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Jonathan Alves Ferreira de Sousa .

Artigo

Do conhecimento de Deus para o Conhecimento do Mundo na Ética de Spinoza

Resumo: Este artigo examina a relação existente entre os atributos distintos divinos como base

para compreensão da unidade da substância. Como que a partir de atributos que são realmente

distintos, conforme a E1p10esc, pode existir uma única e simples substância? Partindo deste

problema, buscaremos demonstrar que através do conhecimento de Deus é que conseguiremos

conhecer ou entender o mundo.

1: Provas da existência de Deus

Uma das teorias spinozanas mais difíceis e questionadas ao longo dos tempos foi a da

coexistência de infinitos atributos realmente distintos em uma única substância1. A dificuldade

real não está em aceitar as provas expostas em si, mas sim em como compreender o que as

verdades estabelecidas a partir destas provas realmente nos dizem. A E1p5 deixa claro que “não

podem existir, na natureza das coisas, duas ou mais substâncias de mesma natureza ou de

mesmo atributo.” Ora, se somarmos a isso a definição de Deus2 e a definição de sua existência

necessária3, veremos que são teses simples e de pouca rejeição entre os filósofos do seu tempo.

Nestes simples exemplos, encontramos provas de verdades necessárias a partir de

premissas simples. Spinoza sempre pareceu desafiar o seu leitor ao elaborar teses e conceitos a

partir de premissas triviais. No entanto, uma vez estabelecidas essas verdades, percebemos a

profundidade e alcance daquilo que foi proposto como verdade fundamental. Se a substância é

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Apesar de a substância ter infinitos atributos, só podemos conhecer dois, Pensamento e Extensão. Os infinitos
atributos existentes não farão parte de nosso estudo.
2
E1def6: “Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos
atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.”
3
E1p7dem: “Uma substância não pode ser produzida por outra coisa. Ela será, portanto, causa de si mesma, isto
é, a sua essência necessariamente envolve a existência, ou seja, à sua natureza pertence o existir.”

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única, como que todos os demais entes existentes são modificações desta substância? Se Deus

é extenso4, como que Ele pode ser simples e expresso por dois atributos diferentes?

O caminho do conhecimento não pode ser norteado por aquelas coisas que percebemos

mais facilmente, mas, antes, pelas verdades acerca da essência divina e suas consequências, ou

seja, as essências de todas as demais coisas existentes. Não é conhecimento imaginativo, que

apenas confunde nossa percepção da realidade que nos fará entender a verdadeira essência da

coisas. Somente o intelecto puro, o raciocínio através da ordem das razões, que parte da causa

para o efeito5, de Deus para o mundo, da substância para os modos, pode nos levar as conclusões

spinozanas.

Spinoza nos adverte6, algumas vezes, sobre nossa tendência em confundir a imaginação

com o intelecto. Nossa imaginação não tem capacidade para alcançar a Deus e nem as essências

das coisas criadas. É ela que não consegue aceitar as verdades estabelecidas de que falamos.

Que não consegue entender ou aceitar a simplicidade divina, provada juntamente com a

multiplicidade do universo que deriva por sua vez da modalidade da substância, e que faz com

que o mundo seja formado por substância e modificações da mesma. É a imaginação que

enxerga a extensão como algo divisível, enquanto que o intelecto percebe a extensão simples e

indivisível7 . Pela razão entendemos de forma clara a verdade da coexistência dos atributos

Pensamento e Extensão em uma mesma e única substância. Somente pela razão, pela ordem

das razões, pelo conhecimento dos efeitos pelas causas, é que conseguiremos nos desvencilhar

das conclusões equivocadas impostas pela imaginação. Não é por imaginarmos mais facilmente

as coisas que elas devem ser tomadas como verdades ou verdadeiras.

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E2p2: “A extensão é um atributo de Deus, ou seja, Deus é uma coisa extensa.” A simplicidade dos argumentos
para suas teses é mais evidente nesta proposição, onde Spinoza há demonstra pela demonstração da proposição
anterior.”
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E1ax4: “O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o envolve.”
6
E2p49esc: “[…] Começo, assim, pelo primeiro ponto, advertindo os leitores para que distingam cuidadosamente
entre, por um lado, a ideia ou o conceito da mente e, por outro, as imagnes das coisas que imaginamos…”. É
evidente a preocupação de Spinoza acerca do uso da imaginação na formulação dos conceitos verdadeiros e falsos
acerca das coisas e de Deus. A esse respeito Cf. E2p47esc.
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E1p15esc.

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Spinoza define a substância na E1def3: “Por substância compreendo aquilo que existe

em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito

de outra coisa do qual deva ser formado.” A substância de Spinoza é diferente daquela

apresentada por Descartes. Para este, a substância é única no sentido de ser independente de

qualquer outra coisa, igual a Spinoza, mas que esta mesma substância possui um só atributo

que exprime sua essência. Em Spinoza os atributos são realmente distintos, como vemos, na

E1p10esc, mas no entanto, coexistem na substância única e simples, que é Deus, tendo assim

vários (infinitos) atributos que expressam sua essência.

Deus é um ser que existe necessariamente e por essa necessidade é que podemos falar

da coexistência dos atributos na substância. Em Spinoza, não existem várias substâncias, sua

existência se torna contraditória pela prova da unicidade necessária divina feita na E1p11. Esta

prova da existência necessária de Deus é suficiente para a possibilidade da existência de todos

os atributos em uma única substância. A partir da E1p11 veremos algumas provas da existência

de Deus e suas articulações que nos levam a crer que ter o conhecimento de Deus é premissa

fundamental para conhecermos o mundo.

Na E1def3, Spinoza, dá uma definição geral do que é a substância, definição esta, que

não exprime todas as suas propriedades. Já na E1def6, Spinoza, define de forma completa a

substância, Deus. Ao analisarmos a E1p11, vemos Spinoza afirmar a existência necessária da

definição de Deus apresentada anteriormente na E1def6. Conclui que Deus existe

necessariamente pelo absurdo de pensar Deus como inexistente, uma vez que, “à natureza da

substância pertence o existir”8, e que, se Deus é uma substância, e sua essência envolve sua

existência, pelo contrário de E1ax7, logo, Deus existe necessariamente. Para Spinoza, negar o

absurdo de sua inexistência é suficiente para afirmar sua existência necessária.

8
E1p7.

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Um segundo movimento Spinozano para provar a existência de Deus é o de mostrar que

tudo precisa de uma causa tanto para ser quanto para não-ser e que é impossível achar tanto

fora quanto dentro da natureza de Deus, razões para a sua não-existência, o que prova a

existência necessária do ser absolutamente infinito e perfeito. Vários são os momentos em que

Spinoza demonstra a coerência do conceito de substância. Desde a E1def3, passando por E1p7,

E1p8 e E1p9, para citar alguns exemplos.

A existência infinita da substância implica que existe um ser que tem mais realidade do

outros, ou seja, existe um ser que tem uma existência infinita que consequentemente tem mais

realidade do que o que tem existência finita. Ora, se somente a substância é infinita, logo, seu

grau de realidade é também infinito. E se pela E1p9, “quanto mais realidade o ser a coisa tem,

tanto mais atributos lhe competem”, logo, maior será o número de seus atributos. Esta premissa

faz com que seja possível que uma única substância, que é infinita, possua também infinitos

atributos, afinal, se todos os seres possuíssem o mesmo numero de atributos, todos teriam o

mesmo grau de realidade ou ser, o que é absurdo. Outrossim, o ser que possui infinitos atributos

chamamos de Deus.

Estabelecemos o paralelo necessário para entendermos que a existência de um ser ou

substância infinitamente infinito e perfeito, ao qual chamamos Deus, e que possui mais de um

atributo coexistindo em sua natureza, é real e o ponto de partida fundamental no conhecimento

de todas as outras coisas existentes. A partir de agora, é possível pensarmos sem dúvidas na

compatibilidade da multiplicidade dos atributos com a unicidade da substância.

Spinoza prova a partir de várias passagens da Ética, que mesmo se existisse outra

substância diferente de Deus, sua natureza seria distinta daquele e isso não interferiria em nada

na sua existência de forma alguma. Assim, o conceito de Deus como o ser de mais alto grau de

realidade e composto de infinitos atributos é possível e não contém contradição ou algo que

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impeça a sua existência. Por isso, e desta maneira, Spinoza conclui a existência necessária de

Deus.

2: Conhecendo o mundo através de Deus

Partindo do conceito da existência necessária de Deus e de sua multiplicidade de

atributos, podemos falar do mundo como aquilo que está contido nos atributos de Deus. Se tudo

o que existe de maneira singular é uma modificação dos atributos de Deus, logo, todas as coisas

estão contidas em Deus, portanto, para conhecer o mundo é necessário conhecer como as coisas

são primeiramente em Deus. Queremos destacar apenas algumas nuances de como esse tipo de

argumentação pode nos ajudar a conhecer o mundo a partir do conhecimento de Deus.

Deus possui em si objetivamente, ou seja, como uma ideia no pensamento, tudo o que

existe na realidade. Todas as ideias de todas as coisas encontram-se no intelecto divino

necessariamente e eternamente. Do ponto de vista do atributo, não há diferença entre o que está

no tempo e o que o está no intelecto divino, pois, não existe primeiro entre eternidade e duração,

uma vez, que o eterno não existe em relação ao tempo. O tempo é peculiar aos modos. É a

maneira pela qual causa e efeito se apresentam para o intelecto. O que vem antes ou depois é

apensa uma relação lógica e epistemológica de apresentar uma ordem que se segue do mais

potente para o menos potente, do atributo para o modo. Isto porque não é possível pensar as

coisas sem antes pensar em Deus. Não é possível pensar a duração sem pensar a eternidade. O

infinito é ao mesmo tempo condição de existência do finito e aquilo que possibilita sua

compreensão.

Por isso, diz-se que Deus é imanente e onipresente. Pois, a existência de Deus é pré-

condição para a existência de todas as coisas. Assim, Spinoza, vai afirmar na E1p15,

reformulando o que já havia dito na E1ax1: “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus,

nada pode existir nem ser concebido”. As coisas que existem enquanto particulares são os

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modos dos atributos. Aqui é a passagem de substância para modo, a transformação da unidade

em multiplicidade. E é aqui que conhecemos o mundo através de Deus.

Como tudo que existe exprime a natureza de Deus de maneira definida e determinada,

todas as coisas devem estar contidas em Deus. Esta é a relação que determina o conhecimento

do mundo através do conhecimento de Deus. É essa passagem do infinito para o finito. Por

estarem contidas em Deus antes de serem modificações que podemos dizer que Deus é que lhes

é causa. E é essa relação de substância-modo, que caracteriza a causalidade imanente de Deus,

pois, Deus enquanto atributo é algo que se transforma em modo e esses modos transformados

é que nos mostram a complexidade e alteridade do mundo.

4: Referências Bibliográficas

BARTUSCHAT, Wolfgang - Espinosa. Tradução de Beatriz Avila Vasconcelos. Porto Alegre:

Artmed, 2010.

BRUNSCHVICG, Léon - "Spinoza: filosofia e teologia". In: Estudos sobre Spinoza.

Organizado por Cézar Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

ESPINOSA, Baruch de - Ética demonstrada à maneira dos gêometras. Tradução de Joaquim

de Carvalho (Parte I), Joaquim Ferreira Gomes (Parte II e III) e Antônio Simões (Parte IV e V).

Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1973.

GLEIZER, Marcos André. “Considerações sobre o necessitarismo de Espinosa”. In: Revista

Analytica, Vol. 7, N. 2, 2003, pp.59-87.

RIZK, Hadi. Compreender Spinoza. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Editora Vozes,

2006.

WOLFSON, Harry Austryn. The philosophy of Spinoza. Harvard Univertity Press, 1934.

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