Você está na página 1de 13

Para citar esse documento:

SANTOS, Alexandre Carvalho dos. Dança de terreiro de candomblé corpo ancestral


em movimento. Anais do VI Encontro Científico da Associação Nacional de
Pesquisadores em Dança - ANDA. Salvador: ANDA, 2019. p.1925-1936.

www.portalanda.org.br

1924
DANÇA DE TERREIRO DE CANDOMBLÉ
CORPO ANCESTRAL EM MOVIMENTO:

Alexandre Carvalho dos Santos (UFRJ)i

RESUMO: Este artigo visa discorrer sobre aspectos que circundam os princípios da
transmissão do conhecimento na aprendizagem da dança de terreiro de candomblé.
Busco levantar questões que apontem possíveis pilares pelos quais estão fundados
os ensinamentos da dança de terreiro. Percebendo que existe uma forma de ensinar
e aprender a dançar, próprias do Terreiro, discorro aqui, sobre que forma é essa,
motivado pela indagação: Como se aprende a dança de terreiro? Analiso aqui tal
indagação a partir de observações dentro do terreiro e através dos relatos de
membros do Projeto em Africanidade na Dança Educação PADE/UFRJ, trazendo
para o diálogo autores que tocam em aspectos importantes para refletir sobre esta
ação de transmissão de conhecimentos nas Comunidades de Terreiro de
Candomblé, visto que os saberes movimentados dentro das Casas de Candomblé
evidenciam sua complexidade técnica, nos apontando uma relevante contribuição na
construção da dança no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Candomblé. Dança de Terreiro. Ancestralidade

ABSTRACT: This article aims to discuss aspects that surround the principles of the
transmission of knowledge in the learning of candomblé terreiro dance. I search
questions that indicate to possible pillars on which the teachings of the terreiro dance
are founded. Realizing that there is a way to teach and learn to dance, coming from
the terreiro, I will then discuss what forms these. Motivated by question: How to learn
the terreiro dance? I analyze this question from observations inside to Terreiro and
through reports through reports from members of the Project in Africanity in dance
education PADE/UFRJ, bringing to the dialogue authors who report important
aspects to reflect on the transmission of knowledge in Terreiro Communities.
Because, knowledge moved within the House of Candomblé evidences its technical
complexity, pointing us a relevant contribution in the construction of the dance in
Brazil.

KEYWORDS: Candomblé. Terreiro Dance. Ancestry.

Um grupo de professores, professoras, alunos e alunas da Universidade


Federal do Rio de janeiro, em Maio de 2010, fazia uma pesquisa de campo na
Comunidade de Terreiro, Asé Ylê Ayiê Ojú Odé Igbô1. Em conversa informal com a
liderança da casa, Yalorixá2 Nara de Oxóssi, ao ser perguntada sobre que aspecto
do candomblé ela acreditava ser uma forma de lutar contra o preconceito e a
Intolerância Religiosa, diz: a dança dos Orixás. E destaca que através da dança do
Terreiro, o corpo, é um comunicador potente.

1
Ylê Ayiê Ojú Odé Igbô – Casa na Terra sobre o Olhar do Caçador Igbô 1925
2
Yalorixá – Popularmente conhecido como “Mãe de Santo”
Uma professora dos cursos de Danças do Departamento de Arte Corporal –
UFRJ, ao ver uma Festa no mesmo Terreiro, diz com olhar de encantamento: Essa
festa é um verdadeiro espetáculo de dança!

Em 2015, na Comunidade de Terreiro Ilê Axé Jagun Loyá, alguns alunos da


graduação em Dança perguntam a Yalorixá Tania de Jagun os jovens do terreiro
aprenderam a dançar assim? Referindo-se às crianças e adolescentes do terreiro.

Neste artigo tenho por objetivo analisar o processo de despertar do corpo


para a dança no terreiro de candomblé e sua interação com a graduação em Dança
do Departamento de Arte Corporal, a partir de dois Trabalhos de Conclusão de
Curso (TCC) do Bacharelado em Dança – UFRJ: “Aráyé”, aprestado por Ivy Brum
em 2017 e “Meu corpo ritual” de Gabriela Presgrave, em 2018. Segundo as autoras,
não haveria possibilidade de realizá-los se não fosse a abertura das sete
Comunidades de Terreiro parceiras que permitiram as pesquisas de campo, visitas
ao cotidiano dessas comunidades, não só em dias festivos, mas também as visitas
informais, que apontaram caminhos na composição e elaboração dos seus
trabalhos. Entre estas casas está o Asé Ylê Ayiê Ojú Odé Igbô, primeira
Comunidade de Terreiro parceira do projeto e o Ilê Axé Jagun Loyá, onde foi
desenvolvida a primeira residência artístico pedagógica do Projeto em Africanidade
na Dança Educação – PADE/UFRJ, projeto ao qual coordeno no Departamento de
Arte Corporal da UFRJ.

Projeto em Africanidade na Dança Educação: Lugar de encontro

O Projeto em Africanidade na Dança Educação – PADE/UFRJ é um projeto


de pesquisa e extensão universitária, buscando no encontro entre as Comunidades
de Terreiro de candomblé de Ketu e a Comunidade Acadêmica, promover trocas de
conhecimentos e experiências. Acreditando que essa ação contribui para a
superação do ambiente de preconceito e de Intolerância Religiosa presente em
nossa sociedade em relação às culturas de matriz africana, no qual a religiosidade
tem papel preponderante, mas também alvo de perseguição histórica. O projeto visa
ampliar a percepção do sentido identitária e de pertencimento dos membros das
1926
Comunidades de Terreiro e o repertório corporal dos alunos de graduação por meio
da pesquisa nas danças de terreiro.

Entendendo que na terminologia Yorubá a palavra Padê significa “encontro”


como afirma SANTOS (2012) "... nos terreiros de candomblé de Ketu o ritual do
Padê ou Ipadê, significa ato de encontro, reunião, celebração durante o ritual”. Lima
traz outra contribuição importante ampliando a compreensão deste ato ritual:

Padê ou Ipadê é um ritual afro-religioso onde o orixá Exu leva aos outros
orixás a mensagem de que todas as oferendas necessárias foram
realizadas, e que o encontro entre os membros do terreiro e os orixás pode
acontecer. (LIMA, 2005, p.140).

O PADE, busca encontro dialogal apoiado nas leis de ação afirmativa, Lei:
10.639/03, atual 11.654/08, que torna obrigatório o ensino da História africana, afro-
brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, assim
como na lei Estadual: 5506/09 - ALERJ, que declara o Candomblé como
patrimônio imaterial do estado do Rio de Janeiro. Lei afirma que as Comunidades de
Terreiro de Candomblé são espaços de memória, cultura, história e de
ancestralidade africana. Por essa razão, as Comunidades de Terreiro e seus
membros tornam-se espaço de afirmação de identidade, e de transmissão de
conhecimento da memória ancestral negra, na construção e preservação de saberes
civilizatório que se mantiveram, mesmo sob toda opressão religiosa, política e social
ao longo de sua trajetória. É nesse ambiente de tensão externa e do cotidiano
interno de ritual, religiosidade e salvaguarda de saberes, que se estruturam e
atualizam as tradições. Assim as comunidades de terreiro se mantêm vivas
salvaguardando os princípios que preparam e despertam os corpos/sujeitos para a
dança ancestral atualizada.

A dança que ouço

A dança no terreiro tem a potencial função de atualizar e materializar os


mitos, em um universo não dicotômico entre físico e espiritual, material e imaterial,
produzindo símbolos e códigos, que deixam aos que participam de seu dia-a-dia
saberes ancestrais transmitidos pela oralidade. Essa escrita impressa na oralidade,
talha no corpo uma narrativa de política de luta, desejos e afetos. Aparecendo aqui 1927
como um dos princípios que orientam o corpo para dançar. Onde gesto, movimento
e dança figuram como a memória cantada pelos sacerdotes Yalorixás, Babalorixás,
Ekedys e Ogãs, tocada em atabaques, mensagem recebida individual e
coletivamente, decifrada ao que enfatiza Fanon (2008): “... só os pretos podem
decifrar essa mensagem, quando diz: o atabaque rebatina a mensagem cósmica! Só
o preto é capaz de transmiti-la, de decifrar seu sentido, seu alcance”.

Embora Fanon enfatize que só o preto pode receber essa mensagem, cabe
ressaltar que hoje o candomblé é formado por diferentes grupos étnicos, aos quais
preservam e despertam em seus corpos a ancestralidade resguardada na dança do
terreiro, como afirmam Lima e Alves:

Em suas variações no Brasil, esta religião tem agregado majoritariamente


negros, mas também mestiços e brancos. Tem se constituído como uma
reserva de memória, de relações e laços sociais supostamente africanos,
mas também de aspectos gerados durante a colonização, a escravidão e o
pós-escravidão, tal como o sincretismo cultural e religioso, a experiência da
raça, do racismo e das desigualdades raciais. (ALVES, 2015, p. 594)

Desta forma podemos perceber que a ancestralidade negra é majoritária na


estrutura do candomblé e de seus saberes. Essa experiência cotidiana, histórica,
social, do movimento, do gesto e da fruição que atravessa o corpo a medida que
esse se coloca disposto às experiências, é o que o terreiro proporciona. Trago
experiência aqui como aponta Larrosa:

“A experiência é o que nos passa, o que nos acontece o que nos toca. Não
o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam
muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-
ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça.
Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de
experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas
coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”. (BONDÍA, ano, p.21).

Assim não é só a experiência diante dos olhos como informação, mas a que
acontece, o que nos toca. E nesse sentindo, falo de acontecer no corpo, corpo
integrado, corpo de resistência, corpo poético que permite o acontecer. Nessa
perspectiva, ao longo dos últimos dez anos do PADE/UFRJ, experienciamos
acontecimentos no corpo e no diálogo entre os princípios da dança de terreiro e os
princípios da Dança de Helenita Sá Earp, que para além de informação, nos dá
indicativos de que a linguagem da dança do terreiro apresenta outro olhar para o
corpo, ampliando a pesquisa em dança. 1928
Pontuo ainda, que nesse diálogo não pretendo dar notoriedade ou
consagração à dança de terreiro a partir dos princípios de Helenita, não se tratando
de um trabalho comparativo onde um saber se sobreponha a outro, pois acredito
que a dança do terreiro, tem méritos por si mesmo, não necessitando de
reconhecimento de teorias ou técnicas externas as suas próprias episteme. Pois
segundo Rocha 2000 diz:

“... a imagem que temos é [...] justamente aquela que vemos no barracão
(terreiro). Os Orixás vestidos, dançando com seus gestos característicos.
Diz-se que os filhos, pouco a pouco, assumem as muitas características de
seu Orixá. Com isso, ao falar de um Orixá, automaticamente associamos
suas características à personalidade de seus filhos e muitas vezes também
á sua própria história de vida. Por tanto, falar dos Orixás é falar de nós
mesmos. (ROCHA, 2000, p.56).

A herança africana e as ressignificações e adaptações que ocorrendo ao


longo do tempo no Brasil me levam a investigar os princípios elaborados e
transmitidos até hoje nos terreiros de candomblé. O diálogo com os princípios de
Helenita propõe uma ampliação no processo criativo em Dança com o repertório de
criação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, incluindo o conhecimento que o
terreiro tem sobre o corpo, e suas possibilidades em dança. Em uma reflexão
experienciada, que coloque essas duas instituições em pé (de dança) de igualdade.
Produzindo encontros para uma dança não hierarquizando conhecimentos.

Os princípios criativos que regem a ação corporal nas Comunidades de


Terreiro de Candomblé revelam a memória ancestral, resguardada e atualizada nos
corpos de seus membros. Ambos os espaços, terreiro e a Universidade,
estabelecem relações com os princípios de movimento, espaço, forma, dinâmica e
tempo e ritmo.

“A dança é um ritualismo obrigatório. O ritual da dança tem seu apoio nos


mitos, ítans dos orixás, que reverenciados estão associados aos cânticos,
quando palavras e movimentos se associam celebrando histórias,
grandiosidades, proezas feitas, habilidades e capacidades. É importante
saber qual o pé vai para frente primeiro, qual movimento das mãos e do
corpo que o acompanham; quantas voltas são dadas em seguida, tudo deve
ser cuidadosamente observado. Não são meras respostas emocionais ao
ritmo musical. Simbolizam o restabelecimento de algo sagrado” (BENISTE,
1997, p. 218).

Entendendo que a dança pode ser uma expressão espontânea, onde o corpo
cede às emoções, estímulos externos ou internos, produzindo sua dança própria, ou
1929
seja, a partir de uma relação individual de percepção ou reflexão sobre o corpo ou
ainda outras materialidades ou imaterialidades. Gualter (2000) aponta que:

Helenita criou uma proposta de ensino e criação, que consiste numa dança
calçada nos princípios que regem a ação corporal, a partir dos parâmetros
de movimento, espaço, forma, dinâmica e tempo. O corpo, como um
referencial permanente, está constantemente envolvido em descobertas,
das quais a técnica e a criatividade jamais se desvinculam. (GUALTER,
2000, p.30)

Um despertar no terreiro

Podemos estabelecer uma ligação com essa ancestralidade e seu modo de


produção de conhecimento cultural, onde, os saberes de mãos dadas seguem o
fluxo na descoberta de que os elementares se corporificam e dão sentidos múltiplos
na pesquisa de movimento ao pesquisador em dança. Um fragmento dessa
percepção começa a dar seus primeiros passos no trabalho “Arayê” de Ivy Brum, ao
falar sobre seu processo de entendimento da dança no terreiro:

“Caminhei no caminho dos encontros dançantes. O corpo feito e refeito dos


caminhos dançados. No Projeto PADE praticando abordagens ligadas à
cultura Yorubá. Orixás em dança. Tendo as matérias presentes na natureza
como relações de princípios de criação ligados aos Orixás, deixei que as
forças que circulam em mim transitassem para que assim eu pudesse criar.
Através das águas, da terra, do fogo, do ar e de seus Orixás ia para o mais
profundo e vasto de mim” (SOUZA, 2017, p. 25).

Aqui, no encontro do corpo acadêmico, universitário de Ivy Brum, aponta em


seu Trabalho de Conclusão de Curso uma de suas primeiras experiências:

“Nos rituais religiosos e nos discursos de líderes da tradição Yorubá eu vi


presença em cada ato. Quando dançam e falam sobre suas danças e de
suas divindades, sobre seus conhecimentos culinários, de energia, de
cantos, de arquitetura... Vejo que não há divisão entre os fazeres. O ser é
em sua plenitude, o ser é enquanto está sendo. É no fazer que se
constroem a cada instante. Na Avamunha, momento em que entram no
salão do terreiro, dançando a si mesmos, vi simples e significativos gestos
naqueles corpos. Pés no chão, ombros firmes e móveis. Cabeças e olhares
resistentes e flexíveis. Era ato de presentificação da memória e de si.
Presentes ao momento deixam-se frequentar. Força transitam e
manifestam-se por permissão. Corpos dançam” (SOUZA, 2017, p. 20)

Se em “Aráyé” o processo de aprendizado em dança no terreiro está ligado à


materialidade e imaterialidades, que atravessam o corpo para o fazer dos sujeitos de
sua corporeidade e de sua dança, em “Meu corpo ritual” de Gabriela Presgrave faz
1930
uma abordagem pelo olhar do gesto e entende a transmissão desse saber como
técnicas, pois compreende que existe uma forma, um lugar que o corpo em dança
do terreiro acessa, que mesmo com anos de trabalho corporal, falando si mesmo
como exemplo não consegue alcançar. Ela nos diz:

Quando comecei a me entender como um corpo diferenciado e com mais


possibilidades dançantes, me vi em um outro aprendizado corporal que foi a
dança de terreiro. A primeira impressão que se tem ao ver essa dança é de
que é fácil e todos são capazes de reproduzir seus movimentos e ritmos,
porém a realidade não é bem assim. Os corpos dançantes do candomblé
possuem uma movimentação peculiar onde há um desequilíbrio equilibrado
– uso desequilíbrio equilibrado pois me parece que quando dançam, os
adeptos do candomblé sabem exatamente onde é o seu ponto de
desequilíbrio e não o ultrapassam. Chegam perto dele e voltam ao eixo de
maneira natural, como se todas as movimentações tivessem sido estudadas
e analisadas minuciosamente por anos, quadris que parecem
contrabalancear o desequilíbrio e o causar simultaneamente, ombros e
tórax que possuem uma movimentação única que parece comandar toda a
movimentação corporal, mas são na verdade uma consequência e também
outro ponto de contraposição do desequilíbrio equilibrado. Cada parte tem
sua dinâmica (são diferentes, mas se ajudam e completam), seu tempo e
coordenar tudo isso sem que pareça mecânico nem que uma parte leva
outra ou que há uma força que entra por um ponto do corpo e passeia por
todo ele é, particularmente, extremamente complicado. (PRESGRAVE,
2018, p.35)

Nesse relado Gabriela apresenta percepções que pode observar sobre a


dança durante um período em que realizou no Projeto em Africanidade na Dança
Educação, uma residência artístico pedagógica durante 18 meses na Comunidade
de Terreiro Jagun Loyá nos anos de 2015-2016. Ela segue fazendo suas
observações:

Esse tipo de dança se aprende prioritariamente observando aos mais


velhos durante as rodas de candomblé, dificilmente alguém do Axé irá
tirar um tempo para te ensinar passo a passo de cada dança de cada
orixá até que estejas executando perfeitamente. Uma vez ou outra é
possível que isso aconteça, porém, a principal ferramenta de
aprendizado de tudo nas casas de candomblé é a observação e a
tentativa. Durante a residência tentei aprender algumas
movimentações dessa dança ritual observando os candomblés os
quais éramos convidados, com os jovens do terreiro, com a matriarca
Tânia ty Jagun, no projeto, mas sentia que meu corpo não alcançava
esse lugar o qual o corpo ritual acessa. Parece que os corpos ali
presentes acessam algum tipo de memória e sensação os quais meu
corpo e os de alguns colegas que estavam na residência também não
conseguiam acessar. O “não jeito” era nítido quando nos
propúnhamos a tentar essa dança e não era somente com a
movimentação, era também quando tentávamos conciliar a dança
com o ritmo dos atabaques e do agogô. A dificuldade dos nossos
corpos era nítida e fazia alguns questionarem como corpos que
estudam e vivem dança pudessem ter tamanha dificuldade para/com
a dança ritual já que nossos corpos, teoricamente, eram preparados
para as mais diversas possibilidades. (PRESGRAVE, 2018, p.35).
1931
De forma geral, falar desse tempo de residência e vivência dentro do projeto
que para Gabriela Presgrave não é suficiente pra apreender a dança de terreiro,
mesmo ela, que dispunha de um repertório corporal diferenciado adquirido em
outras vivencias em dança, nos faz atentar para a relação de tempo da experiência
que constrói o conhecimento das comunidades de terreiro ao longo de anos de
histórias. De fato, o aprendizado do terreiro leva tempo, não atoa na própria liturgia
do candomblé o tempo ao qual os membros estão apitos a realizar determinadas
funções está ligado as experiências vividas ao longo dos anos no terreiro. O tempo
obedece não só a ordem cronológica, mas a ordem das experiências. Outro ponto é
que as experiências são únicas e cada corpo é único e é tratado na sua
individualidade e particularidade que ocupa dentro de toda a comunidade. Além de
ressaltar que o conhecimento sobre dança que se tem hoje, foi construído durante
muitos anos e por muitos grupos étnicos. O que se tem atualmente como dança de
terreiro levou anos pra se construir, pra se fazer como é. Um corpo de terreiro que
dança é um corpo da experiência de seu corpo com o terreiro em dança. É na
vivencia, é no tempo.

Encontro com a voz que nos leva a dançar

O candomblé é uma reorganização das tradições africanas em solo brasileiro.


Nessa tradição a oralidade é um dos métodos de transmissão de conhecimento.
Essa prática pode ser observada, pois se mantém atual nas Comunidades de
Terreiro. O corpo responde as emanações que essa oralidade propõe. As rezas
cantadas aos orixás, reza para despertar o poder das folhas (ervas), reza do banho,
a reza da comida, a reza para entregar a oferenda, a reza do jogo de búzio. O corpo
tambor, o som que atravessa as sensações e o corpo que se movimenta, é a canção
que instaura um ambiente que reuni os cantos sagrados, as variadas possibilidades
de dança e toques diversos. Se é na oralidade que todas essas ações ocorrem, e
ela também dá ao corpo a possibilidade de falar em gesto, de movimento rítmicos,
de se deslocar no espaço em formas diversas, a oralidade é corpo-oralidade. Esse
corpo que dança e se lança no encontro consigo mesmo e com a sua divina
ancestralidade, com o coletivo que dança em um só corpo, no corpo terreiro. 1932
O candomblé enquanto religião de matriz africana, resguarda em seu modo
de transmissão de conhecimento a oralidade. Hampaté Bá citando Tierno Bokar nos
diz que:

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-


nos á tradição oral. E nenhuma tentativa de pensar a história e o
espirito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie
nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente
transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulos ao longo dos
séculos. (Bá apud. BOKAR, 1957, p.161)

Sendo assim, apresento como um dos princípios de despertar do corpo para


dança ancestral, a transmissão oral, que não se encerra nas narrativas de itans3,
relatos da mitologia ou mesmo das histórias, ela fala de aspectos colocando ao
alcance do ser humano em questões religiosas, artes, história, ciências naturais,
lazer e conhecimento. Por meio dessa episteme, a oralidade coloca-se como
conectivo das relações cotidianas humanas fundadas na tradição e na experiência.
Como cita Larrosa (2002):

O que vou fazer em seguida é sugerir certo significado para estas duas
palavras em distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto lhes
soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar algumas palavras e tratar de
compartilhá-las. E isto a partir da convicção de que as palavras produzem
sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes
mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das
palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as
palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento
porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não
pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas na partir
de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou
“argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é
sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o
sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. E,
portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos
diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em diante dos
outros e diante do mundo em que vivemos. E o modo como agimos em
relação a tudo isso. (BONDÍA, 2002, p. 19).

Mesmo que se assente por escrito uma narrativa, compreendendo que os


membros das Comunidades de Terreiro, tem seus cadernos de anotação dos
conhecimentos transmitidos no Egbé4, o escritor reflete no modo como essa lhe foi
contada, que nuances e entonações e os sentimentos que foram projetadas pelo
narrador.

3
Itans - histórias fundacionais Yorubá 1933
4
Egbé - Terreiro
Como diz um Itan: “Então Exu surpreendendo a todas elas, disse: O quarto
búzio, enterrarei, como lembrança de nossos ancestrais”. O que está na penumbra
dessa narrativa é o próprio valor do testemunho, a maneira de enunciar o texto, e de
como quer produzir efeito na memória individual e coletiva partilhada entre narrador
e palavra. No corpo, produz efeito de um corpo vivo que tem escrito em si, todas
essas experiências sentidas, vividas. Um corpo embebido de oralidade.

Se na Universidade compreende-se esse princípio de uma corporeidade na


Comunidade de Terreiro o despertar do corpo está intimamente ligado com todo
saber do terreiro, posto a atender as ritualidades necessárias para que o Asé5, opere
na manutenção e harmonia das pessoas, individual e coletivamente, assim como no
próprio espaço físico do Egbé. Produzindo ações de transformação na
espiritiualidade e na vida material. A compreensão de ações corporais, regidos por
narrativas históricas, ritualísticas, musicais e de ordem das praticas ditas do terreiro,
que vão se encontrando no corpo e formando esse corpo disposto no entendimento
de sua dança que operara na recepção e transmissão do asé, me faz pensar que
possa existir ao que circunde ao que chamarei aqui de princípio da “Oralixalidade”.
Esses são saberes que vão produzindo um repertório corporal, que integra os
fazeres, vão dando sentido performático ao corpo e construindo o aprendizado da
dança de terreiro.

Considerações finais

A análise desses dois Trabalhos de Conclusão de Curso que me propus a


utilizar aqui, me abre mais perguntas do que respostas para compreensão do
despertar da dança de terreiro e movimento ancestral. Me dando pistas para seguir
enfrente buscando reconhecer esses princípios que dão ao corpo do terreiro uma
capacidade de se perceber no espaço, na compreensão de sua polirritmia. A dança
de terreiro tem a potencial função de atualizar e materializar os mitos, em um
universo não-dicotômico entre físico e espiritual, material e imaterial, produzindo
símbolos e códigos, que deixam aos que participam de seu dia-a-dia, saberes
ancestrais transmitidos pelo movimento da oralidade. Se essas ações ocorrem na
1934
5
Asé é força cósmica da natureza e dos orixás.
oralidade e ela também dá ao corpo a possibilidade de falar em gesto, em
movimentos rítmicos e de se deslocar no espaço em formas diversas, a oralidade é
também corpo, corpo-oralidade. Sendo assim, de muitas questões que se levantam
ao falar dos princípios que circundam as Comunidades de Terreiro, vejo que de fato
existem pilares que constroem a transmissão do conhecimento no Candomblé, e
que esse conhecimento passa indivisivelmente pela experiência corporal, pela
oralidade e por toda sua religiosidade, sendo conceitos que merecem atenção para
a busca do entendimento dos saberes que compõem a sociedade brasileira.

Referências

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Ver.


Bras. Educ. [online]. 2002, n. 19, p. 20

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas / Frantz Fanon: tradução Renato
da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2006.

LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras. Rio de


Janeiro: Garamond, 2011.

LIMA, Ari, ALVES, Nana Luanda M.: Relações raciais, racismo e identidade negra
no candomblé baiano de Alagoinhas. Vol.10 Número 20 jul. / dez.2015 p. 594.

LIMA, Fábio. As quartas de xangô: ritual e cotidiano. - 1. Ed – João Pessoa, PB:


Editora Grafset, 2010.

MEYER, André: A Poética da Deformação na Dança Contemporânea. Rio de


Janeiro: Monteiro Deniz, 2004.

PRESGRAVE, Gabriela de Farias. Meu Corpo Ritual: a dança como ritual.


Trabalho de Conclusão de Curso, Bacharelado em Dança, DAC, UFRJ, 2018.

SUSANNA, Rosamaria Barbara: A Dança das Aiabás: dança, corpo, e cotidiano


das mulheres de candomblé. 2002. 21-22f Tese de Doutorado em Sociologia do
Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.

SOUZA, Ivy M. B. V. de. Aráyé: Corpo Intérprete dos Quatro Elementos na


Cosmogonia Yorubá. Trabalho de Conclusão de Curso, Bacharelado em Dança,
DAC, UFRJ, 2017
1935
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.

ROCHA, Agenor Miranda. As nações Ketu: origens, ritos e crenças: os


Candomblés antigos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.

VERGER, Pierre. Orixás deuses Yorubas na África e no Novo Mundo. Salvador:


Ed. Corrupio, 2002

YONNE, DANIEL. O Poder do Corpo Dançante na Performance


Afrodescendente. São Paulo: Ed. Rebento, 2017.

i
Mestrando em Dança pelo Programa de Pós-Graduação em Dança - PPGDan- UFRJ, Graduado em
Licenciatura em Educação Física – Unisuam. Professor de Folclore Brasileiro na Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Coordenador do Projeto em Africanidade na Dança Educação
PADE/UFRJ, integrante da Companhia Folclórica do Rio - UFRJ, desde 1989. Atuando no combate
ao racismo e a Intolerância Religiosa.

1936

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

Você também pode gostar