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Tradução e Prólogo de LUIS WASHINGTON

VITA
JOSÉ ORTEGA Y GASSET

M E D I TA Ç Ã O D A T É C N I C A
Vicissitudes das ciências Cacofonia na física

LIVRO IBERO-AMERICANO LIMITADA


Rio de Janeiro 1 9 6 3 Nas duas primeiras
edições figurou o ensaio Ensime&mamento e
alteração, que hoje integra o volume O
home\m e a gente (trad. bras. LIAL, 1960,
págs. 51-76).
Primeira edição em português, 1963
Primeira edição em espanhol, 1939
Quarta edição em espanhol, 1961

A edição original desta obra foi registrada


pela Revista de Occidente S. A.: Madrid, com
o título: Meditación de la técnica Direitos
reservados em língua portuguêsa Copyright
by Livro Ibero-Americano Ltda. Rua do
Rosário, 99, Rio de Janeiro, GB, Brasil.
Impresso e feito no Brasil Printed and made
m Brazil
ÍNDICE

PRÓLOGO (Luís Washington Vita):


1. O problema................................ IX
2. Conceito de técnica .................. XIII
3. Técnica e sociedade ................. XVI
4. Técnica e economia ................. XXVI
5. Antitécnica ...............................XXVIII
6. Técnica e natureza....................XXXIII
7. Técnica e filosofia ...................
XXXVI
8.. A solução .................................XXXIX
PREFÁCIO (José Ortega y Gasset) ................. 3
I — Primeira escaramuça com o tema 5
II — O estar e o bem-estar. — A "ne-
cessidade" da embriaguez. — O
supérfluo como necessário. — Re-
latividade da técnica ..............................
17
III — O esforço para poupar esforço é
esforço. — O problema do esforço
poupado. — A vida inventada ... 27
IV — Excursões ao subsolo da técnica ..
35 V — A vida como fabricação de si
mesma. — Técnica e desejos..................
43
VI — O destino extranatural do
homem. — Programas de ser
que dirigiram ao homem. —
A origem do Estado tibetano
...............................................
51
PRÓLOGO

VII — O tipo "gentleman". — Suas exigências


técnicas. — O "gentleman" e o "hidalgo"
59"VIII — As coisas e seu "ser". — A
pré- -coisa. — O homem, o animal e os
instrumentos. — A evolução da
técnica .......................................... 65
IX — Os estádios da técnica................... 73
X — A técnica como artesanato. — A
técnica do técnico ........................ 79
XI — Relação em que o homem e sua técnica se
encontram hoje. — O
técnico antigo ............................... 87
XII — O tecnicismo moderno. — Os relógios de
Carlos V. — Ciência e oficina. — O
prodígio do presente 93
APÊNDICES:
Vicissitudes nas ciências ........................... 101
Cacofonia na física: I — Uma polêmica na região mais
pacífica ........................................................ 109
II — Propaganda do bom-humor. — Física e
guarda-roupa. — Ou fisósofo ou
sonâmbulo ................... 116
III — Conversão da física em geometria.
— Observação ou invenção. — Grécia ou Egito
.......................................................... 122
— 129P R Ó L O G O
Luís Washington Vita
1. O PROBLEMA
V PRÓLOGO

Não obstante Ortega y Gasset ter afirmado que


os livros que lera sôbre a técnica — "todos indignos,
por certo, de seu enorme tema", admitindo apenas
uma exceção, o de Gotl-Li- lienfeld, "insuficiente
também no que se refere ao problema geral da
técnica", em verdade o enorme tema fora disputado
com alguma dignidade antes de 1933, quando o
criador da Escola de Madrid o meditara no seu curso
levado a efeito na Universidade de Verão de
Santander. No início da belle époque, 1877, quando
os feéricos proscênios dos álacres can-cans eram
iluminados com bico-de-gás e os atropelamentos das
ruas causados por sonolentos cocheiros de tílburis, E.
Kapp publicava sua Philosophie der Technik; e
precisamente no término da Idade Festiva, 1914,
Eberhard Zschimmer publicava outra Philosophie
der Technik. Em verdade, o problema é tão antigo
quanto a própria filosofia e se inexiste explicitamente
nos pré-socráticos, está flagrante em Aristóteles
quando afirmara que a técnica é alguma coisa
característica do homem, alguma coisa superior à
experiência, mas inferior ao raciocínio, ao saber, que
é justamente aquilo que a técnica faz possível ao
propiciar ao homem o atendimento de seus desejos
mais veementes. Daí afirmar Spengle — num livro
que é anterior à Meditação orteguiana, pois Der
Mensch und die Technik é de 1931 — que a técnica é
a tática da vida. Conseqüentemente, uma teoria da
técnica exige uma teoria da vida humana, sem a qual
o fato da técnica resulta incompreensível. Isto
porque, no fundo, a técnica é um recurso; portanto,
não somente o emprêgo dos meios que a vida
encontra diante de si sem nenhum esforço, como
também, e de modo todo especial, a direção destes
meios, a produção e administração dos artifícios que
possam conduzir a uma realização dos fins essenciais
de cada existência e da vida humana em geral. Na
vida do homem a técnica é uma presença ubíqua,
submergente, avassaladora, não se limitando apenas à
produção e emprêgo dos recursos para a subsistência
material da vida, mas atinge a cada uma das ações
humanas. Assim sendo, é preciso reconhecer que
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
VI

existe além de uma técnica da produção de benefícios


materiais, uma técnica da arte, uma técnica do saber,
uma técnica da salvação. Nessa linha de pensamento
se insere a Meditação da técnica de Ortega y Gasset
sendo então, o presente ensaio que estamos
prologando, alguma coisa muito mais do que exprime
seu título. Em resumidas palavras, é uma extensão de
seu pensamento filosófico sôbre o ser e a vida do
homem a propósito da técnica.
VII PRÓLOGO

Com efeito, parte Ortega da idéia corrente de


que o objeto da técnica é satisfazer as "necessidades
humanas", mas por intermédio de uma análise dêste
conceito chega à conclusão de que o homem é "o ser
para o qual o supérfluo é necessário", e a técnica, "a
criação de possibilidades sempre novas que não
existem na natureza do homem". O homem inventa
suas necessidades, seu programa vital, e daí a
diferença de programas vitais e de técnicas para
cumpri-los que ocorreram na história e que Ortega
descreve juntamente com os estádios da evolução da
técnica, até chegar à atual, a técnica da técnica, na
qual esta se fêz independente, convertendo-se na téc-
nica pura da invenção como tal. Consoante Ortega y
Gasset, é preciso distinguir na evolução histórica da
técnica três estádios bem diferenciados: a) a técnica
do acaso, própria do homem ágrafo, acessível a todos
os membros da comunidade e quase confundida com
o repertório dos atos naturais; b) a técnica do artesão,
própria da Antiguidade e da Idade Média, patrimônio
de certas comunidades como um modo de fazer di-
ferente dos demais; c) a técnica do técnico, tal como
se oferece em nossa época, com intervenção da
máquina e uma grande diferença não somente entre o
técnico e o não-técnico, mas entre o técnico, o
artesão e o operário. Neste último estádio priva a
própria técnica sôbre as técnicas especiais, a
invenção sôbre o conjunto de atos necessários para
realizar uma determinada finalidade. Na busca de
uma resposta à pergunta — que é a técnica? —
Ortega, quase à maneira de Platão nos diálogos
"socráticos", constrói sua escada cujos degraus ou
pisos são os conceitos. O primeiro dêíes é que os
atos técnicos são específicos do homem sendo seu
conjunto a técnica, definida como a reforma que o
homem impõe à natureza em vista da satisfação de
suas necessidades, que por sua vez são impostas pela
natureza ao homem e êste responde impondo-lhe
uma mudança. A técnica, porém, não é o que o
homem faz para satisfazer suas necessidades, é a
reforma da natureza feita através dos atos técnicos
que não são aquêles em que fazemos esforços para
I
VIII —-....................-
PRÓLOGO

satisfazer diretamente nossas necessidades, mas


aquêles em que dedicamos o esforço, primeiro, para
inventar e, depois, para executar um plano de
atividades que nos permita: a) assegurar a satisfação
das necessidades, inclusive elementares; b) obter
essa satisfação com o mínimo esforço; c) criar-nos
possibilidades completamente novas produzindo
objetos que não existem na natureza do homem
(navegar, voar, falar com o antípoda mediante o
telégrafo ou a radiocomunicação, etc.). Portanto, a
reforma da natureza ou técnica, como tôda mudança
ou mutação, é um movimento com seus dois têrmos,
a quo ead quem. O têrmo a quo é a natureza
conforme está aí; para modificá-la é preciso fixar o
outro têrmo, para o qual confor- mar-se-á. Êste têrmo
ad quem é o programa vital do homem. Contudo, a
tendência que afirma existir apenas uma técnica — a
atual euroamerica- na — é por demais pretenciosa, já
que essa técnica é mais uma entre outras do
panorama vastíssimo e multiforme das humanas
técnicas e já que a cada projeto e módulo de
humanidade corresponde a sua técnica. Daí poder-se
periodizar a evolução da técnica tendo em vista sua
relação com o homem, ou seja, considerando a idéia
que o homem foi tendo de sua técnica, não desta ou
de outra determinada, mas da função técnica em
geral. Partindo dêste princípio são distinguidos os
três enormes estádios na sua evolução: a) técnica do
acaso; b) técnica do artesão; e c) técnica do técnico, a
primeira ocorrendo no homem ainda como natureza,
a segunda em conseqüência do reconhecimento de
que existem homens que possuem um repertório
peculiar de atividades que não são, sem mais nem
menos, as gerais e naturais em todo homem; são os
artesãos, e a terceira é o momento em que o homem
adquire a consciência suficientemente clara de que
possui uma certa capacidade por completo distinta
das rígidas, imutáveis, que integram sua porção
natural ou animal e vê que a técnica não é um acaso,
como no estádio primitivo, nem um certo tipo dado e
limitado de homem — o artesão; que a técnica não é
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
IX

esta técnica nem aquela determinada e, portanto, fi-


xas, mas precisamente um manancial de atividades
humanas, em princípio ilimitadas. Não há dúvida
quanto à quase ilimitação de possibilidades na
técnica material contemporânea. Mas a vida humana
não é somente luta com a matéria, é também luta do
homem com sua alma. Será possível vislumbrar no
mundo ocidental um claro repertório de técnicas da
alma? Com essa pergunta encerra Ortega sua
meditação.

2. CONCEITO DE TÉCNICA
A conclusão orteguiana é problemática e sua
meditação, preliminar. Nem poderia ser diferente, se
o pensador madrilenho quisesse permanecer, como
egrègiamente permanece, numa atmosfera filosófica,
problematicística, pois a missão principal da
filosofia, para não dizer a única, é a problematização
de tudo o que se lhe apresenta, seja da realidade, seja
das proposições sobre ela, isto é, a única coisa que
pode fazer a filosofia é ver os problemas como
problemas, ou seja, examinar a significação de todos
os problemas e de todo o problemático. E não há
nada mais problemático do que qualquer das
dimensões do humano, uma das quais é a técnica,
cujo sentido, vantagens, danos e limites foram o
tema de Ortega em suas preleções de 1933, antes da
utilização da energia nuclear, da astronáutica, da
automação, da psicologia experimental . Claro está
que problema não é apenas uma incógnita a
determinar, mas a necessidade na qual encontra o
nosso pensamento explicação de um objeto qualquer
(real, ideal, axiológico, metafísico) . E o primeiro
problema filosófico da técnica está na idéia de
"criação" ensejada pelo aparecimento de novas
matérias (petroquímica, fibras sintéticas), alterando a
própria vivência imediata que o homem tem do que é
substância ou coisa. E isto de modo especial quando
nos ocorre que esta noção de substância surgiu na
Grécia, há mais de vinte séculos, nos exorcismos das
primeiras "técnicas" significativas dos helenos . Com
I
X —-....................-
PRÓLOGO

efeito, a pedra ou a madeira aparecem como alguma


coisa dotada de propriedades determinadas, de um
ser fixo e constante — de uma consistência
invariável e peculiar — que por isso pode servir para
certos fins: construir uma casa, cruzar o mar
flutuando, aquecer mediante combustão; a isto é que
os gregos chamaram substância. Ora, as
"substâncias" produzidas pela técnica atual são
exatamente o inverso: longe de ter propriedades
fixas e inerentes, que permitem certa aplicação, se
"inventam" para satisfazer determinadas
necessidades que o homem sente, e logo aparecem
relativizadas, referidas a uma função humana, que é
o que lhes confere sua substantividade. Por isso, na
designação dêstes produtos, costuma intervir um
"para", que revela sua índole funcional.
Reconhecida a problematicidade filosófica de
nosso tema, vejamos o que se deve entender por
técnica. O têrmo grego, oriundo da raiz sâns-
crita Tvaksh (fazer, aparelhar), designava para os
helenos tôda atividade forjadora, como habilidade
de manipulação e produção de objetos materiais,
habilidade de factura, implicando capacidade
específica de execução, industriosidade, antes que
verdadeira e lídima atividade criadora. Dêste
modo, "técnica" significa originariamente "arte",
isto é, arte ou maneira de fazer uma coisa;
procedimento. Contudo, a técnica se distingue
tanto da arte, no sentido genuíno da palavra,
como do método, com o qual é freqüentemente
confundida, já que a técnica de uma ciência é a
arte de executar as operações manuais que seus
métodos exigem; e o método, ao contrário, é um
conjunto de operações lógicas. Evidentemente,
técnica não é apenas o conhecimento enquanto
serve de base à ação prática, ou seja, o conhe-
cimento aplicado (e, neste caso, seria uma espécie
de praxiologia), mas é, em sentido geral, a própria
ação ou atividade prática, enquanto aplicação de
um conhecimento; e, em sentido específico, é a
atividade prática enquanto utiliza umaXVI
PRÓLOGO
r • •
f.
ou mais leis naturais, de modo que a verificação
destas valha como resultado da própria atividade.
Portanto, a técnica é o conjunto das habilidades cujo
auxílio permite aos homens o aproveitamento da
natureza para fins humanos; como tal, é uma
autêntica característica do homem e só do homem,
nascendo com êle graças ao seu espírito inventivo.
Por isso a técnica progride e tem uma história, o que
não ocorre com os animais "construtores", que não
inventam e não progridem, e sua "técnica" não é
inventiva nem suscetível de desenvolvimento.
Consoante Spen- gler, "o tipo abelha desde que
existe tem construído seus favos como o faz agora, e
há-de continuar a construí-los assim até a sua
extinção. Os favos pertencem à abelha como a forma
de suas asas e a côr de seu corpo" 1. É com o homem
que as técnicas se desenvolvem completamente, pois
o homem, pela forma de seu corpo e pela aptidão de
seu cérebro, não é um simples repetidor de processos
industriais da vida, mas um inovador, um prodigioso
inventor de mecanismos novos, diferentes daqueles
que a natureza, por instinto, associou à própria
forma do corpo do animal e ao seu ritmo 2.

1 OSWALD SPENCLER, O homem e a técnica, trad. bras., Porto Alegre, 1941,


pág. 51.
2 P. DUCASSÉ, Histoire des techniqces, Paris, 1948, pág. 6.
XII PRÓLOGO

i
3. TÉCNICA E SOCIEDADE
Entendida a técnica, em sentido largo, como o
emprêgo de instrumentos e de procedimentos
específicos para a melhor e mais eficiente execução
de uma obra ou tarefa humana, é evidente que ela
nasce com a própria história do homem a partir do
momento em que êle consegue obter da natureza
aquilo que deseja, fabricando os primeiros
instrumentos. Mas, qual teria sido o instrumento
matriz, origem dos restantes, cujo ponto culminante
viriam a ser as chamadas máqui- nas-ferramentas, as
máquinas que fabricam máquinas? A resposta só
pode ser uma: a mão humana. Com efeito, a
máquina nada mais é que o prolongamento do
utensílio que, por sua vez, prolonga a mão do
homem. Assim, a técnica não nasceu na Idade
Moderna, com a aplicação das máquinas na
produção industrial, pois essa produção tecnológica
é a culminância de um processo cujas raízes partem
do mais recôndito da história do homem. Êste
processo começou quando o homem, pela primeira,
utilizou-se de uma pedra como arma de defesa e
ataque, ou como instrumento. Entre aquela pedra e a
máquina mais complexa da indústria moderna há
uma diferença de grau, não de qualidade.
Com efeito, a atitude erecta libertou as mãos do
homem primevo e as primeiras ferramentas foram
apenas o prolongamento destas mãos. O
desenvolvimento cerebral dispensou o homem da
especialização morfológica, e a sua mão,
"exteriorização ativa" dêste cérebro, serviu para a
defesa, para o ataque e para tôdas as necessidades
práticas ditadas pelo interêsse vital. Desta
interpretação resultaria uma confirmação da teoria da
projeção espontânea de L. Weber, consoante a qual o
instrumento primitivo foi apenas o prolongamento, a
imitação do órgão. Por isso a máquina é uma
projeção, não mais das partes terminais dos
membros, mas da própria articulação que une êstes
membros entre si e o tronco, permitindo-lhes
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XIII

executar, em conexão uns com os outros,


movimentos determinados, com exclusão dos outros.
É precisamente aí que parece revelar-se a intenção do
agente. Portanto, há uma mecânica e uma física
nestas energias musculares e suas extensões: é a
técnica. O homo íaber se antecede ao homo sapiens,
existindo assim uma evolução que vai das proprieda-
des superficiais às propriedades profundas das
coisas, e onde, pouco a pouco, a "arte" e a "ciência"
se destacam da técnica. Delgado de Carvalho resume
a gênese da técnica nestes têrmos: na primeira fase
de seu desenvolvimento, as invenções aumentam o
poder das mãos; é criada a "ferramenta", simples
projeção do órgão; na segunda fase, é visado um
efeito defensivo sob o impulso da fôrça humana, é
aumentado o poder de nossos sentidos: é criado o
"instrumento"; na terceira fase, há uma combinação
do engenho humano, é facilitado o deslocamento no
espaço, o efeito é mecânico: é criada a "máquina".
Nesta fase é que mais se desenvolve a utilização das
forças naturais 3.
Todavia o homo faber, apenas e só, seria um
absurdo sem sua outra dimensão: o homo loquens. O
ato da mão só adquire sentido com a linguagem. O
homem só veio a ser homem com a gênese da mão,
essa arma ímpar no mundo da vida móvel, surgindo
com ela a marcha, a postura erecta — e o
instrumento, pois a mão inerme, por si só, não tem
utilidade. Exige uma arma para se transformar, ela
mesma, em arma. Assim como os instrumentos
foram modelados de acordo com a forma da mão, a
mão tomou também a configuração do instrumento.
Mas, tendo em vista a divisão da história numa série
de "atos" separados e bem ordenados e de "enredos"
que se desenvolvem paralelamente uns aos outros,
Spen. gler é de opinião que para êsse processo
coletivo a condição prévia indispensável era um
meio — a linguagem 4. Deste modo, o homem, como
íaber, apropria-se das coisas exteriores para delas se

3 Cf-. DELGADO DE CARVALHO, Sociologia, Rio de Janeiro, 1931, pág. 237.


4 O. SPENGLER, . ., pág. 60 e pág. 78.
O C
XIV PRÓLOGO

servir e manifesta a sua iniciativa modelando a


natureza, para seu próprio uso; como loquens,
compreende e transmite os símbolos da linguagem
articulada, já que, mediante a linguagem, o homem
pode ligar o passado ao presente. A mão e a
linguagem, eis a humanidade, porquanto o que marca
o fim da história zoológica e o princípio da história
humana é, por assim dizer, a invenção da mão e da
linguagem. A longa incerteza, porém, e a
descontinuidade do progresso humano testemunham,
como já foi observado, os esforços que foram
necessários ao homem para reconhecer o
demonstrável e o verificável, isto é, para conquistar a
objetividade. É que, reduzido somente à sua destreza,
o homo faher, sem meios de comunicar, justificar e
perpetuar seguramente suas iniciativas, não teria
conhecido senão sucessos sem continuidade e teria
visto abortar o seu esforço numa cega rotina. O
homo loquens, por sua vez, confinado no seu gênio
lingüístico, ter-se-ia construído um mundo todo
verbal, onde, libertado da pressão do real, senão da
autoridade das representações coletivas, sua
imaginação teria divagado a seu capricho. As
palavras não têm somente o privilégio de significar o
seu objeto, mas também de criá-lo, quando acontece
não existir. Assim, as palavras, os sentidos que o
homem lhes forjou, as compatibilidades e as
incompatibilidades imaginadas entre os sêres, as
coisas e as propriedades, de que passam por sím-
bolos, enquadram muitos pseudo-problemas, dos
quais alguns sobrecarregam ainda, com seu pêso
inútil, não somente a filosofia, mas também a
ciência. Isolados, abandonados a si mesmos e a seus
próprios recursos, nem o homo iaber, nem o homo
loquensr teriam podido atingir o conhecimento . Para
dar o homo sapiens, foi necessária a sua íntima e
estreita colaboração, que não se estabeleceu senão
muito lentamente e através de muitos obstáculos e
compromissos. Só a palavra permitia à atividade
técnica transmitir e assegurar o seu progresso; só o
progresso das técnicas constrangem a palavra a
abandonar as suas ilusões e a limitar o mundo verbal
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XV

a êste papel de substituto, de equivalente manejável


do mundo real, no qual é indispensável ao livre e
pleno exercício do pensamento 5. Resumidamente,
temos: se o homem, na luta contra as forças de
destruição, ultrapassou os animais mais próximos na
escala zoológica, é que: a) é capaz de não sò- mente
se adaptar às coisas, mas de adaptar as coisas a êle,
transformando-as; h) consegue pela linguagem,
nascida da vida social, transmitir a sua experiência à
geração seguinte, acumulando, assim, meios não só
de sobrevivência mas de sobrevivência em maior
conforto. Ou, nas palavras de Ciro Tassara de Pádua,
"para o homem a técnica é um veículo que lhe
facilita viver melhor" 6.
Caracterizando-se a técnica como autêntico
processo civilizatório, confere ela ao homem um
crescente domínio sôbre a natureza ao organizar o
saber técnico. Daí dizer Ayala: "O que caracteriza
êste tipo de saber situado na base do processo
civilizatório é sua índole instrumental, em virtude da
qual as aquisições a que dá lugar são puramente
objetivas, no sentido de impessoais e, portanto,
neutras e essencialmente transmissíveis. A êste seu
fundamental caráter se deve, exatamente, a unidade
do processo integrado sôbre tais aquisições que, em
verdade, surgiram no seio de complexos culturais
alheios entre si. Enlaçam-se, não obstante, por sua
instrumentabili- dade; unificam-se em sua condição
de meios para fins, e em tal condição reside seu
universalismo. Se reconhecemos como um elemento
do processo civilizatório a acha de sílex encontrada
nas escavações arqueológicas, é porque podemos
perceber nela, de modo direto e imediato, seu caráter
de utensílio: revela-se-nos como um instrumento,
produzido dentro da racionalidade que une meios e
fins. É possível, e até parece certo, que à forma dêsse
utensílio vinculara o homem primitivo que o
elaborou determinadas propriedades mágicas, que a
nós nos fogem, às quais, talvez, poderemos chegar

5 FERNANDO DE AZEVEDO, Princípios de sociologia, São Paulo, 1935.


6 CIRO TASSARA DE PÁDUA, O homem e a técnica, Curitiba, 1942, pág. 9.
XVI PRÓLOGO

pelo caminho de inferências intelectuais desviadas;


mas seu caráter de instrumento se nos apresenta de
modo imediato, declarando nossa fundamental
identidade com o remoto ser humano que, mediante
essa acha, nos revela a presença da inteligência do
fundo dos milênios. Estamos unidos a ela pela cadeia
do progresso técnico, da qual êsse tosco instrumento
constitui um importante elo. No outro extremo, o
automóvel ou o fusil automático, construídos pelo
homem da civilização ocidental, é utilizado sem
nenhuma inibição pelo homem primitivo
'colonizado', sem necessidade de fazer prévio
abandono de sua própria atitude cultural; e, em
têrmos gerais, a experiência mostrou com quanta
agilidade podem os membros de uma cultura adquirir
as técnicas desenvolvidas noutras e sobre
pressupostos espirituais diversos. Por complicado
que seja um artefato, a racionalidade instrumental a
que corresponde o faz acessível a qualquer
compreensão humana, em raro contraste com as
próprias atitudes culturais que, não obstante os
empenhados esforços, não são jamais compreendidas
integralmente de fora" 7. Esta essencial
transmissibilidade do saber técnico é, ao mesmo
tempo, a condição que lhe permite organizar-se num
processo único, dando-lhe o reconhecido caráter
acumulativo que dêle se costuma apregoar. A
objetividade do rendimento pleno, que está à
disposição de toda gente e que repousa na
racionalidade funcional, permite que, sôbre os elos
dos já adquiridos e incorporados, se possa
prosseguir, adquirindo e incorporando
indefinidamente, numa colaboração de tôda a espécie
humana ao longo do tempo. Por isso, quando Ogburn
formula a questão acêrca das causas que determinam
um nôvo invento, afirma com razão que não basta,
para explicá-lo, a necessidade social do mesmo, nem
que, em todo caso, seria suficiente se faltassem os
elos técnicos imediatamente anteriores, que o fazem
possível. Porque a invenção técnica — diz Ducassé

7 F. AYALA, Traído de sociologia, vol. II, Buenos Aires, 1949, págs. 200-1.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XVII

— "como a invenção artística, supõe sempre um ato


de audácia e de liberdade, uma ruptura, pelo menos
relativa, no curso de uma tradição" 8.
Contudo, se a necessidade social não é su-
ficiente para explicar um nôvo invento, em última
instância ela dá utilidade à coisa feita num primeiro
momento desinteressadamente. O exemplo da bomba
atômica é o mais frisante e, ao mesmo tempo, o mais
dramático. Nascida em laboratórios e gabinetes de
pesquisas puras, sua utilização foi forçada pelas
circunstâncias da guerra. O invento pode ser
gratuito, pode ser mesmo lúdico, como o caso do
éter, mas sua utilização efetiva é sempre ensejada
por uma necessidade social . Como se vê, a questão é
muito controvertida. Para Malinowski a técnica
moderna surgiu como um imperativo das
necessidades, das quais o homem não podia fugir. A
isto, acrescenta Tassara de Pádua: "A técnica é uma
criação provocada pelas necessidades humanas;
logo, só podemos estudá-la se a entrosarmos dentro
da vida social, com o conseqüente estudo da
interação social e dos efeitos de uma sôbre a outra" 9.
Colocada a técnica nestes têrmos é óbvio que ela
exige uma distinção de suas duas conhecidas etapas
ou momentos: invento e aplicação. A primeira
corresponde à idéia tecnológica, ao invento nôvo, ao
descobrimento, ao aperfeiçoamento. A segunda
corresponde à sua aplicação na indústria. Entre
ambas há um longo caminho a percorrer. Por vêzes o
caminho é tão grande que o invento permanece no
reino das idéias, por sua prematuridade, como no
exemplo famoso de Denis Papin que descobriu o
vapor no século XVII, o qual, entretanto, só no
século XIX foi pela primeira vez aplicado pelo
engenheiro Fulton. Isto porque, em última instância,
a esfera do invento não está determinada pelo
pensamento científico abstrato, mas pelas
necessidades da vida. De resto, a história revela que
há períodos mais favoráveis aos inventos do que

8 P. DUCASSÉ, ç. c., páf. 8.


9 Ç, T. de PÁ9VA, . ., pág. 13.
OC
XVIII PRÓLOGO

outros, o que confirmaria a teoria de L. Weber sôbre


as alternativas dos períodos de progresso técnico.
Ensejado pela necessidade, o progresso técnico, por
sua vez, cria novas necessidades, imprimin- do-se
assim uma aceleração constante. Aliás, essa
acerelação constante do processo técnico é
perfeitamente visível no seu aspecto de técnica
material. Neste terreno, a mudança se inicia na pré-
história com passos muito distanciados entre si,
como o demonstra a permanência dos mesmos
implementos de pedra com suas formas inalteráveis
durante lapsos não menores a 30 000 anos. Destes
lapsos não se pode falar ainda como de vida
histórica, e só em medida muito escassa de
verdadeira humanidade. Daí reconhecer Franz Boas
que a repetição do mesmo ato sem mudança, geração
após geração, deixa a impressão de um instinto
biologicamente determinado, impressão essa
corrigida pelo próprio antropólogo alemão ao
observar que tais atos são transmitidos por
aprendizado, "de maneira análoga ao que praticam
também os animais mediante o exemplo e a
imitação". De então para cá a técnica introduziu seus
progressos com aceleração constante e crescente, por
efeito da acumulação e, com ela, do estímulo cada
vez maior oferecido pela situação técnica a novos
descobrimentos, até entrar na fase vertiginosa que se
inicia na primeira metade do século XIX, que não
deixou de aumentar sua velocidade até aos nossos
dias. O mecanismo aqui é análogo ao da lei dos juros
compostos, comportando-se a invenção como
processo acumulativo: um passou depois do outro. O
progresso técnico, portanto, se apresenta como
acumulação de aquisições materiais e conhecimentos
objetivos no quadro de uma cultura. Essa
acumulação tem um caráter lógico e irreversível.
Cada fase se baseia nas experiências anteriores. As
invenções de alimentos, vestimentas, ferramentas e
instrumentos, habitações, armas, práticas mágicas,
ídolos, instrumentos de música e jogos, formam
correntes cujos elos constituem fases na evolução de
cada objeto. Essas fases são irreversíveis: o arado
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XIX

supõe a invenção da estaca de cavar; o uso de


animais de tração repousa sobre as experiências
combinadas de ca- cadores e agricultores. Por isso
pôde concluir Thurnwald: "O processo social
corresponde ao progresso material, onde estruturas
sociais se ligam, funcionalmente, ao progresso
técnico" 10. Participando da controvérsia e, ao que
parece, superando-a, escreve Max Scheler: "A
técnica é antes a que tira ativamente de si, desperta e
provoca as necessidades industriais de novos meios
de produção, como claramente prova, por exemplo, o
processo inteiro da moderna indústria elétrica. Sob
hipótese alguma a especial técnica científica do
experimento e da medida caiu do céu para produzir a
ciência, como parece opinar Labriola. Êstes
instrumentos são apenas teoria transposta na
matéria, teoria corporalizada, por assim dizer" (n).

4. TÉCNICA E ECONOMIA
Consoante Werner Sombart, o conceito de
economia abrange três aspectos: a) a mentalidade
econômica; b) a ordem econômica; c) a técnica. Ou
seja, um sistema econômico é um modo de exercer
atividades econômicas, determinado por uma
mentalidade específica, uma ordem ou uma
organização e uma técnica (23), interdependentes. É
óbvio que mentalidade, ordem ou organização e
técnica correspondem a determinadas estruturas
sociais, porquanto é difícil imaginar-se a
mentalidade do lucro numa sociedade comunitária.
Por outro lado, a técnica será revolucionária em
sociedades classistas, mas no regime de castas
sujeito ao princípio do dharma, os métodos
aplicados no processo de produção serão,
provàvelmente, estacionários. Assim, enquanto a
emprêsa medieval visava apenas o sustento dos que
nela trabalhavam — tendo sua extensão reduzida
devido à ordem econômica normativa — e a divisão
técnica do trabalho permanecia rudimentar, já a
10do ) R. THURNWALD, Die menschliche Gesellschaf, in ihre etho-soziologischen
Grundlagen, vol. IV, Berlin, 1931-35, pág. 268.
XX PRÓLOGO

fábrica moderna, que visa o lucro, é expansionista,


racional, individualista quanto à mentalidade, livre e
diferenciada quanto à organização, e científica e
revolucionária quanto à técnica. Precisamente a
organização racional do trabalho foi o impulso que
deslocou a técnica do artesão para a técnica do
técnico, consoante a terminologia orteguiana, e essa
deslocação foi possível graças à "racionalização" que
tornou mais produtivo o próprio trabalho, reduzindo
êste a um mínimo em sua contribuição específica na
produção de utilidades. Os exemplos e cifras trazidos
por Ortega y Gas- set em sua Meditação são
suficientes para comprovar a assertiva. Contudo,
contra essa racionalização voltam-se alguns
espíritos, como Ber- diaev, por exemplo, quando
escreve: "A técnica representa enorme papel na
racionalização. É a técnica que empresta a força que
racionaliza a vida da sociedade. Ora, a técnica é, ela
também, uma fôrça irracional; ela é desprovida de
alma e indiferente ao homem. Por exemplo, a
tecniciza- ção e racionalização da indústria criam um
fenômeno inumano e irracional: o desemprêgo. A
racionalização pode prejudicar o homem e se tornar
irracional. Esta contradição é uma conseqüência da
perda do centro espiritual da vida" 11. É, esta posição,
ilustrativa da luta anti- técnica dos espíritos
nostálgicos de uma Idade de Ouro
irremediàvelmente perdi da. . .

5. ANTITÉCNICA
A romântica e lírica luta antitécnica se apre-
senta sob três aspectos distintos, consubstanciando a
mesma delação. A técnica é acusada: a) como anti-
social; b) como antiespiritual; c) como antinatural. É
lesiva ao homem e à sociedade, ao espírito e à
natureza. Com efeito, o contraste entre o homem e a
técnica é o tema preferido do utopismo e
messianismo hodiernos. Os autores das mais

11 N. BERDIAEV, Uhomme dans la civilization techmque, in "Progrès technique et


prcgrès moral", Neuchâtel, 1948, págs. 88-9.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XXI

célebres diagnoses e prognoses sôbre a "crise"


contemporânea, os profetas da decadência e da morte
da civilização mecânica do Ocidente, os defensores
da espiritualidade pura, estão todos de acordo no
definirem a máquina como o pior inimigo do homem
e no apontá-la como a causa direta ou indireta da sua
decadência espiritual. O mundo no qual domina a
máquina é um mundo sem alma, nivelador,
mortificador; é um mundo no qual a quantidade
tomou o lugar da qualidade definitivamente e no
qual o culto dos valores do espírito foi substituído
pelo culto dos valores instrumentais e utilitários .
Essa luta antitécnica começou primeiro entre os
porta-vozes dos socialistas utópicos do século XIX,
com êles cerrando fileiras os marxistas que viam nas
máquinas as grandes "furadoras" de greves. Fourier,
por sua vez, critica com violência os excessos do
industrialismo. Finalmente, Proudhon, ao estudar a
divisão do trabalho, notara que "mais se divide a
mão-de-obra, mas aumenta o poder do trabalho,
porém, ao mesmo tempo, mais o trabalho se reduz
progressivamente a um mecanismo embrutecedor da
inteligência" 12, pois a seu ver "as máquinas nos
prometiam um aumento de riqueza; e o que re-
cebemos foi um aumento de miséria. Elas nos
prometiam a liberdade; eu irei provar que elas nos
trouxeram a escravidão" 13. Nos nossos dias outros
economistas e sociólogos insistem na mesma tecla.
Para F. Zweig "o progresso tecnológico não conduz
necessariamente a uma distribuição mais equitativa
das rendas; ou, em outras palavras, o progresso
social não avança a par do progresso tecnológico" 14.
Onde, porém, a delação contra a máquina atinge seu
climax é com Lewis Munford, que afirma que "a
máquina apareceu em nos-sa civilização não para
salvar ao homem da servidão ou de formas ignóbeis
de trabalho, mas para adaptar, no possível, a servidão

12 J. P. PROUDHON, Systhème des contradictions économiques ou Philosophie


de la misère, Paris, 1923, pâg. 140.
13 J. P. PROUDHON, O. ., pâgs. 188-9.
C

14 F. ZWEIG, Economia y tecnologia, trad, esp., México, 1944, pág. 32.


XXII PRÓLOGO

a "standards" ignóbeis de consumo, formados entre


as aristocracias militares". A vitória do indus-
trialismo é a mais profunda ruptura com o passado,
autêntica "nova barbárie", onde o interêsse dos
homens se transladou dos valores da vida para os
valores pecuniários. Era do carvão e dos produtos
têxteis: por isso mesmo quem mais sofre é o mineiro
e o tecelão: "Viviam e morriam à vista do poço de
carvão ou da tecelagem de algodão, nos quais
passavam de 14 a 16 horas por dia; viviam e
morriam sem memória nem esperança, contentando-
se com as migalhas que os mantinham vivos ou com
o breve consolo de poder sonhar quando caíam de
sono" 15.
No plano espiritual a crítica é ainda mais
dramática contra a técnica. Quem inaugura essa
cruzada e a alimenta até ao fim de seus dias é
Berdiaev. Para êle, a tecnização destrói a beleza da
antiga cultura, a individualização, a origi- nalidde;
tudo se torna uniformemente coletivo, todas as coisas
são fabricadas sob um mesmo estilo, perdendo assim
a marca da personalidade. A civilização mecano-
técnica é fatal à alma: "O coração suporta mal o
contato gelado do metal" 16. "O mundo se
desumaniza, e a máquina não é senão uma projeção
dêsse processo" 17. "A técnica substitui o elemento
orgânico irracional pelo elemento racional
organizado. Mas disto resultam novos fenômenos
irracionais na vida social. É por isso que a
racionalização da indústria engendra o desemprêgo,
essa calamidade de nossa época" 18. Spengler, por sua
vez, diz que "com razão foi a máquina considerada
como diabólica . Para um crente significa o
destronamen- to de Deus. Entrega ao homem a
sagrada causalidade, e o homem a põe em
movimento silenr ciosamente, irresistivelmente, com

15 LEWIS MUNFORD, Técnica y civilizaciôn, trad. esp., vol. I, Buenos Aires,


1945, pâg. 205.
16 N. BERDIAEV, L'homme et la machine, trad. franc.,
Paris, 1933, pâg. 36.
17 N. BERDIAEV, O. C., pâg. 50.
18 N. BERDIAEV, O. C., pág. 19.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XXIII

uma espécie de previdente onisciência"<19>. Em O


Homem e a técnica, escreve: "A criatura se está
erguendo contra o seu criador. Assim como dantes o
Homem do microcosmos se alçava contra a Nature-
za, agora a Máquina do microcosmos se revolta
contra o Homem Nórdico. O senhor do Mundo se
está transformando no escravo da Máquina, que o
está forçando — forçando a todos nós, quer
percebamos isto, quer não — a seguir o seu curso.
Os cavalos arrastam para a morte o vitorioso cujo
corpo se despedaça" 20. Para Otto Veit, que via na
Idade da Técnica uma tragédia, aponta na máquina a
raiz de todos os males: "a época da técnica sofre
exatamente graças à técnica. E aqui começa o
verdadeiro problema: de um lado sabemos que tôda a
nossa civilização está baseada na técnica, e de outro
não conseguimos nos libertar da desagradável
sensação de que a técnica sepulta a nossa
civilização" 21. Isto porque "no terreno empírico o
homem não é livre. Não é livre num mundo
governado pela diabólica potência da máquina" 22.
Como se safará o mundo de tão terríveis maldições
técnicas? Para Berdiaev "a atitude do espírito para
com o mundo em geral e, em particular para com a
técnica que reina no mundo, deve ser tôda outra. A
técnica deve ser subordinada ao espírito, a máquina
deve ser um instrumento obediente ao homem, um
meio. Isto significa a humanização da técnica que
tende a se tornar inumana" 23.
O principal advogado de acusação da técnica
como antinatural e estranha à natureza é Spengler,
para quem o homo technicus possui uma "alma que
avança cada vez mais, num sempre crescente
alheamento de tôda a Natureza. As armas dos
animais de rapina são naturais, mas o punho armado

19 O. SPENGLER, La decadencia de occidente, trad, esp., vol. IV, Madrid, 1945,


pág. 349.
20 O. SPENGLER, O homem e a técnica, o. c., págs. 124-5.
21 OTTO VEIT, Die Tragik des Technischen Zeitalters, Berlin, 1937, päg. 13.
22 OTTO VEIT, o.e., päg. 253.
23 N. BERDIAEV,. Uhomme dans la civilization technique, o. c.> päg. 87.
XXIV PRÓLOGO

do homem com a sua arma artificialmente feita,


meditada e escolhida, não é natural. Aqui começa a
'Arte' como conceito contraposto à 'Natureza'. Cada
obra do homem é artificial, antinatural, desde a
produção do fogo até as criações que, nas Culturas
superiores, são especificamente consideradas
'artísticas'. O Homem arrebatou à Natureza o
privilégio da criação. A ' vontade livre' é em si nada
menos que um ato de rebeldia. O homem criador se
liber- tou dos laços da Natureza e com cada criação
nova se afasta cada vez mais dela, torna-se cada vez
mais seu inimigo. Isso é 'História Universal', a
história de uma dimensão fatal que se ergue,
incoercível, sempre crescente, entre o mundo do
homem e o universo — a história de um rebelde que
cresce para erguer a mão contra a própria mãe"<26>.

6. TÉCNICA E NATUREZA
Evidentemente, tais e tantas críticas são
exageradas, apaixonadas e, mais do que tudo,
unilaterais. Só vêem uma face da moeda, omitindo a
outra. No entanto, no próprio século XIX tiveram os
antitécnicos contra si também um espírito de escol,
Reuleaux, o grande morfólogo das ferramentas. Por
outro lado, Dessauer, filósofo católico, vê na técnica
uma mensagem divina que "libertou os homens de
uma parte das atribuições que não eram dignas do
homem, que empregava só as forças mais baixas do
homem com tal prepotência, que impediam às outras
de se desenvolver. Mas não lhe bastou libertar o
homem e chamá-lo para atividades mais dignas:
aumentou de maneira gigantesca a medida do
trabalho possível" 24. Para Dessauer há de fato na
técnica "a virtude criativa de Deus, que enriquece o
mundo por meio do espírito do homem" 25. Lewis
Munford, menos comprometido com a teologia, diz
que "as ferramentas e utensílios usados durante
grande parte da história do homem eram, no
fundamental, extensões de seu próprio organismo.
24 F. DESSAUER, Filosofia delia técnica, trad. ital., Brescia, 1945, págs. 113-4.
25 F. DESSAUER, O. C., pág. 41.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XXV

Não tinham — e, o que é ainda mais importante, não


pareciam ter — uma existência independente. Mas,
ainda que constituíssem uma parte íntima do
trabalhador, reagiam sôbre suas capacidades,
aguçando seus olhos, apurando sua habilidade e
ensinando-lhe a respeitar a natureza do material com
o qual estava trabalhando. Graças à ferramenta o
homem encontrou-se em harmonia mais íntima com
seu ambiente, não só porque o capacitou para
modificá-lo, mas porque ao mesmo tempo fez-lhe
reconhecer os limites de suas capacidades . Quando
sonhava era todo-poderoso, mas quando se
encontrava no domínio da realidade via-se obrigado
a reconhecer o pêso da pedra, fracionando as
demasiadamente pesadas para que fôsse possível o
seu transporte. Tanto o carpinteiro como o ferreiro, o
oleiro e o camponês escreveram, ainda que não as
assinando, muitas páginas no livro da sabedoria. E
nesse sentido a técnica foi sempre um instrumento de
disciplina e de educação. Um cavernícola sobre-
vivente podia, aqui e ali, desafogar sua cólera
quebrando as rodas de seu carro que emperrou na
lama, assim como podia chicotear o animal que
relutava em andar. Mas a grande maioria da
humanidade aprendeu, pelo menos durante o período
do documento escrito, que não é possível intimidar
ou convencer com afagos certas partes do ambiente.
Para dominá-las é necessário aprender as leis de seu
comportamento em lugar de querer, com não pouca
petulância, impor os desejos de cada um. E, assim, a
erudição e a tradição da técnica, por empírica que
fôsse, mostrava certa tendência a configurar uma
realidade objetiva" 26.
Longe está a técnica, portanto, de ser uma
violência contra a natureza. Submete-se às leis de seu
comportamento, sem nada impor. De resto, a
invenção, na sua própria essência, é descoberta, no
sentido pleno desta palavra. Todos os novos fatos,
relações, elementos, são novos somente como
descoberta; êles já existiam na natureza, limitando o

26 L. MUNFORD, O. C., vol. II, págs. 99-100.


XXVI PRÓLOGO

inventor tão apenas a torná-los conhecidos,


descobrindo-os, já que na imensa maioria de nossos
atos entramos sem perceber nos moldes
preestabelecidos. Daí não se poder conceber a
técnica em desacordo com as leis da natureza. Uma
obra técnica se define pela reunião de três critérios
num único: a) conformidade com a natureza; b)
elaboração; c) ordenação para um fim. O pressuposto
de tôda criação técnica é o conhecimento das leis
naturais, isto é, consoante Dessauer: "O técnico
procura obter a síntese entre as leis naturais, que
particularmente se apresentam nos materiais
empregados e nos fins a que tendem, A adaptação
daqueles nestes é quase sempre trabalhosa, às vêzes
extremamente difícil. Para atingir uma certa
perfeição na construção da locomotiva, centenas de
homens estão trabalhando há um século em tôrno de
problemas sintéticos dêste gênero e passaram pouco
a pouco da solução menos perfeita a outras
melhores" 27. A luz maior, porém, projetada sôbre a
antinomia ho- mem-técnica, iluminando-a, vem dos
holofotes da filosofia existencialista. Para
Abbagnano, por exemplo, "a técnica é indispensável
ao homem, mas não concerne propriamente ao
homem. Todo objetivo humano, de paz ou de guerra,
exige instrumentos e máquinas; mas instrumentos e
máquinas nada valem sem homens que saibam e
queiram utilizá-los. E a natureza dês- tes homens não
é problema de técnica cientí- fica"(31). Portanto,
homem e máquina se conjugam .

7. TÉCNICA E FILOSOFIA
Filosoficamente, a técnica surge como obra da
inteligência que pretende preordenar e predeterminar
abstratamente todas as coisas e reduzir não só o
trabalho mas a própria vida a uma regularidade que
exclui a novidade e a imprevisto e que substitui a
espontaneidade da vida pela ação uniforme de um
mecanismo. Em suma, diz Abbagnano, "a técnica

27 F. DESSAUER, O. C., pág. 24.


MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XXVII

orienta o homem para tudo o que é quantidade,


massa, extensão, e com isto o vincula à exterioridade
da matéria e concentra em tal exterioridade tôdas as
suas energias, impedindo-o de olhar a si mesmo e de
responder ao dístico agostiniano do in te ipsum redi.
Portanto, pela direção mesma que imprime à vida
humana, ela é diretamente contrária ao princípio
daquela espiritualidade que é para o homem a
verdadeira natureza" 28. Daí V. Egenlhardt estudar, no
seu ensaio Weltans- chauung und Technik, como se
refletem na técnica as diversas tendências da
filosofia moderna, constantando a necessidade de
"moralizar a técnica" e sustentando que é preciso
criar, na esfera psíquica da evolução da técnica,
certas correspondentes categorias morais. Porque,
diz, "no espírito da técnica se encontram elementos
irracionais que, por seu conteúdo, são éticos. A
técnica deságua na ética. Esta é a última conse-
qüência de uma longa série de evoluções" 29. Por isso
pôde afirmar Max Scheler que "a técnica não é, de
maneira alguma, tão apenas uma "aplicação"
posterior de uma ciência puramente contemplativa e
teorética que esteja determinada exclusivamente pela
idéia da verdade, da observação, da lógica pura e da
matemática pura; mas é antes a vontade de domínio e
derivação existente mais forte ou mais fraca em cada
caso e dirigida a êste ou àquele setor da existência
(deuses, almas, sociedade, natureza orgânica e
inorgânica, etc.), a qual contribui para determinar
não apenas os métodos de pensar e intuir, mas
também os fins do pensar científico; contribui para
determinar pelas costas da consciência dos
indivíduos, digamos assim, pelo que é inteiramente
indiferente indagar os mutáveis motivos pessoais
dêstes indivíduos" 30. Mas, está claro, o homem não
se limita a suprir com sua técnica o deficitário de
certas situações, comparadas com outras pretéricas;
vai mais longe ao se lançar projetivãmente a
imaginar situações irreais e leva a cabo certas ações
28 N. ABBAGNANO, Filosofia, religione, scienza, Torino, 1947, págs. 186-7.
29 Apud O. VEIT, o.c., págs. 223-4.
30 MAX SCHELER, o. C„ págs. 98-9.
XXVIII PRÓLOGO

técnicas para obter que estas se realizem; isto é,


compara a situação em que se encontra com outra
"interior", que ele mesmo "inventou" ou imaginou.
Tanto num caso como noutro — esclarece Julián
Marias, que estamos resumindo — "a técnica supõe
dois momentos conexos e estritamente humanos: um,
a suspensão da atividade a que precisamente tende;
para poder fazer alguma coisa, o homem se põe a
fazer outra coisa, cuja conseqüência será a
consecução do fim primordial; a técnica é o fazer
mediato por excelência, porque está orientada para
os meios como tais; falando com propriedade, o que
o homem executa em sua função técnica é isso que
em castelhano se chama, com gráfica expressão,
hacer un poder; isto é, o que faz o construtor de uma
casa ou de um automóvel, o agricultor ou o inventor
do telefone. O outro momento é o que poderíamos
chamar a entrada em si mesmo; a técnica supõe que
o homem exerça uma peculiar atividade, que consiste
em desprezar a situação presente para atirar-se aos
mundos interiores: a memória, no caso mais simples,
a imaginação, nas formas técnicas superiores" 31.
8. A SOLUÇÃO

É preciso concluir à base das premissas


oferecidas por Ortega y Gasset, problemáticas sem
dúvida, mas túrgidas da solução almejada. É preciso
desencantar o mito da técnica através de seu logos,
unindo sua razão e seu sentimento. Para tanto,
socorremo-nos — porque êste tema é soçobrante —
de Paul Tillich, com o qual concordamos, para
concluir: "A técnica tem poder libertador da pressão
terrível da dor corporal, da pressão surda ensejada
pelos males cotodianos do processo da natureza, da
falta de defesa do homem primitivo perante a
natureza. O que para nós é evidente, nos tempos
pretéritos era um milagre inconcebível. A técnica
está em condições de romper os grilhões do espaço e
do tempo que inibem a comunidade humana. Sem ela
jamais poder-se-ia efetivar a grande esperança final,
o pensamento de uma humanidade. É ela a
31 JULIÁN MARÍAS, Intrçducción a la filosofia, Madrid, 1947, págs. 265-6.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XXIX

libertadora do misterioso, do demoníaco das coisas,


de sua intocabilidade: tudo o que é produzido
tècnicamente é desdemonizado. Mas, evidentemente,
é também esvaziado. Perdem alguma coisa de sua
plenitude vital. É dominado, e por isto a força
substituiu-se ao Éros, que une essência a essência. É
a violência da racionalidade, à qual as coisas devem
obediência. Nós sempre buscamos o novo e o
processo da técnica nos ultrapassa, e ninguém sabe
para aonde nos arrastar. Por isso muitos querem
voltar atraz, ao tempo em que não havia estas
possibilidades. . . querem inverter as coisas. Êste,
porém, não é o caminho do espírito. Êle progride. A
técnica transformou o mundo, e êste mundo
transformado é o nosso mundo, e não outro. Nêle
devemos construir e inserir a técnica no sentido
último da vida, sabendo contudo que ela é divina,
libertadora e criadora, e é também demoníaca,
escravisadora e destruidora. É ela dupla, como tudo
que existe. . . Também ela, a libertadora, deve ser
libertada; também o seu mito deve desaguar no
grande mito de anseios de toda criatura e seu afã de
um nôvo ser, no qual a natureza e o espírito sejam
reconciliados" (36>.
(36) PAUL TILLICH, Logos und Mythos der Technik
in "Iogos", 1927, Vol. XVI, pág. 356 (Conferência
pronunciada por ocasião do 99.° aniversário da
"Technische Hochschule", de Dresden) .MEDITAÇÃO
DA TÉCNICA
PREFÁCIO

Com o nome de Meditação da técnica, ofereço


ao público um curso desenvolvido no ano de 1933
na Universidade de Verão de Santander, que então
foi inaugurada. Êste curso, como observará em
seguida o leitor, não foi, propriamente, escrito, pois
consiste em anotações feitas às pressas para o uso
da cátedra. Não se busque nelas nem mesmo, talvez,
asseada correção gramatical. Tal e qual foram
pronunciadas estas lições apareceram em La
Nación, de Buenos Aires, segmentadas
mecanicamente em artigos dominicais.

Não devia publicá-las em volume, pois nem sua


forma nem seu conteúdo são trabalho concluso.
Mas em La Nación jaz trabalho meu dêste gênero, e
igualmente imaturo, para encher muitos volumes.
Nesse trabalho eu acredito que existem, toscas
ainda ou balbuciantes, idéias que podem ser de
importância. Eu esperava, para publicá-las, a hora
de dar-lhes figura mais nobre e mais depurada
entranha. Mas vejo que os edi-tôres fraudulentos do
Chile recortavam de La Nación estas informais
prosas minhas e formavam com elas volumes. Em
vista do que decidi fazer concorrência a êsses
piratas do Pacífico e cometer a fraude de publicar
eu êstes livros seus, que são meus.
JOSÉ ORTEGA Y GASSET Buenos Aires, 27 de outubro
de 1939
.PRIMEIRA ESCARAMUÇA COM O TEMA
' I
Um dos temas que nos próximos anos será
debatido com maior brio é o do sentido, vantagens,
danos e limites da técnica. Sempre considerei que a
missão do escritor é prever com ampla antecipação o
que será problema, anos mais tarde, para seus
leitores e proporcionar-lhes a tempo, isto é, antes de
que o debate surja, idéias claras sôbre a questão, de
modo que entrem no fragor da contenda com o
ânimo sereno de quem, em princípio, já a tem
resolvida. On ne doit écrite que pour faire connaître
la vérité — dizia Male- branche, voltando as costas à
literatura. Há muito tempo, dando-se ou não conta
disso, o homem ocidental não espera nada da
literatura e volta a sentir fome e sêde de idéias claras
e distintas sôbre as coisas importantes.
Assim sendo, agora me atrevo a remeter a La
Nación as notas, nada literárias, de um curso
universitário dado há dois anos, em que se procurava
responder a esta pergunta: Que é a técnica?
Intentemos um primeiro ataque, ainda tosco e
de longe, a essa interrogação.Acontece que, quando
chega o inverno, o homem sente frio. Êste "sentir
frio o homem" é um fenômeno em que aparecem
unidas duas coisas bem distintas. Uma, o fato de que
o homem encontra em torno de si essa realidade cha-
mada frio. Outra, que essa realidade lhe agride, que
se apresenta diante dêle com um caráter negativo.
Que quer dizer aqui negativo? Alguma coisa bem
clara. Tomemos o caso extremo. O frio é tal que o
homem se sente que morre, isto é, sente que o frio o
mata, o aniquila, o nega. Pois bem, o homem não
quer morrer, ao contrário, normalmente anela
' I sobreviver. Estamos tão habituados a experimentar
nos demais e em nós este desejo de viver, de afirmar-
nos diante de tôda circunstância negativa, que nos
custa um pouco tomar consciência do extranho que
é, e nos parece absurda ou talvez ingênua a pergunta:
Por que o homem preferé viver a deixar de ser? E,
contudo, trata-se de uma das perguntas mais
justificadas e discretas que possamos fazer-nos.
Nestes casos costuma-se falar em instinto de
conservação. Mas acontece: 1.°, que a idéia de
instinto é em si mesma bastante obscura e nada
esclarecedora; 2.°, que ainda que fosse clara a idéia,
é coisa notória que no homem os instintos estão
quase apagados, pois o homem não vive, em
definitivo, de seus instintos, já que se governa
mediante outras faculdades como a reflexão e a
vontade, que reatuam sôbre os instintos . A prova
disso é que alguns homens preferem morrer a viver,
e, seja lá por que motivo, anulam em si êsse suposto
instinto de conservação .
É, portanto, falha a explicação pelo instinto.
Com êle ou sem êle concluímos sempre que o
homem sobrevive porque quer e isto é o que
despertava em nós uma curiosidade talvez im-
pertinente. Por que normalmente quer o homem
viver? Por que não lhe é indiferente desaparecer?
Que empenho tem em estar no mundo?
Vamos agora entrever a resposta. Basta- -nos,
ao menos por hoje, com partir do fato bruto: que o
homem quer viver e, porque quer viver, quando o
frio ameaça com destruí-lo, o homem sente a
necessidade de evitar o frio e proporcionar-se calor.
O relâmpago da tempestade invernal acende um
' I ponto do bosque: o homem então se aproxima ao
fogo benéfico que o acaso lhe porporcionou para
esquentar-se. Esquentar-se é um ato pelo qual o
homem atende a sua necesidade de evitar o frio,
aproveitando sem mais o fogo que encontra pela
frente. Digo isto com o sobressalto com que se diz
sempre um truísmo. Contudo, nos convém — logo
os senhores irão ver — esta humildade inicial que
nos identifica com Calino. O importante é que não
resulte que além de dizer truísmos os dizemos sem
entendê-los. Isso seria o cúmulo, um cúmulo que
com grande freqüência praticamos. Anote-se, pois,
que esquentar-se é a operação com a qual
procuramos receber sôbre nós um calor que já está
aí, que encontramos — e que essa operação se reduz
a exercer uma atividade com que o homem se
encontra dotado evidentemente: a de poder caminhar
e assim aproximar-se ao fogo que aquece. Outras
vêzes o calor não provém de um incêndio, porquanto
o homem, transido de frio, se refugia numa caverna
que encontra em sua paisagem.
Outra necessidade do homem é alimentar- -se,
e alimentar-se é colher o fruto da árvore e comê-lo,
ou então a raiz mastigável ou ainda o animal que cai
sob sua mão. Outra necessidade é beber, etc.
Ora, a satisfação destas necessidades costuma
impor outra necessidade: a de deslocar-se, caminhar,
isto é, suprimir as distâncias, e como às vêzes
importa que esta supressão se faça em bem pouco
tempo, necessita o homem suprimir tempo, encurtá-
lo, ganhá-lo. O inverso acontece quando um inimigo
— a fera ou outro homem — põe em perigo sua
vida. Necessita fugir, isto é, lograr no menor tempo a
' I maior distância. Seguindo por êste modo
chegaríamos, com um pouco de paciência, a definir
um sistema de necessidades com o qual o homem se
encontra. Esquentar-se, alimentar-se, caminhar, etc.,
são um repertório de atividades que o homem possui,
evidentemente, com o qual se encontra da mesma
forma como se encontra com as necessidades delas
decorrentes.
Com ser tudo isto tão óbvio que — repito —
encabula um pouco enunciá-lo, convém reparar na
significação que aqui tem o têrmo necessidade. Que
quer dizer que o esquentar-se, alimentar-se, caminhar
são necessidades do homem? Sem dúvida que são
elas condições naturalmente necessárias para viver.
O homem reconhece esta necessidade material ou
objetiva e porque a reconhece a sente subjetivamente
como necessidade. Mas note-se que esta sua necessi-
dade é puramente condicional. A pedra sôlta no ar
cai necessàriamente, com necessidade categórica ou
incondicional. Mas o homem pode perfeitamente não
alimentar-se, como agora o mahátma Gandhi. Não é,
pois, o alimentar-se necessário por si, é necessário
para viver. Terá, pois, tanto de necessidade quanto
seja necessário viver se se há-de viver. Êste viver é,
pois, a necessidade originária de que todas as demais
são meras conseqüências. Ora, já indicamos que o
homem vive porque quer. A necessidade de viver não
lhe é imposta à fôrça, como lhe é imposto à matéria
não poder aniquilar-se. A vida — necessidade das
necessidades — é necessária apenas num sentido
subjetivo; simplesmente porque o homem decide
autocràticamente viver. É a necessidade criada por
um ato de vontade, ato cujo sentido e origem
' I prosseguiremos olhando de viés e de que partimos
como de um fato bruto. Seja lá por que razão,
acontece que o homem costuma ter um grande
empenho em sobreviver, em estar no mundo, apesar
de ser o único ente conhecido que tem a faculdade
— ontológica ou metafisicamente tão estranha, tão
paradoxal, tão conturbada — de poder aniquilar-se e
deixar de estar aí, no mundo.
E, pelo visto, êsse empenho é tão grande que
quando o homem não pode satisfazer as ne-
cessidades inerentes a sua vida, porque a natureza ao
derredor não lhe propicia os meios inex- cusáveis, o
homem não se resigna. Se, por falta de incêndio ou
de caverna, não pode exercer a atividade ou fazer de
esquentar-se, ou por falta de frutos, raízes, animais, a
de alimentar-se, o homem põe em movimento uma
segunda linha de atividades: faz fogo, faz um
edifício, faz agricultura ou caçada. É o caso que
aquêle repertório de necessidades e o de atividades
que as satisfazem diretamente, aproveitando os
meios que estão já aí quando estão, são comuns ao
homem e ao animal. A única coisa da qual não
podemos estar certos é de se o animal tem o mesmo
empenho que o homem em viver. Dir-se-á que é
imprudente e até injusta esta dúvida. Por que o
animal há-de ter menos apêgo à vida que o homem?
O que ocorre é que não tem os dotes intelectuais do
homem para defender sua vida. Tudo isto é
provàvelmente bastante discreto, mas uma
consideração um pouco cautelosa, que se atém aos
fatos, encontra-se irrefragàvelmen- te com que o
animal, quando não pode exercer a atividade de seu
repertório elemental para satisfazer uma necessidade
— por exemplo, quando não há fogo nem caverna —
' I não faz nada mais e se deixa morrer. O homem, ao
contrário, dispara um nôvo tipo de fazer que consiste
em produzir o que não estava aí na natureza, seja
porque em absoluto não esteja, seja porque não está
quando faz falta. Natureza não significa aqui senão o
que rodeia ao homem, a circunstância. Assim faz
fogo quando não há fogo, faz uma caverna, isto é,
um edifício, quando não existe na paisagem, monta
um cavalo ou fabrica um automóvel para suprimir
espaço e tempo. Ora, note-se que fazer fogo é um
fazer bem diverso de esquentar-se, que cultivar um
campo é um fazer bem diverso de alimentar-se, e
que fazer um automóvel não é correr. Agora começa
a ver- -se por que tivemos que insistir na truística de-
finição de esquentar-se, alimentar-se e deslocar-se .
Aquecimento, agricultura e fabricação de
carros ou automóveis não são, pois, atos em que
satisfazemos nossas necessidades, já que, ao con-
trário, implicam uma supressão daquele repertório
primitivo de fazeres em que diretamente procuramos
satisfazê-las. Em suma, a esta satisfação e não a
outra coisa se encaminha êste segundo repertório,
mas — ei-lo! — supõe êle uma capacidade que é
precisamente o que falta ao animal. Não é tanto
inteligência o que lhe falta — sôbre isto falaremos
um pouco, se houver tempo — como o ser capaz de
desprender-se transitoriamente dessas urgências
vitais, desgrudar-se delas e ficar disponível para
ocupar-se em atividades que, por si, não são
satisfação de necessidades. O animal, pelo contrário,
está sempre e indefectivelmente prêso a elas. Sua
existência não é mais que o sistema dessas ne-
cessidades elementares que chamamos orgânicas ou
biológicas e o sistema de atos que as satisfazem. O
' I ser do animal coincide com êsse duplo sistema ou,
dito em outras palavras, o animal não é mais que
isso. Vida, no sentido biológico ou orgânico da
palavra, é isso. E eu pergunto: tem sentido,
referindo-se a um tal ser, falar de necessidades?
Porque, lembro aos senhores, que, referido êste
conceito de necessidade ao homem, consistia nas
condições sine quibus non com que o homem se
encontra para viver. Elas, pois, não são sua vida ou,
dito ao contrário, sua vida não coincide, pelo menos
totalmente, com o perfil de suas necessidades
orgânicas. Se coincidisse, como acontece no animal,
se seu ser consistisse estritamente e só em comer,
beber, esquentar-se, etc., não as sentiria como
necessidades, isto é, como imposições que, de fora,
chegam a seu autêntico ser, com que êste não tem
outro remédio senão contar, mas que não o cons-
tituem. Carece, pois, de bom-senso supor que o
animal tem necessidades no sentido subjetivo que a
êste têrmo corresponde referido ao homem. O animal
sente fome, mas como não tem outra coisa que fazer
senão sentir fome e tratar de comer, não pode sentir
tudo isto como uma necessidade, como alguma coisa
com que é preciso contar, que não há outro remédio
senão fazer e que lhe é imposto. Ao contrário, se o
homem conseguisse não ter essas necessidades e,
conseqüentemente, não ter que ocupar-se em
satisfazê-las, ainda lhe restaria muito que fazer,
muito âmbito de vida, precisamente as tarefas
[ quehaceres ] e a vida que êle considera como o
mais seu. Precisamente porque não sente o es-
quentar-se e o comer como o seu, como aquilo em
que sua verdadeira vida consiste e de outro lado não
tem outro remédio senão aceitá-lo, é pelo que se lhe
' I apresenta com o caráter específico de necessidade,
de inevitabilidade. E isso, inesperadamente, nos
descobre a constituição estranhíssima do homem:
enquanto todos os demais sêres coincidem com suas
condições objetivas — com a natureza ou
circunstância — o homem não coincide com esta, já
que é alguma coisa alheia e distinta de sua
circunstância; mas não tendo outro remédio, se quer
ser e estar nela, tem que aceitar as condições que esta
lhe impõe. Daí que se lhe apresentem com um
aspecto negativo, forçado e penoso.
Por outro lado, isto esclarece um pouco que o
homem possa desentender-se provisoriamente dessas
necessidades, as suspenda ou contenha e, distanciado
delas, possa transladar-se para outras ocupações que
não são sua imediata satisfação .
O animal não pode retirar-se de seu repertório
de atos naturais, da natureza, porque não é senão ela
e não teria, ao distanciar-se dela, onde meter-se. Mas
o homem, pelo visto, não é sua circunstância, já que
está somente submerso nela e pode em alguns
momentos sair dela e pôr-se em si, recolher-se,
ensimesmar-se, e só consegue ocupar-se em coisas
que não são direta e imediatamente atender aos
imperativos ou necessidades de sua circunstância.
Nestes momentos extra ou sobrenaturais de
ensimesmamento e retração em si inventa e executa
êsse segundo repertório de atos: faz fogo, faz uma
casa, cultiva o campo e monta o automóvel.
Notemos que todos êstes atos têm uma es-
trutra comum. Todos êles pressupõem e levam em si
a invenção de um procedimento que nos permite,
dentro de certos limites, obter com segurança, a
nosso ver e conveniências, o que não existe na
' I natureza, mas que necessitamos. Não importa, pois,
que na circunstância, aqui e agora, não haja fogo.
Fazêmo-lo, isto é, executamos aqui e agora um certo
esquema de atos que prè- viamente havíamos
inventado de uma vez para sempre. Êste
procedimento consiste amiúde na criação de um
objeto cujo simples funcionamento nos proporciona
isso que carecemos, o instrumento ou aparelho. Tais
são os dois palitos e a isca com que o homem
primitivo faz fogo ou a casa que levanta e o separa
do extremo frio ambiente.
De onde resulta que êstes atos modificam ou
reformam a circunstância ou natureza, conseguindo
que nela haja o que não há — seja que não existe
aqui e agora quando se necessita, seja que em
absoluto não existe. Pois bem, êstes são os atos
técnicos, específicos do homem. O conjunto dêles é
a técnica, que podemos, desde logo, definir como a
reforma que o homem impõe à natureza em vista da
satisfação de suas necessidades. Estas, vimos, eram
imposições da natureza ao homem. O homem
responde impondo por sua vez uma mudança à
natureza. É, pois, a técnica, a reação enérgica contra
a natureza ou circunstância que leva a criar entre
esta e o homem uma nova natureza posta sôbre
aquela, uma sobrenatureza. Anote-se, portanto: a
técnica não é o que o homem faz para satisfazer suas
necessidades. Esta expressão é equívoca e valeria
também para o repertório biológico dos atos
animais. A técnica é a reforma da natureza, dessa
natureza que nos faz necessitados e indigentes,
reforma em sentido tal que as necessidades ficam, a
ser possível, anuladas por deixar de ser problema
sua satisfação. Se sempre que sentimos frio a
' I natureza automàticamen- te pusesse à nossa
disposição fogo, é evidente que não sentiríamos a
necessidade de esquentar-nos, como normalmente
não sentimos a necessidade de respirar, já que
simplesmente respiramos sem ser-nos isso problema
algum. Pois isso faz a técnica, precisamente isso:
pôr-nos o calor junto à sensação de frio e anular
praticamente esta enquanto necessidade, indigência,
negação, problema e angústia.
Fica aqui esta primeira e tôsca aproximação à
pergunta: Que é a técnica? Mas, agora, uma vez
obtida essa aproximação, é quando começam a
complicar-se as coisas e a comportar-se um tanto
divertidas, como veremos nas próximas lições
.O ESTAR E O BEM-ESTAR. — A
"NECESSIDADE" DA
EMBRIAGUEZ. — O SUPÉRFLUO
COMO NECESSÁRIO. —
RELATIVIDADE DA TÉCNICA.

Reatemo-nos com a lição anterior.

Atos técnicos — dizíamos — não são aqueles em que


o homem procura satisfazer diretamente as
necessidades que a circunstância ou natureza as faz
sentir, mas precisamente aquê- les que levam a
reformar essas circunstâncias eliminando no possível
dela essas necessidades, suprimindo ou minguando o
acaso e o esforço que exige satisfazê-las. Enquanto o
animal, por ser atécnico, tem que se ajustar ao que
encontra dado aí e fastidiar-se ou morrer quando não
encontra o que necessita, o homem, graças a seu dom
' I técnico, faz que se encontre sempre em seu derredor
o que é preciso — cria, pois, uma circunstância nova
mais favorável, segrega, por as- x sim dizer, uma
sobrenatureza adaptando a natureza a suas
necessidades. A técnica é o contrário da adaptação do
sujeito ao meio, pôsto que é a adaptação do meio ao
sujeito. Isto já bastaria para fazer-nos suspeitar que se
trata de um movimento em direção inversa a todos os
biológicos
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 1

.Esta reação contra seu contorno, êste não resignar-se


contentando-se com o que o mundo é, é o específico do
homem. Por isso, mesmo estudado zoològicamente,
reconhece-se sua presença quando se encontra a natureza
deformada; por exemplo, quando se encontram pedras
lavradas, com polimento ou sem êle, isto é, utensílios. Um
homem sem técnica, isto é, sem reação contra o meio, não é
um homem.
Mas, até agora, apresentava-se-nos a técnica como
uma reação às necessidades orgânicas ou biológicas.
Lembram os senhores que insisti em precisar o sentido do
têrmo "necessidade". Alimentar-se era necessidade pois era
condição sine qua non da vida, isto é, do poder estar no
mundo. E o homem tem, pelo visto, um grande empenho
em estar no mundo. Viver, perdurar, era a necessidade das
necessidades.
Mas é o caso que a técnica não se reduz a facilitar a
satisfação de necessidades dêste gênero. Tão antigos como
os inventos de utensílios e procedimentos para esquentar-
se, alimentar-se, etc., são muitos outros cuja finalidade
consiste em proporcionar ao homem coisas e situações
desnecessárias nesse sentido. Por exemplo, tão velho e tão
difundido como o fazer fogo é o embriagar-se — quero
dizer, o uso de procedimentos ou substâncias que põem o
homem em estado psicofisiológico de exaltação deliciosa
ou então de delicioso estupor. A droga, o estupefaciente é
um invento tão primitivo quanto o mais antigo. Tanto, que
não é coisa clara, por exemplo, se o fogo se inventou
primeiro para evitar o frio — necessidade orgânica e
condição sine qua non — ou antes para embriagar-se. Os
povos mais primitivos usam as covas para acender nelas
fogo e pôr-se a suar em forma tal que entre o fumo e o
excesso de temperatura caem em transe de quase
embriaguez. É o que se chamou as "casas de suar". Resulta
2 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

inacabável a lista de procedimentos hipnóticos, fantásticos,


isto é, produtores de imagens deliciosas, de excitantes que
dão prazer ao praticar um esforço. Assim, entre êstes
últimos, o "Kat" do Yemen e Etiópia, que faz grato o andar
quanto mais se anda pelos efeitos daquela substância na
próstata. Entre o "fantástico" recorda-se a coca do Peru, o
mei- mendro, o estramônio ou daturina, etc. Pareci-
damente discutem os etnólogos se é o arco de caça e guerra
ou o arco musical a forma primi- gênia do arco. A solução
do debate não é coisa que agora nos importe. O simples fato
de que pode ser discutido demonstra que, seja ou não o
musical o arco originário, aparece entre os instrumentos
mais primitivos. E isto nos basta.
Porque isso nos revela que o primitivo não sentia
menos como necessidade o proporcionar- -se certos estados
prazeirosos que o satisfazer suas necessidades mínimas
para não morrer; portanto, que desde o princípio o conceito
de "necessidade humana" inclui indiferentemente o ob-
jetivamente necessário e o supérfluo. Se nós nos
comprometêssemos a distinguir quais dentre nossas
necessidades são rigorosamente necessárias, inevitáveis, e
quais supérfluas, nos veríamos na maior dificuldade. Pois
encontrar-nos-íamos: 1.°) Com que diante das necessidades
que pensando a priori parecem mais elementares e ine-
vitáveis — alimento, calor, por exemplo — tem o homem
uma elasticidade incrível. Não somente por fôrça, mas até
por gôsto reduz a limites incríveis a quantidade de alimento
e se adestra para sofrer frios de uma intensidade superlati-
va. 2.°) Ao contrário, custa-lhe muito ou, simplesmente,
não consegue prescindir de certas coisas supérfluas e
quando lhe faltam prefere morrer. 3.°) De onde se deduz
que o empenho do homem por viver, por estar no mundo, é
inseparável de seu empenho de estar bem. Mais ainda: que
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 3

vida significa para ele não simples estar, mas bem-estar, e


que somente sente como necessidades as condições
objetivas do estar, porque êste, por sua vez, é suposto do
bem-estar. O homem que se convence a fundo e por com-
pleto de que não pode obter o que êle chama bem-estar,
pelo menos uma aproximação a isso, e que teria que
contentar-se com o simples e nu estar, suicida-se. O bem-
estar e não o estar é a necessidade fundamental para o
homem, a necessidade das necessidades. Com o que chega-
mos a um conceito de necessidades humanas
completamente distinto do que no artigo anterior topamos,
e de resto oposto ao que, por insuficiente análise e
descuidada meditação, costuma-se adotar. Os livros sôbre
técnica que li — todos indignos por certo, de seu enorme
tema ( 32 ) — começam por não levar em conta que o con-
ceito de "necessidades humanas" é o mais importante para
esclarecer o que é a técnica. Todos êsses livros, como não
podia menos de ser, fazem uso da idéia dessas
necessidades, mas como não vêem sua decisiva
importância, o tomam consoante está na tópica
ambiente.Precisemos, antes de prosseguir, a situação a que
chegamos: na lição anterior considerávamos o esquentar-se
e o alimentar-se como necessidades humanas, por ser
condições objetivas do viver, no sentido de mero existir e
simples estar no mundo. São, pois, necessárias na medida
em que seja ao homem necessário viver. E notávamos que,
com efeito, o homem mostrava um raro e obstinado
empenho em viver. Mas esta expressão, agora o
percebemos, era equívoca. O homem não tem empenho
algum por estar no mundo. No que tem empenho é em estar
bem. Somente isto lhe parece necessário e todo o resto é

32 O único livro que, insuficiente também no que se refere ao problema geral da técnica, pude
aproveitar num ou dois pontos é ò de Gotl-Lilienfeld, Virtschait und Technik.
4 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

necessidade somente na medida em que faça possível o


bem-estar. Portanto, para o homem somente é necessário o
objetivamente supérfluo. Isto se julgará paradoxal, mas é a
pura verdade. As necessidades biologicamente objetivas
não são, por si, necessidades para êle. Quando se encontra
prêso a elas se nega a satisfazê-las e prefere sucumbir.
Somente se convertem em necessidades quando aparecem
como condições do "estar no mundo", que por sua vez
somente é necessário em forma subjetiva; a saber, porque
faz possível o "bem-estar no mundo" e a superfluidade . De
onde resulta que até o que é objetivamente necessário
somente o é para o homem quando é referido à
superfluidade. Não tem dúvida: o homem é um animal para
o qual sòmen- te o supérfluo é necessário. Aparentemente
parecerá aos senhores isto um pouco estranho e sem mais
valor que o de uma frase, mas se os senhores reconsideram
a questão verão como por si mesmos, inevitàvelmente,
chegam a ela. E isto é essencial para entender a técnica. A
técnica é a produção do supérfluo: hoje e na época paleolíti-
ca . É, certamente, o meio para satisfazer as necessidades
humanas. Agora podemos aceitar esta fórmula que ontem
repelíamos, porque agora sabemos que as necessidades
humanas são objetivamente supérfluas e que somente se
convertem em necessidades para quem necessita o bem-
estar e para quem viver é essencialmente viver bem. Eis
aqui por que o animal é atécnico: contenta-se com viver e
com o objetivamente necessário para o simples existir. Do
ponto de vista do simples existir o animal é insuperável e
não necessita a técnica. Mas o homem é homem porque
para êle existir significa desde logo e sempre bem-estar; por
isso é a natividade técnico criador do supérfluo. Homem,
técnica e bem-estar são, em última instância, sinônimos.
Outra coisa leva a desconhecer o tremendo sentido da
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 5

técnica: sua significação como fato absoluto no universo.


Se a técnica consistisse somente numa de suas partes — em
resolver mais comodamente as mesmas necessidades que
integram a vida do animal e no mesmo sentido que possam
sê-lo para êste — teríamos um entrefino estranho no
universo: teríamos dois sistemas de atos — os instintivos
do animal e os técnicos do homem — que sendo tão
heterogêneos serviriam, não obstante, à mesma finalidade:
sustentar no mundo ao ser orgânico. Porque o caso é que o
animal se arranja perfeitamente com seu sistema, isto é, que
não se trata de um sistema defeituoso, em princípio. Não é
nem mais nem menos defeituoso que o do homem.
Tudo se esclarece, ao contrário, se se adverte que as
finalidades são distintas: de um lado servir à vida orgânica,
que é adaptação do sujeito ao meio, simples estar na
natureza. De outro, servir à boa vida, ao bem-estar, que im-
plica adaptação do meio à vontade do sujeito.
Fiquemos, pois, em que as necessidades humanas o
são somente em função do bem-estar. Somente poderemos
então averiguar quais são aquelas se averiguamos que é o
que o homem entende por seu bem-estar. E isto complica
formidavelmente as coisas. Porque. . . vão os senhores
saber tudo o que o homem entendeu, entende ou entenderá
por bem-estar, por necessidade das necessidades, pela única
coisa necessária de que falava Jesus a Marta e Maria (Ma-
ria, a verdadeira técnica para Jesus) .
Para Pompeu não era necessário viver, mas era
necessário navegar, com o que renovava o lema da
sociedade milésia dos aeinautai — os eternos navegantes
— aos quais Tales pertenceu, criadores de um nôvo
comércio audaz, uma nova política audaz, um nôvo
conhecimento audaz — a ciência ocidental.
6 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Existe o faquir, o asceta, de um lado; o sensual, o glutão, de


outro
1i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

.Temos, pois, que enquanto o simples viver, o viver em


sentido biológico, é uma grandeza fixa que para cada
espécie está definida de uma vez para sempre, isso que o
homem chama viver, o bom viver ou bem-estar é um têrmo
sempre móvel, ilimitadamente variável. E como o re-
pertório de necessidades humanas é função dêle, resultam
estas não menos variáveis, e como a técnica é o repertório
de atos provocados, suscitados pelo e inspirados no sistema
dessas necessidades, será também uma realidade protei-
forme, em constante mutação. Daí ser inútil querer estudar
a técnica como uma entidade independente ou como se
estivesse dirigida por um vector único e de antemão
conhecido. A idéia do progresso, funesta em todas as
ordens, quando se a empregou sem críticas, foi aqui
também fatal. Supõe ela que o homem quis, quer e quererá
sempre o mesmo, que os anelos vitais foram sempre
idênticos e a única variação através dos tempos consistiu no
avanço progressivo para a obtenção daquele único
desideratum. Mas a verdade é exatamente o contrário: a
idéia da vida, o perfil do bem-estar se transformou inumerá-
veis vêzes, em ocasiões tão radicalmente, que os chamados
progressos técnicos eram abandonados e seu rastro perdido.
Outras vêzes — registre- -se — e é quase o mais freqüente
na história, o inventor e a invenção eram perseguidos como
se se tratasse de um crime. O fato de que hoje sintamos em
forma extrema o prurido oposto, o afã de invenções, não
deve fazer-nos supor que sempre foi assim. Ao contrário, a
humanidade sempre sentiu um misterioso terror cósmico
para com os descobrimentos, como se nestes, ao lado de
seus benefícios, ocultasse um terrível perigo. E em meio de
nosso entusiasmo pelos inventos técnicos, não começamos
a sentir algo parecido? Seria de enorme e dramático
ensinamento fazer uma história das técnicas que, uma vez
obtidas e parecendo "aquisições eternas" — ktesis eis aéi
— se volatizaram, se perderam por completo.
III

O ESFORÇO PARA POUPAR ESFORÇO É


ESFORÇO — O PROBLEMA DO ESFORÇO
POUPADO — A VIDA INVENTADA

Meu livro A rebelião das massas (33) está


inspirado, entre outras coisas, pela espantosa sus-
peita que sinceramente sentia então — ali por 1927 e
1928; notem-no os senhores, as datas da prosperity
— de que a magnífica, a fabulosa técnica atual corria
perigo e perfeitamente podia ocorrer que se nos
escorresse por entre os dedos e desaparecesse em
muito menos tempo de quanto se pode imaginar.
Hoje, cinco anos depois, minha suspeita não fêz
senão aumentar pavorosamente . Vejam, pois, os
engenheiros como para ser engenheiro não basta
com ser engenheiro. Enquanto se estão ocupando em
sua faina particular, a história lhes retira o solo
debaixo dos pés.
É preciso estar alerta e sair do próprio ofício:
explorar bem a paisagem da vida, que é sempre total.
A faculdade suprema para viver não a dá nenhum
ofício, nem nenhuma ciência: é a sinopse de todos os
ofícios e tôdas as ciências e, de resto, muitas outras
coisas. É a integral cautela. A vida humana e tudo
nela é um constante e absoluto risco. Todo o
quociente se vai pelo ponto menos previsível: uma
cultura se esvazia inteira pelo mais imperceptível
ralo. Mas deixando de lado estas, que são, ainda que
iminentes, meras possibilidades, recapacite o técnico
simplesmente comparando sua situação de ontem
com a que faz presumir o amanhã.

33 Traduzido em português por LIAL, Rio de Janeiro, 1959. 2. a


ed., 1962.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 5
Uma coisa é, pelo menos, claríssima: que as
condições de tôda ordem, sociais, econômicas,
políticas, em que trabalhará amanhã são sumamente
distintas daquelas em que trabalhou até hoje.
Não se fale, pois, da técnica como da única
coisa positiva, da única realidade incomovível do
homem. Isso é uma estupidez, e quanto mais cegos
estejam por ela os técnicos, mais provável é que a
técnica atual acabe por ruir e periclitar.
Basta com que mude um pouco substancial-
mente o perfil do bem-estar que se esboça diante do
homem, que sofra uma mutação de algum vulto a
idéia da vida, da qual, a partir da qual e para a qual
faz o homem tudo o que faz, para que a técnica
tradicional se abale, se desconjunte e tome outros
rumos.
Há quem acredite que a técnica atual está mais
firme na história que outras porque ela mesma, como
tal técnica, possui ingredientes que a diferenciam de
tôdas as outras, por exemplo, seu embasamento nas
ciências. Esta presumida segurança é ilusória. A
indiscutível superioridade da técnica presente, como
tal técnica, é, por outro lado, seu fator de maior
fraqueza. Se se baseia na exatidão da ciência, quer
dizer-se que se apóia em mais supostos e condições
que as outras, ao fim e ao cabo mais independentes e
espontâneas.
Todas estas seguranças são as que precisa-
mente estão fazendo perigar a cultura européia. O
progressismo, ao acreditar que já se havia chegado a
um nível histórico em que não cabia substantivo
retrocesso, senão que mecânicamen- te se avançaria
até ao infinito, afrouxou as cavilhas da cautela
6i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

humana e deu lugar a que irrompa de nôvo a


barbárie no mundo.
Mas deixemos isto, já que não é matéria em
que possamos entrar agora sèriamente. Resumamos,
ao contrário, quanto eu disse até agora:
1. °) Não há homem sem técnica.
2. °) Essa técnica varia em máximo grau e
é sobremaneira inestável, dependendo qual e quanta
seja em cada momento da idéia de bem- -estar que o
homem tenha então. Ao tempo de Platão, a técnica
dos chineses, em não poucos setores, era
incomparavelmente superior à dos gregos . Existem
certas obras da técnica egípcia que são superiores a
quanto hoje faz o europeu; por exemplo, o lago
Meris, de que fala Heródoto, que um tempo se
acreditou fabuloso e cujo resíduo foi depois
descoberto. Nesta gigantesca obra hidráulica se
armazenavam 3 430 000 000 de metros cúbicos, e
graças a isso a região do Delta, que hoje é um
deserto, era superlativamente fértil . O mesmo
acontece com os foggara do deserto saárico.
3.°) Outra questão é se não há em tôdas as
técnicas passadas um torso comum em que foi
acumulando seus descobrimentos, mesmo através de
não poucos desaparecimentos, retrocessos e perdas.
Em tal caso, poder-se-ia falar de um absoluto
progresso da técnica. Mas sempre se correrá o risco
de definir êste absoluto progresso do ponto de vista
técnico peculiar àquele que fala, e êsse ponto de
vista não é o absoluto, evidentemente . Enquanto êle
o está afirmando com fé louca, a humanidade
começa a abandoná-lo.
Logo mais falaremos um pouco dos diversos
tipos de técnica, de suas vicissitudes, de suas
vantagens e suas limitações; mas agora nos convém
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 7
não perder de vista a idéia fundamental do que é a
técnica, porque ela encerra os maiores segredos.
Atos técnicos — dizíamos — não são aquê- les
em que fazemos esforços para satisfazer diretamente
nossas necessidades, sejam estas elementares ou
francamente supérfluas, mas aquêles em que
dedicamos o esforço, primeiro, para inventar e,
depois, para executar um plano de atividade que nos
permita:
1. ° Assegurar a satisfação das
necessidades, evidentemente, elementares.
2. ° Conseguir essa satisfação com o
mínimo esforço. 1
3. ° Criar-nos possibilidades
completamente novas produzindo objetos que não
existem na natureza do homem. Assim, o navegar, o
voar, o falar com o antípoda mediante o telégrafo ou
a radiocomunicação.
Deixando por ora o terceiro ponto, notemos os
dois traços salientes de toda técnica: que diminui, às
vêzes quase elimina, o esforço imposto pela
circunstância e que o consegue reformando esta,
reagindo contra ela e obrigando-a a adotar formas
novas que favorecem ao homem.
Na poupança de esforço que a técnica pro-
porciona podemos incluir, como um de seus com-
ponentes, a segurança. A precaução, a angústia, o
terror que a insegurança provoca são formas do
esforço, da imposição por parte da natureza sôbre o
homem.
Temos, pois, que a técnica é, assim, o esforço
para poupar esforço ou, em outras palavras, é o que
fazemos para evitar por completo, ou em parte, as
8i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

canceiras que a circunstância primària- mente nos


impõe. Nisto se acha tôda gente de acordo; mas é
curioso que somente se entende por uma de suas
faces, a menos interessante, o anverso, e não se
percebe o enigma que seu reverso representa.
Não se cai na conta do surpreendente que é que
o homem se esforce precisamente em poupar- se
esforço? Dir-se-á que a técnica é um esforço menor
com que evitamos um esforço muito maior e,
portanto, uma coisa perfeitamente clara e razoável .
Certo; mas isso não é o enigmático, senão êste outro:
Onde parará êsse esforço poupado e que fica
disponível? A coisa ressalta mais se empregamos
outros vocábulos e dizemos: se com o fazer técnico o
homem fica isento das canceiras impostas pela
natureza, que é o que fará, que canceiras ocuparão
sua vida? Porque não fazer nada é esvaziar a vida, é
não viver; é incompatível com o homem. A questão,
longe de ser fantástica, tem hoje já um comêço de
realidade. Até uma pessoa aguda, certamente, mas
que é somente economista — Keynes — se
formulava esta questão: dentro de pouco — se não
houver retrocesso, entende-se — a técnica permitirá
que o homem não tenha que trabalhar mais que uma
ou duas horas por dia. Pois bem: que fará o resto das
vinte e quatro? De fato, em não escassa medida, essa
situação é já a de hoje: o operário trabalha hoje oito
horas, e, em alguns países, somente cinco dias — e,
ao que parece, êste será o porvir imediato geral:
trabalhar somente quatro dias semanais; que faz esse
operário do resto enorme de seu tempo, do âmbito
oco que fica em sua vida?
Mas o fato de a técnica atual apresentar tão às
claras esta questão não quer dizer que não preexista
desde sempre em tôda técnica, pôs- to que tôda ela
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 9
leva a uma poupança de cancei- ra e não
acidentalmente ou como resultado que sobrevêm ao
ato técnico, senão que êsse afã de poupar esforço é o
que inspira a técnica. A questão, pois, não é
adjacente, senão que pertence à própria essência da
técnica, e esta não se entende se nos contentamos
com confirmar que poupa esforço e não nos
perguntamos em que se emprega o esforço
disponível.
E eis aqui como a meditação sôbre a técnica nos faz topar dentro dela, como
com o caroço num fruto, com o raro mistério do ser do homem. Porque é êste
um ente forçado, se quer existir, a existir na natureza, submerso nela; é um ani-
mal. Zoològicamente, vida significa tudo o que é preciso fazer para sustentar-se
na natureza. Mas o homem ordena-as para reduzir ao mínimo essa vida, para
não ter que fazer o que tem que fazer o animal. No vão que a superação de sua
vida animal deixa, dedica-se o homem a uma série de tarefas não biológicas,
que não lhe são impostas pela natureza, que êle se inventa para si mesmo. E
precisamente a essa vida inventada, inventada como se inventa um romance ou
uma peça de teatro, é ao que o homem chama vida humana, bem-estar. A vida
humana, pois, transcende da realidade natural, não lhe é dada como lhe é dado à
pedra cair e ao animal o repertório rígido de seus atos orgânicos — comer, fugir,
nidificar, etc. — Senão que o homem a faz, e este fazer a própria vida começa
por ser a invenção dela. Como? A vida humana seria então em sua dimensão
específica. . . uma obra de imaginação? Seria o homem uma espécie de
romancista de si mesmo que forja a figura fantástica de um personagem com
seu tipo irreal de ocupações e que para conseguir realizá-lo faz tudo o que faz,
ou seja, é técnico?
VII

EXCURSÕES AO SUBSOLO DA TÉCNICA


MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 1
As respostas que se deram à pergunta — que é
a técnica? — são de uma pavorosa superficialidade.
E o pior do caso é que n-ão se pode atribuir ao acaso.
Essa superficialidade é compartida por quase tôdas
as questões que se referem verdadeiramente ao
humano no homem. E não será possível pôr alguma
clareza nelas se não nos resolvemos a tomá-las no
estrato profundo onde surge todo o propriamente
humano. Enquanto prosseguirmos, ao falar de
assuntos que nos dizem respeito, dando por suposto
que sabemos bem o que é o humano, somente
conseguiremos deixar sempre de lado a verdadeira
questão. E isto acontece com a técnica. Convém
levar em conta todo o radicalismo que deve inspirar
nossa interrogação. Como é que no universo existe
essa coisa tão estranha, êsse fato absoluto que é a
técnica, o fazer técnica o homem? Se intentamos,
com seriedade, aproximar-nos a uma resposta, temos
que resolver-nos a submergir-nos em certas
inevitáveis funduras.E então nos encontramos com
que no universo acontece o seguinte fato: um ente, o
homem, se vê obrigado, se quer existir, a estar em
outro ente, o mundo ou a natureza. Ora, êsse estar
um no outro — o homem no mundo — podia adotar
um dêstes três aspectos:
1. °) Que a natureza oferecesse ao homem
para sua permanência nela puras facilidades. Isto
queria dizer que o ser do homem e do mundo
coincidiam plenamente ou, o que é igual, que o
homem era um ser natural. Assim acontece com a
pedra, com a planta, provavelmente com o animal.
Se assim fôsse, o homem careceria de necessidades,
não notaria falta de nada, não seria indigente. Seus
2i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

desejos não se diferenciariam da satisfação dêsses


mesmos desejos. Não desejaria senão o que existe
no mundo tal e como existe, ou vice-versa, o que êle
desejasse te-lo-ia, como na estória da varinha
mágica. Um ente assim não poderia sentir o mundo
como alguma coisa diferente dêle, pôsto que não lhe
ofereceria resistência. Andar pelo mundo seria o
mesmo que andar por dentro de si mesmo.
2. °) Mas poderia ocorrer o inverso. Que o
mundo não oferecesse ao homem senão puras
dificuldades ou, o que é igual, que o ser do homem e
do mundo fossem totalmente antagônicos . Neste
caso, o homem não poderia alojar-se no mundo, não
poderia estar nêle nem uma fração de segundo. Isso
que chamamos vida humana não existiria e,
portanto, tampouco a técnica.
3. °) A terceira possibilidade é a que efe-
tivamente ocorre: que o homem, ao ter que estar no
mundo, se encontra com que êste é em tôrno de si
mesmo uma intrincada rêde, tanto de facilidades
como de dificuldades. Quase não há coisas nêle que
não sejam em potência um ou outro. A terra é algo
que o sustenta com sua solidez e lhe permite estirar-
se para descansar ou correr quando tem que fugir.
Aquêle que naufraga ou cai de um telhado se dá
perfeitamente conta do favorável que é essa coisa
tão humilde pelo habitual que é a solidez da terra.
Mas a terra é também distância; infelizmente muita
terra o separa da fonte quando está sedento, e às
vêzes a terra se empina; é uma ravina penosa que é
preciso subir. Êste fenômeno fundamental, talvez o
mais fundamental de todos — isto é, que nosso
existir consiste em estar rodeado tanto de facilidades
como de dificuldades — dá seu especial caráter
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 3
ontológico à realidade que chamamos vida humana,
ao ser do homem.
Porque se não encontrasse facilidade alguma,
estar no mundo lhe seria impossível, isto é, que o
homem não existiria e não faria questão. Como
encontra facilidades em que apoiar-se, resulta que
lhe é possível existir. Mas como acha também
dificuldades, essa possibilidade é constantemente
embaraçada, negada, posta em perigo. Daí a
existência do homem, seu estar no mundo, não ser
um passivo estar, pois tem, à força e constantemente,
que lutar contra as dificuldades que se opõem a que
seu ser se aloje nêle. Note-se bem: à pedra lhe é dada
feita sua existência, não tem que lutar para ser o que
é: pedra na paisagem. Mas para o homem existir é ter
que combater incessantemente com as dificuldades
que o contorno lhe oferece; portanto, é ter que fazer-
se em cada momento sua própria existência.
Diríamos, pois, que ao homem lhe é dada a abstrata
possibilidade de existir, mas não lhe é dada a
realidade. Esta tem que conquistá- -la êle, minuto
após minuto: o homem não apenas economicamente,
mas metafisicamente, tem que ganhar a vida por si
mesmo.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 4
E tudo isto — por quê? Evidentemente — não
é senão dizer o mesmo com outras palavras —
porque o ser do homem e o ser da natureza não
coincidem plenamente. Pelo visto, o ser do homem
tem a estranha condição de que em parte resulta afim
com a natureza, mas em outra parte não, que é ao
mesmo tempo natural e extranatural, uma espécie de
centauro ontológico, que meia porção dêle está
imersa, evidentemente, na natureza, mas a outra
parte transcende dela. Dante diria que está nela como
as barcas arrimadas à beira-mar, com meia quilha na
praia e a outra meia na costa. O que tem de natural se
realiza por si mesmo: não lhe é problema . Mas, por
isso, não o sente como seu autêntico ser. Ao
contrário, sua porção extranatural não é,
evidentemente, e sem mais, realizada, já que
consiste, como se sabe, numa mera pretensão de ser,
num projeto de vida. É isto o que sentimos como
nosso verdadeiro ser, o que chamamos nossa
personalidade, nosso eu. Não há-de interpretar-se
essa porção extranatural e antinatural de nosso ser no
sentido do velho espiritualismo. Não me interessam
agora os anjinhos, nem sequer isso que se chamou
espírito, idéia confusa túrgida de mágicos reflexos.Se
os senhores refletirem um pouco acharão que isso
que chamam sua vida não é senão o afã de realizar
um determinado projeto ou programa de existência.
E seu "eu", o de cada qual, não é senão êsse
programa imaginário. Tudo o que fazem os senhores
o fazem a serviço dêsse programa. E se estão os
senhores agora ouvindo- me é porque acreditam, de
um ou de outro modo, que fazer isso lhes serve para
chegar a ser, íntima e socialmente, êsse eu que cada
um dos senhores sente que deve ser, que quer ser. O
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

homem é, pois, antes de mais nada, alguma coisa que


não tem realidade nem corporal nem espiritual; é um
programa como tal: portanto, o que ainda não é, mas
que aspira a ser. Dir-se-á que não pode haver
programa se alguém não o pensa, se não há, portanto,
idéia, mente, alma ou como se lhe queira chamar. Eu
não posso discutir isto a fundo pois teria que
embarcar-me num curso de filosofia. Somente posso
fazer esta observação: ainda que o programa ou
projeto de ser um grande financista tem que ser
pensado numa idéia, "ser" êsse projeto não é ser essa
"idéia". Eu penso sem dificuldade essa idéia e,
contudo, estou bem longe de ser êsse projeto.
Eis aqui a tremenda e ímpar condição do ser
humano, o que faz dêle alguma coisa única no
universo. Advirta-se o aspecto estranho e triste do
caso. Um ente cujo ser consiste, não no que já é, mas
no que ainda não é, um ser que consiste em ainda
não ser. Todo o resto do universo consiste no que já
é. O astro é o que já é, nem mais nem menos. Todo
aquêle cujo modo de ser consiste em ser o que já é e
no qual, portanto, coincide, evidentemente, sua
potencialidade com sua realidade, o que pode ser
com o que, com efeito, já é, chamamos coisa. A coisa
tem seu ser já dado e obtido.
Neste sentido, o homem não é uma coisa mas
uma pretensão, a pretensão de ser isto ou aquilo.
Cada época, cada povo, cada indivíduo modula de
diverso modo a pretensão geral humana.
Agora, penso, compreendem-se bem todos os
têrmos do fenômeno fundamental que é nossa vida.
Existir é para nós achar-nos de pronto tendo que
realizar a pretensão que somos numa determinada
circunstância. Não se nos permite eleger de antemão
o mundo ou circunstância em que temos que viver, já
6i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

que nos encontramos, sem nossa anuência prévia,


submersos num contorno, num mundo que é o de
aqui e agora. Êsse mundo ou circunstância em que
me encontro submerso não é somente a paisagem
que me rodeia, mas também meu corpo e também
minha alma. Eu não sou meu corpo; encontro-me
com êle e com êle tenho que viver, seja são seja
doente, mas também não sou minha alma: encontro-
-me com ela e tenho que usar dela para viver, ainda
que às vêzes me sirva mal porque tem pouca vontade
ou nenhuma memória. Corpo e alma são coisas, e eu
não sou uma coisa, mas um drama, uma luta para
chegar a ser o que tenho que ser. A pretensão ou
programa que somos oprime com seu peculiar perfil
êsse mundo em torno, e êste responde a essa pressão
acei- tando-a ou resistindo-a, isto é, facilitando nossa
pretensão em alguns pontos e dificultando em
outros. •
Agora posso dizer o que antes não se teria entendido
bem. Isso que chamamos natureza, circunstância ou
mundo não é originàriamente senão o puro sistema de
facilidades e dificuldades com que o homem-
programático se encontra. Aquêles três nomes —
natureza, mundo, circunstância — são já
interpretações que o homem dá ao que primàriamente
encontra, que é somente um conjunto de facilidades e
dificuldades. Sobretudo, "natureza" e "mundo" tão
dois conceitos que qualificam aquilo a que se referem
como alguma coisa que está aí, que existe por si,
independentemente do homem. O mesmo acontece
com o conceito "coisa", o qual significa algo que tem
um ser determinado e fixo e que o tem separado do
homem e por si. Mas, repito, tudo isto já é reação
intelectual interpretativa ao que primitivamente
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

achamos em tôrno do nosso eu. E isso que


primitivamente achamos não tem um ser aparte e
independente de nós, porquanto esgota sua
consistência em ser facilidade ou dificuldade,
portanto, no que é com referência à nossa pretensão.
Somente em função desta é alguma coisa facilidade
ou dificuldade. E consoante seja a pretensão que nos
informa, assim serão estas ou as outras, maiores ou
menores, as facilidades e dificuldades que integram o
puro e radical contorno. Assim se explica que o
mundo seja para cada época, e mesmo para cada
homem, alguma coisa diversa. Ao perfil de nosso
pessoal programa, perfil dinâmico que oprime a
circunstância, responde esta com outro perfil
determinado composto de facilidades e dificuldades
peculiares . Evidentemente, não é o mesmo o mundo
para um comerciante que para um poeta: onde êste
tropeça aquêle nada com satisfação; o que a êste
repugna àquele lhe regozija. Está claro que o mundo
de ambos terá muitos elementos comuns: os que
respondem à pretensão genérica que é o homem
enquanto espécie. Mas precisamente porque o ser do
homem não lhe é dado, já que é, como vimos, pura
possibilidade imaginária, a espécie humana é de uma
inesta- bilidade e variabilidade incomparáveis com as
espécies animais. Em suma, que os homens são
enormemente desiguais, contra o que afirmam os
igualitários dos dois últimos séculos e continuam
afirmando os arcaicos do presente.A VIDA COMO
FABRICAÇÃO DE SI MESMA. TÉCNICA E
DESEJOS

Sob esta perspectiva, a vida humana, a exis-


tência do homem aparece consistindo formalmente,
8i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

essencialmente num problema. Para os demais entes


do universo existir não é problema — porque
existência quer dizer efetividade, realização de uma
essência; por exemplo, que "o ser touro" se verifique,
aconteça. Ora, o touro, se existe, existe já sendo
touro. Ao contrário, para o homem existir não é já,
sem mais nem menos, existir como o homem que é,
senão meramente possibilidade disso e esforço para
consegui-lo. Quem dos senhores é, efetivamente, o
que sente que teria que ser, que deveria ser, que anela
ser? Diferentemente, pois, de todo o resto, o homem,
ao existir, tem que fazer-se sua existência, tem que
resolver o problema prático de realizar o programa
em que, verdadeiramente, consiste. Daí nossa vida
ser pura tarefa e inexorável ocupação. A vida de cada
um de nós é alguma coisa que não nos é dada feita,
presenteada, mas alguma coisa que é preciso fazer. A
vida dá muito que fazer; mas, de resto, não é senão
essa tarefa que dá a cada um, e uma tarefa, repito,
não é uma coisa, senão algo ativo, num sentido que
transcende todos os demais. Porque no caso dos
demais sêres se supõe que alguém ou alguma coisa
que já é, atua; mas aqui se trata de que precisamente
para ser é preciso atuar, que não se é senão essa
atuação. O homem, queira ou não, tem que fazer-se a
si mesmo, autofabri- car-se. Esta última expressão
não é de todo inoportuna . Ela sublinha que o
homem, na própria raiz de sua essência, encontra-se,
antes que em qualquer outra, na situação do técnico.
Para o homem viver é, evidentemente e antes de
qualquer coisa, esforçar-se em que tenha o que ainda
não tem; isto é, êle, êle mesmo, aproveitando para
isso o que tem; em suma, é produção. Com isto
quero dizer que a vida não é fundamentalmente
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

como tantos séculos acreditaram: contemplação,


pensamento, teoria. Não; é produção, fabricação, e
somente porque estas o exigem, portanto, depois, e
não antes, é pensamento, teoria, ciência. Viver. . .,
isto é, achar os meios para realizar o programa que
se é. O mundo, a circunstância, se apresenta
evidentemente como primeira matéria e como
possível máquina. Já que para existir tem que estar
no mundo, e êste não realiza por si e sem mais o ser
do homem, já que lhe põe dificuldades, o homem se
resolve a buscar nêle a máquina oculta que encerra
para servir ao homem. A história do pensamento
humano se reduz à série de observações que o
homem fêz para expor à luz, para descobrir essa
possibilidade de máquina que o mundo leva latente
em sua matéria. Daí o invento técnico ser chamado
também descobrimento. E não é, como veremos,
uma causalidade que a técnica por antonomásia, a
plena maturidade da técnica, se iniciasse na altura de
1600; justamente quando em seu pensamento teórico
do mundo chegou o homem a entendê-lo como u'a
máquina. A técnica moderna enlaça-se com Galilei,
Descartes, Huygens; em suma, com os criadores da
interpretação mecânica do universo. Antes se
acreditava que o mundo corporal era um ente
amecânico cujo ser último estava constituído por
podêres espirituais mais ou menos voluntários e
incoercíveis. O mundo, como puro mecanismo, é, ao
contrário, a máquina das máquinas.
É, pois, um êrro fundamental acreditar que o
homem não é senão um animal causalmente dotado
com talento técnico ou, em outras palavras, que se a
um animal lhe agregássemos mà- gicamente o dom
técnico, teríamos sem mais o homem. A verdade é o
10 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

contrário, porque o homem tem uma tarefa bem


diversa que a do animal, uma tarefa extranatural, não
pode dedicar suas energias como aquêle para
satisfazer suas necessidades elementares, já que,
evidentemente, tem que apagá-las nessa ordem para
poder prover-se com elas na improvável faina de rea-
lizar seu ser no mundo.
Eis aqui por que o homem começa quando
começa a técnica. A largura, menor ou maior, que
esta lhe abre na natureza é o alvéolo onde pode alojar
seu excêntrico ser. Por isso insistia ontem em que o
sentido e a causa da técnica estão fora dela; isto é: no
emprêgo que dá o homem a suas energias
disponíveis, libertadas por aquela. A missão inicial
da técnica é essa; dar franquia ao homem para poder
dedicar-se a ser ele mesmo.
Os antigos dividiam a vida em duas zonas:
uma, que chamavam otium, o ócio, que não é a
negação do fazer, mas ocupar-se em ser o humano do
homem, que eles interpretavam como mando,
organização, trato social, ciências, artes. A outra
zona, cheia de esforço para satisfazer as necessidades
elementares, tudo o que fazia possível aquêle otium,
chamavam-no nec-otium, assinalando perfeitamente
o caráter negativo que tem para o homem.
Ao invés de viver ao acaso e dissipar seu
esforço, necessita êste atuar de acordo com plano
para obter segurança em seu choque com as exi-
gências naturais e dominá-las com um máximo de
rendimento. É isto seu fazer técnico diante do fazer
como Deus queira do animal, do pássaro do bom
Deus, por exemplo.
Tôdas as atividades humanas que especial-
mente receberam ou merecem o nome de técnicas
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

não são senão especificações, concreções dêsse


caráter geral de autofabricação próprio de nosso
viver.
Se nossa existência não fosse já desde um
princípio a forçosidade de construir com o material
da natureza a pretensão extranatural que é o homem,
nenhuma dessas técnicas existiria. O fato absoluto, o
puro fenômeno do universo que é a técnica, somente
pode dar-se nessa estranha, patética, dramática
combinação metafísica de que dois entes
heterogêneos — o homem e o mundo — se vejam
obrigados a unificar-se, de modo que um dêles, o
homem, consiga inserir seu ser extramundano no
outro, que é precisamente o mundo. Êsse problema,
quase de engenheiro, é a existência humana.
E, contudo, ou por isso mesmo, a técnica não é
em rigor o primeiro. Ela se engenha e executa a
tarefa, que é a vida; consegue, claro está, numa ou
noutra limitada medida, fazer que o programa
humano se realize. Ela, porém, por si não define o
programa; quero dizer que à técnica lhe é prefixada a
finalidade que ela deve conseguir. O programa vital é
pré-técnico. O técnico ou a capacidade técnica do
homem tem como missão inventar os procedimentos
mais simples e seguros para conseguir as
necessidades do homem. Mas estas, como vimos, são
também uma invenção; são o que em cada época,
povo ou pessoa o homem pretende ser; há, pois, uma
primeira invenção pré-técnica, a invenção por ex-
celência, que é o desejo original.
Não se creia que é desejar faina tão fácil.
Observem os senhores a específica angústia que
experimenta o nôvo rico. Tem nas mãos a pos-
sibilidade de obter a efetivação de seus desejos. Em
12 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

seu íntimo sente que não deseja nada, que por si


mesmo é incapaz de orientar seu apetite e decidi-lo
entre as inumeráveis coisas que o contorno lhe
oferece. Por isso busca um intermediário para que
lhe oriente, e o encontra nos desejos predominantes
dos demais. Eis aqui a razão pela qual o primeiro que
o nôvo rico compra para si é um automóvel, uma
pianola e um fonógrafo. Encarregou aos outros que
desejem por êle. Como há o tópico do pensamento, o
qual consiste na idéia que não é pensada origi-
nariamente pelo que a pensa, mas tão-sòmente por
êle repetida, cegamente, maquinalmente reiterada, há
também um desejo tópico, que é antes a ficção e o
mero gesto de desejar.
Isto acontece, pois, mesmo na órbita do desejar
que se refere ao que já há aí, às coisas que já temos
em nosso horizonte antes de desejá-las. Imagine-se
até que ponto será difícil o desejo propriamente
criador, o que postula o inexistente, o que antecipa o
que ainda é irreal. Em suma, os desejos referentes a
coisas se movem sempre dentro do perfil do homem
que desejamos ser. É êste, portanto, o desejo
fundamental, fonte de todos os demais. E quando
alguém é incapaz de desejar-se a si mesmo, porque
não tem claro um "si mesmo" que realizar, é evidente
que não tem senão pseudo-desejos, espectros de
apetites sem sinceridade nem vigor.
Talvez a doença básica de nosso tempo seja
uma crise dos desejos e por isso tôda a fabulosa
potencialidade de nossa técnica parece como se não
nos servisse de nada. Hoje a coisa começa a fazer-se
grave fato: "A Europa padece de uma extenuação em
sua faculdade de desejar" (Espanha invertebrada) . E
essa obnubilação do programa vital trará consigo
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

uma detenção ou retrocesso da técnica que não


saberá bem a quem, a que servir. Porque esta é a
incrível situação a que chegamos e que confirma a
interpretação aqui sustentada: a herdade, isto é, o
repertório com que hoje conta o homem para viver,
não somente é incomparavelmente superior ao que
pvinça gozou (as forças criadas na técnica equivalem
a 2 500 milhões de escravos, isto é, dois servidores
para cada civilizado), já que temos a clara
consciência de que são superabundantes, e, contudo,
a mágua é enorme, e é que o homem atual não sabe o
que ser, falta-lhe imaginação para inventar o
argumento de sua própria vida.
Por quê? Ah!, isso não pertence a êste ensaio.
Somente nos perguntaremos: Que é o homem, ou que
espécie de homens são os especialistas do programa
vital? O poeta, o filósofo, o fundador de religião, o
político, o descobridor de valores? Não o decidamos;
baste com advertir que o técnico os supõe e que isto
explica uma diferença de posição que sempre houve
e contra a qual é inútil protestar.
Talvez tenha que ver com isto o estranhíssimo
fato de que a técnica é quase sempre anônima, ou
pelo menos os criadores dela não gozem da fama
nominativa que acompanhou sempre àqueles outros
homens. Um dos inventos mais formidáveis dos
últimos sessenta anos foi o motor de explosão. Pois
bem, quantos dos senhores, que não sejam por seu
ofício técnicos, lembram neste momento a lista de
nomes egrégios que levaram seus inventores?
Daí também a enorme improbabilidade de que
se constitua uma "tecnocracia". Por definição, o
técnico não pode mandar, dirigir em última instância.
14 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Seu papel é magnífico, venerável, mas


irremediàvelmente de segundo plano.
Resumamos:
A reforma da natureza ou técnica, como tôda
mudança ou mutação, é um movimento com seus
dois termos, a quo e ad quem. O têrmo a quo é a
natureza conforme está aí. Para modificá-la é preciso
fixar o outro têrmo, no qual se conformará. Êste
têrmo ad quem é o programa vital do homem. Como
chamaríamos a obtenção plena dêste? Evidentemente,
bem-estar do homem, felicidade. Eis aqui que com
isso fechamos o circuito de tôdas as considerações
feitas nas anteriores lições
.VI
O DESTINO EXTRANATURAL DO HOMEM. —
PROGRAMAS DE SER QUE DIRIGIRAM AO
HOMEM. — A ORIGEM DO ESTADO TIBETANO

Nas lições anteriores procurei sugerir quais são


os supostos que têm que dar-se no universo para que
nêle apareça isso que chamamos técnica . Dito em
outra forma, a técnica implica tudo isso que
enunciamos: que há um ente cujo ser consiste, antes
de tudo, no que ainda não é, num mero projeto,
pretensão ou programa de ser; que, portanto, êsse
ente tem que desgastar-se na realização de si mesmo.
Não pode obtê-la senão com elementos reais, como o
artista não pode realizar a estátua imaginada se não
tem uma sólida matéria em que plasmá-la. A matéria,
o elemento real onde e com o qual o homem "pode"
chegar a ser de fato o que é em projeto, é o mundo.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

Êste lhe oferece a possibilidade de existir e, ao


mesmo tempo, grandes dificuldades para isso. Em tal
disposição dos têrmos a vida aparece constituída
como um problema quase de engenharia: aproveitar
as facilidades que o mundo oferece para vencer as
dificuldades que se opõem à realidade de nosso
programa. Nesta condição fundamental de nossa vida
é onde se insere o fato da técnica.
Dito assim, em fórmula abstrata, resulta talvez
difícil de compreender. Porque êsse programa
extranatural que afirmamos ser o homem, e para
servir ao qual se desdobra a técnica, soa a alguma
coisa mística e inconcretável. Alguma clareza,
todavia, trouxe ao assunto a rápida enumeração que
fiz de alguns entre os muitos programas vitais em
que o homem historicamente concretou seu ser: o
bodhisatva hindu, o homem agonal da Grécia
aristocrática do século VI, o bom republicano de
Roma e o estóico da época do Império, o asceta
medieval, o hidalgo do século XVI, o homme de
bonne compagnie de França do século XVII, a
schóne Seele dos fins do século XVIII na Alemanha
ou o Dichter und Denker dos princípios do século
XIX, o gentle- man de 1850 na Inglaterra, etc.
Não é lícito deixar-me levar ao sugestivo
trabalho de ir descrevendo o perfil pressionador do
mundo que é cada um dêstes modos de ser do
homem.
Ünicamente farei notar alguma coisa que me
parece de tôda evidência. O povo no qual predomina
a idéia de que o verdadeiro ser do homem é ser
bodhisatva não pode criar uma técnica igual àquele
outro no qual se aspira a ser gentleman. Ser
bodhisatva é, evidentemente, crer que existir neste
16 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

mundo de meras aparências é precisamente não


existir de verdade. A verdadeira existência consiste
para êle em não ser indivíduo, pedaço particular do
universo, mas fundir-se no Todo e desaparecer nêle.
O bodhi- satva, pois, aspira a não viver ou a viver o
menos possível. Reduzirá sua alimentação ao
mínimo; pior para a técnica da alimentação!
Procurará a imobilidade máxima, para recolher-se na
meditação, único veículo que permite ao homem
chegar ao êxtase, isto é, a pôr-se em vida fora dêste
mundo. Não é verossímil que invente o automóvel
êste homem que não quer mover-se. Ao contrário,
suscitará tôdas essas técnicas tão alheias a nós
europeus como são as dos faquires e iogas, técnicas
do êxtase, técnicas que não produzem reformas na
natureza material, mas no corpo e na psique do
homem. Por exemplo, a técnica da insensibilidade e
a catalepsia, da concentração, etc. Isto me chama a
atenção de que a técnica é função do variável
programa humano. Por outro lado, esclarece-nos
também de tudo aquilo que o homem, numa de suas
dimensões, tem um ser extranatural e que antes não
conseguíamos intuií.
É evidente que existir como meditador e como
extático, viver precisamente como não vivente, em
constante intuito de anular o mundo e a própria
potência, não é um modo natural de existir. Ser
bodhisatva é, em princípio, não comer, não mover-
se, não sexualizar, não sentir prazer nem dor; ser, em
conseqüência, a negação vivente da natureza. Por
isso é um exemplo drástico da extranaturalidade do
ser humano e do difícil que é sua realização na
natureza. Isso requer uma pré-adaptação desta que
deixe espaço para uma qualidade de ser que tão
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

radicalmente a contradiz. Mas a explicação


naturalista do humano saltará aqui sustentando que a
relação entre o projeto de ser e a técnica é inversa da
que eu proponho, a saber: que é o projeto quem sus-
cita a técnica, a qual, por sua vez, reforma a na-
tureza. Exatamente o contrário, dir-se-á: na índia o
clima e o solo facilitam tão enormemente a vida que
o homem quase não necessita mover- se nem
alimentar-se. É, pois, o clima e o solo os fatores que
preformam êsse tipo de vida búdica . Com isto, pela
primeira vez, quem sabe, lhes soará agradàvelmente,
neste ensaio, aos homens de ciência que me ouvem.
Mas agora não posso deixar de confundir ao
naturalista imaginário que me objeta ainda aquela
pequeníssima satisfação. Não: existe, sem dúvida,
uma relação entre clima e solo de um lado e
programa de humanidade de outro, mas é bem
distinta da que a anterior explicação supõe. Não irei
expor agora qual é, a meu ver; pela primeira vez irei
excusar-me de raciocinar e, em seu lugar, irei opor
ao pretendido fato que o presumível objetante
apresentou, simplesmente, outro fato positivo que
atira aos trastes aquela explicação .
Se são o clima e a terra da índia os fatores que
explicam o budismo da índia, não se compreende
porque hoje a região budista por excelência é o Tibet.
Porque seu clima e sua terra são a antítese da região
do Ganges ou do Ceilão. Os altiplanos atrás do
Himalaia são um dos lugares mais ásperos e crus do
planeta. Ferozes vendavais dominam aquelas
planícies imensas, aquê- les amplíssimos vales.
Tormentas de gelos os castigam durante grande parte
do ano. Por isso não havia ali senão hordas
trasumantes, inquie- tas e revoltadas, em contínua
18 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

agressão umas com as outras. Guarneciam-se em suas


tendas, feitas com a pele dos grandes ovinos altáicos.
Nunca se pôde ali constituir um Estado. Eis aqui que
um belo dia transpuseram os sublimes portos do
Himalaia alguns missionários budistas e converteram
à sua religião algumas daquelas hordas. Mas o
budismo é, mais essencialmente que nenhuma outra
religião, faina de meditação. No budismo não há um
deus que se encarregue de salvar ao homem. É o
homem que tem que salvar-se a si mesmo por meio
da meditação, da oração. Como meditar na
crudelíssima tempérie tibetana? Foi preciso construir
conventos de pedra e cal, os primeiros edifícios que
surgiram por ali. Não, pois, para simplesmente viver
surge no Ti- bet a casa, mas para orar. Mas ocorreu
que nas contendas tradicionais daquele país as hordas
budistas se refugiaram nos conventos, que adquiriram
assim um papel guerreiro, proporcionando a seus
possuidores superioridade sôbre os não budistas. Em
suma, que o convento, fazendo de castelo, criou o
Estado tibetano. Aqui não é o clima e a terra os
fatores que engendram o budismo, mas, ao contrário,
o budismo como necessidade humana, isto é,
desnecessária, quem modifica o clima e terra
mediante a técnica da construção
.Sirva o caso narrado como um bom exemplo
da solidariedade que existe entre as técnicas; quero
dizer da facilidade com que um artefato ideado para
servir uma determinada finalidade se desloca para
outras utilizações. Mais acima vimos como o arco
primitivo, provavelmente musical, se converte em
arma de caça e luta. Parecido é o caso de Tirteu,
aquêle ridículo general que os atenienses
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

emprestaram aos espartanos. Velho e coxo, era,


ainda, pelo estilo antiquado de suas elegias, o
boboca da juventude vanguardista na Ática. Mas
chega a Esparta e a partir de então os desmoralizados
lacedemônios começam a ganhar tôdas as batalhas.
Por quê? Pois por uma simples razão técnica de
tática. As elegias de Tirteu estavam compostas num
ritmo arcaico, que, por ser bastante claro e
pronunciado, facilitava a unidade de marcha e
movimento na falange . Eis aqui uma técnica poética
que se transforma em ingrediente criador dentro da
técnica militar .
Mas não nos transviemos. Procurávamos
brevemente confrontar a situação do homem quando
é, como projeto, bodhisatva, com a do homem
quando se propõe ser gentleman. A oposição é
radical. Basta para percebê-lo que insinuemos alguns
traços constituintes do gentleman. Convém antes
notar que o gentleman não é o aristocrata. Sem
dúvida foram os aristocratas in- glêses os que
principalmente idearam êste modo de ser homem,
mas inspirados pelo que diferencia o aristocrata
inglês de tôdas as demais classes de nobres.
Enquanto as demais são fechadas como classes, e
inclusive fechadas quanto ao tipo de ocupações a
que se dignavam dedicar-se — guerra, política,
diplomacia, desporto e alta direção da economia
agrícola — o aristocrata inglês, desde o século XVI,
aceita a luta no terreno econômico do comércio, da
indústria e das carreiras liberais. Como a história
consistiria desde então principalmente nestas fainas,
foi a única que se salvou, mantendo-se no jôgo com
plena eficiência . Daí que ao chegar o século XIX
cria-se um protótipo de existência — o gentleman —
20 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

que vale para todo o mundo. O burguês e o operário


podem, em certa medida, ser gentleman; e mais,
aconteça o que acontecer no futuro, talvez imediato,
restará como uma das maravilhas da história o fato
de que hoje até o operário mais modesto da
Inglaterra é, em sua órbita, um gentleman. Êsse
modo de ser homem não implica, pois,
aristocratismo. O aristocrata continental dos últimos
quatro séculos é, antes de tudo, herdeiro: ü homem
que herdou grandes meios de vida, mas não teve que
lutar nesta para conquistá-los. O gentleman como tal
não é o herdeiro; ao contrário, supõe que o homem
tem que lutar na vida, que exercer todas as
profissões e ofícios, sobretudo os práticos (o
gentleman não é intelectual), e precisamente nessa
luta tem que ser gentleman. O pólo oposto ao
gentleman é o gentilhomme de Versailles ou o
Junker alemão.
O TIPO "GENTLEMAN". — SUAS EXIGÊNCIAS
TÉCNICAS. — O "GENTLEMAN" E O
"HIDALGO"

Mas, que é ser gentleman? O caminho mais rápido


para compreendê-lo — já que necessitamos poupar
ao extremo o número de palavras — se nos oferece
se, exagerando as coisas, dizemos: o comportamento
que o homem costuma adotar durante os breves
momentos em que as trabalheiras e apertos da vida
deixam de afligi- -lo e se dedica, para distrair-se, a
um jogo aplicado ao resto da vida, isto é, ao sério, ao
penoso da vida; isso é o gentleman. Aqui se vê
também em forma cortante, pelo paradoxal, em que
sentido o programa vital é extranatural. Porque os
jogos e os modos de comportamento que neles regem
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

são pura invenção diante do tipo de vida que a


natureza dá por si. Aqui, ainda dentro da própria vida
humana, invertem-se os têrmos e se propõe que o
homem seja em sua existência forçada, de luta com o
meio, conforme se encontra no recanto irreal e
puramente inventado de seus jogos e desportos
.Ora, quando o homem se dedica a brincar
costuma ser porque se sente seguro no que concerne
às urgências elementares do viver. O jogo é um luxo
vital e supõe prévio domínio sobre as zonas
inferiores da existência, que estas não oprimem, que
o ânimo, sentindo-se supérfluo de meios, se mova
em tão ampla margem de serenidade, de calma, sem
o atordoamento e feio atropelar-se a que leva uma
vida escassa, em que tudo é terrível problema. Um
ânimo assim se compraz em sua própria elasticidade
e se dá o luxo de jogar limpo, o fair play de ser justo,
de defender seus direitos, mas respeitando os do pró-
ximo, de não mentir. Mentir no jogo é falsificar o
jogo, e, portanto, não jogar. Mesmo assim, o jôgo é
um esforço, mas que não sendo provocado pelo
premente utilitarismo que inspira o esforço imposto
por uma circunstância do trabalho, vai repousando
em si mesmo sem êsse desassossêgo que infiltra no
trabalho a necessidade de conseguir a todo custo seu
fim.
Daí as maneiras de gentleman: seu espírito de justiça,
sua veracidade, o pleno domínio de si fundado no
prévio domínio do que lhe rodeia, a clara consciência
do que é seu direito pessoal diante dos demais e dos
demais diante dêle; isto é, de seus deveres. Para êle
não tem sentido a trapaça. O que se faz é preciso
fazê-lo bem e não preocupar-se demais. O produto
22 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

industrial inglês se caracteriza por estas qualidades: é


tudo nêle bom, sólido, acabado, a matéria-prima e a
mão-de-obra. Não está feito para vendê-lo de
qualquer jeito, é o contrário da pacotilha. É sabido
que o fabricante inglês não se amoldava, como
depois o alemão, aos gostos e caprichosas exigências
dos clientes, mas, ao contrário, esperava com grande
pachorra a que o cliente se acomodasse a seu
produto. Não fazia quase propaganda, que é sempre
falsidade, jôgo sujo e retórica. O bom pano na arca se
vende. E o mesmo em política: nada de frases, farsas,
provocação vil de contágios demagógicos — nada de
intolerância — poucas leis, porque a lei uma vez
escrita se converte no império de puras palavras, que,
como não se podem literalmente cumprir, obriga à
indecência governamental que falseia sua própria lei.
Um povo de gentleman não necessita constituição;
por isso, em rigor, a Inglaterra vem se comportando
perfeitamente bem sem ela, etc
.Como se vê, o gentleman, em oposição ao
bodhisatva, quer viver com intensidade neste mundo
e ser o mais indivíduo que possa, centrar- -se em si
mesmo e nutrir-se de uma sensação de independência
diante de tudo e de todos. No céu não tem sentido ser
gentleman, porque ali a própria existência seria
efetivamente a delícia de um jôgo, e o gentleman ao
que aspira é ser um bom jogador na aspereza
mundanal, no mais rude da rude realidade. Daí que o
elemento principal e, por assim dizer, a atmosfera do
ser gentleman reside numa sensação básica de vital
folgança, de domínio superabundante sobre a
circunstância. Se esta afoga, não é possível educar-se
para a gentlemanerie. Por isto, êste homem que
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

aspira a fazer da existência um jôgo e um desporto é


o contrário de um iluso; precisamente porque quer
isso sabe que a vida é coisa dura, séria e difícil. Por
isso se ocupará a fundo em assegurar-se êsse
domínio sôbre a circunstância — domínio sôbre a
matéria — e sô- bre os homens. Daí ter sido o grande
técnico e o grande político. Seu afã de ser indivíduo
e de dar a seu destino mundanal a graça de um jôgo
lhe fêz sentir a necessidade de separar-se até
fisicamente dos demais e das coisas e atender ao
cuidado de seu corpo enobrecendo suas funções mais
humildes.
O asseio, a mudança de camisa, o banho —
desde os romanos, no Ocidente, ninguém se lavava
— serão coisas que o gentleman pratica com grande
formalidade. Seja-me perdoado lembrar que o water-
closet nos vem da Inglaterra. Um homem de módulo
bastante intelectual jamais teria ideado o water-
closet, pois desprezava seu corpo. O gentleman,
repito, não é intelectual . Busca o decorum em tôda
sua vida: alma limpa e corpo limpo.
Mas, está claro, tudo isto supõe riqueza; o ideal
do gentleman levou, com efeito, a criar uma enorme
riqueza e, ao mesmo tempo, a supôs. Suas virtudes
somente podem respirar e abrir suas asas numa
ampla margem de poderio econômico. E,
efetivamente, não se conseguiu de fato o tipo de
gentleman até meados do século último, quando o
inglês gozava de uma riqueza formidável. O operário
inglês pode, em alguma medida, ser gentleman
porque ganha mais que o burguês médio de outros
países.
Seria de grande interêsse que alguém bem
dotado e que de antigo possua intimidade com as
24 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

coisas inglêsas se ocupasse de estudar qual é o


estado em que hoje se encontra o sistema de normas
vitais que chamamos gentleman. Nos últimos vinte
anos a situação econômica do homem inglês mudou:
hoje é muito menos rico que no comêço do século.
Cabe ser pobre e, "não obstante", ser inglês? Podem
subsistir suas virtudes características num âmbito de
escassez?
Ouvi que precisamente nas classes superiores
inglêsas se nota a decadência do tipo gentleman,
coincidindo com o descenso das técnicas específicas
do homem britânico e com a atroz míngua das
fortunas aristocráticas. Mas não garanto ao leitor a
exatidão destas notícias. A incapacidade para
perceber com precisão os fenômenos sociais que
padecem ainda as pessoas na aparência mais
inteligentes é incalculável.
Seja como fôr, é preciso ir pensando num tipo
exemplar de vida que conserve o melhor do
gentleman e seja, ao mesmo tempo, compatível com
a pobreza que inexoravelmente ameaça a nosso
planêta. Nos ensaios mentais que para construir essa
nova figura execute o leitor surgirá inevitavelmente,
como têrmo de comparação, outro perfil histórico,
em alguns traços o mais próximo ao gentleman e que,
não obstante, leva em si a condição de florescer em
terra de pobreza. Refiro-me ao "hidalgo". Sua
diferença mais grave do gentleman consiste em que o
hidalgo não trabalha, reduz ao extremo suas
necessidades materiais e, em conseqüência, não cria
técnicas. Vive alojado na miséria como essas plantas
do deserto que sabem vegetar sem umidade. Mas é
não menos indiscutível que soube dar a essas terríveis
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

condições de existência uma solução digna. Pela


dimensão de dignidade se enlaça com o gentleman,
seu irmão mais afortunado
,
VIII

AS COISAS E SEU "SER". — A PRÉ-COISA. — O


HOMEM, O ANIMAL E OS INSTRUMENTOS. —
A EVOLUÇÃO DA TÉCNICA

Gasteixêste pouco de tempo em desenvolver,


ainda que brevissimamente, os anteriores exemplos,
movido pelo desejo de que não ficasse abstrato e
confuso na mente dos senhores o que seja êsse
programa, êsse ser extranatural do homem, em
realizar o que consiste nossa vida e, por outro lado,
mostrar, ainda que seja bastante vagamente, certa
funcionalidade entre o volume ou direção da técnica
e o modo de ser homem que se escolheu. Claro está
que todo êste problema da vida, do ser do homem,
tem uma última dimensão estritamente fisolófica,
que eu procurei evitar neste ensaio. Urgia-me nêle
sublinhar aquêles supostos ou implicações que o fato
da técnica contém e que costumam passar
desapercebidos, não obstante constituir o mais
essencial na essência da técnica. Porque uma coisa é,
antes de tudo, a série de condições que a fazem
possível — Kant dizia "condições de sua
possibilidade" e, mais sóbria e claramente, Leibniz
seus "ingredientes", seus "requisitos". E é curioso
observar que de ordinário êsses mais autênticos
ingredientes ou requisitos de uma coisa são os que
nos passam inadvertidos, os que deixamos de lado,
28 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

como se não fossem o que são: o ser mais profundo


da coisa. Com quase tôda segurança alguns dos
senhores, que pertencem a um tipo de ouvintes cuja
psicologia não quero fazer agora, para os quais ouvir
é ir buscar o que êles já sabem, seja
pormenorizadamente, seja em vaga aproximação, ao
invés de, ao contrário, já que decidiram ouvir, abrir-
se sem mais ao que venha, quanto mais imprevisto,
melhor; ês- ses, digo, terão pensado: Bem, mas isso
não é a técnica, eu não vejo aí a técnica em sua
realidade, que é funcionando. Não se adverte que,
com efeito, para responder à pergunta: Que é tal
coisa?, o que fazemos é desfazê-la, precisamente
recorrer de sua forma, tal e como está aí funcio-
nando, a seus ingredientes, que procuramos isolar e
definir. E está claro que, sôlto, cada um dos
ingredientes não é a coisa: esta é o resultado de seus
ingredientes, e para que esteja aí funcionando é
preciso que os ingredientes desapareçam de nossa
vista como tais e soltos. Para que vejamos água é
preciso que desapareçam diante de nós o hidrogênio
e o oxigênio. A definição de uma coisa, ao inumerar
seus ingredientes, seus supostos, o que ela implica se
há-de ser, se converte, portanto, em alguma coisa
assim como a pré-coisa. Pois essa pré-coisa é o ser
da coisa, e é o que é preciso buscar, porque esta já
está aí: não é preciso buscá-la. Ao contrário, o ser e a
definição, a pré-coisa, nos mostra a coisa em statu
nascendi, e somente se conhece bem o que, num e
noutro sentido, se vê nascer.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

Os supostos por mim sublinhados até aqui não


são, certamente, os únicos, mas são os mais
fundamentais; e por isso mesmo os mais ocultos e,
em conseqüência, os que costumam passar mais
desapercebidos.
Ao contrário, a tôda gente lhe ocorre perceber
que se o homem não tivesse inteligência capaz de
descobrir novas relações entre as coisas que o
rodeiam, não inventaria instrumentos nem métodos
vantajosos para satisfazer suas necessidades . Pelo
fato disto ser óbvio, não urgia di- zê-lo. É tão óbvio
que se passa por ele e se chega a um erro: em
acreditar que quando um ente possui uma certa
espécie de atividade basta o fato de que a possui para
explicar que a exercite . Apesar de que com bastante
freqüência observamos homens que têm olhos para
ver e que, não obstante, não vêem o que lhes passa
pela frente, graças, simplesmente, a que estão absor-
tos meditando alguma coisa. Ainda que possam ver,
não vêem; não exercem esta atividade, pois não lhes
interessa o que acontece diante dêles e, ao contrário,
interessa-lhes o que ocorre em seu íntimo. Existem
aquêles que têm talento para matemáticas, mas não o
exercem porque não lhes interessa.
Não basta, pois, poder fazer alguma coisa para
que o façamos, nem basta que o homem possua
inteligência técnica para que a técnica exista. A
inteligência técnica é uma capacidade, mas a técnica
é o exercício efetivo dessa capacidade, que
perfeitamente podia ficar em disponibilidade. E a
30 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

questão importante não é apontar se o homem tem


tal ou qual atitude para a técnica, senão por que se dá
o fato desta, e isso somente se faz inteligível quando
se descobre que o homem, queira ou não, tem que
ser técnico, sejam melhores ou piores seus dotes
para isso. E isso é o que procurei fazer nas lições
anteriores.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

É bastante óbvio, repito, falar da inteligência


enquanto se fala da técnica, e com excessiva
celeridade atribuir àquela a distância entre o homem
e o animal. Não se pode hoje com a mesma tranqüila
convicção que há um século definir ao homem como
faz Franklin, chamando-o animal instrumentificum,
animal tools making. Não somente nos famosos
estudos de Kohler sôbre os chimpanzés, mas em
outras muitas províncias da psicologia animal
aparece mais ou menos pro- blemàticamente a
capacidade do animal para produzir instrumentos
elementares. O importante em tôdas estas
observações é notar que a inteligência estritamente
requerida para a invenção do instrumento parece
existir nêle. A insuficiência, o que com efeito faz
impossível ao animal chegar com eficaz plenitude à
posse do instrumento não está, pois, na inteligência
sensu stricto, mas em outro lado de sua condição.
Assim Kohler mostra que o essencialmente defei-
tuoso do chimpanzé é a memória, sua incapacidade
de conservar o que pouco antes lhe ocorrera e,
conseqüentemente, a escassíssima matéria que
oferece à sua inteligência para a combinação
criadora.Contudo, a diferença decisiva entre o ani-
mal e o homem não está tanto na primária que se
encontra comparando seus mecanismos psíquicos,
mas nos resultados que esta diferença primária traz
consigo e que dão à existência animal uma estrutura
completamente distinta da humana. Se o animal tem
pouca imaginação será incapaz de formar-se um
2i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

projeto de vida distinto da mera reiteração do que


fêz até o momento. Basta isto para diferenciar
radicalmente a realidade vital de um e de outro ente.
Mas se a vida não é realização de um projeto, a
inteligência se converte numa função puramente
mecânica, sem disciplina nem orientação. Olvida-se
demasiado que a inteligência, por mais vigorosa que
seja, não pode tirar de si mesma sua própria direção;
não pode, portanto, chegar a verdadeiros
descobrimentos técnicos. Ela, por si, não sabe quais,
entre as infinitas coisas que se podem "inventar",
convém preferir, e se perde em suas infinitas
possibilidades. Somente numa entidade onde a
inteligência funciona a serviço de uma imaginação,
não técnica, mas criadora de projetos vitais, pode
constituir-se a capacidade técnica .
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

O dito até aqui, entre suas múltiplas intenções,


levava uma: a de reagir contra uma tendência, tão
espontânea como excessiva, reinante em nosso
tempo, em crer que, afinal de contas, não há
verdadeiramente senão uma técnica, a atual euro-
norte-americana, e que todo o resto foi somente torpe
rudimento e balbuciação para ela. Eu necessitava
contra-restar esta tendência e submergir a técnica
atual como uma de tantas no panorama vastíssimo e
multiforme das humanas técnicas, relativizando
assim seu sentido e mostrando como a cada projeto e
módulo de humanidade corresponde a sua. Mas, uma
vez feito isto, está claro que necessito destacar o que
a técnica atual tem de peculiar, o que nela dá lugar
precisamente a essa miragem que, com algum viso
de verdade, no-la apresenta como a técnica por
antonomásia. Por muitas razões, com efeito, a
técnica chegou hoje a uma colocação no sistema de
fatores integrantes da vida humana que jamais tivera.
A importância que sempre lhe correspondeu, mesmo
aparte dos raciocínios em que procurei demonstrá-la,
transpareceria sem mais no simples fato de que,
quando o historiador toma ante seus olhos vastos
âmbitos de tempo, encontra-se com que não pode
dominá-los se não é aludindo à peculiaridade de sua
técnica. A idade mais primitiva da humanidade, que
incertamente, como entre duas luzes, consegue en-
trever-se, se chama a idade aurorai da pedra ou
eolítica — depois é a idade da pedra velha e im-
poluta, paleolítica, a idade do bronze, etc. Pois bem,
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

não seria fora de propósito situar nessa lista nosso


tempo, qualificando-o como a idade, não desta ou de
outra técnica, mas simplesmente da "técnica" como
tal. Que aconteceu na evolução da capacidade
técnica do homem para que chegue a uma época em
que, apesar de ter sido êle sempre técnico, mereça
com alguma congruência ser fichada formalmente
pela técnica? Evidentemente, isto não pôde acontecer
senão porque a relação entre o homem e a técnica se
elevou a uma potência peculiaríssima que convém
precisar, e essa elevação, por sua vez, somente pôde
produzir-se porque a própria função técnica se tenha
modificado em algum sentido bastante
substancial.Para aquilatarmos, pois, o que é nossa
técnica, convém de plano destacar sua peculiar si-
lhueta sôbre o fundo de todo o passado técnico do
homem; em suma, convém desenhar, ainda que seja
sumarissimamente, as grandes mudanças que a
própria função técnica sofreu ou, dito ainda com
outras palavras, seria oportuno definir os grandes
estádios na evolução da técnica. Deste modo,
fazendo alguns cortes no passado ou pulando alguns
elos, êsse pretérito confuso adquirirá perspectiva e
movimento; deixar-nos-á ver de onde, de que formas
veio vindo e para onde, a que formas foi chegando a
técnica.
OS ESTÁDIOS DA TÉCNICA

O assunto é difícil e eu vacilei não pouco antes


de decidir-me por um ou outro princípio seguindo ao
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

qual pudéssemos distinguir êsses estádios.


Evidentemente é preciso rejeitar o que fora mais
óbvio: segmentar a evolução fundan- do-se no
aparecimento de tal ou qual invento que se considera
muito importante e característico. Tudo o que venho
dizendo neste ensaio conspira à correção do êrro
tópico que acredita que o importante na técnica é
êste ou aquêle invento. Qual é o de maior calibre que
se possa citar em comparação com a mole enorme da
técnica tôda numa época? O que esta seja em seu
modo geral é o verdadeiramente importante, o que
pode significar uma mudança ou avanço
substantivos. Não existe nenhum invento que seja,
em última instância, medido com as dimensões
gigantes da evolução integral. Ademais já vimos
como técnicas magníficas se perdem depois de
obtidas ou desaparecem definitivamente — entende-
se, até agora — ou tiveram que ser redescobertas. De
resto, não basta que se invente alguma coisa em certa
data e lugar para que o invento represente sua
verdadeira significação técnica. A pólvora e a
imprensa, dois dos deco- brimentos que parecem
mais importantes, existiam na China séculos antes
sem que servissem para nada apreciável. Somente no
século XV e na Europa, provàvelmente na
Lombardia, se faz da pólvora uma potência histórica,
e na Alemanha, pela mesma época, a imprensa. Em
vista disso, quando diremos que se inventaram
ambas as técnicas? Evidentemente, somente
integradas no corpo geral da técnica fim-medieval e
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

inspiradas pelo programa vital do tempo transpõem o


limiar da eficiência histórica. A pólvora como arma
de fogo e a imprensa são autênticamente
contemporâneas da bússula e do compasso: os
quatro, como logo se percebe, de um mesmo estilo,
bem característico desta hora entre gótica e
renascentista que culminará em Copérnico. Notem os
senhores que êsses quatro inventos obtêm a união do
homem com o distante — são a técnica da actio in
distants, que é o subsolo da técnica atual. O canhão
põe em contato imediato aos inimigos longínquos; a
bússola e o compasso, ao homem com o astro e os
pontos car- diais; a imprensa ao indivíduo solitário,
ensimesmado, com essa periferia infinita — em
espaço e tempo — infinita no sentido de não finito
— que é a humanidade de possíveis leitores.
A meu entender, um princípio fundamental
para periodizar a evolução da técnica é atender a
própria relação entre o homem e sua técnica ou, em
outras palavras, à idéia que o homem foi tendo de
sua técnica, não desta ou doutra determinadas, mas
da função técnica em geral. Veremos como êste
princípio não somente esclarece o passado, senão
que de um golpe ilumina as duas questões
enunciadas por mim: a mudança substantiva que
engendrou nossa técnica atual e por que ocupa esta
na vida humana um papel ímpar ao representado em
nenhum outro tempo.
Partindo dêste princípio podemos distinguir
três enormes estádios na evolução da técnica:
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

1. ° A técnica do acaso.
2. ° A técnica do artesão.
3. ° A técnica do técnico.
A técnica que chamo do acaso, porque o acaso
é nela o técnico, o que proporciona o invento, é a
técnica primitiva do homem pré e pro- to-histórico e
do atual selvagem — entende-se, dos grupos menos
avançados — como os Vedas do Ceilão, os Semang
de Borneo, os pigmeus de Nova Guiné e do centro
africano, os australianos, etc.
Como se apresenta a técnica à mente dêste
homem primitivo? A resposta pode ser aqui so-
bremaneira taxativa: o homem primitivo ignora sua
própria técnica como tal técnica; não se apercebe
que entre suas capacidades existe uma
especialíssima que lhe permite reformar a natureza
no sentido de seus desejos.
Com efeito:
1.° O repertório de atos técnicos que usa e
desfruta o primitivo é sumamente escasso e não
chega a formar um corpo suficientemente volumoso
para que possa destacar e diferenciar-se do repertório
de atos naturais que é em sua vida in-
comparavelmente maior que aquêle. Isto equivale a
dizer que o primitivo é minimamente homem e
quase todo êle puro animal. Os atos técnicos, pois, se
dispersam e submergem no conjunto de seus atos
naturais e se apresentam à sua mente como
pertencendo à sua vida não técnica. O primitivo acha
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

que pode fazer fogo da mesma forma que acha que


pode andar, nadar, esmurrar, etc. E como os atos
naturais são um repertório fixo e dado de uma vez
para sempre, assim também seus atos técnicos. Des-
conhece por completo o caráter essencial da técnica,
que consiste em ser ela uma capacidade de mudança
e progresso, em princípio, ilimitados.
2. ° A singeleza e escassez dessa técnica
primigênia trazem consigo que sejam exercidos seus
atos por todos os membros da coletividade. Todos
fazem fogo, elaboram arcos e flechas, etc. Isto é, que
a técnica não parece destacada nem sequer pelo fato
que constituirá a segunda etapa na evolução, ou seja,
que somente certos homens — os artesãos — sabem
fazer determinadas coisas . A única diferenciação
que se produz bem cedo estriba em que as mulheres
se ocupam em certas fainas técnicas e os varões em
outras. Mas isto não basta para isolar o fato técnico
como alguma coisa peculiar aos olhos do primitivo,
porque também o repertório de atos naturais é um
pouco diferente na mulher e no varão. Que a mulher
cultive o campo — foi a mulher a inventora da
técnica agrícola — lhe parece tão natural como que
de quando em quando se ocupe em parir.
3. ° Mas também não adquire consciência
da técnica em seu momento mais característico e
delator — na invenção. O primitivo não sabe que
pode inventar, e porque não o sabe, seu inventar não
é um prévio e deliberado buscar soluções . Como
antes sugeri, é antes a solução que o busca, e não o
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

contrário. No manejo constante e indeliberado das


coisas circundantes se produz de imediato, por puro
acaso, uma situação que dá um resultado novo e útil.
Por exemplo, atritando por diversão ou prurido um
pau com outro nasce o fogo. Então o primitivo tem
uma súbita visão de um nôvo nexo entre as coisas. O
pau, que era alguma coisa para brigar, para apoiar-
se, aparece como alguma coisa nova, como o que
produz fogo. O primitivo, assim temos que imaginá-
lo, fica aniquilado, porque sente como se a natureza
de improviso houvesse feito penetrar nêle um de
seus mistérios. Porque o fogo era para êle um poder
divinóide do mundo e lhe suscitava emoções
religiosas. O nôvo fato, o pau que faz fogo, se
intumesce por uma e outra razão de sentido mágico.
Tôdas as técnicas primitivas têm originariamente um
halo mágico e somente são técnicas para aquêle
homem pelo que têm de magia . Mais adiante
veremos como a magia é, com efeito, uma técnica,
ainda que falhada e ilusória.
Êste homem, pois, não se sabe a si mesmo
como inventor de seus inventos. A invenção lhe
aparece como uma dimensão mais da natureza — o
poder que esta tem de proporcionar-lhe, ela a êle, e
não ao contrário, certos podêres. A produção de
utensílios não lhe parece provir dêle, como não
provêem dêle suas mãos e suas pernas. Não se sente
homo íaber. Encontra-se, portanto, numa situação
bastante parecida à que Kohler descreve quando o
chimpanzé cai subitamente em si de que um pau que
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

tem na mão pode servir para um certo fim antes


insuspeitado. Kohler chama-a "impressão do isso/",
já que esta é a expressão do homem quando de
pronto se lhe faz patente uma nova relação possível
entre as coisas. Tratar-se-ia, pois, da lei biológica
chamada trial and error, tentativa e êrro, aplicada à
ordem consciente. O infusório "tenta" inumeráveis
posturas e encontra uma delas que lhe produz efeitos
favoráveis. Então a fixa como hábito.
Mas voltemos à técnica primitiva. Dá-se, pois, no
homem ainda como natureza. A expressão mais
própria dela seria dizer que verossimil- mente as
invenções do homem aurorai, produto do puro acaso,
obedecem ao cálculo de probabilidades; isto é, que
dado o número de combinações espontâneas que são
possíveis entre as coisas corresponde a elas uma cifra
de probabilidade para que se lhe apresentem um dia
em forma tal que êle veja nelas preformado um
instrumento. .
iA TÉCNICA COMO ARTESANATO. — A
TÉCNICA DO TÉCNICO

Passemos ao segundo estádio: a técnica do


artesão. É a técnica da velha Grécia, é a técnica da
Roma pré-imperial e da Idade Média. Eis aqui em
rapidíssima enumeração, alguns de seus caracteres:
1.° O repertório de atos técnicos cresceu
enormemente. Não tanto, contudo, — é importante
notá-lo — para que o súbito desaparecimento, crise
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

ou obstáculo das técnicas principais fizesse


materialmente impossível a vida das coletividades .
Mais claro ainda: a diferença entre a vida que leva o
homem neste estádio com todas suas técnicas e a que
levaria sem elas, não é tão radical que impedisse,
falhadas ou suspensas aquelas, retrotrair-se a uma
vida primitiva ou quase primitiva. Mesmo a
proporção entre o não técnico e o técnico não é tal
que o técnico se tenha feito a base absoluta de
sustentação. Não: mesmo a base sobre que o homem
se apóia é o natural — pelo menos, e isto é o
importante, assim o sente êle — e por isso, quando
começam as crises técnicas, não se apercebe que
estas impossibilitarão a vida que leva; por isso não
reage a tempo e enèrgicamente ante aquelas crises
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$
.Mas feita esta ressalva e comparando a nova
situação técnica que êste segundo estádio representa
com a primitiva, convém sublinhar o contrário: o
enorme crescimento dos atos técnicos . Não poucos
dêstes se fizeram tão complicados que não pode
exercê-lo tôda e qualquer pessoa . É preciso que
certos homens se encarreguem a fundo dêles,
dediquem a êles sua vida: são os artesãos. Mas isto
acarreta que o homem adquira então uma
consciência da técnica como algo especial e aparte.
Vê a atuação do artesão — sapateiro, ferreiro,
pedreiro, seleiro, etc. — e entende a técnica sob a
espécie ou figura dos técnicos que são os artesãos;
quero dizer: ainda não sabe que existe técnica, mas
já sabe que existem técnicos-homens que possuem
um repertório peculiar de atividades que não são,
sem mais nem menos, as gerais e naturais em todo
homem. A luta tão moderna de Sócrates com as
pessoas de seu tempo começa por querer convencê-
las de que a técnica não é o técnico, mas uma
capacidade sui generis, abstrata, peculiaríssima, que
não se confunde com êste homem determinado ou
com aquêle outro. Para êles, ao contrário, a sapataria
não é senão uma destreza que possuem certos
homens chamados sapateiros . Essa destreza poderia
ser maior ou menor e sofrer algumas pequenas
variações, exatamente como acontece com as
destrezas naturais, o correr e o nadar, por exemplo;
melhor ainda, como o voar do pássaro e o correr do
touro. Bem entendido, êles sabem que a sapataria
não é natural — quero dizer, não é animal — mas
alguma coisa exclusiva do homem, mas que o pos-

is
,
2i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

sui como um dote fixo e dado de uma vez para


sempre. O que tem de somente humano é o que tem
de extranatural, mas o que tem de fixo e limitado lhe
dá um caráter de natureza — pertence, pois, a
técnica à natureza do homem — é um tesouro
definido e sem ampliações substantivas possíveis.
Assim como o homem se encontra ao viver instalado
no sistema rígido dos movimentos de seu corpo,
também se encontra instalado, ademais, no sistema
fixo das artes, que é como se chamam em povos e
épocas dêste estádio as técnicas. O sentido próprio
de techne, em grego, é êsse.
2.° Tampouco o modo de aquisição das
técnicas favorece a clara consciência desta como
função genérica e ilimitada. Neste estádio se dá
ainda menos que no primitivo — ainda que de
pronto se pensaria o contrário — ocasião para que o
fato de inventar faça surgir na memória a idéia clara,
isolada, isenta, do que é a técnica em verdade. Ao
fim e ao cabo, os loucos inventos primitivos, tão
fundamentais, precisaram destacar-se
melodramàticamente sôbre a cotidianei- dade dos
hábitos animais. Mas no artesanato não se concebe a
consciência do invento. O artesão tem que aprender
em longo aprendizado — é a época dos mestres e
aprendizes — técnicas que já estão elaboradas e vêm
de uma insondável tradição. O artesão é inspirado
pela norma de encaixar-se nessa tradição como tal:
está voltado ao passado e não aberto a possíveis no-
vidades . Segue o uso constituído. Produzem-se,
contudo, modificações, melhoras, em virtude de um
deslocamento contínuo e por isso mesmo im-
perceptível; modificações, melhoras, que se apre-
sentam com o caráter não de inovações substantivas,
mas, antes, como variações de estilo nas destrezas.
Êstes estilos de tal ou qual mestre se transmitem em
forma de escolas; portanto, com o caráter formal de
tradição.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$
3.° Outra razão existe, e decisiva, para que a
idéia da técnica não se desprenda e se isole da idéia
do homem que a exerce, e é que contudo o inventor
somente chegou a produzir instrumentos e não
máquinas. Esta distinção é essencial. A primeira
máquina propriamente tal, e com isso antecipo o
terceiro estádio, é o tear de Robert criado em 1825.
É a primeira máquina, porque é o primeiro
instrumento que atua por si mesmo e por si mesmo
produz o objeto. Por isso se chamou self-actor, e daí
self atinas [fiação, fia- dura] . A técnica deixa de ser
o que até então havia sido, manipulação, manobra, e
se converte sensu stricto em fabricação. No
artesanato o utensílio ou ferramenta é somente
suplemento do homem. Êste, portanto o homem com
seus atos "naturais", continua sendo o ator principal,
Na máquina, ao contrário, passa o instrumento para
o primeiro plano e não é êle quem ajuda ao homem,
mas ao contrário: o homem é quem simplesmente
ajuda e suplementa a máquina. Por isso ela, ao
trabalhar por si e desprender-se do homem, fêz a
êste cair intuitivamente em si de que a técnica é uma
função aparte do homem natural, muito
independente dêste e não prêsa aos limites dêste. O
que um homem com suas atividades fixas de animal
pode jazer, sabemo-lo de antemão: seu horizonte é
limitado. Mas o que

l7~r
podem fazer as máquinas que o homem é capaz de
inventar é, em princípio, ilimitado.
4.° Mas ainda resta um traço do artesanato que
contribui profundamente para impedir a consciência
adequada da técnica e, como os traços anteriores,
oculta o fato técnico em sua pureza . E é que toda
técnica consiste em duas coisas: uma, invenção de
um plano de atividade, de um método, procedimento
4i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

— mechané, diziam os gregos — e outra, execução


dêsse plano. Aquela é em estrito sentido a técnica;
esta é somente a operação e o agir. Em suma: existe
o técnico e existe o operário que exercem na unidade
da faina técnica duas funções bem distintas. Pois
bem, o artesão é, ao mesmo tempo e indivisamente,
o técnico e o operário. E o que mais se vê dêle é sua
manobra e o que menos se vê é sua "técnica"
propriamente tal. A dissociação do artesão em seus
dois ingredientes, a separação básica entre o operário
e o técnico, é um dos sintomas principais do terceiro
estádio.
Antecipamos alguns de seus caracteres. De- nominamos-lhes "a técnica do
técnico". O homem adquire a consciência suficientemente clara de que
possui uma certa capacidade por completo distinta das rígidas, imutáveis,
que integram sua porção natural ou animal . Vê que a técnica não é um
acaso, como no estádio primitivo, nem um certo tipo dado e limitado de
homem — o artesão; que a técnica não é esta técnica nem aquela
determinada e, portanto fixas, mas precisamente um manancial de
atividades humanas, em princípio, ilimitadas. Esta nova consciência da
técnica como tal coloca ao homem, pela primeira vez, numa situação
radicalmente distinta da que jamais experimentou; de certo modo, anti-
tética. Porque até ela havia predominado na idéia que o homem tinha de sua
vida a consciência de tudo o que não podia fazer, do que era incapaz de
fazer; em suma, de sua debilidade e de sua limitação. Mas a idéia que hoje
temos da técnica — reavive agora cada um dos senhores essa idéia que tem
— nos coloca na situação trágico-cômica — isto é, cômica, mas também
trágica — de que quando somos brindados com a coisa mais extravagante
nos surpreendemos atordoados porque em nossa última sinceridade não nos
atrevemos a assegurar que essa extravagância — a viagem aos astros, por
exemplo — é impossível de realizar. Temos que, assim, no momento de
dizer isso chegasse um jornal e nos comunicasse que, tendo-se conseguido
proporcionar a um projétil uma velocidade de saída superior à fôrça de
gravidade, se havia colocado um objeto terrestre nas imediações da Lua.
Isto é, que o homem está hoje, em seu âmago, atordoado precisamente pela
consciência de sua principal ilimitação. E talvez isso contribui para que já
não se saiba quem é — porque ao achar-se, em princípio, capaz de ser tudo
o que é imaginável, já não sabe que é o que efetivamente é. E para que não
me esqueça ou não venha a ter tempo de dizê-lo, mesmo quando pertence a
outro capítulo, aproveito o conexo para fazer observar aos senhores que a
técnica, ao aparecer por um lado como capacidade, em princípio ilimitada,
faz que ao homem, pôsto a viver de fé na técnica e somente nela, fique com
sua vida vazia. Porque ser técnico e somente técnico é poder ser tudo e,
conseqüentemente, não ser nada determinado. Com ser plenitude de possi-
bilidades, a técnica é mera forma ôca — como a lógica mais formalista; é
incapaz de determinar o conteúdo da vida. Por isso êstes anos em que
vivemos, os mais intensamente técnicos que houve na história humana, são
dos mais vazios.
VII

RELAÇÃO EM QUE O HOMEM E SUA


TÉCNICA SE ENCONTRAM HOJE. — O
TÉCNICO ANTIGO
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

Vimos como o estádio de evolução técnica em


que hoje nos achamos se caracteriza: 1.° Pelo
fabuloso crescimento de atos e resultados técnicos
que integram a vida atual. Enquanto na Idade Média,
na época do artesão, a técnica e a naturalidade do
homem pareciam compensar-se e a equação de
condições em que a existência se apoiava lhe
permitia beneficiar-se do dom humano para adaptar
o mundo ao homem, mas sem que isso levasse a
desnaturalizar-lhe, hoje os supostos técnicos da vida
superam gravemente os naturais, de sorte tal que
materialmente o homem não pode viver sem a
técnica a que chegou. Isto não é um modo de dizer,
mas significa uma verdade literal. Num de meus
livros destaquei, como um dos dados que o homem
contemporâneo deve manter mais vivazes em sua
mente, o fato seguinte: a Europa, desde o século V
até 1800 — portanto, em treze séculos — não
consegue chegar a mais de 180 milhões de
habitantes. Pois bem, de 1800 à hora presente [1933]
portanto em pouco mais de um século, atingiu a cifra
de uns 500 milhões de homens, sem contar os
milhões que centrifugou a emigração. Em um só
século cresceu, pois, três vêzes e meia. E é evidente
que quaisquer que sejam as causas adjacentes de tão
prodigioso fenômeno — o fato de que hoje possam
viver bem três vêzes e meia mais de homens no mes-
mo espaço em que antes mal viviam três vêzes e
meia menos — a causa imediata e o suposto menos
eludível é a perfeição da técnica. Se esta
retrocedesse súbitamente, centenas de milhões de
homens deixariam de existir.
2i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

A proliferação sem par da planta humana


acontecida nesse século é provavelmente a origem
de não poucos conflitos atuais. Fato tal somente
pedia acontecer quando o homem havia chegado a
interpor entre a natureza e êle uma zona de pura
criação técnica tão espêssa e profunda que acabou
por constituir uma sobrena- tureza. O homem de
hoje — não me refiro ao indivíduo, mas à totalidade
dos homens — não pode escolher entre viver na
natureza ou beneficiar essa sobrenatureza. Está já
irremediàvel- mente prêso a esta e colocado nela
como o homem primitivo em seu contorno natural. E
isto tem um risco dentre outros: como ao abrir os
olhos à existência se encontra o homem rodeado de
uma quantidade fabulosa de objetos e procedimentos
criados pela técnica que formam uma primeira
paisagem artifical tão espêssa que oculta a natureza
primária atrás dêle, tenderá a acreditar que, como
esta, tudo aquilo está aí por si mesmo: que o
automóvel e a aspirina não são coisas que é preciso
fabricar, mas coisas, como a pedra e a planta, que
são dadas ao homem sem prévio esforço deste. Isto
é, que pode chegar a perder a consciência da técnica
e das condições, por exemplo, morais em que esta se
produz, voltando, como o primitivo, a não ver nelas
senão dons naturais que se têm desde logo e não re-
clamam esforçada manutenção. De modo que a
expansão prodigiosa da técnica a fêz primeiro
destacar-se sôbre o sóbrio repertório de nossas
atividades naturais e nos permitiu adquirir plena
consciência dela, mas depois, ao prosseguir nesta
fantástica progressão, seu crescimento ameaça com
obnubilar essa consciência.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

2. ° O outro traço que leva ao homem a


descobrir o caráter genuíno de sua própria técnica
foi, dissemos, o trânsito do mero instrumento à
máquina, isto é, ao mecanismo que atua por si
mesmo. A máquina abandona em última instância o
homem, o artesão. Não é já o utensílio que auxilia ao
homem, mas ao contrário: o homem fica reduzido a
auxiliar da máquina. Uma fábrica é hoje um artefato
independente ao qual ajudam em alguns momentos
uns poucos homens, cujo papel resulta
modestíssimo.
3. ° Conseqüência disso foi que o técnico
e o operário, unidos no artesão, se separassem, e ao
ficar isolados se convertesse o técnico como tal na
expressão pura, vivente, da técnica como tal: em
suma, o engenheiro.
Hoje está a técnica diante de nossos olhos, tal e
como é, eximida, aparte e sem confundir-se e
ocultar-se no que não é ela. Por isso se dedicam
concretamente a ela certos homens, os técnicos. Na
Idade paleolítica ou na Idade Média, o inventar não
podia constituir um ofício porque o homem ignorava
seu próprio poder de invenção. Hoje, pelo contrário,
o técnico se dedica, como à atividade mais normal e
preestabelecida, à faina de inventar. Ao contrário do
primitivo, antes de inventar sabe que pode inventar;
isto equivale a que antes de ter uma técnica tem a
técnica. Até êste ponto e mesmo no sentido quase
material é certo o que venho sustentando: que as
técnicas são somente concreções a posteriori da
função geral técnica do homem. O técnico não tem
que esperar os acasos e submeter- -se a cifras
4i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

evanescentes de probabilidade, já que, em princípio,


está certo de chegar a descobrimentos. Por quê?
Isto nos obriga a falar um pouco do tecnicismo
da técnica.
Para alguns isso e somente isso é a técnica. E,
sem dúvida, não existe técnica sem tecnicismo, mas
não é somente isso. O tecnicismo é somente o
método intelectual que opera na criação técnica.
Sem êle não existe técnica, mas apenas com êle
também não existe. Já vimos que não basta possuir
uma faculdade para que, sem mais, a exerçamos.
Eu desejaria falar demorada e amplamente
sobre o tecnicismo da técnica, tanto da atual como
da pretérita. É talvez o tema que pessoalmente me
interessa mais. Mas teria sido um êrro, a meu ver,
fazer gravitar para êle todo êste ensaio. Agora, em
sua agonia, tenho de reduzir- -me a dedicar-lhe uma
brevíssima consideração: brevíssima, mas, segundo
espero, suficientemente clara.
É indiscutível que nem a técnica teria con-
seguido tão fabulosa expansão nestes últimos sé-
culos, nem ao instrumento houvera sucedido a
máquina, nem, conseqüentemente, o técnico ter- -se-
ia separado do operário se o tecnicismo não
houvesse prèviamente sofrido uma fundamental
transformação.
Com efeito, o tecnicismo moderno é completamente
distinto daquele que atuou em tôdas as técnicas
pretéritas. Como exprimir em poucas palavras a
fundamental diferença? Talvez fazendo-nos esta
outra pergunta: o técnico do passado, quando o era
propriamente, isto é, quando o invento não surgia por
puro acaso, porquanto era deliberadamente buscado,
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

que é o que fazia? Ponhamos um exemplo


esquemático, portanto, exagerado, ainda que se trata
de um fato histórico e não imaginário. O arquiteto
nilota necessitava elevar os silhares de pedra às
partes mais altas da pirâmide de Cheops. O técnico
egípcio parte, evidentemente, do resultado que se
propõe: elevar o silhar. Para isso busca meios. Para
isso, eu disse; ou seja, busca meios para o resultado
— que a pedra fique no alto — tomando em bloco
êsse resultado. Sua mente está prisioneira da
finalidade proposta tal e como é proposta em sua
integridade última e perfeita. Tenderá, pois, a não
buscar como meios senão aqueles atos ou
procedimentos que, em ser possível, produzam de
um só golpe, com uma só operação breve ou
prolongada, mas de tipo único, o resultado total. A
unidade indiferenciada do fim incita a buscar um
método também único e indiferenciado. Isto leva nos
inícios da técnica a que meio pelo qual se faz a coisa
se pareça muito à própria coisa que se faz. Assim na
pirâmide: para subir a pedra ao alto se adova à
pirâmide terra em forma de pirâmide; com base mais
larga e menor declive sôbre o qual se arrastam para a
cúspide os silhares. Como êste princípio de
similitude — similia similibus — não é aplicável em
muitos casos, o técnico fica sem regra alguma, sem
método para passar mentalmente do fim proposto ao
meio adequado, e se dedica empiricamente a provar
isto e aquilo e o acolá que vagamente se ofereça
como congruente ao propósito. Dentro, pois, do
círculo que se refere a êste propósito, recai na mesma
atitude do "inventor primitivo".O TECNICISMO
MODERNO. — OS RELÓGIOS DE CARLOS V. —
6i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

CIÊNCIA E OFICINA. — O PRODÍGIO DO


PRESENTE

O tecnicismo da técnica moderna se diferencia


fundamentalmente daquele que inspirou todas as
anteriores. Surge nas mesmas datas que a ciência
física e é filho da mesma matriz histórica. Vimos
como até aqui o técnico, obcecado pelo resultado
final que é o apetecido, não se sente livre diante dêle
e busca meios que de um golpe e em totalidade
consiga produzi-lo. O meio, eu disse, imita a sua
finalidade.
No século XVI chega à maturidade um nôvo modo
de funcionar as cabeças que se manifesta ao mesmo
tempo na técnica e na mais pura teoria. Mais ainda, é
característico desta nova maneira de pensar que não
possa dizer-se onde começa, se na solução de
problemas práticos ou na construção de meras idéias.
Vinci foi em ambas as ordens o precursor. É homem
de oficina, não somente e nem sequer principalmente
de oficina de pintura, mas de oficina mecânica .
Passa a vida inventando "artifícios"
.Na carta onde solicita emprêgo de Ludovico
Moro adianta uma longa lista de invenções bé- liças
e hidráulicas. O mesmo que na época he- lenística os
grandes poliorcetas deram ensejo aos grandes
avanços da mecânica que terminam prodigiosamente
no prodigioso Arquimedes, nestas guerras de fins do
século XV e começos do XVI se prepara o
crescimento decisivo do nôvo tecnicismo. Nota
bene: umas e outras guerras eram guerras falsas,
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

quero dizer, não eram guerras de povos, guerras


férvidas, pelejas de sentimentos inimigos, mas
guerras de militares contra militares, guerras
frígidas, guerras de cabeça e punho, não de víscera
cordial. Por isso, guerras. . . técnicas.
Isso que ocorria em 1540 era a moda no
mundo das "mecânicas". Esta palavra, registre- -se,
não significa então a ciência que hoje absorveu êsse
têrmo que ainda não existia; significa as máquinas e
a arte delas. Tal é o sentido que tem ainda em 1600
para Galilei, pai da ciência mecânica. Tôda gente
quer ter aparelhos, grandes e pequenos, úteis ou
simplesmente divertidos . Nosso enorme Carlos, o V,
o de Mühlberg, quando se retira para Yuste, na mais
ilustre maré-baixa que registra a história, leva.
consigo em sua formidável ressaca para o nada
somente êstes dois elementos do mundo que
abandona: relógios e Juanelo Turriano. Êste era um
flamengo, verdadeiro mago dos inventos mecânicos,
aquêle que constrói tanto o artifício para subir águas
a Toledo — do qual ainda restam traços — quanto
um pássaro semovente que voa com suas asas de
metal pelo vasto espaço da estância onde Carlos,
ausente da vida, repousa.
Importa muito sublinhar êste fato de primeira
ordem: que a maravilha máxima da mente humana, a
ciência física, nasce na técnica. Galilei jovem não
está na Universidade, mas nos arsenais de Veneza,
entre gruas e cabrestantes. Ali se forma sua mente.
O nôvo tecnicismo; com efeito, procede exa-
tamente como procederá a nuova scienza. Não vai,
sem mais, da imagem do resultado que se quer obter
8i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

à busca de meios que o consigam. Não. Detem-se


diante do propósito e age sôbre êle. Analisa-o. Isto é,
decompõe o resultado total — que é o único
primeiramente desejado — nos resultados parciais
de que surge, no processo de sua gênese. Portanto,
em suas "causas" ou fenômenos ingredientes.
Exatamente isto é o que fará em sua ciência
Galilei, que foi ao mesmo tempo, como se sabe, um
gigantesco "inventor". O aristotélico não
decompunha o fenômeno natural, já que para seu
conjunto buscava-lhe uma causa também conjunta, à
modorra que produz a infusão de amapolas uma
virtus dormitiva. Galilei, quando vê mover-se um
corpo, faz exatamente o contrário: pergunta-se de
que movimentos elementares e, portanto, gerais, se
compõe aquêle movimento concreto. É isto o nôvo
modo de operar com o intelecto: "análise da
natureza".
Tal é a união inicial — e de raiz — entre o
nôvo tecnicismo e a ciência. União como se vê nada
externa, mas de idêntico método intelectual. Isto dá
à técnica moderna independência e plena segurança
em si mesma. Não é uma inspiração como mágica
nem puro acaso, mas "método", caminho
preestabelecido, firme, consciente de seus
fundamentos.
Grande lição! Convém que o intelectual
maneje as coisas, que esteja próximo delas; das
coisas materiais se é físico, das coisas humanas se
é historiador. Se os historiadores alemães do
século XIX houvessem sido mais homens polí-
ticos, ou mesmo mais "homens de mundo", talvez
a história fosse hoje já uma ciência e junto a ela
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

existisse uma técnica realmente eficaz para atuar


sôbre os grandes fenômenos coletivos, diante dos
quais, seja dito com vergonha, o atual homem se
encontra como o paleolítico diante do raio.
O chamado "espírito" é uma potência dema-
siado etérea que se perde no labirinto de si mes-
ma, de suas próprias infinitas possibilidades. É
demasiado fácil pensar! A mente em seu vôo qua-
se não encontra resistência. Por isso é tão im-
portante para o intelectual palpar objetos materiais
e aprender em seu trato com êles uma disciplina
de contenção. Os corpos foram os mestres do
espírito, como o centauro Quirão foi o mestre dos
gregos. Sem as coisas que se vêem e se tocam, o
presunçoso "espírito" não seria mais que
demência. O corpo é o agente policial e o peda-.
gogo do espírito ~
Daí a exemplaridade do pensamento físico diante de
todos os demais usos intelectuais. A física, como
notou Nicolai Hartmann, deve sua ímpar virtude em
ser, até agora, a única ciência onde a verdade se
estabelece mediante o acordo de duas instâncias
independentes que não se deixam subornar uma pela
outra. O puro pensar
apriori da mecânica racional e o puro
olhar as coisas com os olhos do rosto:
análise e experimento.
Todos os criadores da nova ciência
se deram conta de sua consubstancialidade
com a técnica . Tanto Bacon como Galilei,
Gilbert quanto Descartes, Huygens quanto
Hook ou Newton.
10 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Desde então para cá o


desenvolvimento — em somente três
séculos — foi fabuloso: tanto o da teoria
quanto o da técnica. Veja o leitor, no
livrinho de Allen Raymond, iQué es la
tecnocracia?, traduzido nas edições da
"Revista de o— «. Occidente", alguns
dados sôbre o que hoje pode fazer aquêle
técnico. Por exemplo:
"O motor humano, numa jornada de
oito horas, é capaz de render trabalho,
aproximadamente, na proporção de um
décimo de cavalo. Hoje em dia possuímos
máquinas que trabalham com 300 000
cavalos de potência, capazes de funcionar
durante vinte e quatro horas do dia por
muito tempo.
"A primeira máquina de conversão
de energia distinta do mecanismo humano
foi a toséa máquina de vapor atmosférico
de Newcomen, em i ^ 1712.A primeira
máquina dessa marca desenvolve 5,5
cavalos de força, calculada pela
quantidade de água que eleva num tempo
determinado. Esta máquina atingiu seu
máximo tamanho em 1780, com
gigantescos cilindros e 16 a 20 percurso de
êmbolo por minuto. Tinha uma potência
de 50 cavalos, ou seja, 500 vêzes a do
motor humano. Mas a eficiência da
máquina Newcomen era um décimo da
máquina humana e.requeria 15,8 libras de
carvão por cavalo. Tinha
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

outros defeitos, tanto em energia como na parte


mecânica, que impediram sua adoção geral.
"A introdução da turbina trouxe um nôvo tipo
de conversão de energia. Enquanto as primeiras
turbinas construídas possuíam menos de 700
cavalos e a primeira turbina que se instalou numa
estação central era de 5.000 cavalos, as turbinas
modernas chegam a atingir 300.000 cavalos, ou
seja, 3.000.000 de vêzes o rendimento de um ser
humano em jornada de oito horas. Calculada sôbre
a base de vinte e quatro horas de funcionamento, a
turbina tem nove milhões de vêzes o rendimento
do corpo humano.
"A primeira turbina montada numa estação
central consumia 6,88 libras de carvão por qui-
lowatt-hora em 1903.
"Houve uma queda no consumo de carvão de
6,88 libras para 0,84 libras num período de 30
anos, o que indica a variação do rendimento ao
efetuar o trabalho humano por meio das máquinas.
"O rendimento máximo de civilização no antigo
Egito nunca excedeu de 150.000 cavalos em jornada
de oito horas, supondo-lhe 3.000.000 de habitantes.
Grécia, Roma, os pequenos Estados e Impérios da
Idade Média e as nações modernas tiveram o mesmo
índice de rendimento até a época de James Watt.
Mudanças cada vez mais r rápidas ocorreram desde
então. O progresso social, desconhecido até agora,
avançou lentamente no princípio, depois deu uma
corrida, tomou vôo e avançou com a rapidez de um
foguete. Série após série de desenvolvimentos
técnicos varrera
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

mos processos industriais de cada década, desde 1800, para


deixá-los reduzidos a métodos antiquados do passado.
"A primeira máquina, a de Newcomen, não sobreviveu a
seu século. A segunda mudança na conversão de energia, a
máquina de Watt, não sobreviveu um século para ser deslocada
por uma nova máquina de maior rendimento. Dos 9.000.000
de vêzes pelas quais multiplicamos a energia do corpo humano
para obter as unidades modernas de energia mecânica
atingidas, um aumento de 8.766.000 vêzes ocorreu nos últimos
vinte e cinco anos.
"Sôbre diminuição de horas de trabalho humano desde
1840, notemos que, em aço, o grau de diminuição foi o inverso
da quarta potência do tempo; em automóveis, ainda maicr; em
produção de lingotes de ferro, uma hora de trabalho humano
consegue hoje em dia o que seiscentas horas do mesmo
trabalho há cem anos. Em agricultura, somente 1/3 000 de
horas de trabalho humano por unidade de produto se
necessitam comparadas com 1840. Na fabricação de lâmpadas
incandescentes, uma hora de trabalho humano realiza tanto
como nove mil horas do mesmo trabalho em 1914.
"O grau de diminuição em horas de trabalho humano por
unidade de produção, tomadas em conjunto, é, pois,
aproximadamente 1/3 000.
"Os fabricantes de tijolos, durante mais de cinco mil
anos, jamais conseguiram, em média, mais de 450 tijolos por
dia e por indivíduo, em jornada de mais de dez horas.
"Uma fábrica moderna de fabricação contínua de tijolos
produzirá 400 000 por dia e por homem."
Não respondo pela exatidão destas cifras. Os
"tecnocratas" dos quais procedem são demagogos e, portanto,
gente sem exatidão, pouco escrupulosa e apressada. Mas,
aquêle que tenha êsse quadro numérico de caricatura e
exagêro, não faz senão pôr de manifesto um fundo verdadeiro
e inquestionável — a quase ilimitação de possibilidades na
técnica material contemporânea.
Mas a vida humana não é somente luta com a matéria, é
também luta do homem com sua alma. Que quadro pode a
Euramérica opor a êsse como repertório de técnicos da alma?
Não foi, nesta ordem, bem superior a Ásia profunda? Desde há
anos sonho com um possível curso em que se mostrem frente a
frente as técnicas do Ocidente e as técnicas da
Ásia.APÊNDICE I

VICISSITUDES NAS CIÊNCIAS

É interessante estudar a história das ciências sob a


imagem de que cada uma delas fôsse uma pessoa, ou, melhor,
uma série de pessoas que se sucedem no tempo, representando
as gerações. Sob êste suposto, aparece cada ciência
comportando-se como um indivíduo, dotada de determinado
caráter reagindo ante os demais acontecimentos humanos,
soberba e agressiva num momento, humilde em outros. Vemo-
la, como o herói de uma biografia, atravessar vicissitudes
inumeráveis, gozar de horas triunfantes, sofrer desdens, ser
rainha (regina scientiarum) ou cair em situação ancilar
(ancilla theologiae foi a filosofia na Idade Média) . Cada
ciência tem seu individual destino, como se fôsse um homem.
Mas o mais curioso que cada história das ciências nos
mostraria é que também, como os homens, apesar de ter cada
uma seu destino individual, dentro de cada época se
comportam em certas ordens com perfeita homogeneidade.
14 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Por mais que os contemporâneos discrepemos uns de outros,


parecemo-nos em muito mais coisas.
Assim, durante o século XIX, tôdas as ciências exerceram o
mais atrevido imperialismo. Era êste o modo vital que inspirou
a tôda essa época em tôdas as ordens. E como um povo
pugnava por imperar aos demais e uma arte às outras artes e
uma classe social às restantes, quase não houve ciência que não
fizesse sua campanha imperialista, obstinando-se em
capitanear as demais, talvez reformá-las radicalmente. Durante
uma temporada tudo quis ser física; depois tudo quis ser
história; mais tarde tudo se converteu em biologia; em seguida
tôdas as ciências aspiraram a ser matemáticas e gozar os
benefícios do axioma- tismo. As épocas de imperialismo são
amadurecimentos de ambição e de inveja; o forte se faz
ambicioso e o fraco pratica essa forma rentrée e estrangulada
da ambição que é a inveja. Por mais diferentes que essas duas
paixões humanas sejam, parecem-se numa coisa: sob seu
impulso o homem não vive absorto e submerso em seu próprio
destino, já que olha com uma pupila aos alheios. Se sou
ambicioso, não me contento com ser o que sou, pois sinto a
urgência de dominar aos próximos; vivo, pois, em função
dêles, preocupado em ser mais que êles. Ao mesmo tempo que
vivo minha vida vivo a alheia; isto é, ves- gueio.
Parecidamente, o invejoso vive sofrendo não ser o outro
melhor dotado, e é, portanto, um modo vesgo de existir. O
século XIX foi o grande século vesgo. E assim, cada ciência,
ou para dominar ou para invejar, andava fora de si, preocupada
das outras. A filosofia sentia desdouro por não ser física, e o
mesmo a biologia. A matemática se envergonhava de não ser
lógica, de não poder constituir-se em pura dedução conceituai,
mas estar acorrentada como um humilde cão à intuição. A
teologia, ciência do divino, anelava com voluptuoso afã ser
manejada como as ciências humanas; queria ser racional e
raciocinável
,como aquêles misteriosos filhos de Deus que apa-
recem no Gênese seduzidos pelas encantadoras filhas
dos homens. O mais característico do século passado
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$
foi que nêle cada qual vivia empenhado em ser outro
do qual era. Ninguém aceitava seu destino. A idade
do "fora de si".
Nos trinta anos que correram do século XX, as
ciências se comportaram de modo bem diverso. Em
muitas ocasiões já fiz notar o estranho fenômeno.
Sem pôr-se de acordo, e, mais ainda, sem perceber
umas e outras, tôdas foram coincidindo numa
resolução oposta à que obedeciam há cinqüenta anos.
Consiste esta simplesmente em que cada ciência
decidiu não preocupar-se das demais nem para bem
nem para mal. Sem propósito de imperar sôbre as
outras, sem descontentamento de não possuir uma
das vantagens, cada qual se encaixou em si mesma e
aceitou seu destino; pelo menos se enlaçou sem
reserva à sua própria limitação, ao que meio século
antes sentia como seu defeito congênito.
Por exemplo, a física não pode chegar a construir seus
objetos por métodos puros, como a matemática; sua
exatidão não é de ordem pri-N mária, já que é somente
exatidão de aproximação; é a inexatidão dentro de
certos limites. A razão disso está em que entre a física e
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 1
as coisas que procura conhecer se interpõe
inevitàvelmen- te a necessidade da medida. O
matemático captura seu objeto — o espaço, o número
— ou com o puro conceito, consoante uns, ou com a
intuição, consoante outros. Mas ambos os meios de
captura são imediatos ao conhecimento matemático. O
triângulo está, segundo êle é, íntegrona definição
axiomática ou intuitiva que o matemático dá dêle. Mas o
físico não tem a realidade dos astros nem das mudanças
da matéria imediatamente em sua intuição. As coisas da
física têm que ser capturadas com a mensuração. A
medida é para o físico o que a intuição (ou a axiomática)
é para o matemático.
Mas a medida é, por sua própria essência,
relatividade. Não há medida sem metro, e o metro,
como tal, não é uma coisa cósmica, não é uma realidade,
mas uma arbitrariedade. É uma coisa humaníssima.
Quando Protágoras dizia que o homem é a medida de
tôdas as coisas, dizia algo superfetatório. Porque ser
medida já é ser algo humano. Deus não mede. Porque,
afinal de contas, nenhum ser faz nada que não tenha
sentido para êle, que não o faça para alguma coisa, que,
portanto, não lhe seja necessário. O homem mede as
coisas materiais porque não as possui, porque não as
tem em sua inteligência. Tem que sair de si mesmo para
conhecê-las. Por si mesmo é indigente, não contém em
iseu interior mental nem um ponto de realidade cósmica.
Vai em busca das coisas; mas estas se lhe escapam, são
incompenetráveis com sua mente. Em vista de que não
pode apresar as coisas, se contenta com tomar-lhe as
medidas, que são os esquemas e fantasmas daquelas.
Sua mente — mens — é medida — mensura
(calembour do cardeal Cusa- no), Deus não mede. Não
há um deus dos pesos e medidas. Deus é desmensurado
(exuperantis- simus ) .
Em Galilei, fundador da física, se oculta uma
contradição. Por um lado define maravilho- sãmente a
2i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

nova ciência que entre as mãos lhe nasce: "Consiste —


diz — em medir tudo o que se pode medir e em
conseguir que se possa medir o que não se pode medir."
( Exemplo dêste último, o calor. A física do calor
consiste em inventar o termômetro) . Hoje mais do que
nunca a física confirma essa definição batismal de
Galilei e se apercebe que não é senão cosmometria.
Mas, por outro lado, Galilei acredita que a física é mate-
mática; isto é, que os fenômenos naturais se comportam
matematicamente. Em todos êles inter- vêem como
ingredientes o espaço e o tempo. Galilei acredita de pés
juntos que a especialidade e a temporalidade das coisas
são o espaço e o tempo matemáticos, não o espaço e o
tempo métricos .
Ora, esta é uma crença errônea, e é importante
advertir que a essa crença errônea se deve a instauração
da física. Um exemplo curioso da providencialidade do
êrro. O homem, para acertar, necessita pôr tudo, até sua
ilustre capacidade de equivocar-se. Como o caso é, em
verdade, exemplar, permita-se-me expô-lo.
A ciência física, que começa no século XVI, não
se deve a que certos homens, abandonando os
raciocínios puros, a especulação dos filósofos, tivessem
resolvido a observar os fatos — como se os antigos e
medievais, que não tiveram física, não houvessem
observado com denodo a natureza e não a houvessem
submetido a experiências. Nem por um momento se
apresenta Galilei como o homem do experimento diante
dos escolásticos. Exatamente o contrário. Contra sua lei
de inércia são os escolásticos que fazem constar a expe-
riência. Galilei não pode demonstrar sua lei pelo
experimento. Acreditar que o característico das ciências
físicas é a observação ou experiência, neste vulgar
sentido do têrmo, é um padecimento que hoje sofre
somente algum Sr. Homais, farmacêutico do êrmo
provinciano.
Não a observação produziu a física, mas a
exigência da observação exata. E exatidão é um
vocábulo que somente tem sentido próprio, autêntico, na
matemática. O nôvo da nuova scienza de Galilei foi a
introdução formal da matemática na observação, a
quantificação radical dos fenômenos por sua radical
mensuração; portanto, a experiência matemática.
Mas esta aplicação que Galilei faz das leis
matemáticas aos fenômenos físicos houvera sido
impossível se Galilei não houvesse padecido o
preconceito de que os fenômenos físicos obedecem, sem
dúvida alguma, às leis matemáticas; por exemplo, se
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 3
não houvesse acreditado de antemão e prèviamente a
tôda experiência que na natureza existem ângulos retos
e que num triângulo corporal a soma de seus ângulos é
igual a dois retos. Para a física, a questão era averiguar a
que outras leis especiais obedeciam os fenômenos, além
de obedecer, isto para êle era indiscutível, às leis
geométricas. Por isso diz: "A verdade está escrita na
natureza com letras matemáticas." A física procura ler as
palavras, mas nem sequer discute o abecedário. Por isso
Galilei não se ocupa de fazer experimentos com o fim
de demonstrar fisicamente se existe na natureza ângulos
retos. Quer isto dizer que para a física, até há uns
cinqüenta anos, era uma coisa indiscutível e evidente
que as leis geométricas por si e a priori, são leis físicas;
que os corpos obedecem docilmente àquelas. A física,
pois, começa não por experimentar, mas, ao contrário,
por não experimentar, por prejulgar a docilidade
geométrica da matéria.
Imagine-se, agora, que um físico se dissesse
radicalmente: "Para mim, como físico, não há mais
realidade que o resultado de minhas medidas." Com isso
não faria senão insistir na vontade de Galilei; mais
conseqüente que êle, porém, cairia em si de que então a
realidade não coincide com a matemática; ou melhor,
que nenhuma matemática rege, dá leis à realidade.
Nenhum dos espaços construídos pelas puras geometrias
é o espaço real da física. A inércia não é uma lei física,
porque supõe o corpo destituído de influxos dinâmicos,
de variações apreciáveis com a medição e, contudo,
pretende dizer o que ocorrerá a êsse corpo. Em Galilei, a
retilineida- de, que é um caráter puramente matemático,
se comporta como uma força física, e isto não é menor
magia que o afã de mover-se circularmente, suposto nos
corpos por Aristóteles. A matéria não tem preferências
geométricas.
Tal atitude num físico indica que por um lado não
aceita o império da matemática sôbre sua ciência.
4i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Declara-a independente, autônoma. Física é medir.


Aceita o físico êste destino de mundimensor. Contenta-
se com êle. Encerra-se com êle. Por outro lado, não
pretende que êsse destino seu reatue sôbre a
matemática; isto é, não nega — como tentou Helmholtz
e o positivismo — a independência métrica da matemá-
tica, não diz que as leis matemáticas não valham para
seus objetos imaginários. Ao contrário, quanto mais
irreal, menos experimental seja a geometria, melhor lhe
serve para sua faina: serve-lhe para ordenar suas
medidas. A realidade não se compõe de letras
matemáticas — tal foi o êrro de Galilei. O que ocorre é
que o físico usa a matemática como um instrumento
mais para sistematizar suas observações.
Esta é a atitude de Einstein. Do que resulta que
hoje, quando mais matemática e! mais complicada se
emprega em física, é quando a matemática tem menos
intervenção substantiva por si na física. De ser em rigor
um princípio da "realidade" física, passou a ser um nôvo
instrumento da "teoria" física, como o nômius e a
balança. Não manda, já que obedece.
A instauração da física se deve, pois, a um êrro. Se
Galilei houvesse contado com meios métricos mais
precisos e se houvesse encontrado com que a matéria
não é euclideana, a física não houvesse podido nascer,
porque o homem de então não contava com u'a
matemática à altura de tais precisões de mensuração.
Respeitemos estas cegueiras, que permitem ao homem
ver alguma coisa. Tudo o que somos positivamente o
somos graças a alguma limitação. E êste ser limitados,
êste ser carentes, é o que se chama destino, vida. O que
nos falta e nos oprime é o que nos constitui e nos
sustém. Portanto, aceitemos o destino.
El Sol, de Madrid, 9 de março de 1930.APÊNDICE II

CACOFONIA NA FÍSICA

I — Uma polêmica na região mais pacífica

O planêta se pôs nervoso e quase não há países,


grupos, homens que conservem plena serenidade . Isto
revela, está claro, que a serenidade anterior não era
profunda nem sólida. E isso convida a que se vá
pensando a sério sôbre quais são as condições que
permitiriam ao homem, pelo menos ao homem do
Ocidente, constituir-se uma serenidade mais robusta e de
mais firme embasamento. Porque a serenidade é o
atributo primário do homem. Todos seus demais dons ou
não são especificamente humanos ou são fruto nascido
na gleba nobre de sua serenidade. Quando o homem a
perde dizemos que está "fora de si". E então rebrota nêle
o animal. Porque "estar fora de si", escravo da
inquietação de seu contorno, em perpétuo sobressalto e
nervosismo, é a característica do animal. Conseguir
libertar-se dêsse servilismo, deixar de ser um autômato
que o contorno mobiliza mecanicamente, desprender-
-se do que está ao redor e pôr-se em si mesmo,
ensimesmar-se, é o privilégio e a honra de nossa
espécie. Façamos, pois, propaganda da serenidade,
supremo específico.
Porque cada dia a irritação aumenta e, como uma
viva maré, chega a alturas que pareciam inatingíveis.
"Em todo cimo há calma", dizia Goethe. Pois bem, não
há dúvida que um dos cimos de nossa vida ocidental era
a ciência física e o grupo de homens que a cultivam,
sobretudo na Inglaterra. Mas eis aqui que também os
físicos inglêses se põem um pouco nervosos.
Desde há gerações, talvez o lugar mais tranqüilo
da terra era o semanário científico que se publica nas
Ilhas Britânicas sob o título Nature. Não é sintomático o
fato de que também nesse calmo periódico de
naturalistas tenha havido arruaça?
6i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

No número de 8 de maio, o Dr. Herbert Dingler


publica um artigo encimado pelo título "Nôvo
aristotelismo", Modem Aristoteliariism. O artigo é
breve, breve como uma chicotada. O autor o açoita
sôbre os lombos dos maiores físicos inglêses atuais, que
são, talvez, afora Einstein, os maiores do mundo.
Eddington, Milne, Dirac, todos recebem seu vobiscum.
A resolução e o laconismo com que em matéria tão
grave, tão complicada e. . . tão discutível procede o Dr.
Dingler deixam ver, apesar de todo o self-control
britânico, que o inspirou o mau-humor. Entre as linhas
nos parece ver a cara do autor, a quem não conhecemos,
a cara de um homem que está farto de coisas que lhe são
antipáticas e contra as quais arremete simplesmente
porque lhe são antipáticas. O Dr. Dingler chega a
disparar, ao que parece contra aquêles grandes físicos, a
acusação de "traidores". Traidores a quem ou a quê? É
isto que veremos.
O artigo do irrascível Sr. Dingler atraiu sôbre a
revista um dilúvio de cartas. Tantas que
o diretor achou-se na obrigação de dedicar no
número de 12 de junho um suplemento a esta polêmica.
Desde há anos se publicam com progressiva
freqüência livros de questões físicas que pertencem a
um nôvo tipo de produção intelectual. Nestes livros se
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 7
determina a estrutura do "universo" e isto se faz a
priori, em pura dedução matemática . Partindo de certas
hipóteses mínimas a que se dá forma de puros axiomas,
constitui-se um corpo de doutrinas estritamente racional,
na qual aparecem as leis físicas conhecidas como
teoremas derivados daqueles axiomas e, o que é mais
supreendente ainda, obtém-se, por simples inferência da
lógica matemática, novas leis. O experimento, a indução
não aparecem em parte alguma.
Ao Sr. Dingler lhe fazem mal as orações deste
nôvo uso intelectual. Que é isso de falar do "universo"?
A ciência física nasce com Galilei quando a ciência
renuncia a falar do universo e se limita a dizer-nos como
são os "fenômenos manifestos". Para isso procura ater-
se à observação sensível e evita confundir as leis com as
hipóteses de trabalho. Em suma, Galilei e as gerações
que levantaram o edifício da física clássica abstiveram-
se de raciocínios a priori. Partiam dos fatos perceptíveis
e depurando-os, generalizando a descrição dêles,
chegavam aos "fatos gerais" que são as leis físico-
matemáticas. Falar do "universo" e falar a priori eram,
precisamente, as duas feias coisas que vinham fazendo
desde séculos os aristotélicos contra os quais lutou tão
denodadamente Galilei. O aristotélico — ente

N,
8i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

vago que, sem maiores precisões, conjura aqui o


Dr. Dingler — acredita que analisando e baralhando,
sem outro instrumento que a lógica, nossos conceitos,
isto é, as idéias que encontramos em nossa mente,
podemos averiguar o que absolutamente ocorre no
mundo, que, tomado assim, como alguma coisa
absoluta, teria direito ao nome de universo. Isto vem a
ser tirar-se o mundo da cabeça. O aristotélico se
comportava assim porque pensava por antecipado, isto
é, acreditava que o mundo obedece às mesmas regras
que os pensamentos humanos. Consoante o Dr. Dingler,
o aristotelismo consiste em presumir que o homem é a
medida das coisas.
Ao contrário, Galilei apercebeu-se que a natureza
é independente do homem. Êste não tem prèviamente
garantia alguma de como se comporta a natureza. E, por
isso, se quer averiguar alguma coisa dela não tem outro
remédio senão observá-la e tem que contentar-se com o
que esta observação lhe descubra. Êste ofício de
observar com precisão os fatos sensíveis é a disciplina
física que já tem três séculos de ilustre exercício. Como
lema de seu artigo copia o Sr. Dingler uma frase da
primeira Charta fundacional — 1662 — da Sociedade
Real de Londres, "cujos estudos destinar-se-ão em
promover o conhecimento das coisas naturais e as artes
úteis por meio de experimentos". E em continuação,
como segundo lema de combate, cita estas palavras de
Galilei: "A natureza não se preocupa de se suas
abstrusas razões e métodos de operar são ou não
acessíveis à capacidade do homem." Pois bem,
consoante nosso atrabiliário articulista, os físicos atuais
traíram a esta tricentenária consigna. Desertaram de sob
a bandeira galileiana e passaram- -se ao inimigo.
Nota-se que o Dr. Dingler é um inglês cem por
cento. Comodamente instalado no empirismo tradicional
de sua nação, não pode suportar que outro da mesma
tribo e clã, outro britânico, outro físico, Eddington,
tenha a insolência de escrever coisas como estas: "Em
todo o sistema das leis físicas não há nenhuma que não
possa ser inequivocamente deduzida de considerações
epistemológicas . Uma inteligência que não soubesse
qual é o sistema intelectual mediante o qual a mente
humana se interpreta a si mesma o conteúdo de sua
experiência sensível, seria capaz de adquirir todo o
conhecimento físico que nós adquirimos a fôrça de
experimentos."
A impertinência contra o método experimental não
pode ser de mais alentado tomo. Para saber o que,
consoante nossa ciência, ocorre neste mundo, não faz
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 9
falta nem sequer ter estado nêle; menos ainda, nem
sequer ter ouvido falar dêle. Basta com ter notícia da
matemática e do princípio de economia do pensamento,
que é um princípio doméstico, intra-humano e, por que
não dizê-lo, filosófico.
Para o Dr. Dingler tudo isto é puro aristo- letismo,
têrmo que sob sua pena se carrega de uma significação
quente e abafadiça como o dessas palavras confinadas
nos bairros periféricos do dicionário e que não se podem
pronunciar em sociedade. Aristotelismo é "a doutrina
consoante a qual a natureza é a manifestação visível dç
princípios gerais que a mente humana conhece sem
necessidade da percepção sensível".
Não podemos reprimir um leve movimento de
surprêsa ao ler isto, porque é de sobra conhecido que
Aristóteles e seus sequazes não admitem nada no
intelecto que não tenha estado antes nos sentidos. Por
outro lado, o fundador do pensamento moderno,
Descartes, luta acirradamente com Aristóteles e com o
escolasticismo porque são sensualistas. A cruzada
cartesiana vai contra o conhecimento sensível, quer
libertar o homem de sua escravidão sensorial. E contudo
há mais.
"Não é fácil — prossegue o Sr. Dingier —
enunciar numa frase a idéia que, pela primeira vez no
século XVII, produziu a 'ciência experimentar chamada
hoje ciência, mas não cremos cometer êrro apreciável se
afirmarmos que o primeiro passo no estudo da natureza
deve ser a observação e que não se devem admitir
princípios gerais que não sejam derivados da indução a
que se submete o observado."
O caso é que desde há trezentos anos se discute
precisamente isso que o Sr. Dingier dá como coisa livre
de possível êrro. Discute-se, desde os tempos do próprio
Galilei, se a ciência é observação ou alguma coisa mais.
Porque as objeções mais fortes que os aristotélicos opu-
nham a Galilei consistiam em satirizar-lhe por não
10 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

ajustar-se estritamente ao que se observa, no


experimento.
Pois fôra oportuno recordar ao articulista que os
aristotélicos, diante dos quais se achava Galilei, eram
predominantemente nominalistas, gentes que não
acreditavam — fazia já dois séculos — que a natureza
fôsse racional e que, por isso mesmo, somente cabia
dela um conhecimento empírico, de observação, que se
contentasse com formar teorias onde "se salvassem as
aparências", onde os "fenômenos manifestos" fossem de
algum modo ordenados. E por isso em Paris e em Pádua
se faziam experimentos cem anos antes que em Pádua
estudasse Galilei.
Como se vê, basta com recolher nossas primeiras
reações ao artigo do Sr. Dingler para fazer-nos pensar
que êste enérgico paladino anda um pouco aos
trompaços com a história da ciência e propende a crer
que as coisas são menos desesperadamente complicadas
e problemáticas do que são. Pois com surpreendente
ingenuidade e como dando o dilema por resolvido de
antemão, procura cingir a questão para não deixar-nos
fugir, nesta fórmula: "A questão que agora está diante de
nós é se o fundamento da ciência deve ser a observação
ou a invenção."
Trezentos anos, Sr. Dingler, trezentos anos faz que
as pessoas da Europa ruminam essa questão para o
senhor resolvida, está claro!
E, no entanto, não há um pouco de razão ou, pelo
menos, de compreensível motivo nesta quixotesca saída
do apaixonado doutor? Não há alguma coisa na física
atual que inquieta, que preocupa pelo porvir desta
ciência? Ninguém duvida de que êstes últimos vinte e
cinco anos foram uma das grandes épocas da física e de
que esta é uma das grandes coisas que até agora pariu a
humanidade, uma das grandes etapas da história
humana. E, contudo... La Nación, de Buenos Aires, 19
de setembro de 1937.
II — Propaganda do bom-humor. — Física e
guarda-roupa. — Ou filósofo ou sonâmbulo
Não creio que a polêmica suscitada pelo Dr.
Herbert Dingler no semanário inglês Nature contribua
para esclarecer as coisas. Inspirou-a o mau-humor. E o
mau-humor é estéril. Tôdas as grandes épocas souberam
sustentar-se sôbre o abismo de miséria que é a
existência, graças ao esforço desportivo do sorriso. Por
isso os gregos pensavam que o ofício principal dos
deuses era sorrir e até rir. O rumor olímpico é, por
excelência, a gargalhada. Se um povo nôvo como a Ar-
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 11
gentina resolvesse fazer do bom-humor uma instituição
nacional a que tôda a gente se submetesse, seu triunfo
na história estaria assegurado. Mas não é fácil que o
consiga. Porque tôdas as potências do mal estão bastante
interessadas em instaurar por tôda parte o mau-humor.
Sabem que um povo onde o mau-humor se estabeleça é
um povo destruído, agitado ao vento, pulverizado.
(Entre parênteses: que estupendo momento para os
pensadores de um povo jovem! Livres de todo
preconceito, poder escumar os milênios da experiência
humana e ensinar a seu povo os mandamentos da alta
higiene histórica! São tão evidentes, tão simples de ver,
tão claros de dizer! O mal é que os povos não podem
atender êsses evidentes imperativos senão num certo e
preciso momento, passado o qual se tornam ir-
remediàvelmente surdos. Pois bem, para a Argentina o
momento é êste, êste de agora! Mas eu não tenho por
que meter-me em assuntos tais.
A azáfama cotidiana me espanta; tenho que prosseguir
dando voltas em tôrno dela, hoje como ontem, amanhã
como hoje. Sorrimos um artigo mais!). {
É indubitável, dizia eu, que o mesentério da física
necessita uma boa limpeza. O esforço gigantesco que
fêz no último quarto de século deixou a máquina um
pouco afrouxada. O crescimento de seu império
cósmico foi — em precisão e em extensão — fabuloso.
Por isso convém um alto na caminhada e um tratamento
de serenidade .
Desde há anos, nas revistas mais técnicas desta
ciência, aparecem com freqüência artigos em que se
manifesta a mais justificada inquietação. Começa a não
ver-se clara a relação entre a doutrina a que se chegou e
a realidade. De um lado estão os grandes fatos
observados, de outro o aparato hipertênue das teorias,
teias de aranha sutilíssimas, como espectrais, reduzidas
quase a puras abstrações de simbolismo matemático. A
correspondência entre estas teorias e aquêles fatos, entre
o corpo das observações e o corpo dos conceitos ou
12 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

doutrinas se fêz equívoca. Há, sem dúvida,


correspondência, mas não se sabe bem em que consiste.
Às vêzes parece como se o que a teoria física atual diz
não tivesse nada que ver com as "coisas".
Para que o leitor profano se represente de algum
modo a questão, imagine que alguém lhe apresenta num
papel uma série de operações aritméticas. Nesse papel
não há senão números e signos matemáticos. Ali não se
diz se se trata de contar libras esterlinas ou cadeiras ou
cisnes.
Suponhamos que o leitor entende essas contas no que
têm de puras contas. Mas eis que, aqui mesmo, então,
alguém acrescenta : isso que acaba o senhor de entender
é a realidade das coisas, a natureza, o mundo, o
"universo". Quanto melhor haja entendido aquêles
cálculos aritméticos, menos poderá entender que êles
sejam a realidade, isto é, que de algum modo a
representem, a descubram, a enunciem ou declarem. Sua
impressão era precisamente que ali, naquele papel, não
se falava absolutamente de coisas reais. Sentirá, pois,
estranheza, a mesma que, em nossa adolescência,
sentíamos quando pela primeira vez ouvíamos falar dos
pitagóricos, de uns homens estranhos, consoante os
quais as coisas são números . Os espectadores deixam
no guarda-roupa do teatro seus sobretudos e recebem,
em troca, fichas onde estão inscritos números. A cada
ficha corresponde um sobretudo e um lugar do guarda-
roupa; ao conjunto das fichas corresponde o conjunto
ordenado dos sobretudos e de seus lugares. Graças a
isso pode qualquer um com nossa ficha encontrar nosso
sobretudo, ainda que jamais o tenha visto. Isto é, que as
fichas nos fazem saber não pouco acêrca dos
sobretudos. E, contudo, uma ficha não se parece em
coisa alguma a um sobretudo. Eis aqui como pode haver
correspondência sem haver semelhança. O conjunto das
fichas é a teoria física; o conjunto dos sobretudos é a
natureza. Com uma diferença : as fichas são, ao fim e ao
cabo, coisas tangíveis e visíveis como os sobretudos.
Suprimam-se as fichas, ficam somente os entes ideais
que são os números e suas combinações, e isto é o que
constitui a teoria física. Portanto, alguma coisa que se
parece à natureza muito menos que uma ficha a um
sobretudo e que os cavalos às ostras.
A esta situação chegou a física atual. Uma
situação bastante paradoxal sem ser irritante. É ela para
o homem ocidental a ciência por excelência, o orgulho
de tôda sua civilização. Mas ciência parece querer dizer
conhecimento, e conhecimento parece significar
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 13
presença em nossa mente do que as coisas são. Mas a
ciência física não nos põe na cabeça senão fichas menos
ainda, números. Das próprias coisas não passa nada ou
passa pouco mais que nada para nossa mente. Justifica-
se prosseguir chamando a isso conhecimento? Não se
poderia, com igual fundamento, chamar-lhe guarda-
roupa?
Não vou eu dirimir a questão. Mas é o caso que os
próprios físicos não puderam sequer perceber o estranho
caráter que, enquanto conhecimento, oferece sua
ciência. E alguns dêles resolveram declarar que a física
é um "conhecimento simbólico", o que tem dos
sobretudos quem jamais os viu, mas possui o conjunto
das fichas e sabe que a cada uma destas corresponde um
daqueles e o lugar do cabide em que está pendurado. Ao
que não se resolveram nem êstes nem os outros físicos é
a refletir enèrgicamente sobre se um conhecimento
simbólico é, a sério, conhecimento. Por que há-de ser a
física um conhecimento? Porventura é o conhecimento
uma coisa tão clara que pareça justificado o empenho
das "ciências" em ser tidas por conhecimento? Por que
não há-de ser a física, e em geral as "ciências", outra
coisa: por exemplo, técnica e nada mais, técnica e nada
menos? Depois de tudo, se alguém dissesse que o
conhecimento foi somente uma tentativa e uma ilusão
dos homens da Grécia, que terminou em glorioso
fracasso, diria alguma coisa menos extravagante e muito
mais profunda do que parece, ainda que talvez não seja'
afinal de contas verdadeira.
Veja-se, pois, como na questão formulada pelo Dr.
Dingler fermentam outras muito mais graves e mais
radicais. Mas o Dr. Dingler e a maioria de suas vítimas
mantêm a polêmica dentro da órbita gremial. Não
querem embarcar- se em problemas filosóficos. Fazem
bem, que diabo! A física serve para muitas coisas,
enquanto a filosofia não serve para nada. Já o disse,
registre-se, um filósofo, o padrão dos filósofos,
14 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Aristóteles. Precisamente por isso sou eu filósofo:


porque não serve para nada sê-lo. A notória
"inutilidade" da filosofia é talvez o sintoma mais
favorável para que vejamos nela o verdadeiro
conhecimento. Uma coisa que serve é uma coisa que
serve para outra, e nessa medida é servil. A filosofia,
que é a vida autêntica, a vida possuindo-se a si mesma,
não é útil para nada alheio a ela própria. Nela, o homem
é somente servo de si mesmo, o que quer dizer que
somente nela o homem é senhor de si mesmo. Mas,
claro está, a coisa não tem importância. Fica o leitor em
inteira liberdade de escolher entre estas duas coisas: ou
ser filósofo ou ser sonâmbulo. Os físicos, em geral,
comportam-se nictòbatamente dentro de sua física, que
é o sonho egrégio, a modorra genial do Ocidente.
Contudo, alguns dêstes homens formidáveis que
irritaram o excelente Dr. Dingler, homens como
Eddington, como Milne, Wittrow, Wheele, Robertson,
isto é, a extrema vanguarda da física no dia em que
escrevo, encontraram-se com a física que estavam
amassando com suas pulcras mãos matemáticas se lhes
fermentava e se lhes convertia em alguma coisa assim
como filosofia. Lembrem-se as palavras da resposta que
dá Eddington a seu agressor e que citei no artigo
anterior: "Não há nada em todo o sistema das leis físicas
que não possa ser deduzido inequivocamente de
considerações epistemológicas." É esta uma das coisas
que puseram mais frenético ao Dr. Dingler.
Considerações epistemológicas! Mas, isso é filosofia!
Eddington e congêneres entregam, manietada, a física à
filosofia! Traição!
Porque, como disse eu, soaram palavras fortes
nesta rixa de cientistas. Dingler usa literalmente a
palavra "traidores". Logo veremos com que gentil graça
Milne quase chama a Dingler "cigano".
Prossigamos assistindo à pendência com bom-
humor, mas ao mesmo tempo com sincero fervor. Não
pode ser-nos indiferente o que acontece à física. Seja ou
não conhecimento, seja-o num ou noutro sentido, o
indiscutível é que constitui a maravilha do Ocidente. Se
é ela questionável, o é até a raiz de tôda a cultura
ocidental. Sem a rigorosa disciplina secularmente
depurada e sustentada pelo pensamento físico, a mente
européia perderia tôdas suas arestas específicas e
retrogradaria ao confuso e aflitivo pensar do asiático ou
do africano. A própria filosofia, que necessita tão poucas
coisas, carece, sem remissão, da física para poder ser o
contrário dela, que é sua missão.
La Nación, de Buenos Aires, 10 de outubro de
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 15
1937.

III — Conversão da física em geometria. —


Observação ou invenção — Grécia ou Egito

Trata-se, aqui, de uma questão importante: a


física, nossa ciência exemplar, encontra-se a ponto de
mudar súbitamente de aspecto e de caráter. O leitor, por
mais distanciado que esteja dos estudos científicos, tem
obrigação de esforçar-se em conhecer pelo menos suas
grandes vicissitudes. Está claro que o "leitor",
acostumado como está a que se dirijam a êle demagogos
— boa porção dos que hoje escrevem o são numa ou
noutra medida — acredita que somente têm direitos, que
êle não está obrigado a nada. Mas, convém que vá
mudando de opinião, e sobretudo de comportamento,
sob pena de passar bem mal nos anos porvindouros
sôbre nossa espécie.
Milne é o físico contra o qual o Dr. Dingler dirigiu
seu mais violento ataque. Havia aquêle dito que "se o
universo efetivo não segue os pormenores da construção
matemática, a coisa não tem importância". Isto sublevou
o Dr. Dingler. De que falam então êstes novos físicos —
pergunta-se o Sr. Dingler — se pouco se importam que
as coisas coincidam ou não com suas elo- cubrações? A
estas extravagâncias leva o "apriorismo", o
aristotelismo. Galilei representa diante de Aristóteles a
não crença em que a razão da natureza seja a mesma do
homem, e a forço- sidade conseqüente em que êste se
acha de buscar nas "observações sensíveis" os princípios
que aquela deixa entrever. "A história — prossegue
Dingler com certa solenidade patética — mostra poucos
exemplos de lealdade a um legado comparável com a
das gerações de trabalhadores científicos que seguiram."
Por faltar a essa lealdade cai agora a física numa
estranha "combinação de paralisia da razão com
intoxicação da fantasia".
16 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Vejamos o que há de verdade em tudo isto. Milne,


com uma admirável serenidade de jovem atleta
matemático, responde num artigo escrito como somente
sabem escrever os matemáticos. Os demais escritores
podemos, com esforço, chegar a uma clareza plástica,
quase tangível. Mas há outra clareza mais essencial e
oposta a essa, uma clareza feita de diafanidade e
transparência, como ultraterrena, em que as próprias
coisas desaparecem e fica somente no ar limpo,
alciônico, sua pura voz. Parece-nos, lendo a êstes
autores, que as coisas, sem intermediário, sem turgimão,
se declaram por si mesmas, dizem-se-nos.
Milne se propõe orientar-nos sôbre o uso
intelectual, o procedimento que em suas investigações
seguiu.
A física padece uma dualidade que é irracional .
De um lado nos diz que é o que existe, constrói uma
realidade pura — chame-se-a átomo ou como se queira.
Depois, e à parte, investiga experimentalmente como se
comporta essa realidade. É evidente que a física não
será uma disciplina suficientemente racional enquanto
estas duas partes dela não se unam; isto é, enquanto não
se consegue derivar racionalmente o comportamento das
coisas de sua realidade ou estrutura .
É isto o que procuraram, e em boa parte
conseguiram, fazer Milne, e com êle Wittrow, Wheele,
Robertson, etc.
Milne se propõe aplicar da maneira mais radical
possível o princípio da economia do pensamento, que é
um princípio filosófico, pelo menos epistemológico e
não físico. A êste fim tentará derivar tôdas as leis físicas
de um mini- mum de admissões consistentes na
descrição mínima do que existe. Estas admissões são
duas: a homogeneidade do Universo — em distribuição
e movimento — e a existência de alguém que perceba a
relação de antes e depois; em suma, o movimento. Estas
admissões ou supostos são constituídos em axiomas, no
sentido rigoroso que êste têrmo tem hoje na matemática
pura. Desses axiomas Milne deriva teoremas sem
empregar notícia alguma experimental, eliminando
tôdas as leis quantitativas (obtidas por observação) da
física. A teoria da relatividade lhe induziu a esta
tentativa. Pois bem, diz Milne: "É uma coisa
surpreendente que a eliminação de todo auxílio
empírico, incluindo todo apoio em leis quantitativas da
física, possa ser levada tão longe como, com efeito,
acontece, não obstante a imperfeição do estado presente
da teoria." Ninguém pôde surpreender-se mais que o
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 17
presente escritor. Não se trata, pois de uma fé a priori
que convide à burla, mas que é preciso reconhecer como
um fato de experiência que quando eliminamos todos
êsses apoios empíricos emergem diante de nós
regularidades (como conseqüências lógicas das
hipóteses), as quais têm o mesmo papel que as
autênticas leis da natureza, cuja vigência está garantida
pela observação. Ora, estas regularidades têm a dignida-
de de teoremas, e a estrutura ou corpo lógico resultante
tem a dignidade (ou te-la-ia se tivesse chegado à
perfeição) de uma abstrada geometria baseada em
axiomas. Nela derivamos racionalmente do que existe as
leis de seu comportamento. Graças a isso deixam estas
de ser, como até aqui, costumes contingentes que
observamos nas coisas e se convertem em
conseqüências inexoráveis de sua própria constituição
ou estrutura. Agora são de verdade leis da natureza e
não caprichos dela.
Ou seja — e é isto a grandeza do fato — que a
física está a ponto de converter-se numa geometria que
entre seus vários axiomas inclui um onde se antecipa a
noção de movimento. O qual — passando agora
novamente de clareza matemática à clareza plástica —
significa que um homem encerrado em sua casa, sem
aparelhamento, sem matérias observáveis, por simples
combinação de idéias, pode em poucas semanas
redescobrir o que exigiu empregar trezentos anos e
trinta mil laboratórios. Com êste agravante: que não há
razão para que esta nova física-geo- rnetria não prossiga
suas deduções e verifique inumeráveis leis novas.
18 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

mm

A dignidade ou caráter matemático desta in-


vestigação não permite, está claro, garantir que as
coisas se comportam consoante êsses teoremas. A
observação será quem decida se, com efeito, é assim.
Mas é evidente que o papel desta fica, em princípio,
invertido. Consoante Dingler, somente a observação
nos permite descobrir as leis da natureza. Consoante
Milne, pode-se chegar % a elas a priori e a
observação reduz seu papel a confirmá-las.
Daí que, mesmo no caso de que os teoremas
achados por êsse método não encontrassem cum-
primento dos fenômenos observáveis, o corpo de
doutrina obtido prosseguirá tendo seu valor in-
dependente como o têm as geometrias de espaços
inobserváveis. Houvera sido um crime de lesa-
ciência esmagar as tentativas de criar geometrias
não-euclideanas com o pretêxto de que os meios
experimentais de há setenta anos não permitiam
decidir se eram aplicáveis ou não. A teoria da
relatividade, auxiliada por meios de observação mais
precisos, mostrou que o corpo de puros teoremas
chamado geometria euclideana não se cumpre nos
fenômenos da natureza e que, ao contrário, se
cumprem os teoremas da geometria de Riemann. O
mesmo acontecerá agora. É preciso criar uma série
de puras físicas-geometrias partindo de axiomáticas
diferentes.
Recorde-se que uma das coisas que contraíam
o diafragma do Dr. Dingler era ouvir a êstes novos
físicos falar do "universo". O físico não pode falar
senão da porção de realidade que está ao alcance de
sua observação. O têrmo
"universo" implica que transcendemos os limites do
observável e que nos permitimos supor dogmaticamente
como é a porção de realidade inobservável . É isto o que
faz Milne e com êle tôda física-geometria ao antecipar,
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 19
em forma axiomática, que o "universo" é homogêneo e
isótropo.
Do ponto de vista da física tradicional tem razão o
Dr. Dingler neste extremo. Mas Milne responderá a isto
com insuperável clareza: em primeiro lugar, o Universo
de que eu falo não é é o Universo real, mas o definido
por mim no conjunto de meus axiomas. A êle me atenho
e de suas características imaginárias deduzo meus
teoremas. Depois comparo êstes com as leis da física
experimental, que ela, sim, fala do real, e vejo que
coincidem. Somente então, e agora sim, adquire meu
Universo o caráter de real, e não imaginário. Em
segundo lugar, eu parto axio- màticamente da
homogeneidade do Universo para construir um corpo de
conseqüências lógicas, isto é, para ver a que resultados
racionais, a que série de puros teoremas leva essa
suposição. Em minha teoria, a homogeneidade do
Universo representa exatamente o mesmo papel que o
axioma do plano na geometria de Euclides. Mas nem
que dizer tem que não somente podem, senão que
devem construir-se outras físicas-geometrias partindo
de outros supostos. Eu acreditei que devia começar pelo
caso mais simples: o de um Universo homogêneo. Mas
depois conviria tentar, por exemplo, êste outro: um
Universo em que ao redor de um núcleo homogêneo
existam, aros de heterogeneidade crescente.
Como se vê, a mudança é profunda. Agora se trata
de chegar aos fatos, não por meio da observação, mas ao
contrário, por meio de construções imaginárias. Dito em
outros têrmos: a física consistiria na criação de um
repertório de mundos ideais, puramente inventados.
Cada um dês- ses mundos, tomado em sua totalidade, é
o que é preciso comparar com o conjunto dos fatos ob-
servados . Aquêle mundo ideal deverá ser considerado
como o real, em que êstes fatos observados encontram
melhor acomodação.
20 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Que responderemos, pois, ao dilema em que o Sr.


Dingler coloca a questão, ao dilema de se o fundamento
da ciência deve ser a observação ou a invenção?
Responderemos, como já fizemos, que isso é o
que se discute, não agora, mas desde há trezentos anos;
que êsse dilema não é, como pretende ser, uma
formulação inequívoca do problema . A mera
observação não funda a ciência. O Dr. Dingler tem uma
idéia bastante ridícula da história do pensamento se
acredita que os homens não observaram antes de Galilei
e se acredita que a inovação genial dêste foi observar. A
observação, a de Galilei como a do homem paleolítico, é
impossível sem invenção prévia. Os fatos não nos dizem
nada espontâneamente. Esperam que nós lhes dirijamos
perguntas dêste tipo: Sois A ou sois B? Mas A e B são
imaginações nossas, invenções.
Depois de tudo, ocorre à física o mesmo que já
aconteceu à geometria. Os egípcios tinham
uma geometria que era empírica. Os gregos fi-
zeram dessa geometria empírica uma disciplina racional.
Na física há também um aspecto grego e um aspecto
egípcio. O Sr. Dingler fica com o aspecto egyptiari, que #
em inglês soa a alguma coisa parecida com "cigano".
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 21
La Nación, de Buenos Aires, 26 de outubro de
1937.

IV

Destas considerações sôbre a polêmica aberta na


Inglaterra em torno das investigações físicas mais
características da hora atual se depreende, pelo menos,
que esta grande ciência atravessa uma etapa perigosa.
Perigosa porque caminha sem clareza suficiente sôbre si
mesma. Não se sabe bem qual é o caráter de conheci-
mento próprio à física. Não se sabe bem qual é o papel
da experiência e o do puro raciocínio na faina de sua
edificação. E nem sequer se sabe bem o que seus
grandes iniciadores dos séculos XVI e XVII — Kepler,
Galilei, Newton — pretenderam fazer.
Porque dar como coisa patente e indiscutível,
consoante intenta o Dr. Dingler, que a obra de Galilei
consiste em desprezar os raciocínios a priori, como
fundamento da física, e partir, sem mais, da observação,
é uma arbitrariedade do enérgico doutor.
Conceda-me o leitor a satisfação de ler agora o
que, em 1927, escrevia eu como nota a
22 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

meu ensaio "La filosofia de la historia de Hegel y


la historiologia" ( 34 ) :
"Nada houvera surpreendido tanto a Galilei,
Descartes e demais instauradores da nuova scienza
como saber que três séculos mais tarde seriam
considerados como os descobridores e entusiastas do
'experimento'. Ao estatuir Galilei a lei do plano
inclinado, foram os escolásticos aquêles que se faziam
fortes no experimento contra aquela lei. Porque, com
efeito, os fenômenos contradizem a fórmula de Galilei.
É êste um bom exemplo para entender o que significa a
'análise da natureza' diante da simples observação dos
fenômenos. O que observamos no plano inclinado é
sempre um desvio da lei da queda dos corpos, não
somente no sentido de que nossas medidas dão apenas
valores aproximados àquela, senão que o fato tal e como
se apresenta não é uma queda. Ao interpretá-lo como
uma queda, Galilei começa por negar o dado sensível, se
volta contra o fenômeno e opõe a êle um 'fato
imaginário', que é a lei: o puro cair no puro vazio de um
corpo sôbre outro. Isto lhe permite decompor (analisar)
o fenômeno, medir o desvio entre êste e o
comportamento ideal de dois corpos imaginários. Esta
parte do fenômeno, que é desvio da lei da queda, é, por
sua vez, interpretada imaginàriamente como choque
com o vento e roçar do corpo sôbre o plano inclinado,
que são outros dois fatos imaginários, outras duas leis.
Depois pode recompor-se o fenômeno, o fato sensível
como intersecção dessas várias leis, como combinação
de vários fatos imaginários.
"O que interessa a Galilei não é, pois, adaptar suas
idéias aos fenômenos, mas, ao contrário, adaptar os
fenômenos mediante uma interpretação a certas idéias
rigorosas e, a priori, independentes do experimento; em
suma, a formas matemáticas. Esta era sua inovação;
portanto, tudo o contrário do que vulgarmente se acre-
ditava há cinqüenta anos. Não observar, mas construir a
priori, matematicamente, é o específico do galileismo.
Por isso dizia para diferenciar seu método: 'Giudicare,
signore Rocco, qual dei due modi di filosofare cammini
piü a segno, o il vostro fisico puro e simplice bene, o il

34 Veja-se o livro Goethe desde dentro, Madrid, 1933. [Tomo IV das Obras Completas ] .
mio condito con qualche spruzzo di matematica'
{Opere, II, 329) .
"Com clareza quase ofensiva aparece êste espírito
num lugar de Toscanelli: 'Che i prin- cipii delia dottrina
de motu siano veri o falsi a me importa poquíssimo.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 23
Poichè se non son veri, fingasi che sian veri conforme
habbiamo suppos- to, e poi prendasi tutte le altre
specolazioni de- rivate da essi principii non come cosi
miste, ma pure geometrich. Io fingo o suppongo que
qual- ch corpo o punto se mouova all (ingiú de aH'insü
con la nota proporzione e horizontalmente con moto
equabile. Quando questo sia io dico che seguira tutto
quello che ha detto il Galilei, ed io anchora. Se poi le
palie di piombo, di ferro, di pietra, non osservano quella
supposta proporzione, suo danno, noi diremmo che non
parliamo di esse' (Opere, ed. Faenza, 1919, vol. III,
357).
"De modo que se os fenômenos — as bolas de
chumbo, de ferro e de pedra — não se comportam
consoante nossa construção, pior para elas, suo danno.
"Claro está que a física atual se diferencia muito
da de Galilei e Toscanelli, não somente por seu
conteúdo, mas por seu método. Mas esta diferença
metódica não é contraposição, senão ao contrário,
continuação e aperfeiçoamento, depuração e
enriquecimento daquela tática intelectual descoberta
pelos gigantes do post-renasci- mento."
Dez anos se passaram e, ao que pôde ver o leitor,
tôda a vanguarda da física vem a coincidir da maneira
mais literal com aquela caracterização minha, incluindo
nela as frases dos clássicos que eu adotava, uma das
quais, a mais audaz, a de Toscanelli, era bem pouco
conhecida. Como Milne diz, provocando a zanga de
Dingler: "Não importa que as coisas não coincidam com
o pormenor da construção matemática" (Milne fala
propriamente da extrapolação), o grande Toscanelli diz
que se as coisas não se comportam como a teoria, "pior
para elas". Ora, Toscanelli é o máximo discípulo de
Galilei e é o chefe da geração imediata a êste. Que resta
da patética afirmação do Dr. Dingler sôbre a fidelidade
sem par ao programa galileiano das gerações subse-
qüentes? Claro que, no fundo, tem razão, contra sua
24 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

vontade. Toscanelli é fiel a Galilei, porque o programa


de Galilei não é o que o Dr. Dingler supõe.
Quando, na altura de 1920 ou 1921 Einstein
visitou Madrid me ocorreu dizer-lhe: "Acabará o senhor
fazendo da física uma geometria!"
, Não são para serem enunciadas aqui as razões que me
moviam já naquela época a pensar assim, porque sua
compreensão requer inexcusàvel- mente certo, ainda
que bem modesto, tecnicismo. (Para o leitor
matemático me basta referir- -me à evidente tendência
que manifestava desde logo a mecânica relativista em
absorver a dinâmica na cinemática.) Os que assim são
para dizer são os espantos que fêz Einstein, os olhos
estupefactos que pôs. Era tôda a cenografia e o jôgo
pantomímico com que se costuma enfrentar a audição
de uma gigantesca estupidez, uma dessas cretinices
sem tratamento nem ortopedia possíveis . Estou tão
convencido de que vimos a êste mundo para não
entender-nos uns aos outros, somos na mútua
incompreensão tão geniais e empregamos tal
refinamento, que se tornou para mim em regosijante
diversão estudar esta arte de não entender-nos, analisar
suas diferentes formas e reconstruir em cada caso seu
mecanismo. A diversão chega ao superlativo quando o
mal- -entendido sou eu e diante de mim vejo uma pes-
soa convencida plenamente de que sou um imbecil.
Neste alvoroço entre o altruísmo muito mais do que se
suspeita, porque na maioria das ocasiões eu sei que o
outro necessita acreditar que sou um imbecil, convém-
lhe convencer-se disso para nutrir a fé em si mesmo
que leva ferida ou claudicante. Faço-lhe, pois, um
grande favor sendo eu um mentecapto. Não era êste,
está claro, o caso de Einstein, pelo menos naquele
momento. Poucos homens tiveram tanto direito como
êle em acreditar em si mesmos, pôsto
/

que vinham a adular-lhe até as próprias constelações .


Precisamente sua cerração — que é enorme — provém
do mecanismo inverso. Para compreender temos que
estar bastante alerta, isto é, bem prevenidos de que não
vamos compreender . Ora, é isto muito difícil quando o
Zodíaco veio a dar-nos de golpe a razão e passeamos
pelo planêta, levando como balangandãs, dependurados
na corrente do relógio, o próprio Sagitário e o Leão, a
Balança e a Virgem. Por isso Einstein se crê com certo
direito a não dizer mais que parvoíces quando fala de
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 25
assuntos alheios à física.
E mesmo neste assunto que pertencia à física
podia ter-se poupado os espantos. E, com efeito, um fato
que hoje Milne chama com todas suas letras geometria à
física que se está fazendo e que declara ter sido levado a
esta direção pela teoria da relatividade.
Mas não olvidemos, antes de tudo, e depois de
tudo, o principal ensinamento que desta cacofonia na
física devemos reter: a falta de clareza em que esta
ciência se acha hoje com referência a si mesma como
ciência. Porque esta conversão da física em geometria
que a vanguarda da física está executando não é mais,
como o próprio Milne diz, que um "fato surpreendente",
isto é, um fenômeno surgido na vida do pensamento,
mas cujo sentido e cujos fundar mentos não
conhecemos.
E esta falta de clareza na ciência mais exemplar
procede da mesma causa que a falta de clareza reinante
hoje nas demais ordens da
V

155

MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
vida; por exemplo, na política, a saber: da resistência
anárquica a submeter tôda disciplina a uma filosofia que
o seja de verdade, portanto, que seja uma arquitetura
radical de nossas idéias. Como uma coletividade
numerosa não pode viver sem um poder público e sua
política, a exuberante civilização européia não pode
existir sem a instância última de uma filosofia. Nem
sequer durante a Idade Média foi isto possível, apesar de
que a Religião conservava tôda sua vigência sôbre as
almas. O escolasticismo foi durante muitos séculos o
agente policial das idéias ocidentais, inclusive das idéias
teológicas.
LA NACIÓN, DE BUENOS AIRES, 7 DE NOVEMBRO
DE 1937.(11) MAX SCHELER, Scciologia dei saber,
trad. esp., Madrid, 1935, págs. 140-1.
(12) WERNER SOMBART, Witschalt, in
"Handworterbuch der Soziologie", Stuttgart, 1931,
pág. 654.
(26) O. SPENGLEK, O homem e a técnica, o. c.,
pág. 132.
(31) NICOLA ABBAGNANO, Introduzione
aWesistenzialismo, Torino, 1947, pág. 184.

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