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VITA
JOSÉ ORTEGA Y GASSET
M E D I TA Ç Ã O D A T É C N I C A
Vicissitudes das ciências Cacofonia na física
2. CONCEITO DE TÉCNICA
A conclusão orteguiana é problemática e sua
meditação, preliminar. Nem poderia ser diferente, se
o pensador madrilenho quisesse permanecer, como
egrègiamente permanece, numa atmosfera filosófica,
problematicística, pois a missão principal da
filosofia, para não dizer a única, é a problematização
de tudo o que se lhe apresenta, seja da realidade, seja
das proposições sobre ela, isto é, a única coisa que
pode fazer a filosofia é ver os problemas como
problemas, ou seja, examinar a significação de todos
os problemas e de todo o problemático. E não há
nada mais problemático do que qualquer das
dimensões do humano, uma das quais é a técnica,
cujo sentido, vantagens, danos e limites foram o
tema de Ortega em suas preleções de 1933, antes da
utilização da energia nuclear, da astronáutica, da
automação, da psicologia experimental . Claro está
que problema não é apenas uma incógnita a
determinar, mas a necessidade na qual encontra o
nosso pensamento explicação de um objeto qualquer
(real, ideal, axiológico, metafísico) . E o primeiro
problema filosófico da técnica está na idéia de
"criação" ensejada pelo aparecimento de novas
matérias (petroquímica, fibras sintéticas), alterando a
própria vivência imediata que o homem tem do que é
substância ou coisa. E isto de modo especial quando
nos ocorre que esta noção de substância surgiu na
Grécia, há mais de vinte séculos, nos exorcismos das
primeiras "técnicas" significativas dos helenos . Com
I
X —-....................-
PRÓLOGO
i
3. TÉCNICA E SOCIEDADE
Entendida a técnica, em sentido largo, como o
emprêgo de instrumentos e de procedimentos
específicos para a melhor e mais eficiente execução
de uma obra ou tarefa humana, é evidente que ela
nasce com a própria história do homem a partir do
momento em que êle consegue obter da natureza
aquilo que deseja, fabricando os primeiros
instrumentos. Mas, qual teria sido o instrumento
matriz, origem dos restantes, cujo ponto culminante
viriam a ser as chamadas máqui- nas-ferramentas, as
máquinas que fabricam máquinas? A resposta só
pode ser uma: a mão humana. Com efeito, a
máquina nada mais é que o prolongamento do
utensílio que, por sua vez, prolonga a mão do
homem. Assim, a técnica não nasceu na Idade
Moderna, com a aplicação das máquinas na
produção industrial, pois essa produção tecnológica
é a culminância de um processo cujas raízes partem
do mais recôndito da história do homem. Êste
processo começou quando o homem, pela primeira,
utilizou-se de uma pedra como arma de defesa e
ataque, ou como instrumento. Entre aquela pedra e a
máquina mais complexa da indústria moderna há
uma diferença de grau, não de qualidade.
Com efeito, a atitude erecta libertou as mãos do
homem primevo e as primeiras ferramentas foram
apenas o prolongamento destas mãos. O
desenvolvimento cerebral dispensou o homem da
especialização morfológica, e a sua mão,
"exteriorização ativa" dêste cérebro, serviu para a
defesa, para o ataque e para tôdas as necessidades
práticas ditadas pelo interêsse vital. Desta
interpretação resultaria uma confirmação da teoria da
projeção espontânea de L. Weber, consoante a qual o
instrumento primitivo foi apenas o prolongamento, a
imitação do órgão. Por isso a máquina é uma
projeção, não mais das partes terminais dos
membros, mas da própria articulação que une êstes
membros entre si e o tronco, permitindo-lhes
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XIII
7 F. AYALA, Traído de sociologia, vol. II, Buenos Aires, 1949, págs. 200-1.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XVII
4. TÉCNICA E ECONOMIA
Consoante Werner Sombart, o conceito de
economia abrange três aspectos: a) a mentalidade
econômica; b) a ordem econômica; c) a técnica. Ou
seja, um sistema econômico é um modo de exercer
atividades econômicas, determinado por uma
mentalidade específica, uma ordem ou uma
organização e uma técnica (23), interdependentes. É
óbvio que mentalidade, ordem ou organização e
técnica correspondem a determinadas estruturas
sociais, porquanto é difícil imaginar-se a
mentalidade do lucro numa sociedade comunitária.
Por outro lado, a técnica será revolucionária em
sociedades classistas, mas no regime de castas
sujeito ao princípio do dharma, os métodos
aplicados no processo de produção serão,
provàvelmente, estacionários. Assim, enquanto a
emprêsa medieval visava apenas o sustento dos que
nela trabalhavam — tendo sua extensão reduzida
devido à ordem econômica normativa — e a divisão
técnica do trabalho permanecia rudimentar, já a
10do ) R. THURNWALD, Die menschliche Gesellschaf, in ihre etho-soziologischen
Grundlagen, vol. IV, Berlin, 1931-35, pág. 268.
XX PRÓLOGO
5. ANTITÉCNICA
A romântica e lírica luta antitécnica se apre-
senta sob três aspectos distintos, consubstanciando a
mesma delação. A técnica é acusada: a) como anti-
social; b) como antiespiritual; c) como antinatural. É
lesiva ao homem e à sociedade, ao espírito e à
natureza. Com efeito, o contraste entre o homem e a
técnica é o tema preferido do utopismo e
messianismo hodiernos. Os autores das mais
6. TÉCNICA E NATUREZA
Evidentemente, tais e tantas críticas são
exageradas, apaixonadas e, mais do que tudo,
unilaterais. Só vêem uma face da moeda, omitindo a
outra. No entanto, no próprio século XIX tiveram os
antitécnicos contra si também um espírito de escol,
Reuleaux, o grande morfólogo das ferramentas. Por
outro lado, Dessauer, filósofo católico, vê na técnica
uma mensagem divina que "libertou os homens de
uma parte das atribuições que não eram dignas do
homem, que empregava só as forças mais baixas do
homem com tal prepotência, que impediam às outras
de se desenvolver. Mas não lhe bastou libertar o
homem e chamá-lo para atividades mais dignas:
aumentou de maneira gigantesca a medida do
trabalho possível" 24. Para Dessauer há de fato na
técnica "a virtude criativa de Deus, que enriquece o
mundo por meio do espírito do homem" 25. Lewis
Munford, menos comprometido com a teologia, diz
que "as ferramentas e utensílios usados durante
grande parte da história do homem eram, no
fundamental, extensões de seu próprio organismo.
24 F. DESSAUER, Filosofia delia técnica, trad. ital., Brescia, 1945, págs. 113-4.
25 F. DESSAUER, O. C., pág. 41.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
XXV
7. TÉCNICA E FILOSOFIA
Filosoficamente, a técnica surge como obra da
inteligência que pretende preordenar e predeterminar
abstratamente todas as coisas e reduzir não só o
trabalho mas a própria vida a uma regularidade que
exclui a novidade e a imprevisto e que substitui a
espontaneidade da vida pela ação uniforme de um
mecanismo. Em suma, diz Abbagnano, "a técnica
32 O único livro que, insuficiente também no que se refere ao problema geral da técnica, pude
aproveitar num ou dois pontos é ò de Gotl-Lilienfeld, Virtschait und Technik.
4 JOSÉ ORTEGA Y GASSET
1. ° A técnica do acaso.
2. ° A técnica do artesão.
3. ° A técnica do técnico.
A técnica que chamo do acaso, porque o acaso
é nela o técnico, o que proporciona o invento, é a
técnica primitiva do homem pré e pro- to-histórico e
do atual selvagem — entende-se, dos grupos menos
avançados — como os Vedas do Ceilão, os Semang
de Borneo, os pigmeus de Nova Guiné e do centro
africano, os australianos, etc.
Como se apresenta a técnica à mente dêste
homem primitivo? A resposta pode ser aqui so-
bremaneira taxativa: o homem primitivo ignora sua
própria técnica como tal técnica; não se apercebe
que entre suas capacidades existe uma
especialíssima que lhe permite reformar a natureza
no sentido de seus desejos.
Com efeito:
1.° O repertório de atos técnicos que usa e
desfruta o primitivo é sumamente escasso e não
chega a formar um corpo suficientemente volumoso
para que possa destacar e diferenciar-se do repertório
de atos naturais que é em sua vida in-
comparavelmente maior que aquêle. Isto equivale a
dizer que o primitivo é minimamente homem e
quase todo êle puro animal. Os atos técnicos, pois, se
dispersam e submergem no conjunto de seus atos
naturais e se apresentam à sua mente como
pertencendo à sua vida não técnica. O primitivo acha
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$
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2i JOSÉ ORTEGA Y GASSET
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podem fazer as máquinas que o homem é capaz de
inventar é, em princípio, ilimitado.
4.° Mas ainda resta um traço do artesanato que
contribui profundamente para impedir a consciência
adequada da técnica e, como os traços anteriores,
oculta o fato técnico em sua pureza . E é que toda
técnica consiste em duas coisas: uma, invenção de
um plano de atividade, de um método, procedimento
4i JOSÉ ORTEGA Y GASSET
CACOFONIA NA FÍSICA
N,
8i JOSÉ ORTEGA Y GASSET
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IV
34 Veja-se o livro Goethe desde dentro, Madrid, 1933. [Tomo IV das Obras Completas ] .
mio condito con qualche spruzzo di matematica'
{Opere, II, 329) .
"Com clareza quase ofensiva aparece êste espírito
num lugar de Toscanelli: 'Che i prin- cipii delia dottrina
de motu siano veri o falsi a me importa poquíssimo.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 23
Poichè se non son veri, fingasi che sian veri conforme
habbiamo suppos- to, e poi prendasi tutte le altre
specolazioni de- rivate da essi principii non come cosi
miste, ma pure geometrich. Io fingo o suppongo que
qual- ch corpo o punto se mouova all (ingiú de aH'insü
con la nota proporzione e horizontalmente con moto
equabile. Quando questo sia io dico che seguira tutto
quello che ha detto il Galilei, ed io anchora. Se poi le
palie di piombo, di ferro, di pietra, non osservano quella
supposta proporzione, suo danno, noi diremmo che non
parliamo di esse' (Opere, ed. Faenza, 1919, vol. III,
357).
"De modo que se os fenômenos — as bolas de
chumbo, de ferro e de pedra — não se comportam
consoante nossa construção, pior para elas, suo danno.
"Claro está que a física atual se diferencia muito
da de Galilei e Toscanelli, não somente por seu
conteúdo, mas por seu método. Mas esta diferença
metódica não é contraposição, senão ao contrário,
continuação e aperfeiçoamento, depuração e
enriquecimento daquela tática intelectual descoberta
pelos gigantes do post-renasci- mento."
Dez anos se passaram e, ao que pôde ver o leitor,
tôda a vanguarda da física vem a coincidir da maneira
mais literal com aquela caracterização minha, incluindo
nela as frases dos clássicos que eu adotava, uma das
quais, a mais audaz, a de Toscanelli, era bem pouco
conhecida. Como Milne diz, provocando a zanga de
Dingler: "Não importa que as coisas não coincidam com
o pormenor da construção matemática" (Milne fala
propriamente da extrapolação), o grande Toscanelli diz
que se as coisas não se comportam como a teoria, "pior
para elas". Ora, Toscanelli é o máximo discípulo de
Galilei e é o chefe da geração imediata a êste. Que resta
da patética afirmação do Dr. Dingler sôbre a fidelidade
sem par ao programa galileiano das gerações subse-
qüentes? Claro que, no fundo, tem razão, contra sua
24 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET
155
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
vida; por exemplo, na política, a saber: da resistência
anárquica a submeter tôda disciplina a uma filosofia que
o seja de verdade, portanto, que seja uma arquitetura
radical de nossas idéias. Como uma coletividade
numerosa não pode viver sem um poder público e sua
política, a exuberante civilização européia não pode
existir sem a instância última de uma filosofia. Nem
sequer durante a Idade Média foi isto possível, apesar de
que a Religião conservava tôda sua vigência sôbre as
almas. O escolasticismo foi durante muitos séculos o
agente policial das idéias ocidentais, inclusive das idéias
teológicas.
LA NACIÓN, DE BUENOS AIRES, 7 DE NOVEMBRO
DE 1937.(11) MAX SCHELER, Scciologia dei saber,
trad. esp., Madrid, 1935, págs. 140-1.
(12) WERNER SOMBART, Witschalt, in
"Handworterbuch der Soziologie", Stuttgart, 1931,
pág. 654.
(26) O. SPENGLEK, O homem e a técnica, o. c.,
pág. 132.
(31) NICOLA ABBAGNANO, Introduzione
aWesistenzialismo, Torino, 1947, pág. 184.