Excesso de Norte”, nal”, publicado em julho do mesmo ano no Boletim de
res nordestinos, favoráveis ao romance proletário e à artigo no qual Octávio de Faria, dois anos antes, con- Ariel. Neste mesmo mês, o polemista ainda viria a pu- É preciso que o Ceará se compenetre da
representação documentária das mazelas do interior densara e sistematizara seu repúdio às produções dos blicar Mundos mortos, primeiro volume de seu imenso tradição literária que recebeu e que não se
do país. À direita, os ditos romancistas intimistas, em autores nordestinos, bem como a outros escritos mais roman-fleuve Tragédia burguesa, que consubstanciaria, esqueça de que sempre esteve entre os da
geral, de orientação católica, que radicalizavam o in- recentes deste mesmo crítico, que insistentemente ti- em termos ficcionais, seus posicionamentos em favor frente nos movimentos de criação literária,
teresse pelo indivíduo, com destaque para produção nham o objetivo de rebaixar os romances engajados de de um romance centrado no homem e não na tematiza- no século XIX. Que Pernambuco, que a Bahia,
de dramas centrados em personagens pertencentes à Jorge Amado entre outros: “Ora, nestes últimos tempos ção de particularidades regionais ou da luta de classes6. que o Maranhão, que Sergipe, que todos os
burguesia urbana dos grandes centros. Os dois lados surgiram referências pouco lisonjeiras às vitrinas onde os Estados de onde, no século passado desciam
se digladiavam, segundo Antonio Candido, sob o pano autores nordestinos arrumam facas de ponta, chapéus No entanto, antes de abrandar-se, a polêmica teve um para a capital do país as vozes da renovação
de fundo de crescimento do mercado livreiro, no qual de couro, cenas espalhafatosas que existem realmente e desdobramento “esperado”. Ainda num momento li- literária, participem do movimento atual, que
as editoras eram “cada vez mais receptivas aos auto- são recebidas com satisfação pelas criaturas vivas”3. geiramente anterior à reconfiguração do campo inte- em São Paulo e no Rio (...) está iniciando uma
res integrados nas tendências do momento”1 . Se o “ro- lectual posta em prática pelo Estado Novo, que levou nova era para as nossas letras10.
mance do Norte” desfrutava de certa hegemonia até a Graciliano faz duros ataques ao romance psicológi- à amenização dos ataques entre direita e esquerda,
18 primeira metade da década, convertendo-se, inclusive, co, tachando-o ironicamente, como se verá com mais tendo em vista o ideal autoritário de união nacional 19
Segundo Faria, que chegaria a afirmar que o movimen- que o social não poderia tomar o lugar do psicológico; Nos anos subsequentes, Faria continuou a desempe- transcorrido foi a afirmação dos escritores
to modernista jamais teria existido11, era preciso que a o político, do ontológico e que, portanto, os limites da nhar a dupla tarefa de militar em favor do romance mineiros na vanguarda da nossa produção de
“literatura de destruição”, professada pelos jovens de reação do Norte teriam sido extrapolados: psicológico e de denunciar aquilo que julgava como interesse18.
1922, desaparecesse das preocupações dos homens de “burrismo literário” do romance social e proletário. Em
talento para que uma nova “literatura de criação” pu- E o resultado foi bem triste: uma avalanche “Mensagem post-modernista”, artigo dedicado a rea- Faz referência especificamente a Lúcio Cardoso e a
desse florescer. Para o crítico, tal movimento de tran- de testemunhos vindos do Norte e Nordes- lizar um balanço do modernismo, saído em 1936, em Cornélio Pena, bem como aos poetas Emílio Moura,
sição teria sido instaurado pelos romancistas nordesti- te, todos eles se pretendendo romances, mas número de Lanterna Verde, (boletim da Sociedade Feli- Murilo Mendes, Abgar Renault, Carlos Drummond de
nos de 1930 e um novo horizonte se descortinava para na maioria dos casos simples depoimentos pe d’Oliveira) ele não só repudia o “exagero do caracte- Andrade e Pedro Nava. Em meio a esse grupo de artis-
a literatura nacional: sobre a mediocridade literária nacional. De rístico e do regional” das produções nordestinas, como tas mineiros, aponta apenas um intruso: Graciliano Ra-
modo que não resta mais dúvidas hoje em sinaliza o avanço da reação a tal tendência sociológica mos de Angústia, “romancista de inegável poder”. Não
A resposta está aí, insisto: – esses romances dia: confundiu-se tudo, as noções certas que até então prevalecente nas letras nacionais. Destaque por acaso, Faria valoriza, justamente, a obra na qual o
de algum modo notáveis, verdadeira “fala” pareciam estar firmadas foram inteiramente para autores que procuraram consciente ou inconscien- escritor alagoano, de esquerda, mais se aproximou das
do Norte, testemunho, documento, expres- por água abaixo. Confundiu-se romance com temente, “colocar tudo em função do drama humano, e experiências dos autores católicos, sobretudo no que
são de si mesmo, da sua realidade mais pro- testemunho, com obra educacional, com ge- que não se esqueceram nunca de que o romance é his- diz respeito à “introspecção exercitada em vertiginosa
funda e do que há de mais moderno na nossa ografia, com história, com propaganda (na- tória de destinos, de casos individuais, não de regiões profundidade”19. Realmente, o drama de Luís da Silva
literatura – e também, convenhamos, do que cional e antinacional), com pornografia, com geográficas ou lutas sociais”17. Com o objetivo de apon- permitia leituras que, mesmo indiretamente, o apro-
se encontra de melhor, do que se produziu de vinte e tantas outras coisas. Escreveram-se tar o crescimento do grupo intimista, aos nomes de ximavam do romance intimista. Peregrino Júnior, por
mais interessante entre nós, nesses últimos romances realmente? Salvando um ou outro Lúcia Miguel Pereira, Lúcio Cardoso e Mário Peixoto, já exemplo, exalta a verticalidade do artista: “A não ser
anos, no domínio do romance12. creio que não se possa responder que sim...16. indicados, acrescenta os de Barreto Filho, José Geraldo Machado de Assis, nenhum outro romancista no Bra-
Vieira e Cornélio Pena, autores, respectivamente, de sil, conseguiu jamais mergulhar tão fundo nas secretas
Contudo, ao longo dos dois anos seguintes, a opinião Segundo Bueno, a mudança radical de orientação de Sob o olhar malicioso dos trópicos, A Mulher que fugiu de sombras da alma humana”20.
do crítico mudou drasticamente. Se antes ele afirmava Faria estaria relacionada à recusa, por parte do críti- Sodoma e Fronteira.
que os romancistas nordestinos conseguiriam superar co, da hegemonia alcançada pelo romance social, bem A esquerda, por sua vez, percebera o aparente desvio
o puramente “regional” e dar uma impressão forte do como ao crescimento e à cristalização da polarização Em janeiro de 1937, no texto “Emílio Moura e Minas de rota da produção ficcional de Graciliano com a pu-
“drama que o homem vive – do drama que o homem é”, entre a referida literatura documentária de caráter Gerais”, publicado no Boletim de Ariel, Octávio de Faria blicação de Angústia. O jornalista, escritor e militante
depois lhes acusará de produzir não romances, mas tão proletário realizada, sobretudo, pelos nordestinos; e a mantém o tom beligerante habitual. Todavia, abdica da do PCB, Aydano Couto Ferraz, apesar de louvar a obra,
somente “geografia ou propaganda ideológica roman- literatura intimista, de matiz católico, defendida pelo postura deliberadamente ofensiva, passando a adotar destaca que o artista alagoano não teria ganhado nada
ceada”, na medida em que teriam passado a subordinar próprio autor da Tragédia Burguesa. Não por acaso, ao uma posição superior, como se tivesse sido sacramen- ao abandonar o romance de costumes, na linha de Ca-
o gênero a fins determinados, mediante uma profu- mesmo tempo em que rebaixava o romance do Norte, tada uma suposta vitória do grupo intimista. O eixo da etés, muito pelo contrário. “Porque o romance psicoló-
são de “concessões, traições, não raro mesmo simples o iracundo articulista destacava algumas obras que te- literatura nacional teria sido deslocado do Norte para gico não é o romance do grande público no Brasil. E um
meios de prostituição literária”13. riam passado despercebidas pela crítica, “porque não o Centro: escritor como o autor de Angústia, que, pretende, ao
vinham no sentido da mania do momento”. Como se menos agora, escrever para o povo, deve voltar, mes-
Conforme explicita em “Excesso do Norte”, texto críti- procurasse cavar espaço no terreno intelectual domi- Com o relativo fracasso da avançada dos es- mo que temporariamente, ao romance de costumes,
co de enorme repercussão nos anos 193014 , “o romance nado por José Lins, Jorge Amado, entre outros, cita critores do Norte, ou digamos melhor: com gênero de ficção mais próprio para documentar os an-
seria o homem”.Daí pressupor que o gênero não po- Em surdina, de Lúcia Miguel Pereira, Salgueiro, de Lúcio a sua progressiva transformação de movi- tagonismos sociais”21 .
deria ser reduzido ao documentário ou à propaganda Cardoso e O inútil de cada um, de Mário Peixoto, títulos mento puramente literário em movimento de
ideológica. Segundo ele, o enraizamento e o caracte- preteridos pela crítica uma vez que não se pautavam documentação sociológica, o centro de gra- “Espiritismo literário” versus “panfleto romanceado”
rístico deveriam ser mostrados por meio do indivíduo, pelo pitoresco e pelo testemunho das mazelas do inte- vidade de nossa literatura como que se des-
“enquanto elementos do destino dos homens cujas rior do país. locou sensivelmente para o Centro. E, na ver- Talvez, como forma de dar uma resposta afirmativa
20 vidas estão sendo seguidas”15. Nesse sentido, conclui dade, o que mais caracterizou o ano literário aos que supunham que ele poderia ter mudado de lado, 21
Graciliano, a partir de sua saída da prisão, passará a intimistas, que, por deixar de lado a suposta concretu- para estas no próprio “mundo objetivo”. Ele deveria Nesse sentido, o autor de Angústia argumenta que a
adotar outra estratégia a fim de valorizar e consolidar de dos fatos, acabaria resultando numa análise de cima compor tipos que se comportassem “como toda a gen- antiga separação geográfica entre os escritores nortis-
a vertente nordestina de romance da qual partilhava. para baixo da sociedade. Para o narrador, tais omissões te”. tas e sulistas não seria correta. Segundo ele, a divisão
Se, no começo da década, procurava fazer compara- afetariam a “verdade” e “autenticidade” dos textos: mais producente seria entre pessoas que “gostam de
ções entre seus companheiros de geração e literatos do Para tanto, no tratamento das matérias nacionais, os escrever sobre coisas que existem na realidade” (os re-
passado com o intuito de rebaixar o protocolo român- Os romancistas brasileiros, ocupados com escritores deveriam obedecer a certa perspectiva “cien- alistas críticos e documentais) e outras que “preferem
tico, bem como criticar os modernistas de 1922 com o política, de ordinário esquecem a produção, tífica”. Cabia-lhes deixar de lado paixões e apriorismos tratar de fatos existentes na imaginação” (os escrito-
propósito de afirmar-se22, seu objetivo torna-se outro desdenham o número, são inimigos de esta- que pudessem interferir na observação das “verdades” res tachados de intimistas). A oposição entre verdade
depois de 1937: contrapor os escritores com os quais tísticas. Excetuando-se as primeiras obras de supostamente inscritas na natureza: e imaginação, num tom de manifesto, funciona como
construíra afinidades (principalmente José Lins do Re- José Lins do Rego e as últimas de Jorge Ama- procedimento narrativo para defender e elevar os ro-
go, Jorge Amado e Rachel de Queirós23) aos adeptos do, em que assistimos à decadência da família ... a obrigação do romancista não é condenar mances nordestinos que, cada vez mais, estariam sen-
do dito romance intimista, de influência católica, que rural, queda motivada pela exploração gringa nem perdoar a malvadez: é analisá-la, expli- do alvos de referências pouco lisonjeiras (fundamental-
ganhavam destaque no meio literário naquele mo- sobre os engenhos de banguê e as fazendas cá-la. Sem ódios, sem ideias preconcebidas, mente aquelas advindas da pena de Octávio de Faria)
mento. Obviamente, realizará a defesa dos primeiros de cacau, o que temos são criações mais ou que não somos moralistas. e depreciar os títulos dos autores considerados intros-
e rebaixará os segundos. Estes praticariam, conforme menos arbitrárias, complicações psicológi- Estamos diante de um fato. Vamos estudá-lo pectivos:
diz, uma espécie de “espiritismo literário”, uma vez que cas, às vezes um lirismo atordoante, espécie friamente.
deixariam de lado a tematização do que se supunha ser de morfina, poesia adocicada, música de pa- Parece que este advérbio não será bem rece- Os inimigos da vida torcem o nariz e fecham
a “realidade” do país (a referida “cor local”), sobretudo lavras (p.363). bido. A frieza convém aos homens de ciência. os olhos diante da narrativa crua, da expres-
aquela encontrada no interior brasileiro, para se foca- O artista deve ser quente, exaltado. E men- são áspera. Querem que se fabrique nos
rem em dramas introspectivos, burgueses e citadinos. De certa maneira, em sua produção jornalística, Gra- tiroso. romances um mundo diferente deste, uma
ciliano julgava que “números” e “estatísticas”, ao lado Não sei por quê. Acho que o artista deve pro- confusa humanidade só de almas, cheias de
Tal julgamento já aparecia em “O fator econômico no de dados de caráter sociológico, consubstanciavam curar dizer a verdade. Não a grande verdade, sofrimentos atrapalhados que o leitor co-
romance brasileiro”, um de seus primeiros textos pu- a própria “realidade”, ou seja, considerava que essas naturalmente. Pequenas verdades, essas que mum não entende. Põe essas almas longe da
blicados após sua saída da prisão, na revista carioca informações não apresentavam o estatuto de me- são nossas conhecidas (p.369-370). terra, soltas no espaço. Um espiritismo literá-
Observador Econômico e Financeiro, em abril de 193724. diações simbólicas, mas sim de traduções diretas do rio excelente como tapeação. Não admitem
Nele, o cronista desenvolve uma leitura crítica da pro- próprio mundo. Nesse sentido, o romance, enquanto Graciliano toma as obras que deixavam de lado o es- as dores ordinárias, que sentimos por as en-
dução dos romancistas nacionais, destacando que boa gênero que visava à redescoberta e ao estudo do país, tudo “frio” do país e de sua coletividade, para privile- contrarmos em toda parte, em nós e fora de
parte desta seria marcada tanto pela ausência de uma não poderia deixar de lado a “objetividade”, expressa giarem dramas subjetivos, como manifestações do que nós. A miséria é incômoda. Não toquemos em
observação cuidadosa dos acontecimentos, como pe- por tais conhecimentos, para fiar-se tão somente em chama de “espiritismo literário”, em alusão irônica ao monturos (p.192).
lo desprezo por dados econômicos. Mais especifica- abordagens de cunho introspectivo e individual. O moralismo católico dos autores intimistas, produtores
mente, questiona a preferência crescente por dramas autor exemplifica: “Quando um negociante toca fogo de “uma confusa humanidade só de almas”. A definição Com ironia, Graciliano aponta que os refinados e sensí-
individuais, considerados abstratos e arbitrários, bem na casa, devemos procurar o motivo deste lamentável de tal categoria ganha corpo na crônica “Norte e Sul”, veis autores intimistas não só não toleravam a “verda-
como distantes do que supunha ser os reais interesses e acontecimento, não contá-lo como se ele fosse um ar- publicada também em abril de 1937, no carioca Diário de” inconveniente das mazelas nacionais, preterindo a
anseios da coletividade: “Acontece que alguns escrito- ranjo indispensável ao desenvolvimento da história que de Notícias. Nela, o artista torna ainda mais explicita “imagem da fome” e o “palavrão obsceno”, como não
res se habituam a utilizar em romance apenas coisas de narramos.” (p.368). Dessa maneira, o escritor alagoa- sua defesa do romance social, bem como o rebaixa- suportavam o fato de o romance social desfrutar da
natureza subjetiva. Provavelmente há o receio de que, no subentende que a estória deveria subordinar-se ao mento do romance psicológico, assumindo, assim, um preferência dos leitores. “E o que é mais desagradável,
sendo comércio e indústria, oferta e procura, etc. vistos que chama de “real”, ou seja, àquilo que entende como posicionamento crítico diametralmente oposto ao de e também verdade, é reconhecer que, apesar de haver
muito de perto, a questão social venha à baila” (p.366). preexistente a qualquer formulação. Ao invés de com- Octávio de Faria, sem perder, contudo, o mesmo tom sido muito xingada essa literatura, o público se interes-
Particularizando seu argumento, repudia o que chama portar-se como um deus que tira “criaturas vivas da ca- combativo e polêmico de seu opositor25. sa por ela” (p.193). Considera, portanto, que o brasilei-
22 de lirismo “vazio” e “fantasmagórico” de tais autores beça”, caberia ao romancista encontrar o fundamento ro estaria mais interessado em obras que oferecessem 23
personagens “críveis” e “reais” dentro da proposta do “Norte e Sul”, na qual o autor de Mundos mortos tam- Graciliano publicasse Caetés, ele fora “um dos que com brasileira em termos geográficos como um assunto que
realismo documental, presente nas obras de José Lins, bém retoma seu texto anterior, “Excesso de Norte”. mais entusiasmo e confiança” os teria saudado. Invo- já tivesse sido enterrado e que assim devia permane-
Jorge Amado e Rachel de Queirós, algo confirmado pe- Este, como vimos, teria suscitado grande polêmica no cando certa imparcialidade, julga que ninguém pode- cer. Daí lançar mão do título metafórico “O defunto se
lo próprio mercado livreiro, sobretudo no caso dos au- momento em que fora veiculado, na medida em que ria lhe acusar de má-vontade ou partidarismo contra o levanta” para fazer remissão ao caráter acabado e bal-
tores de Menino de engenho e Suor. Ao mesmo tempo, nele o autor sistematizara seu repúdio ao romance de romance social nordestino. Pretende, dessa maneira, do do assunto que o autor de Angústia se propunha a
parece recuperar o argumento da esquerda, visto aci- matiz proletário, produzido, em geral, por autores nor- colocar-se acima da polarização político-literária, da retomar. Ao mesmo tempo, investe ironicamente con-
ma na fala de Aydano Couto Ferraz, de que o romance destinos. Opera, assim, um processo de contextualiza- qual ele próprio era um dos principais agitadores. tra a maneira rasteira pela qual este teria separado os
psicológico, além de produzir um interesse restrito na ção que procura enquadrar a polêmica, ora reinstalada, “pudibundos metafísicos” e as vozes “verdadeiras” dos
audiência, não se prestava à representação das ques- no continuum de embates entre nordestinos e intimis- A segunda ressalva refere-se à sua relação com o tra- nordestinos:
tões e dilemas sociais brasileiros, muito pelo contrário, tas ao longo da década de 1930: balho artístico de Graciliano. Por mais que não se co-
evadia-se delas. locasse entre os admiradores incondicionais do autor Tamanha simplificação das coisas, tamanha
Ingênuos, certamente muito ingênuos, os alagoano, entre aqueles que o consideravam como o recusa à compreensão da natureza do verda-
Para enfocar mais especificamente o suposto fato de que, como eu já julgavam definitivamente “mais legítimo de nossos escritores”, toma-o como um deiro material do romance, a admitir a pos-
que os romancistas intimistas estariam longe de contar encerrada e esquecida a questão dos “roman- dos melhores romancistas brasileiros, artista “feito e sibilidade da liberdade de criação literária,
com grande simpatia e receptividade dos leitores e, por cistas do Norte” que há algum tempo atrás seguro de si, com uma das mais fortes capacidades de tamanha obstinação em limitar o romance à
isso, partiriam para o ataque contra o bem-sucedido tantos equívocos produziu e a tantas e tão há- se exprimir plena e integralmente”27. Mais especifica- narração dos casinhos de vida cotidiana do
e “inconveniente” romance do Norte, Graciliano lança beis pequenas explorações se prestou, graças mente, faz menção à força de Angústia, já ressaltada interior do Brasil, já catalogados pelos nos-
mão de uma metáfora comercial: “O fabricante que a pouca compreensão de uns, à desonestida- anteriormente, bem como a capacidade de Graciliano sos sociólogos, tamanha ojeriza à ideia de
não acha mercado para o seu produto zanga-se, é na- de literárias de outros e ao enorme potencial como “conteurs”, aludindo à publicação do conto “Ba- que exista em certas criaturas o monstro re-
tural, queixa-se com razão da estupidez pública, mas de regionalismo nordestino, que havia no ar leia”, no domingo anterior, no mesmo O Jornal em que acionário conhecido pelo nome de alma, com
não deve atacar abertamente a exposição do vizinho. sem que ninguém mesmo suspeitasse de sua estampava agora sua crítica. problemas próprios e sutilezas irredutíveis ao
O ataque feito por concorrente não merece crédito, o existência. Ao toque de alarme responderam econômico puro, tamanho apertado da visão,
consumidor desconfia dele” (Idem, p.192). Ao destacar logo todas as sensitivas do Norte, desde as Tal resposta de Octávio de Faria vem no mesmo mês espantam realmente no autor de contos tão
o caráter interessado da crítica realizada pelos desgos- mais respeitáveis celebridades a caminho das em que o romance Angústia fora agraciado com o Prê- bons, de um romance de qualidade tão segura,
tosos intimistas, bem como a desconfiança que tais festas de coroação até os mais tolos articulis- mio Lima Barreto, conferido pela Revista Acadêmica, num autor que por tantos outros lados merece
agressões provocavam no leitor, Graciliano recupera tas das revistas proletarizantes do momento. publicação que também dedicara a Graciliano um nú- o nosso respeito e a nossa consideração28.
as críticas negativas ao romance nordestino, feitas, so- Depois, como, verdadeiramente, a matéria mero especial com treze artigos e notas sobre sua obra,
bretudo, por Octávio de Faria, num momento em que não se prestava a mais confusões e deturpa- escritos por, entre outros, Mário de Andrade, Oswald Após reprovar a reedição das “mesmas tolices de anos
este passava de simples crítico literário a romancista. ções, calaram-se os pequenos Don Quixotes de Andrade, Jorge Amado, Rubem Braga e Carlos La- atrás” que se diziam sobre a questão Norte-Sul, Faria
Mundos mortos, romance que dava início à Tragédia bur- do Norte ofendido e os provinciais canhões cerda (este sob o pseudônimo de Nicolau Montezuma). investe contra a caracterização da produção dos auto-
guesa projetada pelo autor, fora lançado no mesmo ano do 3º regimento ensurdeceram, junto com os A figura do grande romancista alagoano, já parcialmen- res intimistas como “espiritismo literário”, tendo como
da instauração da presente polêmica. tímidos vagidos da nossa absurda literatura te consolidada pela crítica antes de sua prisão, robuste- base a suposta incompreensão, por parte de Gracilia-
proletária, a infeliz e tendenciosa questãozi- ce-se ainda mais no cenário literário nacional mediante no, da “natureza do verdadeiro material do romance”.
Como se carapuça tivesse lhe servido, Octávio de Fa- nha literária: Norte e Sul26. tal gesto galardoador do periódico esquerdista. Mais do que explicitar a definição do gênero, como se
ria não demora em rebater os ataques desferidos por poderia supor a primeira vista, o crítico se deterá na re-
Graciliano. Sem saber se fora designado tácita ou expli- Antes de partir deliberadamente para o contra-ataque, Apesar do reconhecimento alcançado pelo escritor ala- cusa do que chama de “falso romance”, no qual preva-
citamente pelo autor de Angústia, um mês depois, em Faria faz duas ressalvas que procuram conferir isenção goano no meio literário, Faria não se furtará a apontar a leceriam dados sociológicos, geográficos e pitorescos,
maio de 1937, Faria publica o longo artigo “O defunto crítica aos seus posicionamentos. A primeira diz respei- “superficialidade de julgamentos” e a “má informação” bem como a propaganda esquerdista, em oposição
se levanta”, nas páginas de O Jornal. Trata-se de uma to ao fato de se sentir à vontade para criticar os des- de Graciliano na crônica “Norte e Sul”. Em linhas gerais, à “verdadeira literatura”, algo que apenas paira no ar,
24 resposta direta, particular e circunstanciada ao artigo lizes dos autores do Norte, pois antes mesmo de que o crítico carioca trata a separação binária da literatura pois não é elucidado por Faria neste momento. 25
Contudo, em outros momentos de sua produção co- inconscientemente”, tomar o “drama humano” como o novo “mergulho” empreendido pela artista nas ma- Não fez homens rudes a matutar na existên-
mo articulista, o autor de Mundos mortos explicita um seu eixo fundamental, partindo do pressuposto de zelas nacionais: “Caminho de pedras é uma história de cia de Deus em bom português de Lisboa,
pouco mais seus posicionamentos. Como visto, em que o gênero se pautaria pela apresentação de casos gente magra, uma história onde há fome, trabalho ex- como querem certos críticos sem público (...).
“Excesso de Norte”, pontua que a literatura deveria individuais, da história de vários destinos e não de re- cessivo, perseguições, cadeia, injustiças de toda a es- Sei bem que certos cavalheiros que possuem
dar “testemunho do homem” ou ainda que “o romance giões geográficas ou lutas sociais. Nesse sentido, com pécie, coisas que os cidadãos bem instalados na vida a receita do bom romance (o psicológico, o
seria o homem”, daí não poder ser reduzido ao docu- o intuito de ratificar a força literária do grupo do qual não toleram” (p.195). Paralelamente, procura afastar a arte pela arte, o fora dos problemas sociais, o
mentário ou à propaganda ideológica. Assim, pontua se colocava como a principal voz, em claro gesto polí- autora de O quinze de qualquer influência ou possível Misterioso...) torcerão o nariz diante desse ro-
que a obra de arte deveria privilegiar o ontológico e a tico, novamente confere valor às produções de Lúcio aproximação do grupo intimista: “Se Rachel de Queiroz mance corajoso e verdadeiro. Dirão que não
análise psicológica, em detrimento da simples narração Cardoso, Cornélio Pena, Barreto Filho, Mário Peixoto, houvesse feito o seu livro em conformidade com certas há psicologia, profundidade e outras bestei-
“dos casinhos de vida cotidiana do interior do Brasil”. José Geraldo Vieira e Lúcia Miguel Pereira, autores receitas que andam por aí, teria emprestado alma ao ca- ras iguais40.
Nesse sentido, indispõe-se diretamente contra a oje- daquilo que “melhor se produzia no momento”. pitão Nonato34.”35
riza de Graciliano em admitir a existência do “mons- Os designativos “crítico sem público” e “certos cavalhei-
tro reacionário conhecido como alma, com problemas Fecha o texto com o mesmo tom irônico do início, mas Tal preocupação se justificava. Em “O defunto se levan- ros que possuem a receita do bom romance” têm referen-
próprios e sutilezas irredutíveis ao econômico puro”29 . valendo-se de certa amenidade e superioridade: “Dei- ta”, texto visto acima, Faria não só exaltava os autores te certo: Octávio de Faria, defensor da “besteira” de que a
Em “Mensagem post-modernista”, o crítico já mostrara xemos, pois os defuntos em paz, sobretudo quando os introspectivos, algo rotineiro até então, como destaca- análise psicológica deveria prevalecer sobre a documen-
sua predileção por uma vivos como o Sr. Graciliano Ramos, oferecem tanto in- va que a produção ficcional de Rachel de Queiroz, desde tação do mundo nas produções literárias. Segundo Ama-
teresse à nossa literatura e ainda estão ricos de tantas O quinze, desenvolvia uma suposta curva ascendente, do, “apesar da dor de barriga que causa aos metafísicos do
(...) Literatura escrita com maiúscula que in- possibilidades”32. Nesse sentido, como destacara an- aproximando-se do ideal de romance que ele defendia. romance”, seria inegável o quanto o documentário estaria
dica não se tratar mais de um divertimento, teriormente, desqualifica não o romancista Graciliano, Em outras palavras, dá a entender que a escritora esta- entranhado na obra de arte moderna. Se aqui o articulis-
nem da conquista de posições literárias ou mas a suposta infelicidade deste ao retomar uma ques- ria mudando de lado, indo mais para o sul, tornando-se ta procura conferir um caráter de crítica literária a seus
da fundação de escolas, mas da expressão do tão aparentemente morta e despropositada, quando o intimista36: “... a autora (...) cada vez mais vai se tornan- ataques, no prefácio de Capitães de areia, livro publicado
que há de mais essencial na vida de determi- cenário literário nacional continuava a atravessar um do mais romancista, dando-nos mais dela própria, das pouco tempo depois, em setembro de 1937, a agressivida-
nados indivíduos superiores – do que há por- momento de prosperidade, pautado principalmente suas preocupações íntimas... quase mergulhando em de sobrepõe-se. O ataque, agora, recai não mais sobre o
tanto de mais sagrado e de mais alto na escala pela prevalência dos autores intimistas. cheio nos tais ‘sentimentos atrapalhados’ que, ao ver crítico, mas sim sobre o romancista Octávio de Faria, que
de valores espirituais30. do articulista, parecem caracterizar os autores-réus de dois meses antes publicara Mundos mortos, sua obra fic-
Desdobramentos polêmicos enquanto o Estado No- ‘espiritismo literário’.”37 cional de estreia:
Em oposição ao prosaísmo e à cotidianidade reivin- vo se avizinhava
dicada pelos modernistas, afirma que as obras lite- Se Graciliano adota um tom mais ameno, fazendo re- Tenho certeza de que não fiz obra de repór-
rárias deveriam valorizar o “sublime”, o “eterno”, Evitando a extensão do confronto, Graciliano não es- ferências indiretas e pontuais ao caráter etéreo dos ter e sim de romancista, como tenho certeza
o “excepcional”31 , algo que, por sua vez, também o creve propriamente uma tréplica. Continua a opor o intimistas e ao compromisso dos nordestinos com as que, se bem meus romances narrem fatos,
contrapunha ao materialismo e ao regionalismo lite- interesse pela “realidade brasileira” dos nordestinos mazelas nacionais, com o intuito de preservar as hostes sentimentos e paisagens baianas, têm um
rários defendidos por Graciliano Ramos em seus tex- à “humanidade só de almas” dos introspectivos, con- do Norte38, seu companheiro e ponta de lança dos ro- largo sentido universal e humano sem dúvida
tos jornalísticos. Segundo ele, os romances deveriam tudo sua postura torna-se menos insinuante. Em seu mancistas sociais, Jorge Amado, mantém o tom belige- muitas vezes maior que os desses romances
privilegiar o exame da vida moral dos indivíduos e texto seguinte, saído no Diário de Notícias, em 16 de rante39. Em “Um romance corajoso”, artigo publicado escritos em reação aos dos novos romancis-
não a evolução econômica dos países, das províncias, maio de 1937, propõe-se a exaltar o romance Caminho no Boletim de Ariel, em junho de 1937, um mês depois tas brasileiros e que se distinguem por não
dos núcleos de povoação. de pedras, de Rachel de Queirós, que segundo ele pró- da resposta assoberbada de Faria a Graciliano, o autor aceitarem nenhum caráter local nem social
prio vinha sendo vítima de ataques “integraloides”33. de Jubiabá exalta o livro proletário Gado humano de em suas páginas, romances que no fundo não
Conforme explica Faria, a reação à tendência so- Na verdade, mais do que incensar ou preservar a escri- Nestor Duarte. Nesse processo, argumenta que tal ro- passam de masturbação intelectual, espécie
ciológica expressa pelo romance nordestino dese- tora, seu propósito parece ser o de reafirmar os laços mancista não teria traído o sertão, bem como: de continuação da masturbação física que
26 nhou-se em obras que procuraram, “consciente ou que a ligavam ao romance social. Para tanto, ressalta praticam diariamente os seus autores41 . 27
Por mais que não haja explicitamento, o rótulo ofensivo capacidade de agir direta e imediatamente sobre as _____________. Capitães da Areia. Rio de Janeiro: Livraria José _____________. Mundo Mortos. Rio de Janeiro: Livraria José
“masturbação intelectual”, impingido aos intimistas, massas, sobre os grandes públicos”42. Olympio Editora, 1937b. Olympio Editora, 1937d.
conecta-se imediatamente com o trecho de abertu-
_____________. Navegação de Cabotagem. Rio de Janeiro: Re- FERRAZ, Aydano Couto. “Graciliano Ramos, romancista de cos-
ra de Mundos mortos. Nas páginas iniciais de tal obra, Tal abrandamento era sintomático. Os ventos políticos
cord, 1992. tumes”. In: Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n.27, maio, 1937.
acompanha-se a inquietação do personagem Ivo, ado- estavam mudando naquele final de 1937. Com a instau-
lescente religioso e aburguesado, que lutava de manei- ração do Estado Novo, ameniza-se gradativamente a BUENO, Luís. Uma História do Romance Brasileiro de 30. São JONHSON, Randal. “Authoritarian fiction: Octávio de Far-
ra vã contra a tentação pecaminosa de masturbar-se. polarização entre nordestinos e introspectivos, uma Paulo: Edusp / Campinas: Editora da Unicamp Campinas, 2006. ias’s Tragédia Burguesa”. In: Ideologies and Literature (journal
Ao privilegiar dramas interiores desse tipo, Faria e seus vez que os confrontos entre uma e outra facção perdem of hispanic and lusobrazilian literatures), Minneapolis, Univ.
CANDIDO, Antonio. “A Revolução de 1930 e a cultura”. In: A
congêneres deixariam de lado a menção à cor local, às em intensidade e publicidade43. Trata-se de um mo- of Minnesota, n.1, spring, 1988, 3 vol.
educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987.
massas, às questões sociais (violência, alienação e mi- mento de reconfiguração do campo intelectual, no qual
JÚNIOR, Peregrino. “O romance introspectivo de Graciliano
séria da vida sertaneja), enfim, tudo aquilo que Jorge esquerda e direita foram chamadas a colaborar com o FACÓ, Rui, “Graciliano Ramos escritor do povo e militante do
Ramos”. In: Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n.27, maio, 1937.
Amado considerava fundamental na produção “dos governo autoritário de Getúlio Vargas, interessado em PC”. In: Tribuna Popular, Suplemento de Literatura e Arte, Rio
novos romancistas brasileiros”. E como estes estariam estabelecer um pacto de “união nacional” em torno da de Janeiro, 26 de agosto de 1945. LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo:
sendo alvos de ataques dos autores de “romances da “redescoberta do país”, bem ao gosto dos romancistas Duas Cidades / Ed. 34, 2000.
FARIA, Octávio de. “A Resposta do Norte (1ª parte)”. In: Li-
inutilidade de um pensamento reacionário ou de um sociais, e da recuperação do “espírito brasileiro”, eter-
teratura, Rio de Janeiro, n.8, Ano I, 20 de outubro de 1933a. LIMA, Alceu Amoroso. “Norte-Sul”. In: Estudos (2ª série). Rio
misticismo falso”, justificava-se a reação virulenta que, no essencial constante na agenda dos intimistas.
de Janeiro: Edição Terra do Sol, 1928.
neste caso, descambava para a ofensa pessoal. _____________. “A Resposta do Norte (2ª parte)”. In: Literatura,
Prova dessa confluência política, orquestrada pelo ten- Rio de Janeiro, n.9, Ano I, 05 de novembro de 1933b., p.3. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Pau-
Colocados lado a lado, os rótulos “espiritismo literário” tacular regime de 1937, poderia ser encontrada na pró- lo: Cultrix / Edusp, 1978. 7 vol.
_____________. “A Resposta do Norte” (3ª parte). In: Literatura,
e “masturbação intelectual” têm o mesmo propósito pria trajetória de Graciliano, artista historicamente vin-
Rio de Janeiro, n.10, Ano I, 20 de novembro de 1933c., p.3. MENDONÇA, Marina Gusmão de. “Imprensa e política no
de rebaixar a aparente desconexão que haveria entre o culado à esquerda: depois de publicar Vidas secas em
Brasil: Carlos Lacerda e a tentativa de destruição da Última
romance intimista e a recuperação dos problemas mais 1938, livro exaltado pelos comunistas como “um grito _____________. “Jorge Amado e Amando Fontes”. In: Boletim
Hora”. 2008. In: Histórica – revista eletrônica do Arquivo do
prementes da brasilidade. Contudo, enquanto Gracilia- do povo do Nordeste brasileiro, contra as condições se- de Ariel, Rio de Janeiro, n.1, Ano III, jun., 1933 d..
Estado, São Paulo, n. 31, jun. Disponível em: <http://www.
no lança mão de uma metáfora irônica, que debocha do mifeudais em que tem vivido”44 , empresta sua pena ao
_____________. Dois poetas. Rio de Janeiro: Ariel – Editora historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edi-
catolicismo dos autores introspectivos, atribuindo-lhes poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda,
Ltda, 1935 a. cao31/materia04/>. Acesso em 06 out. 2009.
a pecha de kardecista por eles odiada, Jorge Amado tornando-se responsável pelos “Quadros e costumes
escancara violentamente seu ataque à suposta “infe- do Nordeste”, textos bem ao gosto da concepção do- _____________. “Excesso de Norte”. In: Boletim de Ariel, Rio de OLIVEIRA, Lúcia Lippi. et al. Estado Novo: ideologia e poder.
cundidade”, etérea e evasiva, do fazer artístico desses. cumental e social de literatura que defendia, estampa- Janeiro, n.10, Ano IV, jul., 1935 b. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
dos em Cultura Política, principal revista estadonovista.
_____________. “Mensagem post-modernista”. Lanterna Ver- PEREIRA, Lúcia Miguel.“Pureza”. In: Boletim de Ariel, Rio de
Diferentemente do que fizera com Graciliano, Octávio Percebe-se, portanto, que os antagonismos esmae-
de (Boletim da Sociedade Felipe d’Oliveira), Rio de Janeiro, Janeiro, n.8, Ano VI, maio, 1937, p.228.
de Faria não rebaterá tais injúrias e afrontas de Jorge ciam sob o véu tutelar do governo autoritário.
n.4, nov, 1936.
Amado. Em posição superior, percebe-se apenas que PERES, Fernando da Rocha; MAIA, Pedro Moacir (org.). Car-
o autor de a Tragédia burguesa continuará a defender _____________. “Emílio Moura e Minas Gerais”. In: Boletim de tas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos
seus postulados em torno do romance, que incluem a Ariel, Rio de Janeiro, n.4, Ano VI, jan., 1937a. Benjamín de Garay e Raul Navarro. Salvador: EDUFBA, 2008.
refutação do romance proletário de orientação mar- Referências bibliográficas
_____________. “O defunto se levanta...”. In: O Jornal, Rio de RAMOS, Graciliano. Angústia. 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria
xista e a defesa da análise psicológica. Se o artista
Janeiro, 4ª seção, 30 de maio de 1937b., p. 1-2. José Olympio Editora, 1953.
baiano advogava que os romancistas, movidos por um AMADO, Jorge.“Dois ensaístas”. In: Boletim de Ariel. Rio de
“sadio panfletarismo”, deveriam se revoltar “diante da Janeiro, n.9, Ano II, jun., 1933. _____________. “O ódio na atual literatura nacional”. In: Bole- _____________. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Livraria
(...) angustiante miséria”, Faria, ao contrário, condena- tim de Ariel, Rio de Janeiro, n.10, Ano VI, jul., 1937c. José Olympio Editora, 1954. 3 vol.
_____________. “Um romance corajoso”. Boletim de Ariel, Rio
28 va aqueles que trocariam “a vida da obra de arte pela 29
de Janeiro, n.9, Ano VI, jun., 1937a. _____________. Cartas. Rio de Janeiro: Record, 1981.
even Jorge Amado, who tended to express a fairly orthodox Stalinism in his (RAMOS, 2008, p.26). Neste mesmo ano, em nova missiva a tal interlocutor, o 32 Octávio de Faria, “O defunto se levanta...”.
_____________. Linhas Tortas. Rio de Janeiro: Record, 2005.
early fiction” (JOHNSON, 1988, p.161). autor de Caetés continua a exaltar as produções recentes do novo romance do
33 Graciliano Ramos, Cartas, p.183.
ROSSI, Luiz Gustavo Freitas. As cores da revolução. A litera- Norte, com exceção das obras do autor de A bagaceira: “A gente do Nordeste,
8 Trata-se das obras Maquiavel e o Brasil (1933) e Destino do socialismo
tura de Jorge Amado nos anos 30. São Paulo: Annablume/ Fa- como se vê, continua a trabalhar danadamente. A literatura do ex-ministro 34 Trata-se de um dos personagens centrais do livro de Rachel de Queirós,
(1933).
pesp/ Unicamp, 2009. José Américo não me agrada referência aos volumes O Boqueirão e Coiteiros, descrito por Graciliano como “sedutor de prostitutas casadas” (RAMOS,
9 Manuel Bandeira também fora co-diretor do periódico, no entanto, saídos ambos em 1935. Mas os livros novos de Zé Lins e do Jorge são bons. 2005, p.195).
SADEK, Maria Tereza Aina. Machiavel, machiavéis: a tragédia
somente ao longo dos sete primeiros números. Você leu Jubiabá? Gostei. Tem páginas ótimas. Tanto nesse Jubiabá como no
octaviana. São Paulo: Símbolo, 1978. 35 Ibidem.
Moleque Ricardo, os pretos estão bem arranjados” (Idem, p.28). A partir de
10 Alceu Amoroso Lima, “Norte-Sul”, p.123.
SALLA, Thiago Mio. “O fio da navalha: Graciliano Ramos e a 1937, no contexto de polarização política e literária aqui descrito, tal admiração 36 Luís Bueno, op. cit. p.404.
revista Cultura Política”. Tese (Doutorado em Comunicação) 11 Para justificar tal afirmação, Faria faz uma diferenciação entre a se mantém, mas se converte em militância em favor do romance social e
37 Octávio de Faria, “O defunto se levanta...”.
– Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Pau- “história literária”, que por ser mais “condescendente e acolhedora”, poderia documentário.
lo, São Paulo, 2010. considerar, estudar e decompor o modernismo nos seus principais elementos”, 38 Tal procedimento crítico utilizado por Graciliano para ressaltar o caráter
24 Em carta a mulher Heloísa, Graciliano assim se refere à solicitação
e a “literatura” stricto sensu que nunca o conheceu e nem o poderia conhecer: social de Caminho de pedras, de Rachel de Queiroz, e afastá-lo do rótulo de
TÁTI, Miécio. Jorge Amado: vida e obra. Belo Horizonte: Edi- deste artigo pelo editor da revista, bem como à própria composição do texto:
“... o modernismo nada produziu de objetivo que se apontar como essencial, “romance psicológico”, repete-se em outra crônica destinada, por sua vez, a
tora Itatiaia, 1961. “Afinal falei pelo arame com o diretor da revista e dois dias depois aceitei a
como verdadeiramente fundamental para os homens. E não será nunca entre analisar o livro Pureza, de José Lins do Rego. Segundo o escritor alagoano,
encomenda dum artigo sob medida: três páginas, três mil palavras a respeito
seus principais nomes, entre os seus orientadores, que se irão encontrar os esta obra, que também fora aproximada da literatura intimista (Ver PEREIRA,
da influência da economia no romance brasileiro. Como da outra vez, deixei a
Notas vultos literários da época” (FARIA, 1936, p.49). 1937, p.228), trataria da decadência moral da mesma família depauperada,
composição das besteiras para a última hora”. Vale lembrar que o Observador
retratada nos volumes anteriores. Haveria um continuum entre ambas (cf.
12 Octávio de Faria, “A Resposta do Norte (1ª parte)”, p.3. Econômico Financeiro era um periódico de orientação direitista, criado nos
1 Antonio Candido, “A Revolução de 1930 e a cultura”, p.191. RAMOS, 2005, p.198-201).
moldes da publicação norte-americana Fortune, por Valentim Fernandes
13 Octávio de Faria, “Excesso de Norte”, p.263.
2 Entre os quais se encontravam O Cruzeiro, Vamos Ler!, Dom Casmurro, Bouças, secretário do Conselho Técnico de Economia e Finanças do Ministério 39 Os embates entre Jorge Amado e Octávio Faria vêm desde a primeira
Revista do Brasil, Diretrizes, Observador Econômico e Financeiro, Diário de 14 Segundo Bueno, trata-se do texto crítico mais respondido de toda a da Fazenda. Além disso, o veículo era dirigido pelo economista Olímpio metade da década de 1930, quando o primeiro, ao engajar-se à esquerda,
Notícias, Diário Carioca, Folha Carioca e O Jornal. Além disso, passou a década (cf. BUENO, 2006, p. 402). Guilherme, futuro presidente do Conselho Nacional de Imprensa e figura rompera com os grupos católicos que teriam garantido sua inserção na
colaborar com a Imprensa Brasileira Reunida Limitada (I.B.R. Ltda), uma importante do Departamento de Imprensa e Propaganda (cf. MENDONÇA, intelectualidade carioca. Dois anos depois de ter contado com o apoio do
15 Ibidem.
agência de notícias de São Paulo, que distribuía matérias de diferentes 2008). autor de Mundos mortos para a publicação de seu romance de estreia, O País
colaboradores para uma cadeia de mais de duzentos jornais de todo país, 16 Ibidem. do carnaval, em 1931, pela editora Schmidt (cf. AMADO, 1992, p.422), Amado
25 Apenas a título de curiosidade, entre os livros que Graciliano levara para
entre eles o Diário de Notícias do Rio de Janeiro, o qual recebia os textos do anunciava a ruptura com o ex-amigo: “eu sou dos que estou muito longe de
17 Octávio de Faria, “Mensagem post-modernista”, p. 49-67. o cárcere, depois de ser preso em março de 1936, estava a obra ensaística de
escritor alagoano com exclusividade na capital federal (SALLA, 2010, p. 98- Octávio de Faria em matéria de ideologia, acredito na vitória da revolução dos
Octávio de Faria, Dois Poetas (1935) (RAMOS, 1954, p.31). Em tal volume, no
99). 18 Idem, “Emílio Moura e Minas Gerais”, p.99. operários, não apenas na sua vitória bélica como na reconstrução do velho
qual analisa a poesia de Augusto Frederico Schmidt e Vinícius de Moraes, Faria
mundo pelo proletariado” (AMADO, 1933, p.225). Logo em seguida, em
3 Graciliano Ramos, Linhas Tortas, p.192. Daqui em diante usaremos 19 Luís Bueno, op. cit., p.621. destaca a posição superior, quase divinal do artista, frente ao homem comum,
resposta, Faria reprova o maniqueísmo da obra seguinte do artista baiano,
apenas o número da página entre parênteses após as citações dessa obra. pois cabia a este recriar “a obra do Criador a luz de sua própria experiência
20 Peregrino Junior, “O romance introspectivo de Graciliano Ramos”, p.3. Cacau, em que “todos os ‘de cima’, os ricos, são maus e onde todos os de
para que os homens melhor a possam compreender” (FARIA, 1935a, p.21).
4 Luís Bueno, Uma História do Romance Brasileiro de 30, p. 404. ‘baixo’ são bons”. (FARIA, 1933d, p.7).
21 Aydano Couto Ferraz,“Graciliano Ramos, romancista de costumes”, p.6.
26 Octávio de Faria, “O defunto se levanta...”p. 1-2.
5 Octávio de Faria, “O defunto se levanta, p. 1-2. 40 Jorge Amado, “Um romance corajoso”, p.267.
22 Thiago Mio Salla, “O fio da navalha: Graciliano Ramos e a revista Cultura
27 Ibidem.
6 Tal obra, iniciada em 1937, teve seu fecho apenas quarenta anos depois, Política”, p.127. 41 Jorge Amado, Capitães da Areia, 1937 b, p.12-13.
totalizando, ao longo desse período, treze volumes (Ver: SADEK, 1978, p. 28 Ibidem.
23 Para Graciliano, a percepção de que os escritores nordestinos constituíam 42 Octávio de Faria, “O ódio na atual literatura nacional”, p.291.
115).
um grupo diferenciado, vinha desde 1935 quando, em carta ao tradutor argentino 29 Ibidem.
43 Luís Bueno, op. cit., p.416.
7 O embate entre tais escritores era recorrente nos 1930, momento em Benjamín de Garay, destaca: “A literatura do Nordeste está se afastando muito
30 Idem, “Mensagem post-modernista”, p.50.
que portavam-se como verdadeiros antípodas: “Politically speaking, Faria da do resto do país. É conveniente que você faça relação entre José Lins do Rego, 44 Rui Facó,“Graciliano Ramos escritor do povo e militante do PC”, 1945.
30 31
was perhaps the most doctrinaire of Brazilian novelists of the 1930’s, rivaling Jorge Amado e Rachel, três romancistas interessantes, muito inteligentes” 31 João Luiz Lafetá, 1930: a crítica e o modernismo, p.248.
No surgimento de
Sagarana
Daniel Reizinger Bonomo* Resumo

O artigo recupera o contexto da publicação do Saga-


rana (1946), de João Guimarães Rosa, privilegiando
determinados aspectos que sobressaem na leitura dos
documentos críticos publicados na imprensa do perí-
odo. Parte-se da coleção de recortes organizada pelo
próprio escritor, pertencente ao Fundo João Guimarães
Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Uni-
versidade de São Paulo, com o intuito de observar sua
inserção no cânone local. Entre os problemas destaca-
dos – de gênero literário, estilísticos, originalidade e
repetição −, atenta-se para a polêmica despertada por
artigo inaugurador de Álvaro Lins, acusado de promo-
ver a exaltação do livro estreante e seu autor, funcioná-
* Doutorando do Programa de pós-graduação em Língua e Literatura Alemã rio do Itamaraty, a fim de ser recompensado com cargo
do Departamento de Letras Modernas (DLM) da Universidade de São Paulo público. Procuramos, assim, investigar que espécies de
32 33
(USP). Contato: drbonomo@gmail.com determinações estão em jogo na construção do valor
de um nome literário, ainda que a excelência do título também é livro dos anos de 1930, remonta a meados As duas primeiras edições do livro pertenceram à editora encadernações mantêm o formato que lhes deu o pró-
de Guimarães Rosa superasse as provocações. da década). Participava de renovação maior – Adonias Universal no ano de 1946, época em que Caio Pinheiro prio escritor, preservando o caráter original e a ordem
Filho e Clarice Lispector publicavam livros primeiros; foi seu editor. Em carta de 24 de março de 1946 à esposa, dos documentos, conforme os organizou Guimarães
Palavras-chave: João Guimarães Rosa; Sagarana; Ál- Drummond publicava, há pouco, A rosa do povo; João Aracy Moebius de Carvalho, Guimarães Rosa menciona Rosa). A coleção chegou a figurar, de maneira anedó-
varo Lins; polêmicas literárias. Guimarães Rosa também participava de momento his- o desencontro que antecede e retarda o lançamento: tica, em nota da imprensa, eparticipa das curiosidades
tórico perturbado por experiências da última guerra (au- do homem público e importante funcionário do Estado:
Abstract tor do pós-guerra como poucos, considerando a vivência O teu, o nosso SAGARANA parece-me es-
de anos passados na Alemanha nazista). Dizia um crítico tar perto de ficar pronto. Houve um atraso O ministro Guimarães Rosa, chefe do gabine-
The article refers back to the publishing context of da situação complicada que, de algum modo, isso fazia maior, porque as últimas provas a gráfica (aí te do chanceler João Neves da Fontoura, es-
João Guimarães Rosa’s Sagarana in 1946 by focusing de Sagarana, à época recém-publicado, questionador do de S. Paulo) remeteu, equivocadamente, para tava ontem colando os recortes das críticas e
on some of the reviews and documents published in the regionalismo insistente nas letras brasileiras: a Livraria José Olympio Editora, em vez de comentários sobre seu livro Sagarana.
press at the time. We depart from a collection of cut- endereçar à Universal Editora (que é a nossa). O secretário Afonso Palmeiro, pilheriando,
tings organized by Rosa himself and which now belongs É a inquietação provocada pela mentalidade de um Esse engano deu um atraso de quinze dias ou perguntou se aquilo era o que se chamava de
to the Fundo João Guimarães Rosa of the Instituto de mundo saído de uma guerra (...) Sagarana é já um li- mais, até que pudesse ser desfeito2. crazybook...
Estudos Brasileiros of the Universidade de São Paulo. vro clássico (...) que nos aparece assim sem mais nem O secretário Aloísio Bittencourt explicou que
Our intention is to observe the book’s entry in the liter- menos, misturado com uma realidade em que existem A partir de 1951, a casa de José Olympio se encarrega- se trata de scrappbook.
ary local canon. Amongst matters of genre, style, origi- aviões gigantes, records de velocidade, bombas atômi- ria da edição, finalmente, introduzindo a capa de Santa E o secretário Jorge Carvalho e Silva, olhando
nality and repetition we also discuss the polemic raised cas, radar, conversas telegráficas com a Lua, e muitas Rosa, primeiro, e a variante princeps no formato guar- para o monte de recortes, acrescentou:
by Álvaro Lins’s inaugurating article, accused of pro- outras coisas, de caráter universal, que conspiram, pre- necido de gravuras de Poty, depois. A nova apresen- − Em casa tem mais!4
moting the book in exchange for a position favored by cisamente, contra o seu regionalismo1 tação gráfica queria talvez compensar a “infelicidade”
Itamaraty, institution where Guimarães Rosa worked. do acabamento da Universal, conforme a opinião de Sagas e tendências no Sagarana
Our purpose is to provide an investigation on the fac- Conhecemos a alternância entre universal e particu- Agripino Grieco, que julgava a capa da primeira edição
tors which construct a literary name, apart from the lar, frequente na leitura da obra em questão. Conhe- própria de publicação da Sociedade Nacional de Agri- − Que vancê pensa!... os animais se enten-
literary excellence credited to Guimarães Rosa’s text. cemos também a história de Sagarana: o livro reúne cultura e não de produto literário3. dem... eles trocam língua!... (J. Simões Lopes
os contos de Viator, pseudônimo com que Guimarães Neto, “O boi velho”, Contos gauchescos e Len-
Keywords: João Guimarães Rosa; Sagarana; Álvaro Rosa, no final de 1937, participa do Prêmio Humberto Nesta pesquisa, procuramos comentar aspectos des- das do Sul, 1949)
Lins; literary polemics. Campos, da Livraria José Olympio Editora, e obtém tacados das discussões que dão a tonalidade geral da
o segundo lugar. No ano anterior, havia conquistado recepção crítica de Sagarana recentemente publicado. Quando um autor novo surge – falamos da novidade do
Sagarana e o scrappbook alguma notoriedade com o prêmio que a Academia Partimos da leitura de uma coleção de recortes orga- Sagarana e Guimarães Rosa −, surgem também os meca-
Brasileira de Letras conferira a Magma, sua coleção de nizada pelo próprio Guimarães Rosa, integrante do nismos com que procuram compreender-lhe os sentidos
A publicação do Sagarana, em 1946, foi acontecimento poemas, sendo o parecer favorável de Guilherme de Fundo João Guimarães Rosa do IEB. O escritor mineiro na perspectiva do já existente – das noções e autores já
ruidoso. Nos meios literários, parecia ditar novos rumos, Almeida. Anteriormente, entre 1929 e 1930, também tinha o hábito de agrupar os textos de imprensa que o existentes, vivos e mortos. Por um lado, o procedimento
dar fôlego novo à prosa local. Não revelava apenas o fu- havia publicado contos no Cruzeiro e O Jornal, as “pri- tomaram por tema, sobretudo no início. Em torno do é válido e desejável, uma vez que dá algum chão históri-
turo escritor do Corpo de baile e Grande sertão: veredas, meiríssimas estórias”. Na versão original, Sagarana le- Sagarana, há no seu espólio duas encadernações que co e conceitual à incipiente flutuação do novo e demons-
mas igualmente movimentava a tradição regionalista vava o título de Contos (como participou do concurso) reúnem boa parte da crítica de jornal do período (no fi- tra que inexiste a originalidade completa. Por outro, re-
com que se aparentava na ascendência (muitos falavam ou Sezão (como os exemplares de 1937 do Fundo João nal do segundo volume começam a surgir notícias do correr ao já conhecido e suas formas, recrutar a tradição
da novidade de um “regionalismo mineiro”, iniciado por Guimarães Rosa, do Instituto de Estudos Brasileiros Corpo de baile e Grande sertão: veredas). Pertencem à e suas autoridades, nalguns casos, instrumentaliza a
Afonso Arinos, mas ainda pouco desenvolvido) e de al- da Universidade de São Paulo). Todo o seu percurso série Matérias Extraídas de Periódicos (Sobre João Gui- recusa do novo. Na sua crítica primeira, Sagarana é “no-
gum modo contraponteava o realismo dos “romances é marcado por correções sucessivas, desde os anos de marães Rosa), totalizando mais de 400 documentos vo”, mas recorda muitos nomes. Desde a composição
34 de 30” (Sagarana, já foi notado, sua versão primitiva, 1930 até a quinta edição de 1958, ainda retocada. reunidos, entre notas, artigos, ilustrações e cartas (as sugestiva e neologista do título, incentiva-se a confusão 35
do velho com o recente. Exemplo é a intolerância do poemas. Quer dizer, nem há gênero puro, nem as for- − fala-se da santidade de Matraga, por exemplo8 −, na- escritor era desconhecido. Muitos autores, como Agri-
professor Silveira Bueno, por exemplo, que responde da mas são idênticas à proposição dos gêneros, mas esta- tureza e animais, elementos, porém, que não encerram pino Grieco, Marques Rebelo, Oliveira Torres, Prudente
seguinte maneira à dúvida de um leitor intrigado com a belecem relações que ditam significados imprevistos os significados das sagas). O termo em si é de difícil de Morais Neto, Eloy Pontes e Sérgio Milliet, reconhe-
palavra montada de “saga” e “rana”: às classificações. Do mesmo modo, lemos a proximi- aproximação, conforme um pesquisador alemão: “(...) cem também a proximidade com o escritor inglês Ru-
dade ambígua dos contos do Sagarana com a “forma por saga se compreende aquele gênero literário que dyard Kipling. Trata-se de uma comparação que apon-
Pede-me o senhor que lhe explique o sufixo simples”, principalmente islandesa (nos documentos esclarecedoramente também se nomeia ‘saga popular’ ta, principalmente, para o “animalista” em Guimarães
“rana” que supõe existir na palavra “sagara- antigos) e de origem na oralidade da saga. Não se co- (Volkssage) e para o qual se encontram em outras línguas Rosa. Aponta para os textos de “O burrinho pedrês” e
na”. Existe em português do Brasil o sufixo nhecem a razão e o momento exatos da passagem de apenas correspondentes aproximativos: folk legend, no “Conversa de bois”, sobretudo, que constituem univer-
“rana”, de origem tupi, com o qual várias pa- Sezão a Sagarana enquanto títulos. No entanto, sabe- inglês, légend populaire, no francês, cuento popular, no so particular de valores, entre a fábula e o realismo da
lavras foram formadas hibridamente, quer -se que compreende o “período alemão” do escritor em espanhol, legenda, mif, e/ou predanije, no russo”9. Se- representação, com os animais e seus valores, sua Lei
dizer, metade português, metade tupi: “bran- Hamburgo. Neste, como observamos em outro local6, guramente, no que respeita ao uso de “saga”, significa (para Kipling, a “Lei da Jângal”) no primeiro plano.14
carana”, “canarana”, etc. Tal sufixo quer dizer: houve muita leitura que o aproximou de narrativas his- mais o caráter sugestivo do termo que sua determinação
semelhante a, parecido a: “brancarana”, que tóricas e míticas do conjunto das sagas. Estudando a genérica. Cria-se uma espécie de indeterminação prolífi- No problema estilístico, o artifício colorido e a exube-
é tirante a branco, sem o ser realmente; “ca- biblioteca do autor, constatamos que conheceu textos ca, construtiva na discussão crítica da obra. Álvaro Lins, rância das combinações fizeram com que muitos críti-
narana”, é o que se assemelha à cana, que é em língua alemã que ampliaram seu entendimento do em face dos “contos”, falaria de “rapsódias”10. Mais ou cos recordassem Euclides da Cunha (Agripino Grieco,
com ela parecido. Se “sagarana” fosse, o que “gênero” enquanto formas variadas, antigas e moder- menos vago, o problema do gênero é debatido por Pau- Araujo Jorge, Renato Almeida, Manoel Cerqueira Leite)
o senhor pensa, palavra composta de “saga” nas, como a coleção de narrativas heroicas dinamar- lo Rónai, por exemplo, cujo argumento prefere os textos e Rui Barbosa e Coelho Neto, por exemplo. Também
(narração) mais o sufixo “rana”, não seria uma quesas de Saxo Grammaticus (Dänische Heldensagen enquanto novelas, pois entrelaçariam sub-histórias no mencionaram (Alcântara Silveira, Araujo Jorge, Joa-
série de narrativas, mas uma cousa parecida, nach Saxo Grammaticus), uma antologia organizada seu interior, procedimento no geral estranho ao conto11. quim Thomaz, Rosário Fusco) a proximidade como au-
semelhante à narrativa. Quanto ao meu con- por Albert Richter e Guido Görres (Deutsche Heldensa- Outro crítico, Manoel Cerqueira Leite, em vez de conto tor de Tropas e boiadas, Hugo de Carvalho Ramos. De
selho de não se lerem romances e novelas, o gen), outra por Hanns Trautner (Sagen vom Harz), ou a ou novela, sugere denominá-las “noveletas”12– a adição fato, são autores com os quaismantêm afinidades. Car-
mantenho com toda a convicção de professor versão de Hans Voss para a narrativa dos Volsungos (Si- do sufixo diminutivo apenas reduz o problema na exten- valho Ramos e Guimarães Rosa, por exemplo, apesar
de português: é leitura inútil quando não pre- gurd und Brynhild nach der Edda) e a de Wagner para os são narrativa, mas é interessante, uma vez que o próprio das qualidades específicas, de algum modo cultivam,
judicial. Prejudicial pelo conteúdo, prejudicial Nibelungos (Das Rheingold). Também, no diário do pe- Guimarães Rosa, ao conceber uma das orelhas para a como os outros nomes citados, a correção do idioma,
ainda mais pela forma errada, mal feita, esco- ríodo, encontramos a definição seguinte, copiada por primeira edição do Grande sertão: veredas, anunciava a temperando as falas (narradores e personagens), so-
la certa de solecismos.5 Guimarães Rosa a algum léxico, provavelmente: quarta edição do Sagarana com seus “contos, ou nove- bretudo, com “desvios” da fala sertaneja, neste caso a
letas”13. dos chapadões e cerrado do centro-oeste. Quer dizer,
Embora antipático, diz com razão, da parecença do Sa- (...) narrativa oralmente transmitida e fanta- nas escolhas sintáticas e lexicais residem particularida-
garana: conforme a interpretação purista da palavra, o siosamente enfeitada, que se distingue do Assim como os parâmetros de gênero literário são vias des da fala regional aplicadas ou consubstanciadas com
livro é “semelhante a”, mas não “idêntico a”. Mas, em conto de fadas pelo fato de os acontecimen- de aproximação à novidade – ainda que pouco sólidas maior ou menor efeito evocativo numa língua corretís-
que pese o descontentamento do professor, não há tos narrados serem ligados a determinados −, discute-se a influência e a originalidade da contri- sima, de frases rebuscadas, não raro arrastadas e de
qualquer impropriedade neste aspecto, pois na obra de lugares, tempos ou pessoas, dividindo-se, de buição de Sagarana às tendências internas da literatu- compreensão muitas vezes dificultosa15. São autores de
Guimarães Rosa a indefinição das categorias poéticas acordo com seu objeto, em sagas de deuses, ra brasileira, principalmente à linhagem regionalista. fraseologia excessiva que talvez se associem à tradição
é recurso repetido e desempenha função importante sagas de heróis (epos), sagas de santos (len- Mobilizar referências é comum à maioria dos críticos maior, composta afinal de momentos muito diversos
na problematização dos gêneros. Podemos recordar os das), sagas da natureza, sagas de animais etc. que se ocupa do livro estreante. As motivações são e em cujo centro talvez esteja o livro, exemplarmente,
quatro prefácios do Tutaméia ou as sete narrativas do (...) 7. variadas: Francisco de Assis Barbosa, por exemplo, Os sertões, de Euclides da Cunha. No detalhamento do
Corpo de baile que poderiam ser chamadas “novelas” assemelha Sagarana aos grandes livros de estreia (de trabalho estilístico são realizações desiguais, bem co-
(por sua extensão e prosa), mas são classificadas pelo Como se nota, a variedade e certa imprecisão das fon- Monteiro Lobato, Gilberto Freyre, Euclides da Cunha) mo são distintas no efeito e na apreciação valorativa da
autor como contos, romances e poemas, por exemplo tes dificultam a correspondência mais simples com Sa- e aos grandes livros isolados (Memórias de um sargen- crítica; em geral, porém, a copiosidade e o preciosismo,
36 – algumas são contos, outras romances; as sete são garana (no livro de Guimarães Rosa há heróis, santos to de milícias, O Ateneu) – recordamos que o futuro do esta possibilidade da linguagem enriquecida com artes 37
e volteios de um narrador caprichoso, sugerem uma influência, nasceu comigo, faz parte de minha nature- um ato de protesto. Saí simplesmente, porque achei mo- A fortuna da obra, por diversas razões – entre as quais
tradição da prosa brasileira noutra ocasião identificada za”17. E continua, citando uma passagem de “Conversa nótono”19. Considera-se autor responsável, comprome- a vaidade – conquista a atenção do escritor de “eter-
por Augusto Meyer como a “família dos farfalhantes”, de bois” modificada após encontrar no Kim, de Kipling, tido com o “próprio homem”, mas distante da “ninharia nidades” para os jornais do agora, como demonstram
pródiga na “espumarada de adjetivos e efeitos sono- trecho semelhante que refere-se à imagem do boi que política” do dia-a-dia. Não ignora a responsabilidade da os recortes da coleção de Guimarães Rosa. Desde o
ros”, indispensável, ainda, “(...) pois representa um projeta o pescoço, como uma tartaruga, para beber sua obra e atividade − “(...) estou do lado de Asturias e segundo lugar no Prêmio Humberto de Campos, cujo
contrapeso ao excesso de secura e dieta vocabular, ao a água da chuva; originalmente, o animal se esticava não de Borges (...)”20 −, mas encara-as como quem escre- vencedor foi Maria Perigosa, de Plácido Assunção (Luís
estilo ‘pão e água’ da receita anatoliana”; constituiriam para receber o Sol, correspondendo diretamente com ve para o Juízo Final, conforme sua inclinação religiosa Jardim), pergunta-se pelo autor do Sagarana, que sur-
os laços dessa “família” o “desenho minudente, a for- Kipling. e menor interesse por discussões “dia-de-semana”. Esta ge na imprensa com a reação ao veredito do concurso
ma copiosa, a abundância da cor, o adjetivo generoso a imagem do grande e quase etéreo Guimarães Rosa, do prosador carioca Marques Rebelo, descontente e à
e, de vez em quando, a rica frase de cauda irisada”16. No contexto polêmico que consideraremos a seguir, ocupado com assuntos sempre maiores, aparentemen- época ainda ignorante do nome real do autor dos Con-
entretanto, alusões assim exerceram função dupla: ora te. Neste sentido, isentar-se é vantajoso para o nome e tos. Rebelo diz haver contado com o apoio de Prudente
Regionalistas principais como Simões Lopes Neto e autorizam o estreante, que se afirma na companhia dos para a obra do escritor. Aproveita-se frequentemente, de Morais Neto, mas pressente a “injustiça” no voto de
Valdomiro Silveira são frequentemente associados nomes já reconhecidos, ora o desautorizam, deprecian- por exemplo, das poucas entrevistas que concedeu pa- Minerva de Peregrino Júnior, que se decidiu por Jardim:
a Guimarães Rosa no surgimento de Sagarana. Mais do a repetição e o acréscimo reduzido, como faz um crí- ra consolidar o que o próprio Guimarães Rosa de algum
ainda, Afonso Arinos e Monteiro Lobato. Não nos de- tico mais cético: modo encenou: a espécie do “vaqueiro metafísico” e (...) informo que não se fez na ocasião a ata
teremos nos casos particulares, tampouco desenvolve- “místico das palavras”. São, por fim, habitualmente con- do concurso. Se for feita, não contará ela com
remos análises comparativas mais aprofundadas neste Tomem a ossada de Afonso Arinos e entulhem fundidos os autores – o autor implícito e o autor de carne a minha assinatura, o que aliás não invalida
momento, mas procuraremos apenas apontar para as com folclore, realidade rural, geologia e fanta- e osso – e os narradores de Guimarães Rosa21. o resultado, nem diminui a vitória do senhor
afinidades que interessam, conforme a limitação do sia; ponham-lhe cartilagens e músculos, toma- Luiz Jardim. Fica apenas como um protesto.
artigo. Verificamos, finalmente, que Guimarães Rosa dos um pouco a Monteiro Lobato, um pouco a Nada impede, contudo, que polêmicas envolvam o Protesto ingênuo de quem não acredita em
conhecia muito bem, por exemplo, as literaturas de Euclides e outro tanto também – por que não? nome de Guimarães Rosa. Atingem-no principalmen- certas justiças, e sim numa justiça mais séria,
Afonso Arinos e Hugo de Carvalho Ramos, como de- – a Cornélio Pires; e botem tudo ao sol frio, te no início, quando era recente e ainda questionável mais profunda, talvez quase impossível.
monstram os exemplares com anotações e expressões manso de Minas Gerais. Depois vistam o fanto- a condição do “escritor maior”. Por sua importância E ficam aqui a este Viator que ninguém
destacadas que encontramos na sua biblioteca no IEB. che com peças díspares, uma calça caipira apa- artística, por sua qualidade extraordinária, não sur- conhece, e que tanto merecia entrar para a
Mas o capítulo das influências é mais complexo. Seu recendo sob uma sobrecasaca de antologia, preende que, desde a primeira tentativa de reconheci- lista dos grandes contistas brasileiros, o meu
exemplar de Afonso Arinos data de 1947, sugerindo a batam-lhe um chapéu a sopapo e acendam-lhe mento, Sagarana as promova publicamente. Também derrotado aplauso e a minha admiração.22
possibilidade de que tenha lido o autor de Pelo sertão afinal, nos olhos, um brilho coruscando malícia não surpreende verificar a aprovação crescente do
somente após a insistência de muitos críticos na sua – e eis aí o contista falado, com muitos defeitos livro – muitas vezes em detrimento do debate, infe- Também é conhecida a predileção de Graciliano Ramos
“filiação”. Quanto à semelhança com Kipling, esta a en- e suficientes qualidades.18 lizmente. Mas, na situação inaugural que a leitura por Jardim, que integrava o júri do concurso e posterior-
dossou o próprio autor do Sagarana (também verifica- dos documentos de 1946 dispõe, sobretudo, o nome mente avaliou o evento e a consecutiva polêmica como
mos o número expressivo de livros de Kipling na biblio- O crítico e o diplomata ainda fresco do escritor permite “equívocos” de outra um “sururu artístico sucedido há quase dez anos”23. O au-
teca de Guimarães Rosa – compete com o número de natureza. Encontramos juízos os mais variados e as tor de Vidas secas narra sua opção por Maria perigosa e o
bíblias!). Numa conversa com José Cesar Borba, publi- Podemos dizer que a obra de João Guimarães Rosa pro- opiniões – favoráveis ou não − também indicam pon- apoio que então recebera do contista Dias da Costa, con-
cada na imprensa em 19 de maio de 1946, afirma haver moveu polêmicas e ainda as promove, mas não que ele tos fundamentais, muitos posteriormente desdobra- trariando Rebelo e Morais Neto: “Defendi-me com três
lido Euclides da Cunha ainda “menino”, atrapalhado, próprio tenha sido um polemista ou pessoa inclinada à dos, para a compreensão da obra de Guimarães Rosa. armas: o doutor, a professora, as injeções antiofídicas”:
saltando páginas, relendo-o apenas depois da publica- controvérsia, pois evitou os debates com a diplomacia do A polêmica, aqui, diz respeito à construção do valor
ção de Sagarana. Porém, sobre Kipling, diz: “Com este seu ofício público. É conhecida, por exemplo, a ocasião de um nome literário e sua obra no cenário local, bem Admirei um excelente feitiço, a patifaria de
tenho algumas afinidades, pelo menos a da miopia des- em que abandona a discussão travada no auditório do como demonstra, sob determinados aspectos, a qua- Lalino Salãthiel e, superior a tudo, uma figu-
de a infância. Se eu quisesse fugir a alguma influência Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gêno- lidade do debate próprio do período. ra notável, dessas que se conservam na me-
38 não poderia jamais fugir à de Kipling, porque esta, se é va, 1965, alegando monotonia: “Não foi absolutamente mória do leitor: seu Joãozinho Bem-Bem. Por 39
outro lado enjoei um doutor impossível, feito ainda sem ler o volume recém-publicado, sente-se trombeta” do crítico, no que tinha de exagero e verda- completamente isolado. Clóvis Ramalhete dizia, no Di-
cavador de enxada, o namoro de um enge- convidado a comentar o “elogio absoluto”: “Para uns de, conquistou adeptos e dissidentes, por mais de uma ário de Notícias, que não elogiavam o narrador, mas afa-
nheiro com uma professorinha e passagens o artigo do crítico se excedera, a consagrar o que não razão: não é unicamente a qualidade literária do Saga- gavam o funcionário do Itamaraty 36. Ainda em 1946,
que me sugeriam propaganda de soro antio- merecia tanta vela de libra. Para outros, e entre estes rana que motiva a polêmica, mas também a posição do Henrique Pongetti comenta o episódio (recuperando a
fídico.24 o poeta Augusto Frederico Schmidt, o elogio ainda crítico que a enaltece e a desconfiança de que possa história do Prêmio Humberto de Campos):
assim não corresponde à realidade do livro”27. Poucos haver interesse de outra ordem por detrás do elogio.
A polêmica maior viria, contudo, com o lançamento do dias depois, após ler o estreante, Lins do Rego retorna Um jornalista à época jovem como Helio Fernandes, (...) o andaço pró Guimarães Rosa (por escri-
Sagarana, seguido em poucos dias por elogio indiscre- com ressalvas, opondo-se principalmente às passagens já polêmico e também atento à questão do momento to) está sendo acompanhado de um andaço
to de Álvaro Lins em “Uma grande estreia”, publicado em que diz perceber a intervenção do autor: “Aí se dá histórico e suas formas poéticas, reage tal qual o cita- contra Guimarães Rosa (falado). Murmuram-
no rodapé do Correio da Manhã (12 de abril de 1946). uma pausa na corrente da narração para que o senhor do Jorge Maia, interrogador do regionalismo do pós- -se perfídias. Que Sagarana perdera num
Trata-se de um texto inaugural, que lança as bases da Guimarães Rosa apareça com a sua erudição botânica e -guerra, comentando a estranheza que seria um autor concurso de contos de certa livraria para o
discussão posterior. Não há economia no encômio: os seus conhecimentos de zoologia. Passa-se assim da que presenciara os “mais pavorosos dramas humanos, livro do senhor Luiz Jardim, sem despertar
boa e telúrica literatura para uma quase pedante exibi- nos venha contar agora ‘casos’ acontecidos em Minas e em nenhum dos garimpeiros da comissão
De repente, chega-nos o volume, e é uma ção de detalhes que nos enfada”28. No entanto, desde anedotas mais ou menos vazias”32. Depois, faz barulho a desconfiança de se haver posto à margem
grande obra que amplia o território cultural o texto de Álvaro Lins, assegurava-se para o Sagarana maior, no encerramento do texto: “Por tudo isso, e por uma legítima obra-prima. Que Sagarana foi
de uma literatura, que lhe acrescenta algu- um lugar no primeiro plano das letras locais. Mais tar- não possuir o estreante mineiro as qualidades de um promovida a obra-prima e o senhor Luiz Jar-
ma coisa de novo e insubstituível, ao mesmo de, em 1955, houve inclusive uma “ilha deserta” para grande escritor, é que ficamos em dúvida se o elogia- dim a usurpador depois da nomeação do se-
tempo que um nome de escritor, até ontem a qual o crítico carregaria um exemplar do livro. Neste do pelos críticos foi o senhor J. Guimarães Rosa autor nhor Guimarães Rosa para um cargo de muita
ignorado do público, penetra ruidosamente momento, sua integração no cânone literário brasileiro de Sagarana ou o senhor J. Guimarães Rosa secretário influência no Itamaraty. Que o Itamaraty vai
na vida literária para ocupar desde logo um parece consolidada, ainda que faltasse um ano para a do Ministro das Relações Exteriores”33. Não pararia por nomear adidos culturais para as nossas princi-
dos seus primeiros lugares. O livro é Sagarana publicação simultânea do Corpo de baile e Grande ser- aí, contudo, pois o mesmo crítico voltaria a escrever no pais embaixadas e que o ponto “gostou mui-
e o escritor é o senhor João Guimarães Rosa.25 tão: veredas. No rastro de Álvaro Lins, por exemplo, Cruzeiro em janeiro do ano seguinte, quando revê sua to de Sagarana?” faz parte da prova escrita,
chegaria à mesma ilha com o Sagarana o poeta Thiago depreciação e inclui Sagarana entre os melhores livros independentemente da bagagem literária
Álvaro Lins capricha: menciona um “completo domínio de Mello, levando Pessoa e Eliot, também; do mesmo de 194634. No entanto, a segunda investida de Fernan- dos candidatos. Que entre os futuros adidos
dos recursos literários”; também insiste na relação entre modo, isolar-se-ia o “jovem contista” Mauritonio Mei- des mantém o tom abusado, bem como a acusação an- culturais já se podem contar o crítico literário
o documental e o inventivo, admirando a “configuração ra, arrastando para a ilha Guimarães Rosa com Proust, terior. Desta vez, nomeia-se o alvo principal da afronta: que soltou o primeiro foguetão e os dois es-
estética” do “informe” e “bárbaro” como ideal para a Kafka e Machado29. critores que votaram em Sagarana para o pri-
“literatura brasileira na feição regionalista”: “(...) a Aliás, a crítica literária vai descambando pa- meiro lugar no concurso de contos. Mexeri-
temática nacional numa expressão universal, o mundo As reprovações do Sagarana foram também comuns. ra o lado da amizade e do interesse pessoal, cos, eu sei. Mexericos de porta de livraria nos
ainda bárbaro e informe do interior valorizado por Sua história não pôde evitar opiniões contrárias às de criando-se verdadeiros grupos dentro de ca- dias de escarlatina intelectual. Nesses dias
uma arte civilizada e por uma técnica aristocrática de Álvaro Lins, como a do pouco entusiasmado Rosário da jornal. Ainda na “enquete” realizada do- – nós bem o sabemos – ao plantio intensivo
representação estética”26. Quer dizer, não apenas inau- Fusco: “Sua contribuição equivale à da pedra, mais uma, mingo passado pelo Correio da manhã, alguns de loureiros corresponde uma criação mais ou
gura a elevação do nome de Guimarães Rosa às alturas no edifício que se constrói. Uma pedra que se perderá, escritores, dos melhores, não tiveram seus menos clandestina de saúvas37.
do possível, mas também o lugar-comum da literatura fatalmente, entre as demais quando o reboco do tem- votos publicados, simplesmente por não fa-
rosiana enquanto mediação entre o local e o universal po revestir a construção”30. Mas houve também quem zerem parte da Sociedade “Amigos de Álvaro Comediógrafo destacado e espirituoso, Pongetti
e superação do “pitoresco”,um dos temas principais da reprovasse na atitude de Álvaro Lins a própria bajula- Lins”35. aproveita o exílio de Monteiro Lobato (andava em
recepção do Sagarana. ção, os rapapés no aplauso barulhento. Araújo Jorge, Buenos Aires), no mês seguinte, para dizer que o des-
por exemplo, refere-se a um “certo crítico” (provavel- Estão em pauta, portanto, para o crítico, as interferên- tronavam a fim de colocar Guimarães Rosa no lugar,
Por seu caráter rasgado, a exaltação de Álvaro Lins pro- mente Lins, mas poderia também referir-se a Schmidt) cias dos conluios nos meios literários e da crítica bra- “(...) por decisão unânime e desinteressada de um
40 voca estranhamento. José Lins do Rego, por exemplo, “acostumado a elogiar mediocridades”31 . O “toque de sileira e a troca de favores. Este não é um comentário grupo composto de cônsules, de Emil Ludwigs do 41
Itamaraty, de futuros adidos culturais e de escritores Se houve recomendação, indicação de alguma espécie, permanece em Lisboa até o início de 1954 e que a tem- ARINOS, Afonso. Pelo sertão. 5. ed. Rio de Janeiro: Briguiet,
em viagem de estudos facilitados pelo passaporte di- por parte de Guimarães Rosa, para que Álvaro Lins fosse porada no exterior, por algum motivo, foi interrompida: 1947.
plomático”38. Mais tarde, por ocasião do lançamento nomeado professor em Lisboa, como de fato ocorreu, não no dia 28 de outubro de 1953, pede a rescisão do con-
BARBOSA, Francisco de Assis. “Sagarana”. In: Diretrizes. Rio
da terceira edição do livro, endossa a polêmica Nel- podemos afirmar com certeza. Foram amigos, o crítico e trato, alegando problemas de saúde; no entanto, haveria
de Janeiro, 29 de abril de 1946.
son Werneck Sodré, que denuncia a “sorte esquisita” o escritor e diplomata. Em 1948, encontravam-se juntos mais motivações, escondidas, que diz preferir comunicar
e ataca a “esperteza cabocla” que considera haver em Paris, como demonstra a correspondência entre os pessoalmente a Guimarães Rosa. BOOTH, Wayne. A retórica da ficção. Tradução de Maria Tere-
prejudicado a recepção do Sagarana. Em nenhum mo- dois (IEB). Também afirmava a admiração mútua Guima- sa H. Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.
mento, Sodré julga o livro medíocre ou coisa do tipo. rães Rosa: “Incontestavelmente, sem amizade e sem fa- Não insistimos nas acusações que muitos críticos
BUENO, Francisco da Silveira, “Questões de português”. In:
Ao contrário, Sodré o considera excelente, mas afirma vor, você é um grande crítico, nasceu assim; e crítica não fizeram do interesse encoberto no louvor de Álvaro
Folha da Manhã, São Paulo, 6 de abril de 1951.
que, na avaliação pública, o interesse levou à justiça, é brinquedo”42. E, por intermédio das cartas, sabemos Lins e suas consequências. Descontada a impossibi-
afinal Guimarães Rosa, o escritor, também era funcio- também que o crítico foi responsável na mudança de Gui- lidade de verificar as reais intenções tanto no elogio BORBA, José César. “Histórias de Itaguara e Cordisburgo”.
nário de prestígio nos serviços diplomáticos, motivan- marães Rosa da Universal para a editora de José Olympio: do crítico como nas acusações que o pensam entre- In: Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 19 de maio de 1946.
do as festas e elogios “mesmo para quem não leu os gar, nosso objetivo, aqui, é tão-somente recuperar
FERNANDES, Helio. “O ano literário”. In: O Cruzeiro. Rio de
contos”39 . Seria um modo de aproveitar as circunstân- Há uns dois meses, conversando com o José polêmica muito pouco lembrada – polêmica parcial,
Janeiro, 11 de janeiro de 1947.
cias: um livro bom e uma oportunidade para “galgar Olympio sobre Sagarana, entramos os dois a porquanto nem Álvaro Lins nem qualquer outro te-
posições” e “infiltrar-se na máquina burocrática deste fazer um hino de louvores a essa bíblia literária. nham manifestado alguma defesa −, com o intuito _________________. “Sagarana e a crítica”. In: O Cruzeiro. Rio
país essencialmente burocrático”. Quer dizer, Sodré Lamentei, então, que o livro não tivesse tido um de contribuir, também, para a observação dos mo- de Janeiro, 8 de junho de 1946.
percebe no louvor do livro o interesse mascarado por editor à altura. E disse-lhe: − Sagarana merecia dos por que se constrói um nome literário: mesmo no
FUSCO, Rosário. “Entre a perfeição e a pândega”. In:A Van-
“lugares bem remunerados”, o desejo de um “lugarzi- ter sido editado pela Livraria José Olympio e caso do Sagarana, cuja relevância e superioridade es-
guarda. Rio de Janeiro, 21 de junho de 1946.
nho de adido cultural”. É certo que se refere, principal- você merecia a honra de ter editado Sagarana. téticas são evidentes, há motivações que desconhe-
mente, a Álvaro Lins, que dá início à exaltação do livro – Daí surgiu a ideia seguinte: fazer José Olym- cemos e participam, expressivamente, na consolida- GRIECO, Agripino. “Sagarana”. In: O Jornal. Rio de Janeiro,
(e do autor) e realmente parte, neste ano de 1952, pio uma 3ª edição, coisa sem demora. Fiquei ção do valor de um autor e sua obra. Não obstante a 26 de abril 1946.
para Lisboa, permanecendo por mais ou menos dois autorizado a fazer-lhe a proposta. Não preciso amizade entre o crítico e o diplomata, suas posições
JOLLES, André. Formas simples. Tradução de Álvaro Cabral.
anos na capital portuguesa a convite do Itamaraty40. lhe dizer que se faria uma bela edição e com um no espaço público, literário e político, são mais que
São Paulo: Cultrix, 1976.
lançamento brilhante como se o livro estivesse circunstâncias, visto que exercem influências nas
O caso tomou alguma proporção. Em março de 1951, entrando numa nova etapa editorial43. determinações históricas, acumulando significados JORGE, José Guilherme de Araujo.“Sagarana: uma estreia
Magalhães Júnior publicava no Diário de Notícias: que ainda hoje interessam, duplamente: revelam a definitiva”. In: Resistência. Rio de Janeiro, 11 de maio de 1946.
A mesma correspondência acondiciona, ainda, uma có- que espécie de julgamento submete-se um título co-
MAGALHÃES JR., Raimundo. “O caso Alexandre Konder”. In:
O senhor João Neves da Fontoura pretende pia, datada de 19 de novembro de 1952, da comunica- mo Sagarana, bem como afirma a qualidade da nos-
Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 25 de março de 1951.
ampliar os quadros das nossas representa- ção da Divisão Cultural do Itamaraty, assinada por Mario sa confusão – não só nossa − entre privado e público.
ções, já tão numerosas, com a criação de Guimarães, contratando Álvaro Lins para ocupar a cadei- São questões críticas relevantes, embora passem por KIPLING, Rudyard. O livro da Jângal. 7. ed. Tradução de Mon-
adidos culturais e de imprensa – um meio de ra de Estudos Brasileiros na Universidade de Lisboa, re- curiosidades ou insignificâncias – tutameia, nonada, teiro Lobato. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
conquistar apoio nas camadas intelectuais cebendo US$ 600,00 mensais, mais auxílios (mais tarde, quiquiriqui − em face da obra de Guimarães Rosa.
LEITE, Manoel Cerqueira. “Sagarana”. In: Jornal de São Pau-
para o senhor Getúlio Vargas. Entre parênte- reclamaria da situação financeira e pediria um aumento
lo. São Paulo, 23 de janeiro de 1947.
sis, devo chamar a atenção do distinto públi- para US$ 1.000,00)44. Como demonstram os documen-
co para este fato muito significativo: surgirão, tos, a amizade fez com que Rosa fosse o intermediário LIMA, Sônia Maria van Dijck. Escritura de Sagarana. São Pau-
em breve, de novo, dezenas de ensaios e ar- na solução de muito problema profissional de Álvaro Referências bibliográficas lo: Navegar, 2003.
tigos, críticas e epinícios a respeito do gênio Lins. Difícil, porém, é avaliar o teor das conversas episto-
_________________. “Memória crítica de Sagarana”. Manuscrí-
literário do senhor Guimarães Rosa, autor de lares – a diplomacia é comportamento muito dissolvido ALMEIDA, Renato. “Sagarana”. In: Correio da Manhã. Rio de
tica. São Paulo, n. 10, jun. 2001, p. 155-164.
42 Sagarana41 . no discurso de ambos. Sabemos apenas que Álvaro Lins Janeiro, 30 de junho 1946. 43
segundo volume que reúne os recortes sobre Sagarana, no IEB (Arq. JGR-IEB/ “família” os nomes dos portugueses Camilo Castelo Branco, Fialho de Almeida
LINS, Álvaro. Sagas literárias e Teatro moderno do Brasil. Rio REGO, José Lins do. “Sagarana”. In: Correio Paulistano. São
USP-R2). e Aquilino Ribeiro, e dos brasileiros Euclides da Cunha e Raul Pompéia.
de Janeiro: Edições de Ouro, 1967. Paulo, 26 de abril de 1946a.
5 Silveira Bueno, “Questões de português”. In: Folha da Manhã, p.*. 17 José César Borba, “Histórias de Itaguara e Cordisburgo”. In: Correio da
_________________. “Uma grande estreia”. In: Correio da Ma- _________________. “Sagarana”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 10
Manhã, p.*.
nhã. Rio de Janeiro, 12 de abril 1946. de maio de 1946b. 6 Listamos e comentamos a “biblioteca alemã” de Guimarães Rosa. A
pesquisa foi publicada na revista Pandaemonium Germanicum (FFLCH/USP) de 18 Clóvis Ramalhete, “Horácio lê Diário Oficial”. In: Diário de Notícias, p.*.
LOPES NETO, João. Simões. Contos gauchescos e Lendas do RÖLLEKE, Heinz. Das große deutsche Sagenbuch. Zurich: Ar-
dezembro de 2010. No artigo, detalhamos todas as edições aqui citadas, além
Sul. Porto Alegre: Globo, 1949. temis & Winkler, 1996. 19 Gunter W. Lorenz, Diálogo com a América Latina: panorama de uma
de aproximadamente mais 350 títulos relacionados à cultura e à língua alemã.
literatura do futuro, p. 318.
LORENZ, Gunter W. Diálogo com a América Latina: panorama RÓNAI, Paulo. “A arte de contar em Sagarana”. In: Diário de
7 O trecho está em alemão no original e a tradução é de Georg Otte.
de uma literatura do futuro. Tradução de Rosemary Costhek Notícias. Rio de Janeiro, 14 de julho de 1946. 20 Idem, p.319.
Pertence ao “diário de Hamburgo”, “diário alemão” ou “diário de guerra”,
Abílio e Fredy de Souza Rodrigues. São Paulo: E. P. U., 1973.
ROSA, João Guimarães et. al. Em memória de João Guimarães títulos comumente utilizados para identificar as anotações de João Guimarães 21 Utilizamos a diferenciação segundo as noções de Wayne Booth em A
MAIA, Jorge. “Sagarana”. In: Diário Carioca. Rio de Janeiro, 2 Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. Rosa entre 1939 e 1942. O documento pertence ao Fundo Henriqueta Lisboa, retórica da ficção.
de junho de 1946. integrante do Acervo de Escritores Mineiros, da UFMG. Consultamos cópia do
ROSA, João Guimarães. Sagarana. 8. ed. Rio de Janeiro: José 22 Marques Rebelo, “Depoimento: o prêmio Humberto de Campos”, p.*.
documento presente no IEB e nela não há indicação de página.
MEYER, Augusto. A família dos farfalhantes. In: Preto e bran- Olympio, 1967.
23 Hugo de Carvalho Ramos, Tropas e boiadas, p.*.
co. São Paulo: INL, 1956, p. 197-201. 8 Sobre isso há o excelente estudo comparativo de Guimarães Rosa
SCHMIDT, Augusto Frederico. “Sagarana”. In: Correio da Ma-
com Valdomiro Silveira de Suzi Frankl Sperber. Neste, a autora considera a 24 Idem.
MILLIET, Sérgio. “Sagarana”. In: O Estado de São Paulo. São nhã. Rio de Janeiro, 4 de maio de 1946.
proximidade de “A hora e vez de Augusto Matraga” com as formas das sagas e
Paulo, 1951. 25 Álvaro Lins, “Uma grande estreia”. In: Correio da Manhã, p.*.
SILVEIRA, Alcântara. “Garimpos e vaqueiros”. In: O Estado de das histórias de vida de santos.
MONTENEGRO, Joaquim Braga. “Um tema que renasce”. In: São Paulo. São Paulo, 14 de novembro de 1946. 26 Idem.
9 Heinz Rölleke, Das große deutsche Sagenbuch, p.7
Unitário. Fortaleza, 21 de julho de 1946.
SODRÉ, Nelson Werneck. “Sagarana”. In: Correio Paulistano. 27 José Lins do Rego. “Sagarana”. In: Correio Paulistano, p.*.
10 Mais tarde, Álvaro Lins (1967) também recorreria à noção de “saga”
PONGETTI, Henrique. “Monteiro Lobato é desertor?”. In: O São Paulo, 9 de março de 1952; 1 de abril de 1952.
para intitular estudos seus diversos. Denominaria “sagas” livros de Aluísio 28 Idem, “Sagarana”. In: O Globo, p.*.
Globo. Rio de Janeiro, 10 de junho de 1946a.
SPERBER, Suzi Frankl. “Amor, medo e salvação: aproxima- Azevedo e Júlio Ribeiro, “sagas de Porto Alegre” a obra de Érico Veríssimo,
29 Álvaro Lins o diz em entrevista no periódico A Noite, em 22 de abril de
_________________. “Saúva nos loureiros”. In: O Globo. Rio de ções entre Valdomiro Silveira e Guimarães Rosa”. In: Revista “sagas da Bahia e Sergipe” textos de Jorge Amado e Amando Fontes, “sagas
1955. As declarações de Thiago de Mello e Mauritonio Meira fazem parte de
Janeiro, 8 de maio de 1946b. do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 41, 1996, p. de São Paulo” e assim por diante, considerando nomes como António de
enquete promovida pelo Correio da Manhã, em 12 de agosto de 1955.
97-120. Alcântara Machado, Murilo Rubião, Marques Rebelo e... Guimarães Rosa.
PONTES, Eloy. “Sagarana”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 10 de
30 Rosário Fusco, “Entre a perfeição e a pândega”. In : A Vanguarda, p.*.
junho de 1946. 11 Paulo Rónai, “A arte de contar em Sagarana”. In: Diário de Notícias, p.*.
Notas
31 José Guilherme de Araujo Jorge, “Sagarana: uma estreia definitiva”. In:
RAMALHETE, Clóvis. “Horácio lê Diário Oficial”. In: Diário de 12 Manoel Cerqueira Leite, “Sagarana”. In: Jornal de São Paulo, p.*.
Resistência, p.*.
Notícias. Rio de Janeiro, 26 de maio de 1946. 1 Jorge Maia, “Sagarana”. In: Diário Carioca, p.*. A partir daqui indicaremos
13 João Guimarães Rosa, Sagarana, p.136.
com o asterisco as citações sem número de página. Originalmente as 32 Helio Fernandes, “Sagarana e a crítica”. In: O Cruzeiro, p.*.
RAMOS, Graciliano. “Conversa de bastidores”. In: A Casa. Rio
passagens citadas foram extraídas de recortes de jornais feitos por Guimarães 14 Um único crítico, o também contista Joaquim Braga Montenegro,
de Janeiro, jun. 1946. 33 Ibidem.
Rosa, atualmente sob os cuidados do Institutudo de Estudos Brasileiros (IEB). resiste, neste aspecto, à comparação, depreciando os animais de Guimarães
RAMOS, Hugo de Carvalho. Tropas e boiadas. 5. ed. Rio de Ja- Rosa, que estariam distantes dos “símbolos do homem” figurados por Kipling. 34 Helio Fernandes publica no Cruzeiro, em junho de 1946 e janeiro de 1947.
2 A carta é inédita e pertence ao Acervo Família Tess. O documento situa
neiro: José Olympio, 1965. Guimarães Rosa se refere a Fernandes em carta de 11 de janeiro de 1947 para a
o lançamento do Sagarana no final do mês de março. Também o confirmam os 15 Caberiam exemplos, amostras estilísticas de Hugo de Carvalho Ramos e
sua esposa Aracy: “Parece quase certo que vou ganhar o prêmio da Sociedade
REBELO, Marques. “Depoimento: o prêmio Humberto de “foguetes” com que Álvaro Lins saudava o estreante em 12 de abril de 1946. Guimarães Rosa, no entanto, devido à necessidade de abreviação, decidimos
Felipe de Oliveira. Segunda-feira, começarei a trabalhar nos outros livros.
Campos”. Dom Casmurro, Rio de Janeiro, 4 de março de 1939. por evitá-las aqui.
3 Agripino Grieco, “Sagarana”. In: O Jornal, p.*. SAGARANA continua  ribombando, como um nouveau riche. A revista Rio trouxe
_________________. “Sagarana”. In: A Manhã. Rio de Janeiro, 16 Augusto Meyer, “A família dos farfalhantes”. In: Preto e branco, p.197. O uma bela nota. Aquele sujeitinho do Cruzeiro, que uma vez escreveu contra,
44 4 A origem da nota é desconhecida. Encontra-se no verso da capa do 45
28 de abril de 1946. texto de Augusto Meyer em questão trata de Alberto Rangel, mas agrupa nesta voltou a escrever. Sempre antipático, mas voltando atrás e reconhecendo que
o livro foi o melhor do ano. Meus amigos gozaram com esse espetacular recuo Kubitschek, retornaria ao país a fim de assumir posto diplomático em Lisboa.
público. O sujeitinho escreveu só porque o rapaz que faz a seção estava ausente Permaneceria no cargo até 1959, participando ativamente da polêmica em
em férias, e ele aproveitou a folga para meter o bedelho”. (A carta é inédita e torno do asilo político do general Humberto Delgado, oposicionista na ditadura
pertence ao Acervo Família Tess.) Guimarães Rosa obtém de fato o prêmio da de Salazar.
Sociedade Felipe d’Oliveira, em janeiro de 1946.
41 Raimundo Magalhães Jr., “O caso Alexandre Konder”. In: Diário de
35 Helio Fernandes, “O ano literário”. In: O Cruzeiro, p.*. Notícias, p.*.

36 Clóvis Ramalhete, “Horácio lê Diário Oficial”. In: Diário de Notícias, p.*. 42 Guimarães Rosa, JGR-IEB/USP-CP, Cx. 01, 25. O código refere-
se à localização do documento no Fundo João Guimarães Rosa/IEB,
37 Henrique Pongetti,“Saúva nos loureiros”. In: O Globo, p.*.
correspondências, caixa 01 referente à correspondência entre Aracy de
38 Idem, “Monteiro Lobato é desertor?”. In: O Globo, p.*. Carvalho Guimarães Rosa e Sida Moebius de Carvalho no período 25 de maio
de 1924 a 30 de dezembro de 1949.
39 Nelson Werneck Sodré, “Sagarana”. In: Correio Paulistano, p.*.
43 Guimarães Rosa, JGR-IEB/USP-CP, Cx. 01, 1.
40 Esta seria a primeira estadia profissional de Álvaro Lins em Portugal.
Depois da sua campanha jornalística em favor da presidência de Juscelino 44 Idem, JGR-IEB/USP-CP, Cx. 01, 2.

46 47
A Criação do
Teatro Nacional?
Alencar, Machado e a
cena dramatúrgica
brasileira
Jorge Marques* Resumo

Este artigo reflete acerca da concepção dramatúrgi-


ca da geração de intelectuais brasileiros, capitaneada
por José de Alencar e Machado de Assis, que, por volta
de 1850, tencionou forjar, nos palcos nacionais, uma
concepção inovadora para a dramaturgia da época, a
saber, o Realismo teatral – um misto de reflexões mo-
rais e reprodução dos problemas sociais. A ascensão e
queda dos “dramas de casaca”, a polêmica com o tea-

artigos * Doutorando do Programa de Pós-graduação em


tro romântico, as soluções cênicas do teatro realista e o
possível legado deixado por esta geração são algumas
das temáticas a serem abordadas e discutidas em nosso

livres
artigos livres
Letras Vernáculas, área de concentração em Literatura
Brasileira, na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e é professor do Colégio Militar do Rio de Janeiro
e do Colégio Pedro II – Unidade Escolar Engenho Novo II.
trabalho.

Palavras-Chave: Teatro realista; José de Alencar;


Machado de Assis.
48 49
Contato: jorgelmarques@globo.com.
Abstract não existe”4. Em outro ponto do texto, aprofundou seu em análises cirúrgicas, tratou da cena teatral de que Fundar um teatro nacional?
ideário: Alencar e Machado fizeram parte, ora como artífices,
This article reflects on the conception of theatrical gen- ora como críticos – mas sempre como figuras que aju- Já vimos que, em novembro de 1857, ao escrever as re-
eration of Brazilian intellectuals, led by José de Alencar Nós todos, jornalistas, estamos obrigados a daram a forjar, de um modo ou de outro, o panora- flexões contidas no ensaio “A Comédia Brasileira”, José
and Machado de Assis, who, around 1850, intended to nos unir e a criar o teatro nacional; criar pe- ma dramatúrgico nacional naqueles idos. Outrossim, de Alencar clamou pela fundação do teatro em nosso
build, in the national stage, an innovative design for the lo exemplo, pela lição, pela propaganda. É entra em nosso corpus a fundamental reflexão elabo- país. Como a cena nacional não era um objeto artístico
dramaturgy of the time, namely the theatrical realism uma obra monumental que excede as forças rada pela estudiosa Sílvia Cristina de Souza que, em inédito, o escritor retomou, no texto em questão, expe-
- a mix of moral reflection and reproduction of social do indivíduo, e que só pode ser tentada por As noites do Ginásio: teatro e tensões culturais na corte riências teatrais anteriores, centrando sua análise nas
problems. The rise and fall of “dramas of tails“, a po- muitos, porém muitos ligados pela confra- (2002), logrou realizar um panorama extremamente produções dramatúrgicas de Martins Pena e Joaquim
lemic with the romantic drama, solutions scenic the- ternidade literária, fortes pela união que é a perspicaz do teatro brasileiro no período abordado, Manuel de Macedo. Ao tratar de ambos os casos, a vi-
ater realistic and possible legacy of this generation are força do espírito, como a adesão é a força do além de traçar constantes diálogos com os menciona- são do escritor cearense não pode ser qualificada como
some of the topics to be addressed and discussed in our corpo. (Ibidem.) dos textos do professor Faria. favorável.
work.
José de Alencar avaliava, dessa maneira, que iniciati- É através, portanto, desse referencial triplo – os ensaios De Martins Pena, Alencar afirmou textualmente: “sa-
Palavras-Chave: Realistic theater; José de Alencar; Ma- vas isoladas não seriam capazes de efetivamente fun- de José de Alencar e Machado de Assis, as produções crificou talvez suas ideias ao gosto pouco apurado da
chado de Assis. dar um teatro brasileiro; pelo contrário, esse deveria do estudioso João Roberto Faria e a tese da professora época” (p. 44). A crítica, neste caso, diz respeito ao que
ser um projeto geracional. Essa visão, que seria com- Silvia Cristina Maria de Souza - que este artigo tratará ele chamou de “desejo de aplausos fáceis” (Ibidem.) –
Apresentação partilhada pelos seus pares – Machado de Assis in- das contribuições dos dois autores aqui estudados para ou seja, um suposto rendimento do dramaturgo a falas
cluso, como veremos adiante – leva-nos a questionar o devir do teatro brasileiro. Na verdade, cabe ressal- e a cenas mais apelativas que, se rendiam gargalhadas,
Era o ano de 1857; o mês, novembro. José de Alencar dois aspectos da argumentação alencariana: por que tarmos, eles representam o espírito de um grupo que não levavam à reflexão. Na visão de Alencar, portanto,
levara ao palco, com grande sucesso de público e de crí- o teatro nacional deveria ser “criado”, se nomes capi- dividia anseios semelhantes e convicções próximas. De Martins Pena cultivava o “riso pelo riso”, o chiste, a pia-
tica, a sua segunda peça teatral, “O demônio familiar”, tais para a arte dramatúrgica brasileira (como Martins Quintino Bocaiúva a Leonel de Alencar, passando por da pura e simples. Se tinha o mérito de pintar quadros
denominada por ele mesmo como “a comédia do inte- Pena e Joaquim Manuel de Macedo) já há tempos mi- nomes como Francisco Otaviano e Souza Ferreira, to- caracteristicamente brasileiros, não colocava no palco
rior da casa”1 . Nove dias após a primeira apresentação litavam no meio? Tal pergunta somente pode ser res- da uma geração de intelectuais via o “palco como tri- um tom reflexivo acerca da sociedade que retratava, o
do espetáculo no Teatro do Ginásio2, vinha publicado, pondida se partirmos para a segunda – e fundamental buna”5 e vislumbrava, nos “dramas de casaca” da dra- que é apontado, pelo crítico, como outra das fraquezas
no Diário do Rio de Janeiro, o texto “A Comédia Brasi- – questão, a saber, o que Alencar denominava de “te- maturgia realista, um fim pedagógico que ajudaria no de sua obra.
leira”, o qual pode ser considerado uma profissão de fé atro brasileiro”? refinamento do público e no aperfeiçoamento da cena
do dramaturgo3 e um manifesto fundador do teatro re- teatral brasileira. Nesse contexto, as décadas de 1850 e No que diz respeito a Macedo, os senões apontados
alista no Brasil. Partindo das indagações anteriores, a análise aqui 1860 foram fundamentais para o grupo: era o momen- são parecidos: José de Alencar observou-lhe “bastan-
apresentada pretende refletir sobre a cena dramatúr- to e a oportunidade de se criar e perpetuar um teatro te talento e muito bom gosto literário” (Ibidem.), qua-
As reflexões aí estabelecidas pelo autor de O Rio de gica brasileira da época de José de Alencar e Machado brasileiro aos moldes do que desejava a geração. lidades que são toldadas, mais uma vez, pelo fato de
Janeiro, verso e reverso utilizavam-se de um arguto ex- de Assis. Sendo assim, são as opiniões dos dois auto- elaborar peças que, cedendo ao sabor da plateia, não
pediente: fazendo valer-se de um interlocutor que é res acerca do teatro nacional, emitidas em diversos O intento de Alencar, Machado e seus pares, como ve- conseguiam “corrigir a tendência popular” (Ibidem.).
pessoa física – no caso, o poeta, crítico e dramaturgo periódicos do século XIX, posteriormente reunidas em remos, não foi alcançado por completo. Entretanto, a Acrescia-se a isso o fato de as produções macedianas
Francisco Otaviano – e, ao mesmo tempo, metonímia livro, que servirão como guia para as reflexões aqui es- contribuição efetuada pela geração marcou época na apresentarem, segundo o crítico, “uns laivos de imita-
da intelectualidade formadora de opinião, Alencar tabelecidas. Além disso, não podemos nos furtar de cena dramatúrgica brasileira do século XIX e, à sua ma- ção estrangeira, que lhes tira o cunho de originalidade”
lançou mão de uma retórica algo retumbante. Em seu lançar mão de proposições teóricas de referência que neira, talvez tenha deixado lastros de sua influência até (Ibidem.). Ademais, a obra dramatúrgica de Joaquim
discurso, conclamou Otaviano e, por conseguinte, os se dedicaram ao estudo da temática aqui abordada. os dias de hoje. O trabalho aqui apresentado aborda as Manuel de Macedo era, até então, bissexta. O resulta-
indivíduos pensantes do Brasil de seu tempo, a uma Fazemos menção, nesse aspecto, às diversas obras proposições estético-sociais do grupo e reflete acerca do é que ela aparecia como um ensaio não totalmente
50 tarefa primordial: “Crie o teatro brasileiro, que ainda produzidas pelo professor João Roberto Faria que, das possíveis causas do insucesso ocorrido. realizado, visto que pouco desenvolvido e explorado. 51
A análise que fez Alencar do teatro que lhe precedeu obras com as quais não comunga os mesmos preceitos escrevera “regularmente para o teatro (...) e tornou-se Ao escrever seu manifesto, Alencar, dentro do espírito
é, assim, reveladora. Salta aos olhos o fato de ele su- estéticos. Nesse sentido, nada mais natural que Mace- o responsável pela inauguração de uma tradição de co- do realismo teatral, colocava em xeque uma série de
blinhar a reprovação ao que chamou de “ceder ao gos- do e Martins Pena, dramaturgos estreitamente ligados micidade na dramaturgia brasileira”9. recursos cênicos utilizados até então sem maiores parci-
to popular”. Nesse sentido, o projeto delineado em “A ao teatro romântico praticado no Brasil, tivessem suas mônias – é o caso, por exemplo, dos monólogos à parte
Comédia Brasileira” caracterizava-se por um aspec- obras observadas de um ponto de vista desfavorável. Parece-nos, portanto, que o autor de Mãe teria sido e dos suspenses ao final de cada ato. Mais importante
to claramente elitista: caberia aos que tencionavam Na verdade, ao tentar instaurar um novo estado de mais exato se tivesse afirmado que faltava criar, no do que isso, porém, era a concepção dramatúrgica que
produzir um teatro de qualidade no Brasil afastarem- coisas na dramaturgia nacional, o ensaio de Alencar Brasil, o “seu” projeto de teatro nacional, que não era vinha embutida nos “dramas de casaca”, em que entra
-se de tendências aprovadas pelas plateias da época. era demolidor do sistema então vigente, representado outro se não aquele comprometido com a dramaturgia em ação a famosa “quarta parede”, com o intuito de criar
Sendo assim, a missão desse grupo seria elaborar sobretudo pelas produções de João Caetano levadas a realista, então dominante na Europa. Nesse sentido, um ambiente de espelhamento de ações cotidianas no
espetáculos que efetivamente moldassem o público, público no Teatro São Pedro, no Rio de Janeiro. a propósito, não podemos deixar de estar de acordo palco. Nesse contexto, as atuações melodramáticas e al-
fazendo, dessa maneira, com que este se ambien- com as palavras do professor Faria quando afirma que go exageradas do teatro romântico, por vezes tão apre-
tasse a produções supostamente mais refinadas. Em Efetivamente, embora o repertório da companhia do “o retrato de Alencar como um escritor inteiramente ciadas pelo público, seriam deixadas de lado, em nome
outras palavras, podemos afirmar que existe um tom famoso ator fosse repleto de textos de autoria portu- romântico se altera diante das suas ideias teatrais”10. E de uma intervenção que se pautasse pela sutileza de
claramente pedagógico nas reflexões alencarianas, às guesa e francesa, pontuavam, em seus espetáculos, isso se torna ainda mais significativo ao notarmos que, atores que “movem-se, falam, pensam como se fossem
quais se soma um teor nacionalista, na medida em que textos dos dois escritores tão criticados por Alencar de acordo com suas próprias palavras, é o paradigma indivíduos tomados ao acaso em qualquer sala” (p. 45).
caberia ao teatro aqui produzido refletir acerca da rea- na sua reflexão. Ora, se João Caetano era quase que de Dumas Filho, e não o de Victor Hugo, que ele irá se- Por isso mesmo, segundo Sílvia Cristina Maria de Souza,
lidade social brasileira. a metonímia do teatro romântico por excelência, é guir ao conceber um modelo de teatro que se pretende “domesticar gestos, interpretação e dicção, procurando
interessante observarmos que o autor cearense, ao um “daguerreótipo moral” – isto é, um instantâneo da adequá-los ao ritmo imposto pelas comédias realistas
A professora Silvia Cristina de Souza realiza interessan- produzir, com rapidez admirável, respectivamente, sociedade que, revelando ao espectador as mazelas para a construção deste efeito no palco, foi o que se pas-
tes reflexões sobre este texto “fundador” do teatro na- Rio de Janeiro: verso e reverso, O demônio familiar, O morais do homem, teria a função de corrigir os vícios, sou a cobrar de ensaiadores e intérpretes.”13
cional, principalmente no que diz respeito à dicotomia crédito e As asas de um anjo, acrescidas de constantes aperfeiçoando, por conseguinte, indivíduo e coletivi-
sofisticação versus popularização criada em seu cerne. análises acerca dos meandros da arte teatral, assume dade11 . Em outras palavras, “a comédia realista, de um Não seria por acaso que, ao término do seu texto, Alen-
Confrontando o posicionamento tomado por José de “naturalmente a liderança do movimento (que se ins- modo geral, é uma peça séria, quase um drama, poder- car, de maneira tão peremptória, encerraria suas refle-
Alencar, ela relativiza diversos de seus pontos de vis- taura)”8. Este movimento não é outro senão o realismo -se-ia dizer, uma vez que não tem como objetivo provo- xões com uma crítica algo cruel ao teatro romântico: “O
ta, observando ainda que, em suas reflexões, o crítico teatral, também denominado de “dramas de casaca”. car o riso, mas descrever e discutir costumes.”12 tempo das caretas e das exagerações passou. Inês de
toma o público como “uma massa bruta à espera de No Brasil, cujo sistema cultural limitava-se quase que Castro, que já foi uma grande tragédia, hoje é para os
quem o modelasse”6. Seguindo a mesma linha de racio- exclusivamente à corte, a renhida disputa entre a esco- Desse modo, quando o escritor cearense exortava Fran- homens de gosto uma farsa ridícula” (p. 46).
cínio, o professor João Roberto Faria considera equivo- la romântica e realista dar-se-ia a partir de dois palcos cisco Otaviano a criar o teatro nacional, ele estava, na
cada a avaliação realizada pelo escritor cearense acerca distintos: o do Teatro São Pedro, comandado por João verdade, referindo-se à necessidade de a cena drama- No Brasil, seria o já citado Teatro Ginásio14 o espaço no
da obra de seus predecessores: “o balanço crítico que Caetano, e o do Teatro Ginásio que, a partir de meados túrgica da época abandonar o dispositivo romântico. qual seriam desenvolvidos esses preceitos estéticos15.
Alencar faz do passado teatral brasileiro não é apenas da década de 1850, começou a abrigar um número su- Se, conforme vimos, caiu no exagero de desmerecer a Mal comparando, portanto, estávamos diante de uma
severo e injusto, mas sobretudo tendencioso”7. cessivo de produções, registrando-se aí uma quantida- obra de Martins Pena (a qual, felizmente, a posteridade série de mudanças renovadoras que se assemelhariam
de crescente de autores nacionais. viria a reavaliar, dando-lhe o valor merecido), José de àquelas que, cerca de um século depois, a Bossa Nova
O que talvez tenha faltado aos dois brilhantes críticos Alencar, entretanto, apontou para um fato relevante: impetraria à canção popular: no lugar de arroubos, dis-
sublinharem é que, se o julgamento alencariano é ten- Vai daí que, ao tratar da “criação de um teatro nacio- o de que somente a multiplicação de textos genuina- crição; a meia voz substituindo os “dós de peito”; a per-
dencioso, é porque “A Comédia Brasileira” pretende nal”, devemos relativizar as palavras de Alencar. Ora, mente brasileiros – na autoria e na temática – aperfei- seguição pelo natural em detrimento da artificialidade
fazer tábula rasa do universo dramatúrgico nacional. a cena dramatúrgica efetivamente já existia, limitada çoaria um panorama teatral ainda canhestro, malgrado exagerada.
Mais do que uma análise crítica, acreditamos que este embora, é claro, em virtude do acanhado aparato cultu- a significativa popularidade alcançada pela companhia
texto merece ser lido enquanto um manifesto e, como ral do nosso país. E não fora outro senão Martins Pena do grande astro da época, o ator João Caetano. Podemos concluir que no campo da encenação em si há,
52 tal, perfaz um retrato eminentemente negativo das um dos dramaturgos de maior destaque até então, pois no manifesto alencariano e, por conseguinte, na escola 53
realista, proposições que redundariam em resultados teatro de Alencar, publicado no Diário do Rio partir do segundo número do jornal, o escritor passou a preceitos clamados por Alencar em “A Comédia Brasi-
capazes de influenciar de modo fundamental a história de Janeiro em 6 de março de 1866, sublinha- ser o responsável por uma coluna denominada “Revista leira” –, também é preocupação que reaparece, embo-
da nossa dramaturgia. Entretanto, ao delinear em seu ria justamente essa preocupação do autor em de Teatros”, na qual comentava os espetáculos em car- ra sob outros moldes, nas colunas de Machado para O
projeto, como já vimos, um teatro eminentemente pe- engalanar a sociedade.19 taz. A colaboração do colunista redundou em um total Espelho.
dagógico (o tal “daguerreótipo moral”), o autor acabou de dezoito textos críticos; em três deles, entretanto, o
por criar uma armadilha para si próprio. Isto porque o O veneno da comédia realista, sabemos hoje, estava autor não se fixava em uma peça especificamente, mas No texto publicado no número 4 do periódico, o crítico
efeito de ensinamento que se encontra embutido nes- justamente em sua gênese. Grosso modo, malgrado tratava de maneira mais generalizada acerca das artes iniciava sua reflexão de modo pessimista, deplorando
sa concepção cênica acaba por dar ao objeto artístico as inovações cênicas do realismo teatral terem, em cênicas no Brasil. Tais análises foram publicados nos a falta de talentos que incidiam em nossos palcos. Por
uma artificialidade que se faz notar na argamassa tex- princípio, causado um grande afluxo do público às pe- números 4, 5 e 17 do referido periódico. Podemos notar conta disso, as exceções de qualidade na arte dramáti-
tual do espetáculo. Não é por outro motivo que, em Jo- ças que, efetivamente, o grupo de intelectuais levou que há uma continuidade entre o primeiro e o segundo ca somente corroboravam o deserto artístico em que
sé de Alencar e o teatro, o professor João Roberto Faria ao palco do Ginásio Dramático, o enfado causado por texto, enquanto o último enfoca seu interesse na aná- estava envolvido o contexto teatral do Brasil: eram, as-
afirma que, de acordo com a proposta dramatúrgica do soluções dramatúrgicas nem sempre sutis, deliberada- lise do papel do Conservatório Dramático no contexto sim, apenas oásis que pontificavam em um quase vácuo
autor, “a arte devia imitar a natureza, reproduzir a vida mente programáticas e efetivamente esquemáticas20, teatral brasileiro. As três reflexões supracitadas estão de qualidade. Faltava, em nosso meio, de acordo com o
da família e da sociedade”16, ao mesmo tempo em que acarretou no malogro do teatro idealizado por Alencar reunidas nas Obras completas de Machado de Assis sob autor, uma iniciativa que fizesse elevar o valor artístico
“destinava-se a dar lições edificantes”17. A professora em seu manifesto. Isto porque, no final das contas, as o nome de “ideias sobre o teatro”. do que era mostrado ao grande público. Da mesma ma-
Sílvia Cristina de Souza, por sua vez, sintetiza perfei- comédias realistas acabaram, grande parte das vezes, neira que Alencar, portanto, Machado (1979) avaliava
tamente os pressupostos do realismo teatral, ao afir- por constituir “teatro de papel” (...), expressão de épo- Quem escreveu as colunas para O Espelho não foi o que o teatro brasileiro ainda vivia a sua infância: “As-
mar que “cópia e lição passavam a ser os dois requisitos ca utilizada para identificar composições dramáticas escritor cercado de respeitabilidade; dado que nem sim, basta a boa vontade de um exame ligeiro sobre a
básicos aos quais os dramaturgos deveriam obedecer, cujas qualidades estéticas estavam na folha impressa e literato Machado era então, visto que suas primeiras nossa situação artística para reconhecer que estamos
correspondendo a uma dupla exigência de verossimi- não no rendimento cênico que poderiam proporcionar produções propriamente “literárias” datam da década na infância da moral; e que ainda tateamos para dar-
lhança e utilidade”18. através do jogo dos atores no palco.21 de 1860 (e é significativo que a peça “Desencantos”, de mos com a porta da adolescência que parece escondida
1861, seja a obra que inaugure a carreira vitoriosa que nas trevas do futuro.”24
Dentro desse contexto, a fim de atender aos preceitos Soluções estéticas mais adequadas ao universo da se seguiria). Foi, portanto, o “Machadinho” quem assi-
da escola, os “dramas de casaca” acabaram por levar ao dramaturgia e que, de maneira inequívoca, lograriam nou as proposições para a arte dramatúrgica brasileira Qual seria a saída para a melhoria da qualidade do te-
palco, de maneira bastante contraditória, uma socie- refletir sobre a realidade local através de observações que se encontram nos textos ensaísticos mencionados. atro? Segundo Machado, ela passava pela educação.
dade que, no final das contas, não espelhava o mundo gaiatas e, sob certo ponto de vista, mais “descompro- Em outras palavras, ele preconizava uma arte cênica de
real. As noites do Ginásio nos esclarece essa intrincada missadas”, subiriam aos palcos brasileiros alguns anos Parece ser inegável, a propósito, a ascendência alenca- fundo pedagógico, que traria ao público em geral “as
questão: adiante através da produção de um autor em cuja obra riana sobre Machado à época da escrita das reflexões verdades e as concepções da arte”25. Os agentes dessa
definitivamente não haveria espaço para o esquematis- ou, pelo menos, a conjugação de interesses entre os transformação pela educação seriam os
Todo este esforço do autor (Alencar) nos mo dos “dramas de casaca” – Arthur Azevedo. Aí, efeti- dois escritores. Isso porque o futuro autor de Ressur-
permite entrever, também, aquilo que para vamente, o Brasil ver-se-ia posto em cena, mas através reição delineava, na sua análise, um caminho que mui- empresários teatrais e (o) governo, ele es-
ele significava “nacionalizar” o teatro, isto é, do humor e da leveza, e não da seriedade programática tas vezes era intersecional ao do escritor cearense22. O clarece, no final do artigo. A seu ver (de Ma-
colocar a sociedade brasileira no palco, mas que dava ao teatro realista uma aparência de tamanha professor João Roberto Faria comunga dessa opinião, chado), o governo havia transformado a arte
embelezada e “maquiada” para torná-la dig- artificialidade. quando diz que “esse modo de conceber o teatro apro- dramática numa “carreira pública”, com suas
na, o que importava não apenas uma trans- xima Machado de Quintino Bocaiúva e de José de Alen- “subvenções improdutivas, empregadas na
formação de efeitos estéticos, mas também Por uma pedagogia do teatro car”23. Ao realizar essa afirmação, Faria está tratando aquisição de individualidades parasitas”. Sem
transformações éticas, sem as quais não se da concepção cênica realista e, desse modo, a necessi- nomear ninguém, as palavras, duríssimas,
poderia reconhecer esse teatro como passível Em 1859, contando apenas vinte anos de idade, o jovem dade de fundação de uma dramaturgia que colocasse a referiam-se provavelmente a João Caeta-
de pertencer a uma dramaturgia “civilizada”. Machado de Assis iniciou atividade sistemática em um sociedade em cena, de modo que esta, observando-se no, o único artista dramático e empresário
54 Machado de Assis, num artigo dedicado ao periódico semanal de vida curta, chamado O Espelho. A nos palcos, pudesse avançar em termos éticos – um dos que recebia subvenção do governo e que se 55
mantinha fiel ao seu estilo grandiloquente Muzzio, Francisco Pinheiro Guimarães, Sousa o Conservatório Dramático Brasileiro tomou Machado de Assis reclamava do fato de não ser dado
de interpretação e ao repertório de tragé- Ferreira, Leonel de Alencar – irmão de José de como modelo o Conservatoire, de Paris, e o aos membros do Conservatório Dramático o poder de
dias neoclássicas, dramas e melodramas Alencar –, entre outros, podem ser lembrados Real Conservatório Dramático, de Lisboa. veto a textos que apresentassem carência de qualida-
que o havia consagrado. A consequência do como simpatizantes do Ginásio Dramático e Pretendia-se, tal como estas duas institui- de artística. Sendo assim, “julgar de uma composição
descaso do governo em relação às compa- do realismo teatral francês. Machado, porém, ções, fundar uma escola de declamação e pelo que toca às ofensas feitas à moral, às leis e à reli-
nhias dramáticas subvencionadas foi a má queria que as novas concepções teatrais não arte dramática para atores, criar um jornal gião, não é discutir-lhe o mérito puramente literário, no
formação cultural da plateia, que via o teatro ficassem restritas a uma parcela pequena da no qual fossem divulgados os trabalhos da pensamento criador, na construção cênica, no desenho
apenas como um passatempo. Naqueles anos sociedade. A reforma da arte dramática devia associação, estabelecer a crítica literária e da dos caracteres, na disposição das figuras, no jogo da
recentes, ambos, plateia e teatro, “tomaram ser levada “a todo o corpo social”, para que parte linguística de todas as composições em língua.”32
caminho errado; e divorciaram-se na estrada seus benefícios fossem democratizados, para português que lhe fossem enviadas para exa-
da civilização”26. que ninguém mais pensasse que o teatro era me, corrigindo os defeitos por meio de uma Naquelas circunstâncias, restava, portanto, aos mem-
um mero passatempo das massas27. análise em que seriam apontados os métodos bros do Conservatório Dramático, a assunção de um
Machadinho é, portanto, bastante incisivo na crítica para emendá-los.30 papel que vestais poderiam exercer. Entretanto, não
realizada no tocante ao abandono da arte em prol da No breve texto “Ideias Teatrais – II”, Machado de As- obstante a limitação imposta pelas circunstâncias, vez
aquisição fácil de dinheiro. É nesse contexto que o crí- sis iniciava suas reflexões lamentando o panorama Não obstante as amplas pretensões vislumbradas, em por outra, lampejavam, nos textos avaliadores, contri-
tico faz uso de termos como “vendilhões no templo”, desqualificado do teatro brasileiro, apontando para os termos práticos, a instituição acabou por limitar-se à buições que, apesar de não possuírem caráter delibera-
“jesuítas da arte” e “invasores”, referindo-se aos que males causados pela cultura dos boulevards no gosto atividade de censura, ficando relegados os aspectos de tivo de veto, apontavam os problemas de ordem esté-
não se importam com a qualidade do teatro, mas so- dominante do público. Isso, entretanto, não era culpa correção e aperfeiçoamento dramatúrgico. Chama-nos tica presentes nos textos. Para Machado, no entanto,
mente em amealhar o público ignorante para assistir a das massas, pois “as turbas não são o mármore que a atenção o fato de Machado de Assis utilizar, logo no embora essa iniciativa dos censores fosse alvissareira,
produções que não conseguiam alçar maiores voos ar- cede somente ao trescalar laborioso do escopro, são a primeiro parágrafo de seu texto, o adjetivo “policial”, ainda era insuficiente para que realmente melhoras-
tísticos. Por outro lado, ele se preserva, visto que, dife- argamassa que se amolda à pressão dos dedos. Era fácil relacionado ao Conservatório, em analogia direta com se o estado de coisas no teatro brasileiro. E, por isso,
rentemente do ocorrido na crítica exercida por Alencar, dar-lhes uma fisionomia; deram-lha.”28 outros termos como “censura” e “corretivo”, ainda no exortava: “Façam ampliar as atribuições desse Corpo
Machado perfaz afirmações em que se exime de no- mesmo trecho. de censores procurem dar-lhe outro caráter mais sério,
mear diretamente os alvos de sua análise – lembremos De acordo com Machado, a imprensa, a tribuna e o te- outros direitos mais iniciadores, façam dessa sacristia
que, em “A Comédia Brasileira”, o autor de O Guarani atro seriam os agentes transformadores da sociedade. Segundo o autor, o Conservatório Dramático deveria de igreja um tribunal de censura.”33
não se furtava de declarar nomes como os de Macedo e No entanto, o último “é o meio mais eficaz, mais firme, apresentar duas funções básicas, a saber, a moral e a
Martins Pena, em análises bastante negativas. mais insinuante”29. Entretanto, como transformar a so- intelectual. É interessante e merece a devida reflexão Notava o escritor que a máquina pública enxergava o
ciedade e educar as massas com um teatro que era a a defesa que Machado de Assis fazia de uma crítica de teatro meramente como “recreio” e não como “corpo
O crítico Machado de Assis observava que o público da emulação do que havia de pior na dramaturgia estran- cunho oficial, patrocinada pelo governo. Esta pairaria de iniciativa nacional e humana”. Presentificava-se aqui
época mantinha hábitos e gostos presos a padrões pas- geira? sobre interesses comerciais deste ou daquele grupo es- o aspecto pedagógico das artes cênicas, sempre tão re-
sadistas. Ora, era necessário incutir, entre os pagantes, pecífico31 . Em consonância com textos de sua autoria corrente nas concepções machadianas, filhas diletas
o prazer em compartilhar do que ele chamava de “ar- Uma das formas de exercer efetivamente o caráter anteriormente publicados, o autor reafirmava o cará- de pressupostos fundados por José de Alencar alguns
te moderna”, a qual, não passava, na verdade, de uma pedagógico das artes cênicas dar-se-ia com o fortale- ter “civilizador” que o gênero dramático adquiriria no anos antes.
concepção realista do universo teatral. Acerca de tal cimento do Conservatório Dramático, instituição alvo contexto social brasileiro. Nulificar um órgão que apre-
fato, o professor Faria afirma: de reflexões do escritor na terceira parte de seu “ideias sentava supostamente uma função pedagógica, como Machado de Assis observava ainda que a empresa te-
sobre o Teatro”. o Conservatório, seria, por conseguinte, nulificar o te- atral e a crítica encontravam-se, segundo o seu dizer,
A consulta aos jornais da época permite am- atro em si. Nesse sentido, a produção cênica e a ponte em “guerra civil”, no exato momento em que escrevia
pliar bastante o grupo de jornalistas, escrito- De acordo com observações da professora Silvia Cris- crítico-moralizante eram vistas como complementares suas reflexões. Essa guerra fratricida, da qual o teatro
res e intelectuais que abraçavam as mesmas tina de Souza, e necessárias uma a outra. surgiria como maior vítima, fora motivada pelo fato de
56 ideias. Francisco Otaviano, Henrique César a primeira rejeitar as bases delineadas pelos censores. 57
Sendo assim, restava ao Conservatório “subscrever as palavras, ao invés de apreciar as encenações de cunho Não seria por outra razão que, ao publicar em livro o jamais com as mesmas esperanças no futuro do teatro
frioleiras mais insensatas que o teatro entendesse qua- moralizante dos “dramas de casaca”, o público pouco texto da peça, Alencar escreveria uma advertência, de brasileiro”40.
lificar de composição dramática” 34. a pouco abandonou o Teatro Ginásio Dramático, pas- cerca de uma página, que é um lamento aos “desca-
sando a frequentar espetáculos em que pontificavam minhos” tomados pelo teatro brasileiro. O público da O desapontamento que marca os escritos finais de José
O papel de censor qualitativo, e não apenas de censor “formas mais populares de opereta e da mágica em corte, segundo Alencar, valorizava, naquele momento, de Alencar e Machado de Assis dá conta de que o pro-
moral, faria, ademais, com que o Conservatório Dra- nossos palcos”38. Era o malogro total das pretensões de apenas as manifestações fúteis provindas do exterior. jeto de teatro nacional acalentado pela geração da qual
mático agregasse valor de outra monta: o fato de co- um crítico que, um dia, vira na renovação teatral das co- A verdadeira causa para a deserção dos espectadores, fizeram parte, se conseguiu germinar e florescer, talvez
laborar para a melhoria da qualidade do texto teatral. médias realistas a chance de fazer avançar não apenas porém, é que este “não sabe ser público, e deixa que não tenha frutificado da maneira que era desejada. De
Isto porque, além de não expor o público às traduções o panorama cultural do Brasil, mas o contexto social do um grupo de ardélios usurpe-lhe o nome e os foros” (p. qualquer modo, porém, as discussões ensejadas foram
de má qualidade, ainda ajudaria a desenvolver, na tradi- país recém-independente. 1007). fundamentais para o devir de nossa dramaturgia, uma
ção cênica brasileira, produções autorais sofisticadas, vez que trouxeram as artes cênicas para o centro das
em uma sociedade na qual, até aquele momento, não Desencantos Segundo o escritor, a notoriedade alcançada por obras discussões intelectuais. Além disso, levantaram pontos
possuía literatura dramática, de acordo com o dizer como O guarani em nada contribuiu para a propagan- polêmicos até hoje discutidos no meio cultural, tais co-
do crítico35. Apesar de ressaltar que algumas poucas “Desencantos” constituiu o título da primeira incursão da de O jesuíta. Alencar credita tal fato à ignorância mo a reserva de mercado para produção de textos na-
aventuras isoladas destacavam-se neste deserto de ta- de Machado de Assis no universo da dramaturgia. A do público e chega a fazer o seguinte chiste: “Acredito cionais, a ingerência do Estado nas artes, a necessidade
lentos, o certo é que parece ser injusto não oferecer ao sensação que deu título à peça é, algo ironicamente, mesmo que muita gente fina que viu a ópera e drama de refinamento do gosto cultural das grandes massas.
menos o merecido destaque ao pioneirismo de Martins aquela que fica patente nos ensaios dos dois escritores d’O Guarani ignora absolutamente a existência do ro-
Pena neste contexto. aqui analisados ao se depararem com o insucesso do mance, e está na profunda crença de que isso é alguma Portanto, se não chegaram a criar um teatro brasileiro,
realismo teatral. história africana plagiada para o nosso teatro (p. 1012). José de Alencar e Machado de Assis ajudaram a formu-
As reflexões terminam com a reafirmação de que o pa- lar uma concepção dramatúrgica de cunho socializante
pel do Conservatório precisava ser ampliado. A refor- Em 1873, veio a público o último espetáculo de José de O tom de cansaço é pulsante em todo o texto. As re- que, historicamente, pontua nossos palcos em refluxos
ma reivindicada por Machado era, nas suas palavras, Alencar: “O Jesuíta” fora uma peça elaborada por vol- flexões alencarianas revelam profunda decepção com que podem ser mapeados, no século XX, por exemplo,
uma garantia de ilustração para o teatro, o público e a ta de 1861, mas até então nunca levada aos palcos, em os rumos tomados pela arte cênica, em particular a da através das experiências do Teatro de Arena ou, mais
literatura. virtude da recusa do ator João Caetano – a quem fora capital, espaço visto como fútil, coquete e avesso ao recentemente, na dramaturgia ensejada por nomes co-
especialmente escrita – em encená-la. O resultado co- sentimento de nacionalidade. Nesse sentido, o interior mo Juca de Oliveira.
Desse modo, a fim de que efetivamente as massas fos- mercial do espetáculo não poderia ter sido pior: apenas do Brasil era o espaço de resistência ao estrangeirismo
sem educadas, o crítico enxergava como fundamental duas apresentações foram efetuadas; as outras récitas que domina a urbe.
a ação do Estado, exercida através do Conservatório previstas foram canceladas, por falta de pagantes.
Dramático Brasileiro. Nesse sentido, podemos ver, nas Alencar reforça ainda sua crença em um teatro que não Referências Bibliográficas
argumentações machadianas, a necessidade de o povo De acordo com o relatado pelo professor João Roberto falseie a realidade, mas que seja espelho dos homens e
ser tutelado por ingerências de cunho pedagógico. Seria Faria, dos fatos; aquele que adultera as situações, segundo o ALENCAR, José de. Obras completas, Rio de Janeiro: Aguilar,
fundamental, nesse contexto, que se protegesse “a pla- autor, só merece ser banido. 1960, 4. vol.
teia da má literatura, do mau teatro, além de propiciar o a indiferença do público para com “O Jesuíta”
FARIA, João Roberto Ideias teatrais: o século XIX no Brasil.
desenvolvimento da literatura dramática no país”36. pode ser creditada, em boa parte, ao predo- No contexto do final do século XIX, portanto, nada
São Paulo: Perspectiva/ FAPESP, 2001.
mínio das operetas francesas e brasileiras, mais distante do que o teatro para ensinar as massas,
A pedagogia teatral desejada por Machado, entretan- vaudevilles, mágicas e peças aparatosas em preconizado pelo jovem Machado de Assis nos idos da __________________. “Machado de Assis, leitor e crítico de
to, jamais seria levada a cabo, isto porque, segundo Fa- nossos palcos, na ocasião. O gosto teatral já década de 1850. Para Faria, ao se deparar com esse teatro”. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
ria, “o governo abandonou o teatro brasileiro à própria não era o mesmo das décadas de 1840 e 1850. estado de coisas, “ele voltará a escrever sobre algum script=sci_artefata&pid=S0103-40142004000200020>.
sorte e o resultado foi a derrocada completa da drama- (...) Em resumo a plateia fluminense queria se dramaturgo, algum espetáculo ou algum artista. Mas Acesso em 20 ago. 2010.
58 turgia literária nos anos que se seguiram”37. Em outras divertir.39 59
__________________. José de Alencar e o teatro. São Paulo: 11 Nesse sentido, de acordo com o professor Faria (2008), “não é preciso 27 Ibidem, p. 34.
Perspectiva/ EDUSP, 1987. dizer que o maniqueísmo servia perfeitamente ao propósito moralizador, uma
28 Joaquim Maria Machado de Assis, Obras completas, p.793.
vez que o embate resultava sempre na vitória esmagadora do bem” ( p. 27)
__________________.O teatro realista no Brasil. São Paulo:
29 João Roberto Faria (org.), Machado de Assis do teatro, p.50.
Perspectiva/ EDUSP, 1993. 12 João Roberto Faria, ibidem, p. 86. A professora Sílvia Cristina de Souza
(2002) chega mesmo a denominar a comédia realista de “teatro de tese” (p. 30 Sílvia Cristina de Souza, op. cit., p. 145.
__________________.(org.). Machado de Assis do teatro. São
71), por “estar presa a uma noção de arte vinculada à noção de educação da
Paulo: Perspectiva, 2008. 31 Não foram poucas as vezes, aliás, que Machado, ao tratar do caráter
sociedade” (Ibidem)
da atividade crítica, ressaltou a importância de uma “ética da crítica”, na
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria Obras completas. Nova
13 Sílvia Cristina de Souza, op. cit., p.79. qual deveriam pontificar “imparcialidade, probidade e franqueza” (ASSIS in
Aguilar: 1979, 3 vol.
FARIA, 2008, p. 52).
14 Note-se, a propósito, que a denominação do espaço já dá a ele o intuito
SOUZA, Sílvia Cristina Maria de. As noites do Ginásio: teatro
de escola dramática que efetivamente pretendia-se desenvolver no Brasil. 32 Joaquim Maria Machado de Assis, In: João Roberto Faria (org.), Machado
e tensões na corte (1832 – 1868). Campinas: Editora da UNI-
de Assis do teatro, p. 217.
CAMP/ CECULT, 2002. 15 Nesse sentido, assim como João Caetano era a síntese da técnica
romântica de interpretação, seria o ator Furtado Coelho a metonímia da técnica 33 Ibidem, p. 219.
Notas de interpretação realista em nossos palcos. Segundo o crítico João Roberto
34 Ibidem.
Faria (2008), “os críticos e o público encantaram-se com a gestualidade contida,
1 José de Alencar, apud João Roberto Faria, José de Alencar e o teatro, p. 73. a voz bem-modulada, a naturalidade e os gestos elegantes do ator talhado para 35 interessante notar que, entre as várias proposições lançadas por
os papéis centrais das comedias realistas” (p. 45– 46). Machado em suas reflexões, uma salta aos olhos: o fato de ele lançar a ideia
2 A primeira apresentação de O demônio familiar deu-se a 5 de novembro
da criação de uma “cota” mínima de textos de autoria nacional que deveria ser
de 1857. 16 João Roberto Faria, José de Alencar e o teatro, p.19.
levada ao palco pelos empresários da época.
3 Tanto é assim que, nas obras completas editadas nos anos 1960 do 17 Ibidem.
36 Joaquim Maria Machado de Assis, Obras completas, p. 790.
século XX, a editora incluiu o subtítulo “Como e Porque Sou Dramaturgo”
18 Sílvia Cristina de Souza, op. cit., p. 71.
ao texto, em uma evidente menção a “Como e Porque Sou Romancista”, 37 João Roberto Faria, op. cit., p.73.
deliciosa autobiografia literária de Alencar. 19 Idem, p. 91.
38 Ibidem, p.72.
4 José de Alencar, Obras completas, p. 44, grifo nosso. Daqui em diante 20 Exemplo claro de tal esquematismo artificial pode ser encontrado na
39 Ibidem, p.54.
usaremos apenas o número da página entre parênteses após as citações dessa figura do raisonneur, típica personagem da comédia realista “que funcionava
obra. como porta-voz das ideias do autor, a ela cabendo emitir advertências às 40 Ibidem, p.73.
demais personagens e proferir os discursos moralizantes para a plateia”
5 José de Alencar foi quem produziu o mais acabado pensamento que
(SOUZA, 2002 p. 72).
associa o palco à tribuna: “(...) a moral e a ciência formam a mais eloquente
das tribunas – a cena, tribuna que fala ao mesmo tempo aos olhos, ao ouvido, 21 Ibidem, p.98.
ao espírito e ao coração” (apud FARIA, 1987, p. 69).
22 Entre diversos outros aspectos, assim como Alencar, “o jovem Machado
6 Silvia Cristina de Souza, As noites do Ginásio: teatro e tensões na corte coloca-se como aliado da renovação teatral que ocorria no palco do Ginásio
(1832 – 1868), p. 93. Dramático” (FARIA, 2008, p. 32).

7 João Roberto Faria, José de Alencar e o teatro, p. 18. 23 Ibidem, p.34.

8 Ibidem, p. 16. 24 Joaquim Maria Machado de Assis, Obras completas, p.790.

9 Silvia Cristina de Souza, op. cit., p.37. 25 Ibidem.

60 10 João Roberto Faria, deias teatrais: o século XIX no Brasil, p. 107. 26 João Roberto Faria (org.), Machado de Assis do teatro, p.221. 61
Raul Pompéia,
leitor de Baudelaire:
da teoria das correspondências
às Canções sem metro

Franco Baptista Sandanello* Resumo

Apesar de inserido na tradição formal do poema em


prosa consolidada pelos Pequenos poemas em prosa de
Charles Baudelaire, as Canções sem metro de Raul Pom-
péia, primeira tentativa nacional de exercício no gênero,
tem por epígrafe de sua primeira seção uma quadra do
soneto “Correspondances” de As Flores do Mal. Procu-
ramos discutir neste artigo quais as razões textuais e
contextuais para este possível “desvio de influências”
no texto de Pompéia, aberto (ou não) às opções formais
distintas destas duas obras de Baudelaire. Para tanto, to-
mamos como fundamentos de análise a primeira seção
das Canções sem metro, o já mencionado soneto “Corres-
* Franco Baptista Sandanello é graduado em Letras pela Universidade
pondances” e um dos Pequenos poemas em prosa.
Federal de São Carlos e atualmente doutorando no programa de Estudos
Literários da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Campus
Palavras-chave: Poema em prosa; Canções sem me-
62 Araraquara. E-mail para contato: franco@lancernet.com.br 63
tro; Pompéia; Baudelaire.
Abstract poemas e sonetos, As flores do mal, como unidade de plano corresponde a “ecos longos que à distância se seu ensaio “O pintor da vida moderna”, onde teoriza
significação e conteúdo. Através desta pequena obser- matizam” e que, reunidos “numa vertiginosa e lúgubre acerca da dupla natureza temporal do belo e afirma
Although a part of the prose poem’s formal tradition vação arriscamos romper o silêncio inicial acerca do as- unidade”, somente podem ser decifrados – ou reprodu- que “a dualidade da arte é uma consequência fatal da
as established by the Little poems in prose by Charles sunto e tomar uma pequena amostra de cada uma das zidos – por uma reunião de todos os sentidos através da dualidade do homem. Considerem, se isso lhes apraz,
Baudelaire, the Canções sem metro by Raul Pompéia, três obras a fim de responder como e por que ocorre poesia, finalmente exterior aos limites de qualquer po- a parte eternamente subsistente como a alma da arte
first national attempt of exercise in the genre, have tal desvio de influências, se assim podemos chamá-lo, ética pré-concebida: “os sons, as cores e os perfumes e o elemento variável como seu corpo.”6 É o que se po-
on its first section of poems a quatrain of the sonnet desde sua unidade conceitual baudelaireana até seu se harmonizam”. Ou seja, enquanto a natureza traduz de depreender, voltando ao poema, de sua opção por
“Correspondances” for epigraph, a unity of the poem acabamento final por Pompéia. Assim, discutiremos e evoca comportamentos humanos (“vivos pilares”), “o manter formalmente a estrutura do soneto e variar seu
and sonnet book Flowers of evil. We intend to discuss as relações mútuas estabelecidas entre o já destacado que o poeta toma ao mundo sensível é o que precisa conteúdo, reunindo de maneira singular o plano espiri-
in this article which are the textual and which are the soneto “Correspondances” e a seção inicial das Canções para forjar uma visão simbólica de si mesmo ou de seu tual ao corporal/sensorial nos dois últimos tercetos:
contextual reasons for this likely “diversion of influ- sem metro. sonho; [o poeta] pede-lhe os meios para exprimir sua
ences” in Pompéia’s text, and if they are or not open to alma” 2, que se concretiza dentro e a partir do texto po- Há aromas frescos como a carne dos infantes,
these opposite formal options nevertheless present in “Correspondances” e a gênese dos contrários ético. Doces como o oboé, verdes como a campina,
the works of Baudelaire. To do so, we analyse the first E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,
section of Canções sem metro, the already mentioned A Natureza é um templo onde vivos pilares Desta “teoria”, ou reflexão, pressuposta ao soneto das
“Correspondances” and one of the Little poems in prose. Deixam filtrar não raro insólitos enredos; “Correspondances”, destacam-se três dados fundamen- Com a fluidez daquilo que jamais termina,
O homem o cruza em meio a um bosque de tais que caracterizam, em um sentido abrangente, a Como o almíscar, o incenso e as resinas do
Key-words: Prose; poem; Canções sem metro; Pom- segredos­ poética de Baudelaire: 1) a importância conferida a ele- Oriente,
péia; Baudelaire. Que ali o espreitam com seus olhos familia- mentos inverossímeis (“confusas palavras”) que, por Que a glória exaltam dos sentidos e da men-
res. seu próprio caráter incomum, deixam entrever relações te.7
Introdução Como ecos longos que à distância se matizam semânticas para além das corriqueiras3; 2) a busca por
Numa vertiginosa e lúgubre unidade, um plano ambivalente de sentidos igualmente além De um ponto de vista contextual8, a construção do
Se, por um lado, é desnecessário salientarmos o papel Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade, das correspondências mútuas entre os objetos e o poe- texto de Baudelaire em torno desta dualidade original
central de Charles Baudelaire na consolidação do poe- Os sons, as cores e os perfumes se harmoni- ta (“os perfumes, as cores e os sons se correspondem”), não é gratuita e corresponde, grosso modo, ao dilema
ma em prosa na França, bem como o efeito duradouro zam.1 ora voltado para “os seres e as coisas deste mundo” nu- existencial do artista frente à consolidação definitiva
de As flores do mal (1857) e Pequenos poemas em prosa ma reta horizontal, ora voltado para “o mundo ideal, das economias capitalistas europeias nas décadas de
(1869) na produção literária desse país e, posterior- Para além de um sentido imediato de representação místico, invisível”, numa reta vertical4; 3) a contrapo- 1850 e 18609. Frente à crescente força do mercado
mente, brasileira; por outro, resta pouco a acrescentar da Natureza, que poderia corresponder a toda uma sição antitética de elementos distintos (homem versus como elemento regulador da vida social, os artistas –
à imagem de Canções sem metro (1900), de Raul Pom- poética clássica de imitação – seja de um modelo na- natureza), a fim de fazer transparecer, por intermédio e dentre eles, os poetas – passam a competir entre si
péia, consolidada pela recepção crítica como primeira tural, seja de um cânone literário – as duas primeiras de seu conflito, uma síntese entre (1) e (2)5. pelos favores do público, adequando-se a seus gostos
tentativa nacional de exercício no gênero. Tomadas quadras do soneto “Correspondances” subvertem a mais vulgares e imediatos, como apuradamente regis-
as devidas proporções de uma discussão preliminar e, significação clara que se suporia ligar o eu-lírico aos Todos os três elementos aqui sumariamente ressalta- tra Baudelaire em suas críticas às exposições coletivas
não obstante, redutora destas três obras literárias do objetos, fazendo anteceder às palavras e enredos, já dos têm por base uma argumentação antitética, seja de pintura da época (Salão de 1845, Salão de 1846 e Sa-
século XIX, cabe apontarmos uma observação de todo “insólitos” em sua essência, um “bosque de segredos” refletindo a respeito de algo verossímil versus inve- lão de 1859). De certa forma, se esta nova configuração
incipiente para sua articulação num debate: a primei- e de símbolos. Inversamente, tal “bosque” observa o rossímil, seja a respeito de um plano horizontal versus das relações de criação e recepção das obras literárias
ra seção de poemas em prosa do autor brasileiro tem homem com “olhos familiares” e convida-o a fazer o vertical. Tudo leva a crer que a poética de Baudelaire abrem horizontes para uma maior isenção dos textos
por epígrafe a segunda quadra do soneto “Correspon- mesmo com relação a si, desconstruindo igualmente visa suprimir um dilema insolúvel entre termos opos- com respeito a questões religiosas ou moralizantes,
dances” do autor francês; isto é, apesar de se inscreve- uma outra poética romântica de antecedência do dado tos, tomados ora de uma regra, ora de uma exceção, favorecendo indiretamente uma estética da arte pela
rem formalmente nas sendas abertas pelo Pequenos subjetivo ao objetivo. Ademais, o templo de relações ou por extensão, ora de uma permanência, ora de uma arte (preconizada pelo amigo íntimo do poeta, Théo-
64 poemas em prosa, Canções sem metro elege o livro de ocultas que se encontra nesta natureza em segundo transitoriedade. De fato, é o que indica Baudelaire em phile Gautier, a quem Baudelaire dedicou As flores do 65
mal), ela também pressupõe um tom de decadência certamente não é um dos objetivos menores embriagava com sensibilidade aprimorada – ai! – su- círculo eternamente repetido de um “devir movente”,
moral nas produções mais conscientes do período. Por desta escrita poética.12. cedeu um fétido cheiro de tabaco”19 . Nessa nova at- Baudelaire conquista uma solução particular e original
isso, diz Théophile Gautier a respeito de Baudelaire, mosfera, preenchida pelo cheiro sufocante do tabaco, a um problema que, por acaso, não é só seu. Solução-
“se o seu ramalhete se compõe de flores estranhas, de “O quarto duplo” e a síntese das contradições os momentos que antes eram passados como partes -não-solução na qual o texto redime seu contexto pelas
cores metálicas, de perfume vertiginoso (...), ele pode de uma mesma unidade transcendente e onírica, por- relações imanentes ao jogo das palavras.
responder que outras não nascem no húmus negro e Sob este signo de interrogação e de crítica, um dos poe- tanto atemporais, passam a ser vividos como um su-
saturado de podridão como um solo de cemitério das mas em prosa mais emblemáticos de Pequenos poemas plício, trazendo consigo todos os males de uma vida No entanto, se tal constructo poético permanece in-
civilizações decrépitas”10. em prosa quanto à reunião de elementos contrários é em desespero: “Oh sim! ressurgiu o Tempo, o Tempo teiramente coerente dentro da proposta iniciada pelo
“O quarto duplo”. Nele podemos ver a construção poé- agora reina como soberano; e com o horrendo velho soneto Correspondances, sua influência exercida em
Tal sentimento duplo de reprodução e de recusa do que tica de dois quartos a partir de um mesmo. O primeiro retornou todo o seu cortejo demoníaco de Lembran- literaturas estrangeiras seria incapaz de surtir o mes-
há de negativo para a produção da poesia na sociedade deles, construído a partir de uma atmosfera de sonho e ças, de Pesares, de Espasmos, de Terrores, de Angús- mo efeito, uma vez que em contextos alheios o terceiro
moderna – ou, em outras palavras, de construção de de volúpia, é “um quarto verdadeiramente ‘espiritual’ tias, de Pesadelos (...)”.20 momento, pressuposto por sua própria configuração
novos elementos poéticos a partir de outros prosaicos – onde a atmosfera estagnada é de leve tingida de róseo antitética e paradoxal, não se deixaria entrever com a
encontra seu ápice de significação em uma forma poé- e de azul”13. Em seu interior, os estofos dos móveis to- Ora sob o império do Tempo (espectro das diversas for- mesma imediatez. É o que sucede com os poemas em
tica até então pouco explorada, talvez justamente pela mam formas alongadas e “falam (...) uma língua muda, mas de exploração na sociedade moderna capitalista), prosa das Canções sem metro, de Raul Pompéia. Dete-
novidade de contradições tão insolúveis no domínio da como as flores, como os céus, como os poentes”14; as ora sob o império do Ídolo (símbolo das duas formas nhamo-nos na primeira seção deste livro.
poesia: o poema em prosa. paredes possuem “a deliciosa obscuridade da harmo- possíveis de subversão da ordem social e de transcen-
nia”15; o leito traz consigo “um Ídolo, a soberana dos so- dência para um plano superior - a arte e o devaneio), “Correspondances” no Brasil: “Vibrações”
Apesar de iniciada por autores como Aloysius Ber- nhos (cujos olhos) (...) devoram o olhar do incauto que a síntese das contradições existenciais apresentadas
trand e Maurice de Guérin, segundo Tzvetan Todo- os contempla”16: tudo, enfim, impõe-se ao poeta como permanece não resolvida na figura apenas pressuposta Vibrar, viver! Vibra o abismo etéreo à música
rov, no que diz respeito à forma do poema em prosa, ideal e o faz concluir que “aquilo a que em geral cha- de um terceiro quarto, síntese anterior / posterior dos das esferas; vibra a convulsão do verme, no
é Baudelaire “quem lhe dá as suas cartas de nobreza, mamos a vida, nada tem de comum, mesmo na mais demais. Evocando, pois, a teoria das correspondências segredo subterrâneo dos túmulos. Vive a luz,
quem a introduz no horizonte de seus contemporâneos feliz das suas expansões, com esta vida suprema que eu pelo seu revés negativo, “o significado que estas corres- vive o perfume, vive o som, vive a putrefação.
e de seus sucessores, quem dela faz um modelo de agora conheço e que saboreio minuto a minuto, segun- pondances têm para Baudelaire pode ser definido (ape- Vivem à semelhança os ânimos.
escritura: um gênero, no sentido histórico da palavra”11 . do a segundo!”17. nas, e sub-repticiamente) como uma experiência que
Gênero por excelência das contradições, o poema em procura se estabelecer ao abrigo de qualquer crise”21, A harpa do sentimento canta no peito, ora o
prosa tem por fundamento a insolúvel contraposição e Inversamente, o segundo quarto irrompe do primeiro isto é, num contexto pré-histórico e atemporal. Ora, o entusiasmo, um hino, ora o adágio oscilante
confusão entre prosa e poema, fundindo à plasticidade a partir de uma figura multifacetada chamada Espec- único contexto que se quer e pode ser atemporal é o da cisma. A cada nota, uma cor, tal qual nas
e à variedade de formas típicas da prosa a contenção e tro e que bate à porta assumindo diversas identida- (con)texto, o texto tornado livre do “espectro” da refe- vibrações da luz. O conjunto é a sinfonia das
a recorrência do texto poético. Neste sentido, Suzanne des: “Mas um golpe terrível, pesado ressoou à porta rencialidade. paixões. Eleva-se a gradação cromática até
Bernard aponta que: (...). E depois entrou um Espectro: é um meirinho que à suprema intensidade rutilante; baixa à pro-
me vem torturar em nome da lei; uma infame concu- Neste sentido, o poema em prosa, enquanto forma, funda e escura vibração das elegias.
uma definição do poema em prosa não po- bina que vem chorar (...); ou o contínuo de um diretor pode entrever uma possível, mas nunca realizada solu-
de ser estabelecida unicamente a partir dos de jornal que reclama a continuação do manuscrito”18 . ção, uma vez que ele “somente pode existir enquanto Sonoridade, colorido: eis o sentimento.
critérios formais relativos aos enunciados Sob qualquer uma delas, todavia, o espectro, misto poema na condição de remeter ao ‘presente eterno’
poéticos. É necessário tomar uma concepção de exploração moral, corporal e intelectual, faz re- da arte durações mais vastas, de coagular um devir Daí o simbolismo popular das cores.23
inteiramente diversa daquilo que merece ser lembrar ao poeta a miséria de sua condição e o pro- movente nas formas atemporais”22. Reconquistando,
chamado de poema. Interrogar sistematica- saísmo de sua existência: “Bem me lembro! Sim, esta pois, o domínio do tempo para o poema, condensando- Este primeiro trecho introdutório à seção inicial “Vi-
mente as nossas representações da poesia pocilga, esta morada do eterno tédio, é bem a minha. -o em um módulo narrativo inevitavelmente prosaico e brações” das Canções sem metro resume em si o mo-
66 (...) E àquele perfume de outro mundo, de que eu me histórico, e, por fim, arrematando sua significação no vimento que se seguirá subdivido em dez poemas em 67
prosa subsequentes, intitulados “Verde, Esperança”, Segundo o dicionário Houaiss, a primeira acepção Sem pão, sem rumo. Em roda, o gume afiado sensível, prova do desespero resultante dos falsos êx-
“Amarelo, Desespero”, “Azul, Ciúme”, “Roxo, Tris- de algo “correspondente” é a de algo “que apresenta do horizonte, a reverberação do sol nas águas tases de uma aventura amorosa passada: “Ela morria,
teza”, “Vermelho, Guerra”, “Branco, Paz”, “Negro, analogia, similitude” 25 com outro termo; já a primeira e o silêncio solene da calmaria. A vela do barco, alcançada pelo sorteio inexorável da Peste (...). So-
Morte”, “Rosa, Amor” e dois outros, sem título, que acepção de “semelhante” é a de algo “que é da mes- flácida, pendente – imagem do abatimento. Li- brara-lhe um filho dos desperdícios do passado, para
poderíamos chamar “Incolor, Tédio” e “Transparente, ma espécie, qualidade, natureza ou forma, em relação geira viração depois, denso nevoeiro... quatro vigiar-lhe a agonia. Ninguém mais (...), apenas as flores
Escravidão”, tamanha a semelhança com os demais24 . a outro ser ou coisa”26. Através desta nuança lexical, dias! sudário de brumas que envolve o barco, do desespero”. (Ibidem.)
Nesse poema, a linearidade que se estabelece entre podemos perceber inicialmente que, enquanto para elimina o céu. Vão acabar assim, amortalhados
o comportamento dos objetos e dos homens é tradu- Baudelaire os objetos guardam uma reserva para com na bruma. Um ramo, apenas, sobre as águas, Ainda outra vez, é o que podemos comprovar em todos
zida na expressão “Vibrar, viver!”: à semelhança da o eu-lírico / sujeito, mantendo com isso uma distância um ramo cor de esperança. Salvos! Adivinha- os demais poemas, divididos reiteradamente em uma
“música das esferas” e do “segredo subterrâneo dos plurissignificativa que arremete para além do texto -se o continente salvador através da névoa e o tese e um exemplo. No poema “Azul, ciúme” vemos
túmulos”, vibra a “harpa do sentimento” num movi- escrito, terceiro termo da equação, para Pompéia a li- panorama verde das florestas.(p. 45-46) essa distinção nas passagens “Céu e oceano, a soleda-
mento não tanto correspondente, no sentido baude- nearidade objeto – eu-lírico / sujeito ignora categorica- de sem fim. O ciúme é isolamento, queixa sem ecos do
laireano, quanto consequente, em que é produzida mente as nuanças dos objetos, resumindo-as segundo O primeiro parágrafo diferencia-se claramente dos de- coração solitário” (Ibidem.) e “Ao despertar, estava só
“a cada nota, uma cor, tal qual nas vibrações das luz”. um denominador tão exterior a uma multiplicidade de mais, conferindo-lhes uma ambientação elementar de na triste câmara (...). Sob o reflexo azul bem sonhara
Sem uma intermediação confusa das palavras ou ain- sentidos quanto o das vibrações27. Se quisermos reto- “impetuosa alegria da terra” e equivalente à “primave- Rosita o abandono, eles felizes numa concha de safira,
da uma predominância das “florestas de símbolos” so- mar a acepção indicada pelo dicionário, podemos dizer ra verde”, estação de renascimento das folhas e flores. levados à flor do grande lago”. (Ibidem., 46-7). Em “Ro-
bre o eu-lírico, “o conjunto (dessas semelhanças) é a de maneira sumária que em Baudelaire a relação pre- Construída à semelhança desta “passagem da Flora”, a xo, tristeza”, nos trechos “Tinta tomada à palheta do
sinfonia das paixões”, numa lógica somatória em que dominante é analógica, enquanto em Pompéia ela não narrativa subsequentemente elaborada em dois pará- ocaso e às flores da morte”, (Ibidem., p.47) e “Alegre,
se acrescentam os sentidos uns aos outros não por ne- pode ser outra senão alegórica, isto é, segundo Anto- grafos exemplifica o mesmo sentido de ressurgimento ela. Muita luz no espaço (...). Agora, órfã. As violetas
cessidade e interdependência mútua, a fim de atingir nio Candido, restrita à representação de um conceito por intermédio da salvação de um grupo de náufra- revivem, as melancólicas, desabrochando em suspiros,
um plano terceiro de percepção, mas pela recorrência abstrato “por meio de um signo, uma descrição, uma gos que se perderam em alto-mar. Como elemento de sob as lágrimas da chuva”. (Ibidem.). Em “Vermelho,
de um mesmo valor presente em todos os elementos: pequena sequencia narrativa (...) muito facilmente de- transição, o poema utiliza a imagem pouco concreta guerra”: “Sangue, cólera, vinganças, os hinos marciais,
“Sonoridade, colorido: eis o sentimento”. cifrável, o que lhe retira o poder de encantamento e de “um ramo cor de esperança” avistado pelo grupo, golpes, o incêndio, vermelho o manto dos tiranos e
deixa uma certa frieza na expressão.”28 encerrando-se sem mais por um breve “Salvos!”. La- Marte, o astro dos combates” (Ibidem.) e “Da casinha
Não obstante tal procedimento rudimentar de soma cônico ao extremo, como todos os demais poemas do à beira-mar, olhos em febre, a velha mãe arguia à dis-
– ou sobreposição – de dados sensoriais distintos, o Esta hipótese ganha força, voltando aos dez poemas da conjunto, o texto não deixa espaço para reflexões ou- tância. Lá, mergulhara o vapor que lhe roubava o filho
trecho encerra-se por uma conclusão de todo alheia ao seção “Vibrações”, se observarmos um corte estrutu- tras que não as do mero processo de exposição / con- para a guerra (...); a velha, imóvel, marmorizada na
conjunto totalizante de seres e elementos do universo ral recorrente em duas partes distintas, onde a segun- firmação da ideia inicial, ora valendo-se de imagens co- dor”. (Ibidem.) Em “Branco, paz”: “Arminho imaculado
apresentados. Sem mais, da semelhança entre sons, da tende a exemplificar e legitimar a tese apresentada mo as de “silêncio solene da calmaria” e de “sudário de e virginais capelas, o sagrado leito das mães, o rosto
cores e sentimentos surge uma significação popular das pela primeira: (1) uma ambientação / breve exposição brumas”,referentes ao afogamento, ora valendo-se de calmo dos mortos, os tranquilos fantasmas” (Ibidem.,
cores: “Daí o simbolismo popular das cores”. Termo não teórica inicial e (2) uma materialização narrativa / des- outras como as do “continente salvador” e do “panora- p.48.) e “Irene abandonou-se ao êxtase contemplativo,
previsto nem textual nem logicamente pelos demais, o critiva posterior. Eis o primeiro dos poemas, “Verde, ma verde das florestas”, eferentes ao renascimento já gozando o crepúsculo, como se lhe invadisse o senti-
traço “popular” das cores traz consigo uma oposição esperança”, na íntegra: suscitado29. mento a letargia edênica do anoitecer”. (Ibidem.) Em
frente a outro “elitista”, de todo alheio ao movimento “Negro, morte”: “O contraste da luz é a noite negra”
polifônico da “música das esferas” e aqui inversamen- A impetuosa alegria da terra, à passagem da À imagem e semelhança de “Verde, esperança”, o (Ibidem.) e “Sente-se na epiderme a carícia do calafrio;
te uníssono. Se o homem vibra à semelhança e não à Flora, a primavera verde, compromisso ma- segundo poema da seção “Vibrações”, “Amarelo, envolve-nos um clima glacial; estranha brisa penetra-
correspondência dos perfumes, dos sons e dos vermes, ternal do outono e da opulência. desespero”, reproduz esta mesma estrutura. De um -nos, feita de agulhas de gelo. Em vão flameja o sol a
por que subdividi-lo em um homem / som / verme mais lado, uma ideia, uma tese: “Ouro e sol; ouro, o desespero pino”. (Ibidem.) Em “Rosa, amor”: “O sorrir das virgens,
popular e outro mais elitizado? Algum elemento falta à Náufragos no mar. da cobiça, sol, o desespero da contemplação: a cor dos e o adorável pudor, e a primeira luz da manhã” (Ibidem.,
68 interpretação. ideais perdidos” (p. 46); de outro, uma confirmação p.48-9) e “Esta criança pensativa. Acompanha com a 69
vista o revoar dos pombos; escuta o misterioso segre- Comparativamente, tal procedimento jamais poderia baudelaireana a uma fórmula simplória de “semelhan- HOBSBAWM, Eric J. A era do capital 1848-1875. 13 ed. São
do dos casais pousados”. (Ibidem., p.49) Em “Incolor, ser aplicado ao caso dos Pequenos poemas em prosa, ça” entre seres e coisas. Por isso, se segundo Afrânio Paulo: Paz e Terra, 2007.
tédio” (título, lembramos, por nós conferido): “Há tam- por Baudelaire, uma vez que, intimamente conectadas Coutinho, “ao adotar a forma do poema em prosa,
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil monárquico: do Im-
bém nas almas o incolor diáfano do vidro” (Ibidem.) e não com seus poemas anteriores ou posteriores, mas Pompéia situa-se destarte como um inovador”32, sua
pério à República. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. t. 2.
“Dinheiro, amor, honraria, sucesso, nada me falta. O com seu próprio horizonte interno de significados, ca- forma teria de esperar ainda alguns anos para que es-
programa das ambições tracei, realizei (...). Nada me da uma das unidades compostas permanece irredutível tivesse consolidada no país, principalmente a partir HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Grande dicionário
falta e disto padeço. Todos dizem: aspiração! e eu não a uma simplificação gráfica. Seu horizonte não é como das obras de Cruz e Souza.33 34 Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
aspiro”. (Ibidem.) Em “Transparente, escravidão” (título em Pompéia, duplo e estanque; é antes contraditório
IVO, Ledo. O universo poético de Raul Pompéia. Rio de Janei-
igualmente por nós conferido): “Há, enfim, a coloração e paradoxal. Ora, como já assinalamos, o eixo de signi-
ro: Livraria São José, 1963.
indistinta dos sentimentos, nas almas deformadas” ficações do poema em prosa não é gratuito e “corres-
(Ibidem.) e “Veio de longe, muito longe, mísero! Teve ponde” ao contexto específico das potências europeias Referências bibliográficas PIRES, Antonio Donizete. “Florações baudelairianas”. In Let-
outrora um céu, uma pátria, muitas afeições, a cabana das décadas de 1850 e 1860. Ao ser transplantado para tres Françaises. Araraquara: n. 8, 2007.
da aldeia. Agora só tem o ódio (...). Ele odeia os homens o contexto brasileiro das décadas de 1880 e 189030 em BAUDELAIRE, Charles. Les fleurs du mal. 2 ed. Paris: Galli-
POMPÉIA, Raul. Obras: Canções sem metro. Rio de Janeiro:
brancos”. (Ibidem.) que não há uma mediação universal do mercado nas re- mard, 1996.
Civilização Brasileira; OLAC; FENAME, 1982.
lações sociais e muito menos trabalho assalariado que
____________________. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Toda esta repetição cansativa e previsível de um mes- diminuísse a posição do poeta para a de um servidor QUEIRÓS, Venceslau de. “Literatura de hoje”. In: POMPÉIA,
Aguilar, 1995.
mo modelo, cujo levantamento chega inclusive a ad- subalterno31, o poema em prosa perde seu terceiro eixo Raul. Obras: Canções sem metro. Rio de Janeiro: Civilização
quirir seu mesmo caráter exaustivo, rompe com a au- de apoio, a saber, aquele ligado à superação dos con- BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do Brasileira; OLAC; FENAME, 1982.
tonomia do poema em prosa e faz com que o conjunto trários pelo (con)texto, permanecendo uma forma sem capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
RAMOS, Maria Luiza. Psicologia e estética de Raul Pompéia.
dos poemas da seção se ordene de forma linear e inter- conteúdo ou um conteúdo sem forma. Pelo lado da for-
BERNARD, Suzanne. Le poème en prose: de Baudelaire jusqu’a Tese apresentada a concurso para a cátedra de Literatura
dependente; não obstante, de um ponto de vista mais ma, não há tensão significativa entre elementos prosai-
nos jours. Paris: Nizet, 1959. Brasileira da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas
particular, o trecho inicial de cada um destes poemas cos versus poéticos em quaisquer dos dez poemas das
Gerais. Belo Horizonte, 1957.
preconiza-lhes uma obediência servil ao preceito reite- “Vibrações”; pelo lado do conteúdo, o único que ofe- CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 4 ed. São
rado de “Vibrar, viver”, fazendo de seu desenvolvimen- rece um tema problematicamente nacional – “Transpa- Paulo: Humanitas, 2004. RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. São Paulo:
to posterior uma mera exemplificação / confirmação do rente, escravidão” – reduz-se à mera repetição de uma EDUSP, 1997.
COSTA LIMA, Luiz. Mimesis e modernidade: formas das som-
mesmo. Desta forma, se o conjunto da primeira seção fórmula tornada vazia pela repetição.
bras. Rio de Janeiro: Graal, 1980. SANDRAS, Michel. Lire le poème en prose. Paris: Dunod,
das Canções sem metro corresponde a um único e uní-
1995.
voco bloco de poemas, podemos reduzir a estrutura de Assim, não por uma questão contextual, mas sim pela COUTINHO, Afrânio. “Introdução”. In: POMPÉIA, Raul.
cada um deles a uma formalização gráfica em dois blo- impossibilidade de uma outra (con)textual, exterior Obras: Canções sem metro. Rio de Janeiro: Civilização Brasi- SARTRE, Jean-Paul. Baudelaire. Paris: Gallimard, 1947.
cos desiguais, como a representada a seguir: àquela, Canções sem metro tem seu valor radicalmen- leira; OLAC; FENAME, 1982.
TODOROV, Tzvetan. “Em torno da poesia”. In: Os gêneros do
te diminuído, o que se agrava se notarmos que os
CRUZ E SOUZA, João da. Obra completa. Rio de Janeiro: José discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
defeitos da seção “Vibrações” preveem outros seme-
Aguilar, 1961.
lhantes ao longo de toda a obra. No entanto, encer-
Notas
ramos por aqui nossa discussão, dando por resposta GAUTIER, Théophile. Baudelaire. São Paulo: Boitempo,
à nossa questão inicial, qual seja, a de que a absorção 2001.
“La Nature est um temple où de vivants piliers / Laissent parfois sortir de confuses
mais das “Correspondances” que dos Pequenos poemas
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de As- paroles; / L’homme y passe à travers des forêts de symboles / Qui l’observant avec
em prosa pelo livro de Pompéia confirmam sua incapa-
sis: o romance machadiano e o público de literatura no século des regards familiers. / Comme des longs échos qui de loin se confondent / Dans
cidade de articular, pelos motivos expostos, aos ele-
XIX. São Paulo: Nankin; EDUSP, 2004. une ténébreuse et profonde unité, / Vaste comme la nuit e comme la clarté, / Les
mentos poéticos (correspondências) outros prosaicos
parfums, les couleurs et les sons se repondant.” (BAUDELAIRE, 1996, p. 40).
70 (descrições, narrativas etc.), reduzindo toda a fórmula 71
2 Marcel Raymond, De Baudelaiere ao surealismo, p.21. 17 Ibidem. opinião, esta é uma das possíveis razões para a divergência da crítica em aceitar
ou recusar o valor literário das Canções sem metro, uma vez que sua própria
3 Cf. Tzvetan Todorov, “Em torno da poesia”. 18 Ibidem., p. 282.
estrutura, através de tamanhas alterações, permite uma oscilação equivalente
4 Cf. Antonio Donizete Pires, “Florações baudelairianas”, p. 25. 19 Ibidem. por parte de sua recepção.

5 Cf. Luiz Costa Lima, Mimesis e modernidade: formas das sombras, p. 112- 20 Ibidem. 30 Cf. Sérgio Buarque de Hollanda, O Brasil monárquico: do Império à
115. República.
21 Walter Benjamin, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, p.
6 Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, p. 853. 132, (grifo nosso). 31 Essa constatação, não obstante, não pressupõe uma condição elevada
do artista, tendo em vista a relativa ausência de público leitor no Brasil.
7 “Il est des parfums frais comme des chairs d’enfants, / Doux comme 22 “ne peut exister comme poème qu’à condition de ramener au ‘présent
Segundo Hélio Seixas Guimarães, enquanto em 1878 a França e a Inglaterra
des hautbois, verts comme des prairies, / -Et d’autres, corrompus, riches et éternel’ de l’art les durées les plus longues, de coaguler um devenir mouvant
contavam com 77% e 70%, respectivamente, de população alfabetizada,
triomphants, / Ayant l’expansion des choses infinies, / Comme l’ambre, le en formes intemporelles” (BERNARD, 1959, p. 442) (tradução nossa).
havia em 1872 apenas 15,7% de alfabetizados no Brasil; 18,6% se considerados
musc, le benjoin et l’encens, / Qui chantent les transports de l’esprit et des
23 Raul Pompéia, Obras: Canções sem metro, p. 45. Daqui em diante apenas os homens livres. Obviamente, dentre estes últimos, menos ainda
sens.” (BAUDELAIRE, 1996, p. 40).
usaremos apenas o número da página entre parênteses após as citações dessa eram os que efetivamente liam obras literárias. (cf. GUIMARÃES, 2004, p. 62
8 Para uma abordagem biográfica do mesmo problema ver Jean-Paul obra. et seq).
Sartre, Baudelaire, p. 90 et seq.
24 Apesar da clara semelhança entre os títulos destes dez poemas em 32 Afrânio Coutinho, “Introdução”, p. 21.
9 “O que tornou essa expansão tão satisfatória para os homens de prosa e o soneto das “Vogais”, de Arthur Rimbaud, deixaremos de lado estas
33 Isto se considerarmos a data da publicação de Canções sem metro, com
negócios famintos de lucros foi a combinação de capital barato e um rápido possíveis e prováveis influências, atendo-nos à proposta inicial de estudo dos
mencionada em nota anterior, o ano de 1883 e não aquela de sua publicação
aumento nos preços. Depressões (do tipo de ciclo de comércio) sempre pontos de contato apenas entre Baudelaire e Pompéia.
em volume , em1900, uma vez que a primeira edição do livro de poemas em
significaram preços baixos, em todos os acontecimentos do século XIX. As
25 Antonio Houaiss; Mauro de Salles Villar, Grande dicionário Houaiss da prosa Missal é de 1893. Caso contrário, as Canções sem metro representariam,
expansões eram inflacionárias. Mesmo assim, o aumento de cerca de um
língua portuguesa, p. 846. formalmente, um retrocesso. (cf. CRUZ E SOUZA, 1961).
terço dos níveis de preços ingleses entre o período de 1848 e 1850 e o ano
de 1857 foi notavelmente grande” (HOBSBAWM, 2007, p. 55). É curioso 26 Ibidem., p. 2541. 34 João Roberto Faria (org.), Machado de Assis do teatro, p.50.
notarmos que, particularmente, este mesmo ano de 1857 foi o de publicação
27 Cf. Maria Luiza Ramos. Psicologia e estética de Raul Pompéia. p. 73. Segundo
d’As flores do mal.
a autora, “Raul Pompéia dispensou a esses pequenos textos um zelo carinhoso,
10 Théophile Gautier, Baudelaire, p. 46. refazendo-os frequentemente, ilustrando-os com seus próprios desenhos. Mas,
não obstante todo esse cuidado, as Canções sem metro são um livro medíocre.
11 Tzvetan Todorov, op. cit., p. 114.
Em primeiro lugar, não se trata propriamente de poesia. Enquanto Baudelaire
12 “une definition du poème en prose ne peut donc être établie uniquement trabalhou principalmente com imagens, Pompéia se preocupou demais com
à partir des critères formels relatives aux énoncés poétiques. Il faut admettre ideias: eis a grande distância que os separa” (RAMOS, 1957, p.73). Para uma
une tout autre conception de ce qui mérite être appelé poème. Ce n’est pas le posição diversa e basicamente e elogiosa ao sucesso da obra de Pompéia na
moindre interet de cette écriture poétique que d’interroger systematiquement reprodução do poema em prosa de Baudelaire, ver Lêdo Ivo, O universo poético de
nos representations de la poésie.” (SANDRAS, 1995, p. 34) (tradução nossa). Raul Pompéia e Venceslau de Queirós, “Literatura de hoje”.

13 Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa, p. 281. 28 Antonio Candido. O estudo analítico do poema. p. 125.

14 Ibidem. 29 Na versão original, publicada em 01 de agosto de1883, no Jornal do


Comércio, inexiste este primeiro parágrafo introdutório de teor conceitual
15 Ibidem.
e há um total de 15 parágrafos relativos ao salvamento dos náufragos, o que
16 Ibidem. favorece em muito a atmosfera do poema em prosa (intitulado “O ramo da
72 73
esperança”), se comparado à versão definitiva e póstuma de 1900. Em nossa
FUTILIDADES
LEVÍSSIMAS

75
A ideia

Wagner Lacerda* 03:12

Nossa, já é isso tudo... Acho que vou levantar


para fazer um café... Para que fui ter a droga da ideia.
Saco.

03:26

Ah não. Outra vez esse filme... Off Preciso


consertar essa cafeteira. Será que vai dar certo? Toma-
ra que isso dê em alguma coisa. Quem sabe o Guiness?
Quem é que tinha esse troço mesmo? Acho que era o
tio Paulo... Eu me lembro de um cara que comeu ses-
senta e dois amendoins em um minuto – mais de um
por segundo! Ou quase isso... Acho que era isso...
* Wagner Lacerda é doutorando em Estudos Literários pela Universidade
Federal de Juiz de Fora e professor substituto na mesma instituição. Contato: O dia seguinte
76 77
lacerdasl@gmail.com.
A atendente não tinha um ar muito simpático. começava a acontecer algo macabro. Três da manhã Sua consulta localizou aproximadamente On
era a hora do demônio... Por quê? Sei lá. 62.200.00 resultados para livros.
- Bom dia! Sua consulta localizou aproximadamente 48 re-
Ainda o dia seguinte ... sultados para livros em Lietchenstein.
- Bom dia.
- Mas, é contra as regras! Off ...
- Como é que eu faço para pegar livro?
- Que regras? Qualquer dia... Antes ou depois... Tem um artista chamado Roy Lietchenstein...
- Você tem ficha? Parece que é desenhista... Não escreveu nada...
- Você... Aguarde um minuto. Screen Test: Salvador Dali by Andy Warhol (1966)
- Não. Precisa de quê para fazer uma? Off
(Muito mais de um minuto...) 05:33
- RG, CPF e comprovante de residência. ...
- É alguma brincadeira? Como demora para amanhecer no inverno.
... A padaria abriu. Que neblinão...
- Seria se eu te pedisse um vidro de xarope. On
(CPF para pegar livro?) Um pouco depois
04:34 Rambo?!?!
- Aguarde um minuto. Já sei! Agora eu tenho certeza! VOU LER TU-
É. Eu sei. Vai parecer um tanto estranho. Ah! ... DO QUE EXISTE! E qual vai ser a regra? NENHUMA!
... Mas é uma ideia e tanto! Duvido que alguém já tenha O critério é não ter critério. Entrar em sebo, bibliote-
pensado nisso. Será que o Jô vai querer me entrevistar? Cadê o controle? ca, livraria... e pedir tudo... Compro um caderno e vou
(Bem mais de um minuto...) anotando. Anoto os nomes da obra e do autor... Anoto
On ... onde e quando eu consegui o livro... Assim não vai dar
- Pronto. Qual livro você quer? confusão. Começo hoje sem falta.
... Aleluia! Aleluia!...
- Todos. 06:49
Australiana adota uma lhama... Morto conse- Off
- Como assim todos? gue uma vaga no parlamento búlgaro... Eu tenho de conseguir os endereços de todos os sebos,
... livrarias e bibliotecas da cidade... Entro lá e peço TUDO!
- Todos os que você tiver aí, claro! Off Como eu vou fazer com o que eu não achar por aqui?
Acabou o café... Já sei! Seguindo uma linha
03:55 ... cronológica... Mas, será que revistas e jornais contam? 07:13
Quando editaram a primeira revista? E o primeiro jornal?
Acho que cochilei... Cadê o celular? Não adianta. Não consigo mais parar de pen- Vou descansar um pouco... Depois do almoço,
sar nisso. Vai amanhecer logo... Como eu vou começar? ... eu penso melhor em tudo... Acho que vou lá na padaria
... Tem de ter um critério. Qual? Por ano? Por gênero? Por tomar outro café... Saco... Que frio...
autor? Por país? Deixa disso... Vai complicar demais. Só vai va-
Eu me lembro de um filme que tinha uma história muito ler livro... Como eu vou descobrir o que publicaram na Off
78 louca. Sempre que o relógio mostrava três da manhã On. Polônia? E em Lietchenstein? 79
O debate que se segue, sobre o conto “A ideia”, de Carolina Messias: Realmente são muito raras as opor- “ligado” de sua própria voz, tornando-se mais uma voz Nesse sentido, quando você diz que esse mecanismo
Wagner Lacerda, foi realizado por e-mail no período de tunidades de realizar exercícios de crítica como este nesse universo de imprecisão da madrugada. Comecei do on/off está ligado a uma ideia geral de “máquina”,
18 a 02 de maio de 2011, pelas alunas de pós-graduação em nossa trajetória universitária, sobretudo, por se tra- a estabelecer essa relação entre homem e máquina a poderíamos pensar que, ao pé da letra, a internet já não
Laura Penna Alves, Carolina Messias e Ana Amélia Co- tar da discussão de um conto contemporâneo – o que partir das referências ao filme de Andy Warhol e ao tra- pode ser pensada a partir dessa metáfora da máquina
elho*. oferece a este convite ao diálogo um tom de desafio e balho de Roy Lichtenstein, artistas do Pop art que pre- tal como antigamente, pois as pessoas interagem e
surpresa. tendiam denunciar em seus trabalhos a massificação todos ali são potencialmente criadores de um espaço.
Laura Penna Alves: O conto traz de modo interessante da cultura capitalista. Caberia essa aproximação? Nes- Afinal, o que seria essa ideia se não a possibilidade-
marcações de tempo como a sinalização das horas (dis- A marcação do tempo, como foi destacado pela Laura, se sentido, a ideia de junção de vozes que acabariam -impossível de realizar-se google? É engraçado né? No
postas quase como um cabeçalho de diário), as reticên- é um recurso interessante e que poderia ser ainda mais “desligadas” (off ) é bastante interessante, mas perde poema “Tabacaria” Álvaro de Campos dizia: “Gênio?
cias e o dispositivo on/off. As horas aparecem de modo explorado no conto “A ideia”, justamente para deixar a força, acredito, por não apresentar nenhuma ligação Neste momento. / Cem mil cérebros se concebem em so-
a respeitar a verossimilhança temporal e estão na or- de ser um mero recurso gráfico e passar a oferecer uma com a “ideia” que pretende sustentar o conto. nho gênios como eu”1 . Será que o que temos agora são
dem cronológica indicando que o que se passa é de ma- carga significativa no alinhavamento temático-formal “sonhos Google”? Não é esse o caso deste conto, que
drugada. Na verdade, elas funcionam mais como um do conto. A precisão das horas indicadas por esse re- Aliás, num primeiro momento, a “ideia” anun- tem o mérito de tentar problematizar a angústia da in-
recurso gráfico, dado que eles não trazem um sentido, lógio digital que fica na cabeceira de cada pensamento ciada como centro do conto, acaba ficando à margem, finitude de informações e a ausência de critérios.
além deste evidente, para a narrativa. As reticências, do narrador-personagem é rompida em quatro mo- devido à falta de conexão com os demais elementos
contudo, são um recurso cujo emprego é mais inte- mentos, na estrutura do conto, por expressões inde- (tempo, espaço, vozes presentes na narrativa). O que Contudo, apesar de trazer essa tensão à tona, a lingua-
ressante porque indicam um tempo fora desse tempo terminadas: “O dia seguinte”; “Ainda o dia seguinte”; poderia ser uma provocação (a empreitada de ler tudo gem empregada não é eficaz do ponto de vista perfor-
cronológico e que marca uma temporalidade a ser cria- “Qualquer dia... Antes ou depois”; e “Um pouco de- o que existe sem estabelecer um critério) deixa de sur- mativo. Assim, o conto começa: “3:12 Nossa, já isso
da pelo que seriam intervalos de uma figuração de um pois”. Expressões estas que vão de encontro ao tempo preender o leitor, vocês não acham? tudo...”. Essa primeira sentença é emblemática do que
processo de escrita e do fluxo de pensamento. Por fim, cronológico vivido pelo personagem e indicam uma poderíamos chamar de uma oralidade, tal como enten-
o recurso on/off talvez seja mais propriamente criativo. mudança de plano temporal dúbia, pois não sabemos LPA: Puxa Carol, legal você ter falado dessa outra mar- deria Meschonnic, que se preocupa em soar o menos
Ele anuncia a mudança de vozes enunciativas: fluxo de se trata-se de um flashforward, isto é, a apresentação cação de tempo (“o dia seguinte”, “ainda o dia seguin- distinta possível daquele ritmo já compartilhado por
pensamento do narrador e programas de televisão. Até de um momento futuro ao que o personagem está vi- te” etc.), porque também tinha pensado nela como um muitos falantes. Assim, nesse caso, temos esse tempo
aí isso seria um emprego evidente se não tivéssemos vendo, ou da figuração do fluxo de pensamento ou até elemento desestabilizador de um verossímil eviden- da interjeição “Nossa!”, seguida de uma constatação.
um último off que se refere tanto a televisão como ao de um sonho do personagem. Esse jogo entre tempo te no que toca à percepção tanto do tempo como do Ora, este narrador-personagem segue sucessivamente
narrador. Ambos desligam e o conto acaba. Ora, essa vivido e tempo experimentado também é corroborado espaço. Contudo, se nos perdemos no diálogo com a pensando em lugares comuns e empregando tempos
junção de vozes que acontece no final do conto não tem pelo uso das reticências e do on/off, como você apon- atendente, introduzido após “O dia seguinte”, logo de- rítmicos já automatizados. Assim, temos a represen-
força, contudo, para ressignificar o conto inteiro. Isso tou, Laura. Este último recurso, que marca a mudança pois voltamos ao verossímil banal, presente num clichê tação de um fluxo de pensamento que segue de modo
porque, ao longo deste essa divisão é feita de modo de tempo e de voz do conto, não parece estar ligado muito querido dos chamados “filmes para a TV”: “Acho comportado, sem nada que saia do que seria de “bom
previsível e a “grande ideia” não parece ter um sentido apenas a programas de televisão e sim à presença de que cochilei.... Cadê o celular”. Bom, sobre o on e o off tom ser pensado”. A repetição desses tempos e dos as-
enriquecido pelo que poderia ter se transformado num uma máquina, no sentido mais genérico... A dúvida não se referirem ao programa de televisão é verdade. suntos, apesar do surgimento da grande ideia, acaba
homem-tv ou numa tv-homem... Não sei... acho que sobre a que se refere o on/off surgiu por conta das se- O caso é que eu redigi aquele parágrafo em cima das por não permitir a presença de sentidos mais amplos
esse é um dos problemas do conto, o que vocês acham? guintes frases: “Sua consulta localizou aproximadamen- minhas anotações e acabei usando o termo televisão e propriamente críticos. Nesse sentido, é interessante
te 62.200.00 resultados para livros” e “Sua consulta lo- como um termo genérico. Peço desculpas adiantadas pensar no que você falou da pop Art porque daria para
calizou aproximadamente 48 resultados para livros em ao autor que me lerá. Realmente, além do on temos o fazer um paralelo nesse sentido e pensar a eficácia des-
* Ana Amelia Coelho é mestranda do Programa de Estudos Linguísticos, Lietchenstein (sic)”, que parecem mais próximas de um recurso ao itálico para marcar sentenças que pratica- sa linguagem, na maioria das vezes reprodutiva, para
Literários e Tradutológicos do Departamento de Letras Modernas (DLM) da site (ou ferramenta) de busca do que de um programa mente reproduzem o ritmo e os conteúdos que circu- fazer a crítica de uma cultura massificada.
USP. Contato: anameliacoelho@gmai.com. Carolina Messias é mestranda do de televisão. A partir dessa dúvida, comecei a pensar lam não só na televisão, mas na internet, no rádio, nos
Programa de Língua e Literatura Francesa do DLM-USP. Contato: camessias@ quem acionaria esse “botão” na narrativa, pois, mui- jornais. Assim, o conto talvez seja bem representativo de um
80 yahoo.com.br. Laura Pena Alves é editora da revista Opiniães. tas vezes, o próprio narrador parece ser “desligado” ou momento no qual parece que o tempo é escasso (talvez 81
porque o tempo da solidão o seja) e o espaço, agora para projetos futuros, feitas de pequenos pedaços do algo assim num caderno perdido dos tempos do cole- de tudo que o rodeia se justificasse sua ideia, isto é,
também virtual, traz uma infinitude de possibilidades cotidiano. Sem preparação, sem rodeios, esse conto gial, a mente divagando no meio de uma aula chata, ou se indicasse um motivo legítimo para ler tudo o que
contraditas, de modo radical, por um corpo preso a traz algo muito próximo da voz de quem fala, essa pa- no tédio de uma tarde em que se tem pouca coisa para existe, porém, ele se pergunta: “Será que vai dar cer-
uma cadeira, um apartamento, um trajeto casa-pada- lavra que se dirige a um eu do futuro não muito distan- fazer. to? Tomara que isso dê em alguma coisa. Quem sabe o
ria etc. e um olhar para o mundo totalmente desistorici- te, numa fita cassete que também pode ser regravada Guinness?”. A razão dessa empreitada seria ocupar um
zado e pouco crítico. O interessante da grande ideia do - podemos passar por cima, apagar, regravar; o tempo e Sim, como já foi assinalado por vocês duas, o conto espaço na página dessa enciclopédia de recordes ao la-
conto é isso. Ela é projetada como impossibilidade que o esquecimento também podem destruir esse registro todo não trabalha com propriedade essa grande força do do “cara que comeu sessenta e dois amendoins em
é tornada possível por uma representação pouco crítica efêmero. É uma palavra sem grandes pretensões, que motriz (e podemos aí pensar em todas as máquinas que um minuto”? Parece que o narrador-personagem não
dessa outra relação com o conhecimento que a inter- guarda ideias mirabolantes, capazes de mudar tudo, evocamos: internet, televisão, gravador) para ir mais quer se distanciar, mas se integrar nesse conjunto de
net parece engendrar. Nesse sentido, o argumento do porque o que se busca, já se sabe desde o princípio, é longe nessa impossibilidade, nesse desejo inalcançável vozes que surgem no conto.
conto é rico, mas pelas razões levantadas acima ele não impossível. de ler tudo, conhecer tudo desde o princípio (a primeira
se desenvolve de modo mais profícuo. Disse que o úl- revista, o primeiro jornal). Ainda assim, ele continua in- Neste ponto, não há como não estabelecer uma breve
timo off poderia ter se transformado num homem-TV, Com base nesse impossível a voz se mistura a outras, do e vindo na leitura e nos coloca o desafio de falar cri- relação entre a ideia do narrador-personagem e a em-
pensando melhor, ele já está presente no conto e talvez traz diálogos do dia-a-dia, em que claramente a voz se ticamente, trazer discursos, ocupar os espaços vazios preitada de Flaubert e de seus personagens Bouvard
seja justamente esse o problema. Ele tem um corpo e diferencia das outras, no tom de desafio (não se pode que ele deixa. e Pécuchet (1881). Tanto o criador quanto as criaturas
uma solidão que ligamos a uma representação geral de emprestar todos os livros, a burocracia é grande, um sentiram essa angústia da infinitude de informações,
relação com a TV. Contudo, a internet, que faz parte minuto não dura realmente um minuto). Essa voz quer CM: Mais difícil do que preencher solitariamente os va- saberes e discursos que circulavam na época. O projeto
como tema, está no horizonte, mas não tem ainda um se distanciar de tudo o que a rodeia, quer estar acorda- zios que o conto apresenta para mim, leitora, é ocupar flaubertiano era escrever a “história de dois homenzi-
corpo e uma perspectiva própria. Esse corpo é passivo do enquanto os outros dormem, prefere fechar-se em os espaços das ideias que vocês estão apontando neste nhos que copiam uma espécie de enciclopédia crítica
e mero expectador diante dos catálogos da livraria ou si mesma e em sua genialidade. Talvez aí um peque- debate. Para retomar os pontos levantados nos comen- em farsa”2, como escreve em carta à Madame Roger
da internet, como se assistisse a um programa. Na ver- no problema do conto: ele não se divide com o leitor. tários de vocês, volto ao conto no momento em que o de Genettes em 1872. Para isso, teve que ler muitos li-
dade, ler tudo é quase uma não-ideia, nesse sentido, Quem nunca desejou ler todos os livros, ou se confron- narrador-personagem julga sua ideia como estranha e vros sobre assuntos que desconhecia: química, agricul-
pois não há propriamente a invenção de nada. tou com esse grande abismo entre a nossa capacidade original: “É. Eu sei. Vai parecer um tanto estranho. Ah! tura, história, etc. Por sua vez, os personagens não só
de ler e memorizar e o volume de todo o conhecimento Mas é uma ideia e tanto! Duvido que alguém já tenha copiam os livros, como procuram colocar suas teorias
Ana Amélia Coelho: Entro no debate já vendo questões humano? Como assistir a todos os canais de televisão pensado nisso. Será que o Jô vai querer me entrevistar? em prática, seguindo o mesmo critério do narrador-
bem desenvolvidas por vocês duas e, o que é interes- ao mesmo tempo? Seria possível registrar cada peque- On”. O tom apresentado nesse trecho, marcado pe- -personagem de “A ideia”: “O critério é não ter crité-
sante, bem diversas daquelas que eu tenho em mente. no instante em nossa memória, como se fossem pe- la oralidade das expressões e pelas frases curtas com rio.” Resultado? Flaubert morreu antes de terminar a
O que me pareceu, antes de tudo, fundamental nesse quenos tesouros pessoais? E como se faz para conhecer lugares-comuns, parece mesmo indicar que a ideia não história dos copistas. Maupassant, inclusive, escreveu
escrito, é seu caráter lacunar. Há uma série de espaços as terras mais longínquas, de nomes estranhos? sairá da promessa e será apenas um registro efême- após a morte de Flaubert: “Um livro como este devora
vazios e horas pouco definidas do dia: o espaço em que ro, como a Ana disse, de um desejo de sair desse co- um homem, pois nossas forças são limitadas e nosso
a pessoa que fala espera amanhecer, espera que algo E nisso tudo, como pode o Google abarcar tudo o que tidiano comum. Apesar disso, não sei se essa voz quer esforço não pode ser infinito”.3
aconteça. Ao mesmo tempo, logo nas primeiras linhas conhecemos? Será mesmo que ele consegue fazer isso? se distanciar do mundo em que vive, já que o primeiro
a “ideia” já aconteceu - e o efeito é decepcionante: “a É frente o poder descomunal dos acervos das bibliote- registro do narrador após notar a possibilidade de ter Trago essa referência do século XIX para mostrar o
droga da ideia”, que vai de qualquer forma impulsionar cas, dos resultados dos mecanismos de busca que o tido uma ideia original, é a pergunta se ela despertará o quanto essa questão é, ao mesmo tempo, antiga e
todo o curto conto. texto tenta desafiar, com uma “droga de ideia”. Uma interesse na mídia: “Será que o Jô vai querer me entre- atual. Se o tempo já era escasso, naquela época, para
pequena ideia, em momentos marcados pelo relógio, vistar?”. Não adianta. Ele não consegue sair do lugar- o sucesso dessa ideia de ler tudo que existe, imagine
Como e para quem fala essa voz? A imagem que cons- frente a números que tendem ao infinito. -comum. Sua empreitada causaria o mesmo interesse hoje, com a velocidade de transmissão das informa-
truí na mente foi a de alguém que tem aqueles pequenos no público que a notícia da australiana que adotou uma ções e a forma como experimentamos o tempo. Até
gravadores em mãos, para justamente registrar no ca- Nesse sentido, o conto lembra muito escritos de ado- lhama e do morto que se tornou político? Além disso, por isso, um dos critérios escolhidos pelo narrador-
82 lor do momento ideias passageiras, frágeis promessas lescência; imaginei que eu mesma poderia encontrar acredito que o narrador estaria tentando se distanciar -personagem é a pesquisa somente de livros, cujo 83
texto aparentemente é menos fugaz que o de uma verdade é difícil pra mim pensar o texto a partir disso... a voz aparece - e o que acontece entre um intervalo e espaço de tempo. A gente vai levantando questões que
notícia de jornal ou revista. Hoje a Internet, sobretudo De qualquer forma, concordo que ele tem o mérito de outro? são difíceis e merecem uma análise mais cuidadosa. O
o Google, como vocês lembraram, oferece essa ilusão mobilizar um imaginário coletivo que ele tenta desafiar. último comentário da Laura, inclusive, me fez retomar
de um infinito apreensível, da possibilidade de decifrar Contudo, quando o li o conto, essa imagem do grava- A primeira frase é a constatação da passagem rápida o texto “Algumas questões sobre o conto”, do Cor-
o enigma da totalidade do conhecimento. Tanto que o dor não me veio à cabeça. Na verdade a primeira coisa do tempo, sobre a qual não se tem controle: “já é tudo tázar... gostaria de ler com mais calma esse texto para
narrador parece consultar esse site de busca para res- que pensei foi: “Nossa, até o que chamamos de fluxo isso...” - o que o fez perder a noção das horas, justa- depois retomar nossa discussão sobre o conto. Já que
ponder às questões que são impostas por sua grande de consciência virou um gênero padronizado!” Esses mente se o que temos em seguida são momentos pon- vamos fazer um intervalo, me senti à vontade para su-
ideia: “(...) Como eu vou começar? Tem de ter um cri- procedimentos que trazem o ambiente doméstico e a tuados pelo relógio? Terá sido justamente “a ideia”? No gerir alguns pontos que podem ser interessantes para
tério. Qual? Por ano? Por gênero? Por autor? Por país? / intercalação de pensamentos banais com uma ou outra meio do texto, um corte no tempo para qualquer outra nossa discussão:
on. / Sua consulta localizou aproximadamente 62.200.00 “sacada” é realmente muito comum. No caso do con- direção, “qualquer dia”, “antes ou depois”. O texto ter-
resultados para livros.” e “(...) Como eu vou descobrir to isso não seria um problema porque o narrador, te- mina também sem muitas grandes perspectivas, com - Por que a escolha do gênero conto para tratar dessa
o que publicaram na Polônia? E em Lietchenstein? / oricamente poderia garantir um ponto de vista crítico mais pequenas reclamações: de novo “saco”, “que frio”. temática?
On / Sua consulta localizou aproximadamente 48 resulta- nos termos em que o Schwarz ou Pasta falam de Brás
dos para livros em Lietchenstein.” O número de resulta- Cubas. Inclusive, a grande ideia me lembrou o emplas- No que diz respeito à marcação do tempo, que figura - Por que a brevidade do conto (me) incomoda?
dos diminui, mas não o problema do narrador-persona- to Brás Cubas. Contudo, o efeito da ironia ficou pouco esse recurso teria no andamento da leitura? Por isso a
gem, que descobre um novo dado de sua busca a partir eficaz. Então somos avisado de que essa droga de ideia mim me pareceu mais que essa marcação seria da or- - Que detalhes o autor poderia trabalhar mais a fim de
da palavra Lichtenstein: “Tem um artista chamado Roy é anunciada em uma linguagem que realmente soa dem de uma máquina, daí a imagem que me fiz de um que os elementos tenham maior carga significativa e
Lietchenstein (sic)... Parece que é desenhista... Não es- adolescente: “Pra que fui ter a droga de ideia. Saco.”. gravador, que, admito, não encontra mais elementos ofereçam maior carga significativa ao conto.
creveu nada...” Narrar o conto disso que poderia ser um ponto de vista onde se apoiar no texto.
seria interessante se tivessem mais elementos auto- - Este é um conto significativo? Refletir sobre esta afir-
Esse novo elemento parece apontar para a angústia -críticos não acha? Assim, é possível assinalar, como a Laura já comentou, mação de Júlio Cortázar retirada do texto “Alguns as-
da relação que passamos a estabelecer com um co- o uso pouco crítico de recursos narrativos, sem que se pectos do conto” (1974):
nhecimento em rede, presente num espaço virtual em Sobre o que a Carol falou do adiamento da ideia para aproveite a sua potencialidade. A ideia é frustrada logo
que os discursos interagem livremente. É interessante depois do almoço, realmente, a sensação que temos de início, ou melhor, é sempre frustrada, nesse eterno Um conto é significativo quando quebra seus
pensar na proposta de ler tudo que existe como uma é de “eterno retorno”, de que aquilo é um eterno pre- presente. próprios limites com essa explosão de energia
não-ideia, como a Laura levantou, tanto por não ha- sente. Nesse sentido, essa talvez fosse uma diferença espiritual que ilumina bruscamente algo que
ver solução possível ou invenção no que o narrador se importante de nosso tempo em relação ao século XIX. Essa voz, reclamona em tom adolescente, busca dis- vai muito além da pequena e às vezes miserá-
propõe, como no adiamento da reflexão da ideia que o Lá vimos o surgimento de uma cultura enciclopédica tanciar-se ou integrar-se a outras? Tanto uma coisa vel história que conta (...) o tempo e o espaço
narrador deixa para depois do almoço. que alimentava o sonho fáustico de conhecimento total como outra, sob pontos de vista distintos. Concordo do conto têm de estar como que condensados,
do mundo. Hoje, parece não haver mais interesse pela com você, Carol, quando ele quer integrar-se à lista submetidos a uma alta pressão espiritual e for-
Acho que deixei várias pontas soltas neste comentá- “máquina do mundo” e o importante não é a produção de outros feitos extraordinários ou insólitos, como os mal para provocar essa “abertura”4 .
rio, mas não quero estendê-lo demais. Preciso de um ou o conhecimento de algo, mas o que poderíamos elencados no Guinness. Ao mesmo em todo feito desse
pouco mais de tempo para processar tudo o que vocês chamar de “experiência espetacular”. Qual a diferença tipo deve funcionar uma vontade de diferenciar-se de CM: Ana, concordo com seu comentário sobre a ima-
discutiram. entre comer muitos amendoins e ler muitos livros? Ne- uma grande massa de acontecimentos que não rendem gem da lacuna no texto. Na verdade, lendo seu co-
nhuma porque a finalidade é a mesma, ser espetáculo. nota nos jornais, de pessoas que não seriam convidadas mentário de ontem, entendi que o que você apontava
LPA: Ana, essa ideia de vazios a serem preenchidos do É legal o conto nos permitir pensar isso. para um programa de entrevistas. como “caráter lacunar” estaria ligado não apenas aos
Iser não seria algo mais relativo a fenomenologia da lei- vazios do texto, mas à estrutura fragmentária, que
tura? Digo isso porque, nesse sentido, toda escrita é la- AAC: Quando falei em escrita lacunar, não pensei na te- CM: Estava bolando ideias para o meu próximo comen- subverte o esquema do conto tradicional (no qual a
cunar e o preenchimento desses vazios é limitado pelo oria de Iser, mas quis trazer mesmo a imagem de lacuna tário (não para ler todos os livros que existem, rs), mas ação se desenrola até o desfecho para dar lugar à reso-
84 que, se não me engano, o Iser chamou de esquema. Na que o texto constrói. Temos horários definidos em que realmente é difícil escrever algo consistente num curto lução ou à crise). Dialogando com as formas modernas 85
do conto, o narrador-personagem de “A ideia” procu- a extensão do conto e as cargas significativas que fa- de um verossímil que respeita o decoro no que toca o anonimato ou ironize banalidade do pensamento (o
ra construir no leitor a sensação de impossibilidade e la Carol) que poderiam intervir mais pontualmente no ritmo e o modo como ele mobiliza o nosso imaginário que seria um elemento auto-crítico). Enfim, poderia
de banalidade de sua tentativa de “inovar”: tanto pela que seria um processo de escrita futuro deste conto, independente do qual simpático somos ao tema. haver aqui recursos de todo tipo que enriquecessem e
questão do tempo, que já discutimos, como pelas re- como se fosse um “impensado”, algo que criamos a complexificassem o sentido desse desejo.
ferências a discursos de outras mídias, pelo uso dos partir dele e em nome do que nele vemos como poten- É desta forma que, por exemplo, pensar a extensão
botões on/off e pela repetição. Nesse sentido, li esse cialidade. Nesse sentido, quando falei em elementos do conto é realmente interessante. Compartilho, CM: Tenho pensado muito em alguns elementos que
“fluxo de pensamento padronizado”, destacado no auto-críticos não falei em relação ao gênero, mas ao aliás, um pensamento absurdo. Pensei que o escritor tornam um conto significativo, os quais estamos tocan-
último comentário da Laura, como mais um recurso próprio ponto de vista narrativo. Em Memórias Póstu- poderia ter determinado antes o tamanho do conto e do aqui e ali em nossa discussão: significação, intensi-
que pretende dialogar com essas formas modernas: mas de Brás Cubas temos certa distância entre o nome só depois disso o teria escrito tendo em mente esse dade (tensão) e brevidade. Nos últimos dias, retomei
a repetição de lugares-comuns, frases e lembranças Brás Cubas que narra e o nome Brás Cubas que é narra- limite. Este completo absurdo me fez lembrar que os o texto “Alguns aspectos do conto”, de Júlio Cortázar
que poderiam ser de qualquer insone na madrugada. do. A ironia também é auto-irônica. No caso do conto contos curtos estão em voga e, há algum tempo atrás, (1974), para pensar nessas questões, pois ele apresenta
Assim, não consegui ouvir “essa voz adolescente”, parece que há uma junção dos nomes de modo que o lançaram até o mini-conto por mensagem de celular. uma situação muito semelhante à nossa: alguém que
que vocês comentaram,  no conto, pois não identifi- “nome narrado” (aqui ausente no sentido literal) se leva Ora, e se estivéssemos todos, não só os especialista se propõe a trocar ideias a respeito do conto (mesmo
quei nenhuma expressão característica da linguagem a sério, pois séria seria a “suposta fidelidade” na figura- da universidade, sob uma espécie de “tabu da exten- que nós estejamos tratando de um conto específico,
adolescente. Ao meu ver,  “droga” e “que saco” são ção de um fluxo de pensamento “comum”, “mediano”, são do objeto”?. Então, mesmo quando pegamos um do ponto de vista crítico e acadêmico, e Cortázar do
expressões bastante neutras em relação à faixa etária “padrão”. Isso seria outro elemento que sufocaria os conto como esse, que claramente ambiciona mobili- gênero conto e da forma como escreve, sob o olhar do
e poderiam ser exclamadas por qualquer “reclamão”. elementos críticos que vimos no conto. Nesse sentido, zar âmbitos complexos do imaginário comum, vemos crítico e do escritor). Uma das afirmações presentes
não teria nada a propor de concreto para definir esses que, tirando uma tímida tentativa, está bem amarra- nesse texto insiste em instigar minhas ideias quando
Achei interessante a relação entre a ideia de ler todos elementos autocríticos, até mesmo porque eles só exis- do numa narrativa breve que teria de ser muito mais releio o conto “A ideia” e, agora, quando leio o último
os livros e a do emplastro de Brás Cubas, pois ambas tem a partir de um contexto textual constituído; o má- densa, com “maior carga significativa” como disse a comentário da Laura. Nesse sentido, entendi o que vo-
não podem se concretizar. Talvez a primeira não tenha ximo que poderia fazer, e aqui me esforcei para tal, é Carol, para ter o efeito pretendido. Vamos a um exem- cê apontou como elementos autocríticos e concordo
a força e a ironia da segunda por não apresentar uma sugerir reflexões e experimentos. plo concreto de algo que poderia aumentar essa carga com os experimentos sugeridos por você ao autor: de
função, mesmo que absurda, como a de criar algo que e que toca à verossimilhança pretendida. Na passa- fato, seria interessante exercitar outras temporalida-
cure a melancolia humana. Por esse motivo, a ideia do Nesse sentido, achei muito legal as sugestões de re- gem “Será que o Jô vai querer me entrevistar?” temos des frásicas e textuais que “explodissem” os limites do
conto se torna vazia, sem intensidade. flexão da Carol. Isso porque a discussão estava indo o que apontaria como um “verossímil evidente”. Com argumento do conto. Paralelamente a isso, penso que
pra um lado que era interessante, mas talvez não fos- “evidente” queremos dizer que o problema não é o alguns elementos que se apresentam quase como aces-
Laura, como seriam esses “elementos autocríticos” que se muito útil para o autor. Aliás, estou meio arrepen- narrador pensar que quer ir no Jô, mas que o modo sórios, os detalhes, deveriam ser “costurados” no con-
você citou? Os recursos formais utilizados no conto, dida de ter falado que o fluxo de consciência era pa- como faz isso é problemático. Vejamos que com isso to de forma a produzir uma rede tensional, por exem-
mesmo que incipientes, não podem ser considerados dronizado. Na verdade, não poderia falar em padrão a preocupação era criar um efeito de mediania quase plo, o que a Laura falou sobre o pensamento banal de
críticos em relação ao gênero conto? levianamente, sem de fato investigá-lo... De qualquer estatístico, ainda que revele, agora no detalhe, mais ser entrevistado pelo Jô, ou a indicação das horas que
forma, quis dizer que o fluxo de consciência, tal como um momento de sua “constrangedora fausticidade”, aparecem nos relógios que marcam o tempo da narra-
LPA: É interessante como cada uma, no final das con- está neste conto, era um contraponto dessas formas se poderíamos dizer assim.. Contudo, querer ir no Jô tiva, dos pensamentos. Esse horário não poderia estar
tas, entendeu o termo “adolescente” de um jeito dife- modernas de narrar. Na verdade, elas justamente não não é só uma ocorrência, mas uma meta, faz parte ligado à “hora do demônio” do filme que o narrador-
rente. Ao fim e ao cabo realmente a Carol está certa em emplacam porque ele tem o mesmo tempo rítmico do do objetivo e do sentido dessa “cultura-guiness”, no -personagem lembrou? Como o autor poderia traba-
sua desconfiança. Se pensarmos bem, alguém poderia diálogo com a vendedora, que teoricamente introdu- qual a existência depende de todo tipo de visibilida- lhar esse demônio como imagem e forma dos próprios
ter dito, por exemplo, coloquial. Talvez a palavra tenha ziria a indeterminação no tempo e no espaço com “O de pública. Aqui, no entanto, isso aparece como um pensamentos dele, sobretudo, como imagem da ideia
surgido por conta de personagens como Frédéric More- dia seguinte”. Esse ritmo só se altera um pouco com pensamento cuja linguagem não nos remete a sen- angustiante de ler todos os livros que existem? Talvez
au ou Emma Bovary... De qualquer modo, mais interes- a descoberta da ideia, talvez os exercício de outras tidos além daquele já compartilhados. Querer ir no a relação com o Pop Art (referência a Andy Warhol e
sante do que associações que podem ser injustas com temporalidades frásicas e textuais permitisse cons- Jô é um elemento entre outros e não vemos, nesse Lietchtenstein, comentada anteriormente) e o Surre-
86 o conto, o seria pensar procedimentos concretos (como truir imagens não necessariamente dentro dos limites pensamento banal, nada que traga a angústia do alismo (referência a Salvador Dali, além do ambiente 87
soturno, na madrugada, frio e neblina) pudessem ser todos os livros existentes - mas ainda sem força e ma- Notas
mais intensificadas nesse sentido, mas isso é apenas turidade para levar a distâncias maiores o ímpeto de
1 Fernando Pessoa, Fernando Pessoa: poesia, p.88.
uma sugestão. Como a Laura também sugeriu, o im- ler e escrever. O leitor se perde entre banalidades e
portante é refletir sobre os detalhes que podem ser pequenos lampejos (aproveitando o termo que vocês 2 Gustave Flaubert, Cartas exemplares.
ainda mais enriquecidos e complexificados – eu diria já trouxeram), pequenos eurekas que não trazem na-
3 No Le Gaulois, de 6 de abril de 1881, Maupassant declara que Flaubert
sobretudo na primeira frase às 03:12. da - e tampouco problematizam esse vazio. Essa falta
tinha receio de não terminar o livro : “Un livre pareil mange un homme, car nos
de densidade de certa maneira também frustra uma
forces sont limitées et notre effort ne peut être infini. Flaubert écrivit deux ou trois
A isso está ligada a questão da brevidade do conto boa ideia de conto.
fois à ses amis: ‘J´ai ´peur que la teminaison de l´homme n´arrive avant celle du
que, inicialmente, me incomodou bastante. Não es-
livre – ce serait une belle fin de chapitre’ .” (p.473).
tou falando do número de páginas ou de caracteres, Justamente por ser tão breve, indo na mesma direção
pois isso não torna o conto melhor ou pior, mas jus- das ideias que vocês duas trouxeram, o conto deveria 4 Julio Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, Valise de cronópio,  p.153. 
tamente dessa sensação de falta de densidade de al- ter uma alta carga de trabalho de escrita. Nesse sen-
5 Antonio Houaiss; Mauro de Salles Villar, Grande dicionário Houaiss da
guns recursos formais e visuais. Nesse sentido, acho tido, podemos pensar que o texto poderia ainda ser
língua portuguesa, p. 1554-5.
interessante a Laura ter pensado no autor estabele- reescrito, conhecer outras versões ou continuações
cendo uma restrição espacial para seu conto, afinal, - algo que o salvasse da brevidade da nossa memó-
a ideia é um lampejo, um “rasgo de sentimento que ria. Talvez seja isso o que tentamos fazer: imaginando
pode ser intenso mas é de curta duração”5 (definição uma cena de escrita, buscando os espaços em branco
do Houaiss, achei tão bonita que não consegui defi- que ele abre como eu, a Carol recorrendo a Cortázar e
nir com outras palavras). a Flaubert, a Laura imaginando outras possibilidades
de escrita.
Gosto de pensar no conto como um “sequestro mo-
mentâneo do leitor”, como define Cortázar, pois es-
sa imagem aponta para a importância dos elementos
aqui discutidos: o conto deve fixar a atenção do leitor Referências bibliográficas
por meio da tensão entre os elementos formais e ex-
pressivos. CORTÁZAR,  Julio.  Alguns  aspectos  do  conto.  In:  Valise  de
cronópio. Tradução de Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Pers-
AAC: Concordo com a coloquialidade da linguagem, pectiva, 1974. 
com a falta de apuro e trabalho formal que desse mais
FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares (Organização, pre-
força expressiva e autocrítica ao texto. No meu caso,
fácio e notas de Duda Machado). Rio de Janeiro: Imago, 1993.
a “adolescência” a que me referi logo de início não fa-
ria parte necessariamente na narração (mesmo que eu HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Grande dicio-
mesma depois, junto com a Laura, tenha feito a asso- nário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
ciação à adolescência e às reclamações recorrentes). 2001.
Pensei antes em quem poderia ter escrito o texto, e
MAUPASSANT, Guy. “Bouvard et Pécuchet”, In : FLAUBERT,
essa pessoa teria um espírito adolescente: um tanto
G. Bouvard et Pécuchet. Éd. Pierre Marc de Biasi. Paris : Li-
ousado - ao mesmo tempo experimentando recursos
brairie Générale de la France/Le Livre de Poche, 1999.
formais (a curta extensão do escrito, a marcação de
horas, as referências à internet, artes plásticas, diálo- PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa: poesia. Rio de
88 gos do cotidiano, televisão) e lançando a ideia de ler janeiro:Livraria Agir Editora, 1970. 89
TURBULÊNCIA

LEt US$
Rafael Coelho*
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

“Consideração do Poema”, A rosa do povo,


Drummond

LET US$ quebrados! tudo porque se bulinaram, umas


às outras, umas nas outras; umas centenas; dizem-nas
derivadas, prefiro-as safadas e originárias, e não; uma
semana “maldita”; em  Nibelungen, na Alemanha, há
quem veja o mais prístino no Infinito. Deu um treco,
sem trégua, antes disso, fomos embolsados,
* Rafael Coelho é mestre pelo Departamento de Linguística. Contato:
90 91
coelhooclock@gmail.com.
todos US$, eles já haviam conversado: “desfazer de tais detalhada, em uns cem mil, assim tão flóreos! Assim tão Lucius Provase: Coloco algumas primeiras impres- Edilson Moura: Permitam-me, antes, dar-lhes as
e tais ativos, uns tais assim vivos, assim semoventes; prisioneiros! Foi só um erro no sistema, teima, teima… sões para que comecemos o debate. São apenas ob- boas vindas em nome da revista Opiniães, muito em-
devolvê-los aos seus, já que se viu dos bois somente os servações iniciais, ainda sem a profundidade que o bora nossa editora já o tenha feito! Espero que essa
magros, tal como acontece do Egito aos velhos hipotecá-  Além de US$, uma sigla semana, uma ação tua, me en- poema e o debate merecem. Lembrei-me de “O In- experiência seja muito rica para todos nós, críticos e
rios, e a minha cotação que caia!”, comenta um, comen- gana. Me assanha. Todinho! desde tal consequência, de ferno de Wall Street” do Sousândrade ao ler o poema escritores. Vou também aqui introduzir ideias. Ainda
ta todos; diz direto de Washington, correspondente e hoje, até a derrocada, quase a quebrar! “Turbulências”. Não saberia precisar o que exatamen- mornas. Embora já de uma segunda leitura, menos
acusa: “Miss Jeans criou um fundo pra absorver, modes, te me fez tentar traçar uma comparação entre dois ingênua do que a primeira que fiz. Concordo parcial-
foi vendida a um preço   De todos US$, um coração, de tomar as espadas, de textos tão distintos em sua forma e temática. O uso mente com suas impressões iniciais, Lucius. Digo
domar o dragão, desde os desdobramentos. Turbulên- do idioma inglês, a referência à relação entre dinhei- parcialmente, incluindo aí que é essa a razão que nos
bem maior que US$, no mercado de bananas”. Turbulên- cia. Meu coração atordoa, falta-me coordenada pra en- ro e mercado talvez tenham sido marcas em comum. move inicialmente a articular os significados do texto
cia. Sem o escândalo, muda a adaga de seta; no início, frentar, poeta! a quem foi, a quem busca; a quem ven- Por outro lado, no texto de Sousândrade, há um jogo à sua estrutura poética.
cabelos na montanha! de, umas tantas medidas; depois de domador do grito, enunciativo muito rico, do qual participa também a
mergulhada é a cabeça. forma do poema. Coisa que não encontrei no poema Há, no entanto, aparentemente uma crise enunciativa,
LET US$ todos num parafuso! A tensão acerca dos len- “Turbulência”. Apesar de muito rico, o jogo com US$, ao meu ver, que vai tecendo certa ambivalência em ter-
ços de seda, do Burj Dubai, terminou sem acordo. En-   Todos US$ sublimados, num todo nenhum; sem po- que pode ser tanto “us”, dinheiro ou Estados Unidos, mos de jogo dialógico: o título “Turbulências” parece-
fim um fim ao todo; chamam então aquele: informou der domar, sem poder pensar, sem poder cuspir; não te vejo que há diversas formas fixas escondidas em um -me articular-se a dois polos de sentido, duas turbu-
uma fonte: sem problemas, faz entrevista: conforme acompanhar, como me deveria; como pudesse ter sido poema que aparentemente seria em prosa. Há decas- lências: 1 - à da própria crise literária (estacionária nos
prevê o especialista que prometia ser boas as notícias: objeto mais pronto, como pudesse ter recebido sílabos e diversas redondilhas entre os parágrafos do âmbitos do modernismo e tributária ainda deste mo-
“De consultas à boca fria, semana turbulenta, de venci- texto. Contudo, o que poderia, num primeiro momen- vimento: o ritmo do poema produz, na leitura em voz
dos atletas, vieram todos, no Auge da batalha, os mais  mais um de US$. Nos olhos, as espadas; mais um dó- to, funcionar como um jogo entre diversas referências alta, sensação de uma enunciação mista de lirismo e
possantes gladiadores, uma somatória” (Bolsa de um lar, para deter o ir-lhe sônico; menos que sorte, teve do enunciativas, como a referência às formas fixas ou a telejornalismo; há uma voz prosaica, fria, de noticiário,
desejo de carniceiro!). Turbulência. Alguns dizem crise, dinheiro a atenção; não me quero assustado, me quero repetição de US$; parece se perder em meio a uma em meio à tomada de posição do eu lírico, por exem-
não pode?! Pode. O câmbio despenca, inventor; durante isso, só cuspe diário, vou usar, longe crítica sem destino exato: o problema é o mundo? É a plo, no momento em que este assume sua descrença
da crise e do entusiasmo, nos ventos que me deixam as crise de 2008? É a literatura? Esta última, aliás, tam- nos Mitos econômicos, ainda que pareça-nos dizer que
espanca US$ e o banco, já de aço, com bilhões em pra- ações e me alastro. bém diferentemente do poeta maranhense, aparece nada pode fazer); e 2 - permitam-me dizer que é, gros-
tos, pra cobrir buracos, afetou o vômito do plebeu. apenas uma vez no texto, em um autorreferência do so modo, o que de imediato nos move o raciocínio e
Uma quebra e o risco, E mais de US$ a Ninguém, todo dia; porque Ninguém enunciador, como se, de fora dessa crise, justamente nos faz ligar o poema à turbulência financeira gerada
mais domina os valores de São Mito, por exemplo: o de por ser poeta, nada pudesse ser feito. Não que a lite- pela especulação imobiliária de 2008. A questão, acre-
um pouco de US$ toda a semana. Remédios de uma Taiwan, o de Bogotá, e o de Johanesburgo. ratura tenha de ter opinião formada sobre tudo, mas dito eu, é saber se essa voz, segunda ou primeira voz,
febre. Devedores, de blazers, corriam, recebiam, com se a proposta é escrever sobre a crise, criticar o que telejornalística, ainda é produtiva em temos poéticos,
euforia de ter emprestado Não acredito mais em US$. E assim se faz tal capítulo quer que seja, parece-me que a literatura não pode transcende a mera repetição de uma ideia e atinge algo
problemático, gerado daquilo que pouco me credita. prescindir de uma autocrítica. novo que nos exprima historicamente. Isto é, há cons-
a algum de US$. “Seis bancos e ainda mais todo mundo”, ciência de linguagem literária e, consequentemente,
anunciaram, nesta semana, as tais hienas. Turbulência. O debate que se segue, sobre o poema “Turbulência”, um trabalho desenvolvido em nível de prática poética
Ah Bolsas! na noite desta segunda, segundo aço, o glá- de Rafael Coelho, foi realizado por e-mail no período de autônoma ou é mero acidente? Inegavelmente o poe-
* Andréa Catrópa e Lucius Provase são doutorandos do Programa
dio central em Tóquio! Ah Bancos! à preço de banana 18 a 25 de abril de 2011, pelos alunos de pós-graduação ma é muito bom. Mas penso que não é a ideia (o con-
de Pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada do
cobre, commodities, Ah macacos ancestrais! Andréa Catrópa, Edilson Moura e Lucius Provase*, bem teúdo) que conta, penso, sim, que seja atingir um nível
DTLLC-USP. Contatos: andreacatropa@gmail.com e luciusp@uol.
como pelo autor do poema. de consciência de linguagem que permita uma prática
com.br. Edilson Moura é mestre pelo programa de Pós-graduação
 a quase anular todos US$, as Bank of America. Um so- artística acentuada. Porque, por exemplo, eu não vejo
em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e
92 nhar depois de uma queda, qual me prestaria, em mais nenhuma ironia no jogo entre a estrutura e a ideia que 93
Vernáculas (DLCV). Contato: edilson.moura@usp.br.
me permita dizer algo além que apontá-lo, algo além Prometo pensar nisso, em mim, com o andar da carrua­ caminho. Não esperava que isso fosse ser simples para anda juntinha com o jornalismo. A crônica, o “romance
de indicar que há um jogo. gem... Mas por ora vou defender =;B quem escreve, cujas referências situacionais enunciati- crônica”, o “poema crônica” são fronteiras que sepa-
vas, no ato de escrita, não podem se repetir de modo ram a literatura da ficção, mera ficção; do poema, bom
LP: Eu reli o poema procurando por esse ritmo do po- (1) Tudo bem... é isso aí: a crise de 2008! Mas na épo- algum. Agora, segundo Bakhtin, ou segundo o dialogis- poema, da poesia.
ema que o dividiria em duas situações enunciativas e ca... queria expressar a incapacidade do sujeito, sentida mo teorizado por ele não polifonia (que seria algo um
não o encontrei. Não encontrei marcações distintas de (por que não? SENTIDA) do eu-ou-US$ “lírico” frente a pouco diferente lá na obra de Dostoievsky), o discurso Eu não vejo no poema “Turbulência” um problema de
acentuação ou mesmo, para retomar a ampla definição doação de 3 trilhões de todos os países aos Bancos... e deixa de ser monológico quando a voz de outro atra- superação do mundo atual, mas sim da própria lingua-
de ritmo que Meschonnic defende, marcações prosódi- tals. vessa esse discurso e revela uma determinada consci- gem literária. E isso tenho percebido em outros textos.
cas, lexicais ou sintáticas, ou seja, ainda segundo o teó- ência. Quando falei em dialogismo, falei disso. Revelar Os mais honestos, digamos, ainda que romântica a
rico francês, “a organização do movimento do discurso Lendo agora pensei num sujeitinho chato: naquela coi- tal consciência seria uma das estratégias da literatura. ideia assim posta. Há uma aparente busca pela prática
na escritura”. O que vi foram partes separadas do res- sa toda de leitor bem informado, o comportamento do Bem, os trechos mencionados por Lucius evidente- de representação artística autônoma, que vai esbarrar
tante do texto por meio do uso das aspas, procedimen- “indignado”.  mente não podem cumprir esta tarefa de revelar lin- no cânone e em alguns chavões da prática da escrita.
to que me lembra muito o famoso poema de Bandeira guagens. Ainda que haja lá o discurso de outrem, eles Um deles, de que a literatura deve intervir na realidade,
“Poema tirado de uma notícia de jornal”, por separar as MAS, pelo menos por razões pessoais (que também me não se caracterizam dialógicos. Talvez o autor não con- faz de bons autores meros jornalistas, cronistas de seu
situações enunciativas poéticas das cotidianas, o que é categorizam), tem muito sentimento ali! corde, mas eles parodiam o discurso jornalístico (isso tempo. Mas o que define o tempo é a linguagem e isso
poesia do restante, como se separasse, para facilitar o é monológico). Contudo, a repetição de “Turbulência” acaba revelando a ideia de que a linguagem poética,
trabalho do leitor. Vejo, nesse procedimento, a comple- (2) Ali vi aquilo que muitos, há muito tempo, veem na antes de alguns versos marca a manutenção do discur- para muitos destes autores, por si só, não é um modo
ta ausência de polifonia. literatura: as crises (os fracassos? não sei: muito difícil so jornalístico. A designação desse recurso é “chapéu” de intervenção no mundo, de inventar novos tempos e
dar nomes aos bois, quando os bois são seus)... tratava- ou “vinheta” e se repete invariavelmente na introdução de inventar seu próprio público.
Quanto a consciência da linguagem, correndo o risco -se de universalizar a dor, como em todos os tempos, das chamadas de matérias ou de olhos. “Turbulência.
de estarmos tratando de coisas distintas ao utilizarmos como uma lição maior da humanidade... tipo isso... Alguns dizem crise, não pode?! O câmbio despenca” ou LP: Excelente o debate. Continuo: Permita-me corrigir
o termo, não a encontrei no poema. No trecho, para ci- existia na literatura formas/ fôrmas (sousândrades, “Turbulência. Ah Bolsas! na noite desta segunda, segun- sua correção, Edilson. Para Bakhtin, todo discurso é
tar um exemplo, “espanca US$ e o banco, já de aço, / bandeiras e outros “lembrou-mes” dos leitores) que do aço, o gládio central em Tóquio!”. Finalmente, não dialógico, nem todo discurso é polifônico, porém. É o
com bilhões em pratos, /pra cobrir buracos,” temos um avisavam a muito tempo: é a crise! (não excluo o sen- estão nem entre aspas e nem em itálico. A marca deste contrário do que você colocou. Cito, como referências,
decassílabo e duas redondilhas em seguida, marcados tido revolucionário - num bom “subversivês”- da pala- discurso atravessando o outro está nesta marca: “Tur- além do próprio Bakhtin, a Beth Brait, com os dois li-
pelas barras. Fiz essa divisão buscando encontrar uma vra). (Só uma obs. aqui: não “usei“ de nenhum dos dois bulência.” Eu quase escuto certo âncora virando-se pa- vros que ela organizou sobre conceitos de Bakhtin, e
prosódia da língua portuguesa. Qual a função dessa re- autores citados... lá, na escrita, eu só pensei naquele ra a câmera e dizendo “-Turbulência. Sem o escândalo, o livro da Diana Luz sobre dialogismo. Foi apenas por
tomada, por meio de versos polimétricos, da tradição? trecho do Drummond em epígrafe porque a crise de muda a adaga de seta; no início, cabelos na montanha!” isso que tratei de polifonia. De qualquer forma, quando
É aí que está a crise literária? Dessa forma, não diria que 2008 me clarificou (me referenciou) aqueles versos... Um determinado texto para apresentar dialogismo­não trouxe a questão da enunciação ao debate, mais preci-
este é um poema inegavelmente muito bom. Menos naquele instante, dei um sentido a mais a ele)  implica em que seja necessariamente­ polifônico, tam- samente, dos jogos de enunciação, não pensava nem
por considerar as ideias (o conteúdo), mas justamente pouco que disso derive algum valor­ estético. Há muito em polifonia, nem em dialogismo. Pensava nos avan-
por pensar nas práticas artísticas acentuadas. (3) Daí me pergunto: trata-se da crise­literária­ou o sen- texto que apresenta­ essa­ caracterís­tica sem ter o me- ços da Linguística da Enunciação com o Benveniste,
tido literário da crise? nor valor literário. Acho interessante discutir se há tur- Meschonnic e o Culioli, que nos obrigam a repensar os
Rafael Coelho: Boa noite a todos! Começo a leitura bulência na estrutura do poema, se ele dialoga ou não conceitos que tanto sucesso tiveram com Bakhtin e ou-
com vcs (ou a SEGUNDA leitura, da crítica). Antes de Prometo pensar mais sobre esta minha última dúvida, com a crise literária, o que portanto transcende a ideia tros como o de intertextualidade e o próprio conceito
mais nada, gostaria de dizer que estou extremamente que encontra sim o diálogo com a tradição (que aqui da crise financeira sem deixá-la de lado:­é marca de um de enunciação. Sei que o espaço não é de discussão de
embaraçado com a situação: parece que tudo que pas- quero igualar à FORMA). tempo nosso. De mais ninguém. Quanto à crise da lite- teoria, mas apenas gostaria de esclarecer alguns ruídos
sa pela minha cabeça é uma espécie de “auto” defesa. ratura. Acho que ela entrou em colapso exatamente no de comunicação tão comuns nas trocas de e-mails e
EM: Caro Rafael, é um prazer tê-lo em nosso debate. momento em que se passou a pensá-la como um mero nos espaços de discussões virtuais, já que não se pode
94 Defenda-se, por que não, se sentir que esse é um bom meio de intervenção no mundo. Desde os anos 1930 ela interferir no discurso do outro de forma imediata. Para 95
fechar a minha questão nesse debate sobre polifonia e Por fim, o discurso da crise. Eu levantei a questão por do dialogismo. Mas já que você aceita haver o dialo- Os diversos tipos de discurso estão aí sendo produzi-
dialogismo: há sim dialogismo no texto, como há em não ficar claro, para mim, o que estava em crise. O au- gismo no poema, talvez já nos entendamos um pou- dos, usados; ninguém nos ensina. Não vamos a uma
todo texto; também há polifonia, quando o autor uti- tor já nos explicitou que se trata da tentativa de expri- co mais por que, segundo eu compreendo o conceito escola aprender isso. E o poeta, na minha opinião,
liza a ironia. A questão, ao fim, é a que você mesmo mir um desconforto, sem que esse desconforto saia de dialógico, ele é mais importante por revelar outra percebe, bem como o seu público, esse uso diverso
coloca: se isso tem valor estético (outro desses “concei- pela janela, diante da crise de 2008. Antes que hou- consciência de mundo. Eu estava tentando deixar por porque ele não os inventa simplesmente; mas tam-
tos armadilha” que dizem coisas diferentes para todo vesse essa explicitação, não havia ficado claro para último o debate sobre os decassílabos e as redondilhas bém não os usa literalmente. Retirado de seu contex-
mundo). Para mim, não. Esse uso não acrescenta ao mim por que essa posição acomodada diante da crise, que você identifica no interior dos versos. Demorei-me to de uso, este se torna sua matéria prima, a palavra
texto uma estética da linguagem que seja particular ou quando o Rafael falou no que ele pensou ao escrever o a falar sobre eles porque vejo mais coerência em classi- em estado bruto, que ele trabalha, processa de outro
uma prática artística acentuada mencionada por você. texto as coisas se abriram um pouco mais. Como disse ficar a maior parte dos versos como hexâmetro. Isto é, modo. Muito disso pode passar despercebido inclusi-
Quando há a lembrança, para citar ainda sua referên- já no início, não acho que a literatura tenha de exprimir o que parece ser redondilha são os pés do andamento ve. Por que quando falei da impressão do âncora, essa
cia, Edilson, da figura do âncora no trecho de sua análi- uma opinião sobre tudo ou, para usar suas palavras, do verso, que acabam coincidindo em suas rimas inter- experiência não foi particular, foi coletiva (o que é um
se: “Eu quase escuto certo âncora virando-se para a câ- que a literatura tenha de intervir no mundo, ao menos nas. Tentei esse caminho. Mas como não há constância dado interessante ao autor). Li com alguns colegas o
mera e dizendo ‘Turbulência. Sem o escândalo, muda a não necessariamente, embora não consiga entender: nele, suponho arriscado pensar que eles possam ir além poema. Cada um de nós ficou com um trecho. Eles mal
adaga de seta; no início, cabelos na montanha !’”, eu só se a intenção não é intervir, qual a necessidade de pu- do que esse próprio tipo de metro propicia e que é certa sabiam ainda do que se tratava, eu próprio não sabia.
posso concordar ou discordar (para que fique claro, dis- blicação? E se a função do discurso (qualquer discur- fluência narrativa. Aliás, fiquei tentado a pensar que a E como foi lido em voz alta, a cada momento em que o
cordo), não há como argumentar. Essa é uma sensação so, não apenas o literário) não é justamente intervir, partir da segunda estrofe as quebras de ritmo, mudan- termo “turbulência” aparecia, eles davam entonação
que o texto trouxe a você. Se fossemos utilizá-la como jogamos fora toda a teoria performativa. Mas você ças de andamento (o que você percebeu como decas- diferente do resto. Involuntariamente ou exigência do
ponto de partida para uma análise, teríamos de preci- há de concordar comigo que, relevadas a necessida- sílabos, redondilhas internas), que é exatamente onde ritmo? Algo para ser pensado. Desde o início isso esta-
sar se essas referências, seguindo os preceitos da fra- de ou não de intervenção, se o autor escreve sobre a começam as turbulências, indicariam a própria instabi- va na minha cabeça.
seologia, são acessíveis ao falante nativo de português, crise de 2008, ele deve querer intervir, caso contrário lidade da estrutura poética do poema. Talvez seja arris-
ou seja, é necessário precisar se todo falante nativo de ele poderia escrever sobre as suas frustrações pesso- cado pensar isso, mas também pode ser um caminho. Andréa Catrópa: Acompanhei o debate de vocês e,
língua portuguesa identifica nesse trecho uma referên- ais diante de um namoro rompido ou mesmo sobre a Acho que não estamos aqui para resolver o poema. E à como a leitura de apenas um texto de um autor cuja
cia ao telejornalismo. Mas eu posso estar sendo muito atual situação da ficção como fazem tantos autores medida que o vamos examinando, mais seus mistérios produção não tive a oportunidade de conhecer dificul-
formalista (não seria a primeira vez que me apontam contemporâneos, apenas para dar exemplos disso que se aprofundam. Uma coisa me incomoda, Lucius, nas ta a compreensão de um projeto literário, prefiro fazer
essa característica) e podemos, claro, debater as sen- você chamou de busca pela autonomia da arte. Para suas colocações a respeito da discordância neste ponto alguns comentários pontuais e, talvez, impressionistas:
sações que o texto nos trouxe. As regras seriam outras, esclarecer: não acho que haja uma crise da literatura, das “turbulências”. Quando você fala em “falante na-
no entanto. mas, retomando a ideia central de Poesia e crise (2010) tivo da língua portuguesa etc.” Porque segundo Main- 1) Talvez haja um certo “descontrole” da matéria poéti-
de Marcos Siscar (muito bom por sinal), há um dis- gueneau, ca, manifestando-se de diversas maneiras: no vocabu-
Num segundo momento eu questionei as questões do curso da crise. Coisas, obviamente, distintas e algo já lário (termos elevados e eruditos convivem com termos
ritmo que você aponta no trecho: “o ritmo do poema percebido pelo próprio Rafael ao final de sua “defesa” o domínio das leis do discurso e dos gêneros coloquiais e lugares-comuns), na sintaxe (com desobe-
produz, na leitura em voz alta, sensação de uma enun- (não acho que você deva ver como defesa, Rafael, mas de discurso (...) são os componentes essen- diências à estrutura convencional, visando a mera co-
ciação mista de lirismo e telejornalismo” gostaria mui- como uma oportunidade, que poucos têm, de debater ciais de nossa competência comunicativa, ou municação, na construção das frases) e na estrutura (
to que você mostrasse qual é esse ritmo, como ele está um texto literário). seja, de nossa aptidão para produzir e inter- alternando frases e parágrafos curtos e longos). Se esse
presente no texto. Para mim, como já disse, não ficam pretar os enunciados de maneira adequada descontrole pode, por um lado, remeter à própria crise
claras as questões de prosódia do texto. Elas parecem EM: Realmente o debate funcionou. Que bom. Lucius, às múltiplas situações de nossa existência. econômica e à sensação de impotência e incompreen-
carecer de uma função no poema. Para que servem as você então afirma que não existe o discurso monológi- Essa aptidão não requer uma aprendizagem são do tema por parte do cidadão comum; por outro,
rimas assonantes e os versos redondilhos? Não vejo co (não se trata de monólogo ou do lirismo usual). Todo explícita; nós a adquirimos por impregnação, acho que ele causa estranhamento em um poema que
como a repetição da palavra “Turbulência” marca um discurso é dialógico. Acho que Bakhtin, pelo menos até ao mesmo tempo que aprendemos a nos con- parece dialogar com uma tradição experimental, que
ritmo ou um diálogo intertextual. onde li, se entendi o teórico russo, não diz isso. Aliás, duzir na sociedade.1 na literatura brasileira normalmente preza a consciên-
96 ele caracteriza os vários domínios do monologismo e cia linguística. 97
2) Como o poema todo é fragmentário (apesar da uni-   Deixo o cartesianismo um pouco de lado e escrevo montanha. E vejam a seguir...” iria ficar um tanto quan- está aí um sentido literário da crise que devia ser mais
dade temática), trazendo ideias truncadas e diferenças alhures. to ENSIMESMADO ! pensado!
de registro (um mais próximo da tradição lírica, outro
da colagem prosaica, outro, ainda, da ironia), ele per-  ...  ... Se aponto um caminho, é de contemplar a “crise/turbu-
mite ao leitor captar uma atmosfera genérica de indig- lência/dor/fracasso”, como uma lição maior do que uma
nação, via tratamento poético, de uma “atualidade”. Pela tradição aprendi (uma coisa simples) que poemas O acontecimento econômico, como digo aqui, tem lá simples notícia de jornal.
No entanto, o fechamento destoa dessa estrutura an- têm lá suas características: repetições de palavras, ri- seus assuntos: mundializado, financeiro, cientificializa-
terior, trazendo uma obediência sintática que torna por mas, redondilhos, decas, hexas, dodes... decas que são do (ou melhor: matematicalizado), blá-blá-blá. Como um “olhem, mundo (todos nós, no mundo, hoje,
demais simples e conclusivas as afirmações finais. Ou redondilho + hexa, dodes que são hexa+hexa ou redon aqui, agora), com isso que aconteceu, vimos que mais
seja, toda a “turbulência” do texto talvez prometa um dilho+redondilho+redondilho, etc... Não sei até que ponto isso é determinado pelo telejor- uma vez a natureza humana...” (nem esperem eu dar
desfecho mais desafiador para o leitor que o acompa- nalismo (ou jornalismo “mesmo”, o escrito)... ou acon- nomes aos bois).
nhou até a última linha. Essas formas possuem hoje um estranhamento muito tece o contrário... mas que é assunto é.
maior por parte do leitor do que um “verso livre moder- Ou então: “FAZER VER a crise de outra maneira...
3) Como aspecto positivo, ressalto a utilização dos mo- nista” ou “um jogo morfológico do tipo concretista”... E (E sei que tratam de “INTERESSES” que acredito não não a crise dos bancos... O MERCADO ESTÁ EM CRI-
tes mais líricos (“Sem o escândalo, muda a adaga de uma aversão na literatura, pelo menos naquela que se se coadunarem com os propósitos do poema.) SE. Quem é o mercado? me respondam! Por que a crise
seta; no início, cabelos na montanha!” ou “um coração, pretende literatura. dele é mais importante que a minha?” 
de tomar as espadas, de domar o dragão, desde os des- O acontecimento não faz o discurso ali no poema (sim,
dobramentos.”) ao lado da estrutura desumana do ca- O que parece uma contradição, que só vejo agora de- poema), o discurso faz o acontecimento. Tudo isso com recursos bem emblemáticos daquilo de-
pital – esse contraste me interessa mais do que a ironia pois que li aquilo que vocês escreveram sobre aquilo senvolvido no interior do discurso poético.
apocalíptica (que já estava em Sousândrade, mencio- que eu escrevi, o estranhamento entre público e obra, É uma coisa até simples na minha cabeça que seria
nado pelo Lucius; no Lorca do “Poeta em Nova York”; como assim querido à lá modernismo estereotipado, é responder algo do tipo: o que o discurso literário faz Ainda: De repente a minha crise é por causa da crise
no Piva...), já que trilha uma senda menos conhecida na ali também construído com o uso de formas mais con- com os acontecimentos? dele... Sei lá, também não sei responder, mas SINTO,
poesia. servadoras ou daquilo sentido como poesia mais tradi- como muitos. Não há uma opinião otimista da autori-
cionalmente. “Faz” pra ser bastante performativo ;) dade. Não há uma opinião solucionista do especialista
4) Se eu puder fazer duas sugestões ao autor: a) exami- (do tipo “o que o governo deve fazer”).Também não sei
nar bem o “descontrole” a que me referi, para reavaliar ... Ao adotar uma linguagem de DECLAMAÇÃO, de TOM se é um convite à revolução... Só me identifico numa
a sua pertinência; b) considerar a possibilidade de – ao ELEVADO, sujeitado a “truques formais” que façam o grande massa amorfa de US$ e com ela vejo o trem
lado dos registros mais prosaicos – estabelecer uma voz Citações: AUTORIDADE NO ASSUNTO... do ESPE- leitor perceber o outro tom, o outro modo de dizer, o passar... é o que sinto, não é aquilo que proponho. O
lírica que incorpore, de forma crítica, o discurso da cri- CIALISTA NA MATÉRIA... o assunto, crise econômica outro modo de dizer a mesma coisa... quero sim fazer final do poema, depois da crise, se acomoda mesmo...
se econômica, apropriando-se dela de forma peculiar e (literária também?), “valioso” como esse!, tem lá seus ver de outra forma as mesmas coisas.
rejeitando a predominância de um mimetismo empo- guardiões da verdade... e, no poema, em nenhum mo- ....
brecedor. RC: Oxe! antes de mais nada aceito o termo: mento a fala deles é 100% coloquial, ou 100% qualquer CONTUDO, isso com nenhum propósito de “apon-
DEBATE.  Estou lendo tudo direitinho aqui, grifando, coisa: há uma diferença de tom, uma regularidade pro- tar um caminho/ uma solução/ um jeitinho”, ou (por Tem aqueles estudos do Bakhtin acerca do bufão, não
fazendo as anotações ao lado... Mas admito que há um sódica, uma repetição... um estranhamento de entre que não?) um “final feliz”... se pá, como querem os tanto quanto a polifonia/ dialogismo, mas a figura de
certo sentimento de mamãe-com-filho, que não consi- como escrever e aquilo como é “realmente” escrito. jornalistas. Não há mocinho, super-herói: ninguém vos anti-herói que revela a todos as máscaras sociais do seu
go esconder frente aos colegas! QUASE UMA CRISE! iluminará! redor presente. Tipo isso...
Se algum dia, uma âncora, tipo Fátima Bernardes,
 … disser, olhando pra câmera: “Turbulência. Sem o es- Alguns poetas sabem disso há muito tempo... e ex- ...
cândalo, muda a adaga de seta; no início cabelos na primiram essa dor/ esse fracasso/ essa crise/ essa tur-
98 bulência... Até mesmo falando de amorzinho tolo... 99
Me lembrei de um dado importante na primeira publi- uma vez eu tenho lido e analisado alguns autores (seus Fernando Pessoa e confundimos isso como uma reto- à linguagem poética, não acrescenta nada ao debate
cação desse poema: foi no meu blog: existe lá uma con- textos), como o Rafael Coelho, que mal se viram ou se mada da tradição, mera retomada, não percebemos a sobre as crises do ser humano e do sujeito no mundo
cepção de que o objetivo não é SOLUCIONAR, mas SE conhecem, e percebido certo ponto de contato entre ressignificação destas referências dizendo algo que não contemporâneo. É uma manifestação subjetiva, como
IDENTIFICAR: no caso: mostrar a crise a iguais, talvez a eles. Este ponto de contato é uma ideia de Literatura é próprio daqueles autores, mas dela e só dela. Tentei qualquer texto, que não consegue se colocar, intervir no
crise das crises: a crise do sujeito enquanto incapaz de atual, que talvez não tenha ficado clara nas minhas co- isso no poema “Turbulência”. A redondilha, o decassí- mundo e, por isso, parece não ultrapassar esse espaço
ser chefe de suas ações... locações, mais ou menos como pensa Blanchot em O labo, os enjambements que lá percebi, para mim, não de subjetividade. Isso é a minha visão. Pode ser que, em
livro por vir: “a arte é também o que há de mais duro interessavam senão para a construção de algo próprio outros textos, Rafael consiga fazer isso com maestria.
Há nessa esfera também a possibilidade de blogues – indiferença e esquecimento – para com suas próprias do nosso modo de ser historicamente, de pensar, de ser Esse processo ocorre com qualquer poeta, há poemas
tratarem de economia, de política, de poesia... vicissitudes históricas (...)”2. A crise econômica/imobili- consciência, de pertencermos a um tempo do qual não que são bons, outros que não são. Escolhemos apenas
ária/especulatória, por exemplo, pode ser um elemento podemos nos abstrair ou nos ausentar. Talvez isso não um poema do Rafael para analisar e isso pode ser muito
... poético desde que abstraído do setor econômico (acho tenha sido possível. Mas tenha deixado algumas pega- cruel com o escritor, pois um texto dificilmente serve
que o Rafael fez isso, de certo modo). Sob a pena de das interessantes para o porvir. para representar o projeto poético de quem quer que
O descontrole da matéria poética eu pensei sim. Mas não ser arte e talvez mal resvalar a história. Quem sabe seja. Repito: dizer que o poema é fraco, é ruim ou apre-
chamei isso de “cacos literários”. Tem a ver com minha no que isso vai dar? Acho isso um mérito do artista que LP: Eu encerraria a minha participação no debate com senta problemas de construção não significa, na minha
concepção de literatura (por assim dizer) de vê-la en- procura uma nova e genuína expressão de seu tempo. a última intervenção, mas a afirmação de Edilson de visão, uma generalização do estado da poesia contem-
quanto ruínas... Coisa simples também: tipo de diálo- O que é a arte e a história agora? O que vai definir is- que houve equívocos me incomodou bastante. Para porânea ou atual, como colocou Edilson.
go com os mortos: falar da mesma forma sobre a coisa so no futuro? Se o caminho da arte é acompanhar os que fique claro, incomodou-me não por ter sido eu a
agora é falar a mesma coisa do que antes eles falaram... passos do desenvolvimento político, econômico, ideo- cometer os equívocos, mas por acreditar que, em um Buscamos discutir a mesma coisa: a adequação da es-
Aí é outros $500 ^^. lógico, cultural etc. ou só puder se desenvolver sob as debate, não há possibilidade alguma de equívoco; o trutura com o assunto, num todo, conforme prática
diretrizes destes setores da vida (avantgarde), ela pró- que pode haver são posições distintas. Não consigo autônoma. Talvez tenhamos uma compreensão muito
EM: Vou finalizar aqui minhas colocações. Achei a ex- pria negaria sua condição primária de “ser” um setor da entender a palavra “equívoco” aqui nem mesmo como distinta do que é autonomia da arte. Para mim autono-
periência do debate via correio eletrônico bastante in- vida, a arte. Isso de certo modo a faz ser crônica de seu uma dificuldade de compreensão das ideias destes que mia não é desvinculação total entre o texto e o contex-
teressante. Houve um pouco de equívoco, infelizmen- tempo, não pelos seus conteúdos, fatos, acontecimen- estão envolvidos no debate. O que houve foi discordân- to, a ponto de dizer que o poema é o acontecimento e
te, pela própria natureza da comunicação nesse tipo de to; mas na medida em que ela própria se faz um acon- cia quanto a qualidade de um texto, apenas um texto. não a crise. Ambos são acontecimentos. A autonomia
mídia, mas que não me preocupou muito não. No geral, tecimento, algo novo no mundo (acho que estamos de Acho muito difícil que isso reflita uma opinião geral so- da arte está subjugada a um campo de forças, para re-
achei bastante produtivo. Estamos todos de parabéns. acordo, não, Rafael?). O acontecimento, para mim, é o bre a literatura contemporânea ou mesmo sobre toda tomar Bourdieu, que constrói a compreensão de como
Acho eu. Alguns destes equívocos por minha causa. Eu poema, não a crise econômica. Está última, abstraída, a obra do Rafael, como bem apontou a Andrea em sua essa autonomia deve funcionar. Hoje temos uma parte
tenho tratado de literatura atual, de escrita atual, sem sem deixar de nos reenviar a seus sentidos ulteriores, colocação. dos críticos literários universitários, aqueles que não
nenhuma ideia ou vínculo com o selinho de “história da é um dos planos do texto. Um motivo na moldura po- escrevem textos ficcionais, dizendo que a literatura
literatura”, “Literatura Contemporânea”. Acho que isso ética, pintado não com suas próprias tintas, mas com Eu, pessoalmente, achei fraco o poema, pois não fica- contemporânea é uma porcaria; por outro lado temos
data a literatura, a faz ser contemporânea de algo que as impressões do artista. Assim, o que procurei discutir ram claras para mim várias das escolhas expressivas críticos literários que escrevem textos ficcionais ao lado
não é mais atual porque tem pressupostos, categorias foi a adequação da estrutura com o assunto, num to- e técnicas feitas pelo poeta. A retomada da tradição, de blogueiros, críticos de rodapé, dizendo que é a críti-
e valores próprios matizados na cadeia da recepção crí- do, conforme prática autônoma. Veja, repetir certos obviamente, nunca é só uma retomada, é uma recons- ca que se fecha para o novo. A questão não é quem está
tica de modo geral já traçada dentro de uma tradição. elementos (mencionados por Rafael) não significa que trução de sentido, é um jogo de enunciações, etc... O certo e quem está errado, mas quem terá mais força ao
Acho que tratar de escrita atual é encarar o fato de que eles sejam idênticos ao que já aconteceu ou o que já foi Edilson mencionou o Jauss (é uma ideia do “Estética final do embate (e não do debate).
ela talvez não queira vincular-se ao canônico, às estru- antes. Jauss fala, por exemplo, que o conceito de mo- da recepção como provocação...”, não é?) poderíamos
turas tradicionais, e que muitas das escolhas feita pelo derno atravessou o tempo sem significar a mesma coi- retomar a Kristeva, Meschonnic, Vincent Jouve, etc... Se há, de fato, um reposicionamento da literatura atu-
artista visam outro projeto literário e poético. Não pro- sa na cadeia histórica da arte. Ele até se tornou o inver- Todos falando questões muito semelhantes. A ques- al quanto a sua relação com a história, algo que vai
curo reconhecer a mim mesmo nem minhas próprias so do que se pensava num tempo. Quando lemos num tão é que esse jogo, no texto em foco, como já disse, além do mero desejo dos escritores, o que deve acon-
100 expectativas nos textos produzidos no agora. Mais de poema de Adília Lopes referências a Camões, Horácio, me parece apenas isso: um jogo. Não acrescenta nada tecer não é ignorar os decassílabos e redondilhas, os 101
hexâmetros e os pés. Até porque essas são questões a própria linguagem deixaria de ser histórica; negaría-
rítmicas antes de serem questões históricas e que aju- mos sua historicidade. É porque que a linguagem é um
dam na construção do sentido. No texto em questão fato histórico que podemos debater um poema sob o
não fica claro o sentido de um decassílabo ou de uma ponto de vista de um evento mais abrangente, menos
redondilha. Essa foi minha objeção. particular, menos pessoal, se nossa busca for essa prá-
tica literária enquanto evento histórico.
EM: Aliás, vou citar o que tinha dito: “Mais de uma vez
eu tenho lido e analisado alguns autores (seus textos),
como o Rafael Coelho, e percebido certo ponto de con-
tato entre eles, que mal se viram ou se conhecem.” Este Referências bibliográficas
ponto de contato é uma ideia de Literatura atual que
talvez não tenha ficado clara nas minhas colocações. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla
Talvez ainda não tenha ficado claro. Reforço. Não es- Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
tamos debatendo o autor, mas seu texto, entre outros,
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de
no contexto da prática literária atual. Seríamos cruel
comunicação. São Paulo: Cortez, 2002.
com o autor se estivéssemos resumindo tudo num só
poema de toda sua produção isoladamente. Bem, o
poema e seu autor fazem parte de um momento atual
do processo de produção literária e pensá-lo a partir da Notas
seleção de um dos seus trabalhos não significa julgá-
-lo exclusivamente. Bem, era o que tinha a dizer. O que 1 Dominique Maingueneau, Análise de textos de comunicação, p.41.
deve deixar claro também que, nesse caso, “questões
2 Maurice Blanchot, O livro por vir, p.35.
rítmicas” são “questões históricas”; se assim não fosse,

102 103
muito
cuidado
com o
óbvio
104 105
uma polêmica da colônia:

católicos
versus
calvinistas
Maria Elaine Andreoti* Talvez a querela literária mais antiga destas terras diga
respeito a uma que implica não os antropófagos “sem
fé, nem lei, nem rei”, mas sim a que Jean de Léry inicia
quando publica em 1578, na França, sua Viagem à ter-
ra do Brasil. Sapateiro de formação e pastor reformado
na fé calvinista até o fim da vida, Léry inicia a obra com
artilharia pesada, deixando claro a que veio: o principal
motivo de tornar pública sua experiência de dez meses
no novo continente – dentre os quais, quase três em
contato diário e direto com os tupinambás da Guana-
bara – foi justamente denunciar as “digressões falsas e
injuriosas” do padre capuchinho André Thevet, divulga-
das em As singularidades da França Antártica, de 1558, e
na Cosmografia Universal, de 1575. O autor rebatia, entre
outras, a acusação de que seriam os calvinistas os res-
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira ponsáveis pelo fracasso da França Antártica, que caíra
do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV-USP). Contato: em mãos portuguesas em 1560, ao passo que denuncia
106 107
lanandreoti@yahoo.com.br os horrores das guerras de religião ocorridas na França
que sucederam na França quando de seu retorno, com- do século XVI, um “retardatário”3. Neste último caso, modo como descrevem o Haï (a preguiça), seu rosto as- Léry, uma observação do particular que procura, ainda
parando a selvageria dos “nobres civilizados” europeus o qualificativo rende ao crítico da literatura geográfica semelhado ao de um ser humano e a suposição corrente que atrelada à identidade de seu enunciador, uma apre-
com a hospitalidade e harmonia dos indígenas. Léry a reprovação de Lestringant: “A literatura geográfica de que este prescinde de alimentos para viver. O crítico ensão da alteridade; em Thevet, a tentativa de estabele-
aproveita, ainda, para ridicularizar Thevet por diversos [segundo Atkinson], considerada em bloco e fora de só não atentou para o fato de, “(...) em termos do que cer correspondências entre o mundo recém-descoberto
“disparates” que este teria relatado – como ter afirma- qualquer correlação com a literatura não geográfica, convencionamos chamar ‘literatura de viagens’, o ca- e aquele já configurado na busca de um saber universal.
do a existência de uma tal Ville-Henri, ou Henriville (nos divide-se (...) entre inovadores e atrasados. Compreen- pital de informações estava sempre sujeito à pilhagem
dois modos empregados por este), uma cidade na baía der-se-á que nunca perdoei Atkinson por ter colocado (...)”8, pensando numa categoria romântica e, portanto, Por fim, retomar essa polêmica tão antiga e pouco co-
de Guanabara com o mesmo nome do rei francês – e, entre esses últimos nosso cosmógrafo nacional André anacrônica de autoria9. Desse modo, é plausível a hipó- nhecida nas letras pode ser, em certa medida, um ga-
por fim, acusa-o de desconhecer verdadeiramente a Thevet”4. O uso da expresão “não perdoar” nessa pas- tese de que Léry tenha se valido do discurso de Thevet nho para aqueles que estão mais ciosos dos objetos que
terra e as gentes de que tratava, já que, supostamente, sagem mostra a força da polêmica, que, quatro séculos e de outros para construir o seu; do mesmo modo, é se enquadram no rol da “literatura brasileira”,11 pois ela
teria ficado doente e acamado por quase todo o (pouco) depois, ainda não cessou de gerar novas implicações. evidente que o segundo procedeu tal qual o primeiro, dá a dimensão da relevância desses dois autores que es-
tempo que passou na Colônia. afinal estamos tratando de um tempo e de uma socie- tão na base do modo de figuração do indígena brasileiro
Quando recorremos a alguns autores brasileiros que dade que não primava pela originalidade e vanguarda, e que, mais adiante, tomará forma com Rousseau, por
A partir de então se estabelece uma guerra ideológica também procedem à comparação, não é surpresa que mas sim pelo respeito às auctoritas e às regras de com- aqui com Alencar, e será erigido a símbolo da identida-
entre o huguenote e o capuchinho1 – na esteira de ou- as referências a Thevet manifestem poucas considera- posição. de nacional.
tra, como sabemos, muito maior e menos abstrata que ção, ainda que geralmente se reconheça seu valor in-
já se instalara na França – que perdurará até a morte dos formativo. É Afonso Arinos Franco quem lhe remete a Mas, voltando à polêmica: todas essas leituras contri- Notas
dois autores e estenderá suas discordâncias para os dias crítica mais mordaz; em referência a Léry e a Montaig- buem para reconstituir, ao menos parcialmente, em
atuais. Ainda hoje, falar da obra de um inevitavelmente ne5, dirá: “Esta honra, pelo menos, fica ao bom Thevet: que termos ela chegou até nós após quatro séculos. 1 Huguenote: termo empregado aos protestantes, sobretudo aos
supõe tocar na de seu oponente – de acordo com Frank a de ter sido alvo da atenção, embora sarcástica, dos Ao que parece, atualmente está apaziguada, e cada seguidores da doutrina de Calvino; capuchinho: pertencente à ordem dos padres
Lestringant, o crítico que mais tem se dedicado a am- dois maiores escritores do seu tempo”.6 Mesmo a ore- um, padre e pastor, teve seu espaço definido na cena franciscanos.
bas: “Tornou-se um exercício retórico obrigatório opor lha da edição brasileira, publicada pela Itatiaia/Edusp literária e, sobretudo, a partir dela. Certamente que A
2 Frank Lestringant, Jean de Léry ou l’invention du sauvage, p. 81
uma obra a outra”2. em 1978 e assinada por um tal J. E. F.7, vai reconhecer viagem de Léry ainda é a predileta do público por seu
que Thevet era, “na verdade, um narrador, muito mais, estilo direto e pelo foco narrativo muito semelhante 3 Cf. Gilbert Chinard, L’éxotisme américain dans la littérature française, p. 125;
Ainda que na época fosse Thevet quem apresentava como alguns severos críticos posteriores consideraram, ao da literatura memorial ou mesmo da autobiográfica e Geoffroy Atkinson, Les nouveaux horizons de la Rénaissance française, p. 23.
maiores vantagens, pois a seu lado estava a Coroa fran- que um sábio (...). Foi, sim, um humanista, e até exage- burguesa (claro, também há uma dose de anacronismo
4 Idem, “É necessário expiar o renascimento? A abertura antropológica do
cesa, então católica – e tendo ele posteriormente se ra na demonstração de seu saber clássico (...). Invoca a aqui), além do evidente relativismo cultural que lhe dá
século XVI”.
tornado o cosmógrafo oficial do rei –, foi o pastor Léry três por dois a mitologia, Cícero, Vergílio, exibindo sua um tom humanista pouco comum entre seus contem-
quem ganhou notoriedade por seu livro, que fez muito erudição clássica (...)”. porâneos – vale assinalar que Léry é considerado um 5 A referência a Montaigne é devida ao fato de este autor, no capítulo
sucesso e foi reeditado diversas vezes (dentre elas, seis dos influenciadores de Michel de Montaigne. Por outro “Dos canibais”, ter lançado uma farpa contra os cosmógrafos: “Assim era meu
enquanto ainda vivia, número considerável em se tra- Apenas um crítico, entre os muitos pesquisados, des- lado, as qualidades do texto de Thevet – não tão eviden- informante, o qual, ademais, me apresentou marinheiros e comerciantes que
tando de publicações do século XVI), além de ter sido toou grandemente dessa enxurrada de acusações: tra- tes assim quando desconsiderado o ambiente literário conhecera na viagem, o que me induz a acreditar em suas informações sem me
traduzido para o latim e o alemão. Ao longo da história, ta-se de Francisco Rodrigues Leite, em seu ensaio “Jean em que suas obras foram produzidas – podem agora ser preocupar demasiado com a opinião dos cosmógrafos. Fora preciso encontrar
foi também Thevet quem levou a pior na querela, sendo de Léry, viajante de singularidades”. Com um nome já reconhecidas. O principal responsável por esse acordo topógrafos que nos falassem em particular dos lugares por onde andaram”.
frequentemente inferiorizado e satirizado por muitos bastante sugestivo, sua tese é que Léry plagiou, quase sem dúvida é Frank Lestringant; entretanto, optamos Michel de Montaigne, Ensaios, p. 105 (grifo nosso).
leitores e críticos por seu estilo, digamos, prolixo. Para ipsis litteris, as Singularidades de Thevet. Num traba- por traduzir o artigo de outro crítico, Michel Jeanne-
6 Afonso Arinos de M. Franco, O índio brasileiro e Revolução Francesa, p. 172.
dar alguns exemplos, Gilbert Chinard o compara a um lho de cotejo, levanta diversas semelhanças no modo ret10 – intitulado “Léry et Thevet: comment parler d’un
personagem rabelaisiano – “um monge ridículo e ig- descritivo de um e de outro autor; por exemplo, quan- nouveau monde?” (“Léry et Thevet: como falar de um 7 Cf. André Thevet, Orelha da tradução brasileira, editada pela Itatiaia, de As
norante do tipo que Rabelais gostava de zombar”; Ge- do ambos escrevem que, tonsuradas as sobrancelhas, novo mundo?”) –, por este trazer argumentos que põem singularidades da França Antártica. Não há outras indicações, além das iniciais,
108 offroy Atkinson o considera, entre os muitos viajantes os índios parecem zarolhos e com o olhar feroz; ou no a lume dois olhares sobre um mesmo objeto: no caso de de quem a teria escrito. 109
8 Andrea Daher, O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial, p.

“Léry et Thevet:
259.

9 A esse respeito, é importante lembrar ainda que Thevet comprovadamente


escreveu as Singularidades com a colaboração de outros, entre eles o médico e
helenista Mathurin Héret; portanto, a ideia de autoria original, regrada por direitos
de autoria liberais, seria, de todo modo, incabível.

10 Ainda que o crítico se fie demais no discurso “empirista” de Léry, quando como falar de um
mundo novo”
este evidentemente apresenta um domínio retórico do discurso a ponto de
convencer seu leitor de que seu relato é um decalque da (suposta) realidade.

11 Lembrando que, dentro do sistema literário proposto por Antonio Candido


l
a fim de conformar uma ideia de literatura nacional, os textos coloniais são
desconsiderados.

Michel Jeanneret* Preâmbulo teórico

Tradução: Julio Miranda Configurada segundo vários modelos e solicitada, si-


multaneamente, pelo afluxo de fatos novos, a literatu-
Canhada e Mario Tommaso** ra geográfica do Renascimento se encontra dentro de
inumeráveis fórmulas. Sob o risco de cristalizá-la em
categorias simplistas, gostaria de mostrar que ela jo-
ga com certo número de possibilidades teóricas; pode
combiná-las ou proceder, entre elas, a uma escolha.
*
Professor de Literatura Francesa do Departamento de Literatura
1.0. Uma primeira distinção se inscreverá na extensão
Francesa na Universidade de Genebra, na Suíça e do Departamento de Línguas
do campo de estudo e coincidirá com uma diferença
Germânicas e Românicas da Universidade Johns Hopkins.
de gênero literário: de um lado, o relato de viagem e,
**
Júlio Miranda Canhada é doutorando do Programa de Pós-Graduação em de outro, a cosmografia ou outras espécies de compi-
Filosofia Contato: juliocanhada@yahoo.com.br. Mario Tommaso é mestrando lação. Lembramo-nos da oposição que faz Montaigne
do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de entre os cosmógrafos, que, “por ter essa vantagem so-
Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV-USP). Contato: mariotommaso@gmail. bre nós de terem visto a Palestina, (...) querem usufruir
110 111
com. Colaboração: Maria Elaine Andreoti. esse privilégio de nos contar notícias de tudo ao longo
do mundo” e os topógrafos, que fazem uma “narração Suas obras se propõem sobretudo a servir de guias aos ao Brasil, entre outras, irão alimentar essa euforia pri- entanto, identificar escolhas significativas – o singular
particular dos locais onde estiveram”2. viajantes. mitivista e normativa. É assim que Ronsard, em sua ou o universal, a descrição ou o normativo. Dois relatos
Ode contra a Fortuna3, e Montaigne, no ensaio “Dos ca- de uma mesma expedição ao Brasil ilustram tais dife-
1.1. Inspirados pelos exemplos de um Marco Polo ou de 2.2. O segundo grupo, o dos “moralistas”, por outro la- nibais”, juntam-se para celebrar, segundo as mesmas renças. Jean de Léry se detém estritamente ao gênero
um Cristóvão Colombo, muitos navegadores publicam do, decifra a nova realidade em função de princípios a categorias míticas, o selvagem americano e para des- do relato de viagem (1.1.) e escolhe, portanto, a fór-
a relação de suas próprias descobertas e impõem a seu priori. A descoberta e seu relato operam então no inte- mentir, por meio desse exemplo, a atualidade europeia. mula descritiva (2.1.). Mais livre em sua relação com a
texto os limites mesmos da experiência: tal região, tal rior de um quadro ideológico, que preside a seleção e experiência direta, André Thevet, por sua vez, explora
povoação, tal horizonte particular, ampliado, quando interpretação dos fatos. A experiência é carregada de 2.2.2. A atitude inversa adota por critérios os valores um conjunto de possibilidades; ele restitui suas próprias
muito, pelas observações colhidas durante a viagem. O uma significação, torna-se o suporte de um discurso fi- ocidentais e julga do alto as demais civilizações. O ob- observações (1.1. e 2.1.), mas pretende simultaneamen-
campo de visão é deliberadamente parcial, e os limites losófico ou moral sobre o homem, a sociedade, o mun- servador pensa deter, a priori, a verdade e projeta sobre te abranger o conjunto das terras conhecidas (1.2.) e
de investigação, manifestados, entre outros, pelo uso do. Essa leitura alegórica pode se aplicar, por sua vez, o novo objeto um saber rígido. Seus conhecimentos, trazer sobre os fatos um julgamento moral (2.2.). Um se
da primeira pessoa. em duas direções opostas: ela adota o objeto distante crenças, costumes servem de apoio e favorecem um prende a fatos específicos e suficientes – ele inicia o dis-
como modelo e articula, a partir dessa norma, a crítica trabalho de anexação e simplificação. Mil fatores de in- curso científico moderno –, o outro passa do singular ao
1.2. Sobre a base de tais relatos, ou de qualquer outro da realidade familiar; ou ela julga, ao contrário, o fenô- tolerância e nivelamento – moral cristã, cultura huma- universal – e representa, em geografia, um sincretismo
documento, podem se elaborar, por outro lado, vastas meno novo com relação ao já conhecido, que serve de nista, exigências econômicas... – determinam então a ainda vivo entre os humanistas.
sínteses. Viajantes completam seus conhecimentos ponto de referência. Essas duas operações, uma centrí- interpretação. Essa perspectiva redutora é certamente
diretos com materiais de segunda mão e visam a uma fuga e outra centrípeta, originam uma nova subdivisão. a da maioria dos colonos e seus cronistas. Mas ela é co- Thevet ficará no Brasil menos de três meses, de 10 de
informação global. Eruditos de gabinete exploram rela- mum e logo a encontraremos em André Thévet. novembro de 1555 ao fim de janeiro de 1556; Léry, dez
ções livrescas, tradições orais e se propõem, frequente- 2.2.1. Nomeio a primeira atitude – condenação do aqui meses, de março de 1557 a janeiro de 1558. De sua via-
mente, a dar conta do conjunto de terras conhecidas. A em nome do lá –, devido ao gênero que melhor a ilustra, As duas operações que acabo de esboçar (2.2.1. e 2.2.2.) gem, Léry deixará dois relatos: em As singularidades da
compilação bebe, assim, em todas as fontes possíveis: “utópica”. O objeto da descoberta é interpretado à luz se opõem, mas no interior de um mesmo postulado, França Antártica, em 1557, e em sua Cosmografia univer-
tratados antigos, cosmologia medieval, lendas e mara- do mito, ou superestimado por ser integrado a um sis- que relacionei à visão ideológica dos moralistas (2.2.). sal de 15754. Léry publicará sua Viagem à terra do Brasil
vilhas contribuem, na mesma medida em que as novas tema idealista qualquer. O inédito é afetado por todas Em ambos os lados, o fato particular é interpretado em apenas em 1578, para responder, segundo ele, às acusa-
descobertas, para a edificação de um saber geográfico as perfeições, erigido em paradigma, motivando, como função de um código prévio. Eis por que podemos aqui ções e às inépcias de Thevet na Cosmografia; conhecerá,
eclético, universal e precário. tal, a reprovação da realidade imediata. A geografia, da renunciar a essa subdivisão e manter como essencial a em vida, quatro reedições de sua obra. Utilizarei, para
mesma forma que a história, fornece exemplos dignos grande distinção estabelecida inicialmente. De um lado Léry, a versão lançada em 15805 e, de Thévet, comenta-
2.0. Uma segunda distinção justificará as intenções e de- de serem imitados. Mas essa sublimação é fundada por os textos descritivos, que visam a restituir os fenôme- rei sobretudo o primeiro livro, Singularidades.
terminará duas categorias, que não coincidem necessa- uma nostalgia: o novo é encarregado de repor um pas- nos a sua singularidade (2.1.), e, de outro, os textos nor-
riamente com as duas precedentes: textos descritivos e sado perdido, a origem oculta da humanidade. O país mativos, que julgam o aqui e o lá em função de valores Jean de Léry
texto normativos. distante atualiza, então, aos olhos do viajante humanis- a priori (2.2.). A primeira atitude está ligada à especi-
ta, o paraíso do Gênesis ou a idade de ouro dos Antigos. ficidade do objeto, como dessemelhante e irredutível. Durante sua estadia no Brasil, Léry se sentirá melhor
2.1. Os autores do primeiro grupo, que chamarei “prag- A conquista do espaço equivale doravante a uma volta A segunda procede, ao contrário, por associações; ela entre os selvagens que nos arredores de Villegagnon.
máticos”, consideram a informação geográfica e etno- no tempo, na direção da pureza primitiva, com aquela levanta semelhanças ou antinomias, procura índices São acolhedores, humanos, calorosos, enquanto que o
gráfica por seu valor próprio. Exploradores, mantêm-se diferença que os homens de ação sucedem aos poetas de continuidade, de afinidade, e reconstitui redes ho- vice-almirante comporta-se como um bruto e engana
disponíveis ao conjunto de fenômenos e lançam sobre e a experiência sucede à especulação. A norma escapa mogêneas: concepção unitária do mundo, que postula a todos. A comparação in loco se volta contra os fran-
o mundo, tanto quanto lhes seja possível, um olhar livre aos livros para implantar-se no real. Desde o momento correspondências e se funda sobre uma visão analógica. ceses. Ocorre mesmo a Léry, por entusiasmo, tomar a
de preconceitos. Escritores, propõem-se à restituição em que os devaneios sobre a inocência original e sobre conduta dos indígenas por modelo e opô-la à corrup-
precisa dos dados observados, descartando o quanto o Bom Selvagem encarnam-se nas novas terras, a par- Essas categorias, sumárias, raramente se encontram ção europeia: é o discurso normativo, ou “utópico”, que
possível as especulações e interferências doutrinais. tida para o mar e a pesquisa etnográfica se tornam as em estado puro; entre elas se operam deslizamentos, Montaigne adotará. Se os brasileiros são felizes, é por-
112 garantias de um progresso moral. As viagens francesas diversas combinações são possíveis. Elas permitem, no que são inocentes e ainda próximos das origens: 113
Eles não bebem (...) nessas fontes lodosas, ou nem piores. Daí um jogo de equilíbrio em que os exem- estão envolvidas, não é outra coisa que a maldição co- ao orgulho. As questões que o Criador nos coloca por
melhor, pestilentas, das quais escorrem tan- plos abundam. A nudez dos selvagens pode ser chocan- mum, na qual todo o gênero humano se precipitou em meio das coisas só podem permanecer, aqui embaixo,
tos regatos que nos corroem os ossos, sugam te, mas eles têm excelentes argumentos para justificá- primeiro lugar pela transgressão de Adão, depois pelos como questões. Reconhecemos aqui os traços de um
a medula, enfraquecem o corpo e consomem -la; e que dizer de nossos adereços, que muito incitam à pecados que cada um lhe acrescentou”6. ceticismo cristão que, de Erasmo a Montaigne, colore o
o espírito (...), a saber, na desconfiança, na luxúria? A antropofagia pode ser odiosa, mas é também pensamento religioso de numerosos humanistas. Léry
avareza que dela procede, em litígios e desa- um rito digno e cheio de sentido; além disso, para res- Em nome do seu pessimismo teológico, Léry não dá ouviu dizer que nevava sobre as montanhas do equador;
venças, na inveja e ambição. (p. 212) ponder às “crueldades bárbaras” não temos “Maquiavel razão nem aos selvagens nem aos Europeus. Seria ele continua:
e seus discípulos” (p. 336), que provocam, “por aqui”, essa uma razão para alardear, em sua investigação,
Concluindo, de minha parte, que isso é algo
Seu humor é sereno, sua moral é sábia, de modo que a violência e o ódio? Os Tupinambás não reconhecem distância, desprezo ou ceticismo. Ao contrário. O
extraordinário, e uma exceção à regra da filo-
têm bastante a ensinar, em sua simplicidade, aos “da- nenhum deus e não têm culto, mas eles acreditam na resultado prático da doutrina calvinista do pecado é sofia, acredito que não há solução mais certa
qui”. O devaneio sobre a idade de ouro e a autocrítica imortalidade da alma e temem o diabo, de modo que aqui a tolerância e o sentimento de uma fundamental a essa questão do que a que o próprio Deus
que ela permite afloram. eles não são piores do que os hereges ou os ateus eu- igualdade entre os homens – igualdade na reprovação e afirma a Jó: quando (...) para lhe mostrar que
ropeus. na incerteza da salvação. O calor fraternal de Léry para os homens (...) não poderiam conseguir com-
Em outras passagens, Léry inverte sua posição e, dessa com os canibais e sua surpreendente disponibilidade preender todas suas obras magníficas, exceto
vez, em nome de valores importados, julga a América. É surpreendente que um mensageiro de Calvino exiba intelectual se alimentam de uma visão protestante, ou a perfeição delas, ele lhe disse: (...) tu não és
Ele reprova o canibalismo e denuncia, nos costumes tal relativismo. Mas sua posição é ortodoxa, teologica- agostiniana, do mundo. suficientemente sábio (pp. 517-518).
guerreiros de seus amigos tupinambás, crueldades re- mente fundamentada, e ele se explica. Ele acredita, um
preensíveis. Filia-se sobretudo às lições da religião cris- dia, ter convencido os indígenas a abandonar sua práti- O calvinismo de Léry é marcado também por sua
Se a fé não funda um saber definitivo, ela inspira, em
tã, que permanece para ele uma referência absoluta; ca de vingança e o canibalismo fidelidade à Bíblia. Ele se refere a ela a todo momento
vez disso, surpresa e maravilhamento. Deus pede-nos
deplora que os indígenas se obstinem na ignorância do e busca na experiência confirmação da mensagem
menos para compreender do que admirar as belezas
único e verdadeiro Deus e, animado por seu zelo calvi- mas, antes que fôssemos dormir, nós os ouvi- divina. Poder-se-ia esperar, nessas condições, que
da Criação. Ele não nos faz sábios, mas curiosos e entu-
nista, manifesta, aqui e ali, intenções missionárias. Em mos cantar todos juntos que, para se vingar de a Revelação sirva de apoio para decifrar o mundo. siastas. Tal é a lição da Bíblia. Ao longo da África, o con-
muitos pontos, o observador arrisca tornar-se censor. seus inimigos, era necessário capturá-los e co- Somente ela permite compreender e julgar, de modo tinente parece tão plano que o mar, em comparação,
mê-los como jamais haviam feito antes. Eis a que serviria como um paradigma e substituiria o mito, assemelha-se a “uma grande e apavorante montanha”;
Tais indícios parecem testemunhar certo dogmatismo inconstância desse pobre povo, belo exemplo ou a norma moral, recusados há pouco. Os indígenas, assim também, “lembrando-me do que a Escritura diz
e denunciariam, em Léry, o gosto pelas simplificações da natureza corrompida do homem (p. 413). por exemplo, contam que alguém no passado já tentou a esse respeito, eu contemplo essa obra de Deus com
ideológicas e perspectivas abrangentes. No entanto, o convertê-los. Para resolver o enigma, Léry remete-se grande admiração” (p. 124). O estudo etnográfico, por
contrário é que é verdadeiro. Inicialmente, assinalare- Conclusão importante, e perfeitamente calvinista. Se espontaneamente à autoridade das Escrituras. Mas sua vez, não será senão uma grande surpresa, em que a
mos que ele não toma partido unilateralmente: a nor- Léry rejeita as posições extremas, as ideologias e os ele se apressa em acrescentar: “Contudo, temendo descrição alternar-se-á com a exclamação. Alhures, é a
ma se desloca, a crítica pode ser dirigida à Europa e ao mitos, isso é por causa do pecado original. O mal atin- desviar o verdadeiro sentido, e para que não digam fecundidade da terra, o agrado do país, o esplendor das
Brasil. Léry não é um homem de julgamentos absolutos ge todas as criaturas e desarma qualquer pretensão
que eu relaciono coisas muito distantes, deixarei que árvores e dos animais que suscitam o deslumbramento
nem de posições extremas. Eu relato, ele disse, “os prós de exemplaridade. Porque eles fazem parte da queda,
outros o façam” (p. 417). Ele tem receio da especulação, e desencadeiam a ação de graças. Em muitas páginas
e contras do que eu conheci enquanto estava entre os todos os homens são igualmente condenados à culpa,
defende-se de conjecturas inverificáveis e se apressa memoráveis, Léry explora todos os recursos do lirismo
americanos” (p. 464). Ele pondera o aqui e o ali, recusa e a natureza não é menos corrompida aqui e lá. Se o
em voltar para seu habitual pragmatismo. para nos convidar a suas caminhadas, para a alegria de
um exemplo por outro, renuncia a idealizar o que isso selvagem não recebeu a Graça, como teremos certeza
suas descobertas e para nos fazer participar de sua pre-
seja. Os indígenas nos superam em um ponto ou outro, de que iremos recebê-la? Se Deus, independentemen- A Bíblia, porém, acompanha de fato Léry, mas alimenta ce de louvores:
“contudo, a fim de não torná-los melhores do que real- te dos nossos méritos, nos concede o dom gratuito da uma atividade que não é epistemológica nem normativa.
mente são” (p. 430), ele se apressa em notar também salvação, isso é um motivo para se orgulhar? Outro cal- Deus não concede ao homem nenhuma certeza geral, e Todas as vezes que a imagem desse novo
seus defeitos. Eles são simlultaneamente bons e maus, vinista, Urbain Chauveton, escreveu no mesmo ano, so- qualquer um que se utilize da Revelação para ter sobre mundo, que Deus me fez ver, se apresenta
114 e os brancos, no final das contas, não são nem melhores bre os americanos: “A Maldição, na qual essas Nações o mundo um discurso científico ou dogmático sucumbe 115
diante dos meus olhos; e que eu considero a
serenidade do ar, a diversidade dos animais, a sem qualquer justificação. Um bom relato de viagem, essencialmente um relato em primeira pessoa. O outro dessemelhante é necessariamente relativo e é apreen-
variedade dos pássaros, a beleza das árvores e para Léry, se propõe antes de tudo a uma informação não aparece senão filtrado pelo eu; o ele é fatalmente dido por comparação. O viajante não se desloca esque-
das plantas, a excelência dos frutos; e, de mo- exata e pontual. Generalizar a experiência às custas do mediado pelo eu. Esse testemunho dificilmente é des- cendo o que deixa atrás de si, mas marcando as oposi-
do geral e breve, as riquezas com as quais esta fato particular é cair no incerto e no inverificável. Pres- viado. A informação geográfica ou etnográfica nunca ções e fazendo prevalecer desvios significativos.
terra do Brasil está decorada, imediatamente sentimos tão logo um outro princípio, amplamente rei- é anônima; ela é fundada sobre a participação ínti-
esta exclamação do Profeta no Salmo 104 me vindicado: a superioridade absoluta da prática sobre a ma do sujeito; emerge de cenas vividas, mistura-se a Se a diferença postula uma relação e se inscreve no in-
vem à memória: teoria. Mesmo se a hierarquia humanista privilegia um anedotas e lembranças. Por isso a reivindicação de ob- terior de uma visão de mundo claramente estruturada,
saber livresco, mesmo se alguns viajantes consideram- jetividade deve ser atenuada. O engajamento pessoal ela expulsa, no entanto, a partir do momento em que se
Ó, Senhor Deus, que vossas diversas obras -se filósofos, Léry falará da experiência imediata. A pode mesmo ser tão intenso que a percepção afetiva impõe como princípio de explicação único, a noção de
especulação e a conceitualização não o tentam. Ele assume, por vezes, a dianteira; o sentimento – admira- uma ordem global e, com ela, toda a antiga represen-
São maravilhas para o universo mundo se orgunlha de ser um homem de ação; repete incan- ção, medo, reprovação, ternura, nostalgia... – recobre tação do universo. No sistema diferencial e empírico de
savelmente que o seu empirismo vale mais que todas então o fato concreto e o modifica. Um dos encantos de Léry, a trama mágica do cosmos está rompida; o cristão
Ó, que vós tudo fizeste com grande sabedoria! as opiniões do mundo e basta para invalidar as ideias Léry é, precisamente, a alternância da observação rigo- explora um mundo ainda harmonioso, porque reflete o
recebidas dos eruditos. Assim, a respeito do parto dos rosa e a adesão apaixonada. divino, mas já heterogêneo. Deus não se deixa perceber
Em suma, a terra está plena de vossa genero- marsuínos7: nas simpatias e não garante, entre as coisas, nem con-
sidade (p. 334). Desconfiança pelas sínteses, pragmatismo, jogos de su- tinuidade nem coerência. Ele prodigaliza, ao contrário,
Se alguém quiser argumentar esse fato acre- jeito e objeto: atesta-se a afinidade de Léry e Montaig- uma infinita diversidade de invenções, que escapam às
Esse calvinismo reúne-se ao de um Du Bartas, que de- ditando mais nos livros do que naqueles que ne. Outro ponto de aproximação: “Distinguo é o mem- analogias e às afinidades ocultas. A viagem revela o ou-
talha as belezas do mundo ad maiorem gloriam Dei e dele tiveram experiência, ainda assim não pre- bro mais universal da minha Lógica”, dizem os Ensaios tro, atualiza o descontínuo, põe em causa a ordem ne-
combina sua atividade enciclopédica com a exaltação tendo que mude de opinião, do mesmo modo (II,1). Léry se esforça, também, para respeitar a diferen- cessária e a unicidade profunda do universo. Nenhuma
do Criador. que ninguém me impedirá de acreditar naqui- ça. Enquanto numerosos viajantes tendem a neutralisar semelhança, nenhuma atração dão mais conta da iden-
lo que eu vi (p. 133). a novidade no já conhecido, a desarmar a singularidade tidade das coisas, confinadas em sua irredutível diferen-
Nós alcançamos aqui o coração do método de Léry. pela semelhança, ele quer dar uma chance ao desseme- ça. A similitude é denunciada como um agente de erro
Sua atividade fundamental, legitimada por Deus, é a Ou então: “mas de fato eu peço que, em vez de apegar- lhante e se compraz em sublinhar sua estranheza: e substituída pela consciência da alteridade universal.
do olhar. A relação que ele instaura com os fenômenos, -se à opinião de quem quer que seja, não me alegue ja- Os postulados unitários, fundados sobre solidariedades
durante sua viagem, é inteiramente comandada pelo mais qualquer razão contra a experiência de uma coisa” Assim como declarei mais acima que não há secretas, são descartados em benefício da experiência
olho. Em torno do verbo ver, constantemente repetido, (p. 142). E ainda, segundo a própria lógica de seu proje- animais de quatro patas, pássaros, peixes, e do discernimento. Os fenômenos podem ser compa-
organiza-se uma vasta rede semântica – imagem, espe- to, ele deve oferecer o meio pelo qual suas declarações nem animais na América que em tudo e por tu- rados, podem ser classificados, mas sem necessidade
táculo, observar, representar, mostrar – que exprime, podem ser verificadas. É com esse espírito que constrói, do sejam semelhantes àqueles que temos na interna, como tantas realidades contingentes e expe-
conjuntamente, a relação do sujeito com o objeto, no por exemplo, “o Catálogo de vinte e duas aldeias onde Europa; e também que, de acordo com o que rimentais. Sabemos o resultado dessa mutação: está
próprio lugar, e depois sua maneira de relatar a expe- estive e frequentei familiarmente os selvagens ameri- eu cuidadosamente observei nas idas e vindas em germe nada menos que o colapso do pensamento
riência, a posteriori: “A minha intenção e meu assunto canos”, para que os que estiveram no Brasil “julguem pelas florestas e campos daquele país (...) não analógico8.
será [sic], nessa história, apenas declarar o que eu prati- melhor e mais rapidamente os discursos que fiz acima” vi árvores, plantas nem frutos que se diferen-
quei, vi, ouvi e observei tanto sobre o mar, indo e vindo, (p. 502). ciassem dos nossos (pp. 333-34). A visão diferencial leva, no plano do estilo, a duas con-
quanto entre os selvagens Americanos” (p. 105). sequências importantes.
A necessidade da experiência pessoal leva a outra Falar do mundo é inventariar diferenças e mostrar
A primazia do olhar traz consigo, no método, vários consequência: ela investe o sujeito de um papel fun- ideias claras e distintas. Isso não supõe que o Novo Uma literatura do olhar se realiza por meio da descri-
pontos essenciais. Se a observação e sua restituição fiel damental. O que não apareceu no seu campo de Mundo não tenha relação com o Antigo: a percepção ção. Enquanto a perspectiva analógica, fundada sobre
são operações suficientes, de imediato segue-se que o visão não poderia, em princípio, ser relatado. Ne- da alteridade opera no interior de um sistema no qual a similitudes ou afinidades, se exprime em voltas meta-
116 fato singular e o simples evento podem ser transmitidos nhuma surpresa, então, que a Viagem ao Brasil seja realidade familiar funciona como ponto de referência. O fóricas, a atenção ao singular postula, ao contrário, um 117
texto literal, cujos termos, unívocos, designam o objeto seu próprio caminho, explicite a ordem de suas sequên- ao terreno, que igualam com frequência as qualidades dispõe de uma boa informação, e registra de bom gra-
sem ambiguidade. Os tropos implicam correspondên- cias, multiplique reenvios internos e, em intervalos re- de Léry. Mas a grande diferença é que Thevet não se re- do as descobertas dos espanhóis e dos portugueses. Ele
cias, justamente o que Léry deseja evitar. Eis porque, no gulares, resuma as etapas percorridas. tém nem ao campo limitado do relato de viagem, nem segue Magellan em seu périplo, relata uma expedição à
Prefácio, ele declara endereçar-se “àqueles que amam à pura observação de dados empíricos, nem a um pro- Amazônia, conduz seus leitores ao Peru, depois ao Mé-
mais a verdade simplesmente dita que a mentira orna- Com certeza o resultado é um plano de perfeita limpi- jeto simplesmente descritivo. Ele é, também e sobretu- xico e à Flórida; inclui algumas páginas sobre as Antilhas
da e disfarçada de bela linguagem” (p. 98). Isso significa dez, muito cuidadoso, muito consciente de si mesmo. do, um cosmógrafo10: quer conheça ou não, pretende, e finalmente o Canadá, do qual lhe falou, segundo ele,
dissociar-se, com toda a clareza, da tradição mágica, A listagem etnográfica procede segundo categorias porém, abarcar o mundo inteiro e não submete seu seu amigo Jacques Cartier.
que justamente oculta o fato concreto em um tecido de bem definidas: fauna, flora, depois os costumes, eles repertório a qualquer restrição. Singularidades recorre
relações e a ele confere ressonâncias simbólicas em que próprios subdivididos em capítulos claramente delimi- sucessivamente a dois métodos: assim como a relação Thevet pontua esse percurso cosmográfico de obser-
o referente se esconde. tados: a guerra, a vingança, a religião, o casamento etc. sobre o Brasil refere-se a coisas vistas, e com um certo vações acerca da superioridade da experiência: topos
Quanto ao restante, a ordem, linear, é modelada pelo rigor, as duas viagens (pp. 43-113, de ida; pp. 210-306, estranhamente desvalorizado. Já nos capítulos sobre o
À autonomia dos fenômenos, no plano de visão, corres- desenrolar da experiência. Léry segue desde o início o de retorno, seja quase dois terços do livro na edição de Brasil, os mais documentados, a extensão da informa-
ponde então, no nível literário, um resultado de igual avanço cronológico de suas descobertas e depois, en- Lestringant [1994]) servem de pretexto a um discurso ção parece pouco compatível com uma estada de dois
alcance: a dignidade do discurso literal e da descrição gajado na descrição, situa os fenômenos segundo sua expansivo em que a distinção da experiência e do ouvir- meses e meio. As fontes secundárias – encontros, ouvir-
simples, tradicionalmente relegados ao gênero baixo. contiguidade no espaço, à medida que o olhar progres- -dizer, do fato singular e das perspectivas globais se -dizer, leituras – deveriam completar a observação di-
Porque Deus afiança o valor do singular, o livro se con- sivamente dele se apodera. Assim: “Eis então as casas confundem. Para acusar o contraste com Léry, geral- reta. O próprio objeto do discurso, nessas páginas – as
tentará em descrever. Léry, como escritor, explora de de nossos selvagens, prontas e mobiliadas, porque mente se apegarão ao fato de que a segunda fórmula “Américas”, os “Selvagens” –, resta frequentemente in-
modo tão feliz os recursos do vocabulário concreto, se agora chegou o tempo de vê-los em suas moradias” (p. deixa transparecer, em Thevet, o cosmógrafo sobre o determinado: Thevet retorna às populações específicas
detém com tanta atenção ao detalhe das aparências, de 449). O texto justapõe os elementos segundo sua posi- investigador, o compilador sobre o etnólogo. Aliás, não que ele visitou ou, por deslize metonímico, aos Índios
fatos e gestos, que os etnólogos reconhecerão nele um ção empírica e restitui, tanto quanto possível, o quadro se procurará distinguir o que pertence propriamente a em geral, aqueles que ele conhece e aqueles que ouviu
mestre, pela precisão de sua informação documentá- espaço-temporal em que foram percebidos. De modo Thevet e o que resulta da colaboração do livreiro Am- dizer? Quando se refere, em outras passagens, à Àfri-
ria. Não há imprecisões ou omissões. Quer se trate de que, mesmo na disposição de seu livro, Léry toma par- broise de la Porte e do “negro” Mathurin Héret. ca, à Ásia e ao resto da América, a incerteza não é mais
animais ou da vegetação, dos costumes alimentares ou tido pelas categorias claras e distintas, pelas relações permitida: à evidência, ele adiciona uma imensa erudi-
das práticas guerreiras, está presente, a cada página, a pragmáticas e contingentes. Destinada à observação imediata dos horizontes mais ção que empresta de todo o tipo de autoridade. Sob o
mesma vigilância, a mesma qualidade da observação distantes, a relação de viagem, na obra de Thevet, texto se percebem camadas, profundas e persistentes,
respeitosa diante da realidade tal e qual. obedece com rigor a um princípio de dilatação sem li- estratos de cultura e de leitura, de filosofia escolástica
mites. A cada etapa, o texto se distende para abarcar e de ciência humanista. As relações dos viajantes ou
A descontinuidade do mundo coloca ao escritor um úl- André Thevet o conjunto do continente do entorno e mobiliza, para as lendas que elas suscitaram, os livros dos modernos
timo problema. Se as coisas não estão dispostas entre completar a experiência, uma vasta erudição livresca. e dos antigos; tudo é bom para completar as lacunas e
elas segundo uma ordem preexistente e necessária, As singularidades da França Antártica é apresentada O navegador percorre, na ida, as costas africanas: é a apreender o mundo em sua totalidade.
qual partido tomar na organização do livro? O desapa- como um relato de viagem, ordenada também confor- ocasião de discorrer sobre o conjunto da região, sobre
recimento da analogia levanta a questão da classifica- me as três etapas seguidas pela obra de Léry: traves- as raças negras e a estranheza de suas práticas. Pouco a Entre a prática pessoal e o saber mediado, entre as dife-
ção. Desde o momento em que os fenômenos não mais sia, estada com os tupinambás, retorno à França. Se pouco, a visão se alarga logo ao Extremo Oriente, onde rentes fontes exploradas alternadamente, Thevet, aliás,
estão reciprocamente implicados, eles devem ser orde- Lévi-Strauss celebra a Viagem à terra do Brasil como o ela se demora, a tempo de algumas aproximações. A ro- distingue mal. Ele passa, indiferentemente, em sua ex-
nados segundo um novo princípio, empírico ou lógico, “breviário do etnólogo”, Alfred Métraux, por sua vez, dá ta do Oeste invoca e implica a rota do Leste, ainda que posição, da certeza à opinião, do fato verificado à con-
mas certamente liberado das hierarquias espirituais. Es- grande importância à documentação de Thevet e não a atenção, raramente focalizada, englobe as terras mais jectura, como se o estatuto do verdadeiro e do verossímil
sa ordem imanente, cabe ao escritor estabelecê-la. Ora, entra em questão de minimizar seu valor9. Os capítu- diversas. Na volta, após uma longa parada no Brasil, o fossem equivalentes. O testemunho livresco de um Aris-
Léry, precisamente, problematiza a busca da dispositio, los sobre o Brasil, particularmente sobre a religião e a livro retoma suas extrapolações para cobrir dessa vez o tóteles, de um Plínio, de um Ptolomeu, é citado do mes-
ao ponto de falar disso constantemente. É um aspecto magia dos indígenas, fornecem uma informação deta- conjunto da América e as regiões do Pacífico. Thevet se mo modo, e carregado do mesmo crédito, que a própria
118 espantoso de sua prosa que ela comente regularmente lhada e testemunham uma curiosidade, uma atenção interessa pelos progressos da colonização, sobre a qual experiência. Em acordo com os princípios da imitatio, 119
Thevet se apropria do saber de outros e o absorve como assim como explicações sem relação com a materialida- Não há traços, aqui, de um discurso crítico sobre si mes- Thevet se alinha abertamente à velha doutrina das atra-
se fosse seu. Disso resulta uma ambiguidade quase cons- de dos fatos. mo. A Revelação funciona como um foco de intolerân- ções secretas entre as partes do grande Todo: “É certo
tante sobre a origem de sua informação. A identidade cia e legitima a colonização em seus piores excessos. que há alguma simpatia entre as coisas e alguma anti-
do investigador é apenas esporadicamente precisada. De acordo com a fórmula antiga, o viajante é, pois, um Thevet cita com admiração as conquistas espanholas patia, que não se pode conhecer senão por uma longa
Se Thevet se põe de bom grado em cena, às vezes como sábio enciclopédico, um filósofo, um espírito universal. sem exprimir, com relação aos métodos empregados experiência” (pp. 88-89).
sujeito observador, frequentemente como sujeito conhe- As consequências dessa definição são numerosas. Eu nestas, a menor reserva.
cedor, está longe de encenar em papel tão importante darei conta de algumas delas. Um último problema permanece: como dar conta, na li-
quanto o de Léry em sua narrativa. Em páginas inteiras Mas o papel essencial, nessa empresa totalitária, retorna nearidade do texto, desse vasto labirinto? Como ordenar
ele se apaga, se confunde a outros testemunhos e adota Guiado em sua pesquisa por amplos conhecimentos a ao pensamento analógico. Falar do mundo, para Thevet, o discurso proliferante da cosmografia? Há poucas chan-
um discurso impessoal, em que o objeto parece existir priori, Thevet percorre o mundo para encontrar nele não se trata de detalhar a diversidade, como o fazia Léry, ces de que a experiência, em parte desacreditada, baste
em si, independentemente do olhar que o capta. confirmação do já conhecido e verificar a justeza dos mas buscar revelar a unidade secreta que associa todas para ditar o plano do livro. Ela provavelmente oferece um
sistemas tradicionais. Quaisquer que sejam suas rei- as coisas entre si. Sob sua aparência heterogênea, o cos- eixo diretor, tanto cronológico quanto narrativo, que sus-
A instabilidade do sujeito, a multiplicação das referências vindicações de prático, ele inventa, no sentido latino, mógrafo revela semelhanças, índices de continuidade, tenta o conjunto da composição; ela propõe, na investi-
e das fontes implicam igualmente uma segunda escolha reconstitui os elementos de um saber imutável, de mo- signos de um desenho universal. Sua tarefa, portanto, re- gação sobre o Brasil, conjuntos muitas vezes coerentes.
fundamental do cosmógrafo. Ele se propõe não apenas do que suas referências aos homens e às coisas, forte- side em traçar paralelismos e estabelecer todas as com- Resta que o discurso, quando abarca os mais largos hori-
a mensurar o mundo inteiro, mas pretende também ser- mente determinadas, beiram a intransigência. Tal qual parações possíveis. Nisso ele não falha. Os brasileiros es- zontes, é constantemente quebrado por desenvolvimen-
vir à causa da verdade científica. Pois Thevet aspira a um Léry era respeitoso e curioso da novidade, Thevet, por tão nus? Mas muitos outros povos também estão, o que tos analógicos, que escapam ao princípio de sucessão e
saber global e trabalha, por meio de suas viagens, para sua vez, evidencia às vezes sua rigidez e estreiteza. Em testemunha, todos juntos, um fenômeno sem fronteira. contiguidade. Thevet é conhecido por suas digressões.
o progresso da filosofia natural. Pesquisa totalizante, nome dos valores europeus e das luzes da fé, ele se tra- Uma alta montanha chama a atenção? Ela está relacio- É inútil fazer-lhe uma censura, já que elas decorrem ne-
em que a contribuição do indivíduo é encoberta normal- veste de juiz e, para qualificar os Indígenas, acumula nada a outros picos, sob outros céus, e uma exposição cessariamente de sua visão de mundo. A menor afinida-
mente na massa de conhecimentos adquiridos. O fato epítetos de desprezo. Ele nem chega a temer genera- sobre os pontos culminantes da terra é esboçada. Das de conduz a exposição sobre uma via lateral; basta uma
em si não tem interesse, e a descrição deve conduzir a lizar seu requisitório a toda América, que, por exemplo, similitudes às aproximações desprendem-se constantes, comparação, que pede que seja explicitada e talvez leve
outra coisa além de uma ciência puramente fenomenal. segundo ele: o mundo se estreita. Aliás, a rede analógica não se esten- a outras, para que o texto comece a proliferar. As simili-
Tal dado singular, sem valor próprio, demanda que seja de apenas através do espaço; ela se inscreve também na tudes inflam o discurso, estendem-no em camadas hori-
religado às suas causas e consequências, aos seus prós e é habitada (...) de pessoas maravilhosamente dimensão temporal, revela permanências, repetições, e zontais, à mercê de paralelismos orgânicos que nada, na
contras longínquos; ele deve ser decifrado como o signo estranhas e selvagens, sem fé, sem lei, sem nega a evolução histórica. Os antigos fornecem aqui um lógica de semelhanças, permite limitar.
de uma realidade bem mais vasta, como uma articulação religião, sem nenhuma civilidade, mas viven- ponto de referência largamente citado para estabelecer
em um sistema que somente lhe confere pertinência. do como bestas irracionais, de acordo como a que o presente reproduz o passado, como se todas as Compreende-se assim porque o livro oscila entre dois
Para falar do mundo, o filósofo deve, portanto, conhecer natureza as produziu, comendo raízes, viven- épocas se assemelhassem e comunicassem entre si. Uma princípios de construção. Ele procede linearmente, por-
as leis ocultas que governam a natureza. Ele procede por do sempre nus, tanto homens quanto mulhe- exploração na Amazônia, por exemplo, conduz a uma sé- que o narrador conta sua viagem, e, ao mesmo tempo,
dedução e dirige sua investigação em função das catego- res, até o momento, talvez, em que eles serão rie de considerações sobre os amazônicos do presente e procede por digressões, porque cada fenômeno pode
rias prévias, em que o fato novo deve ocupar seu lugar. frequentados pelos cristãos, quando poderão do passado, e a ligações que legitimam sua identificação. ser relacionado a uma família analógica. Dessa tensão
Trata-se menos de observar que de explicar: como dar pouco a pouco se desfazer dessa brutalidade resulta um percurso tortuoso, uma disposição frequen-
conta da negritude? Qual é a origem de tal doença? Dos para assumir modos mais civilizados e huma- Em suma, tudo se implica e se toca; as associações se temente confusa, segundo a imagem do mundo com-
tremores de terra do Canadá? Há sempre meio de encon- nos. Por isso nós devemos louvar afetuosa- sucedem em cascata, ditadas pela busca de unidade e pacto e da visão global de Thevet.
trar, nos livros, na herança clássica, nos sistemas de ou- mente o Criador, que nos esclareceu as coisas, coerência. Seria necessário citar aqui algumas páginas,
tros cosmógrafos, uma teoria qualquer, de modo que os não nos deixando assim rudes como esses po- nas quais os encadeamentos se articulam até o ponto Conclusão
empréstimos se acumulam. Desde o início, por exemplo, bres Americanos (p. 122).11 de criarem, através do espaço e de uma época a outra,
Thevet se interessa pelas etimologias, que lhe fornecem verdadeiros microcosmos. Tantas correspondências de Através da oposição entre Léry e Thevet, coloca-se
120 associações inesperadas, significações suplementares, fato postulam uma concepção mágica do universo, e um problema de grande alcance: trata-se da visão de 121
mundo no Renascimento; está em questão o problema Há mais. Nem Léry, nem Thevet, convocados a todo o O perfil de nossos dois autores se confunde e seus sis- LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil.
da epistemologia, segundo as categorias propostas por momento como testemunhas de duas posições inver- temas se misturam. Minha intenção não era apresentar Texto estabelecido por Frank Lestringant a partir da 2a edição
Michel Foucault12. sas, coincidem totalmente com seu papel. Eu já disse Léry e Thevet cada um por si, mas fazer dialogar dois (1580). Paris: Librairie Générale Française, 1994.
que as escolhas de Thevet não são simples e que As métodos e mostrar, por meio do exemplo deles, que a
______________. Viagem à terra do Brasil. Tradução de Sérgio
Mesmo que se proponha a transmitir os conhecimen- singularidades reúnem muitas fórmulas. O cosmógra- literatura de viagem, no século XVI, hesita entre dois
Miliet segundo a edição de Paul Gaffarel. São Paulo: Livraria
tos adquiridos empiricamente e se apresente como um fo não se priva nem dos postulados filosóficos nem da polos. Especulação e prática, atração pelo mesmo e
Martins, 1941.
homem novo, André Thevet ilustra um método ainda exposição de um saber enciclopédico; mas ele maneja conquista da diferença, integração e continuidade, es-
ativo, já envelhecido, em meados do século XVI. As ana- também o lugar da experiência direta, e sua investiga- ses postulados existem simultaneamente e, por sua LESTRINGANT, Frank. Jean de Léry ou l’invention du sauvage.
logias que, aos seus olhos, estreitam o mundo, as liga- ção sabe restituir, quanto limita seu ponto de vista, a tensão, testemunham a instabilidade epistemológica Paris : Honoré Champion, 2005.
ções de simpatia e de continuidade que lhe permitem especificidade dos fatos. que naquele momento reina.
__________________. “É necessário expiar o renascimento? A
postular a universal solidariedade entre as coisas, tudo
abertura antropológica do século XVI”. Disponível em: <http://
isso contribui para a sobrevivência de uma visão unitá- A ironia é que Léry, por sua vez, evolui no sentido con-
www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S003483092009
ria e perpetua um saber tradicional. trário. As variantes que ele faz nas últimas edições da
000100012&script=sci_arttext>. Acesso: 20 mar. 2011.
Viagem (1585, 1599, 1611) tendem claramente a rea-
A atitude de Léry testemunha um movimento, simul- bilitar a dimensão cosmográfica. As adições são de __________________. GOMEZ-GÉRAUD, M. C. (orgs.).
tâneo, de ruptura. Independente dos sistemas prévios, duas ordens14. Por meio de numerosas citações de Referências bibliográficas da apresentação D’encre de Brésil. Orléans: Paradigme, 1999.
liberta dos mecanismos da semelhança, ela participa autores greco-latinos, em que desenvolve uma ampla
MONTAIGNE, Michel de. “Dos Canibais”. In: Ensaios. Porto
de uma exigência científica nova, que busca captar a cultura humanista, Léry opera de início uma série de ATKINSON, Geoffroy. Les nouveaux horizons de la Rénaissance
Alegre: Globo, 1962.
identidade própria das coisas. A natureza deixou de ser aproximações entre a observação imediata e os cos- française. Genebra: Slatkine Reprints, 1969.
um grande Todo, de percorrer relações ocultas, para tumes antigos. Ele autentifica o presente através do THÉVET, André. As singularidades da França Antártica. São
CANDIDO, Antonio. Introdução à Literatura Brasileira. 3a ed.
ser percebida como uma coleção de objetos justapos- passado; funde os dados empíricos e as fontes livres- Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978.
São Paulo: Humanitas, 1999.
tos. Não que o observador tenha se entregado a uma cas. Mas, sobretudo, se as épocas se repetem, os con-
total heterogeneidade. Se os fenômenos não são mais tinentes, por sua vez, assemelham-se. Léry se alinha CHINARD, Gilbert. “Un moraliste voyageur: Léry”. In : L’éxo- Notas
ligados por uma semelhança necessária, eles ao menos a um projeto, inesperado, de “conferência” entre os tisme américain dans la littérature française. Genebra : Slat-
1 Versão modificada do estudo de Michel Jeanneret publicado em Mélanges
se deixam comparar e ordenar. Mas o propósito é, do- povos do mundo. Ele explica, na Advertência de 1611, kine, 1978.
à la mémoire de Franco Simone, 1. IV: Tradition et originalité dans la création
ravante, distingui-los, apreendê-los em sua diferença. que consultou numerosos geógrafos – e cita seus no-
DAHER, Andrea. O Brasil francês: as singularidades da França littéraire, Genebra, Slatkine, 1983, pp. 227-245. [O texto utilizado para esta
A ciência não verifica mais o já conhecido; ela procede mes – para revelar paralelos entre nações e reestabe-
Equinocial (1612-1615). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, tradução foi retirado do livro D’encre de Brésil. Os direitos foram gentilmente
empiricamente e determina conjuntos discretos, dos lecer a unidade fundamental da Criação. Ele se volta,
2007. cedidos por Frank Lestringant, Marie-Christine Gomez-Géraud e Bernard
quais respeita a singularidade. assim, à autoridade de outrem e ostenta, ainda aqui,
Legrand – Éditions Paradigme. Referências completas constam na bibliografia
uma vasta erudição. Desse modo demostrará, diz ele: FRANCO, Afonso Arinos de Mello. O índio brasileiro e a revolu-
da apresentação, ao final desta seção (N. T.)].
Essa oposição, é verdade, permanece bem sumária. Ela “a conformidade dos americanos com os africanos”; ção francesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
fornece pelo menos um modelo e permite talvez esbo- “por isso nossos brasileiros são conformes aos povos 2 Montaigne, Les Essais (I, 31); éd. P. Villey, Paris, PUF, 1965, p. 205. Optamos
JEANNERET, Michel. “Léry et Thevet: comment parler d’un
çar, avistada com muita distância, a sucessão de duas da Flórida e da Virgínia”; relatará “que o que se vê na por fazer a tradução livre dos excertos de Michel de Montaigne, Jean de Léry
nouveau monde? In : LESTRINGANT, Frank e GOMEZ-GÉ-
epistemologias – Renascimento e idade clássica. Mas Ásia, Calecute e Ilhas Orientais é conforme ao que se e André Thevet, mas as quatro obras mencionadas (Ensaios, Cosmografia
RAUD, M. C. (orgs.). D’encre de Brésil. Orléans: Paradigme,
ela demonstra também o perigo da compartimentaliza- vê no Brasil”. Ele não nega que “as diversas nações que Universal, As singularidades da França Antártica e Viagem à terra do Brasil podem
1999.
ção temporal, dado que o século XVI não é redutível ao habitam as quatro partes do mundo (...) sejam muito ser encontradas integralmente traduzidas em língua portuguesa (N. T.).
primeiro método e que, na realidade, os dois modos de diferentes”, mas busca realizar uma vasta síntese, a LEITE, Francisco R. “Jean de Léry, viajante de singularidades”.
3 Optamos por traduzir os nomes das obras citadas no texto para facilitar a
conhecimento se suporpõem; a simultaneidade de nos- fim de “reconciliar, em alguma medida, os povos que Separata da Revista do arquivo n. CVIII, São Paulo, Departa-
leitura. Entretanto, nas notas de referência que seguem, eles estarão conforme
sos dois autores bastaria para comprová-lo13. agora cobrem toda a face da terra”.15 mento de Cultura, 1946.
constam no texto em francês (N. T.).
122 123
4 Ver Le Brésil d’André Thevet. Les Singularités de la France Antarctique (1557), 9 Claude Lévi-Strauss, Tristes Tropiques, Paris, 10/18, p. 64. Ver também a
éd. Frank Lestringant, Paris, Chandeigne, 1997. Suzanne Lussagnet, em Les entrevista, “Sur Jean de Léry”, no início da ed. Lestringant (ver nota 3). De Alfred
Français en Amérique pendant la deuxième moitié du XVIe siècle, t. 1: Le Brésil et les Métraux, ver principalmente La Religion des Tupinamba et ses rapports avec celle
Brésiliens, par André Thevet, Paris, PUF, 1953, publica os capítulos sobre o Brasil des autres tribus Tupi-Guarani, Paris, E. Leroux, 1928.
da Cosmographie.
10 Ele também viajou ao Oriente Próximo (ver sua Cosmographie de Levant)
5 É a que consta da edição de Frank Lestrigant, Histoire d’un voyage faict en e foi designado como Cosmógrafo do Rei. Ver Frank Lestringant, André Thevet,
la terre du Bresil (1578), Paris, Le Livre de Poche, “Bibliothèque classique”, 1994. cosmographe des derniers Valois, Genève, Droz, 1991, e L’atelier du cosmographe
Cito, daqui em diante, essa edição. ou l’image du monde à la Renaissance, Paris, Albin Michel, 1991.

6 Chauveton acrescenta: “Deus não descobriu essas Terras novas de nosso 11 Ronsard, que no entanto conhece Thevet e o cita com louvores, reconhece

extra!
tempo sem grande razão (...) ele desejou que aprendêssemos, na pessoa desses nos brasileiros, por outro lado, uma sobrevivência da idade de ouro: ver Discours
povos selvagens, que se trata de nossa própria Natureza, quando está destituída contre Fortune à Odet de Colligny Cardinal de Chastillon (Oeuvres complètes, ed.
do conhecimento de Deus; e, por assim dizer, fazer-nos olhar na face do outro. Laumonier, i. X, pp. 16-38).
Pois que somos nós, senão o que aqueles são? Pobres cegos, inteiramente nus,
12 Ver Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966.
idólatras, desprovidos de todo bem, de razão, de inteligência, de civilidade, de
polidez, de Religião: de onde vem tudo isso, senão daquele para quem não há 13 É aqui que o recorte de Foucault aparece como contestável. O exemplo
trevas? Deus quis mostrar-nos isso em outro”. (Prefácio à tradução de G. Benzoni, de Rabelais permite a mesma demonstração: ver F. Rigolot, “Cratylisme et
Histoire nouvelle du Nouveau Monde, Genève, E. Vignon, 1579). Esses fragmentos Pantagruélisme: Rabelais et le statut du signe”, in Études rabelaisiennes, 13,
são citados e analisados por A. Dufour em “Quand les Genevois commencèrent-ils (1876), pp. 115-32.
à s’intéresser à l’ethnographie?”, dans Mélanges Pittard, Brive, 1957, pp. 141-149.

extra!
14 Segundo as variantes recolhidas por F. Lestringant na ed. citada (ver nota 15).
7 Em linguagem corrente, toninhas, da família dos golfinhos (N. T.).
15 Ibid., pp 598-600. Ver também a lista de “Livres et auteurs alleguez em
8 Ver, contudo, a última página deste artigo. O estudo de Frédéric Tinguely ceste Histoire de l’Amérique”, ibid., pp. 608-609.
recolhido neste volume, “Jean de Léry et les vestiges de la pensée analogique”,
escrito após este, convida com razão a nuançar minha proposta sobre esse ponto.

124 125
Coletânea de excertos
sobre polêmicas
literárias recentes

Apresentação: Laura Penna Retomamos aqui duas polêmicas literárias recentes,


correndo um duplo risco: primeiro porque, como já di-
Alves e Emmanuel Santiago* to no Editorial, o adjetivo “literário” se aplica a poucos
momentos dessas polêmicas; segundo, porque a per-
cepção de que algo seja recente, para o leitor de hoje,
se restringe, talvez, a semanas. Dada a periodicidade de
uma revista acadêmica, contudo, tivemos a oportunida-
de de nos apropriar desses discursos recentemente ve-
lhos e propor sobre eles um olhar fora do calor da hora,
mas que mantivesse o tom do momento em que foram
publicados. Segue então a tentativa de trazer um pou-
co de literatura para o debate e narrar duas histórias já
conhecidas a partir excertos selecionados com a finali-
dade de tornar evidente a distância entre a maioria das
intervenções e as reflexões que abarcassem os aspectos
*
Emmanuel Santiago é doutorando no Programa de Pós-graduação em propriamente literários dos objetos discutidos. Antes
Literatura Brasileira no DLCV-USP e Laura Penna Alves é editora desta edição. de narrá-las, observemos que selecionar um texto, re-
126 127
Contatos: emmsantiago@gmail.com e laura_penna@yahoo.com.br. cortá-lo e transpô-lo para outro momento enunciativo
é, necessariamente, algo que exige uma inevitável des- seu favoritismo, pressuposto no título de melhor ro- compõem a exposição espetacular de uma briga co- e ceras e não permitem que os tripulantes se transfor-
contextualização. Um enunciado – entendido como ato mance, deixando escapar a vitória na fase mais impor- mercial. Figuramos então duas tartarugas correndo, mem em vítimas de qualquer espécie.
de enunciação – sempre vem acompanhado de um con- tante da competição, aquela que decide o melhor livro onde poderíamos ter duas lebres dormindo.
texto que lhe confere um sentido específico. No entanto, de ficção do ano e na qual são incluídas no júri pessoas O trajeto de Ulisses é regido por um Deus ex machina
não havendo nada que contradiga o excerto dentro da ligadas a instituições do setor livreiro, como o Sindicato Caçadas de Pedrinho e o Programa Nacional Bibliote- cujo paralelo podemos traçar aqui com os interesses de
unidade textual de que foi retirado, ele pode ser pensa- Nacional dos Editores de Livros (SNEL), a Associação ca da Escola (PNBE) mercado, protegidos e alimentados ininterruptamente
do como significativo em si mesmo, assim como no ca- Nacional de Livrarias (ANL) e a Associação Brasileira de por diferentes governos, e que parecem ter criado as
so das citações acadêmicas, que preservam algo de seu Difusão do Livro (ABDL). A partir dessa analogia com A segunda polêmica por nós relembrada também teve condições para esse debate. É necessário lembrar que,
sentido original e adquirem novas nuances no texto em a fábula, organizamos os excertos que alimentaram a início em 2010, quando o Conselho Nacional da Edu- atualmente, a escolha dos livros didáticos e paradidá-
que são inseridas. polêmica, de modo a renomear as assinaturas de al- cação (CNE) emitiu um parecer que apontava, entre ticos que integram a lista do PNBE ocorre unicamen-
gumas intervenções que explicitam um tipo de enga- outras coisas, a necessidade de uma nota explicativa te entre editoras e governo federal, sendo instituições
Prêmio Jabuti 2010 jamento em disputas fundamentalmente de mercado. no livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, que educacionais e professores excluídos desse processo de
Nessa comparação, a separação entre lebre e tartaruga integra a lista do Programa Nacional Biblioteca da Es- decisão e, portanto, prejudicados em sua autonomia
Vamos então a nossa reenunciação interessada. As- realiza a leitura dos excertos como cortina de fumaça cola (PNBE), responsável pela distribuição gratuita de pedagógica. Ora, mas se a verticalização das decisões
sim como na fábula “A lebre e a tartaruga”, atribuída criada para mascarar os interesses puramente comer- livros para o Ensino Fundamental e Médio. Esta foi a so- sobre o ensino tem desfavorecido a atividade pedagó-
a Esopo e recontada por la Fontaine, aqui temos uma ciais da polêmica e fazer-nos acreditar que há, de fato, lução encontrada para responder a uma denúncia, feita gica, ela vem a calhar aos interesses editoriais. O MEC é
competição que contrariou as expectativas daqueles um vencedor e um perdedor. à Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da o maior comprador de livros do Ocidente, sendo o mer-
que a acompanhavam de perto. Em novembro de 2010, Igualdade Racial (Seppir), de que o MEC estaria distri- cado infantojuvenil, graças a isso, consideravelmente
Sérgio Machado, representante da Record, anuncia em No entanto, na charge “A corrida”, fazemos outro pa- buindo livros didáticos e paradidáticos com teor e ex- maior que aquele de livros considerados para adultos.
entrevista à Folha de S. Paulo a retirada da editora do ralelo, em que a discussão literária é a grande lebre pressões racistas, o que contradiria as determinações Há assim um uso do dinheiro público voltado para o
prêmio Jabuti, o mais antigo do país, organizado pela dessa disputa, adormecida e perdedora, quem sabe dessa mesma secretaria. Extrapolando esses espaços benefício de poucas editoras e que prioriza o objeto li-
Câmara Brasileira de Livro (CBL). O livro que ganhou na por excesso de confiança em sua força e astúcia. A institucionais, a polêmica se expandiu para revistas, vro em detrimento, principalmente, daqueles que dão
categoria de melhor romance, Se eu fechar os olhos ago- discussão em torno do Prêmio Jabuti de 2010 não en- jornais, sites e blogs. Contudo, é difícil separar os con- sentido pedagógico a ele. Isso fica claro, no caso em
ra, de Edney Silvestre, publicado pela Record, ficou em volveu o questionamento quanto ao mérito artístico tendores em contrários ou favoráveis aos pareceres, questão, com a lógica lucrativa de resolução dos con-
segundo lugar na categoria de melhor livro do ano de do livro ganhador e prescindiu de uma reflexão mais até porque muitas da falas demonstraram que estes flitos por nota explicativa, nota de rodapé, manual de
ficção, perdendo para uma publicação da Companhia acurada sobre os romances em disputa. Os represen- não foram lidos, ou lidos apressadamente. Por outro explicação etc.
das Letras – Leite derramado, de Chico Buarque –, se- tantes comerciais protagonizaram o debate no espaço lado, isso nos facilita prosseguir em outra narrativa e
gundo lugar na categoria vencida por Edney Silvestre. dos jornais e se concentraram em torno das regras e do recontá-la a partir da passagem da Odisseia em que Pois bem; desse mar de interesses privados surgem
A premiação daquele ano teve a legitimidade de sua funcionamento da premiação, ou seja, do modo de fun- Ulisses, ao sair do Hades, recebe uma visita de Circe, melodias das quais queremos fugir porque as julgamos
decisão questionada publicamente, mas, ao contrário cionamento de um momento estratégico da vendagem que o alerta para a ilha das sereias e o perigo que sua sectárias. Estas são tanto melodias que desencorajam
do que se espera ocorrer em premiações literárias, essa e distribuição dos livros. Agindo de modo previsível, o embarcação correria naquela região. Sob os conselhos o enfrentamento de problemas que nosso tempo colo-
indagação não se deu em torno do mérito do livro ga- que surpreende é a naturalização com que aqueles que da deusa, Ulisses passa por esse mar amarrado ao mas- ca ao texto literário, tal como o problema complexo da
nhador, prescindindo de reflexões sobre os romances. poderiam participar dessa polêmica de modo distinto tro por seus marinheiros, que punham cera no ouvido apropriação literária de estereótipos depreciativos do
não se interessaram pela discussão sobre o valor lite- para também não se atirarem em direção a essas cria- negro – e também de outros grupos que sofrem com
Na fábula de Esopo a tartaruga desafia a lebre para uma rário dos romances. Temos assim, nessa outra apro- turas de canto fatalmente sedutor, mas que repousam o preconceito – em livros com finalidade pedagógica,
corrida e esta, segura de sua superioridade, tira um co- priação da fábula, dois competidores simultaneamente sobre carniça. Assim, relembramos o mar quase unívo- quanto canções paternalistas que parecem confundir
chilo que lhe traz a derrota. A tartaruga, contando com vencedores e perdedores. Vencedores porque garan- co de falas institucionais burocráticas que colocaram e a literatura com uma espécie “mágica” de documento,
o descuido de sua oponente e mantendo-se constan- tiram para si sua circulação por meio de grandes edi- alimentaram esse debate, bem como apontamos o que intimamente ligada a uma concepção obtusa de realis-
te, alcança a inesperada vitória. A exemplo da lebre, o toras, e perdedores porque não despertam a atenção seriam, nesse caso, tanto o dogmatismo do canto da mo e indutora de um comportamento determinado. No
128 romance de Edney Silvestre acabou não comprovando como objetos literários, e sim como mercadorias que sereia quanto as reflexões que operaram como cordas primeiro caso, vimos a defesa de uma “alta literatura” 129
que transcenderia aspectos tidos como de menor im- inclusive, a dificultação do surgimento de formula-
portância, como as questões étnicas e outras relativas ções mais eficazes criadas e aplicadas localmente.
à dimensão simbólica do corpo. Haveria, nesse ponto Esquecendo a submissão geral a um sistema educa-
de vista, uma espécie de dispensabilidade de uma dis- cional verticalizado, os participantes da polêmica pa-
cussão, por princípio, sem legitimidade de existência. receram “comprar” as regras do jogo e querer apenas
No segundo caso, a taxação de um livro como racista substituir um controle por outro. Por outro lado, o
sem a discussão de seus critérios de julgamento, a au- desagrado em relação ao livro Caçadas de Pedrinho
sência de justificativas que partissem de experiências não deveria ser tratado como opinião perigosa a ser
pedagógicas concretas e, por fim, a sugestão de proi- eliminada, mas como posição que precisa ser debati-
bição de sua compra por parte do Estado podem nos da, a começar dentro das escolas, até para que haja
fazer voltar a uma espécie de índex, pois empregam ex- um esforço de representatividade entre aqueles que
pedientes de exclusão muito parecidos com a política supostamente os teriam como porta-vozes de com-
pouco democrática do governo federal. bate ao racismo. Optando assim por fugir de impera-
tivos éticos que, historicamente, já acenderam muita
Nesse sentido, por melhores que sejam as intenções fogueira para se queimar livros e de imperativos es-
em pautar as questões étnico-raciais, eles sempre so- téticos que desprezam o cultivar silencioso de outras
arão restritas se desligadas de questões mais gerais chamas, recontamos essa polêmica por meio de vozes
relativas à política e ao poder. Ao tentar impor uma que contribuíram, como ceras e cordas, para a fuga de
aceitação imediata das políticas de reparação, temos, soluções fáceis para o problema.

130
Tartaruga n. 2 “Advogada” da Tartaruga n. 2 no processo
de anulação da corrida
“A aceitação que busco, mesmo, é a dos
leitores. Não fiz – nem me caberia – ne-
“Eu acho isso um sintoma da nossa pobreza cultural,
nhum comentário público sobre a polêmica
Tartaruga n. 1 da nossa caipirice. No Canadá existe uma situação
do Jabuti (...). Por isso mesmo, só posso
Um competidor fora muito parecida, mas não acontece nada disso. Você
lamentar que, numa discussão em nome
“Não estou aqui para defender a excelência dos meus da competição tem o Leonard Cohen, que é o grande “lyricist“ [le-
de ética, respeito, delicadeza e cultura, se-
romances. Também já compreendi que, para muitos, trista], o grande poeta de música, o grande músico
ja gratuitamente atacado por um dono de “Prêmio literário ‘Jabuti’: a) anda de-
é inconcebível que um cantor e compositor de música nacional, que tem quatro ou cinco romances, vários
uma poderosa editora “concorrente“, que vagar b) prestígio só dentro do casco (in-
popular ganhe prêmios literários.” (Chico Buarque, livros de contos, ele nunca teve que ganhar prêmio no
bem sabe que nós autores – ainda mais telectualoides) c) nunca vendeu livros.”
em e-mail para O Globo, 13 dez. 2011) Canadá, apesar de ser um ídolo nacional.”
iniciantes – somos o elo mais fraco neste
(Paulo Coelho, via Twitter) 3
mercado surpreendentemente tão hostil.”
(Entrevista de Luciana Vilas Boas, diretora editorial
(Edney Silvestre, “Somos o elo mais fraco do Grupo Record, à Folha de S. Paulo, 14 nov. 2010).
neste mercado hostil”, Folha de S. Paulo,
Organizadores do prêmio 28 nov. 2010)
Patrocinador da Tartaruga n. 2
“No ato da inscrição das obras que concorre-
Autor do abaixo-assinado:
ram ao Prêmio Jabuti 2010 – que este ano, a Solidário à Tartaruga n. 1
“Esse prêmio, do jeito que está sendo disputado, pode- “Tartaruga n. 1, devolve o Jabuti!”
propósito, teve recorde de inscritos –, todos
“(...) vi esse manifesto [‘Chico, devolve o ria ser feito na plateia do Faustão. Ou do Silvio Santos.
os participantes declararam conhecer o regula-
Jabuti’] na internet como mais uma Marcha Porque não tem absolutamente nenhum critério. “Me sinto mal ao ler as barbaridades que a petralha-
mento da premiação.”
da Família com Deus pela Liberdade expres- (...) da escreve por lá, dirigidas a você [Reinaldo Azevedo],
(Câmara Brasileira de Livros - CBL, em “Nota sando-se de forma verbal.” Fui apenas o menino da fábula que gritou que o rei está quando o alvo deveria ser a minha pessoa. Li até uma
de esclarecimento à imprensa - Prêmio Jabuti nu. Não quero ser alfaiate de trajes reais, deixo isso acusação de que eu não existo e seria apenas um pseu-
(Caetano Veloso, “A revolta do quelônio”, O
2010”, 13 nov. 2010) para os encarregados de organizar a premiação. Não dônimo seu”.
Globo, 29 nov. 2010)
percebe Schwarcz que a atitude que tomei prima pela
transparência e lisura. Tenho mais a fazer do que discu- (Anderson Santana, autor da petição on-line “Chico, de-
tir remuneração de jurados ou custos de festas, como volve o Jabuti”, via blog de Reinaldo Azevedo)2
Patrocinador da Tartaruga n. 1 propõe ele, para desviar o foco do debate.
(...)
“Se a cada derrota um partido político abandonar o Congresso, ou dizer ‘assim não brinco mais de democracia’, Líder dos opositores à Tartaruga n. 1
o momento que ele tem essa segunda etapa, na qual
para onde irão nossas instituições, qual a possibilidade que teremos de discutir e criar novas regras, em atitude de
você reúne os três primeiros lugares, eles vão para um
respeito aos que pensam diferentemente? “O editor escreve um artigo no caderno
voto entre os associados, um voto que não é atribuído
(...) ‘Ilustríssima’, na Folha deste domingo.
ao mérito, porque nenhum dos associados terá lido
Atribuir a vitória de “Leite Derramado“ à simpatia do escritor pela candidata vencedora das últimas eleições, poucos Tropeça várias vezes: na tese, no mérito e
aqueles livros. Se algum leu, foi o seu, e acaba sendo
dias após a realização destas, é apenas mais um capítulo da história política brasileira recente (...). Não discutimos até no subjuntivo – pelo visto, o artigo não
um concurso de beleza, passa a ser um voto de simpa-
propostas de governo na campanha eleitoral, assim como não discutimos os possíveis problemas dos nossos prê- foi enviado a tempo a um dos revisores de
tia.”
mios literários. Coincidência?” sua empresa. Vamos lá. Ele segue em ver-
(Entrevista de Sérgio Machado, presidente do Grupo melho. Eu vou de azul.”
(Luiz Schwarcz, editor da Cia. das Letras, “Quem garfou Edney Silvestre? – ou como se discute um prêmio literário
Record, à Folha de S. Paulo, 14 nov. 2010)
no Brasil”, Folha de S. Paulo, 21 nov. 2010)
(Reinaldo Azevedo, via blog)1
132 133
ESTE É O TAMANHO MÁXIMO QUE A
IMAGEM ALCANÇA MANTENDO A RE-
SOLUÇÃO NECESSÁRIA PARA IMPRES-
SÃO COM QUALIDADE (270 DPI)
O canto da sereia e a volta das metáforas
“A academia, na linha das suas convicções democráticas,
biológicas
rejeita qualquer tipo de censura e entendeu a manifestação
“Não há veto e não há censura na decisão do “Décadas se passaram. Expressões que não eram
do Conselho como uma forma de censura.”
CNE. Há esclarecimento e orientação. Quem se consideradas ofensivas, hoje são. Mas, em se “Quando Monteiro Lobato escreve: ‘Tia Nastácia, esquecida
opõe a isto parece não compreender que todos (Marcos Vinícios Vilaça, presidente da Academia Brasileira de Letras – ABL, tratando de Monteiro Lobato, de um clássico dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma
têm direito à informação correta.” em declaração à reportagem “Livro de Monteiro Lobato é liberado para ser brasileiro da literatura infantil, nós só temos macaca de carvão’, o que ele faz é usar duas compara-
usado em sala de aula”) que contextualizar, advertir e orientar sobretudo ções, uma retirada do reino animal, para descrever a ação,
(Maria Izabel Azevedo Noronha, presidente da Apeoesp
o professor sobre como lidar com esse tipo de e outra de elementos da natureza, para descrever a cor.
e membro do Conselho Nacional de Educação)6
matéria em sala de aula.” (...) Se a diversas pessoas for perguntado qual animal sobe
rápido em troncos, nove entre dez citarão o macaco. E Tia
(Fernando Haddad, ministro da Educação, em declaração
Nastácia, uma das personagens mais queridas e simpáticas
à reportagem “Livro de Monteiro Lobato é liberado para
da literatura brasileira, era uma senhora negra. Terá alguma
ser usado em sala de aula”)
“As expressões que o livro contém são expressões de um conteúdo forte- etnia – ou qualquer outro grupamento humano – o privilé-
mente preconceituoso e que precisam de tratamento explicativo na sala de gio de não poder ser exposta ao cômico ou ao ridículo? O
aula pra que não se ofenda a autoestima das crianças e dos leitores.” curioso é que quase todas as chamadas minorias afirmam
querer ser reconhecidas como o que são, mas quando o
(Eloi Ferreira de Araújo, ex-ministro-chefe da Seppir, em declaração à reportagem “Livro de
“Me parece evidente que as aulas são, acham-se ofendidas.”
Monteiro Lobato é liberado para ser usado em sala de aula”)7
de leitura são fundamentais para
(Alexei Bueno, “Quem é racista”, Jornal Literário Rascunho)
a formação de leitores. Mas eu
não sei até que ponto as crianças “Deixo claro, para que me critiquem melhor: defendo que
A cera e o mastro
devem ser obrigadas a ler os câ- sejam suprimidas ou reescritas todas as passagens racistas
“É triste perceber que, na opinião da maioria da sociedade, o racismo não é tão perigoso como o nazismo, tão abomi- nones. Recentemente houve uma dos textos infantis de Monteiro Lobato. Ou no mínimo – a
nável como a pedofilia, tão ofensivo como a simples invasão de privacidade.” (Alberto Mussa, “Me convençam”, Jornal polêmica em torno de um livro do exemplo do que se faz com o fumo – que se advirta: ‘Es-
Literário Rascunho) Monteiro Lobato, por causa das te livro contém pensamentos e expressões que configuram
expressões racistas que ele usa discriminação racial’.”
“Como os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que quem paga
para se referir a uma personagem
o livro escolha a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Ver- (Alberto Mussa, “Me convençam”, Jornal Literário Rascunho)8
negra. Sou contra censurar ou al-
melho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se
terar o conteúdo das obras, mas
o final da história e re-escreve-se a letra da música porque se acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das
acho que o Estado não deveria
canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos. Trata-se de uma ideia pobre, precária e incorreta que, além de
adotar livros com esse conteúdo “Sendo assim, é necessária a indução dessa política pública, pelo Governo do
considerar as crianças como tontas, desconsidera a função simbólica da cultura.”
em sala de aula. Se eu tivesse um Distrito Federal, junto às instituições de ensino superior, com vistas a formarem
(...) filho negro, não gostaria que ele professores que sejam capazes de lidar com esse tipo de situação no cotidiano
fosse obrigado a ler Monteiro Lo- escolar.
Um bom leitor de Lobato sabe que Tia Nastácia encarna a divindade criadora do Sítio do Picapau Amarelo. Ela é quem
bato na escola. Não gostaria de
cria Emília, de uns trapos. Ela é quem cria o Visconde, de uma espiga de milho. Ela é quem cria João Faz-de-Conta, de um A obra Caçadas de Pedrinho só deve ser utilizada no contexto da educação
vê-lo exposto a este maltrato.”
pedaço de pau. Ela é quem “cura” os personagens com suas costuras ou remendos, quem conta as histórias tradicionais, escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que
quem faz os bolinhos. Se é mostrada como negra e ex-escrava, é porque essa era sua cor e a realidade dos afrodescen- geram o racismo no Brasil.”
(Paulo Franchetti, Correio Popular
dentes no  Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica.”
de Campinas) (Nota Técnica CNE/CEB nº 044/2010)5
136 137
(Marisa Lajolo, “Governo Lula censura Lobato”, Sibila)9
5 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content
Notas
&view=article&id=12992:diretrizes-para-a-educacao-basica&catid=323:orgaos-
vinculados>. Acesso: 13 jan. 2011.
1 Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/>. Postado em 22
nov. 2010. Acesso: 15 fev. 2011. 6 Disponível em: <http://apeoesp.org.br/clipping/monteirolobato.html/>.
Acesso: 25 fev. 2011.
2 Postado em 30 nov. 2010. Acesso: 15 fev. 2011.
7 Disponível em: <http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2010>.
3 Disponível em: <http://twitter.com/#!/paulocoelho>. Postado em 29 nov.
Postado em 5 out. 2010. Acesso: 20 nov. 2010.
2010. Acesso: 23 fev. 2011.
8 Disponível em: <http://rascunho.rpc.com.br/index>. Postado em nov.
4 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content
2010. Acesso: 12 fev. 2011.
&view=article&id=12992:diretrizes-para-a-educacao-basica&catid=323:orgaos-
vinculados>. Acesso: 13 jan. 2011. 9 Disponível em: <http://www.sibila.com.br/index.php/mix/1686-governo-
lula-censura-lobato>. Postado em ago. 2010. Acesso: 20 nov. 2010.

138 139
vamos, vamos,
responda!
entrevista com os
professores

Respondem à entrevista que Primeiro bloco:

se segue os professores Alcir 1) Em 2010 houve uma grande polêmica em torno da


Pécora, Marcos Natali, Roberto­ atribuição do prêmio Jabuti. Não é a primeira vez que
a atribuição de um prêmio gera polêmica no campo
Acízelo, Costa Lima, Alcides literário. Nesse sentido, poderíamos pensar uma es-
pecificidade ou interesse particular nesse episódio?
Vilaça, João Adolfo Hansen e Qual a sua posição em relação a ele?
Cláudia Amigo Pino*­. Alcir Pécora − Prêmios são mais importantes como
iniciativa comercial do que literária: abrem espaço na
<?> *Alcir Pécora é professor do Departamento de Teoria Literária do Instituto
mídia ou certificam, por alguma suposta autoridade, o
de Estudos da Linguagem na Universidade de Campinas (Unicamp). Marcos
valor de determinada obra, lançada por esta ou aquela
Natali é professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
editora. Este foi o móvel desta briga em torno do Ja-
da Universidade de São Paulo (USP). Roberto Acízelo é professor do Instituto
buti: os autores da Record se sentiram prejudicados
de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Costa Lima e
em relação aos da Companhia das Letras, por um re-
professor do Departamento de História da Pontifícia universidade Católica do
gulamento que tende a favorecer o autor que já é mais
Rio de Janeiro (PUC-Rio). Alcides Vilaça e João Adolfo Hansen são professores do
popular antes da premiação, em detrimento das obras
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras
concorrentes dentro da premiação. Quaisquer que se-
e Ciências Humanas da USP. Cláudia Amigo Pino é professora do Departamento
142 jam os regulamentos, entretanto, prêmios raramente 143
de Letras Modernas da USP.
criam perspectivas ou interesses literários, pois apenas é tonto em si mesmo, uma vez que obra de arte, por antes mesmo que elas terminem de ser formuladas fa- quando a literatura se entende exclusivamente como
premiam o que está, digamos, num gosto médio da natureza, é problemática e deve conduzir ao debate; já cilmente leva à polemização, truncando a reflexão. Às um direito de representação privada de grupos ou de
opinião dos julgadores, muitos deles envolvidos direta- o lado que via necessidade de submeter Lobato à crítica vezes o termo “politicamente correto” aparece atrela- indivíduos. Com qual direito se pode criticar aquele
mente no processo de comercialização do livro. Logo, a ou nota explicativa, pensava nisso como uma forma de do à insinuação de que haveria algo de suspeitamente que, ao falar, manifesta um direito inalienável perten-
tendência é premiar a mediania e repetir o modelo con- aproximar o texto original de uma posição atual dada estrangeiro na crítica. (O curioso é que não seria desca- cente a um grupo ou a cada um? Com base em valores
sagrado. No melhor dos casos, os prêmios conciliam os como certa, digna e irretocável. Evidentemente, não é bido afirmar que também importamos a crítica ao “po- universais literários, dificilmente, pois não há mais fun-
interesses pecuniários do mercado com os valores me- o caso: a significação de uma obra, relativa ao debate liticamente correto”...) Com isto, impede-se a formula- damentos transcendentais em que confiar; com base
dianos da crítica. Mas qual é a graça disso? que suscita no próprio tempo dela e à possibilidade de ção de uma reflexão crítica sobre o racismo brasileiro, em valores nacionais, tampouco, pois todos os interes-
sua conversão ao debate do tempo presente, não po- que é então retirado da pauta de nossos debates. ses nacionais já se definem num contexto internacio-
Marcos Natali - Não tenho certeza se o que houve no de ser pensada como uma relação do inferior, infantil, nal. De minha parte, entretanto, acho que uma obra de
caso do Prêmio Jabuti foi exatamente uma polêmica, ultrapassado ou primitivo em direção à versão corren- Mas talvez o mais relevante no caso da polêmica re- arte suscita objetivamente um ato de juízo: o objeto
no sentido citado abaixo, ou uma divergência em re- te da suposta verdade contemporânea. O importante cente em torno da obra de Monteiro Lobato seja o sur- artístico mesmo não se cumpre sem a crítica. O que
lação aos critérios utilizados para a concessão de um de uma questão como essa é que ela acentue as impli- gimento manifesto de um lugar de enunciação antes implica que uma crítica hoje, para ser sustentada, tem
prêmio literário. Minha “posição” em relação ao caso é cações de toda sorte, muitas vezes contraditórias nas ausente (ou silenciado) no debate público. Assim, os de trabalhar intensamente, primeiro, a descrição dos
que, em situações como esta, talvez o mais estranho obras de arte. Não vai nisso, de minha parte, nenhuma comentários puderam deixar de ser exclusivamente o decoros implícitos na obra (e não em paradigmas ou
não seja que as regras da competição sejam estas ou implicação de que Lobato seja autor de primeiro plano já habitual “Mas eu cresci lendo Monteiro Lobato e isso universais); segundo, a constituição de um repertório
aquelas, mais ou menos esdrúxulas, mas que obras lite- ou incontornável nas escolas brasileiras. Vejo no caso não fez de mim uma pessoa racista”, curiosa forma de vasto de leituras que permitam relacionar o objeto par-
rárias sejam hierarquizadas e divididas entre vencedo- apenas uma boa ocasião para se pensar obras como lu- autoabsolvição, para incluir também depoimentos de ticular com o campo literário assim experiencialmente
ras e perdedoras, sugerindo que se trata de algo seme- gares importantes de debate cultural e não de anúncios outra natureza, ilustrando, por exemplo, o que pode constituído. Nestes termos, não apenas a polêmica não
lhante a uma corrida de cavalos. de verdades de qualquer gênero. ter significado ser alvo, no recreio, de epítetos racistas é decadente, como é afirmação da possibilidade de crí-
que os colegas aprenderam em livros de Monteiro Lo- tica. Quando não há certezas, apenas cabe insistir so-
2) Também no ano de 2010 tivemos uma polêmica Marcos Natali – O debate não só me parece pertinen- bato lidos pela professora em sala de aula. Para que o bre a relevância dos argumentos. Recusar a polêmica
gerada pelo parecer do Conselho Nacional de Edu- te, mas talvez seja um acontecimento importante na debate seja produtivo, é também desses testemunhos e o debate me parece deixar todo o espaço da cultura,
cação (CNE) que pedia que houvesse, na publicação reflexão contemporânea sobre literatura no Brasil. De que precisamos, algo como um arquivo coletivo de de- senão para a violência do mercado, para os rancores e
dos livros de Monteiro Lobato a “inserção no texto tudo o que pode ser dito sobre o caso – que merece poimentos sobre a experiência cotidiana de viver em ressentimentos, nos quais não há como, nem porque,
de apresentação de uma nota explicativa e de es- estudos sérios – ressalto duas questões. Em algumas ambientes marcados pelo racismo. produzir argumentos ou arrazoados.
clarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e discussões, em resposta à alegação de que haveria
críticos que discutam a presença de estereótipos na conteúdo racista na obra de Monteiro Lobato, negou- 3) A polêmica pode ser entendida em termos de um Marcos Natali – Não saberia dizer se houve um declí-
literatura”. A exigência da “nota explicativa” rece- -se a possibilidade de uma avaliação “moral” ou “ética” debate acalorado, mas também como gênero textu- nio na polêmica nos últimos séculos, até porque pre-
beu diversas interpretações e dela resultaram outras da literatura, bem como sua redução a instrumento al que emprega recursos como a acusação pessoal; a cisaríamos pensar em variações (nacionais, regionais,
tantas consequências. Alguns a acharam autoritária, pedagógico, na mesma fala em que se defendia a pre- hipérbole; a caricaturização da posição adversária; a etc.) dentro de uma ampla história da polêmica. É uma
outros a acharam tímida e sugeriram alterações no sença da literatura – e em particular da obra de Mon- criação de estigmas etc. Você concorda com o diag- história desse tipo, aliás, o que Foucault cobrou, em
texto de Lobato. Você acredita na pertinência deste teiro Lobato – na sala de aula. Exigia-se assim para a nóstico de que, do século XIX para cá, o gênero es- entrevista sobre a polêmica concedida pouco antes de
debate? Concorda com os termos em que ela se deu? literatura uma espécie de imunidade, qualquer crítica tá em decadência ou estaríamos presenciando uma sua morte, um dos mais esclarecedores textos sobre o
à obra sendo imediatamente caracterizada como cen- mudança em sua função social, acompanhando uma tema que eu conheço, em argumentação que retomo
Alcir Pécora - O debate é pertinente, mas bem menos sura (quando não era, afinal, censura o que se cobrava). mudança no papel da própria literatura? aqui. O polemista, dizia Foucault, se concede certos
são os termos em que se realizou. A coisa se estereo- Ou então a crítica era descartada como exemplo do privilégios, que possui a priori e que não está disposto a
tipou de ambos os lados: quem via autoritarismo ou “politicamente correto”, em sinal do tipo de dificuldade Alcir Pécora – Acho que a polêmica é apenas um subgê- questionar. Possui, sobretudo, o direito de ir à batalha,
censura na ação do MEC, parece que tornava a obra de que este debate enfrenta no Brasil. O uso da expressão nero da crítica, como a invectiva ou o encômio são do em guerra justa, fazendo do outro não um interlocu-
144 arte sagrada ou acima de qualquer debate civil, o que como uma forma de anular certas expressões críticas epidítico. A crítica como um todo está em decadência, tor, mas um inimigo, alguém cuja simples existência é 145
já uma ameaça. Nesse combate o objetivo passa a ser dizer também que a polêmica continua sendo preferí- as novidades literárias, a partir de sua “cultura geral”, empresariais e os meios políticos, vêm, em geral, a
aniquilar o opositor, não se aproximar de uma questão vel a outro gênero característico de nossa área: a intri- isto é, sem conceitos que fossem familiares apenas a cultura como ornamento dispensável. Neste sentido,
difícil. Assim, o triunfo na disputa, assegurando a vitó- ga de bastidores. especialistas e destinados a recepção por leitores tam- pode-se dizer que nada mais parecido com um marxis-
ria da causa, só pode ser a renúncia ou o desapareci- bém não especializados, isto é, dotados tão-só de sua mo reducionista, para o qual o único decisivo é o fato
mento do outro. Segundo bloco: “cultura geral”. Aí parece que os espaços nos jornais se econômico, tudo mais sendo ideologia e superestrutu-
encolheram e, ao mesmo tempo, os estudos literários ra, que o pensamento burguês-empresarial. Por con-
Na polêmica, não se imagina que a contenda em si seja 1) Pouco tem sido debatida a relação entre pesqui- foram virando assunto de profissionais universitários seguinte, como a pesquisa universitária não se dirige
geradora de conhecimento. Aliás, perguntará Foucault, sa universitária, mercado editorial e imprensa. Co- altamente especializados. Com isso, a análise literária imediatamente ao consumo, ela se depara com os en-
alguém já viu uma ideia nova surgir de uma polêmica? mo você concebe essa relação e que mudanças você mais técnica (em princípio, mais profunda) fecha-se nas traves do mercado editorial e com a imprensa – veja-se
Não é de se estranhar, dado que na polêmica os interlo- identifica nela ao longo dos últimos 30 anos? Você universidades, e a crítica de jornal, pelo menos nos seus o desaparecimento progressivo dos suplementos; (b) a
cutores são incitados a não se arriscarem, a não admi- acha que há uma separação radical entre pesquisa exemplares mais típicos e mais numerosos, vira uma administração universitária, entre nós, ou não tem for-
tirem dúvidas ou ambivalências. Ao contrário, devem universitária e crítica literária? Qual o papel que você espécie de release sobre livros, com julgamentos de ça junto à direção política federal e estatal ou não se
recuar e defender suas posições originais. Uma ideia acha que a crítica literária cumpriria na relação entre qualidade explícitos e sem base analítica. Mas me pa- interessa em difundir pela sociedade as pesquisas fei-
nova não pode surgir de uma polêmica porque o que esses espaços? rece que não é impossível, para um especialista sólido tas em seus departamentos e institutos. Daí a extrema
se denuncia no outro é uma deficiência moral, quando na sua disciplina, escrever matéria de divulgação, com raridade das editoras universitárias, que, quando exis-
não a existência de interesses escusos, e em ambos os Roberto Acízelo – Costumo fazer uma distinção entre a devida qualidade conceitual de que carece a grande tentes, sofrem da ausência de publicidade suficiente.
casos a interlocução está interditada e a reflexão não é teoria da literatura e crítica literária, termos que, em maioria dos artigos críticos que hoje frequentam su- Quantas vezes temos ficado sem saber da edição de
necessária. geral, são vagamente tomados como sinônimos. E acho plementos dos nossos principais jornais. É possível sim algum livro que nos importa simplesmente porque ele
que analisar a produção literária é tarefa que vai do me- conciliar rigor nos conceitos e linguagem comunicati- não foi noticiado?; (c) além do nível alto do analfabetis-
A piada, o sarcasmo, a desqualificação jocosa, a saca- ro palpite mundano — “Adorei o romance ‘x’, que acabo va. No entanto, acho que os especialistas universitários mo entre nós, além da enorme desigualdade econômi-
da ferina, o golpe certeiro são lances para a torcida, de ler.” Ou “Que bonitas as poesias de ‘fulano de tal’.” não devem estar preocupados obsessivamente com ca entre a grande maioria da população e um escasso
tendo como resultado o enrijecimento de um “nós” já — até considerações mais especializadas, por exemplo, serem entendidos pelo “grande público”. Por que isso é meio com poder financeiro, não se estabeleceu, entre
conhecido. No entanto, voltando a Foucault, o impor- apresentadas numa aula de pós-graduação de um cur- cobrado deles, e não, por exemplo, de seus colegas físi- nós, até hoje, o hábito da leitura. Isso vem de nossos
tante nessas situações seria justamente tornar possí- so de letras — “Na perspectiva da descontrução, etc., cos? Já pensou se os físicos tivessem obrigatoriamente colonizadores – João de Barros já se queixava de que
vel um “nós” que ainda não existe e que, na verdade, etc.”. Entre esses extremos há lugar para muitos e mui- de explicar suas coisas para o senso comum? os portugueses não costumam ler – passou para a colô-
surgiria na própria formulação da pergunta, um “nós” tos matizes. Quanto à crítica veiculada nos jornais, uma nia, com a ausência de cursos superiores e permaneceu
que fosse o resultado, necessariamente temporário, da vez que destinada a público não especializado, natural- Costa Lima – Não se vê esse hiato nos países mais de- depois da independência, pois só há poucas décadas se
própria pergunta. A tarefa, em certas situações, pode mente que não cabe utilização de terminologia técnica; senvolvidos. Dou como exemplo os Estados Unidos, estabeleceram as redes universitárias.
ser provocar algum deslocamento nas posições exis- mas também não cabem palpites sem lastro analítico e, a Inglaterra e a Alemanha. Nos Estados Unidos, é a
tentes, para que o campo já não pareça tão definido e o pior, é que tais palpites são, em regra, feitos num tom pesquisa universitária que alimenta as editoras univer- Creio que a questão levantada é seríssima. Como se po-
para que as posições disponíveis no tabuleiro precisem de juízo final (“O romance peca por excessos descriti- sitárias – cuja importância no mercado editorial não de pensar que esse país saia da marginalidade em que
ser pensadas mais uma vez, abrindo no campo espaço vos e porque o desenho dos personagens não chega a poderia ser negada senão por um ignorante. Sua rela- tem estado e de que se diz que deixou de estar recen-
para uma posição que ele não previra. A reação a essa convencer o leitor” etc., etc.). ção com a imprensa pode ser vista pela consulta de um temente se o estrangulamento da cultura permanecer?
tentativa é frequentemente o esforço por reafirmar o jornal de resenhas como o New York Review of Books.
fechamento do campo, traduzindo novas posições de Quanto à pergunta sobre as mudanças nos últimos Idem na Inglaterra, como se verifica pela consulta do Passo à questão da pesquisa universitária e a critica
volta àquelas já conhecidas, insistindo deste modo que 30 anos, puxa!, precisava talvez de umas 30 páginas Time Literary Supplement. Idem na Alemanha: tenha- literária. Até o século XIX, ela era verdadeira pratica-
já se conhece o adversário. para respondê-la. Mas parece que a coisa se passou -se como fonte de verificação o Franfurter Allgemeine mente em todo o Ocidente. Não mais no século XX,
assim, em síntese bastante brusca: primeiro os críti- Zeitung. Por que então tal hiato se cumpre entre nós? nos países desenvolvidos. Entre nós, ao contrário, a
Não me parece que nada disso tenha desaparecido do cos reconhecidos como tais publicavam ensaios ex- Algumas razões parecem-me importantes: (a) aqueles designação crítica literária se restringia ao que era pra-
146 nosso meio. E, no entanto, apesar de tudo, é preciso tensos, comentários livres de extensão razoável sobre que entre nós têm condições de decisão, i.e., os meios ticado nos suplementos literários, os quais, mesmo por 147
sua natureza de órgão vinculado a um meio de massa, Terry Eagleton – tão ruim quanto bem sucedido mun- Costa Lima – A ausência de padrões normativos na fei- interessantes, deparo-me essencialmente com textos,
tinha de ser exercido por uma linguagem mais leve. Ho- do afora (afirma-se que vendeu mais de um milhão de tura das obras seria algo potencialmente positivo caso sons e imagens. A novidade está na montagem desses
je, desaparecem os suplementos, e permanece a ideia exemplares, o que, convenhamos, para um livro técnico houvesse maneira de discutir essa própria dispersão. recursos e na interação imediata entre autor e frequen-
de que a critica literária deve ser algo leve, que sirva de é um feito e tanto) – que é apenas um dogma conside- Não vejo, portanto, aquela dispersão como problemá- tadores do blog. Mas lá estão poemas, crônicas, fotos,
mediação entre o produtor e o público. A consequência rar Proust mais digno do que um anúncio de televisão. tica, mas sim o aumento progressivo da falta de con- pinturas, canções, sonatas, reportagens de TV, óperas,
é o verdadeiro abismo entre a crítica séria que se desen- Durma-se com um barulho desses. E devo dizer que, dições de discutir-se criticamente a literatura e as ar- balés, filmes, arquivos de documentos.... É uma oferta
volve nos grandes centros e a miséria local. naturalmente, não me julgo conservador por achar que tes. (Pelo que vejo em noticiário recente, o problema magnífica, é um armazém de tudo, utilíssimo, que tan-
ele não tem razão. da falta de reflexão crítica chega às ciências sociais. to nos beneficia quanto exige capacidade de seleção,
Outra vez, creio que a insistência nessa questão é algo Um jornal do Rio de Janeiro noticiava há poucos dias de discernimento. E a mídia não criou nada disso. Sa-
extremamente importante para a vida nacional. Den- Costa Lima – Resumo a pergunta a seu núcleo: há re- que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fala- berá ela criar uma nova literatura? E se realmente che-
tro dos parâmetros atuais, os cursos de Letras, não só sistência na universidade brasileira à discussão do que va ironicamente do ideal de cientificidade da sociolo- gar a exigir “novos critérios críticos”, estaremos ainda
pela área da literatura como das línguas vivas e desa- seja valor literário? (Caso consiga responder bem a esse gia de poucas décadas atrás. O jornalista acrescentava diante do que até hoje entendemos como literatura?
parecidas, se tornam absolutamente inúteis. Isso dito núcleo, a extensão da pergunta poderá ser feita quase que esse cientificismo levava à ênfase no conceito e ao Não posso, não sei se alguém pode, entrever algum
por mim não terá nenhuma repercussão. Mas talvez os automaticamente). Sim, absolutamente sim. A razão é afastamento da literatura. Tudo isso, acrescento, é um ponto futuro desse processo de renovação tecnológica
meios empresariais e políticos possam levar a sério es- simples, embora a mudança a efetuar seja complicada. equívoco só. O cientificismo acusado pelo ex-presiden- que estamos vivendo na esfera das comunicações. Para
sas questões quando levarem em conta os argumentos Razão: falta, em geral, entre nós, prática de reflexão. Os te não resultava de alguma ênfase no conceito senão haver uma nova literatura, em tudo diferente dos ca-
desenvolvidos por uma pensadora de peso como a nor- cursos de letras e ciências sociais foram estabelecidos que na operacionalidade técnica. Tomar então o mode- minhos já trilhados, experimentados ou pressentidos,
te-americana Martha Nussbaum no seu recente Not for em separado dos cursos de filosofia. Em virtude da espe- lo de Gilberto Freire como ideal para a sociologia reno- será preciso admitir algo como uma nova humanidade,
Profit: why democracy needs. (Deixo o titulo no original cialização dos saberes, não poderia ser de outro modo. vada será permanecer no mesmo desastre). um novo homem que se forme ao longo de uma radical
porque assim, algum empresário distraído, possa ficar Mas, como a carência de reflexão era anterior às espe- mudança de paradigmas. Essa é a questão que me apa-
curioso com o que assim se diz). cializações, a filosofia se fechou em si mesma e os cursos Terceiro bloco: rece ao fundo de tudo. Quanto à última parte da per-
de letras e ciências sociais desconheceram a necessidade gunta: creio que a crítica é sempre ativa, impondo-se
2) Como você vê a relação entre crítica literária e de uma infra-estrutura reflexiva. Só vejo como maneira 1) Muito tem se discutido sobre a relação entre lite- como reflexão na presença de um objeto estimulante,
reprodução escolar, na medida em que é a primeira de sair desse impasse fazer as humanidades (letras e ci- ratura e as novas mídias. O debate tem oscilado en- diante do qual o sujeito se dispõe, inclusive, a um novo
que legitima, em grande parte, o que deve ser lido ências sociais) compreender que, sem o diálogo com a tre duas alternativas: por um lado, sugerir que das reconhecimento de si mesmo. Ela não pode ser alheia
e o como deve ser lido? É possível dizer que na uni- filosofia, permanecerão repetindo o que já foi repetido. novas mídias surgirá naturalmente uma nova litera- ao objeto, como também não pode se confundir com
versidade ainda exista certa resistência em relação à O problema, portanto, é anterior ao da manutenção do tura, que exigirá novos critérios críticos; por outro, ele. Aliás, intervir no espaço da mídia e das artes em
discussão de textos literários e modos de leitura que cânone. Pois a visão que se chama canônica das obras argumentar pela inutilidade da discussão sobre as geral, não é, para mim, acionar um mouse ou tecla de
ainda não estão canonizados e que demandariam, canônicas é apenas sua visão esterilizada. novas instâncias da cultura escrita, mostrando sua computador; é sobretudo responder com a reflexão.
respectivamente, a problematização do valor literá- tendência à reprodutividade dos clichês literários.
rio e da opção interpretativa por parte daqueles que 3) Como compreender a intervenção da crítica num Você acha que é possível escapar à ideia de uma crí- João Adolfo Hansen – As alternativas que delimitam
ainda não são considerados aptos para tal? momento histórico em que tendemos à relativização tica que, no primeiro caso, “espera” passivamente o o debate sobre as mídias nessa questão são um tanto
absoluta do gosto e da prática literária? novo, e, no segundo, recusa-o como possibilidade? redutoras, porque propõem só duas possibilidades fe-
Roberto Acizelo – Acho que a universidade hoje é Por que a crítica parece ter dificuldade de se afirmar chadas e excludentes para elas, ou a integração ou o
muito aberta a produções literárias não canônicas, até Roberto Acizelo – Pois é, a pergunta tem uma expres- como interventiva no espaço das novas mídias? apocalipse. As coisas sempre são contraditórias, mais
porque a “problematização do valor”, no limite, pare- são curiosa: “relativização absoluta”. No momento em complicadas e complexas, pois sempre oferecem possi-
ce ter conduzido à revogação da ideia de valor. Não que a única coisa absoluta é justamente a relatividade Alcides Vilaça – Entendo como mídias (vá lá esse plural bilidades de subverter o mais estrito controle e, ao mes-
creio que isso seja bom. Sem o reconhecimento de di- de tudo, jamais a crítica foi tão necessária. Isto é, o es- estranho) a combinação e a mutação crescentes de su- mo tempo, sempre produzem novos controles, quando
ferenças, inclusive estéticas, a vida não funciona. Veja, forço analítico, conceitualmente fundamentado, de portes de linguagens, e não uma criação (propriamen- se pensava que o campo da ação estava finalmente li-
148 por exemplo, o que se lê naquele manual do professor propor distinção de valores estéticos. te dita) de linguagens. Ao visitar blogs, alguns muito vre. Para mim, que sou leigo no assunto e ainda uso o 149
computador como máquina de escrever, o campo das como aconteceu nas artes plásticas e na literatura mo- Quando incidem diretamente nos processos econômi- ou identificação do usuário das mídias digitais está co-
novas mídias digitais é como um território descoberto dernista e moderna, mas fazem redefinições radicais co-políticos de produção e consumo dos textos, as mí- nectado a um IP, um número de cadastro e controle do
há pouco que está sendo velozmente invadido e colo- da totalidade do espaço-tempo do planeta, do corpo, dias digitais aparentemente também facilitam o aces- computador por outros computadores.
nizado por redes cada vez mais densas e entrelaçadas do sujeito, das formas da sensibilidade, da política etc., so à publicação e à leitura, liberando muitos autores e
de informação. Elas avançam rapidamente, como que fundamentais na invenção de novas formas de escrita e leitores do arbítrio e do controle de panelas, grupos de Voltando à questão da crítica, quando lemos um tex-
substituindo o terreno por onde avançam pela sua pró- leitura. Essa simultaneidade do chamado “glocal”, que interesse e de editoras, já que, aparentemente. põem to impresso, publicado como livro, é possível tratá-lo
pria materialidade imaterial. Elas são um acontecimen- é a simultaneidade instantânea do não-simultâneo, ao alcance de todos todas as informações possíveis. como um artefato histórico, refazendo os processos
to, algo novo, que rompeu hábitos produzindo novos, também já alterou a relação tradicional que tínhamos Pensando na destotalidade e na destotalização implí- materiais e particulares da sua publicação, da invenção
que evidenciam que hoje o capital novamente revolu- com a escrita, com a memória e com a imaginação. As citas na simultaneidade das informações ordenadas do seu texto e das suas recepções etc. Essa particula-
ciona as tecnologias de produção, armazenamento, mídias digitais realizam o projeto moderno de produzir em redes e subredes de informações parciais que elas rização histórica, que é possível fazer com o artefato
difusão, consumo e feed back da informação. Isso tem a simultaneidade instantânea, aqui-agora, ao mesmo põem em cena e nos processos de desmaterialização impresso, implica ou pressupõe a definição da crítica
consequências já evidentes no campo da cultura. Sem tempo ausente, de todas as temporalidades do tempo. do corpo que agora fazem cada um como que mitolo- como uma prática histórica, situada e datada. Acredito
futurologia, que é tolice, podemos dizer, pois isso já Por enquanto, elas estão desierarquizadas nessas mí- gicamente onipresente – mas sem estar efetivamente que a crítica assim feita torna-se muito mais imprová-
é objetivo, que as novas mídias certamente poderão dias como as peças de um joguinho Lego. Não sei se os em parte alguma e sem efetivamente ter o controle de vel e problemática nas mídias digitais, porque em ge-
garantir a invenção de novas formas literárias que in- meios digitais permitem hierarquizar o valor da infor- nenhum dos processos materiais de produção e contro- ral elas veiculam as informações como metonímias e
corporem o meio material de transmissão digital na mação, como ainda fazemos opondo literatura séria e le da informação que acessa – talvez tenhamos que re- sinédoques, partes pelo todo, pedaços, fragmentos ou
percepção das significações e do sentido dos textos. In- kitsch, ou se a própria natureza deles implica justamen- pensar coisas como a história, o tempo, a política, o su- terminais acabadas e anônimas que elidem os proces-
corporações como essa já aconteceram há muitíssimo te a equalização de todos os valores. Como o mundo jeito, a liberdade, os conceitos de arte, de literatura, de sos de sua produção. Elas são como icebergs flutuan-
tempo, quando o volumen latino foi substituído pelo có- continua capitalista, as novas mídias agora também valor estético, de posse e de propriedade da informa- do numa sopa de informações; só vemos a ponta. Essa
dice e, principalmente, quando a imprensa substituiu a fazem com que coisas que até ontem só tinham valor ção etc. Principalmente, talvez tenhamos que pensar o espécie de anomia, que hoje é global, também produz
manuscritura. Ou, faz menos tempo, na segunda meta- de uso, como um poema grego antigo ou um tratado que é ficção hoje, pois agora os meios digitais permitem a desmemória, que é desistoricização, e faz pensar o
de do século XIX, quando a fotografia foi fundamental de retórica do século XVII, passem a também ter valor não só controlar a realidade, mas também simulá-la em que são a esfera pública e a esfera privada nas mídias
na extinção da pintura acadêmica baseada na vedutta, de troca. Quem é o proprietário dessas mercadorias? A formas paralelas a ela, formas fictícias que competem digitais e também o que serão a autoria, os direitos au-
a janela ou o quadro dos pintores italianos dos séculos Google tem o projeto de digitalizar mais de 70.000 tex- com a literatura como a entendemos até agora. Tería- torais e, principalmente, o público.
XV/XVI, liberando a pintura para as novas experiências tos anteriores ao século XVIII que hoje são de domínio mos que pensar que, no mundo capitalista, os contro-
formais de Cézanne e do que veio depois etc. De modo público. O que vai acontecer quando o trabalho estiver les permanecem aí, atuando de modo mais eficaz nos Como se sabe, a crítica literária é uma invenção ilumi-
semelhante, os novos modos de percepção do movi- pronto? De todo modo, as mídias digitais também al- novos meios digitais como reprodução micromolecular nista. Agamben lembrou que, no mundo burguês mais
mento, por exemplo quando se andou pela primeira vez teram as condições da crítica, principalmente porque de redes de poder hiper-amplificadas na extrema frag- e mais secularizado a partir da segunda metade do sé-
num automóvel Ford na espantosa velocidade de 20 km põem em crise a noção burguesa e romântica do autor mentação e também na massificação das banalidades culo XVIII, ela foi a herdeira do trabalho profético de
por hora, alteraram substancialmente também os mo- como individualidade que tem a posse e a propriedade comunicativas pop que vemos hoje na Internet. Mas a salvação próprio da tradição religiosa. Enquanto exis-
dos de ordenar o espaço e o tempo das formas da prosa do texto original que produz; desierarquizam o valor Internet não é diretamente responsável pelas banali- tiu, o pressuposto central da sua intervenção era o de
e da poesia. O futurismo, na versão fascista e guerreira estético dos textos e produzem um público espantosa- dades; elas já existiam na indústria cultural antes das que ela esclarecia o público sobre o valor artístico dos
de Marinetti e, principalmente depois da Revolução de mente maior e incontável, ao mesmo tempo anônimo, mídias digitais, quando a literatura era só impressa. textos e sobre outras contradições sociais, tornando-
1917, nas versões revolucionárias da velocidade produ- disperso e fragmentado, que agora pode ter acesso a -o consciente da necessidade de transformar e supe-
zidas por grandes artistas russos, pressupunha e incluía milhões de textos digitalizados e, quem sabe, lê-los. Obviamente, tudo isso que estou dizendo é parcial. No rar seu presente administrado − ou cumulativamente,
nas formas plásticas e poéticas as estruturas e formas Mas como são lidos? Para quem desse público o crítico caso da literatura, teríamos que pensar o que podem como progresso, ou dialeticamente, como revolução
dos novos meios materiais. As novas máquinas digi- falaria nas mídias digitais? Com que critérios técnicos e significar, para quem a escreve nos novos meios, os pro- − na direção do futuro que, até os anos 1980 pelo me-
tais de agora talvez sejam mais radicais que essas do avaliativos dos textos? Com que autoridade ou com a cessos das máquinas que, para funcionar, pressupõem nos, foi o grande tempo donde vinha a redenção da
século XIX e início do século XX porque não intervêm autoridade fundamentada em quê? outras máquinas que controlam a informação e que violência da história. Hoje a crítica praticada nesse
150 apenas em um campo parcial da atividade humana, podem ser usadas como censura. Já agora, qualquer ID sentido desapareceu ou, quando ainda é feita aqui e 151
ali, é desqualificada nos meios de massa e mesmo na história foram arquivados. No pop global da cultura Alcides Vilaça – Desconfio muito das oposições biná- mais pertinente estudar a prática particular de cada um
universidade como uma velharia utópica e irrealista, de hoje, que está praticamente toda dominada pelos rias, das antinomias simples. A meu ver, elas tendem a deles e observar quais matérias sociais selecionam, co-
que não perceberia que hoje os tempos são outros. meios de massa, é difícil definir o valor estético dos funcionar como as caricaturas: priorizam e exageram mo estabelecem a relação do texto com o campo literá-
São outros, evidentemente, mas as estruturas fun- novos textos literários como valor crítico. Talvez fos- os traços “característicos”, borrando as sutilezas e as rio prévio e contemporâneo, como avaliam para o leitor
damentais da exploração capitalista continuam, ago- se mais fácil, apesar de ser muito difícil, quando para particularidades das quais, precisamente, vive a litera- a representação que inventam etc. Hoje essas fórmulas
ra mais aperfeiçoadas também pelas mídias digitais. muitos críticos a experiência histórica tinha, muito tura. Quando a matéria literária é enquadrada em es- não têm mais pertinência.
Diria que o que hoje existe como crítica são textos contraditoriamente, um sentido definido. Hoje, quan- quemas didáticos, ou interpretada por métodos muito
acadêmicos incluídos em circuitos produtivistas, re- do o presente é um “já” e, ao mesmo tempo, um “ain- rígidos, há uma perda essencial do caráter artístico, Claudia Amigo Pino: Hoje em dia, é difícil se referir a
vistas acadêmicas e congressos cada vez mais subor- da não”, como dizia Agamben, e parece não passar, que é antes aberto e exploratório do que conclusivo. características próprias do objeto literário. É mais inte-
dinados a agências de financiamento de pesquisa que a literatura continua sendo muito escrita, mas talvez A pertinência de se declarar um romance intimista ou ressante pensar em termos da relação que se estabelece
determinam a qualidade do que se faz. Quem lê esses menos lida, já que na Internet agora todos são escri- social estaria condicionada ou à intenção do autor (?) entre texto e o seu leitor. Mais do que romances inti-
textos, além de seus autores? E, na mídia, press relea- tores. Mas não se pode profetizar o futuro; acredito ou à preponderância da “forma” do gênero psicológico mistas ou romances sociais, teríamos romances que de-
ses, artigos, resenhas, entrevistas com escritores, no- que, por enquanto, não há critérios suficientemente sobre a “forma” do sociológico, ou vice-versa. Ou seja: mandam uma leitura intimista ou uma leitura social. Em
tas, fofocas, fotos, faits divers, entre outros, que, na abrangentes e consistentes para avaliar criticamente não vale muito, como horizonte de leitura. O que pesa 1975, o crítico francês Philippe Lejeune resolveu propor
maior parte, são propaganda de autores, de livros e os textos literários publicados nos meios digitais de mais sobre o menino do engenho de José Lins do Rego: o conceito de “pacto autobiográfico” para tratar da lite-
de editoras. A gigantesca proliferação da informação agora sem repetir categorias e conceitos que não cor- ser neto de coronel do açúcar ou ter pavor da morte? ratura que quer ser lida a partir de seu vínculo com a vida
desierarquiza as hierarquias classificatórias do valor respondem mais à nova realidade do meio em que os Será o caso de se contrapor uma coisa à outra ou de do autor. A característica “autobiográfica” deixa de ser
artístico. Digamos que, na Internet, o leitor é muito textos são produzidos, comunicados e consumidos. investigar o que há de específico, como tema e como do objeto, para se referir a uma forma de ler os textos.
mais livre que o leitor de um texto impresso em pa- forma, no enlaçamento tão expressivo entre ambas? Eu vejo esse pacto autobiográfico muito próprio daquele
pel. Quero dizer, é um leitor muito aberto à recepção Claudia Amigo Pino: A dificuldade é mútua: tanto da momento da crítica, nos anos 1970: hoje os textos de-
e pode montar, a cada instante, com o zapping contí- crítica como da literatura. Afinal, a literatura não existe João Adolfo Hansen − Essas etiquetas tiveram alguma mandam leituras mais abertas, mais ambíguas em rela-
nuo das informações, seu próprio percurso que pode por si só. Ela é um apelo ao discurso de outro, apelo a função de classificação dos textos quando foram inven- ção ao vínculo com o autor. Assim, o pacto não é próprio
variar a cada momento, pois pode relacionar o que de- uma possibilidade (utópica) de completude pelo outro. tadas e usadas. Elas pressupõem a oposição das maté- de um determinado romance, mas de uma relação dos
seja com o que lhe der na telha. Antes, a possibilida- O novo se faz nessa relação entre literatura e crítica, rias sociais selecionadas e representadas pelos autores críticos, dos leitores, com esse romance.
de de ler operando a simultaneidade da combinatória nesse novo texto que a crítica produz. O problema é da como o “eu”, “intimista”, e o “mundo”, “social”. Já eram
dos signos só acontecia em textos como Un coup de relação e não de cada um dos lados. E a única forma de discutíveis quando usadas para classificar unitariamen- 3) Recentemente o selo Lua de Papel, da editora
dés ou em textos cubo-futuristas e concretistas, que a melhorar essa relação é aproximar os lados: colocá-los te autores modernos das décadas de 30, 40, 50, 60, 70, Leya, prometeu a adaptação de clássicos como Dom
previam. Entretanto, os procedimentos de Mallarmé bem perto um do outro, num mesmo suporte. Os gran- por exemplo uma Clarice Lispector e um Lúcio Cardoso Casmurro e A Escrava Isaura de acordo com algumas
estão nas mídias digitais. Para fazer a crítica do valor des momentos de mudança crítica estão ligados à mu- “intimistas”, um Graciliano Ramos e um José Lins do temáticas que parecem estar em voga: vampiros,
estético, que por acaso seja produzido nelas, vai ser dança desse espaço de convivência entre crítica e lite- Rego “sociais”. O sujeito e as formas psicológicas da alienígenas, bruxas etc. Nestes casos os títulos fo-
preciso não só dominar princípios críticos operatórios, ratura: inicialmente elas conviviam nos jornais, depois subjetividade pressupostos na etiqueta “intimismo” ram reescritos como Dom Casmurro e os discos voa-
mas também ser capaz de identificar o talento, distin- nos grupos literários, nas revistas... É preciso inventar são evidentemente sociais, pois toda psicologia é so- dores e Escrava Isaura e o vampiro. As práticas da re-
guindo o que é bom do que não presta. Grandes críti- novas mídias, não para a literatura, não para a crítica, cial, cultural, como vemos em romances “intimistas”, escrita de um grande clássico e da citação, contudo,
cos literários brasileiros foram capazes de identificar mas para as duas juntas. como A Paixão segundo G.H. e Crônica da Casa Assas- têm sido bastante valorizadas na prosa contempo-
os novos autores que surgiam a partir do primeiro li- sinada; e o mundo social dito “objetivo” sempre foi e é rânea. Você acha que há empregos frutíferos desses
vro deles, como é caso de Clarice Lispector e João Gui- 2) Essa edição traz um artigo sobre a oposição entre totalmente mediado pelas formas da subjetividade dos recursos? Se sim, de que maneira e em que textos ele
marães Rosa. Mas, frente à gigantesca expansão das romance “intimista” e “romance social” feita por agentes, como se pode ver nos dois grandes romances assim apareceriam?
informações, como se situar e identificar os talentos e alguns escritores e críticos na década de 1930. Você de Graciliano Ramos, Angústia e São Bernardo. Acredito
indicar um sentido? Talvez seja óbvio demais lembrar acha que ainda há pertinência no emprego dessas que, ao invés de trabalhar dedutivamente com classifi- Alcides Vilaça − “Emprego frutífero de recursos”, de
152 que a maioria dos projetos modernos de redenção da categorias para pensar a literatura contemporânea? cações prontas que são aplicadas de fora aos autores, é quaisquer recursos, depende sempre de talento. Não 153
me peçam pra definir talento, que a gente só sente o técnicos de reescrita. Na literatura brasileira, Machado como série de TV, sobre cada uma das viagens e pro- e Machado, por exemplo? Não sou formador de nin-
que é depois de materializado numa obra. Misturar de Assis é o grande mestre no uso deles, quando estili- cessos de criação dos autores. Apenas cinco roman- guém: tento ser um apresentador da literatura, os alu-
coisas, parodiar, adaptar, colar, traduzir livremente são za e parodia textos antigos e contemporâneos para de- ces foram publicados até agora, mas há promessas nos vão ter que decidir o que fazer com ela. Dentro e
sempre operações possíveis. Se conseguem ser equiva- bochar do leitor que acredita na justiça das instituições de adaptação para o cinema. Como você vê essa es- fora do mercado.
lentes ou melhores do que a referência original, ótimo. sociais do Império e da República ou que simplesmente pecificidade da relação entre editora, autor e merca-
Se não conseguem, podem nos fazer perguntar por acredita. Hoje, quando a literatura não tem mais a ne- do? Que tipo de consequência essa relação poderia João Adolfo Hansen − A questão já contém a respos-
que e em que o modelo era tão mais interessante. Já li gatividade crítica da ficção moderna, a reescrita e a ci- ter para autonomia do processo de escrita, agora ta. Assim como há o intelectual orgânico e o professor
“novas versões” de contos de Machado, ou adaptações tação são, quase sempre, um pastiche pós-modernoso questionada pela aceitação fácil e sem críticas às universitário burocrata tucano, também há o escritor
deles em linguagem televisiva ou cinematográfica. Em ou pós-utópico feito “à moda de”, reproduzindo signos restrições de temas e tempo de trabalho, além da promotor de vendas. Numa dessas feiras-livres lite-
nenhum dos casos Machado compareceu, embora os de estilos anteriores e contemporâneos que em alguns obrigação de se levar em conta todas as vantagens rárias, um escritor norte-americano que baixou por
simulacros pudessem despertar algum (outro) interes- círculos esnobes dão prestígio, principalmente quando mercadológicas? Como você vê essa demanda para aqui, acho que era em Parati, tinha de puxar pra todo
se. Já o filme Kaos, dos irmãos Taviani, baseado em con- eles não têm mais a orientação negativa e crítica que que escritores sejam, além de escritores, promoto- lado um enormonho e medonhoso ganso de plástico
tos de Pirandello, me emocionou de uma forma muito os caracteriza na representação de autores modernos. res eficientes de trabalhos cujo uso e o sentido já que fazia alusão ao seu best seller publicado por uma
particular, impossível para a literatura. Já no caso de se vêm prontos? editora norte-americana. Drummond, Graciliano, Ro-
reescrever ou adaptar clássicos segundo os “temas em Claudia Amigo Pino: Achei ótima a ideia, e espero que sa, Lispector, João Cabral e muitos outros nunca pu-
voga” citados, seria mais interessante entender mais a alguém dessa editora possa contratar professores pa- Alcides Vilaça − Tive a oportunidade de ler e resenhar xaram gansos. Essa demanda de que o escritor seja
fundo as razões do prestígio sazonal de vampiros, alie- ra fazer essas adaptações. Adoraria escrever um livro um desses romances da coleção “Amores expressos”: promotor de usos e sentidos apriorísticos pressupõe e
nígenas, bruxas e alquimistas. desses. Tenho algumas sugestões: A paixão segundo foi o Estive em Lisboa e lembrei de você, do Luiz Ruffato. produz sua pouca ou nenhuma autonomia crítica, pois
E.T. e Vidas secas de sangue, Macunaíma, um bruxo sem Achei-o um romance bem sucedido. O tema encomen- em geral é cooptação. Assim, o que faz o escritor vi-
João Adolfo Hansen − Em um mundo tão seculariza- nenhum caráter... acho que dariam ótimas adaptações, dado, o do amor, apareceu, de fato, mas fiquei com a vendo em tempos neoliberais de cultura midiática pop
do e desalmado como esse, muitos têm necessidade complexas e ao mesmo tempo engraçadas. O que são impressão de que interessou menos ao escritor do que e narcisista, sem orientação crítica da experiência his-
de um suplemento de alma. Vampiros, padres, discos empregos frutíferos? Uma produção de literatura “de o tema do desenraizamento do narrador/protagonista. tórica, à sombra do mercado e revoadas de tucanos?
voadores, pastores de TV, cartomantes, alienígenas, qualidade”? Tenho a impressão de que esse não é obje- A pauta dada valeu até certo ponto, sem ter sido deci- Amores expressos, expressamente determinados.
mapas astrais, lobisomens, bruxas etc. o fornecem tivo da editora: ela quer deliberadamente transformar siva. Viajar para escrever também não deve ser ruim. Mas nem todos aderem, toda regra produz sua pró-
como o sangue e a sacarina do retorno do recalcado literatura A em literatura B (ou C ou D). A prática da pria subversão e é possível supor que ainda há vida no
que, para não variar, também nesse caso é kitsch e re- reescrita de clássicos deram já livros que eu considero Nada tenho contra as encomendas do mercado, nem deserto, que cresce.
gressivo. Quero dizer, essas adaptações que mandam fundamentais em todas as épocas, como o Ulisses ou tiro qualquer proveito das críticas genéricas que se se
o Casmurro para o espaço e oferecem o pescocinho da Madame Bovary, que é claramente uma reescritura do repisam contra ele. Todas as obras acabam entrando, Claudia Amigo Pino: Isso não é uma novidade. Os es-
Isaura a mordidas de morcegos são bobagens, sublite- Dom Quixote. Reescrever um grande clássico permite de algum modo, em algum mercado, nem que seja a critores sempre tiveram que promover seu trabalho,
ratura reprodutora do imaginário degradado da indús- ser muito mais ousado na linguagem utilizada, posto feira das vaidades, mas as obras que de fato interessam sempre tiveram que conseguir o apoio de quem rege
tria cultural. Podem ter leitores, claro, elas divertem lei- que a história e os debates que ela propõe são bem co- são sempre muito mais do que mercadorias. João Ca- o mercado. Os livros são produtos e o escritor é uma
tores que vivem como no verso de T.S. Eliot, distraídos nhecidos (e atuais, se não a obra não seria um “grande bral escreveu Morte e vida severinaatendendo, quase personagem do mundo burguês que procura um re-
da distração pela distração. clássico”). contrafeito, a uma encomenda de espetáculo. Muito conhecimento do mercado em relação ao seu traba-
do que se chama “autonomia do processo de escrita” lho (leia-se “pagamento”). Hoje isso se faz a partir de
As práticas de reescrita e citação de um grande clássico 4) No ano de 2007, a editora Cia das Letras lançava tem a ver com a necessidade que teve alguém de co- palestras em festas literárias, programas de televisão,
sempre foram rotina, pois o campo literário tem uma o projeto “Amores expressos”. Tratava-se de pagar mer e pagar o aluguel. Mais uma vez, o talento decidirá páginas em redes sociais; antes se fazia por meio da
história. Bourdieu lembrou muito bem que autores a passagem e a estadia de 16 escritores para gran- as coisas. Há muitas contradições por trás de doutrinas frequentação dos salões, de leituras públicas para ma-
que o ignoram são ineptos. Só com muita estupidez al- des capitais mundiais a fim de que escrevessem uma que parecem indiscutíveis. Por exemplo: se o espaço da dames e da manutenção de correspondência com as
guém escreve acreditando que o faz a partir de nada. história de amor. Além dos romances, o projeto tam- instituição escolar é o da decantada formação de valo- grandes figuras do meio. A escrita não tem a menor au-
154 Certamente há empregos muito frutíferos dos recursos bém teria como produto 16 documentários, exibidos res morais e éticos, o que fazem dentro dela Graciliano tonomia, porém ela se nutre dessa ilusão: ela precisa do 155
mercado e se volta contra ele. Apesar disso, o mercado decadência ou estaríamos presenciando uma mu- adversários que podem provocar algo no meu pensa- estilo... e sobretudo a ênfase na própria pessoa. Des-
não a rejeita, pelo contrário: a transforma em símbolo dança em sua função social, bem como da própria mento, podendo inclusive chegar a abalá-lo. carto a maledicência simples, ou a ironia sistemática,
de status. Podemos ver isso de um ponto de vista muito literatura? ou o rancor mascarado, que não querem a discussão.
pessimista e pensar que a literatura é a pior das aliena- Foucault dizia fechar um livro quando lia nele acusa- Mas se polêmica quer dizer argumentação e contra-
ções possíveis, já que nos produz a ilusão de que não Alcir Pécora − Com calor ou sem calor, para mim, a ções como “esquerdista infantil”. O próprio Foucault -argumentação suscitadas pela análise de um fato pro-
estamos alienados. Mas também podemos ver isso de questão mais contundente literária, hoje, é a própria seria denunciado como “esquerdista” (e infantil), mas blemático, sem que isso torne os debatedores inimigos
um ponto de vista otimista e pensar que essa é uma for- fraqueza da literatura e, em particular, da ficção, para também como reacionário, niilista, anarquista, fascis- mortais, aprendamos com eles. Gênero em decadên-
ma de controle do próprio mercado e do sistema. Sou se constituir em lugar de debate cultural relevante. São ta. Curiosamente, são todos termos que continuam cia? Espero que não. Fora de moda, talvez, porque o
mais pessimista do que otimista, mas já não sei se es- raríssimos os autores contemporâneos capazes de fa- a circular entre nós, com função semelhante. São áli- tempo dos “modernos” (por muitos identificado como
se pessimismo é parte da ilusão da própria crítica, que zer pensar, e mesmo capazes de realmente comover ou bis que permitem que se interrompa o pensamento e o tempo da relativização de tudo) é arrogante demais
também se quer autônoma. divertir. As ideias parecem surgir muito mais de outros impedem que se escute o outro, sinal de que talvez o para se apresentar como passível de discussão. Tam-
campos da reflexão cultural do que do próprio meio da que falte seja a compreensão de que a disputa ou a dis- bém não nos deixemos enganar pelas falsas polêmicas,
Sobre as restrições de temas, tempo e forma de tra- literatura. É essa a questão. A polêmica a ser conduzida cussão não tem como chegar ao fim, todo fechamento artificialmente arranjadas por quem depende do sensa-
balho, isso faz parte de toda a atividade literária. Um a sério, sem desejo de evitar a dor, sem pressa de alcan- sendo necessariamente temporário. cionalismo e da autopromoção a todo custo.
soneto é uma restrição. Um folhetim é uma restrição. çar o pós-crise.
Um romance realista é uma restrição. A escrita auto- Roberto Acizelo − Bem, sou um profissional do ensino e Drummond dizia, com razão: “Que tristes são as coisas
mática proposta pelo surrealismo é uma restrição. Es- Marcos Natali − Talvez a polêmica seja também uma gostaria de ver um grande debate nacional em torno da consideradas sem ênfase”. Valia, no momento de A rosa
crever é, de certa forma, responder ao desejo de um maneira de não discutir publicamente questões rele- questão da formação universitária em Letras. Mas isso do povo, a busca da mais intensa vivacidade das experi-
outro e esse outro sempre se apresenta na forma de vantes e de impedir que certos problemas sejam efe- não teria interesse social geral. Seria coisa para alunos ências. Já o velho Machado preferia o “tédio à contro-
uma restrição. tivamente pensados. De todo modo, a polêmica não e professores, bem como para os gestores do sistema vérsia”, talvez porque sentisse, como poucos, a certeza
teria como ser produtiva se a tarefa fosse trazer à tona de ensino. Mas o fato é que não temos só que reformar materialista que depois Bandeira veio a expressar tão
No momento, eu estudo um autor (Roland Barthes) e questionar justamente a forma das nossas disputas nossos cursos de Letras: é necessário reconcebê-los, lapidarmente: “A vida é uma agitação feroz e sem fina-
cujos livros foram todos resultados de encomenda e públicas. Um exercício como esse incluiria uma reflexão refundá-los, inclusive para incluirmos em nossa pauta lidade”. Mas vocês, da revista Opiniães, sugerem o eco
restrição. Isso, de forma alguma, queria dizer que o sobre o tratamento dispensado a dissidentes e a possi- de serviço a preparação de pessoal competente para o a Guimarães Rosa: “Pão ou pães...”
sentido desses livros já estava pronto antes de serem bilidade da diferença respeitável e da oposição legíti- exercício da crítica e não só no espaço acadêmico.
escritos. O processo de escrita consiste na luta contra ma. Seria, nesse sentido, uma reflexão sobre a ética da João Adolfo Hansen − Como debate teórico, a polêmi-
essa restrição. É claro que a restrição em si não é ga- discussão e das disputas públicas. Costa Lima − A polêmica, enquanto tal, pode ser pro- ca se relaciona com gêneros dialógicos, principalmente
rantia de um bom produto: o projeto da Companhia veitosa ou estéril. Estéril quando se limita ao enfren- gêneros orais antigos, que expõem a parcialidade das
das Letras dificilmente vai produzir 16 bons romances e Se, apesar das diferenças nas posições, opositores num tamento pessoal. Proveitosa quando os adversários opiniões sobre um assunto qualquer. É o caso de gêne-
programas de TV, mas deve produzir um ou quem sabe debate se comportam de maneira igualmente “polêmi- esgrimem armas intelectuais: porque somos contra ou ros erísticos ou polêmicos, como o diálogo platônico e a
dois resultados interessantes. ca”, cada um buscando o aniquilamento do outro, com- a favor de alguma coisa. Acrescente-se apenas: a au- controvérsia e a suasória latinas. Como gênero polêmi-
partilharão algo maior, talvez, do que suas diferenças sência de aprendizagem reflexiva entre nós tem como co, ela também é comum textualmente, por exemplo
Quarto bloco: de opinião. Nesse sentido, o “triunfo” de um ou de ou- decorrência imediata o fato de que nossas polêmicas como diatribe, polêmica secreta, paródia etc. Como
tro é quase insignificante. são brutais e estéreis, seria mais correto dizer: histéri- agressão ou produção de estigmas, ela se relaciona
1) A polêmica pode ser entendida em termos de um cas. Elas são em tudo equivalentes aos confrontos de com os gêneros baixos do cômico, principalmente os
debate acalorado, mas também como gênero textu- Se não há sequer a possibilidade de que a posição da- torcidas de futebol. que são feitos como a variante maledicente do cômico
al que emprega recursos como a acusação pessoal; a quele que eu critico esteja correta, o encontro não me para insultar e destruir adversários, como a sátira.
hipérbole; a caricaturização da posição adversária; a fará pensar, o problema estando nesse caso na mi- Alcides Vilaça − A polêmica inflamada tem uma ca-
criação de estigmas etc. Você concorda com o diag- nha escolha de adversário. Só são produtivos aqueles racterística que tendo a desprezar: o excesso de ênfa- Faz algum tempo, Roberto Ventura escreveu um bom
156 nóstico de que, do XIX para cá, ela é um gênero em se. Ênfase numa convicção, ênfase no tom, ênfase no livro sobre as polêmicas literárias no Brasil. Evidenciou 157
que as relações sociais do Brasil monárquico e republi- 2011, continua havendo um Brasil essencial que quase era e é uma coisa grosseira; a subserviência de lacaio chegam a ser indivíduos − já interiorizaram de tal modo
cano continuaram reproduzindo muitíssimas das estru- faz a gente ficar platônico. As relações corporativistas é coisa mais feia, porque nega pela base a autonomia os controles gregários que, não podendo discordar de
turas corporativistas dos tempos coloniais que ordena- continuam aí. Pensemos nos políticos sempre preocu- que relações democráticas pressupõem; a maledicên- nada, administram sua servidão voluntária como um
ram a vida pública como vida de relações pessoais. Num pados com a sua coisa pública. Pensemos na Univer- cia e a calúnia são péssimas como práticas de gente negócio particular de eunucos. Enquanto gozam com
país de latifundiários, o corporativismo foi e é uma rela- sidade. Teoricamente, ela é o lugar da universalidade porca que emporcalha a vida com seu ressentimento. o gozo do Pai, espalham maledicências e calúnias mos-
ção desigual de violência benevolente ou benevolência dos saberes, o jardim de Academus, aquele fresco lu- trando fidelidade. Esse mundo de puro assentimento
violenta que produz o rebanho e o espírito de rebanho, gar ameno onde as flores do conhecimento florescem Assim, hoje a polêmica estaria em baixa? Talvez por- em que a grosseria da polêmica é substituída pela ma-
como demonstra o livro clássico de Maria Sylvia de sob o sol da autonomia intelectual etc. e tal. Efetiva- que a sociedade brasileira contemporânea tenha ficado ledicência e pela calúnia provavelmente é o melhor dos
Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata. mente, ela é o reino animal do espírito, como dizia um muitíssimo mais complexa que o mundinho rural dos possíveis. Acho que Quincas Borba talvez tivesse razão
Como qualquer um sabe com sua experiência cotidia- grande filósofo alemão, um lugar onde o espírito de coronéis do Império e da Primeira República? Os lugares quando disse que Pangloss não era tão estúpido como
na, o social é a guerra aberta. Fazer parte de um grupo porco da polêmica se reencarna nas múltiplas formas de poder simbólico se multiplicaram e diversificaram o pintou Voltaire.
controlado por um coronel detentor da propriedade da agressão contra quem não se submete à subordi- muitíssimo, é certo. Pode-se supor que isso teria relati-
econômica, política e simbólica do curral sempre con- nação gregária. Num país sem tradição democrática, vizado o poder de muitos donos da opinião, tornando a Claudia Amigo Pino: Os suplementos culturais de jor-
feriu e confere existência a muitos asnos, carneiros e a divergência é erro lógico, moral e político. Está proi- pretensão de ter razão e ditar o dever ser das coisas tão nais se nutrem desse gênero e, como eles continuam
vacas, garantindo-lhes a segurança em troca de servi- bida, lembremos “Teoria do Medalhão”, e é temerário ridícula como seus autores, que agora ficariam em si- existindo, tenho a impressão de que a polêmica existe
ços que em geral são sujos, como coices, patadas, chi- divergir de textos que circulam publicamente, textos lêncio para não expor o couro ao sarcasmo? Já que não sim. Acho que esse debate não existe na Universidade
fradas e mugidos desferidos contra rivais a mando do que pertencem à esfera pública, demonstrando dis- somos romanos, é só uma sonora gargalhada que seu de São Paulo especificamente. Mas enquanto prevale-
chefe ou em nome dele. Como dizia Baltasar Gracián, cordância deles com argumentos. A divergência do atroz ridículo merece. Mas talvez – somos brasileiros e cer a ideia de que a literatura é um objeto de estudo e
homem do século XVII que sabia das coisas, “Deus nos texto público é traduzida por subordinados como ata- construtivamente otimistas, não é? − o que ocorre é ou- que a crítica consiste em um conjunto de instrumentos
livre dos porteiros de palácio”. Eles são pulhas sempre que às pessoas dos homens ou mulheres que os assi- tra coisa, ou seja, o Mesmo essencial, de outros modos. para “analisar” esse objeto, nunca vai haver polêmica.
mais realistas que o rei e não têm nenhuma vergonha. nam como autores, como acontecia nas polêmicas do Os poderes e os lugares de poder se multiplicaram, é Afinal, o objeto vai sempre ditar o ponto de vista críti-
Em tempos idos e já vividos, por aqui a polêmica como século XIX e começo do século XX, como se o texto certo, mas quase sempre continuam poderes e lugares co. A polêmica só será possível se for aceita a pluralida-
agressão ou produção de estigmas acontecia entre in- fosse assunto da esfera privada. Ideias divergentes da gregários. Hoje muitos indivíduos − nem sei se agora de de visões (e relações) com o texto literário.
divíduos que disputavam alguma modalidade de poder. corporação gregária, não importa que sejam ótimas
Mas o campo das agressões com que cada um tentava ou estúpidas, levam à desqualificação de quem as tem
reduzir o outro a pó de traque estava predefinido pe- e emite. Ou porque são ideias de um que não se inclui
la partilha dos donos. Tentavam destruir-se alegando, em nenhum grupo; ou porque são ideias de outro de
um, que sabia mais javanês que o outro; a avó de um grupo rival; mais basicamente, porque só são ideias
tinha sido criada da baronesa e a do outro, escrava; autônomas. Não é bom tê-las quando o dono já disse
muitos se engalfinhavam anos a fio, disputando a gra- tudo o que há pra dizer e fazer. Assim, na Universida-
fia correta de um termo, que devia ser edótica, ecdótica de hoje, a agressão aberta da polêmica antiga, que era
ou hekhdhokhthykha. E sempre havia aquele iluminado uma prática estúpida, é substituída pela maledicência
que repetia o Ditado sobre o Sentido Final do processo e pela calúnia praticadas por gente por definição in-
histórico para todos os homens etc. ferior. Na Roma antiga, esses bufões tinham a testa
marcada a ferro em brasa com a letra K, de Kalumnia-
A polêmica está em decadência hoje? Ela nunca teve tor, caluniador. Aqui, o gregarismo garante a impuni-
nenhum esplendor, sua prática sempre foi uma coisa dade do orgulho da servilidade dos que levam o sinete
baixa e vulgar. A pretensão de ter razão é uma coisa do dono tatuado nos trejeitos, nas falas envenenadas
pueril e quase sempre psicótica, grosseirona e imbecil. e nos jeitinhos como se reproduzem socialmente. Tu-
158 Não acho que houve decadência. O que acho é que, em do isso é besta. A pretensão de ter razão da polêmica 159
Título: Opiniães – Revista dos Alunos de Literatura Brasileira
Ano: 2011
Volume: 1
Número: 3
Formato: 21cm X 21cm
Fontes: Corbel (Jeremy Tankard) e opiniães (Cláudio Lima)
Pepel do miolo: pólen soft 80 g/m2
Papel da capa: supremo 250 g/m2
Número de páginas: 152
Tiragem: 500
160 CTP, impressão e acabamento: x

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