Você está na página 1de 16

Introdução a Fenomenologia do Espírito

Primeira Aula

“Vivemos aliás numa época em que a universalidade do espírito está


fortemente consolidada, e a singularidade, como convém, tornou-se tanto mais
insignificante; época em que a universalidade se aferra a toda a sua extensão e
riqueza acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe à atividade do
indivíduo na obra total do espírito só pode ser mínima. Assim, ele deve
esquecer-se, como já o implica a natureza da ciência. Na verdade, o indivíduo
deve vir-a-ser, e também deve fazer o que lhe for possível; mas não se deve
exigir muito dele, já que tampouco pode esperar de si e reclamar para si
mesmo”1.
A fim de introduzir algumas questões e métodos que nos guiarão neste
curso, convém partirmos destas afirmações. Convém partirmos destas
afirmações porque elas parecem sintetizar tudo aquilo que várias linhas
hegemônicas do pensamento filosófico do século XX imputaram a Hegel.
Filósofo da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar conta da
irredutibilidade da diferença e das aspirações de reconhecimento do individual
às estratégias de síntese do conceito. Teórico de uma modernidade que se
realizaria no totalitarismo de um Estado Universal que se julga a encarnação
da “obra total do espírito”. Expressão mais bem acabada da crença filosófica
de que só seria possível pensar através da articulação de sistemas fortemente
hierárquicos e teleológicos, com o conseqüente desprezo pela dignidade
ontológica do contingente, deste contingente que “tampouco pode esperar de
si e reclamar para si mesmo”.
Poderíamos ainda desdobrar uma lista aparentemente infindável de
acusações que o pensamento do século XX levantou contra Hegel: tentativa de
ressuscitar uma metafísica pré-crítica de forte matiz teológico, hipóstase da
filosofia da consciência, crença em uma história onde o presente apresentaria
uma “universalidade do espírito fortemente consolidada”, história teleológica
esvaziada da capacidade em apreender um tempo no qual acontecimentos
ainda fossem possíveis. A este respeito, Habermas, por exemplo, falará: “de
um espírito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta auto-referência as
diversas contradições atuais apenas para faze-las perder o seu caráter de
realidade, para transforma-las no modus da transparência fantasmagórica de
um passado recordado – e para lhes tirar toda a seriedade”2.
1
HEGEL, Fenomenologia I, p. 62
2
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 60
Mesmo as tradições filosóficas que se reclamam do hegelianismo nunca
aceitaram o que poderíamos chamar de “um hegelianismo sem reservas”. Se a
tradição marxista, por exemplo, encontrou em Hegel uma antropologia
filosófica capaz de expor o processo histórico de formação da consciência em
suas expectativas cognitivo-instrumental, prático-moral e estético-expressiva,
ela logo procurou claramente tomar distância do que seria holismo estático da
metafísica especulativa resultante do sistema. Por sua vez, o chamado
hegelianismo de direita (que vai desde Rozenkranz até Joachim Ritter) faz, de
uma certa forma, a operação inversa e insiste na substancialidade de laços
comunitários “metafisicamente fundamentados” contra a centralidade da
temporalidade histórica no pensamento dialético..Como se, mesmo entre os
neo-hegelianos, a imagem de Hegel fosse a de um pensamento impossível de
chegar perto demais.
Tudo isto nos leva a colocar uma questão central para a orientação deste
curso: “O que significa ler Hegel hoje?”. Devemos aqui nos restringir à
economia interna dos textos e ignorar como a auto-compreensão filosófica da
contemporaneidade afirmou-se insistentemente como “anti-hegeliana”? Como
se nosso tempo exigisse não se reconhecer no diagnóstico de época e não
permitisse deixar-se ler através das categorias fornecidas por Hegel. Ou seja, é
possível ler Hegel hoje sem levar em conta como nosso momento filosófico
organizou-se, entre outras estratégias, através dos múltiplos regimes de
contraposição à filosofia hegeliana? Não estaríamos assim perdendo a
oportunidade de entender como a auto-compreensão de um tempo depende,
em larga escala, da maneira com que se decide o destino de textos filosóficos
de gerações anteriores? Compreender como um tempo se define, entre outras
operações, através da maneira com que os filósofos lêem os filósofos: prova
maior de que a história da filosofia é, em larga medida, figura da reflexão
filosófica sobre o presente?
Sim, ler Hegel sem levar em conta o peso que o presente impõe seria
perder muita coisa. E aqui não poderíamos deixar de fazer ressoar a
constatação de Foucault: “Toda nossa época, que seja pela lógica ou pela
epistemologia, que seja através de Marx ou através de Nietzsche, tenta escapar
de Hegel (...) Mas realmente escapar de Hegel supõe apreciar de maneira
exata quanto custa se desvincular dele; isto supõe saber até onde Hegel, talvez
de maneira insidiosa, aproximou-se de nós; supõe saber o que é ainda
hegeliano naquilo que nos permite de pensar contra Hegel e de medir em que
nosso recuso contra ele ainda é uma astúcia que ele mesmo nos opõe e ao final
da qual ele mesmo nos espera, imóvel” 3. Neste curso, não faremos outra coisa
que levar estas palavras a sério.
3
FOUCAULT, L´ordre du discours, pp. 74-75
Geografia do anti-hegelianismo contemporâneo

Chamar nossa época de anti-hegeliana não me parece uma simples


concessão retórica para dramatizar um pouco o início de um curso sobre um
texto reconhecidamente árduo. Neste sentido, não é sem valor lembrar como
as três grandes tradições da filosofia ocidentais contemporânea (francesa,
alemã, anglo-saxã) têm em comum a distância, às vezes ambígua, às vezes
taxativa, em relação a Hegel.
Se quisermos oferecer uma certa “geografia” do anti-hegelianismo, o
melhor país a começar é, sem dúvida, a França. Pois a história da recepção de
Hegel na França é a história espetacular de uma reviravolta. Em seu
“Relatório sobre o estado dos estudos hegelianos na França”, de 1930,
Alexandre Koyrè começa em tom desolador: “Temo um pouco que após os
relatórios, tão ricos em fatos e em nomes, dos meus colegas alemães, ingleses
e intalianos, meu próprio relatório sobre o estado dos estudos hegelianos na
França lhes pareça relativamente muito magro e muito pobre” 4. A magreza e
pobreza do hegelianismo francês se contrapunha a robustez de uma filosofia
universitária marcadamente neo-kantiana. No entanto, ao reimprimir seu texto
na década de sessenta, Koyrè foi obrigado a acrescentar um post-scriptum que
começava da seguinte maneira: “Desde a publicação deste relatório (1930), a
situação de Hegel no mundo da filosofia européia, e particularmente francesa,
mudou completamente: a filosofia hegeliana conheceu um verdadeiro
renascimento, ou melhor, ressurreição, e só perde para o existencialismo ao
qual, aliás, ela às vezes procura se unir”.
De fato, a partir de meados dos anos trinta e até o início dos anos
sessenta, a França foi hegeliana. Um hegelianismo absolutamente particular
pois baseado na Fenomenologia do Espírito, livro que até então era visto
como texto menor da bibliografia hegeliana pois desprovido do esforço
sistemático presente na Ciência da lógica e, principalmente, na Enciclopédia.
Ao insistir na centralidade da Fenomenologia, em especial na figuras figuras
da consciência-de-si, como o Senhor e o escravo e a consciência infeliz, o
pensamento francês podia transformar Hegel no teórico da intersubjetividade e
da crítica ao solipsismo. Intersubjetividade de um desejo e de um trabalho que
são manifestações da negatividade de sujeitos não mais determinados por
atributos substanciais. A negatividade do sujeito em suas operações de desejo
e trabalho, assim como a constituição de estruturas sociais universais capazes
de suportar o reconhecimento intersubjetivo deste desejo e deste trabalho,
apareciam como a grande contribuição de Hegel à compreensão das estruturas
4
KOYRÈ, Estudos de história do pensamento filosófico, p. 178
sociais da modernidade, de seus processos de constituição e de suas promessas
de reconciliação.
Foi Alexandre Kojève com seu curso sobre a Fenomenologia do
Espírito que marcou o pensamento francês com esta temática em grande parte
derivada de uma improvável leitura heideggero-marxista de Hegel. Para
termos uma idéia do tamanho desta influência, basta lembrarmos de alguns
freqüentadores destes seminários: Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan,
Georges Bataille, Pierre Klossowski, Raymond Aron, Eric Weil, Raymond
Queneau, Jean Hyppolite, André Breton e, de uma maneira esporádica, Jean-
Paul Sartre. Todos eles terão seus projetos intelectuais marcados de maneira
profunda por este contato com a fenomenologia hegeliana. Raramente, um
comentário de texto foi tão decisivo na estruturação da experiência intelectual
de uma geração.
No entanto, a partir do começo dos anos sessenta, a configuração do
pensamento filosófico francês irá novamente modificar-se de maneira radical
e o ponto de viragem será novamente Hegel. O advento do estruturalismo já
colocava em questão a herança hegeliano-fenomenológica ao relativizar a
centralidade dos sujeitos agentes e desejantes na vida social. Althusser, por
exemplo, colocara em circulação um marxismo desprovido de toda e qualquer
raiz hegeliana ao insistir que Marx trouxera, n´O capital, a noção de sistemas
que funcionam à revelia dos sujeitos e que, na verdade, mostrara como
“sujeito” com suas crenças de autonomia da ação era a categoria ideológica
por excelência.
Mas a hegemonia do que posteriormente foi chamado de “pós-
estruturalismo” selou definitivamente o segundo ostracismo de Hegel em solo
francês. Para Deleuze, Lyotard, Derrida e Foucault (em menor grau), Hegel e
a dialética eram, em larga medida, as figuras maiores do império do Universal,
das totalizações e do pensamento da identidade. Hegel como o construtor do
sonho de uma meta-narrativa absoluta animada pela crença inabalável na
unidade da razão. Para os pós-estruturalistas, a negatividade do sujeito
hegeliano era apenas a última estratégia para submeter as singularidades ao
império do Universal, da mesma forma como a última palavra da dialética
seria sempre a síntese que reconciliaria contradições. Pois esta negatividade
estava fadada a ser recuperada pelas estruturas sociais da modernidade com
suas aspirações universalizantes. Contra isto, o pós-estruturalismo não cansou
de contrapor o pensamento da diferença pura (Derrida), do sensível (Lyotard),
dos fluxos não-estruturados de intensidade (Deleuze) e da imbricação
aparentemente irredutível entre razão e poder (Foucault). Se levarmos em
conta a importância crucial que o pós-estruturalismo ainda tem na auto-
compreensão do nosso tempo, podemos imaginar o peso destas confrontações
na determinação do destino contemporâneo da influência de Hegel.
É verdade, nunca devemos esquecer de um julgamento tardio de
Foucault ao reconhecer que Hegel estaria na raiz de “um outro modo de
interrogação crítica” que nasce com a modernidade e que poderia ser resumido
através das questões: “o que é nossa atualidade? Qual o campo atual de
experiências possíveis?”. Algo distinto da analítica da verdade de inspiração
kantiana. Uma “ontologia do presente”, projeto no interior do qual,
finalmente, o próprio Foucault se verá5. Mas tal reconhecimento não implicou
em retorno a Hegel e a sua compreensão da modernidade e seus desafios.
Por outro lado, se voltarmos os olhos à tradição alemã, o cenário de
recusa a Hegel não deixará de se fazer sentir. Heidegger, responsável em larga
medida pela recuperação da importância da Fenomenologia do Espírito, livro
ao qual ele dedicou um curso no ano letivo de 1930-1931, verá Hegel como o
ápice da metafísica do sujeito e do esquecimento do ser. Neste sentido, a saída
do quadro epocal da metafísica ocidental deveria ser feita em um movimento,
em larga medida contra Hegel e sua noção de sujeito.
A Escola de Frankfurt, por sua vez, não deixará de ter uma postura
ambígua e dilacerada em relação à herança do hegelianismo. Neste sentido, o
exemplo mais forte é Adorno. O mesmo Adorno que tentará salvar a dialética
de seus dispositivos de síntese totalizante, insistindo na irredutibilidade das
negações e que nunca deixará de ter palavras duras em relação a Hegel. Pois,
tal como na tradição pós-estruturalista (mas por outras vias), Adorno
compreende Hegel como aquele que, de uma certa forma, trairá seu próprio
método a fim de retornar a um pensamento da identidade. Basta lembrarmos
aqui desta afirmação escrita pensando no trecho que abriu nossa aula: “Se
Hegel tivesse levado a doutrina da identidade entre o universal e o particular
até uma dialética no interior do próprio particular, o particular teria recebido
tantos direitos quanto o universal. Que este direito – tal como um pai
repreendendo seu filho: “Você se crê um ser particular” -, ele o abaixe ao
nível de simples paixão e psicologize o direito da humanidade como se fosse
narcisismo, isto não é apenas um pecado original individual do filósofo” 6. Isto
não é um pecado individual do filósofo porque é um pecado de todo seu
sistema. Se os pós-estruturalista contrapuseram Hegel a um pensamento das
singularidades puras, único pensamento que seria capaz de dar conta das
aspirações de um tempo que procura ir para além do projeto da modernidade,
Adorno contrapõe Hegel a um pensamento da não-identidade com suas
exigências de irredutibilidade do singular.
5
FOUCAULT, Dits et écrits II, p. 1506
6
ADORNO, Negative Dialektik, p. 323 {tradução modificada]
Se o diagnóstico adorniano de Hegel parece, pelo menos a primeira
vista, alinhar-se com aquele sugerido pelos pós-estruturalistas, o diagnóstico
de Habermas e seus seguidores, procuravam (sem nunca ter realmente
problematizado esta articulação) desqualificar a leitura proposta pela primeira
geração dos hegelianos franceses. Pois, contrariamente a Hyppolite e Kojève,
Habermas não cansará de ver Hegel como uma espécie de Moisés que na sua
juventude vira a terra prometida da intersubjetividade comunicacional capaz
de fundamentar as aspirações universalistas da modernidade, mas que, a partir,
da Fenomenologia, teria retornado a uma filosofia centrada no sujeito e a um
conceito mentalista do Si-mesmo e de auto-reflexão que restringe a
compreensão da razão em suas aspirações cognitivo-instrumentais à dimensão
das confrontações entre sujeito-objeto. Ou seja, mesmo entre os defensores da
modernidade, a via hegeliana não parecia mais capaz de fornecer estruturas
seguras de orientação.
Se voltarmos, por fim, os olhos à tradição anglo-saxã o cenário era, até
bem pouco tempo, praticamente desolador. No entanto, antes da I Guerra
Mundial, Hegel foi um filósofo central em Oxford e Cambridge (Bradley,
McTaggart, Green) por fornecer uma alternativa ao empirismo e ao
individualismo. Por sua vez, o pragmatismo norte-americano também foi
receptivo a Hegel e John Dewey encontrou no conceito hegeliano de
“eticidade” a idéia, central para o desenvolvimento de seu pensamento, de que
as práticas substancialmente arraigadas na comunidade (e mão exatamente no
Estado) expressam as normas determinantes para a formação da identidade
dos indivíduos.
Estas leituras de Hegel foram soterradas pela guinada analítica da
filosofia anglo-saxã. Para uma tradição que, em larga medida, compreendia os
problemas filosóficos como problemas gramaticais, Hegel parecia
simplesmente indicar um retorno pré-crítico à metafísica com fortes matizes
teológicas, isto quando a dialética não era simplesmente vista como um
equívoco lógico (Russell). E mesmo autores como Wittgenstein irão imputar a
Hegel um pensamento da identidade e do Mesmo, imputação idêntica Àquela
que parece animar as críticas de setores relevantes do pensamento francês e
alemão contemporâneos. Lembremos, por exemplo, da seguinte afirmação de
Wittgenstein: “Não, não acredito que tenha algo a ver com Hegel. Para mim,
Hegel parece sempre dizer que coisas que parecem diferentes são, na
realidade, idênticas. Meu interesse está em mostra que coisas que parecem
idênticas são diferentes”7. O autor da noção de jogos de linguagem vê, na
estratégia hegeliana que conservação das aspirações universalizantes da razão,
apenas uma figura totalitária da unidade. No que diz respeito a Hegel, autores
7
WITTGENSTEIN in DRURY, Recollections of Wittgenstein, p. 157
tão distantes ente si e tão centrais para a constituição dos esquemas de auto-
compreensão da contemporaneidade quanto Wittgenstein, os frankfurtianos e
os pós-estruturalistas parecem estar de acordo.

Ler

Depois desta longa digressão, podemos voltar a nossa questão inicial a


fim de tentar responde-la: “o que significa e como ler Hegel em uma época
profundamente anti-hegeliana ?” Pois, se é certo que não somos
contemporâneos de Hegel, é impossível deixar de levar em conta esta
estratégia de determinar as aspirações do presente através de sua recusa em
submeter-se àquilo que foi trazido através da experiência intelectual hegeliana
em sua integralidade.
Esta questão nos levar, necessariamente, a um problema de método que
toca a própria compreensão do que é uma leitura de textos da tradição
filosófica, ainda mais textos que procuram fundar uma “ontologia do
presente”, tal como é o caso da Fenomenologia do Espírito.
Creio que esta é uma questão de suma importância porque vocês estão
no interior de um processo de aprendizagem de leitura. Vocês aprenderão
técnicas fundamentais para todo e qualquer processo filosófico de leitura de
textos da tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a
reconstituir a ordem das razões internas a um sistema filosófico, pensar duas
vezes antes de separar as teses de uma obra dos movimentos internos que as
produziram, compreender como o método se encontra em ato no próprio
movimento estrutural do pensamento filosófico, entre outros. Trata-se de um
ensinamento fundamental para a constituição daquilo que chamamos de “rigor
interpretativo” que respeita a autonomia do texto filosófico enquanto sistema
de proposições e não se apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor
que nos lembra como o ato de “compreender” está sempre subordinado ao
exercício de “explicar”. Mas ele não define o campo geral dos modos
filosóficos de leitura. Ele define, isto sim, procedimentos constitutivos da
formação de todo e qualquer pesquisador em filosofia. Ele é o início
irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais que isto possa parecer óbvio,
o fazer filosófico vai além do seu início.
Lembremos, por exemplo, do que diz Kant a respeito de seu modo de
leitura dos textos filosóficos : “Não raro acontece, tanto na conversa corrente
como em escritos, compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos
que expressou sobre seu objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto
porque não determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes,
falou ou até pensou contra sua própria intenção”8. Este comentário
aparentemente inocente é a exposição de todo um programa de leitura que,
aparentemente, não está totalmente de acordo com as regras do rigor
interpretativo. Afinal, Kant reconhece que sua leitura é, digamos, sintomal.
Ele irá procurar aqueles pontos da superfície do texto nos quais a letra não
condiz com o espírito, nos quais o autor estranhamente pensou contra sua
própria intenção. Mas o que significa admitir um pensamento que se descola
de sua própria intenção e que deixa traços deste descolamento nos textos que
produz? Podemos dizer que significa, principalmente, estar atento às regiões
textuais nas quais o projeto do sistema filosófico é traído pelo encadeamento
implacável do conceito que insiste em abrir novas direções. Ao menos neste
ponto, é difícil estar de acordo com Goldsmith, para quem : “as asserções de
um sistema não podem ter por causas, tanto próximas quanto imaginárias,
senão conhecidas do filósofo e alegadas por ele”9. A história da filosofia, ao
contrário, mostra que é sim possível pensar a partir daquilo que o autor produz
sem o saber, ou sem o reconhecer. Pensar deslocando conscientemente a
ordem das razões de um filósofo para que a radicalidade de certas conquistas
possa aparecer com mais força.
Mas um filósofo pode estar atento àquilo que outro filósofo produziu
sem o saber porque, para além do tempo lógico, ele admite uma espécie de
tempo transversal através do qual o presente pode colocar questões e rever as
respostas do passado. A transversalidade fundamental do tempo filosófico
indica que o presente pode, sem deixar de reconhecer a tensão inerente a tal
operação, aproximar os textos da tradição e procurar traços de construções
potenciais que foram deixadas pelo caminho. Ou seja, podemos ler um texto
da tradição filosófica tendo em vista seu destino. Encontraremos nele, em um
movimento retrospectivo, as marcas de debates posteriores. Mapearemos a
maneira com que o texto – em sua vida autônoma – foi inserindo-se em
debates que lhe pareceriam, a primeira vista, estranhos. Isto implica em
compreender como programas filosóficos que lhe sucederam foram
construídos através de um embate sobre o sentido da letra deste texto que
teima em não querer pertencer ao passado. Compreender que a história da
recepção de um texto filosófico não é externa à constituição do sentido deste
texto. Pois os textos filosóficos têm uma peculiaridade maior: seus processos
de negociação não se dão apenas com os atores que compõem a cena da sua
escrita; eles se dão também com atores que só se constituirão no futuro. Está
segunda orientação metodológica fornecerá as balizas para o nosso curso.

8
KANT, Crítica da razão pura, A 314
9
GOLDSMITH, Tempo lógico e tempo histórico na interpretação dos sistemas filosóficos, p. 141
Seguir tal orientação metodológica significa, na verdade, levar a sério a
afirmação de Adorno a respeito da arte de ler Hegel: “A arte de ler Hegel
deveria estar atenta ao momento no qual intervêm o novo, o substancial e
distingui-lo do momento no qual continua a funcionar uma máquina que não
se vê como uma e que não deveria continuar funcionando. É necessário a todo
momento tomar em consideração duas máximas aparentemente
incompatíveis : a imersão minuciosa e a distância livre” 10. Nada mais difícil
em filosofia do que compatibilizar o esforço minucioso e disciplinado de
leitura com a certeza daqueles que sabem que só se enxerga uma obra à
distância. Mas, como veremos neste curso, é assim, nesta coreografia fundada
em sequências de distância e proximidade, que os filósofos lêem os filósofos.
Por outro lado, esta perspectiva que pode impor tanto uma imersão
minuciosa capaz de seguir, se for o caso, o trajeto da escrita em todos os seus
meandros quanto uma distância livre que procura estabelecer, no texto, pontos
destacáveis nos quais se ancorar, perspectiva que escava, no interior do texto,
o novo e o separa do maquínico só pode vir de uma recusa da atemporalidade
da escrita filosófica pensada como sistema de proposições. Volto a insistir, o
tempo da filosofia é transversal e permite que o presente reordene as respostas
do passado. É só a partir desta transversalidade do tempo que é possível ao
leitor ocupar o papel de dois atores: aqueles que fazem parte da cena da escrita
e aqueles que se constituem apenas a posteriori.
No que diz respeito à leitura da Fenomenologia do Espírito, tal
abordagem metodológica implicará em análises que obedecerão a um
movimento duplo. Algumas figuras serão privilegiadas e, nestes pontos, o
comentário de texto será articulado horizontalmente e verticalmente.
Horizontalmente, no sentido de re-construir o campo de questões que Hegel
tinha em mente ao sintetizar tais figuras. Verticalmente, no sentido de
transcender o contexto local tendo em vista a reconstituição de alguns
momentos maiores na história da recepção de tais figuras e da constelação de
problemas que elas foam capazes de encarnar.
No entanto, este trabalho de dupla articulação dos dispositivos de leitura
exigirá,.por sua vez, que a costura que sustenta a Fenomenologia do Espírito
seja apreendida em movimentos amplos de identificação de eixos gerais.
Neste sentido, trata-se apenas de servir-se de um movimento de distensão e de
contração presente na economia interna da própria Fenomenologia. Economia
marcada pela sucessão entre distensões de figuras abordadas em riquezas de
detalhes e contrações que procuram dar conta da rememoração da trajetória da
consciência.

10
ADORNO, Drei studien über Hegel, p. 98
Estrutura do curso

A fim de levar a cabo tais objetivos, este curso será dividido em cinco
módulos. Cada módulo terá, em média, duração de 3 aulas expositivas. Este
curso não prevê a realização de seminários e o sistema de avaliação resume-se
à monografia de final de curso. Cada módulo foi organizado a partir de uma
questão central, uma ou mais figuras privilegiadas e um conjunto de textos de
introdução e de desdobramento dos debates propostos.
No primeiro módulo trabalharemos algumas questões apresentadas no
Prefácio e na Introdução relativas a auto-compreensão hegeliana da
peculiaridade de seu projeto filosófico. Levaremos a sério a afirmação de
Gerard Lebrun, para quem a filosofia hegeliana e seu método dialético
propunha, fundamentalmente, uma certa mudança de gramática filosófica
capaz de dissolver as dicotomias do entendimento e do pensar representativo:
“Tal é a única surpresa que a passagem ao especulativo reserva: esta lenta
alteração que parece metamorfosear as palavras que usávamos inicialmente,
sem que, no entanto, devamos renunciar a elas ou inventar outras” 11. Isto nos
levará a eleger como questão central deste módulo: “O que significa mudar de
gramática filosófica?”. Três textos servirão de apoio a nossa discussão, sendo
que eles estão dispostos em ordem de complexidade. São eles: “Notas a
respeito da língua e da terminologia hegeliana”, de Alexandre Koyrè;
“Skoteinos ou como ler”, de Adorno e “Hegel e seu conceito de experiência”,
de Heidegger.
No segundo módulo, trabalharemos a seção “Consciência”
privilegiando uma análise detalhada da figura da “consciência sensível”. Meu
objetivo é demonstrar que devemos levar em conta como o trajeto
fenomenológico da consciência em direção ao saber absoluto começa através
da experiência do descompasso irredutível entre designação e significação nos
atos de fala. Isto demonstra a centralidade do problema da linguagem no
interior da reflexão hegeliana. Está será nossa questão central. Veremos qual a
teoria da linguagem que sustenta a maneira como Hegel pensa a confrontação
cognitiva entre consciência e objeto para além de todo e qualquer
inferencialismo, assim como a importância de tal descompasso entre
designação e significação enquanto motor do processo dialético na
Fenomenologia. Novamente, teremos três textos de apoio: “Entre o nome e a
frase”, de Paulo Arantes; “Dialética, index, referência”, de Jean-François
Lyotard e “Holismo e idealismo na Fenomenologia de Hegel”, de Robert
Brandom..

11
LEBRUN, La patience du concept, p. 114
No terceiro módulo, trabalharemos a seção “Consciência-de-si”
privilegiando uma análise detalhada da figura da “Dialética do Senhor e do
Escravo”. Trata-se de um momento privilegiado da Fenomenologia por
tematizar o início da submissão da estrutura congnitivo-instrumental da
consciência a uma estrutura intersubjetiva de reconhecimento engendrada pelo
conflito. Conflito articulado a partir das categorias do trabalho e do desejo.
Nossa questão central irá girar em torno do problema de reconhecimento do
trabalho e do desejo na Fenomenologia. Veremos como a lógica do
reconhecimento do trabalho e do desejo obedece, por sua vez, a estrutura
lógica posta nas reflexões hegelianas sobre a linguagem. Novamente, teremos
três textos de apoio: “A guisa de introdução”, de Alexandre Kojève;
“Caminhos da destranscendentalização”, de Habermas e “Crítica da dialética e
da filosofia hegelianas em geral”, capítulo dos Manuscritos econômico-
filosóficos de Marx. Um texto que servirá como guia de leitura será Os
primeiros combates do reconhecimento, de Pierre-Jean Labarrière e
Gwendoline Jarczyk: texto que se propõe a fazer um comentário linha a linha
do trecho que estudaremos.
No quarto módulo trabalharemos a seção “Razão”. Se, na seção
“Consciência”, é questão da análise da relação cognitivo-instrumental da
consciência com o objeto, e, na seção “Consciência-de-si”, questão da relação
de reconhecimento entre consciências como condição prévia para o
conhecimento de objetos, a seção “Razão” pode ser compreendida como a
análise das operações da razão em seus processos de categorização. Neste
sentido, trata-se de um momento privilegiado do texto para analisarmos a
complexa relação crítica entre Kant e Hegel no que diz respeito à estrutura
categorial do entendimento enquanto base para o saber cognitivo-instrumental.
A questão central que nos norteará na análise da desta seção será as distinções
que Hegel opera entre o transcendental e o especulativo. Neste sentido,
analisaremos, enquanto figura privilegiada, o modus operandi da crítica
hegeliana a duas ciências bastante em voga em sua época: a frenologia e a
fisiognomia. Escolha que se justifica devido à maneira com que Hegel
transforma a crítica à linguagem representativa em elemento central de crítica
aos pressupostos de uma ciência empírica determinada. Teremos, como textos
de apoio, o capítulo dedicado a Kant nas Lições sobre a história da filosofia,
do próprio Hegel, “Crítica de Kant por Hegel”, capítulo de Conhecimento e
interesse, de Habermas
Por fim, o quinto módulo será dedicado à seção “Espírito”. Esta longa
seção na qual vemos o processo de rememoração histórica como fundamento
para a formação das estruturas de orientação do julgamento traz uma série de
questões articuladas de maneira cerrada. Aqui, vemos mais claramente “a
razão na história”, ou seja, “a meta-narrativa” hegeliana de formação agora a
partir do Espírito consciente-de-si que analisa suas figuras no tempo histórico.
Das várias questões que a peculiaridade da abordagem hegeliana suscita,
gostaria de me ater a uma em especial. Trata-se de mostrar como toda a seção
“Espírito” é estruturada a partir da exigência em pensar o sensível e a
contingência em sua irredutibilidade, e não, como se tende a ver, enquanto
uma tentativa de esgotar toda e qualquer dignidade ontológica do sensível e do
contingente em prol de um conceito totalizante de história racional. Para tanto,
deveremos centrar nossa leitura em duas figuras centrais da Fenomenologia
hegeliana que se encontram no início e no final da nossa seção: a ruptura da
eticidade da polis grega através de Antígona e a crítica ao formalismo da
moral kantiana através das considerações sobre a Gewissen. Como textos de
apoio, proponho, primeiramente, um exercício de leitura comparativa. Trata-se
de comparar a leitura hegeliana de Antígona a uma leitura contemporânea
proposta por Jacques Lacan e articulada como contraposição à leitura
hegeliana. Teremos como texto de apoio, pois, duas seções do seminário sobre
A ética da psicanálise, dedicados a Antígona. Teremos ainda alguns
parágrafos escolhidos de “Espírito do mundo e história da natureza: digressão
sobre Hegel”, capitulo da Dialética Negativa, de Adorno

A Fenomenologia do Espírito e seu estilo

Mas gostaria ainda de aproveitar esta primeira aula para explicar a razão
pela qual a introdução ao pensamento de Hegel deve ser feita
preferencialmente através da Fenomenologia do Espírito. Pois esta escolha
não é por si só evidente. Durante todo o século XIX, boa parte dos leitores de
Hegel portavam sua atenção principalmente aos textos de maturidade, como A
ciência da Lógica e a Enciclopédia. A Fenomenologia era vista como um
texto onde questões centrais da filosofia hegeliana, como o papel do Estado
enquanto realização do Espírito Objetivo, não eram suficientemente
abordadas. Escrito em 1806 em condições extremamente precárias, o texto não
fornecia de maneira clara o sistema holista da ciência em sua quietude
hierarquizada, como vemos, por exemplo, na Enciclopédia.
Por outro lado, o próprio plano da Fenomenologia será parcialmente
absorvido por obras posteriores de Hegel, em especial a última versão da
Enciclopédia. Lá, ela aparecerá claramente como uma parte do sistema, entre
a antropologia e a psicologia. Seu desenvolvimento será desmembrado. As
seções “Espírito”, “Religião” e “Saber absoluto” não serão mais tratadas como
momentos da fenomenologia que, por seu lado, será apenas um momento do
Espírito Subjetivo. A grande articulação histórica do processo de formação da
estrutura de orientação do julgamento (“Espírito”) dará lugar a uma descrição
sistêmica da estrutura do direito, das reivindicações morais da subjetividade e
do Estado. Religião e Saber Absoluto terão tratamento à parte enquanto
manifestações do Espírito Absoluto.
No entanto, a Fenomenologia deve ser vista como a melhor introdução
ao pensamento hegeliano não apenas porque ela foi realmente escrita como
uma introdução ao sistema que, aos poucos, foi ganhando autonomia.
Introdução que deveria descrever o trajeto de formação da consciência em
direção a um saber onde lógica e ontologia se encontram. A Fenomenologia é
a melhor introdução ao pensamento hegeliano porque, por um lado: “A
Fenomenologia era para Hegel consciente ou inconscientemente, o meio de
oferecer ao público; não um sistema já pronto, mas a história de seu próprio
desenvolvimento”12.
Mas por outro lado, e esta me parece a razão mais forte, a
Fenomenologia oferece um modo de pensar e articular problemas filosóficos
que será a marca da experiência intelectual hegeliana. Modo que pode ser
inicialmente abordado através de algumas considerações sobre o estilo da
escrita filosófica da Fenomenologia em particular e de Hegel em geral.
Na verdade, gostaria de terminar a aula de hoje com algumas
considerações a respeito do estilo de Hegel. Pois uma leitura filosófica deve
estar atenta não só a ordem das razões, mas também aos estilos da escrita. As
exigências do estilo não são considerações externas aos objetos com os quais
um pensamento se defronta. Isto talvez nos esclareça porque o estilo de Hegel
desconhece um certo regime de clareza na escrita conceitual.
Não se trata aqui de fazer uma apologia da obscuridade, mas valeria a
pena lembrar a relevância da questão a respeito da adequação entre clareza e
objeto. Todos os objetos da experiência podem ser expostos através de uma
linguagem de máxima visibilidade ? Eu lembraria que, em vários momentos, a
resposta da filosofia foi negativa. Por exemplo, nós conhecemos claramente a
recusa de Hegel em descrever os objetos da experiência através da clareza de
uma linguagem de inspiração matemática, geometria retórica fundamentada
através de analogias com os dispositivos da geometria euclidiana. A apreensão
conceitual dos objetos da experiência exige uma compreensão especulativa da
estrutura proposicional que nada tem a ver com exigências abstratas de
clareza. Ao contrário, a clareza de inspiração matemática que guia o uso
ordinário da linguagem do senso comum é mistificadora, pois clarifica o que
não é objetivamente claro, procura utilizar categorizações estanques para
apreender aquilo que só pode aparecer de maneira negativa ou através de

12
HYPPOLITE, Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito, p. 68
“significações fluidas”13. Assim, o estabelecimento de uma gramática
filosófica adequada acaba por se confundir com um movimento amplo de
crítica da linguagem ‘clara’ do entendimento. Daí porque: “não é difícil de
perceber que a maneira de expor um princípio, de defendê-lo com argumentos,
de refutar também com argumentos o princípio oposto, não é a forma na qual
a verdade pode se manifestar. A verdade é o movimento dela mesma nela
mesma, enquanto que este método é o conhecimento exterior à matéria. É por
isto que ele é particular à matemática e devemos deixá-lo à matemática” 14.
Neste sentido, podemos seguir Gerard Lebrun e dizer que o verdadeiro
objetivo da Fenomenologia é a refutação de toda uma gramática filosófica
através de um movimento de esgotamento interno.
Adorno foi talvez aquele que melhor compreendeu a necessidade da
articulação entre estilo e objeto do pensamento em Hegel. “Hegel é sem
dúvida o único dentre os grandes filósofos que, em alguns momentos, não
sabemos e não podemos decidir sobre o que ele fala exatamente, o único a
respeito de quem a própria possibilidade de tal decisão não é assegurada” 15.
Proposição aparentemente paradoxal por insistir na existência de uma
opacidade constitutiva do estilo hegeliano, existência de regiões de silêncio
legíveis da textura do texto. Para Adorno, estamos diante de uma opacidade
cuja estrutura deve ser deduzida do próprio conteúdo da filosofia hegeliana:
“Já que cada proposição singular da filosofia hegeliana reconhece sua própria
inadequação a esta unidade [da totalidade], a forma exprime esta inadequação
(Unangemessenheit) na medida em que ela não pode apreender nenhum
conteúdo de maneira adequada”16.
Mas este bloqueio na apreensão do conteúdo é um fato inscrito na
linguagem especulativa. A sensação de evanescimento da referência que todo
leitor de Hegel conhece bem, esta impressão de que o estilo da escrita parece
destruir a determinação dos objetos a respeito dos quais falávamos com
relativa segurança até há pouco, é, de uma certa forma, a experiência-motor da
dialética hegeliana. “A clareza e a distinção têm por modelo uma consciência
reificada (dinghaftes Bewutsein) do objeto”17, dirá Adorno a respeito de
Hegel. Como se houvesse certos objetos que só podem ser apreendidos através
de uma torção da língua, através de uma experiência de fracasso reiterado de
posição de determinações conceituais. Em Hegel, o conceito traz as cicatrizes
do fracasso reiterado em apreender aquilo que se dá como conteúdo da
experiência. E se as feridas do espírito se curam sem deixar cicatrizes é porque
13
Sobre este ponto, ver FAUSTO, Ruy, Marx : lógica e política – tomo III
14
HEGEL, Fenomenologia do espírito - prefácio
15
ADORNO, Drei Studien über Hegel, GS 5, p. 326
16
idem, p. 328
17
idem, p. 334
o conceito aprende que, em certos momentos, fracassar a apreensão do
conteúdo é a única maneira de manifestar aquilo que é da ordem da essência
dos objetos. Há um fracasso que é a única forma de termo uma experiência do
objeto. É isto o que leva Adorno a dizer: “Se um dia fosse possível definir a
filosofia, ela seria o esforço para dizer aquilo sobre o qual não se pode falar,
esforço para levar o não-idêntico à expressão, mesmo quando a expressão
procura identificá-lo. É isto o que Hegel tenta fazer”18. Alguns verão nesta
estratégia do conceito em integrar aquilo que o nega uma forma astuta de
totalização. Mas nós poderemos perguntar: se nossa época é profundamente
anti-hegeliana, não seria por temer identidades construídas com as marcas
deste “trabalho do negativo” que parece nunca ter fim e nos exilar de nossa
própria gramática?
Em um certo momento, Adorno compara o estilo de Hegel ao uso que
um imigrante faz de uma língua estrangeira. Por impaciência e necessidade,
ele lê deixando para trás palavras indeterminadas que só serão relativamente
compreendidas através da reconstituição lenta e demorada de contextos.
Muitas palavras ficarão para sempre opacas e apenas seu uso conjugado será
apreensível. Outras ganharão uma sobredeterminação que o falante nativo não
tinha mais a distância necessária para desvelar. Este estranhamento diante dos
objetos do pensamento que a posição hegeliana de imigrante na sua própria
língua pressupõe talvez nos diga muito a respeito das estratégias discursivas
que compõe a experiência intelectual de Hegel. Terminemos hoje com esta
famosa descrição fornecida por Hotho a respeito de seu professor, Hegel. Ela
talvez nos diga muito a respeito deste fazer filosófico que será nosso objeto de
estudos durante um semestre: “A cabeça abaixada como se estivesse dobrada
sobre si mesma, o ar cansado; ele estava lá de pé e, enquanto falava, procurava
continuamente nos seus grandes cadernos percorrendo-os sem parar em todos
os sentidos, uma tosse incessante interrompia o desenvolvimento do discurso;
a frase estava lá, isolada, ela vinha com dificuldade, como se fosse arrancada.
Cada palavra, cada sílaba só de soltava a contragolpes, pronunciada por uma
voz metálica, para em seguida receber no amplo dialético suábio uma
ressonância surpreendentemente presente, como se, a cada vez, o essencial
estivesse lá”. O primeiro passo para ler Hegel é compreender a necessidade
destas palavras que teimam em não se submeter à superfície.

18
idem, p. 337

Você também pode gostar