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Política

Democracia e
autoritarismo
Se, por um lado, é crucial manter a
diferença entre democracia e
autoritarismo, por outro, os traços
autoritários das democracias agravam-
se a cada dia que passa

Por Boaventura de Sousa Santos

26/07/2021 15:17
Créditos da foto: (Paulo Pinto/AFP)

As trombetas da guerra fria


voltaram a soar. O Presidente dos
EUA anuncia aos quatro ventos a
nova cruzada. Desta vez, os termos
parecem diferentes, mas os
inimigos são os mesmos – a China
e a Rússia principalmente. Trata-
se da “guerra” entre democracias e
autoritarismos (ditaduras ou
governos de democracia truncada
pelo domínio absoluto de um
partido). Como de costume, os
governos ocidentais e os
comentadores de serviço
alinharam-se fielmente para o
combate. Os portugueses que
viveram em idade adulta o tempo
da ditadura salazarista não têm
qualquer dúvida em distinguir
democracia e autoritarismo e em
preferir a primeira ao segundo. Os
que nasceram depois de 1974, ou
pouco tempo antes, quando não
aprenderam dos pais o que foi a
ditadura, muito provavelmente
também não aprenderam na
escola. Estão, pois, disponíveis
para confundir os dois regimes
políticos. Por sua vez, a realidade
de muitos países considerados
democráticos mostra que a
democracia atravessa uma
profunda crise e que a distinção
entre democracia e autoritarismo
é cada vez mais complexa. Em
vários países do mundo estão a
ocorrer protestos nas ruas para
defender a democracia e lutar por
direitos violados, direitos esses
quase sempre consagrados na
constituição. Muitos destes
protestos dirigem-se contra
dirigentes políticos que foram
eleitos democraticamente, mas
que têm exercido o cargo de modo
antidemocrático, contra os
interesses das grandes maiorias,
por vezes frustrando
grosseiramente as expectativas
dos cidadãos que votaram neles.
São os casos do Brasil, Colômbia e
Índia, e foram também os casos da
Espanha, Argentina, Chile e
Equador em anos recentes.
Noutros casos, os protestos visam
evitar a fraude eleitoral ou fazer
valer os resultados eleitorais,
sempre que as elites locais e as
pressões externas se recusam a
reconhecer a vitória de candidatos
sufragados pela maioria. Foi este o
caso do México, durante anos, o
caso da Bolívia, em tempos
recentes, e, agora, o caso do Peru.
À primeira vista, há algo de
estranho nestes protestos, porque
a democracia liberal tem como
característica fundamental a
institucionalização dos conflitos
políticos, a sua solução pacífica no
marco de procedimentos
inequívocos e transparentes.
Trata-se de um poder político que
se conquista, se exerce e se
abandona democraticamente,
mediante regras consensualizadas.
Por que razão, nesse caso, estão os
cidadãos a protestar fora das
instituições, nas ruas, tanto mais
que correm sérios riscos de
enfrentar excessiva força
repressiva? E o mais intrigante é
que os governos de todos os países
que mencionei são aliados dos
EUA, que com eles querem contar
na sua nova cruzada contra o
autoritarismo da China e seus
aliados.

A perplexidade instala-se. Se, por


um lado, é crucial manter a
diferença entre democracia e
autoritarismo, por outro lado, os
traços autoritários das
democracias realmente existentes
agravam-se cada dia que passa.
Vejamos alguns deles. A Rússia
prende autoritariamente o
dissidente Alexei Navalny; as
democracias ocidentais deixam
morrer na prisão, por pressão dos
EUA, o jornalista Julian Assange,
que daqui a algumas décadas
receberá provavelmente, a título
póstumo, o Prémio Nobel da Paz.
Nos regimes autoritários, a
comunicação social não é livre
para dar voz aos diferentes
interesses sociais e políticos; nas
democracias, a preciosa liberdade
de expressão está cada vez mais
ameaçada pelo controlo dos média
por parte de grupos financeiros e
outras oligarquias, bem como
pelas redes sociais que usam os
algoritmos para impedir que
ideias progressistas cheguem ao
grande público e para permitir
que o contrário ocorra com ideias
reacionárias. Os governos
autoritários eliminam opositores
que lutam pela democracia nos
seus países; as democracias
destroem alguns desses países
(Iraque, Líbia) e matam milhares
de inocentes para defender a
democracia. Os regimes
autoritários eliminam a
independência judicial; as
democracias promovem
perseguições políticas por via do
sistema judicial, como
dramaticamente ilustrado pela
operação Lava-Jato no Brasil. Nos
governos autoritários, os líderes
não são escolhidos livremente
pelos cidadãos; nas democracias é
cada vez mais preocupante o modo
como os poderes fácticos
inventam e destroem candidatos.
Nos governos autoritários todos os
procedimentos são incertos para
que os resultados sejam certos (a
nomeação ou eleição dos líderes
escolhidos autocraticamente). Nas
democracias vigora o oposto:
procedimentos certos para que se
obtenham resultados incertos (a
eleição dos líderes escolhidos pela
maioria). Mas é cada vez mais
comum que quem tem poder
económico e social tenha também
o poder de manipular os
procedimentos para garantir os
resultados que pretende. Com tal
manipulação (fraude eleitoral,
financiamento ilegal de
campanhas, fake news e discurso
de ódio nas redes sociais, etc.), os
procedimentos democráticos,
supostamente certos, tornaram-se
incertos. Com isto, corre-se o risco
da inversão da democracia:
processos incertos para resultados
certos.

Para além destes exemplos, entre


muitos outros, é flagrante a
dualidade critérios. São governos
autoritários e, por isso, hostis, a
China, a Rússia, o Irão, a
Venezuela; mas não são hostis,
apesar de autoritários, a Arábia
Saudita, as monarquias do Golfo, o
Egipto e, muito menos, Israel,
apesar de sujeitar mais de 20% da
sua população (os árabes
israelitas) à condição de cidadãos
de segunda classe, e submeter a
Palestina a um regime de
apartheid, como recentemente foi
reconhecido pela Human Rights
Watch. Por sua vez, as embaixadas
e as instituições dos EUA
encarregadas de promover
“regimes democráticos amigos dos
EUA”, e ainda as fundações que o
dinheiro dos bilionários alimenta
com os mesmos propósitos,
acolhem de preferência políticos e
partidos de direita, e mesmo de
extrema-direita, desde que estes
jurem lealdade aos interesses
geopolíticos e económicos dos
EUA. Na Europa, Steve Bannon,
um ex-consultor de Donald
Trump, promove forças de
extrema-direita, antieuropeístas e
católicas conservadoras que se
opõem ao Papa Francisco.

De tudo isto resulta uma situação


paradoxal: enquanto o discurso da
guerra fria exalta a diferença
entre democracia e autoritarismo,
as práticas das potências
hegemónicas não se cansam de
reforçar os traços autoritários,
tanto das democracias como dos
regimes autoritários. Alguém está
a enganar alguém. A Europa faria
bem se se convencesse de que a
nova guerra fria tem pouco a ver
com democracia versus
autoritarismo. É apenas uma nova
fase de enfrentamento entre o
capitalismo multinacional dos
EUA e o capitalismo de Estado da
China (onde a Rússia se vai
integrando). É uma luta nada
democrática entre um império
declinante e um império
ascendente. A Europa, excluída
pela primeira vez em cinco séculos
do protagonismo global, teria todo
o interesse em manter uma
relativa distância em relação a
ambos os antagonistas e
prosseguir uma terceira via de
relativa autonomia. Bastaria
seguir o exemplo dos países do Sul
global reunidos na Conferência de
Bandung (1955), talvez agora com
mais probabilidades de êxito. Bem
mais perto de nós, talvez bastasse
mesmo ler e seguir as encíclicas
do Papa Francisco.

Boaventura de Sousa Santos é


Director emérito do Centro de
Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra

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