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Migrações contemporâneas: reflexões e práticas
profissionais.

Organizadores: José Sterza Justo e Mary Yoko Okamoto

2019
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp

Migrações contemporâneas: reflexos e práticas profissionais


M636 [recurso eletronico] / organizadores: José Sterza Justo e
Mary Yoko Okamoto. São Paulo: Cultura Acadêmica,
2019.
116 p.

Vários autores
ISBN: 978-85-7249-067-2

1. Migração. 2. Migração de retorno. 3. Mobilidade social.


4. Identidade. 5. Subjetividade. I. Justo, José Sterza. II. Oka-
moto, Mary Yoko.

CDD 150.195
Conselho Editorial

Alba Shirley Tamayo Arango. Universidad de Antioquia (UdeA), Colombia.

Daisy Margarit. Universidade de Santiago do Chile (USACH), Chile.

Ethel Volfzon Kosminsky. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Campus de
Marilia), Brasil

Francisco Hashimoto. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Campus de


Assis), Brasil.

Hélder Alicerdes Bahú. Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla (ISCED-Huíla), Angola.

Leonardo Cavalcanti da Silva. Universidade de Brasília (UnB), Brasil.

Maíra Bonafé Sei. Universidade Estadual de Londrina (UEL), Brasil.

Marco Catarci. Università degli Studi Roma Tre, Itália.

Nancy Benedita Berruezo Bergami. Universidade Estadual de Maringá (UEM), Brasil.

Rafael Siqueira de Guimarães. Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Brasil.

Rinaldo Molina. Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.

Roberto Marinucci. Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM-Brasilia), Brasil.

Victor Mantoani Zaia. Universidade Federal do ABC (UFABC), Brasil.

Sylvia Duarte Dantas. Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil.

Yoshimi Shigematsu. Universidade de Estudos Estrangeiros de Nagoia (Nagoya University of Foreign


Studies), Japão.
Sumário

Prefácio ................................................................................................................................................... 6

Capítulo 1
Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos
Marcelo Naputano, José Sterza Justo ................................................................................................. 12

Capítulo 2
Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento
José Carlos Franco de Lima, Gilmara Fernandes ............................................................................... 32

Capítulo 3
“No me parecía bien…” Cuidados, relaciones familiares y de género a la luz del relato de un inmigrado
boliviano desempleado
Laura Cristina Yufra, Enrique Santamaría .......................................................................................... 48

Capítulo 4
Olutchindo: articulações subjetivas no sudoeste angolano
Felizardo Tchiengo Bartolomeu Costa ............................................................................................... 62

Capítulo 5
Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural
María Liliana Inés Emparan Martins Pereira, Pablo Godoy Castanho.............................................. 71

Capítulo 6
Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão
Kyoko Yanagida Nakagawa ................................................................................................................. 85

Capítulo 7
Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão
Cizina Célia Fernandes Pereira Resstel, Mary Yoko Okamoto ........................................................... 99
PREFÁCIO

“O homem desenraizado, arrancado de seu meio, de seu país, sofre em um primeiro momento: é
muito mais agradável viver entre os seus. No entanto, ele pode tirar proveito de sua experiência.
Aprende a não mais confundir o real com a ideia, nem a cultura com a natureza: não é porque os
indivíduos se conduzem de forma diferente que deixam de ser humanos. Às vezes ele fecha-se em
um ressentimento, nascido do desprezo ou da hostilidade dos anfitriões. Mas, se consegue superá-lo,
descobre a curiosidade e aprende a tolerância. Sua presença entre os "autóctones" exerce por sua vez
um efeito desenraizador: confundindo com seus hábitos, desconcertando com seu comportamento e
seus julgamentos, pode ajudar alguns a engajar-se nesta mesma visão de desligamento com relação
ao que vem naturalmente através da interrogação e do espanto.” (TODOROV, TSVETAN. O homem
desenraizado, 1999, p.02).

Movimentações e deslocamentos de um lugar a outro fizeram parte da constituição da humanidade e


acompanharam toda sua história de tal forma que assim como é possível se destacar no ser humano sua
inteligência como um traço fundamental e se falar no “homo sapiens” ou se destacar sua capacidade de
transformação de si e de sua natureza pelo trabalho e denominá-lo como “homo faber”, também é possível
se destacar sua capacidade para viagens e deslocamentos, para a exploração e descobertas de outros lugares,
de outras plagas e, assim, denominá-lo como “Homo Viator”.

O mundo atual ampliou consideravelmente as possibilidades do ir e vir, as possibilidades de


movimentação e deslocamentos, tanto pelas tecnologias de transporte quanto pelas tecnologias de
comunicação que encurtaram significativamente as distâncias. Hoje, são comuns viagens e deslocamentos
como turistas, como profissionais para realização de trabalhos de curta duração, como empresários, como
políticos ou funcionários do alto escalão da administração pública em missões no exterior, como
trabalhadores em busca de melhores salários e condições de vida ou, simplesmente como aventureiros,
dentre tantas formas e sentidos da mobilidade que grassa nosso tempo.

Este livro aborda especificamente essa forma de mobilidade conhecida como “migrações humanas”.
O conceito de migração surge nas ciências sociais para dar inteligibilidade ao fenômeno dos deslocamentos
que se tornaram cada vez mais intensos e vistos como um problema social a ser enfrentado no mundo
moderno, marcado ao mesmo tempo pelo estabelecimento de fronteiras regionais e nacionais e por
deslocamentos em massa resultantes do fenômeno da globalização. Fluxos e correntes migratórias passaram
a ser objeto da produção de conhecimento e de políticas de Estado. Tais correntes e fluxos, antes produtores
de uma única mão de direção, por exemplo, da Europa para as Américas, mais recentemente se
multiplicaram criando outras rotas e, principalmente, invertendo a mão de direção daquelas já estabelecidas
ou gerando rotas de dupla direção, ou seja, de ida e volta ao mesmo tempo. Se antes, o migrante saía de um
lugar para se fixar em outro, mesmo tendo o sonho de retorno, hoje, ele pode ir e voltar, até mais de uma
vez, ou abandonar o primeiro destino e buscar um segundo. Por isso mesmo, as denominações anteriores
que diferenciavam os emigrantes – aqueles que saíam do país de origem rumo a terras estrangeiras– e os
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imigrantes – os estrangeiros que saíam de sua pátria ou terra natal para residirem em outro país acabaram
por perder seus sentidos originais, cedendo lugar para a palavra migração.

O avanço e diversificação das formas e dos sentidos da mobilidade não apenas ruiu antigas
diferenciações de rotas, rumos e direções, mas também colocou em xeque a diferenciação entre migrantes e
não migrantes. A mobilidade hoje afeta a todos, ainda mais se incluirmos nela a mobilidade psíquica, aquela
que torna as produções cognitivas, emocionais e afetivas, as produções, relações e vínculos psicossociais
igualmente móveis, flexíveis, migrantes, capazes de circularem com bastante desenvoltura, transitando
frequentemente de um objeto a outro. Num certo sentido, somos todos migrantes, mesmo permanecendo em
nosso pais de origem, posto que estamos submetidos à ampla lógica do deslocamento que preside a vida na
atualidade. Podemos migrar de uma profissão a outra, de uma área de conhecimento a outra, de um trabalho
a outro, de um relacionamento afetivo a outro, de uma posição ideológica ou política a outra e assim por
diante.

Portanto, ainda que referido especificamente àqueles tipificados como migrantes, strito sensu, este
livro vai além e pode ser tomado como um retrato do nosso tempo que expõe mazelas, desafios, conquistas
e realizações de vidas marcadas pela mobilidade. Assim, a partir das experiências de mobilidade radical dos
migrantes podemos compreender outras experiências de mobilidade geográfica e psicossociais que
ocorrem, inevitavelmente, na vida de todos nós, mesmo que, aparentemente, nos vejamos como sedentários.
Podemos tomar o conteúdo deste livro como um espelho que nos permite visualizar nossas próprias
migrações cotidianas. Um espelho múltiplo formado por trabalhos científicos de pesquisadores, do país e do
exterior, de diferentes áreas do conhecimento tais como a psicologia, a sociologia e a antropologia,

Assim como a multiplicidade de áreas e autores, são tratados diferentes assuntos ao longo dos
capítulos, abordando especificidades das experiências de migração que nos ajudam a pensar e refletir sobre
nossas próprias inserções nessa lógica da mobilidade do nosso tempo, até pelo fato de que o Brasil, além de
possuir no seu interior uma intensa migração regional, entrou definitivamente no circuito mundial das
migrações, tanto como país emissor, quanto como país receptor. Portanto, as migrações nos rondam a todo
o momento, sejam as nossas próprias, transitando por espacialidades geográficas e psicossociais diversas ou
pela presença, ao nosso redor, de estrangeiros com suas línguas, hábitos e costumes.

O primeiro capítulo percorre conceitos fundamentais, criados a partir de fenômenos migratórios, que
despertaram a ciência para desafios e embates criados com os encontros e confrontos de diferentes culturas.
Dessa forma, discute conceitos como o de multiculturalismo, interculturalismo, transculturalismo,
identidade e diferença, dentre outros, e as implicações desses conceitos na formulação de políticas de
imigração por diversos países, principalmente aqueles que se vêm assolados por migrantes e passam a vê-
los e tratá-los como um problema social. Nesse capítulo, os autores acrescentam, também, uma reflexão
sobre os desdobramentos dos desafios atuais para a psicologia brasileira devido às subjetivações geradas
nos encontros/confrontos culturais que ocorrem, não apenas entre aquilo que imaginariamente chamamos
de “cultura brasileira” e as culturas estrangeiras trazidas pelos imigrantes, mas também pelas subjetivações
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geradas nos encontros/confrontos entre as diferentes culturas regionais concretamente constituídas e que,
efetivamente, compõem como um mosaico, isso que designamos abstratamente como sendo a cultura
brasileira.

No capítulo II, os autores, docentes da Universidade Federal de Roraima, retratam o recente


fenômeno migratório deflagrado pela vinda, em massa, de venezuelanos para o Brasil, em função da crise
econômica e política pela qual atravessa aquele país. O Estado de Roraima e, principalmente sua capital,
Boa Vista, estão no epicentro dessa imigração em massa para a qual a infraestrutura desse Estado e de sua
capital não estavam preparadas. Nem mesmo o governo federal possuía algum preparo, pela negligência e
falta de atenção para com o fenômeno da chamada imigração de fronteira, que já vinha colocando o Brasil
como um dos destinos mais procurados por migrantes de países vizinhos e de outros mais distantes, como o
Haiti. Nesse capítulo, os autores relatam, detalhadamente, como a população e instituições locais,
rapidamente, se organizaram para o acolhimento dos venezuelanos, num primeiro momento, e como o
governo federal, posteriormente, agiu de forma arbitrária e autoritária militarizando o problema mediante o
envio de forças do exército para assumir todo o controle e a política em relação a esses imigrantes.
Descrevem os problemas e desafios deflagrados no âmbito do mercado trabalho, da educação, da saúde e
dos direitos humanos e situam a presença dos venezuelanos no contexto de um Estado caracterizado por
uma diversidade étnica que agrega migrantes de outros estados brasileiros e diversos povos indígenas.

O capítulo III traz a contribuição de uma parceria entre um pesquisador espanhol e uma
pesquisadora argentina, especialistas em migrações internacionais, abordando outro fluxo migratório crucial
da atualidade, que parte de países latino-americanos e africanos e tem a Europa como destino. Tal fluxo, às
vezes, é chamado de “migração de retorno” para caracterizá-lo como uma inversão do sentido de direção do
grande fluxo dos migrantes europeus deslocados para a ocupação dos extensos territórios da América e a
África, no período do expansionismo colonialista levados a cabo pelos países mais poderosos da Europa, na
época. Os autores destacam a figura da “imigração não comunitária” criada no imaginário das sociedades
europeias e, especialmente da espanhola, para designar, atualmente, a presença de imigrantes não oriundos
de países que formam a União Europeia, antes chamada de Comunidade Econômica Europeia. Dentre os
candentes problemas deflagrados com o intenso fluxo de migrantes e refugiados para a Europa e seus
complexos desdobramentos, esse capítulo aborda a conjugação da experiência da imigração com relações
familiais e de gênero, a partir de um estudo de caso de um imigrado boliviano vivendo em Barcelona. A
estrutura familiar tradicional de um jovem casal com uma filha pequena, com funções conjugais e parentais
estereotipadas é abalada quando as condições de trabalho e ofertas de emprego acabam por produzir uma
inversão dos papeis tradicionais, fazendo com que o homem tenha que assumir as tarefas domésticas,
sobretudo, a de cuidador da filha, enquanto a mulher trabalha fora de casa. O relato desse marido
desempregado expressa um mal-estar pela abdicação de sua função de provedor, cravada na sua identidade
masculina, relacionada com sua condição de imigrante. Nesse sentido, a experiência da migração pode

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trazer mudanças nas relações de gênero nas identidades aprisionadas a papeis enrijecidos criados em torno
da feminilidade e da masculinidade.

O capítulo IV traz outra contribuição de autores estrangeiros. Desta vez, um docente e pesquisador
angolano mergulha na cultura do povo Bantu para resgatar nela imagens e sentidos da migração,
profundamente enraizados. O autor busca, nas origens dos povos Bantu, sagas de caminhadas por várias
direções do continente africano. São povos constituídos por caminhadas que ainda persistem em práticas
tradicionais, por exemplo, de manejo do gado de um lugar a outro, em busca de melhores pastagens.
Caminhadas essas denominadas, na língua Bantu, de Olutchindo. Tal deslocamento do gado é feito
mediante um ritual que envolve a preparação da partida, a chegada ao lugar de destino e, por último, a
chegada, e pode incluir toda a família nessa saga. A experiência do ritual é muito marcante, inclusive,
deixando fortes lembranças da infância naqueles que dele participaram, conforme destaca o autor nos
relatos de alguns entrevistados. A própria língua também atesta o enraizamento desse ritual que, segundo o
autor, vai muito além das necessidades da criação do gado, alcançando uma importância, igual ou até maior,
no plano simbólico e político. O autor evoca uma série de palavras do vocabulário Bantu, bastante
utilizadas, que se referem ao ato de partir, de designar um destino, de realizar a viagem propriamente dita e
depois retornar. Destaca, também, um forte sentido político dado pelo fato de que o Olutchindo é realizado
coletivamente num espírito de solidariedade e confiança. O gado transportado para melhores pastagens e
fontes de água não pertence a um único dono e aqueles que o transportam não são remunerados e se
revezam nessa atividade. Toda a simbologia que acompanha o Olutchindo e seus enraizamentos na saga de
migrações na história dos Bantus podem ser entendidos como verdadeiros arquétipos do Homo Viator que
aparecem nessa cultura e em tantas outras, impulsionando as mais diferentes formas de deslocamentos,
migrações, errâncias e nomadismos.

Um assunto ainda pouco explorado na psicologia é tratado no capítulo V, a clínica do migrante.


Aliás, a própria psicologia ainda não assumiu, devidamente, seu papel nas questões das migrações que lhe
competem, a despeito de o país ter sido criado, enquanto um Estado, por imigrantes, muitos forçados, como
nos casos dos escravos trazidos à força da África, ou pelos primeiros invasores, exploradores e imigrantes
europeus, como também por outros migrantes vindos de terras mais longínquas, como no caso dos asiáticos
e outros povos que para cá vieram pelos mais diversos motivos. A psicologia continua distante das questões
da migração, a despeito, também, de hoje o país estar num dos epicentros das correntes migratórias, seja
como país emissor ou receptor. Neste engatinhar da psicologia rumo aos problemas e desafios trazidos pelo
fenômeno das migrações contemporâneas, os autores deste capítulo partem de suas próprias experiências
como migrantes e se valem de suas práticas de atendimento clínico a migrantes, de orientação psicanalítica,
para discutirem o alcance e possibilidades da psicologia nesse campo. Chama a atenção para a importância
de uma escuta capaz de conjugar a experiência pessoal e singular da imigração com o duplo entorno
sociopolítico formado pela realidade do país de origem e do país de destino, entedendo as migrações atuais
como um fenômeno transnacional. Dessa forma, os autores ressaltam as diferenças entre as experiências de

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migração, destacando a importância, na elaboração dos lutos, da criação de uma ponte entre ligando os
sentimentos de perda pelo que o imigrante deixa de si em seu país de origem às reinscrições de si na
sociedade e cultura do país de destino, mediante recuperações de projetos de vida ou superações de mazelas
e malogros vividos na terra natal. Experiências centrais como a do desamparo, do estranhamento, da
alteridade, da culpa e do mito do migrante herói e exitoso são destacadas e analisadas com exemplificações
de casos.

O “Projeto Kaeru” é o assunto do capítulo VI. Trata-se de um projeto de atendimento a crianças


retornadas do Japão, que acumula mais de 10 anos de experiência. O fenômeno dekassegui ganhou bastante
visibilidade no final da década de 1980 e início da década de 1990, com a saída em massa de brasileiros
descendentes de japoneses para trabalharem no Japão. Partiam sozinhos ou com suas famílias e
permaneciam, por muito tempo, às vezes tendo filhos nascidos no Japão onde trabalhavam em duras e
longas jornadas de trabalho com o objetivo de retornarem ao Brasil com uma boa poupança. O mito do
migrante herói e exitoso, discutido no capítulo anterior, povoa o imaginário dos dekasseguis e de seus
familiares. Porém, nem tudo é exitoso ou bem sucedido nesse projeto de busca por uma melhora na
condição econômica. Dentre os tantos problemas ou desafios no retorno, se colocam aqueles relacionados
aos filhos, alguns nascidos no Brasil e que permaneceram muitos anos longe da terra e da cultura natais,
outros nascidos no Japão e que se defrontam com o encontro de uma cultura completamente diferente e
estranha. As enormes dificuldades e sofrimentos vividos por crianças e adolescentes, juntamente com seus
pais, no retorno ao Brasil fez com que surgissem serviços de atenção e acolhimento especializados. O
Projeto Kaeru foi um desses serviços pioneiros. Conforme nos informa a autora deste capítulo, a palavra
“Kaeru” possui, pelo menos três significados referidos à ideia de retorno, “voltar”, a ideia de “transformar”
e à figura do “sapo” que também representa um estado de metamorfose. A autora detalha sua longa
experiência de criação e desenvolvimento desse projeto, expondo práticas e reflexões que contribuem tanto
para a construção de formas de atendimento a esse tipo de demanda, quanto para a compreensão desse
problema, não apenas nesse caso específico dos dekasseguis, mas também para casos semelhantes de outros
migrantes.

O capítulo VII também é dedicado à temática dos filhos de dekasseguis, à semelhança do capítulo
anterior. Ambos os capítulos permitem visualizar o caso dos dekasseguis como um bom exemplo da fusão
da noção de emigração com a de imigração, gerando a noção abrangente de migração. As experiências dos
dekasseguis são muito diversas e singulares. Alguns fazem uma única temporada de trabalho no Japão que
pode durar um ano ou muito mais; outros fazem mais de uma dessas temporadas e existem, ainda, aqueles
que acabam não retornando e fixando residência no Japão. Os casos desses que fazem várias temporadas,
indo e retornando, periodicamente, demonstram, cabalmente, essa condição de ir e vir na qual não se é uma
ou outra coisa, somente um emigrante ou imigrante, mas um migrante que praticamente vive em trânsito.
Neste capítulo é descrita e analisada uma experiência de atendimento psicológico aos filhos de dekasseguis
no Japão. Tal experiência ocorreu no bojo de um amplo projeto elaborado e desenvolvido numa parceria

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entre a UNESP e uma agência japonesa de cooperação internacional. Por este convênio, psicólogos
brasileiros foram ao Japão para realizarem, em várias províncias japonesas, atendimentos a filhos de
dekasseguis, principalmente aqueles que apresentavam sérias dificuldades de desempenho ou de adaptação
escolar. As autoras relatam todas as ações desenvolvidas junto às crianças e adolescentes, filhos de
dekasseguis, bem como junto aos próprios pais, professores, e associações culturais que tinham contato e
davam algum suporte a esses jovens. Por esse caminho, conseguiram rastrear as experiências dessas
crianças, adolescentes e de seus pais como estrangeiros e as condições nas quais vivem e que acabam
eclodindo na escola como caixa de ressonância de conflitos e mazelas vividos por eles.

Por isso, essa obra foi organizada com as diversas experiências e pesquisas dos autores e evidencia
as múltiplas facetas e os desafios do fenômeno migratório, seja para os indivíduos e famílias que vivem a
experiência como para os estados, a sociedade e as instituições envolvidas na recepção e convivência com
aqueles considerados “estrangeiros”, que vivem em constantes movimentos, entre idas e vindas, chegadas e
partidas. Assim, esperamos que o livro possa contribuir para que os leitores desfrutem da riqueza e
diversidade das experiências que tecem as múltiplas migrações do mundo contemporâneo.

José Sterza Justo


Mary Yoko Okamoto

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MIGRAÇÕES, MULTICULTURALISMOS E IDENTIDADES: REVISITANDO CONCEITOS

Marcelo Naputano1

José Sterza Justo2

Introdução

No vocabulário recente do debate político moderno, o multiculturalismo ou a sociedade


multicultural é certamente um dos termos mais utilizados e discutidos (LANZILLO, 2005). O homem
sempre migrou; contudo, a atribuição deste encontro do “eu” com o “outro”, descrita como uma experiência
“multicultural”, é algo da atualidade relacionado à intensificação do fenômeno migratório, à sua extensão
generalizada a todos os países do planeta e à produção discursiva.

Tamanhas dimensão e complexidade das migrações humanas na atualidade têm provocado ou têm
sido acompanhadas de mudanças diversas no cenário mundial nos planos socioeconômico, político, cultural
e em tantos outros planos, incluindo o da linguagem, particularmente a linguagem produzida na ciência.
Novos conceitos e terminologias (ou reformulações de alguns já existentes) surgem com frequência nas
teorias científicas voltadas para a compreensão das mudanças, dos desafios e dos problemas, de toda ordem,
que surgem no campo das tensões forjadas no “vai e vem” dos migrantes e na dinâmica dos fluxos
migratórios que se configuram na atualidade.

Um dos conceitos que passou a despontar, ser visto e revisto, nos estudos das migrações e que
começou a circular com desenvoltura no linguajar também da política foi o conceito geral de cultura,
passando a incorporar os prefixos “inter” e “multi” para expressar as ideias de interculturalidade e
multiculturalidade assumidas como as principais inovações conceituais nesse campo de estudos e de suas
consequentes práticas políticas de governança das migrações. Outro conceito colocado em cena pelos
estudos migratórios e também pelos estudos de gênero é o de identidade. Perdurou por bastante tempo na
psicologia a ideia de uma identidade pessoal e coletiva entendida como a existência de unidades

1
Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista/UNESP, com período Sanduíche na Itália
na Facoltà di Psicologia pela Università di Bologna/UNIBO. Especializações na Itália em Educação Intercultural pela Università
RomaTre/ROMATRE; em Educação pela Università di Torino/UNITO e Mediação Intercultural e Familiar pelo Istituto SHINUI
di Bergamo. Atualmente é Professor Assistente Doutor do curso de Psicologia da Universidade Federal de Roraima/UFRR,
Brasil.
2
Psicólogo, Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil) e docente do Programa de
Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Campus de Assis), Brasil.

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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

constitutivas da vida e da conduta da pessoa ou de uma coletividade, coerentes, harmônicas e estáveis no


espaço e tempo. Contudo, recentemente, ela passou a ser colocada em xeque e revista pelo reconhecimento
das pluralidades, multiplicidades e diversidades da vida e também de modos de ser que ultrapassavam o
binarismo rígido produtor de padrões de sexualidade e de conduta baseados nas categorias
masculino/feminino, definidas heteronormativamente.

Tais conceitos, pela importância que assumiram enquanto conceitos capazes de captar o cerne do
complexo fenômeno migratório atual e instruir bases de políticas migratórias, precisam ser examinados com
rigor em todas áreas de conhecimento e, particularmente, na área da psicologia que, embora ainda
timidamente, no Brasil, começa a se voltar para o estudo das questões cada vez mais candentes que surgem
no país enquanto emissor de brasileiros para o exterior e ao mesmo tempo receptor de estrangeiros. A
inserção do Brasil, com certo destaque, no cenário mundial das migrações tem forçado a psicologia, dentre
outras ciências e profissões, a se voltarem para as questões que emergem nos fluxos migratórios
constituídos pela saída de brasileiros para outros países, pelo retorno de egressos e pela vinda de
estrangeiros para residirem no país. Com a crescente centralização do papel da cultura nos problemas e
desafios diagnosticados nas migrações atuais surge uma psicologia brasileira dedicada ao estudo de
fenômenos multiculturais, que ainda opera por meio de modelos de interculturalidade desenvolvidos
principalmente no Canadá e na Europa.

No intuito contribuir para o desenvolvimento de psicologia brasileira voltada para as questões da


multiculturalidade, implicadas no fenômeno migratório, propormos um exame dos conceitos de
multiculturalismo e identidade, procurando reconstruir criticamente o debate/desafio multicultural
contemporâneo. Tal exame terá como corpus autores orientados pelos paradigmas das ciências
contemporâneas pós-estruturalistas, dos estudos culturais e do construcionismo social e será realizado sob
uma perspectiva crítica em relação à própria ideia de multiculturalismo, sobretudo quanto aos sentidos que
o sufixo “ismo” acrescenta e acentua no radical dessa palavra. O objetivo principal dessa empreita é abrir
possibilidades de novos caminhos para os migrantes que se defrontam com os desafios das experiências de
transnacionalidade e multiculturalidade que se colocam na atualidade.

Contexto, um excesso de cultura

Devido ao contemporâneo aumento dos fenômenos migratórios e à sua extensão generalizada a


todos os países do planeta, temos uma mudança no léxico da linguagem científica utilizada no quotidiano
das pesquisas sobre migrações com a crescente utilização do termo “multicultural” e seus derivados
“ismos”: multiculturalismo-interculturalismo-transculturalismo. Terminologias que, de uma parte, de modo
propositivo e esperado, devem ser vistas no contexto da pesquisa pós-moderna que submete a exame uma
realidade social sempre mais complexa e fragmentada, sem procurar estruturas comuns; de outra parte, às
vezes, parece-nos resultado do velho hábito de tecnicamente procurar soluções para conflitos sociais,
13
Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

produzindo especializações de especializações. Assim, os “ismos” vão se multiplicando em conjunto com a


quantidade de especialistas no assunto, por exemplo, a psicologia intercultural.

Marco Aime, antropólogo da Universidade de Gênova, em seu livro Eccessi di culture3 (2004), nos
convida a ponderar sobre um certo exagero na utilização da palavra cultura, em todas as suas declinações e
seus derivados, de modo muito provocativo e até paradoxal da parte de um antropólogo, colocando em
questão um dos paradigmas da própria antropologia, ou seja, a ideia de cultura. Segundo ele, palavras como
“multiculturalismo” ou “interculturalismo” acabam tendo muitas definições, inclusive contraditórias, e se
transformam em “lugares-comuns” que não comunicam mais nada ou, o que é pior, são instrumentalizadas:

Palavras como cultura, identidade, etnia, racismo, aparecem com maior frequência nos discursos dos
políticos e, muitas vezes, de modo abusado [...] há um excesso de atenção que hoje se move em torno
das culturas, a diversidade, as identidades, estamos lidando com uma síndrome das notícias.4 (AIME,
2004, p.4). Tr. MN.

Certamente que este notório antropólogo não deseja questionar a existência das diversas culturas e
sim o fato de que o discurso das culturas ou sobre as culturas seja feito frequentemente para enfatizar as
diferenças sem quase jamais destacar os possíveis elementos comuns, ou para enfatizar a atenção sobre os
localismos destacando as fronteiras com a evidente prerrogativa de novas divisões. Marco Aime reforça a
ideia de que as culturas não são da ordem natural das coisas, ou seja, são o resultado de nossas atividades
humanas, onde o estabelecimento de fronteiras muito evidentes entre uma cultura e outra é questão
complexa pois são da ordem do concreto, mas também do imaginário.

O excesso de cultura se encontra também como resultado dos atuais conflitos sociais que
predominam na Europa habituada, no passado, a enviar pessoas para fora de seus países e que hoje recebe
muitos imigrantes e tem que se confrontar com a inserção social das segundas gerações que, não se sentindo
estrangeira, solicita os mesmos direitos dos cidadãos filhos de “nativos”. Os conflitos provenientes desta
complexidade social, em vez de serem tratados como questões da política europeia, são tratados como
conflitos culturais, sob o pressuposto de que as diferenças entre culturas são naturais e os choques entre elas
inevitáveis; ou seja, se transforma uma questão política em uma questão cultural, por meio do reforço de
suas diferenças e não semelhanças, exatamente para não se permitir que estrangeiros tenham os mesmos
direitos dos autóctones. (AIME, 2004, p. 23).

Questões formuladas mediante interpelações da realidade pela ótica da cultura classificam


multiculturas, núcleos culturais e suas características sem considerar que as culturas não são homogêneas,
nem mesmo no âmbito de suas próprias referências. Como afirma Davide Zoletto:

3. Excesso de cultura. Todas as traduções feitas pelo autor deste texto serão especificadas com a sigla: Tr. MN.

4 “Parole come cultura, identità, etnia, razzismo compaiono con sempre maggiore frequenza nei discorsi dei politici, e spesso se
ne abusa [...] c’è un eccesso di attenzione che oggi si muove attorno alle culture, alle diversità, alle identità, ma ci troviamo di
fronte a una sindrome della cronaca.”

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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

O multiculturalismo é um assunto que se baseia em pelo menos um duplo engano. Que um indivíduo
seja totalmente ou em grande parte, por assim dizer, determinado por uma cultura e que a nossa
sociedade seja (o que a sociedade em geral nunca pode ser) monocultural antes da chegada dos
migrantes. (apud in: AIME, 2004, p.24, tradução nossa). 5

De certo modo, o conceito de multiculturas substituiu aquele de etnias. Não sendo mais possível
utilizar o conceito de etnia, devido ao seu desgaste histórico provocado pelos muitos racismos do passado e
atuais, foram criados novos termos para afrontar a complexidade contemporânea das migrações. Ou, nas
palavras de Aime, o termo multiculturalismo “acaba por ser uma reafirmação, em chave não-conflitual, da
diversidade cultural”.6 Termo questionável também porque, além de produzir uma tecnologia do controle
especialista, como, por exemplo, aquela dos mediadores ou psicólogos multiculturais, produz também mais
fronteiras, impedindo inclusive outras possibilidades. Estes “mediadores” acabam removendo a natureza
aberta e de construção das culturas através de suas representações institucionais. (AIME, 2004, p. 61-62).

Outra diferença importante que pode nos auxiliar a entender a criação de tantos termos para as
questões da cultura, em particular o “multiculturalismo”, é a diferença entre os termos “diversidade
cultural” e “diferença cultural” como opostos, pensados por Homi Bhabha, filósofo indiano naturalizado
americano, que descreve a diversidade cultural como um conceito já conhecido há muito tempo e que, de
certo modo, é um lugar-comum as sociedades pluralistas e democráticas utilizarem este conceito
(multiculturalidade) para a própria contenção da ideia de diferença, acabando por provocar mais racismo. Já
o conceito de diferença, que não significaria diversidade cultural, está subtendido na ideia de que o
multiculturalismo, segundo Homi Bhabha, está relacionado às teorias pós-estruturalistas. Bhabha nos
coloca a questão da construção das diferenças em vez do reconhecimento das “diversidades culturais”.
(BHABHA, 1990, p. 35-36).

As “molduras universalistas” escamoteiam as negações das diferenças ou da pluralidade contida na


ideia de multiculturalismo que procuram disseminar. Uma dessas molduras, das mais grotescas, é aquela
presente nas concepções eurocêntricas e colonialistas que concebem a presença de diferentes culturas num
mesmo espaço nacional, porém, tendo como referência central uma cultura considerada superior às demais.
(SANTOS, 2003, p.11). Outra moldura universalizante é aquela que enquadra todas as culturas reunidas
num mesmo estado nacional, região por ela recortada, porém, colocando no seu centro um suposto
indivíduo protagonista abstrato e genérico ou colocando o mercado como elo unificador.

5
“O multiculturalismo è un assunto che si basa quantomeno su un doppio errore. Che un individuo sia per cosi dire
completamente o ampiamente sovradeterminato da una cultura, e che le nostre società fossero (o che le società in generale
possano mai essere) monoculturali prima dell’arrivo.”
6“
Finisce per essere una riproposizione, in chiave non conflittuale, della diversità culturale.”

15
Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

Após a criação do termo sociológico “multicultura”, surgiu o termo pedagógico “intercultura” para
dar instrumentos metodológicos de atuação de campo e, mais adiante, apareceu o termo “transcultura”,
como uma ideologia da soma de tudo. Assim, em definições mutualísticas muito simplistas e difusas temos
as seguintes definições: multicultura como a coo-presença de povos distintos em um mesmo território; a
intercultura como o compromisso de construção de um projeto de convivência no contexto destas
diversidades e, por fim, transcultura como a capacidade de atravessarmos as fronteiras das culturas
impostas para a criação de outros espaço (TUSSI, 2010). Definições estas muito despojadas de análise
crítica, pois que cheias de contradições como, por exemplo, a ideia inflexível das culturas como algo
monolítico que se confrontam.

Stuart Hall, em uma leitura genealógica da etimologia dessas palavras, definiu o multiculturalismo
como um termo que descreve as características sociais e os problemas de “governance” de qualquer
sociedade onde habitem comunidades sociais diferentes e que tentam construir uma vida em comum
conservando, ao mesmo tempo, elementos da identidade da terra de origem (HALL, 2006).

O conceito de governance nos parece muito pertinente para entendermos o desenvolvimento das
diversas culturas, internamente heterogêneas, inclusive em suas diversas variantes e declinações em
“ismos” como multiculturalismo, interculturalismo e transculturalismo. Este conceito nos oferece uma
historicidade, dando um contexto onde a produção de um texto – “cultura/ismos” – pode ser considerada
uma tentativa de homogeneizar o que não é homogeneizável. Deste modo, a promoção da ideologia
filosófica de “cultura/ismos” sustenta as diversas práticas sociais dos diversos mediadores deste fenômeno,
criando uma rede complexa de poderes institucionais que transformam esta filosofia em algo que parece
natural. Países como o nosso, o Brasil, ideologicamente começam a acreditar e a construir um “ser
brasileiro” homogêneo para poder confrontar-se, em nome do bem comum e da inclusão dos outros, com a
cultura de bolivianos, peruanos, africanos e tantos outros. Inúmeros são os cursos institucionais que,
trabalhando em nome da diversidade das culturas, produzem enrijecimento da própria ideia de cultura. O
hibridismo, dentro desta ideologia, vem entendido como a convivência pacífica das diversas culturas.
Contudo, para melhor compreendermos a questão dos multiculturalismos, é necessário examinarmos a
construção da definição das identidades culturais.

Falar em identidade é realmente complexo devido à enormidade de significados que esta palavra
historicamente foi acumulando sendo, hoje, utilizada com diferentes sentidos. Trata-se de um referente em
movimento com a qual nos confrontamos todos os dias, mesmo que inconscientemente, com tantos
possíveis exemplos, como quando vamos fazer a nossa carteira de identidade, quando alguém nos pergunta
quem somos e respondemos aquilo que fazemos, quando queremos descobrir conjuntamente com o
psicólogo/psicoterapeuta o “quem sou”, quando dizemos que gostaríamos de ser outros e assim por diante.
Identidade é tema do quotidiano existencial e também das reflexões filosóficas, antropológicas,
sociológicas, epistemológicas, psicológicas e assim por diante. É um tema oceânico e ao mesmo tempo
muito relacionado com a nossa vida prática, porque o nosso Eu é constituído em sociedade.
16
Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

O seu significado inicial, etimológico, que seguramente não dá conta de toda a sua complexidade, se
remete a sua proveniência greco-latina. Do latim, identĭtas –atis, que foi extraída do grego, ταὐτότης,
(tautotes) com o mesmo significado de igual, o ser idêntico (TRECCANI, On-line). É a ideia do conjunto
de características que distinguem uma pessoa ou uma coisa de todas as outras, como, por exemplo, na
carteira de identidade onde eu certifico que sou “eu” e não um outro. Ideia esta muito interessante, porque
podemos afirmar que o nascimento do eu ocorre na relação com o outro, do qual procura se diferenciar num
processo social, coletivo.
Neste processo de identificação de nossa singularidade em relação aos outros, ocorrem várias coisas,
das quais podemos tirar algumas conclusões interessantes. Uma delas é a multiplicação dos sentidos do
“eu”, ou melhor, dos “eus”. Ou seja, temos um “eu” filosófico que indaga sobre o sentido existencial da
nossa presença no mundo, um “eu” religioso/místico, que indaga o senso de missão e de chamado, um “eu”
psicológico intrapsíquico, que vai buscar dentro da alma/anima, um “eu” sociológico que se vê participante
e resultado/resultante de si mesmo e dos outros, um “eu” linguístico que, através do idioma, aprende a
pensar de certos modos, um “eu” jurídico/político/institucional de reconhecimento de nossa presença no
mundo, oferecendo-nos uma participação ou não de cidadão, um “eu” étnico/cultural proveniente de um
grupo específico com suas particularidades e contradições internas. Há tantos “eus” possíveis que chega a
ser impraticável totalizá-los numa mesma unidade – até porque estão em constante reconstrução e
diferenciação.
O que nos interessa na acepção da identidade e que serve como contexto da discussão sobre a ideia
das multiculturalidades são os questionamentos da sociologia contemporânea que, de modo substancial, vão
enfatizar alguns princípios para nós fundamentais, mesmo que com variantes entre as diversas prospecções
sociológicas. Um deles é o princípio da mutabilidade e diversidade que aparece em algumas afirmações de
importantes sociólogos e antropólogos italianos modernos, dentre outros, tal como essa: “a identidade não e
única e nem imutável.”7 (REMOTTI, 1996, p. 29, tradução nossa). Outro princípio que aparece nas
discussões dos autores é o da construção social ou coletiva e de sua constituição multiforme: “identidade
não é alguma coisa inata ligada a valores de sangue, língua e território, é, sim, uma invenção, uma
construção coletiva.”8 (FABIETTI, 1998, p. 21, tradução nossa) forjada conforme fatores sociopolíticos.
Elementos de sangue, língua e território seguramente fazem parte da formação identitária, mas não podem
ser considerados como determinantes de sua expressão imediata e mecânica. Tais princípios estão em plena
concordância com as perspectivas da psicologia social construcionista.
Amselle, célebre antropólogo social francês e atualmente diretor da Ecole de Hautes Etudes en
Sciences Socieles de Paris, afirma que a constituição da identidade é o resultado de uma atividade de
reconhecimento que ocorre em dois níveis diferentes de processo, interno e externo, relacionados ao

7“
l’identità non è unica ed immutabile.”
8“
l’identità non è un qualcosa di innato, legato a dei valori primordiali (sangue, lingua, territorio), ma è “un’invenzione”, un
“costrutto collettivo.”

17
Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

contexto social. O primeiro nível, o interno, seria aquele relacionado às marcas/características que nos
diferenciam como critério para sabermos quem faz parte de um grupo ou não, quem está dentro e quem está
fora. O segundo nível, é produzido pelos “outros”, ou seja, por aqueles que não fazem parte do grupo e
reconhecem o pertencimento de determinadas pessoas a determinados grupos, ou seja, o olhar e percepção
externos ao grupo. (AMSELLE, 1999).
Stuart Hall (2005) considera como sendo uma estereotipia o processo de manutenção da ordem
social e simbólica que acaba estabelecendo uma fronteira entre o normal e o desviante, o normal e o
patológico, o aceitável e o inaceitável, o que pertence e o que não pertence, o nós e o eles. “Estereotipar
reduz, essencializa, naturaliza e conserta as 'diferenças', excluindo ou expelindo tudo aquilo que não se
enquadra, tudo aquilo que é diferente” (ROSO e outros, 2002, p.4). Com base nos processos identitários,
produtores de estereotipias, podemos afirmar que existe um sentimento de pertencer, concreto/simbólico e
objetivo/subjetivo, que predispõe os membros desta comunidade a terem ideias, pensamentos, modos de
fazer as coisas e assim por diante, por meio dos quais se criam conexões sociais que favorecem a
construção dos sentimentos de identidade social, étnica, religiosa, cultural, de gêneros e outros (FABIETTI,
1998, p. 134-135).
É um paradoxo muito interessante observar que a existência dos outros grupos seja o fator que torna
possível nos percebermos como pertencentes a um grupo distinto. Este é o motivo pelo qual o processo da
identidade/identificação não pode ser pensado senão por contraste entre o grupal e o contextual. O “outro” é
a alteridade do “eu”; é por este motivo que os movimentos grupais, que tentam cancelar a existência do
outro, de certo modo, bloqueiam o processo de constituição identitária de si mesmos, ironicamente, pelo
medo de não fazerem mais parte de um grupo. Combater e colocar “para fora” outros grupos para reforçar o
sentimento grupal no interior de seu grupo de pertencimento é, no fundo, produzir a própria destruição. É o
ímpeto de excluir os outros para sentir-se mais incluso em seu grupo que acaba por voltar-se contra si
mesmo. Nas palavras de Marco Aime, na introdução do livro de Ansell já citado anteriormente: “Parece
que o medo de ser igual aos outros nos leva a usar roupas mais vistosas para proclamar nossa diversidade.”9
(ANSELLE, 1999, p. 20, tradução nossa).

Eis o motivo pelo qual Zygmunt Bauman, em seu livro Intervista sull’identità (2003), afirma que
todas as vezes que esta palavra vem pronunciada, identidade, podemos estar certos de que há uma batalha
em atividade. Bauman, ampliando seu discurso, esclarece que esta luta/batalha identitária é, ao mesmo
tempo, contra a dissolução e a fragmentação, em um movimento antagônico que está na base da cultura e da
civilização - o confronto constituinte. Dissolução e fragmentação, fechamento e abertura são ambivalências
que estão na base da construção da identidade e, de modo mais evidente, no momento histórico chamado
globalização, onde a estas ambivalências se soma a ambivalência local/global definida por I. Robertson por
“glocalização” (BOSISIO e outros, 2005, p. 68).

9“
Sembra che la paura di essere uguale agli altri ci porti ad indossare gli abiti più vistosi per proclamare la nostra diversità”.

18
Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

Tais ambiguidades são apontadas por Stuart Hall em sua descrição de dois modelos constitutivos de
identidade. O primeiro, chamado “naturalista-essencialista”, tem seu fundamento na pretensão de uma
autenticidade e unicidade. O segundo, chamado “discursivo”, pressupõe a identidade como uma construção,
um processo ainda não concluso, contingente e dependente do contexto espaço-temporal no qual se
encontra, lugar de onde seus discursos produziriam saber e significados, desestabilizando conceitos
anteriores como nação, raça e etnia (HALL, 2006).

Hoje, podemos observar um cenário contextual de novas disposições da relação mais complexa
entre a ambiguidade da igualdade e a ambiguidade da diferença, que evidencia a dificuldade das identidades
estabelecidas em um quadro da formação dos estados nacionais modernos, com suas ideologias separatistas
de fronteiras entre os povos colonizadores e os colonizados, entre as diversas raças, entre as línguas
primitivas e evoluídas e entre tantas outras antinomias:

Estão se afirmando rapidamente novos alinhamentos, transversais aos limites, tipos, nações e
características principais, e estes novos alinhamentos agora ameaçam e desafiam a noção,
essencialmente estática, da identidade, que sempre foi o núcleo do pensamento cultural durante a era
do imperialismo. 10(SAID, 1998, p. 21, tradução nossa).

A ideia da possibilidade de uma identidade psicológica/psíquica estável tem sido bastante


questionada na psicologia. As condições de vida, na atualidade, favorecem e até exigem identidades e
subjetivações fluidas, mutantes, flexíveis, fragmentadas, provisórias, ao menos num grau bem maior do que
o foi em outras épocas de maior solidez, unidade e duração. Talvez, por isso mesmo, como ocorre em
períodos de transições acentuadas e radicais as clínicas psicológicas estejam lotadas de pacientes que
buscam um “porto seguro”. Em sua concepção sociológica, igualmente, a ideia de identidade hoje propõe
um horizonte de precariedade e de instabilidade na sua própria constituição, sem nenhum significado de
anomalia ou patologia. O fato de que a identidade, a cultura e também a língua sejam produtos históricos e
não formas a priori demonstra a impossibilidade de se aventar a ideia de uma “identidade pura”, que não
seja, de qualquer modo, híbrida. Todas as culturas são resultantes/resultados das interações sociais.

Stuart Hall conceituou, ainda, a identidade cultural associada a um devir, a um processo em curso, a
um “tornar-se” algo, como parte da experiência humana de construção de significados para a existência:

A identidade não é algo já constituído, que já existe, transcendendo lugar, tempo, história e cultura.
As identidades culturais vêm de algum lugar, são o resultado de histórias. Mas, precisamente por
causa dessa sua dimensão histórica, estão sujeitas a uma transformação constante. Longe de serem
eternamente fixadas em algum passado essencializado, elas estão sujeitas à reprodução contínua de
história, cultura e poder.11 (HALL, 2006, p. 247, tradução nossa).

10
“Si stanno rapidamente affermando nuovi schieramenti, traversali a confini, tipologie, nazioni e caratteri di fondo; e sono
questi nuovi schieramenti che oggi sfidano e minacciano la nozione, fondamentalmente statica, di identità, da sempre nucleo del
pensiero culturale durante l’era dell’imperialismo”.
11“
L’identità non è qualcosa di già costituito, di già esistente, che trascende lo spazio, il tempo, la storia e la cultura. Le identità
culturali provengono da qualche parte, sono il risultato di storie. Ma, proprio a causa di questa loro dimensione storica, sono
soggette a una costante trasformazione. Lungi dall’essere eternamente fissate in un qualche passato essenzializzato, sono
sottoposte al gioco continuo della storia, della cultura e del potere.”

19
Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

Um exemplo, a título de uma divertida síntese do hibridismo cultural, do tornar-se como um


processo existencial e também da construção do sentimento de pertencer que pode acompanhar-nos quando
fazemos parte de um grupo específico, pode ser encontrado em um texto de R. Linton, do livro Studio
dell’uomo, publicado originalmente em 1936, e citado por Marco Aime:

O americano médio acorda em uma cama construída sobre um modelo que se originou no Oriente
Próximo, mas que foi modificado na Europa Setentrional, antes de ser importado para a América. Ele
pega os lençóis e cobertores que podem ser de algodão, cultivados no Oriente Próximo, ou lã de
ovelha, originalmente criada no Oriente Médio, ou de seda, cujo uso foi descoberto na China. Todos
estes materiais foram fiados e tecidos por um processo inventado no Oriente Próximo. Ele veste seus
mocassins, inventados pelos índios das florestas do Leste, e vai ao banheiro, cujos aparelhos são uma
mistura de invenções europeias e norte-americanas, em data recente. Ele pega o pijama, um vestuário
inventado na Índia, e lava-se com sabão inventado pelos antigos gauleses. Então ele faz a barba,
ritual masoquista que parece ser derivado da Suméria ou do Egito antigo [...], vai tomar café e
compra um jornal, pagando com as moedas que são uma invenção da Lídia antiga. No restaurante,
ele tem contato com uma nova série de elementos emprestados de outras culturas: o prato é feito de
um tipo de cerâmica inventada na China, a faca é de liga de aço, feita pela primeira vez no sul da
Índia, o garfo tem suas origens medievais na Itália, a colher é originária do Império Romano [...].
Quando o nosso amigo acaba de comer, se inclina para trás em sua cadeira e fuma, de acordo com
um hábito dos índios americanos [...]. Ao fumar, lê as notícias do dia, impressas em um papel
inventado pelos antigos semitas sobre um material inventado na China e por um processo inventado
na Alemanha. Ao ler os relatos dos problemas que fervem no exterior, se for um bom cidadão
conservador, em uma língua indo-europeia, ele agradecerá a uma divindade hebraica por ser cem por
cento americano.12 (AIME, 2004, p. 25-26, tradução nossa).

O conceito de identidade, que, segundo Ciampa (1994), é uma transformação dialética que incluiu a
diferença e a igualdade, é ainda hoje um guia fecundo para se examinar os desdobramentos subjetivos da
condição de mobilidade, especialmente no que concerne aos imigrantes. Na imigração, temos esta dialética
de afirmação/negação que se coloca com todo seu radicalismo na complexidade da experiência de trânsito,
desterritorialização e de descentração de si mesmo que leva à condição, por vezes, de não pessoa, como
descrito por Alessandro Del Lago em seu trabalho Non persona. L’esclusione dei migranti in una società

12 “
Il cittadino americano medio si sveglia in un letto costruito secondo un modello che ebbe origine nel vicino Oriente ma che
venne poi modificato nel Nord Europa prima di essere importato in America. Egli scosta le lenzuola e le coperte che possono
essere di cotone, pianta originaria del vicino Oriente o di lana di pecora, animale originariamente addestrato nel vicino Oriente,
o di seta, il cui uso fu scoperto in Cina. Tutti questi materiali sono stati filati e tessuti secondo un procedimento inventato nel
vicino Oriente. Si infila i mocassini, inventati dagli indiani delle contrade boscose dell’est, e va nel bagno, i cui accessori sono
un misto di invenzioni europee ed americane, entrambe di data recente. Si leva il pigiama, indumento inventato in India, e si lava
con il sapone, inventato dalle antiche popolazioni galliche. Poi si fa la barba, rito masochistico che sembra sia derivato dai
sumeri o dagli antichi egiziani [...]. Andando a fare colazione si ferma a comprare un giornale, pagando con delle monete che
sono un’antica invenzione della Lidia. Al ristorante viene a contatto con una nuova serie di elementi presi da altre culture: il suo
piatto è fatto di un tipo di terraglia inventato in Cina, il suo coltello è d’acciaio, lega fatta per la prima volta nell’India del Sud,
la sua forchetta ha origini medievali italiane, il cucchiaio è il derivato dall’originale romano [...]. 
Quando il nostro amico ha
finito di mangiare, si appoggia alla spalliera della sedia e fuma, secondo un’abitudine degli Indiani d’America [...]. Mentre fuma
legge le notizie del giorno, stampate su una carta inventata dagli antichi semiti, su di un materiale inventato in Cina e secondo
un procedimento inventato in Germania. Mentre legge i resoconti dei problemi che s’agitano all’estero, se è un buon cittadino
conservatore, con un linguaggio indo-europeo, ringrazierà una divinità ebraica di averlo fatto al cento per cento americano.”

20
Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

globale13. Ao mesmo tempo, devido a esta condição social de non-persona é que temos uma preocupação
com a reafirmação identitária proeminente. Deste modo, o imigrante e seus filhos tornam-se um lócus
privilegiado para a inserção da psicologia social no debate das implicações de um cenário de fluidez,
fragmentação e, ao mesmo tempo, de projetividade na constituição subjetiva.

Cada instante da minha existência como indivíduo é um momento de minha concretização (o que me
torna parte daquela totalidade), em que sou negado (como totalidade), sendo determinado (como
parte); assim, eu existo como negação de mim mesmo, ao mesmo tempo em que o que estou-sendo
sou eu-mesmo (CIAMPA, 1994, p.68-69).

Diante da globalização da economia e das transformações multiculturais das sociedades – que


seguramente ampliam as possibilidades de crescimento, mas também trazem conflitos e impasses – é
central o tema das identidades, seja individual, seja coletiva (HALL, 2005). O ‘quem sou eu’ e o ‘quem
somos nós’ constituem os principais enigmas daqueles mais profundamente imersos na complexidade da
realidade global, que se alarga e se emaranha todos os dias nos seus confins. Nas sociedades tradicionais do
passado, a identidade de uma pessoa era, frequentemente, definida pelo nascimento e por referentes sociais
(lugar de origem, religião, condição socioeconômica e cultural da família etc.) e, ainda, com certa
regularidade, permanecia a mesma ao longo da existência devido à difícil mudança de mobilidade social e
de espaço físico.
Além das mobilidades geográficas e psicossociais, é necessário considerar o forte impacto da
circulação de mercadorias e do consumo, no mundo globalizado, como outro fator desestabilizador das
construções identitárias tradicionais pela profusão de referências e de modos de ser e de existir. Junto com
uma roupa importada (como foi a calça jeans na década de 1960), uma música estrangeira, um vinho
italiano, francês, chileno ou de outra procedência do exterior, por exemplo, trazem consigo, mais do que a
materialidade do produto em si e sua utilidade, signos da cultura do local de onde vieram. Carregam
imagens, valores, ideias, ideologias, símbolos, relações sociais e tantas outras coisas do local de origem.
Poderíamos dizer que, na atual sociedade do espetáculo e do culto à aparência e visibilidade, tais produtos
são consumidos mais como signos que os utilizam como referentes de outras coisas colados a eles pela
propaganda (status, poder, jovialidade, vitalidade e tantos outras imagens de coisas situadas em corredores
semânticos meliorativos) do que pela sua utilidade prática, pelo seu valor de uso. Enquanto meios de
difusão de cultura, as mercadorias que circulam no comercio global funcionam como os migrantes. Seus
corpos portam marcas, signos, imputados a eles em função de sua procedência. Seus corpos transportam
cultura, deslocam, de um lugar a outro, linguagens, símbolos, hábitos, costumes, práticas, relações sociais,
conhecimentos, valores e tantas outras coisas investidas de sentido.
O estreitamento da conexão da cultura com a produção capitalista, realizado pelo capitalismo atual e
pela globalização, torna inevitável se pensar a cultura de hoje como “produção industrial” ou como
mercadoria, como objeto de consumo mediado pelo dinheiro, pela lógica dos negócios e da rentabilidade. A

13
Não pessoa. A exclusão dos migrantes em uma sociedade global. Tradução nossa.

21
Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

cultura já não é mais aquela romantizada por antigos antropólogos que procuraram situá-la nos afazeres de
povos e comunidades de um determinado lugar, em determinado tempo. Artefatos culturais clássicos, por
exemplo, culinária, músicas, vestimentas e outros, hoje, passam pelo processo de produção tecnificada e de
comercialização instituído pela economia de mercado ou economia capitalista. O conceito de indústria
cultural, cunhado por Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do Esclarecimento publicado em 1947, é
fundamental para a compreensão da produção cultural da contemporaneidade e dos fenômenos identitários
que se despontam tanto no plano das individualidades como das coletividades (ADORNO e
HORKHEIMER, 1986). A moda pret à porter, surgida no final de 1949, na França, inaugurou não apenas
um estilo de roupa, mas sinalizava o advento de uma subjetividade célere, mutante e capaz de incorporar
elementos de espaços distantes, vencendo quaisquer resistências ou sentimentos de estranhamento. A
indústria cultural e a transformação da subjetividade em mercadoria trazem um novo modo de produção de
identidades pre-à-porter ou de kit-perfil-padrão, que possibilita o uso de modos de ser prontos, adquiridos
no mercado. (ROLNIK, 1997).
O fenômeno da mudança e da constituição de identidades, sem dúvida, irrompe com a modernidade
e a globalização. Giovanni Jervis, um psicanalista que investigou, sob diversos aspectos, o tema da
identidade, no seu trabalho, intitulado ‘La Conquista dell’identità’, defende que a procura da identidade
está vinculada ao quadro histórico atual, que vê se dissolverem os modelos hereditários da família e da
tradição. Diz que essa busca é caracterizada não somente por necessidades econômicas de procura de novas
oportunidades, mas também por uma multiplicidade de fatores difíceis de explicar e ligados à própria perda
das velhas identidades. Afirma também que o êxito da busca de uma identidade não é assegurado. Assim,
despontam, na atualidade, tanto novas possibilidades do ser quanto novas crises individuais e coletivas.

A procura de novas identidades parece um fenômeno mais amplo do que somente a procura de novas
oportunidades. Em outras palavras, a necessidade de recriar as identidades não parece ser o simples
esforço para obter melhores possibilidades de sobrevivência – e não parece também que seja o efeito
automático da busca de um bem-estar econômico. Em síntese, tem ‘algo mais’ que não é fácil de
explicar. É só o efeito automático da perda das identidades dadas, que, até há pouco tempo, vinham
passadas dos pais aos filhos? Nos países ricos, como naqueles pobres, a procura de novas identidades
se direciona em identificações coletivas, sejam religiosas, políticas, que às vezes parecem de novo
tipo. [...] Certas reivindicações se manifestam com uma prevalência de valores simbólicos que
parecem dominar a procura de novas identidades coletivas ‘autênticas’, ‘compactas’, ‘reconhecíveis’.
14
(JERVIS, 1999, p. 43-44, tradução nossa).

A construção da própria identidade nos reporta necessariamente à relação com os outros, à rede de
relações que os sujeitos constroem e que hoje é expressivamente ampliada. Franca Pinto Minerva (2002),

14
“La ricerca di nuove identità sembra essere un fenomeno più ampio di quanto non sia la semplice ricerca di nuove
opportunità. In altre parole, il bisogno di ricreare le identità non sembra essere il semplice effetto dello sforzo per ottenere
migliori garanzie di sopravvivenza; e neppure sembra essere l’effetto automatico della corsa verso il benessere. C’è in sintesi, un
in più di ricerca di identità che non è facile da spiegare. È solo l’effetto automatico della perdita di quelle identità “date” che
fino ad ieri venivano tramandate dai genitori ai figli? Nei paesi ricchi come in quelli poveri, la ricerca di nuove identità si
incanala in identificazioni collettive, sia religiosa, sia politica che a volte sembrano di nuovo tipo. […] Certe rivendicazioni si
manifestano piuttosto in una prevalenza di valori simbolici: sembra dominare la ricerca di nuove identità collettive,
“autentiche”, “compatte”, “riconoscibili”

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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

uma pedagoga que pesquisa a temática do conceito de identidade, defende que é na relação com os outros
que nos reconhecemos e atestamos o nosso ser único e singular. O outro nos ajuda a delimitar a nós
mesmos, a nos definirmos e a nos reconhecermos.
Para entender melhor o sentido da construção da identidade na era da globalização e a problemática
inerente a esta realidade, pode ser útil o percurso intelectual do famoso estudioso libanês e de escritora
francesa, Amim Maalouf, que descreve e analisa o seu relacionamento com a própria cultura e outras
culturas. Trata-se de um árabe de origem católica, que se transferiu para a França, vivendo de forma
simultânea as duas culturas. Em seu famoso livro, ‘L’identità’, Maalouf narra uma autobiografia intelectual
que nos faz pensar e descobrir um fio coerente em torno ao tema das identidades:

Desde que deixei o Líbano em 1976 e me transferi para a França, perguntaram-me muitas vezes, com
as melhores intenções do mundo, se eu me sentia mais libanês ou mais francês. Respondo, sempre,
os dois! Não para fazer média com um ou o outro, mas porque se eu respondesse de maneira diversa,
estaria mentindo. O que me faz como eu sou, e não diferente, é a minha existência entre dois países,
entre duas ou três línguas, entre várias tradições culturais. É isto que define a minha identidade. Eu
seria mais autêntico se me privasse de uma parte minha? [...] A identidade não pode ser dividida em
compartimentos separados, não se divide em metades ou terças partes. Não tenho várias identidades,
tenho uma somente, feita de todos os elementos que a constituíram em longos anos, segundo uma
dosagem que não é jamais igual de uma pessoa a outra.15 (MAALOUF, 1999, op. cit. p. 7-8,
tradução nossa).

Segundo Maalouf, a identidade de uma pessoa é formada a partir de uma pluralidade de elementos
que determinam as várias matrizes de pertinência: a religião, a nação, o grupo étnico ou linguístico, a
profissão, a família, as instituições, o grupo social, a história, os desejos e tantos outros elementos.
Evidentemente, todos esses elementos não têm a mesma importância e dependem do momento histórico,
mas é inegável que cada um deles tem significados de produção de identidade. Os conflitos de identidade
entre pessoas e culturas normalmente se manifestam quando se tem a assunção de um elemento de maneira
unilateral, construindo, assim, uma identidade rígida e pouco disposta ao diálogo e ao confronto.
Em todas as épocas, houve pessoas que defenderam um só pertencer de identidade superior aos
outros. Para uns, a nação, para outros a religião ou a classe social. Mas basta ver os diferentes conflitos que
se desenvolveram ao longo da história para entender que nenhuma identidade jamais conseguiu prevalecer
sobre as outras. Onde os homens se sentiram ameaçados na fé, a religiosidade assumiu uma importância de
identidade única. Se a ameaça se deu em torno do idioma materno ou ao grupo étnico de origem, os
problemas ocorreram dentro destas comunidades. Todos estes exemplos para insistir no fato de que se
existe, a cada momento, entre os elementos que constituem a identidade de cada um de nós, uma certa
hierarquia, esta não é imutável, muda com o tempo e modifica em profundidade os nossos comportamentos.

15 “
Da quando ho lasciato Il Libano nel 1976 per trasferirmi in Francia, mi è stato chiesto innumerevoli volte, con le migliori
intenzioni del mondo, se mi sentissi più francese o più libanese. Rispondo invariabilmente: L’uno e L’altro! Non per scrupolo di
equilibrio o per equità, ma perché rispondendo in maniera differente, mentirei. Ciò che mi rende come sono e non diverso è la
mia esistenza fra due paesi, fra duo o tre lingue, fra parecchi tradizioni culturali. È proprio questo che definisce la mia identità.
Sarei più autentico se me privasse di una parte di me stesso? […] L’identità non si suddivide in compartimenti stagni, non si
ripartisce ne in metà, né in terzi. Non ho parecchie identità, ne ho una sola, fatta di tutti elementi che l’hanno plasmata negli
anni, secondo un ‘dosaggio’ particolare che non lo stesso da una persona all’altra.”

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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

Em todas as épocas, houve pessoas que defenderam um só pertencer de identidade superior aos outros.
Para uns, a nação, para outros a religião ou a classe social. Mas basta ver os diferentes conflitos que se
desenvolveram ao longo da história para entender que nenhuma identidade jamais conseguiu
prevalecer sobre as outras. Onde os homens se sentiram ameaçados na fé, a religiosidade assumiu uma
importância de identidade única. Se a ameaça se deu em torno do idioma materno ou ao grupo étnico
de origem, os problemas ocorreram dentro destas comunidades. Todos estes exemplos para insistir no
fato de que se existe, a cada momento, entre os elementos que constituem a identidade de cada um de
nós, uma certa hierarquia, esta não é imutável, muda com o tempo e modifica em profundidade os
nossos comportamentos.16 (MAALOUF, 1999, p. 20, tradução nossa).

Nesta definição o conceito de identidade se transforma notoriamente. Da identificação com traços


‘fundamentais’ de uma comunidade, tomados como uma essência, o conceito se transforma, abandona a
ideia de essência e começa a aludir às experiências vitais de um grupo, mas que não funciona de modo a
excluir, discriminar, muito menos classificar com juízos morais ou de atribuição de valor os confrontos com
outros grupos e culturas. Pensamos nas palavras de Giovanni Jervis, que conclui:

Se quisermos chegar a uma conclusão geral, podemos afirmar que a atenção atual para o tema da
identidade deriva, entre outras coisas, da progressiva revisão do conceito ‘clássico’ (ou seja, pré-
darwiniano e pré-freudiano) da natureza humana: revisão que tem recebido uma aceleração nos
últimos decênios do século XX. Ou seja, nos três primeiros séculos da idade moderna, o ser parte da
grande família humana parecia alguma coisa de ‘garantido’, a partir da metade do século XIX, estas
garantias entram em crise. Sobretudo, no desenrolar do século XX, surgiu a dúvida de que as
palavras ‘mente’ e ‘consciência’ não significavam mais nada de preciso. Mas isto não nos impede de
continuar a procurar alguma coisa que é importante para nós. Ou seja, gostaríamos de saber qual é a
natureza pela qual podemos ser reconhecidos, seja a espécie humana em geral, sejam os grupos e os
povos, sejam os indivíduos. Contudo, nos demos conta de que não podemos mais recorrer de
nenhum modo à pretensa ‘essência’ das coisas. Podemos somente ‘ler’ e ‘recolher’ de modo pacato e
realístico as descrições de nossa espécie e dos singulares seres humanos: a nossa identidade.17
(JERVIS, 1999, op. cit. pp.140-141, tradução nossa).

Como podemos definir, então, a identidade neste quadro complexo e variado? A identidade não
pode ser pensada a partir da fixação, de uma vez por todas, de uma escala de valores e de significados, mas
sim como um contínuo processo de aquisição de conhecimentos, de sentimentos e emoções que nos

16 “
In tutte le epoche ci sono state persone che hanno ritenuto che ci fosse una sola appartenenza fondamentalmente, talmente
superiore alle altre in ogni circostanza da poterla chiamare ‘identità’. Per gli uni la nazione, per altri la religione, o la classe
sociale. Ma basta far scorrere lo sguardo sui i differenti conflitti che si svolgono attraverso il mondo per rendersi conto che
nessuna appartenenza prevale in maniera assoluta. Là dove gli uomini se sentono minacciati nella loro fede, è l’appartenenza
religiosa che sembra riassumere la loro intera identità. Ma se a essere minacciati sono il loro idioma materno e il loro gruppo
etnico, allora si battono accanitamente contro il loro stessi correligionari. Tutti questi esempi per insistere sul fatto che se esiste,
in ogni momento, fra gli elementi che costituiscono l’identità di ciascuno, una certa gerarchia, essa non è immutabile, cambia
con il tempo e modifica in profondità i comportamenti.”
17
“Se dunque vogliamo giungere a una conclusione generale, possiamo dire che l’attenzione’ attuale per il tema dell’identità
deriva, fra l’altro, dalla progressiva revisione della concezione classica (pre-darwiniana e pre-freudiana) della natura umana:
revisione che ha ricevuto una accelerazione negli ultimi decenni del ventesimo secolo. Mentre, cioè, nei primi tre secoli dell’età
moderna l’essere membri della grande famiglia umana pareva qualcosa di ‘garantito’ dell’anima o dalla unitarietà della
coscienza, viceversa, a partire dalla metà del diciannovesimo secolo, queste garanzie sono entrate in crisi. È emerso il dubbio
che parole come mente o coscienza, non designino più nulla di preciso. Ma questo non ci impedisce affatto di continuare a
cercare qualcosa che è importante per noi. In pratica cioè, vogliamo capire qual è la vera natura, quale l’esatta riconoscibilità,
sia della specie umana in generale, sia di popoli e gruppi, sia di singoli individui. Però ci rendiamo conto che per far questo non
possiamo più ricorrere in alcun modo a pretese ‘essenze’ che garantiscono quello che ci interessa. Possiamo invece soltanto
‘leggere’ e cogliere in modo pacato e realistico l’insieme descrivibile delle caratteristiche della nostra specie e dei singoli esseri
umani: la nostra identità.”
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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

reportam a uma incessante reconstrução dos próprios saberes, das próprias experiências, do modo de
organizá-las e interpretá-las. É o medo das mudanças, e possível perda de poder, que porta a radicalização
de alguns fatores em relação a outros. Quem fica fechado no próprio ‘eu’ acumula elementos úteis para
permanecer estável e confirmar somente os próprios valores, prejudicando a possibilidade de alargamento
de conhecimentos para a realização da construção de um processo de identidade.
O problema é que, como nos faz notar ainda uma vez Maalouf, somente a partir das experiências da
vida e de seus momentos históricos podemos atribuir sentidos aos ‘símbolos’ de pertencimento a algo:

Provavelmente na época em que existia uma nação iugoslava, ao encontrar um homem em Sarajevo
e interrogando-o sobre sua identidade, ele teria respondido que era iugoslavo, da República da
Bósnia-Herzegovina e de uma família muçulmana. Dez anos depois, a causa da guerra e dos
horríveis massacres da população de religião islâmica, o mesmo homem teria dito ser, antes de tudo,
muçulmano e depois da Bósnia. Hoje, provavelmente, tendo finalmente se constituído uma nação
autônoma, este homem provavelmente me diria ser bosniano, muçulmano e europeu.18 (MAALOUF,
1999, p. 19, tradução nossa).

Ou seja, a identidade tende a construir-se no espaço estreito do “pertencer” a alguma coisa e do não
pertencer a outras. Nesse sentido, é necessário precisar melhor o significado desse termo. Pertencer é
aquilo que pertence a alguém ou alguma coisa. Do ponto de vista filosófico, o ‘pertencer’ se manifesta
sobre o plano lógico da relação sujeito-objeto. Na matemática, a relação de ‘pertencer’ representa a
qualidade ou a propriedade que faz a união entre os vários elementos de um grupo. No plano da
cotidianidade, das relações sociais, a relação de ‘pertencer’ demonstra o ser da propriedade, o ser da posse
de algo.
O pertencer, em todos os pontos de vista, evidencia fazer parte de alguma coisa e, ao mesmo tempo,
um ser proprietário de alguma coisa. É um mecanismo psicossocial e cultural que age em duplo sentido. Por
um lado, o pertencer dá sustentação e certezas enquanto também pode dar potência ao ser, permitindo-lhe
superar a solidão ontológica e andar além dos próprios limites individuais. Por outro lado, o pertencer tende
a anular o indivíduo, porque os vínculos de pertencer a algo colocam em risco o pensamento individual e
frequentemente o subordina à ‘verdade’ coletiva da qual é difícil desvencilhar-se. Franco Cambi define o
pertencer como um ‘ter raízes’:

Fazer parte de uma terra histórica e nela colocar o próprio ser, que deste ‘local’ subtrai orientação,
senso, identidade e força. O pertencer é um entregar-se, um legar-se, é o reconhecimento de
pertencer a um grupo-comunidade e a sua tradição histórica, ter aí as suas raízes, sua identidade e o
próprio sentido. Por certo, o pertencer desenvolve, nos níveis sociológico e psicológico, um papel
fundamental: dá segurança ao ‘eu’, coloca os limites e também a identidade; oferece trajetórias de
vida, teóricas e práticas; faz-nos cidadãos de um espaço/história, coloca-nos a serviço de alguma
coisa, dando sentido, um sentido que vai além do nosso ser frágil. Esta é a força do pertencer: tira o

18 “
Probabilmente all’epoca in cui esisteva una nazione jugoslava, incontrando un uomo a Sarajevo e interrogandolo sulla sua
identità avrebbe risposto d’essere iugoslavo della Repubblica di Bosnia Erzegovina e di venire da una famiglia di tradizione
mussulmana. Dieci anni dopo, a causa della guerra e degli orrendi massacri cui è stata sottoposta la popolazione di religione
islamica, lo stesso uomo avrebbe detto di essere, innanzi tutto mussulmano e poi bosniaco. Oggi probabilmente, avendo
finalmente realizzato una nazione autonoma, quello stesso uomo dichiarerebbe di sentirsi prima bosniaco e poi mussulmano ed
europeo.”

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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

‘eu’ da condição de vazio, de caminhos errantes, de precariedade, e o reforça com a ideia da verdade
forte, porque é experiência em comum com tantos outros indivíduos. Mas aqui está também a sua
fraqueza: todo pertencer é ritual e, portanto, irracional; tendente ao totalitário; homologador e conta
ser assim; está contra o indivíduo, o dissenso, a crítica, a escolha/responsável, a pluralidade/tolerante
etc., que são um pouco os valores-chave da modernidade.19 (CAMBI, 2001, op. cit. p.90, tradução
nossa).

Quando o peso do pertencer, na dinâmica da construção da própria identidade, é preponderante,


pode-se criar uma situação de ‘fechamento’ e de explosão das referências e dos valores, levando a uma
contraposição radical com os ‘outros’. Tal situação torna difícil a individualização dos elementos em torno
de um “nós”, com o qual se poderia criar uma relação e um confronto.
Que as relações de origem sejam importantes, já nos foi muito bem evidenciado por A. Sayad,
sociólogo algeriano, quando, em seu livro La doppia assenza. Dalle illusioni dell’emigrato alle sofferenze
dell’immigrato20, avaliou os termos com que os migrantes são descritos nas sociedades europeias de
“acolhimento”. Sayad, preocupado com o frequente aniquilamento das experiências precedentes na terra de
origem dos migrantes, através da categorização destes como imigrantes por parte da construção linguística
das sociedades, principalmente europeias, afirma ser necessário reforçar a ideia de que o imigrante, antes de
tudo, é também um migrante; ou seja, um indivíduo que possui um sentimento de pertencimento anterior à
nova terra. (SAYAD, 2002). Seguramente, questão muito importante, por evidenciar o etnocentrismo
europeu e que poderia ser exemplificado também nas palavras de Caetano Veloso (VELOSO, 1978), ao
contar/cantar sua experiência de migrante na cidade de São Paulo, na famosa música Sampa, em que diz:
“Narciso acha feio o que não é espelho”. Dura realidade que não pode ser colocada em contraposição à
identidade do sujeito, definida somente através de suas relações de origens. Claro que estas têm importância
e, muitas vezes, um peso preponderante, mas a identidade subjetiva se define também através das novas
experiências do sujeito, porque, apesar das tradições, cada sujeito reelabora, de maneira pessoal, o
patrimônio cultural e emocional que recebe. Sawaia, para solucionar este conflito, exporá que tanto a
permanência como a metamorfose fazem parte do mesmo processo de identificação (SAWAIA, 1996).
É por isto que faz sentido examinar o que está ocorrendo com os imigrantes, particularmente com os
filhos de imigrantes, os chamados imigrantes de segunda geração, que, em grande parte, já não falam tão
bem a língua dos pais e que se distanciaram da matriz cultural da nacionalidade de seus pais e, ao mesmo
tempo, não são considerados e nem se sentem inteiramente identificados com a representação cultural do

19
“Far parte di una terra-storia e in essa collocare il proprio sé, che da lì trae orientamento e senso, ma anche identità e forza.
L’appartenenza è sì un consegnarsi, è un legarsi, è un riconoscersi in un gruppo comunità, e nella sua tradizione-storia, avere in
essa le radice, l’identità, il proprio senso. Certo, l’appartenenza svolge a livello sociologico e psicologico un ruolo
fondamentale, da sicurezza all’io, ne fissa i confini, ma anche l’identità, gli offre traiettorie di vita teoriche e pratiche: lo fa
cittadino di uno spazio/storia, lo pone al servizio di assegnando un senso che trascende il suo fragile io. Qui sta la forza
dell’appartenenza: toglie l’io dalla condizione di vuoto, di erranza, di precarietà e lo rafforza con un fascio di verità forti anche
perché vissute in comune. Ma chi sta anche la sua debolezza, le sue debolezze: ogni appartenenza è ritualistica e pertanto
irrazionale; è tendenzialmente totalitaria: è omologante e fa leva all’omologazione; sta contro l’individuo, il dissenso, la critica,
la scelta/responsabilità, il pluralismo/tolleranza, ecc. Che sono un po’ i valori chiave del moderno.”
20
A dupla ausência. Da ilusão do emigrado ao sofrimento do imigrado. Tradução nossa. Livro que ficou célebre por tentar
restituir ao migrante uma dignidade/alteridade anterior a sua condição de imigrante, através de uma consideração linguística da
produção de termos eurocêntricos de não consideração de alteridade das proveniências culturais externas.

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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

país em que estão vivendo. É uma condição em que a permanência e a metamorfose parecem se acentuar,
pois vivem uma situação ímpar de transição identitária. De uma parte, o desmanche da ideia de uma
identidade monolítica/monocromática e, da outra, a construção de algo que não se reduz à soma dos
pertencimentos numa criação de um si mesmo, de um “Eu”, bastante diferente daqueles que têm, como
constituinte fundamental, um núcleo central ou mesmo vários núcleos bem definidos.

Sabemos que os elementos considerados fundamentais na construção do Eu não são dados todos de
uma vez e não podem ser considerados absolutos para a definição da identidade. A identidade não é um fato
imutável; ao contrário, se constrói e se modifica durante a própria existência dos indivíduos e dos grupos.
Ao mesmo tempo, é importante indagar sobre a formação da identidade em momentos de crise, para haver
instrumentos de entendimento sobre a formação da flexibilidade e da rigidez dos sujeitos diante da
constituição da identidade. É necessário indagar quais são os meandros desta constituição, na relação
consigo mesmo e com os outros – e a condição de imigrante de segunda geração oferece uma oportunidade
ímpar para novas considerações serem buscadas.

Considerações finais

Em síntese, nosso trabalho pode averiguar, em relação as teorias do multiculturalismo, que todas as
culturas são multiculturais a partir da formação e do desenvolvimento delas mesmas independentemente,
inclusive, do contato com outras culturas. Não existem culturas puras ou monolíticas. O Brasil, em sua
formação multiétnica, teria um certo know how na compreensão deste fato pois foi formado por tantas
diversas culturas que colocam em evidencia o processo cultural de uma identificação com os múltiplos
pertencimentos. Leituras estreitamente ligadas à imigração nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, e
do modo destes países se relacionarem com o diverso, com o “outro” como algo de estranho a eles mesmos,
tem evidenciado a dinâmica cultural do múltiplo pertencimento em contraposição a uma ideia de cultura
mais rígida e feitas de identidades estáticas como “raízes”, metáfora frequentemente muito utilizada para a
negação política da igualdade de direitos à quem não possui tais “raízes”. O Brasil, influenciados por estas
leituras da contraposição, acaba por esquecer seu know- how e cria um “nacionalismo” que pouco relata sua
história poliédrica

Os imigrantes se configuram, sim, como sujeitos provenientes de “fora”, mas, primeiro de tudo, são
pessoas com projetos subjetivos diversos que não estão dentro da categoria do “multiculturalismo”. Em
face da atual presença estrangeira no Brasil é necessário ampliarmos as discussões sobre a conceituação
histórica do multiculturalismo e como a psicologia no Brasil tem tratado este tema conjuntamente com suas
práticas profissionais, para que nossa psicologia intercultural não seja a reprodução de considerações
realizadas em outros países motivadas por outros conflitos não necessariamente pertinentes aos brasileiros.

Outro ponto dessa discussão, a ser levado em consideração para a psicologia brasileira, é que a
cultura, transformada em questão da subjetividade, não diz respeito apenas a estrangeiros deslocados,
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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

residentes no país, de passagem ou em estadias de curta e média durações, a brasileiros retornados de outros
países, mas a quaisquer outros segmentos da população ou a quaisquer situações e sujeitos. Tal como foi
mencionado na revisão da literatura sobre o conceito de multiculturalismo, a diversidade de culturas e suas
consequências não emerge apenas no plano do relacionamento entre povos e países, mas também está posta
no interior de povos e nações com identidades aparentemente bem definidas. Fala-se em cultura ocidental,
cultura africana, cultura árabe, cultura latino-americana e assim por diante, como se fossem uma coisa só,
com identidades homogêneas e bem delimitadas. Tais designações são recortes e classificações que
cumprem funções várias e são utilizadas com os mais diferentes propósitos, mas são arbitrárias e abstratas,
não podendo ser tomadas como alusivas ou correspondentes a coisas concretas ou a referentes que se
sobrepõem ao signo linguístico. Os recortes feitos no amplo universo cultural da humanidade podem extrair
pequenos retalhos a partir de micro enquadramentos ou de enquadramentos realizados a partir de óticas não
convencionais. Assim podemos vislumbrar culturas de jovens ou de velhos, pelo recorte etário, cultura de
hétero ou de homossexuais, pelo recorte da sexualidade, de homens, mulheres, gays, lésbicas, pelo recorte
de gênero, cultura nordestina, mineira, amazônica e assim por diante, pelo recorte das culturas regionais
brasileiras; podemos vislumbrar uma cultura roqueira, sertaneja, heavy metal, punk, funk e diversas outras,
pelo critério da musicalidade ou da composição de tribos urbanas e por tantos outros recortes e
enquadramentos.

Nas infinitas possibilidades de recortes das culturas e de suas bricolagens entre elas resta a
constatação de que o ser humano e suas produções subjetivas são localizadas, ou seja, estão inscritas num
microuniverso simbólico conectado com outros mundializados, num trânsito intenso. Dessa forma, é
impossível se compreender os processos de subjetivação e as produções da subjetividade desconectados de
suas referências culturais, quaisquer que sejam. Contudo, é igualmente necessário evitar os reducionismos
pelos quais as produções subjetivas são entendidas como resultado de uma reprodução mecânica de uma
cultura, exatamente como ocorre na ótica do preconceito. Há sempre que se considerar o sujeito e sua
singularidade. Esse seria o plano irredutível da cultura: a maneira como o sujeito, concretamente
constituído, opera e age no universo cultural que o circunda, desde aquele dado na imediaticidade dos seus
sentidos até aquele, mediato, que chega a ele e o afeta pelas mídias e redes sociais ou por outras infovias.

Se o sujeito e a subjetividade precisam ser decifrados no âmbito dos círculos culturais, uma
conclusão óbvia é a que todo psicólogo e toda a psicologia operam na e pela cultura, o que equivaleria dizer
que toda psicologia é cultural ou intercultural – e não apenas aquela psicologia que trabalha com migrantes
ou com outros segmentos da população que transitam de um país a outro. Todos nós, em algum grau,
estamos transitando por diferentes culturas quando nos deslocamos de um lugar a outro, dentro de uma
mesma cidade ou, para radicalizar o raciocínio, até mesmo quando nos dirigimos aos outros, inclusive.
aqueles que fazem parte de nossa convivência diária. Cada um é depositário e fonte de cultura.

Considerando que toda psicologia e prática psicológica, assumidamente ou não, operam sobre
subjetivações constituídas em universos interculturais ou transculturais, a saber, trabalham com processos e
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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

conteúdos psicológicos que emergem na experiência do sujeito, travada em espaços e tempo determinados e
delimitados, sobretudo, pelos resultados do entrecruzamento de povos e culturas. Por isso mesmo, é
imprescindível para a psicologia e para o psicólogo mergulharem profundamente nas culturas, nos saberes,
linguagens, simbologias e produções de sentido que emanam de práticas sociais, das artes (eruditas e
populares) e em outras manifestações coletivas.

Certa vez, uma conhecida psicanalista que utiliza um blog na internet para divulgar seus
ensinamentos e leituras de acontecimentos mundanos, simulando diálogos com uma paciente fictícia, fez
uma interpretação da expressão “que tiro foi esse?”, título de uma música Funk, que ilustra bem a
necessidade do conhecimento do universo cultural no qual brota a produção de sentido. No diálogo
simulado a paciente/analisanda comenta que ficou surpresa ao ouvir o funk “Que tiro foi esse”
acompanhado de coreografias, num vídeo clip, que simulavam pessoas sendo mortas por balas perdidas,
depois ressuscitando. Complementa a analisanda dizendo que ficou chocada ao ver esse funk e essa
expressão sendo reproduzidas em memes diversos e assumirem uma conotação positiva. A psicanalista,
então, a partir da letra e das cenas do vídeo-clip desfia uma longa digressão sobre a angustia da morte e as
tentativas de dominá-la. Evocou o conhecido caso do neto de Freud e sua brincadeira de lançar e reaver um
carretel como uma elaboração psíquica, mediante um jogo, da angustia da perda da mãe que pode ser
tomado como paradigma de tantos outros jogos e produções culturais, como essa música, que procuram
elaborar o temor de tantas “balas perdidas” mortais ou capazes de produzirem perda irreparáveis, que
rondam nosso mundo. Não deixou de associar o titulo da música com a experiência da violência, mortes e
assassinatos que assola nossa realidade. A letra da música se inicia com dois versos repetidos na primeira
estrofe: “que tiro foi esse? Que foi um arraso”. Ao comentar o segundo verso ela atribui a ele como sentido
principal a glamourização da violência e do crime. Um leitor lembrou a psicanalista de que, entre os gays, o
sentido desses versos, sobretudo, da expressão “que tiro foi esse?” é bem outro e nada teria a ver com o que
ela teria entendido ou interpretado. Em resposta a esse leitor ela afirma que desconhecia a origem e o
sentido dessa expressão no mundo LGBT, mas que pela percussão e coreografia essa música falava também
de balas perdidas, ou seja, procurou manter sua leitura como pertinente.

O que queremos chamar a atenção nesse episódio é o quanto o desconhecimento, como nesse caso,
do linguajar e das simbologias de um certo grupo, comunidade ou qualquer outro nicho de produção
cultural compromete completamente a compreensão e leitura de acontecimentos e manifestações cingidos a
esses lugares. “Que tiro foi esse?” é uma pergunta amplamente utilizada, em muitos nichos, como
expressão de um sentimento de surpresa, como percepção de algo impactante, como um ato contundente,
arrebatador e pode se referir a muitas situações. Normalmente é utilizada com conotações positivas. Por
isso mesmo, na música, ela vem acompanhada de outra expressão “que foi um arraso”, designando um
acontecimento arrebatador, glorioso. Evidentemente é uma expressão metafórica que, mesmo tendo traços
metonímicos, está bem distante da denotação e conotações de um tiro de arma de fogo e da glamourização
de assassinatos e de crimes. Seguramente, as interpretações da analista são cabíveis, mas sua leitura teria

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Migrações, multiculturalismos e identidades: revisitando conceitos

sido muito mais rica e menos enviesada se tivesse um conhecimento maior da cultura gay, funk e de outras
nas quais tais expressões assumem um caráter idiomático.

Não seria demasiado dizer que os encontros e confrontos de culturais, tanto no horizonte mais vasto
do cenário mundial, quanto em outros cenários mais restritos existem muitas “balas perdidas” e pessoas se
perguntando “que tiro foi esse’? Balas perdidas representadas por falas ininteligíveis, por gestos
indecifráveis, atitudes e condutas incompreensíveis e tantas outras expressões humanas provenientes não
apenas de estrangeiros, como no caso dos imigrantes, mas também dos próprios locais que se tornam
verdadeiros estrangeiros na sua própria localidade de origem, às vezes até falando uma língua que funciona
como idioleto.

Dessa forma, pensar uma psicologia intercultural brasileira não é necessariamente imaginar e tentar
construir mais uma especialidade da psicologia, mas sim, trazer a cultura para a psicologia, para toda a
psicologia, fazer com que toda teoria e as práticas psicológicas reconheçam e incorporem a cultura como
uma categoria fundamental da existência e dos processos de subjetivação. Em primeiro lugar, é necessário
trazer para a psicologia a própria cultura brasileira, em toda a sua pluralidade possível, para que possamos
ver mais balas perdidas e buscar inteligibilidades para além dessas que estamos habituados a ver e aprender
suas origens e trajetórias por lentes cristalizadas que refletem sempre as mesmas imagens, com os mesmos
contornos e luminosidade. Em segundo, lugar é preciso construir uma psicologia que possa contribuir com
as conexões entre diferentes culturas, fortalecendo e facilitando a circulação de subjetivações heterogêneas
que possam coexistirem, ainda que em situações de conflito.

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Acesso em: 14 ago.20

31
MIGRANTES EM RORAIMA (BRASIL): A MASSIFICAÇÃO DOS TERMOS ACOLHER E
ACOLHIMENTO

José Carlos Franco de Lima 1


Gilmara Fernandes 2

Introdução

O estado de Roraima (Brasil), nos últimos anos, tem recebido migrantes venezuelanos, haitianos e
cubanos. Os cubanos entram pela fronteira da República Cooperativista da Guiana. Já os haitianos vêm de
Manaus (Estado do Amazonas, Brasil) e algumas famílias vem da Venezuela. Em 2016, houve
intensificação da migração de venezuelanos indígenas e não indígenas para Roraima, principalmente para a
cidade de Boa Vista, capital do estado. Roraima tinha uma população em torno de 600 mil habitantes,
distribuída em um território de 224.299 km². O Brasil tem fronteira de 2.199 km com a Venezuela. A
rodovia BR 174 liga Manaus (Amazonas) a Pacaraima (Roraima), na fronteira com a Venezuela. Do lado
venezuelano, está a localidade de Santa Helena de Uairén (Estado Bolivar), que tem ligação asfáltica até
Ciudad Bolivar, Porto Ordaz e Caracas. Nas últimas décadas do século XX e na primeira década do século
XXI, muitos brasileiros migraram para a Venezuela para trabalhar no garimpo de ouro; muitos inclusive
adquiriram cidadania venezuelana durante o governo Chávez.
Recentemente, houve a inversão desse fluxo. Devido ao aprofundamento das disputas entre governo
e oposição na segunda década do século XXI e ao bloqueio econômico imposto pelo governo dos EUA, a
Venezuela entrou num processo de desabastecimento, inclusive de alimentos. Soma-se a isso o
aprofundamento da crise hídrica na bacia do Rio Orinoco e no Vale de Caracas. A partir de 2017 houve um
aumento gigantesco de solicitações de refúgio na delegacia da Polícia Federal em Boa Vista. No segundo
semestre de 2017 foram realizados mutirões permanentes para agilizar a regularização dos migrantes na
sede da Polícia Federal com a participação de voluntários da Pastoral Universitária Católica (PUC), do
Grupo de Estudos de Fronteiras da UFRR (GEFRON), do Centro de Migrações e Direitos Humanos
(CMDH) e do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR). Foram processados 7.600 pedidos de
refúgio até junho de 2017. A pastoral dos migrantes da Igreja Católica, em 2018, promoveu mutirões em
parceria com a Polícia Federal para regularizar a situação de migrantes que estavam vivendo nas cidades do
interior do estado. Em 2017, devido à grande demanda, o governo federal abriu a possibilidade de
solicitação de residência temporária sem a cobrança das taxas; mesmo assim, as solicitações de refúgio

1
Doutor em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Coordenador do Projeto de Apoio aos
Refugiados em Roraima do Instituto de Antropologia da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Brasil.
2
Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), membro do Conselho Indigenista Missionário de
Roraima (CIMI/RR), Brasil.

32
Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

superaram os pedidos de residência temporária. Diariamente, mais de 200 pessoas se aglomeravam, durante
a madrugada, em frente ao prédio da Polícia Federal em Boa Vista, para entrarem com pedido de refúgio ou
residência temporária. Em abril de 2018, foi inaugurado um centro de referência para imigrantes, sob
direção do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), na
Universidade Federal de Roraima, para atendimentos destinados à regularização dos migrantes e às
orientações jurídicas.
A migração massiva ganhou visibilidade nas ruas, nas empresas e na mídia. Tornaram-se comuns os
grupos de homens pedindo trabalho, com cartazes de papelão, em pontos estratégicos nas principais
avenidas, a mendicância, os “limpa-vidros” em semáforos, os músicos migrantes em bares e restaurantes, os
funcionários de empresas falando portunhol.
A situação da migração venezuelana entrou em pauta nas conversas de bares, nos lanches de rua, nas
salas de aulas das universidades, nas filas de espera dos hospitais e postos de saúde, bem como nas casas
das famílias e na mídia. O tema também se tornou pauta das campanhas eleitorais, em 2018, em Roraima,
tanto para responder ao eleitorado local, quanto para desviar o foco das eleições e das questões econômicas
e políticas nacionais. No segundo semestre de 2018, segundo projeções do governo estadual de Roraima já
chegava a 75 mil migrantes venezuelanos no estado.
A grande maioria dos refugiados se concentrou em Boa Vista, capital de Roraima, que tem cerca de
320 mil habitantes, mas também há venezuelanos em outras cidades do estado – que possui 14 municípios
no interior, todos com menos de 30 mil habitantes. Essa concentração dos migrantes na capital deve-se à
proximidade com a Venezuela, à espera pela legalização da situação no país e à familiarização com a língua
portuguesa. Para os imigrantes, estando próximos à fronteira, é mais fácil remeter dinheiro, a partir de Santa
Helena de Uiarén, bem como viajar para a Venezuela e levar utensílios e alimentos para familiares
residentes naquele país.
A maioria das ofertas formais de emprego na cidade está vinculada aos serviços públicos municipal,
estadual e federal. A manutenção de ruas e rodovias é um exemplo: é comum a contratação de empresas
terceirizadas, pelo setor público, para os serviços municipais de limpeza de rua e dos hospitais públicos. A
recessão econômica brasileira, iniciada no final de 2014, aumentou o desemprego no país, em especial em
Boa Vista, principalmente em decorrência da redução de investimentos públicos em obras de infraestrutura.
Devido a essa conjuntura, trabalhadores venezuelanos passaram a representar um contingente adicional de
mão de obra excedente no mercado de trabalho local. Iniciou-se um processo de substituição de mão de
obra brasileira por mão de obra migrante. Isso se deve a três fatores: a mão de obra migrante é qualificada,
a remuneração que esses trabalhadores recebem é inferior à paga aos brasileiros e, como terceiro fator,
neste momento os venezuelanos estão na condição de trabalhadores submissos, devido à situação de
extrema necessidade a que estão submetidos. Esse quadro se alterará radicalmente em 10 anos, com o
reconhecimento progressivo dos diplomas dos migrantes e com a obtenção da cidadania definitiva.
Muitos migrantes seguem para outros estados do Brasil. É o caso de cinco cubanos que conhecemos
em uma das turmas de português de acolhimento do Projeto Extensão, de apoio aos refugiados em Roraima,

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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

do Instituto de Antropologia da Universidade Federal, que funciona num espaço comunitário chamado
Recanto Apuí, no Bairro Caimbé, em Boa Vista. Esses cubanos ingressaram em meados de junho/2017;
um mês depois, três já estavam em Curitiba (Estado do Paraná), juntando dinheiro para enviar aos dois que
ficaram em Boa Vista para que esses pudessem seguir viagem. Outro exemplo são Merlina, Rafael e seus
dois filhos, que chegaram em 2015. Vindos de La Vitória (Estado Miranda, Venezuela), viajaram para
Joinville (SC) de avião, no dia 2 de fevereiro de 2018. Muitos venezuelanos têm utilizado o aeroporto de
Boa Vista para viajarem em direção ao Uruguai e à Argentina. Um dos objetivos do plano de controle de
fluxo migratório, implantado pelo Exército em 2018, é o envio dos migrantes para outras regiões do Brasil.

Ações de Acolhimento, Proteção e Inserção Laboral

“Acolher” e “acolhimento” se tornaram palavras correntes nos discursos das organizações da


sociedade civil e dos organismos estatais que atuam nas ações junto a migrantes em Roraima. No âmbito
das ações que acompanhamos, entendemos que acolhimento é um valor ético e envolve um conteúdo
afetivo. Se contrapõe à rejeição. Nas palavras de uma estudante de psicologia, bolsista no Projeto
Acolher/UFRR em 2017: “O acolhimento envolve afeto e o afeto é revolucionário!”. É uma postura que
está presente na chegada e na inserção dos migrantes no cotidiano social, inclusive no âmbito do trabalho.
Porém, nos discursos institucionais, como os do Ministério Público Federal (MPF), do Ministério da
Defesa, da Secretaria do Bem-Estar Social do Estado (SETRABES), da Secretaria Municipal de Gestão
Social (SEMGES), do Comitê da Migração em Roraima (COMIRR), do Instituto Nacional de
Desenvolvimento Humano (IDMH), entre outros, o termo acolhimento remonta à proteção e garantia de
direitos, à inserção laboral e à repressão à xenofobia.
As primeiras iniciativas de acolhimento e apoio aos refugiados se deram no âmbito da sociedade
civil, principalmente no campo das organizações religiosas, nos anos de 2015 e 2016. Exemplos dessas
ações de acolhimento são: as campanhas de arrecadação de alimentos nas igrejas católicas e evangélicas; o
acolhimento no Sindicato da Construção Civil (SINTRACOM), em parceria com o Centro de Migração e
Direitos Humanos (CMDH) e com as Pastorais Sociais da Arquidiocese de Roraima; a distribuição de
cestas básicas de alimentos e a assessoria jurídica pelo CMDH; as remessas de alimentos para Porto Ordaz
e outras cidades, pela Assembleia de Deus; e as doações de alimentos e roupas a desabrigados acampados
em espaços públicos, por grupos informais e espontâneos de voluntários.
O ano de 2017 registra uma alteração nesse quadro: surgem intervenções do Ministério Público
Federal, audiências públicas e seminários envolvendo a sociedade civil e os órgãos públicos, visando
garantir os direitos dos migrantes. Entram em cena organismos como o Alto Comissariado da Organização
das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a Organização Internacional da Migração (OIM) e o Fundo
das Nações Unidas para a População (UNFPA). O Projeto Acolher da UFRR se torna uma referência. Se
instalam em Roraima o Serviço de Apoio a Refugiados e Migrantes dos Jesuítas (SJMR). Um abrigo para
300 migrantes é construído pela ONG Acolher sem Fronteiras.

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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

A sociedade civil organizada amplia e consolida seus serviços em 2018. São exemplos as ações
como a oferta de banheiros e refeitórios comunitários na Paróquia Nossa Senhora da Consolata,
desenvolvida pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos (IDMH): a oferta de aulas de português e
regularização de documentação na capital e em municípios do interior, promovida pela Pastoral dos
Migrantes; a continuidade dos serviços de doação de alimentos, roupas e orientação jurídica pelo CMDH.
Por sua vez, os jesuítas implantaram o Serviço Jesuíta de Apoio a Refugiados e Migrantes, ofertando
serviços jurídicos e intermediação para inserção sociolaboral, enquanto a Fundação Fé e Alegria, também
dos Jesuítas, iniciou um projeto educacional para crianças migrantes no horário de contraturno escolar. A
Pastoral Universitária Católica iniciou um programa de translado de migrantes estudantes para Juiz de Fora
(MG), arcando com os custos de transporte e garantindo três meses de hospedagem e alimentação na
Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), além de apoiar os estudantes migrantes na validação de
diplomas. No campo espírita, a ONG Acolher Sem Fronteiras abriu um trabalho de intermediação para
inserção laboral para migrantes em outras regiões do Brasil, além de manter um abrigo para 300 pessoas no
bairro Nova Cidade. No campo evangélico, algumas igrejas passaram a oferecer cultos em espanhol e apoio
aos irmãos de crença venezuelanos, no tocante a abrigo, alimentação, aulas de português, trabalho e
translado para outras regiões do Brasil. Uma sala digital, voltada para ensino de português e informática,
financiada pela Ericson Brasil, foi implantada no Centro de Referência para Imigrantes na UFRR. O
Recanto Apuí, espaço cultural independente gerido por migrantes e voluntários se consolidou na oferta de
aulas de português numa perspectiva holística, abrigamento comunitário, oficinas de música, cozinha
vegetariana, percepção corporal e compostagem.
As ações espontâneas e informais continuaram a ser realizadas, porém, com o fechamento dos
espaços públicos ocupados por desabrigados, essas ações se tornaram menos visíveis. As organizações da
sociedade civil apresentaram um relatório em janeiro de 2018, para os representantes do Conselho Nacional
de Direitos Humanos, apontando a ausência de políticas públicas de acolhimento, a omissão do governo
federal e a desarticulação das ações dos governos estadual e municipal. Em contrapartida, o governo federal
implementou um plano de controle de fluxo migratório sob direção do Exército, a denominada “Operação
Acolhida”.

Ações de Acolhimento na Universidade Federal de Roraima

A Universidade Federal de Roraima vem desenvolvendo um conjunto de ações de acolhimento,


proteção e inserção dos migrantes na sociedade local desde 2017. Sendo uma instituição vinculada no
Ministério da Educação, a UFRR é uma referência no que tange às possibilidades de políticas públicas de
acolhimento.
As iniciativas de ações de acolhimento e proteção surgiram de forma espontânea entre alunos e
professores, como resposta às demandas sociais que apresentava o processo migratório. O Projeto
Acolher/UFRR foi uma referência de acolhimento em 2017. Essa iniciativa ganhou muita visibilidade nas
mídias local e nacional, num momento em que o poder público estava ausente, as agências da ONU
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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

estavam se instalando e as organizações da sociedade civil ainda seguiam com ações muito tímidas. As
ações do projeto envolviam aulas de português, campanhas de sensibilização da opinião pública, momentos
de escuta sensível, campanhas de doação de alimentos e roupas. Cada ação tinha uma equipe com
autonomia para desenvolver seus trabalhos. O projeto foi oficialmente denominado Projeto de Apoio aos
Refugiados em Roraima e teve apoio da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Extensão, que cedeu 4
bolsistas. O nome fantasia “Projeto Acolher” deixou de ser usado, em 2018, pelos coordenadores das ações,
pois eles avaliaram que acolher era um sentimento mais amplo do que um projeto institucional e que o uso
do nome devia ser de domínio público. Outras iniciativas no âmbito da universidade foram ganhando corpo,
como oferta de orientações jurídicas e as ações do Grupo de Estudos Interdisciplinares de Fronteira.
A incorporação das dimensões emocional e ética como fundamentos dessas ações ajuda a
compreender a opção por definir o acolhimento como sentimento. Tão importantes quanto os resultados são
as relações que se estabelecem nesse processo de desenvolvimento de ações. Apontamos, como pilares
éticos, o compromisso moral com o respeito a diversidade cultural e a solidariedade muito evidentes no
comportamento de professores, estudantes e voluntários – inclusive com doação de recursos financeiros e
materiais pessoais. Além do sentimento doado, é possível perceber a reciprocidade dos acolhidos na mesma
medida no decorrer de cada ação.
No segundo semestre de 2018, a Coordenação de Relações Internacionais da UFRR promoveu o I
Seminário sobre Internacionalização da Universidade, apontando para a integração das ações de
acolhimento a migrantes e dos programas internacionais de intercâmbio.
Além da Universidade Federal de Roraima, o Instituto Federal de Roraima e a Universidade
Estadual de Roraima ofereceram cursos de português para migrantes. O I Encontro de Português de
Acolhimento foi realizado de 12 a 14 de maio de 2018, na UFRR, e reuniu profissionais e voluntários das
universidades e organizações da sociedade civil que estavam trabalhando com o ensino de português para
migrantes. Foi um encontro de concepções pedagógicas diversas que tinham como eixo comum o
acolhimento e a integração dos migrantes na sociedade local.

Controle Militar do Fluxo Migratório

Em fevereiro de 2018, o presidente da república criou o Comitê Federal de Assistência Emergencial.


Composto por vários ministérios, conta com representantes da ACNUR, da OIM, da UNFPA, mas não
conta com representantes da sociedade civil organizada, nem do governo do estado nem das prefeituras de
Roraima. O presidente da república nomeou um general do Exército para presidir o comitê e destinou o
orçamento previsto para ser gerido pela autarquia militar. Na prática, os militares assumiram o controle da
política de estado no tocante ao fluxo migratório. O Exército assumiu os abrigos para refugiados, mais uma
dezena de abrigos. No caso do acolhimento dos indígenas Warao e Eñepá,. O exército também assumiu a
seleção e o translado dos migrantes solicitantes de refúgio para outras regiões do país com apoio das
agências da ONU (ACNUR, OIM, UNFPA e UNICEF). Em tempos de avanço das forças reacionárias e
autoritárias na política brasileira, a gestão federal se caracterizou como uma intervenção militar camuflada
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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

em Roraima. A denominada “Operação Acolhida” destinou às Forças Armadas competências de assistência


social, configurando-se uma manobra dos setores reacionários do governo para aumentar a presença militar
no dia a dia da população e formar opinião pública favorável à presença militar na política interna.
Em vez de articular as ações de governo nas esferas federal, estadual e municipal e fortalecer a
sociedade civil organizada, o governo federal passou ao Exército a implementação da política migratória.
Essa estratégia revela uma tendência já observada na intervenção federal no Rio de Janeiro: repassar
funções, que competem às instâncias de governo civil, para os militares. Esse quadro poderia sofrer um
agravante se houvesse a proliferação de tumultos e violência política nas eleições 2018, o que abriria
possibilidade de promulgação de estado de sítio que poderia ser aprovado pelo Congresso Nacional
conservador. Entraríamos num regime de exceção no qual as Forças Armadas, em especial o Exército,
seriam a salvaguarda da ordem, impondo um regime de hierarquização e centralização, nos moldes
militares, em todas as esferas de governo e soterrando o projeto de controle social do estado pelos cidadãos
– previsto na Constituição de 1988. Óbvio que esse regime de exceção seria consolidado por emendas
constitucionais por um Congresso Nacional eleito sob tutela de um regime autoritário. Por hora, essas são
apenas conjecturas num cenário nacional bastante instável.
Por trás do plano emergencial de fluxo migratório apresentado pelo comando militar, estava uma
estratégia de controle territorial do estado de Roraima e de mapeamento total das ações voltadas para
migrantes por parte do serviço de inteligência do Exército. O governo do estado e as prefeituras, em
especial, a prefeitura de Boa Vista, perdem seu papel estratégico na política migratória, se tornando atores
secundários.
Cabe algumas observações sobre as agências da ONU que atuam no âmbito local. A ACNUR, a
OIM e a UNFPA, desde que se instalaram em Roraima, vinham desde 2017 constituindo Grupos de
Trabalho (GT) sobre temáticas específicas, numa tentativa de articular a sociedade civil, as organizações
empresariais, o Ministério Público, o Poder Judiciário e os organismos federais, estaduais e municipais em
torno das questões migratórias. Com a entrada dos militares em cena, as agências passaram a operar,
acompanhar e apoiar as ações de abrigamento e interiorização. Atuam como observadores internacionais no
plano de controle de fluxo migratório do Exército. A agência com maior presença é a ACNUR, desde que o
governo brasileiro reconheceu o status de refúgio por emergência humanitária; ou seja, a principal
justificativa para os investimentos em controle do fluxo migratório está baseada na condição de refugiados
dos migrantes. A universidade federal cedeu dependências desde 2017 para as três agências se instalarem.
A aproximação física facilitou um diálogo maior com as ações que a universidade vinha desenvolvendo. A
inauguração do Centro de Referência ao Imigrantes, gerido pela ACNUR, dentro da universidade, com o
desenvolvimento de algumas ações voltadas ao bem-estar e à orientação jurídico-laboral por parte da
universidade federal, revela o nível dessa parceria.
No caso, o acolhimento passa a ser vinculado ao controle militar, à triagem e ao translado para
outras regiões do Brasil. O âmbito da regulação estatal é a referência para o acolhimento. Por outro lado, a
extrema vulnerabilidade dos migrantes, expostos à fome, ao desabrigo e à xenofobia local, foi amenizada

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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

com a intervenção militar. O apelo à presença militar aparece na opinião pública em outras áreas sociais;
por exemplo, o apoio à militarização das escolas estaduais. A insegurança diante de furtos de telefone
celulares, assaltos a residências, roubos de bicicletas e estupros de mulheres ganha contornos dramáticos,
impelindo parte da população à defesa da repressão violenta à criminalidade. Associado a isso, se
fortalecem ações de xenofobia incitadas por meio de comunicação – como televisão, rádio e redes sociais.
Os programas policiais de televisão incitam a violência contra os venezuelanos, que são apontados como os
principais causadores do aumento dessa e de crimes nas cidades. Algumas reportagens culpabilizam os
venezuelanos pela crise na cadeia pública, bem como nos sistemas de saúde e de educação – tanto
municipal e estadual. Por outro lado, constatamos a realização de atos ilícitos cometidos por migrantes
venezuelanos. Numa sexta-feira à noite, em fevereiro de 2018, estivemos no 5º. Distrito da Polícia Civil:
verificamos três boletins de ocorrência envolvendo furtos por migrantes. Em junho, acompanhamos o
trabalho socioeducativo junto a dois menores migrantes sentenciados a cumprirem as medidas de Liberdade
Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade.
Os mendigos e os assaltantes provocam reações raivosas em setores da população que veem neles a
negação do trabalho como valor. É o que observamos em rodas de conversa, com migrantes venezuelanos
empregados e autônomos, nas quais eles condenam a mendicância e a delinquência como formas de obter
recursos, pois, para eles, o trabalho é a única forma válida para se ter uma renda. A fala de uma feirante
brasileira é bastante expressiva nesse sentido: ela nega dar esmola a uma indígena warao venezuelana com
o filho nos braços e fala – para os clientes ouvirem: “Criei meus filhos sozinha, trabalhando!”.
A esperteza, a astúcia e a enganação se tornaram valores que norteiam o comportamento de muitas
pessoas no dia a dia: o importante é se dar bem. Somados à concorrência e à defesa dos interesses
particulares sobre os interesses coletivos, formam o núcleo do sistema de valores que norteia o estado de
guerra vivido pela sociedade atual.

Aluguel, Abrigos ou Rua

A maioria dos migrantes vive em apartamentos térreos tipo quitinete nas chamadas vilas ou
estâncias, que são imóveis com vários apartamentos alinhados nos limites laterais do terreno, um após
outro. O grau de insalubridade é alto, pois os tetos são, em geral, de telhas de fibrocimento sem forração
interna. Como as temperaturas locais mantêm média anual entre 35 e 40 graus, no cerrado roraimense,
conhecido localmente como lavrado, o ambiente da moradia se assemelha a uma estufa. O aluguel é pago
com trabalho formal ou informal.
Algumas obras abandonadas de prédios e casas foram ocupadas por migrantes. Em alguns casos,
com concordância dos donos, em outros casos, sem sua anuência. Em junho de 2018, foram removidas,
pela Polícia Militar, 31 famílias de um prédio abandonado e inacabado no centro. A polícia não tinha
mandado de reintegração de posse. Após acordo mediado por uma organização do Serviço Jesuíta de
Proteção aos Migrantes, as famílias foram transferidas para um abrigo público recém-inaugurado.

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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

O número de abrigos públicos chegou a dez, em Boa Vista, e um, em Pacaraima, no final do
primeiro semestre de 2018. Cerca de 5 mil pessoas vivem nos abrigos, que funcionam como centros de
passagem, pois o processo de translado, pelo poder público, para outras regiões do Brasil, prioriza
abrigados. Só ficam nos abrigos os solicitantes de refúgio. Todos os abrigos públicos são geridos pelo
Exército. A transferência compulsória para outras regiões do Brasil ou o retorno à Venezuela aparece como
objetivos estratégicos do plano de controle militar do fluxo migratório, porém o Ministério do
Desenvolvimento Social tem se mostrado tímido na articulação com municípios receptores. A seleção para
transferência dos solicitantes de refúgio nos abrigos ficou a cargo do ACNUR, enquanto a preparação dos
grupos para viagem ficou a cargo da UNFPA e da OIM. A UNICEF entrou em cena com vistas a trabalhar
com as mães e as crianças que vivem nos abrigos.
O abrigo mais antigo é o para refugiados indígenas, cujo maior contingente são waraos. Em 2017 a
gestão do abrigo estava a cargo da ONG Fraternidade Internacional, em conjunto com uma equipe técnica
da Secretaria do Bem-Estar Social do Governo do Estado.
Em 2018 o exército assumiu a gestão do abrigo. Um episódio, ocorrido em 14/04/2018, revela a
mudança de direcionamento da política de abrigamento. O regimento interno do abrigo prevê o fechamento
dos portões às 22 horas. Antes da chegada dos militares, quem fazia o controle do portão eram os indígenas
refugiados. Naquele sábado a noite, três aydanos, líderes de grupos de famílias, com três crianças e uma
mulher, saíram. Eles voltaram embriagados, em torno das 23 horas. A entrada não foi permitida.
Negociaram a entrada das crianças e das mulheres. Quando os soldados abriram o portão para elas
entrarem, os homens forçaram a entrada. Os indígenas foram empurrados para fora e o portão foi fechado
abruptamente, prensando a ponta do dedo anular de Marcelino. Os indígenas dormiram na praça. De
manhã, entraram no abrigo. A Polícia Militar foi acionada e eles foram levados para o 5º. Distrito da Polícia
Civil, para prestarem depoimento por desacato à autoridade e tentativa de agressão. Lá, ficaram três horas
de pé, numa cela minúscula, com mais duas pessoas. Sem água, sem comida e de pé, pois não havia espaço
para sentar-se. Prestaram depoimento, a delegada avaliou que não houve crime, os soldados não
encaminharam a queixa. A delegada os liberou. A guarnição da PM os levou de volta à cela, agora vazia.
Ali, foram agredidos pela guarnição, que os agredia dizendo que “isso é o que acontece com quem quer
bater em militar”. Naquela mesma manhã de domingo, o tenente que comandava o contingente militar no
abrigo reuniu todos os abrigados e anunciou a expulsão dos insubordinados. Afirmou em alto e bom tom
que “os indígenas não são nada ali e que o comando é do exército”. Os indígenas passaram a dormir na
praça, havendo proibição de as famílias levarem alimentos para eles. A instituição militar, moldada na
hierarquia com comando centralizado e obediência absoluta, transferiu para o abrigo seu sistema de
ordenação.
Outro episódio: a ONG Acolher Sem Fronteiras, ligada à Federação Espírita do Brasil, mantém um
abrigo para 300 pessoas. O Exército assinou um termo de cooperação para ampliação do abrigo. Caberia
aos militares ampliar as instalações, porém, a presença militar foi bem além da construção civil, passando a
vigiar as chamadas telefônicas e a fazer o registro fotográfico das instalações e das reuniões sem

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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

autorização da direção do abrigo – segundo relato das coordenadoras, em reunião do Comitê da Migração
em Roraima (COMIRR), em março de 2018.
Os refugiados desabrigados que viviam em espaços públicos aos poucos foram transferidos para os
abrigos do Exército. A prefeitura cercou com tapumes essas praças, alegando obras de revitalização. Como
a chegada de novos migrantes e a falta de vagas nos abrigos, centenas de migrantes continuaram morando
nas ruas ou se acampando próximos aos abrigos púbicos, enquanto aguardavam vagas.
No segundo semestre de 2018 a gestão dos abrigos para refugiados passa a ser executada por
Organizações Não-governamentais conveniadas com a Operação Acolhida. Uma série de parecerias
institucionais são estabelecidas no âmbito da operação. O desenho da governança da política migratória vai
ganhando novos contornos, mas o comando estratégico continua nas mãos do ministério da defesa da
União.

Inserção no Mercado de Trabalho: Desemprego e Exploração

A reforma trabalhista, protagonizada pelo governo federal, combinada com o alto índice de
desemprego no estado de Roraima estimularam a precarização e a exploração do trabalho. Segundo um
estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 2016, a maioria dos trabalhadores e
trabalhadoras migrantes se insere nos setores e nas atividades econômicas que possuem os piores salários e
as piores condições de trabalho. Isso acontece com a mão de obra qualificada provinda de Cuba, Haiti e
Venezuela, à medida que os diplomas não são reconhecidos no Brasil. Trabalhos eventuais, temporários e
subcontratados são práticas usuais e legais na economia globalizada; por isso, o trabalho informal sem
proteção social acaba sendo a alternativa para a maioria dos trabalhadores refugiados e também dos
trabalhadores brasileiros. O pagamento, na forma de diárias, por serviços domésticos, como limpeza de
quintais, ou por trabalhos eventuais, na agricultura familiar ou nas fazendas, representa outra forma de
exploração: 20 reais ao dia para limpeza de quintais ou por um dia de trabalho nas fazendas; 25 reais diários
para uma jornada de seis horas em lanchonetes ou churrasquinhos noturnos. Em geral, a exploração e a
precarização do trabalho têm atingido brasileiros e refugiados. A diferença está no fato de que os brasileiros
estão abrigados e dispõem de uma rede de apoio familiar e de amizade já consolidada. Segundo relato
entregue pelas organizações sociais que atuam na questão migratória, aos representantes do Conselho
Nacional de Direitos Humanos, em 26 de janeiro de 2018:

Nas vias públicas, assim como nos portões das casas, imigrantes imploram por trabalhos,
seja de forma oralizada, seja segurando cartazes com dizeres de pedidos. Tal situação levou
o estado a um grande aumento de mão de obra barata e competição por postos de emprego.
Além disso, subempregos e em condições semelhante à escravidão (não pagamento de
salário ao final do trabalho, sem direitos trabalhistas, em situações insalubres) e aliciamento
para a prostituição de adultos e menores são reportados pelos imigrantes (VENTURA,
2018, p.01).

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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

O empresariado, por sua vez, ganhou maior oferta de mão de obra qualificada, aumento de
consumidores e barateamento da força de trabalho com a chegada massiva de refugiados. Está havendo um
processo de substituição da mão de obra brasileira pela força de trabalho venezuelana. Isso tem ocorrido
por ser uma mão de obra mais barata e mais dócil por necessitar urgentemente de renda. As organizações
empresariais fazem silêncio sobre a temática e se isentam de qualquer responsabilidade social. No final de
setembro de 2017, uma equipe da OIT esteve em Roraima para fazer um diagnóstico da realidade local no
tocante ao mercado de trabalho. Compuseram um grupo, junto com o Ministério Público do Trabalho, e
voltaram em dezembro para apresentar os resultados da pesquisa. Nas duas visitas, agendaram reuniões
com entidades empresariais, sendo que somente a Federação do Comércio e o SESC compareceram,
acenando levemente no sentido de pautar as condições de trabalho no Estado. Em compensação, as duas
tentativas de agendar conversas com a prefeita e a governadora foram abortadas.
Uma questão crucial para a ampliação do mercado de trabalho é a atração de investimento públicos,
privados e associativos na região – numa perspectiva de desenvolvimento humano sustentável. Por
exemplo: investimentos na cadeia produtiva do reflorestamento e na reutilização do lixo plástico teriam
impacto decisivo na oferta de empregos no estado, ao mesmo tempo que seriam uma contribuição decisiva
para preservação no ecossistema amazônico na bacia do rio Branco. É o que tem sido defendido pelo
Projeto de Apoio aos Refugiados em Roraima vinculado ao Instituto de Antropologia da UFRR.
Também merece destaque o quadro referente às profissionais do sexo. Esse setor tradicionalmente
informal e vinculado às tradições patriarcais da sociedade brasileira se tornou rentável na sociedade de
consumo. A prostituição de rua na região da Feira do Passarão em Boa Vista se iniciou na década de 1990,
com os recursos provenientes do garimpo no Brasil, na Venezuela e na Guiana. A atividade ganhou maior
visibilidade e notoriedade com o aumento do número de mulheres venezuelanas trabalhando na prostituição
de rua. Nas cidades do interior, como São João da Baliza, Mucajaí, Alto Alegre, Bonfim e Rorainópolis,
elas foram cooptadas pelos prostíbulos. Em 2017, vários cárceres privados de prostitutas foram
desmantelados pela Polícia Federal no Estado. As prostitutas, as travestis e as transexuais formam um
grupo altamente estigmatizado e vulnerável. Espancamentos, estupros, tentativas de homicídio e
desaparecimentos foram detectados pela equipe da UNFPA de Roraima. Além disso, confirmou-se o
descaso, por parte de policiais, quando elas fazem boletins de ocorrências nas delegacias. Atualmente,
discute-se um projeto de extensão na Universidade Federal voltado para defesa pessoal e para apoio
psicológico a prostitutas, travestis, transexuais e mulheres vítimas de violência sexual. Um dos segmentos
focados pelo projeto será o das refugiadas que trabalham como profissionais do sexo.
Um dos fatores para o crescimento da rejeição em relação aos migrantes é a substituição da mão de
obra de trabalhadores brasileiros por trabalhadores migrantes. O que tem repercussão direta no discurso dos
políticos locais em vistas as eleições de 2018. A culpabilização dos migrantes pelo desemprego e pelo
aumento da criminalidade na opinião pública local foi reforçada pela mídia local. A discussão de propostas
de políticas de investimento para atração de investimentos públicos e privados para criação de postos de
trabalho e políticas de prevenção à violência foi evitada por políticos e mídia local. Essa estratégia, de

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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

desviar o foco das eleições no estado para os migrantes, foi uma forma de evitar formular propostas para o
desenvolvimento sustentável para a região.
Observamos que a palavra acolhimento não é utilizada no âmbito das discussões sobre inserção
laboral dos migrantes. O que nos leva a supor que as relações de produção são mediadas pelos interesses
econômicos, não havendo espaço para acolhimento. Por que o bem-estar emocional estaria ausente dos
espaços produtivos? Por que empregar e acolher representam ações tão separadas? Por que o contrato de
trabalho exclui pactos emocionais e sentimentais? Talvez elementos como confiança, inveja, narcisismo e
solidariedade, entre outros, estejam presentes nas relações de contratação de mão de obra e formem um
pacto oculto que escapa ao direito objetivo. O trabalho de mediação para inserção laboral envolve proteger
o migrante contra o tráfico humano e a escravização, mas ainda está longe de incorporar o conceito de
acolhimento no âmbito do trabalho.

Acolhimento na Saúde e na Educação Públicas

A saúde pública foi o primeiro setor do serviço público no qual o termo acolhimento ganhou uso
corrente. O acolhimento foi concebido como a humanização na recepção do paciente. A triagem dos
atendimentos é iniciada pelo acolhimento. Aqui, o acolhimento remete à recepção, aos procedimentos de
entrada no sistema de saúde púbica.
Os serviços de saúde pública vêm sofrendo precarização intensa em nível nacional e, em especial,
em Roraima. Os governos estaduais têm gerado uma crise financeira na área da saúde que se agrava a cada
ano devido à má gestão e ao desvio de verbas. A rede estadual de saúde, responsável pelos hospitais e pelas
maternidades, atende à demanda curativa de forma deficitária. Chegou a faltar analgésico no Hospital Geral
de Roraima (HGR) e no Hospital de Rorainópolis em 2015. Naquele mesmo ano, os servidores da saúde
entraram em greve por melhores salários e melhores condições de trabalho. O sistema de atendimento da
saúde indígena conta com dois Distritos Sanitários em Roraima e se utiliza da rede hospitalar estadual. Uma
parte da verba para saúde no Estado provém do orçamento da Secretaria Especial da Saúde Indígena.
Assim, é evidente que o governo estadual, seja por problemas de gestão, seja por falta de recursos, permitiu
o sucateamento do setor.
Acompanhamos a internação de um jovem músico venezuelano que teve um surto psicótico. Ele
estava numa casa de apoio de artistas que viajam pela América Latina. O apoio dos anfitriões foi
fundamental, inclusive para contatar a família. O processo inicialmente foi muito difícil, pois ele resistia em
ir ao Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS). Chegando lá, procuramos o setor de acolhimento, onde
nos disseram que, como era refugiado, ele tinha que entrar pela emergência do Hospital Geral. No hospital,
os atendentes e o médico não falavam espanhol na primeira entrada. Na segunda, o paciente foi atendido
por um médico cubano. Após dez dias de internação no HGR, o jovem músico foi encaminhado para o
CAPS. Depois de um mês, ele voltou com a mãe para a Venezuela.
Profissionais que só falam português e migrantes que só entendem espanhol têm sido um empecilho
para o atendimento em postos de saúde, hospitais, escolas e universidades. Observamos, no Projeto de
42
Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

Apoio aos Refugiados em Roraima/UFRR que a qualidade do atendimento aos refugiados depende muito
da atitude dos servidores que estão no serviço público naquele momento. Gentileza, por exemplo, tem
muito a ver com o humor e a postura do servidor. Já, as questões relativas à infraestrutura dependem de
instâncias superiores, que não têm contato direto com os refugiados. A chegada massiva dos refugiados
sobrecarregou ainda mais o sistema de saúde que, em contrapartida, não teve aumento de repasses de
recursos por parte do governo federal.
As redes municipais de atendimento básico à saúde têm assistido brasileiros e migrantes com os
recursos que dispõem. Postos de saúde, como o da Vila Campos Novos, no município de Iracema (RR), têm
uma equipe pequena e pouca medicação para o atendimento. Algumas regiões periféricas de Boa Vista
tiveram aumento da população devido à implantação de conjuntos habitacionais na última década, sem a
construção ou a ampliação dos postos de saúde dos bairros adjacentes, o que gerou incapacidade de
atendimento em bairros como o Conjunto Habitacional Pérola I, II, III, IV e V e a Vila Jardim. Como
agravante, observa-se que as epidemias de dengue, chicungunha, zica, sarampo e gripe H2N1 alcançaram
índices alarmantes na última estação das chuvas (abril a agosto de 2017). Nas regiões de floresta, no
interior do estado, a malária é outra ameaça constante. Os programas de saúde preventiva, voltados ao
combate de epidemias, têm sido insuficientes para deter essas epidemias.
Passando ao campo da escolaridade, segundo O perfil sociodemográfico e laboral da imigração
venezuelana no Brasil do Conselho Nacional de Imigração, 46,1% dos migrantes venezuelanos possuem
ensino médio completo e 28,4% ensino superior completo. Em relação a refugiados cubanos e haitianos,
encontramos perfis semelhantes. Aqui se apresentam dois desafios: fazer o processo de reconhecimento dos
certificados de ensino médio, competência da Secretaria Estadual de Educação, e fazer a equivalência de
diplomas de ensino superior, competência do Ministério da Educação, através da Universidade Federal de
Roraima.
A UFRR instalou oficialmente a Cátedra Sérgio Vieira de Melo em 2017, ligada à ACNUR, visando
construir uma política de apoio aos refugiados na universidade. O maior empecilho para a implementação
de um programa de equivalência acessível para diplomas de estrangeiros é a sobrecarga de trabalho dos
docentes e a falta de servidores técnico-administrativos. A instalação de processos de reconhecimento
implica em disponibilidade de docentes e técnico-administrativos. Atualmente, os professores estão
sobrecarregados, sendo exigidos altos índices de produtividade em pesquisa e ensino. Devido às perdas
salariais e aos cortes de recursos federais, os docentes estão trabalhando mais e ganhando menos. Além
disso, as tendências corporativistas de algumas áreas profissionais dificultam a implementação de
programas de reconhecimento de diploma para profissionais estrangeiros. Um processo seletivo para
ocupação de vagas remanescentes, por solicitantes de refúgio e residência temporária, na Universidade
Federal foi programado para ser realizado no início de 2019.
A rede estadual oferta vagas para o ensino fundamental e para o ensino médio, respondendo
principalmente pela oferta de vagas do sexto ao nono ano do ensino fundamental. O sistema de matrícula é
feito por escola. Diferente da prefeitura que é feito via call center da Secretaria Municipal de Educação.

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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

Primeiro o migrante vai em busca de escolas que tenham vagas para seus filhos. Obtida a vaga o estudante
migrante é incluído no ano escolar correspondente a sua idade, porém depois de um ou dois meses é feito
uma prova de desempenho para verificar se ele fica naquela série ou deve ser recolocado em anos escolares
iniciais. A questão central será a língua portuguesa na qual, geralmente, a criança e adolescente migrante
terá mais dificuldade.
O ensino básico é uma competência compartilhada pelas redes municipal e estadual: o acesso tem
sido garantido a filhos de pessoas solicitantes de refúgio e residência temporária, porém não há programas
de apoio e reforço escolar para esses estudantes. Além disso, a rotatividade decorrente das mudanças
constantes de endereço, por parte das famílias migrantes, tem sido outro fator que dificulta a aprendizagem,
inclusive da língua.
Marcelo Naputano, psicólogo social que vem atuando em escolas municipais de Boa Vista e
Amajari, sugere que, além de matricular as crianças refugiadas, as secretarias municipais de educação
desenvolvam um programa de educação voltado para a mediação socioeducativa entre gestores,
professores, estudantes e famílias de refugiados venezuelanos como alternativa para aprofundar a
integração cultural, pelo qual se possa vivenciar a educação como experiência de uma construção relacional
cotidiana em que se crie vínculos em meio aos conflitos.
As ações de bem-estar desenvolvidas no Centro de Referência para Imigrantes na Universidade
Federal, como capoeira, ioga e dança circular são ações que integram saúde, educação e lazer. Nessas, o
acolhimento é parte inerente do processo criativo-relacional. Consideramos que essa perspectiva de ações,
voltadas ao bem viver, possa ser incorporada pela rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS),
principalmente pelo Programa Saúde da família.
No campo da educação pública, o termo acolhimento, em geral, não aparece nos projetos
pedagógicos. Nas escolas, o primeiro contato do migrante ocorre na secretaria. Diferentemente da área da
saúde, o termo não aparece nos projetos e, normalmente, se restringe à apresentação do novo aluno para a
turma na qual ele foi inserido. Leia-se apresentação como “falar o nome”. Numa perspectiva mais ampla,
acolhimento é uma atitude que deve perpassar os serviços públicos como um todo.

Quando a Mídia Pauta o Acolhimento

Sensibilizar a opinião pública tem sido um dos grandes desafios das ações voltadas para mídia e
para redes sociais da UFRR: realizamos uma palestra com a fotógrafa portuguesa Elizabeth Maisao, no
SESC, sobre os campos de refugiados na Europa, em 02/06/2017. O anfiteatro ficou lotado, com 500
pessoas, dos setores de renda média, interessadas em formar opinião sobre o tema. Inúmeros seminários, no
âmbito acadêmico das instituições de ensino superior, também elegeram esta temática nos últimos dois
anos. Mesmo assim, setores xenófobos têm conseguido adeptos às ideias de culpabilização dos refugiados
pelo aumento da criminalidade e do desemprego.
Por iniciativa da ONG Conectas de São Paulo (Estado de São Paulo), houve um workshop para
jornalistas e outro para estudantes de jornalismo – ambos voltados para a garantia de direitos humanos no
44
Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

final de 2017. Houve boa adesão e boa repercussão junto aos profissionais do setor, com exceção dos
repórteres ligados aos programas sensacionalistas, que não compareceram. Esses programas, em geral,
incitam a raiva na população, difundindo o medo e o pânico, fazendo julgamentos sumários baseados em
leituras superficiais dos fatos, indicando práticas condenáveis e segmentos que devem ser culpabilizados.
Quanto às direções das empresas, estas se mostram arredias a qualquer discussão sobre o assunto.
A mídia local tem pautado campanhas de doação de roupas de bebês para filhos de refugiados
nascidos na maternidade Nossa Senhora de Nazaré, bem como tem dado cobertura a ações de acolhimento,
apoio e inserção no mercado de trabalho a refugiados. As redes nacionais de televisão também abriram
espaço nesse sentido. Por exemplo: o programa televisivo diário Encontro com Fátima Bernardes
apresentou reportagem sobre ações do Projeto Acolher/UFRR-2017 e chegou a convidar a coordenadora do
Projeto para uma participação ao vivo no programa. Por outro lado, programas de televisão e rádio
sensacionalistas têm estimulado a xenofobia, principalmente contra venezuelanos. Nas redes sociais, temos
uma disputa semelhante.
A Rede Amazônica, por exemplo, aderiu a Campanha Brasil um Coração que Acolhe, da
Organização Social Fraternidade Sem Fronteiras. A Rede apresentou uma reportagem de cinco minutos,
nos jornais regionais do dia 28/07/2018, inclusive indicando o site da ONG para quem quisesse aderir à
campanha de apoio, principalmente no tocante à interiorização. As inserções, durante programação local
destinada ao programa “Globo Comunidade”, foram configuradas em torno da crença de que o povo
brasileiro é um povo acolhedor. Os termos acolher e acolhimento estão no centro do discurso do marketing
do acolhimento.
Os meios de comunicação ligados às organizações religiosas têm se pautado a favor da
solidariedade aos refugiados. As igrejas têm se apresentado como formadores da opinião pública a favor do
acolhimento e do apoio, principalmente no âmbito dos seus frequentadores. As igrejas evangélicas, em
geral, direcionam a assistência a refugiados evangélicos.
A mídia e as redes sociais, em geral, operam com forte apelo emocional. Quando se trata de
acolhimento, as reportagens e as postagens apelam para a solidariedade, diante do sofrimento dos
migrantes, e para a exposição de ações afirmativas de ajuda e promoção. O pano de fundo é a
vulnerabilidade social dos migrantes, enquanto, na mídia xenófoba, o pano de fundo é o potencial violento
dos migrantes. A bipolaridade amor-ódio parece se impor aos sistemas de comunicação. Nossas práticas
educativas e de convivência com migrantes nos levaram a deixar de lado essa polarização maniqueísta. São
pessoas e grupos com qualidades e defeitos, com potencias nas quais amor e ódio convivem.

À Guisa de Conclusão: Diversidade Étnica

A diversidade étnica em Roraima inclui indígenas, maranhenses, gaúchos, paraibanos, cearenses,


amazonenses, mineiros, guianenses, haitianos, cubanos, peruanos e venezuelanos. No campo dos indígenas,
estão macuxis, wapixanas, wai-wai, taupepangues, yanomamis, waimiri-atroaris e pemons. Segundo dados
da Organização dos Indígenas da Cidade (ODIC), são aproximadamente 35 mil indígenas em Boa Vista.
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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

Segundo o IBGE, são 54 mil em terras indígenas de Roraima. No campo dos migrantes regionais, o maior
contingente é de maranhenses – 95 mil, segundo o senso de 2010. No campo da migração internacional,
estão guianenses, haitianos, africanos, peruanos, cubanos e venezuelanos. Podemos falar em
etnoindigeneidades, etnorregionalidades e etnonacionalidades.
Um dos elementos distintivos entre os grupos étnicos é a língua. Estamos utilizando grupos em
sentido lato para representar todos os membros que compartilham traços étnicos comuns. A diversidade
linguística na região é impressionante: macuxi, taurepang, wapixana, ninan, xirixana, yanomami, sanomá,
iekuana, wai-wai, waimiri-atroari, warao, espanhol, português, inglês, francês, criolês. Num universo de
650 mil pessoas.
Em relação aos migrantes venezuelanos, um dos marcadores identitários mais evidentes é o idioma.
A inserção no mercado de trabalho implica no uso do português; por isso, há um esforço de aprendizagem
por parte dos migrantes. Ao mesmo tempo, entre os conterrâneos, a língua de origem é usada
constantemente. A língua espanhola é o principal fator que distingue brasileiros e migrantes venezuelanos,
como bem representa a frase citada por uma estudante do nono ano da Escola Estadual Idarlene Moraes:
“Só sabemos que são venezuelanos quando abrem a boca”. Os migrantes venezuelanos fazem uso da língua
espanhola em espaços públicos sem nenhuma descrição. O que não ocorre com as línguas indígenas, com o
inglês guianense e com o criolês dos haitianos. Essas línguas são usadas em espaços privados ou de forma
discreta, em espaços públicos, de modo a não chamar a atenção, caracterizando-se como uma estratégia
para lidar com a rejeição.
Os haitianos compõem um grupo de alta visibilidade, seja pela venda de picolés e alho nas ruas e
feiras, seja pela negritude. A comunicação com brasileiros é muito limitada, também devido à língua. Em
uma visita de campo a uma estância onde vivem somente haitianos, quando perguntados sobre a opinião
que tinham em relação aos brasileiros, eles foram extremamente cuidadosos com as palavras. Uma moça
haitiana que falava português fazia a tradução, mas, antes de ser autorizada a traduzir, em português, o que
eles diziam, os haitianos conversavam entre si em francês para decidir o que deveria ser traduzido.
Os migrantes paraibanos, cearenses e gaúchos dão ênfase ao sotaque linguístico para afirmar sua identidade
de origem. Esses três grupos utilizam uma estratégia inversa dos indígenas e africanos: eles se afirmam pela
visibilidade, ou melhor, pela audibilidade.
Acolher uma língua diferente é aceitar seu uso público. É tentar aprendê-la. Estamos em um
contexto de hiperdiversidade cultural. O desafio é constituir espaços acolhedores, sejam públicos ou
privados, onde essa hiperdiversidade cultural seja respeitada e estimulada. Por exemplo: estimulando o uso
de várias línguas, em vez de impor o português como única língua franca.
O uso dos termos “acolher” e “acolhimento” tem um conteúdo mitológico, à medida que carrega
conteúdos utópicos, mobiliza sentimentos e pode ser usado nas mais diversas situações, tendo contornos
imprecisos. Ao serem usados como metáfora de marketing, por instituições do estado e da sociedade civil,
os termos reforçam o conteúdo seu teor mitológico. Por um lado, o uso dos termos contribuiu para
mobilizar os desejos de solidariedade aos migrantes. Por outro lado, essa utilização pode legitimar ações

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Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento

que estão longe de representar acolhimento. Por exemplo: políticas de “limpeza” e invisibilização dos
migrantes podem ser batizadas de “acolhimento” para camuflarem seu conteúdo xenófobo.
A formação das correntes de opinião pública pró ou contra a integração dos migrantes encontra, no
conceito de acolhimento, um divisor de águas. “Acolher, Proteger e Inserir” e “Acolher, Proteger,
Promover e Integrar” são lemas que reaparecem na mídia e nos discursos institucionais continuamente. O
marketing do acolhimento tenta dar visibilidade a ações voltadas para os migrantes; ao mesmo tempo,
busca mobilizar apoio para essas ações. Mas o acolhimento como um valor ético e um sentimento se situa
na esfera relacional, tendo a ver com estados emocionais e sistema de valores.

Referências

BARTH, Fredrik. O Gurú. In: BARTH, Fredrik. O Iniciador e Outras Variações Antropológicas. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 2000.

FROTA, Gustavo da. Perfil Sociolaboral da Imigração Venezuelana no Brasil. Curitiba, CRV, 2017.

LIMA, José Carlos Franco. Acolhimento, Proteção e Inserção Criativa: uma reflexão sobre a
metodologia do Projeto de Apoio a Refugiados em Roraima. Boa Vista, I Seminário do Doutorado
Insterinstitucional UFPE/UFRR, 2018.

OIT/Brasil. Inserção Laboral de Migrantes Internacionais: transitando entre a economia formal e


informal na cidade de São Paulo. Brasília, 2017.

VENTURA, Luís et alli. Relatório sobre a Situação das Populações Imigrantes no Estado de Roraima.
Comitê dos Migrantes em Roraima. Boa Vista, 26 jan. 2018

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“NO ME PARECÍA BIEN…” CUIDADOS, RELACIONES FAMILIARES Y DE GÉNERO A LA
LUZ DEL RELATO DE UN INMIGRADO BOLIVIANO DESEMPLEADO

Laura Cristina Yufra 1


Enrique Santamaría2

Introducción

Los fenómenos migratorios contemporáneos responden a múltiples y complejas dinámicas, entre las
que podemos mencionar los procesos que atraviesan las sociedades de partida y las de llegada, el
funcionamiento de los mercados globales, las políticas públicas que se dirigen a los movimientos
poblacionales y los factores subjetivos de las y los migrantes.

En el caso español, el amplio estudio de los procesos migratorios ha permitido identificar algunas
características que configuran “su” inmigración. Enfatizamos el adjetivo posesivo, ya que, antes que de un
fenómeno exógeno, se trata de uno intrínsecamente relacional en el que el Estado imprime sobre la
inmigración sus categorías y sus formas de concebirla. Como momento crucial para este análisis es preciso
mencionar la entrada en la por entonces denominada Comunidad Económica Europea ―hoy Unión
Europea―, que convirtió a España en un país-esclusa con la progresiva configuración sociopolítica de la
figura social de la “inmigración no comunitaria” (SANTAMARÍA, 2002). Asimismo, cada vez fue más
patente la funcionalidad económica de los y las inmigrantes, principalmente, en sectores tales como el de
los servicios, la agricultura, la construcción y el servicio doméstico (CACHÓN, 2009). Estos mismos
sectores son los que concentran gran parte de la economía informal y donde en su gran mayoría se insertan
laboralmente las y los trabadores inmigrados. Como bien advierten Sandra Gil Araujo y Tania González-
Fernández (2014), el peso de la economía informal en España no debe confundirse con un menor desarrollo
socioeconómico en relación con otros estados de la Unión Europea, sino que más bien responde a su
particular forma de inserción en el mercado internacional. Por lo dicho, la condición irregular de las
personas inmigradas que trabajan en la economía sumergida ha sido una característica distintiva de la
inmigración en España.

1
Doctora en Psicología Social, por la Universidad Autónoma de Barcelona, y Licenciada en Filosofía, por la Universidad
Nacional de Rosario. Argentina. Investigadora en la Unidad Ejecutora en Ciencias Sociales Regionales y Humanidades del
CONICET y docente en la Universidad Nacional de Jujuy, Argentina. Integrante y fundadora de la Asociación ERAPI –
Laboratorio Cooperativo de Socioantropología, Espanha.
2
Doctor en Sociología, por la Universidad de Barcelona, y Licenciado en Sociología, por la Universidad Complutense de
Madrid. Docente autónomo y profesor asociado en el Departamento de Sociología de la Universidad de Barcelona (UB).
Integrante y fundador de la Asociación ERAPI –Laboratorio Cooperativo de Socioantropología, Espanha .

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“No me parecia bien...” Cuidados, relaciones familiares y de género a la luz del relato de um inmigrado
boliviano desempleado

Asimismo, es preciso señalar la particular configuración que el Estado de bienestar español adopta
es caracterizado como “familista” o “mediterráneo” (MORENO, 2002)3 por su desarrollo tardío y débil en
comparación con los otros Estados de bienestar europeos. Además, en relación con las tareas de cuidados,
como ponen de relieve los análisis de Vega Solís (2009), en España se las vincula con la familia, el hogar y
mujeres. Todos estos elementos hicieron que la forma de organización del bienestar encontrara dificultades
para su sostenimiento con la paulatina entrada de las mujeres españolas al mercado de trabajo y el
envejecimiento de la población estado-nacional. Es así que el fenómeno de la feminización de las
migraciones responde, en gran medida, a la facilidad para la inserción laboral de las mujeres inmigradas en
el ámbito de los cuidados y del trabajo doméstico4.

Muchas veces esta cuestión es interpretada de una manera “optimista” que, desde el punto de vista
de la complementariedad que supone la mano de obra inmigrante, como generadora de “nichos” laborales
dinamizadores de la economía. No obstante, desde la perspectiva de las relaciones de género, estas miradas
no tienen suficientemente en cuenta lo que implica la consolidación de tales nichos en relación con las
desigualdades de género. Esta “solución” a la organización de las tareas de reproducción, es decir, la
entrada de las trabajadoras inmigradas en las labores domésticas y de cuidado, no modifica las relaciones
jerárquicas entre los géneros, ya que se trata siempre de “trabajos de mujeres”; trabajos que, paralelamente,
tienen escasa remuneración y valoración social. Por lo tanto, se deja pendiente la distribución equitativa de
las tareas domésticas y del cuidado en el interior de las familias nacionales (PARELLA, 2000), así como
también el pleno reconocimiento de la importancia para la reproducción de la vida de tales labores
(CARRASCO, 2013). El trabajo, entre otros, de Encarnación Gutiérrez-Rodríguez (2013), señala además la
dimensión colonialista de dicha “solución” ya que son las mujeres procedentes del denominado tercer
mundo las que llevan a cabo estas tareas socialmente desvaloradas, en pos de la “liberación” de una parte
de las mujeres autóctonas. Por lo dicho, la presencia y disponibilidad de estas mujeres inmigradas hace
posible posponer la distribución de las tareas domésticas y del cuidado de familiares dependientes en el
interior de las familias autóctonas.

Ahora bien, ¿qué sucede con las familias inmigradas? Específicamente queremos interrogarnos
acerca de las posibilidades que se habilitan para las transformaciones de las relaciones de género con
ocasión de la migración. En este sentido, entendemos que reflexionar sobre los cambios de los roles de
género implica considerarlos como una construcción social contextual, que describe las relaciones

3
Esta caracterización viene a complejizar la clásica categorización propuesta por Gøsta Esping-Andersen (1990). Con ello se
quiere destacar el papel asumido por las familias que, en otros modelos de regímenes de bienestar, es cumplido por el Estado o
por el mercado.
4
La feminización de las migraciones ha sido señalada en relación con el sistema de cuotas para otorgar permisos de trabajo a
personas extracomunitarias. Dicho sistema identificó al servicio doméstico como un sector necesitado de mano de obra no
cubierto por fuerza de trabajo nacional: “La política de cupos benefició, entre 1993-1999, la regularización de mujeres
inmigrantes en España, al ser el servicio doméstico un sector de empleo privilegiado por los contingentes durante estos años”
(Oso y Martínez, 2008: 149). En este sentido, puede reconocerse claramente como el Estado y el mercado son coprotagonistas de
la feminización de los flujos a través de la articulación de las políticas de inmigración con la identificación de sectores del
mercado de trabajo, es decir, el trabajo de cuidados y doméstico como necesitado de mano de obra extranjera.

49
“No me parecia bien...” Cuidados, relaciones familiares y de género a la luz del relato de um inmigrado
boliviano desempleado

(asimétricas) entre hombres y mujeres, que contienen una serie de expectativas, ideales y comportamientos
hacia lo que se considera masculino o femenino. Todos estos componentes se suponen basados en la
“naturaleza” de las diferencias sexuales, naturalizando, legitimando y reproduciendo desigualdades sociales
(STOLCKE, 1999).

El desarrollo de los trabajos sobre transnacionalismo familiar ha puesto en discusión la comprensión


de la migración como un fenómeno percibido, descrito y analizado de una manera individual. Lejos de una
perspectiva limitada como ésta, dichos trabajos han permitido comprender todos los recursos que deben
desplegar las mujeres migrantes y sus familias para sostener los proyectos migratorios (PEDONE, 2008;
PEDONE, 2014; PARELLA 2012, entre otros trabajos). Asimismo, este enfoque ha analizado las
modificaciones en las relaciones de género en la conformación de las familias transnacionales
(MAGLIANO, 2007; PEDONE, 2014 Y BASTIA, 2014). Esta perspectiva pone de manifiesto, por
consiguiente, la importancia de dirigir la atención de la investigación hacia las familias migrantes. Bajo este
foco emerge de manera muy destacable la incidencia de las regulaciones que los estados receptores de
inmigración llevan a cabo en las posibilidades y condiciones de vida de familiar. Como sostienen Sandra
Gil Araujo y Claudia Pedone:

[…] a pesar de la complejidad de la migración familiar, las regulaciones intentan encorsetarla,


definir su composición, restringir su flexibilidad, y a menudo, refuerzan las desigualdades de género
y generación. Al definir derechos y obligaciones diferentes para los distintos integrantes de las
familias ―según vínculo, estatus migratorio, situación laboral y edad― las políticas migratorias
limitan notablemente el alcance de la migración de carácter familiar. Uno de los efectos de estas
limitaciones ha sido la profundización y prolongación del ejercicio de maternidades y paternidades
transnacionales (2014, p.5).

Así pues, las políticas vigentes y los requisitos de reagrupación familiar la tornan de muy difícil
concreción para las mujeres inmigradas debido, precisamente, al tipo de inserción laboral que obtienen, es
decir, en el trabajo doméstico y de cuidados, con sus bien conocidas características de elevado grado de
informalidad, temporalidad, bajos salarios y largas jornadas laborales.

Todos estos elementos mencionados nos ayudan a la contextualización y comprensión del relato de un
hombre económicamente dependiente de su pareja que debe asumir el cuidado de su hija, para aportar a la
comprensión de las modificaciones de las relaciones de género promovidas con ocasión de la migración
analizadas en el contexto de la sociedad de recepción de las personas inmigradas atravesando una dura
crisis económica.

Consideraciones Metodológicas

El presente artículo se basa en las reflexiones centradas en el testimonio de un hombre boliviano


inmigrado en la ciudad de Barcelona dependiente económicamente de su pareja y principal cuidador de su
hija pequeña. La entrevista que nos concedió se realizó en el marco de una investigación más amplia sobre
la formación laboral dirigida a personas inmigradas en la mencionada ciudad. La vitalidad y minuciosidad
50
“No me parecia bien...” Cuidados, relaciones familiares y de género a la luz del relato de um inmigrado
boliviano desempleado

del relato de Daniel, nos ha animado a detenernos en él, ya que contiene particularidades significativas que
nos pueden ayudar a comprender las relaciones familiares y de género en las sociedades de inmigración así
como también las políticas públicas, y en particular las dirigidas a las personas inmigradas. La entrevista
versó sobre la trayectoria migratoria y la inserción laboral de la pareja hasta el momento en que Daniel se
encuentra realizando un curso de pintura ofrecido por una fundación vinculada a la Iglesia Católica en la
ciudad de Barcelona, y en cuyo contexto aquella se llevó a cabo.

Recurrir al relato nos permite reconstruir de manera temporal la historia de nuestro entrevistado
hasta el momento en el que tiene lugar la entrevista, así como también es un medio para que el entrevistado
ejerza su reflexividad. Permite, además, captar la dimensión temporal y experiencial de los procesos
migratorios. Procuramos que el relato transcurriera tal como se le iba presentando a Daniel, sin
interrumpirlo con preguntas.

En el análisis posterior hemos intentado identificar la coherencia del relato y los puntos de fuga o
los temas que emergieron y no fueron retomados. Por ello, a continuación se podrá encontrar el relato de
Daniel, y la síntesis elaborada para esta ocasión por los investigadores que responde a la necesidad de
organizar la información ofrecida en diferentes momentos de la entrevista como a la aclaración de algunos
implícitos que contenía su relato.

En este sentido, siguiendo la perspectiva etnosociológica definida por Daniel Berteaux (2005) nos
interesa recuperar tanto la particularidad de la experiencia relatada como la comprensión de las relaciones
sociales implícitas en ella. Si bien el relato de Daniel manifiesta una posición singular, su conocimiento
puede ofrecer luces acerca del funcionamiento de los mundos sociales en los que tal situación específica se
incluye.

Las relaciones de Género en la Inmigración

A continuación expondremos cómo se organiza el trabajo productivo y reproductivo en la familia de


nuestro entrevistado. El contexto de llegada, atravesado por una profunda crisis económica, es el marco en
el que se producen ciertas inversiones de roles género así como también una particular forma de
organización de los cuidados.

Llegada e inserción laboral familiar

Daniel, estudiante de medicina, y su pareja, médica, decidieron partir de Bolivia hacia Barcelona para
mejorar su situación socio-económica. Habiendo abandonado su país por problemas económicos,
pertenecientes ambos a una clase media boliviana, sabían que les esperaba trabajar duro y también
pensaban, él retomar los estudios apenas pudiera, y ella convalidar su título. Llegados en el 2006, los dos

51
“No me parecia bien...” Cuidados, relaciones familiares y de género a la luz del relato de um inmigrado
boliviano desempleado

ingresan de manera irregular en el país5. A su llegada a España, a Julia, la pareja de Daniel, le resulta
relativamente sencillo encontrar trabajo en el ámbito de los cuidados. Al inicio desde una posición de
informalidad laboral y luego consiguiendo un contrato laboral.

[…] en el puesto de trabajo lleva tres años desde que llegó. Entró por una amiga suya que era
compañera de la facultad que se encontraron por una casualidad en el metro, la metió al personal de
esa empresa, […] se ha ganado el puesto, y sigue ahí, y le hicieron un contrato indefinido, mientras
no pueda ejercer como médico pues no hay otro mejor lugar que estar en una residencia que trabajar
como limpieza u otra área porque, ella intentó trabajar en limpieza, pero no se siente … prefiere
trabajar en una residencia […]

Por el contrario, Daniel nunca llega a tener un contrato registrado. Su posición en el mercado laboral
ha sido siempre precaria, es decir, con contratos laborales irregulares y de duración limitada. El derrotero
laboral de él, empieza en la construcción (y en este ámbito su trabajo fue realizado de modo no registrado)
y desde finales del 2008, luego de iniciada la crisis, ha trabajado también en residencias de ancianos de
manera informal, cuidando de manera particular a un anciano, así como también ayudando ocasionalmente
en mudanzas.

Como señalan Ignasio García Pérez y David Troncoso Ponce: “La crisis ha afectado de manera
especial a los inmigrantes que no sólo han visto reducidas sus posibilidades de empleo, sino también los
salarios recibidos por su trabajo.” (2010, p.214). Las estadísticas nos hablan de la enorme destrucción del
empleo desempeñado por el colectivo inmigrante (OLIVER ALONSO, 2010; GÓMEZ, 2010).

A diferencia de lo reseñado por el trabajo de Tania Bastia (2014), en cuyo estudio sobre la formalidad
e informalidad de las y los migrantes bolivianas/os en contextos de crisis encontró una mayoría de hombres
que desempeñaban un trabajo formal y de mujeres que lo hacen en el sector informal de los cuidados, en
nuestro caso, es Julia quien tiene un trabajo registrado y formal (siempre en el ámbito de los cuidados),
siendo Daniel quien posee un trabajo informal.

Sobre la situación de Daniel y su pareja es preciso tener en cuenta lo que apunta Ubaldo Martínez
Veiga (1997), quien sostiene que el empleo doméstico y de cuidados es relativamente estable, a pesar de los
bajos salarios que se dan en ese ámbito laboral (feminizado). Y, de manera complementaria, hay que tener
en cuenta, como señalan Catia Nicodemo y Rosella Nicolini, que la crisis afecta particularmente a los
hombres inmigrantes: “el análisis de la estructura del paro, considerando las dos categorías específicas de
trabajadores (nativos e inmigrantes) así como el género, indica que el principal perfil del trabajador en paro
–hoy en día, en España- lo constituye un hombre joven, con ocupación anterior en el sector de la
construcción e inmigrante” (NICODEMO Y NICOLINI, 2010, p. 199).

5
Indiquemos que, como nos recuerda Sandra Gil Araujo (2008), será en el 2007 cuando el gobierno español
establecerá para los ciudadanos bolivianos/as una visa; con anterioridad, no era necesario que contaran con
ella para ingresar en España.
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“No me parecia bien...” Cuidados, relaciones familiares y de género a la luz del relato de um inmigrado
boliviano desempleado

Necesidades y proveedores de cuidados

La situación familiar de nuestro entrevistado se ajusta a lo apenas señalado: la mujer de Daniel,


cumpliendo el rol que suelen desempeñar las mujeres inmigradas, esto es, trabajando en el sector de los
cuidados, y Daniel, con una ocupación previa a la crisis económico-financiera desatada en el 2008 en el
ámbito de la construcción, donde a finales de dicho año pierde su trabajo. Para esa época su hija está por
cumplir un año. Todo ello, hace que Daniel, tenga que asumir el rol de cuidador principal de su hija:

[…] mi mujer recién en este año entró a un horario fijo. Antiguamente trabajaba en distintos
horarios, pero en la residencia le corren turnos, en la mañana en la tarde, en la noche. Y el horario
era tanto para mí como para ella, bastante perjudicial, porque yo no podía tomar un trabajo fijo y
decir bueno mira… el mío era eventual, porque en ninguno de los casos yo he tenido contrato de
trabajo. Todos los trabajos que he tenido son eventuales […]

La cita refleja una inversión en cuanto a las expectativas hacia los géneros. Contrariamente al ideal
del hombre sostenedor de la economía familiar, aquí es la mujer la que ha conseguido un empleo que ofrece
los más importantes y estables ingresos a la economía familiar. Esta situación de balance económico
familiar hace que, en este caso, sea el hombre el que deba adaptarse a los horarios y exigencias del trabajo
de su mujer. Dicha situación obliga a que en sus cálculos y razonamientos se imponga como prioridad la
ocupación de su mujer.

Durante los primeros meses de vida de su niña una paisana se ocupaba de su cuidado pues Daniel aún trabajaba
en la construcción. En estas formas de resolver los cuidados resuena lo que Axel Honneth (1999) destaca a propósito
del trabajo de Judith Stacey, quien sostiene que las mujeres trabajadoras promueven formas familiares de nuevo
tipo, incorporando parientes de diversos grados y nuevas parejas en la organización del hogar, con el fin de hacer
frente a las demandas de cuidados. No obstante, en el caso de Daniel dicha solución se ve limitada:

[…] teníamos una señora que tenía una niña de la misma edad que la mía y era de mi país y vivía en
la misma finca, en el piso de arriba. Yo tenía un trabajo, que trabajaba en Blanes. La señora esa
cuidaba a mi niña desde las ocho de la mañana, porque su madre trabajaba de ocho a tres, tenía
horario que cambiaba cada vez, y había veces que hacía turnos dobles. La señora fue muy buena,
pues como tenía la niña de la misma edad, se encargó de cuidar a las dos niñas de igual manera […]
Estuve un tiempo con esa señora, casi hasta los nueve o diez meses. Después de eso la señora
también se fue, porque su marido entró, se quedo sin trabajo, tampoco tenía los papeles el marido. La
señora tampoco tenía los papeles, se encontraban en una situación en la cual no generaban ingresos y
tenían a otros hijos mayores en Bolivia, con lo cual tenían, o generar ingresos o irse de una vez
porque entre tres personas gastas más […] no había posibilidad de que él consiga trabajo, porque
trabajaba en la construcción, y ya estuvo más de seis meses también sin trabajar y bueno, se fueron.
Y ya tenían algo ahorrado.

Como pone claramente de manifiesto el relato, es la crisis económica la que nuevamente emerge
incidiendo de modo particular a las redes de los migrantes, menguando su capacidad de contención y ayuda
mutua. En esta situación es posible reconocer como algunos retornos pueden ser claves en lo que hace a la
disminución de los recursos con los que cuentan las personas inmigradas que permanecen en destino,

53
“No me parecia bien...” Cuidados, relaciones familiares y de género a la luz del relato de um inmigrado
boliviano desempleado

quedando en una situación de mayor vulnerabilidad.6 Por otro lado, la situación administrativa irregular de
los inmigrados, como es el caso de Daniel, impide el acceso al uso de los servicios normalizados del Estado
de bienestar. Así pues, encontramos redes de atención diferenciada hacia las personas inmigradas en
situación documental informal, tales como la Iglesia Católica y otras organizaciones no gubernamentales
(LAPARRA, 2003), caracterizadas por la precariedad y la discrecionalidad para la concesión de tales
recursos. En esta línea de reflexiones Carmen Alemán (2011) justifica la mayor necesidad de las personas
inmigradas de los servicios sociales en contextos de crisis ya que, con frecuencia, carecen de la red de
soportes familiares que para los españoles fue la principal base de apoyo y supervivencia en las crisis de
empleo.

Ahora bien, la propia ocupación de Julia, es decir, el hecho de trabajar en el ámbito de los cuidados,
pone de relieve las condiciones laborales del sector, con regímenes muy estrictos y muy poco flexibles con
las necesidades de conciliación familiar. Daniel relata de ese modo las dificultades de conciliación y cómo
fue él, quien terminó siendo (mediante un complejo razonamiento de costo-beneficio) el cuidador principal
de su niña. Una posible solución, es decir, una nueva externalización del cuidado de su hija, supone no
lograr el beneficio que su trabajo le brindaría. Así lo relata:

Que si ella trabajaba un mes por la tarde y yo trabajaba por la mañana, a esa posibilidad, mi mujer
podía quedarse con la niña, pero cuando le tocaba trabajar por la mañana, tenía que buscar a alguien
que venga a mi piso a quedarse con mi niña. Y hacía cuentas y normalmente todo lo que ganaba era
para ella [la persona a cargo del cuidado de la niña] y yo me quedaba con diez o veinte euros. Y a mí
no me parecía bien que yo trabajara para otra persona pudiendo quedarme con mi niña y no ganar
esos veinte euros.

Tratándose de trabajos precarios e informales, como ya hemos dicho, la conciliación se vuelve más
complicada, así como también la posibilidad de transferir el trabajo de cuidado: desde un punto de vista
estrictamente económico no “salía a cuenta” ocuparse en el mercado laboral.

Así pues, Daniel nos sigue explicando su derrotero, marcado por las dificultades y limitaciones que su
condición le impone para obtener un trabajo.

Después estuve con un señor mayor, que casi estuve un año y medio con ese señor, porque era los
fines de semana. Así que los fines de semana su madre, como iba de correturnos, normalmente los
fines de semana no trabajaba en el horario en que yo iba. Entonces sacaba ese dinero, pero este
último año como al establecerse en un puesto fijo, le toca trabajar todos los sábados de ocho a una y
en la noche tiene turno de sábado, en su contrato.

El hecho de que Julia haya obtenido una forma de contratación más estable le ha implicado asumir el
trabajo de fines de semana. Así pues, la pequeña ventaja del correturnos, esto es, no trabajar los fines de
semana, ya no la puede aprovechar más. Con ello, debe renunciar al único horario con el que podía contar

6
Resulta interesante pensar esta situación en la medida en que para las familias transnacionales algunos retornos son claves
también para la reproducción familiar y como fuente de mayores recursos (Pedone y Gil Araujo, 2014).

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de manera segura para que su mujer se pudiera ocupar de la niña. Y aquí, entra otra variante de forma de
conciliación, que se revela también precaria:

[…] podía llevar a mi niña y mi niña estaba tranquila, porque a los señores con los que trabajaba les
encantaba mi niña así que “tráela”. Pero ya cuando va creciendo se vuelve un poco más traviesa,
inquieta […] en una oportunidad a pesar de que los señores no decían nada, yo vi que sí causaba un
poco de desorden y todo eso […] el señor es un… tuvo una parálisis cerebral, así que no maneja
bien los miembros, tiene problemas de movilidad y a parte que es mayor y es un poco obeso, [… ]
Tuve que dejarlo. […] Porque mi niña puede estarse unos cinco diez minutos tranquila, jugar, dibujar
o algo, pero no puede estar en un ambiente de personas adultas quietita y sin hacer ningún ruido […].

Además, la dificultad para la conciliación laboral no sólo se refiere al tiempo disponible para el
trabajo. Asimismo, a la hora de realizar acciones de formación para facilitar su inserción laboral debe
compatibilizar sus horarios con los de su mujer.

Por ejemplo, no puedo tomar ningún curso porque en la mayoría de los cursos me ponen con horario
a partir de las seis para adelante, si es por la tarde o por la noche, o me lo ponen por la mañana, de
ocho a mediodía, son horarios que no puedo. […] Pero siempre que he hablado con mi visitadora
social de C., le puse “mira tengo este horario porque después de ese horario tengo que pagar a otra
persona por hacer un curso”. [33-34] Y siempre ha sido eso como un tema con la asistente social que
es N. Siempre tenemos esa discusión, ella piensa que yo no quiero trabajar o no quiero hacer ningún
curso […]

Como ya señalamos al presentar el relato, Daniel está realizando un curso de formación en pintura en
una institución vinculada a la Iglesia Católica. La prioridad que pone en atender a su hija aparece como
desproporcionada a los ojos de la persona que sigue su itinerario laboral. Esta sospecha que Daniel
reconoce en la trabajadora social la podemos asociar a lo identificado en otros trabajos sobre la acusación
de falta de disponibilidad por parte de las mujeres inmigradas hacia las intervenciones sociales, que buscan
“sacarlas” de casa y que obtengan su “autonomía” (MONTENEGRO ET AL., 2011; AGRELA, 2009) sin
reconocer cabalmente las demandas de cuidado que suelen tener dichas mujeres. Lo recién mencionado
pone de manifiesto ciertas dificultades específicas que pone la inmigración y que desde los servicios de
atención y “ayuda”, muchas veces, no se llegan a comprender en todas sus dimensiones. La dosis de pesar
que contiene el relato de Daniel sintoniza con la de las mujeres cuidadoras que deben solventar situaciones
muy difíciles para llevar a cabo su tarea cotidiana.

Estamos, pues, frente a una especie de inversión de los roles de género en el sentido más tradicional.
Esto nos hace pensar cómo en ciertos contextos y en determinadas posiciones sociales las tareas de
reproducción son llevadas a cabo por los hombres. En el caso que estamos analizando se intentó la
transferencia del cuidado a otras mujeres (paisana y canguro), pero, por las situaciones explicitadas, la
familia de Daniel no pudo continuar con tal opción. Y Daniel, padece las dificultades que suelen sufrir las
cuidadoras: falta de reconocimiento de la labor que llevan a cabo y una escasa valoración social así como
también la sospecha de una falta de “voluntad” para el trabajo remunerado.7 En este sentido, se patentiza el

7
A lo que quizás se pueda sumar el hecho de estar asumiendo un rol que genéricamente y de manera tradicional no le
correspondería.
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boliviano desempleado

mayor valor concedido al trabajo remunerado ya que llevar a cabo tareas del cuidado familiar son
consideradas insuficientes. En este sentido, el trabajo remunerado constituye un elemento central en la
conformación de la identidad de género (TOBÍO, 2012).

Siguiendo las coordenadas que venimos trazando, podemos afirmar que el trabajo que realiza Julia es
generizado y étnico-extranjerizado en la medida en que el ámbito de los cuidados es considerado como un
trabajo de mujeres y se ha constituido como un nicho laboral para las mujeres inmigrantes. Pero también el
trabajo de él lo es. Se trata de un trabajo generizado, cuida a su niña, con todas las limitaciones que esto
impone a la hora de entrar y permanecer en el mercado laboral, así como también, es un trabajo étnico-
extranjerizado en la medida en que los hombres nacionales no lo hacen en la misma medida, es decir, que
por tratarse de un inmigrante, se ocupa de ese trabajo8. Lo que lo conduce a la dependencia económica de
su pareja, ya que el trabajo reproductivo que lleva a cabo no implica ninguna retribución monetaria 9. Y es
que el trabajo del cuidado parecería no ser cosa de hombres.

Por ello, a pesar de que en el interior de la familia se produce una cierta inversión de los términos,
según Daniel no termina siendo satisfactorio para ninguno de los dos: en el caso de ella porque no ve a su
hija y en el de él porque se encuentra “estresado”.

Estuvo un año así, con horas extras, los fines de semana. [..] casi los cinco primeros meses no la vio.
Y ya está grande y veía algunas fotos y me dice “yo no viví todo esto de mi niña.”.

El costo afectivo en relación con el cuidado de los hijos e hijas es señalado también en las
maternidades transnacionales en el trabajo de Sònia Parella (2012) y Claudia Pedone (2008). Para Julia, no
poder cuidar a su hija supone un sufrimiento. Al decir esto, estamos atentos a evitar la “sentimentalización”
(Esteban, 2017) de los esfuerzos que supone el cuidado y el desconocimiento de la desvalorización social
que implica. Pero sí que este malestar nos habla de la función vital del cuidado, de su centralidad, de su
valor.

Para Daniel, ocuparse del cuidado de su hija también le genera insatisfacciones debido a que dicho
trabajo le impide generar ingresos e incluso puede originar algunos gastos.

[…] que un día me salga a caminar, al próximo día ya no me dan ganas de salir a caminar porque
siempre veo que por mucho que no quiera, salgo con mi niña, hago un gasto. Yo veo que estamos en
una situación, que si tenemos un ingreso tenemos que pagar las cuentas de fin de mes, que si el gas
salió un poco más, que si la luz, que si la niña te pide algo y que vos no le podes decir que no. Hay
días que llego a mi cuenta bancaria a cero. Y cuando normalmente cobran la comisión, te sale menos
tanto. Porque para que en la próxima tenga que pagar. Hay momentos que tengo un estrés, porque yo
me siento impotente conmigo mismo. Porque yo sé que soy capaz de hacer bastantes cosas,

8
Existe una interesante línea de trabajo que comienza a enfocar la cuestión de los hombres cuidadores en el contexto español:
Tobío, 2012; Comas d’Argemir, 2016; Roca, 2017; Aguilar, Sonorolla y Alonso, 2017. En este último trabajo se destaca la
importancia de la condición sociolaboral de los hombres (jubilación o paro) para asumir los roles de cuidado de familiares
dependientes.
9
Para pensar esta cuestión resulta particularmente interesante el trabajo de Pierrette Hondagneu, Emir Estrada y Hernán Ramírez
(2011) en relación con cómo dentro del trabajo informal también pueden encontrarse formas masculinas de trabajo, como el
trabajo de jardinería. No obstante, este no es el caso de Daniel.

56
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El hecho de no ser el sostenedor de la familia, a pesar de “ser capaz de hacer bastantes cosas”,
produce malestar en Daniel. Si bien no lo dice abiertamente, podemos ligar dicha situación con la acusación
de ser “mantenido” según lo identificado por Sònia Parella (2012) para el caso de los hombres que reciben
las remesas de sus compañeras en las sociedades de origen.

Estrechez económica familiar

La estrechez económica se ve incrementada ya que Daniel y Julia tomaron la decisión de vivir en un


piso solos, siguiendo las pautas de lo que se entiende como “familia nuclear”. Dicha decisión se produce
como consecuencia de las dificultades de convivencia provocadas por la presencia de su hija pequeña.
Sabido es que el precio de la vivienda en Barcelona es uno de los gastos más sustanciales en los
presupuestos de las personas residentes de la ciudad. Por lo tanto, una práctica usual es compartir piso para
poder afrontar el alquiler de una vivienda. Daniel nos dice que, en su caso y a partir de un cierto momento,
en lugar de compartir piso acaban optando por alquilar uno ellos.

Porque al principio, el primer año de la vida de mi niña vivíamos en un piso compartido. […] Al
principio la habitación estuvo bien por el momento hasta que ya cumplió el año y empezó a caminar.
Cuando empieza a caminar empieza a tocar todo […] Y hablamos con mi mujer y le digo mira “o
conseguimos un piso por mucho que paguemos cuatrocientos euros, la mitad de tu sueldo se vaya
todo ahí, pues tendremos que hacerlo, pues si seguimos con que nuestra niña comparte el piso de que
si hizo un ruido o se puso a llorar a media noche, porque se enfermó y nos miraran con los ojos
cuadrados, y todo eso, no”.

Así pues, a pesar del costo que supone vivir solos, Daniel considera que será mejor contar con un
lugar de convivencia exclusiva de la familia nuclear. A medida que crece su hija, ya no considera más como
una opción la convivencia en un piso compartido.

Otro recurso para solventar las dificultades económicas familiares con el transcurso del tiempo se
agotó, es decir, el asumir formas de trabajo extremas y duras que, como pueda ser realizar dobles turnos en
el caso de su compañera, la pareja ha decidido no llevarlas más a cabo.

Porque bueno a pesar de que normalmente la mayoría de la gente que viene aquí es para tener un
futuro en su país. Estar tres o cuatro años e irse. Y trabajar sin descanso, trabajar día y noche, fines
de semanas y todo y dedicarse exclusivamente a eso. Pero en nuestro caso dijimos “mira si tú y yo
nos ponemos a trabajar así y hacemos que nuestra niña pase lo mismo, pues nosotros mismos nos
arrepentiremos porque le habremos dado los primeros tres años o cuatro años que nos tome ponernos
en una situación más o menos estable en nuestro país. No sabemos que si en esos cuatro años nos irá
bien, darle esa vida a tu niña por cuatro años, a mi no me parecía bien y a mi pareja peor. Ella dijo
“sí, tienes razón porque nosotros no sabemos si de acá a cuatro años nos iremos”. Porque qué pasa si
ya a los cuatros años tú ya te has integrado en la sociedad y tienes la posibilidad de que te abran
distintos campos, para poder trabajar y mejorar tu vida. Y tienes la posibilidad de decir “bueno tengo
mi familia allá, pero aquí formaré otra familia que nos irá mejor con el tiempo y que a mi hija le irá
bien”. […] No nos iremos ya a nuestros países, no tenemos una casa ya hecha en mi país, no tenemos
ahora en mi cuenta ahorros. Estamos así, vivimos día a día, porque si nos dedicamos a ahorrar todo
lo que podemos de los ochocientos euros, pues viviremos… la privaremos a mi hija de cosas, no
podremos estar en el piso solos, tendremos que vivir en una habitación compartiendo. Opte por
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ahorrar algo y dijimos “bueno vivamos mientras las cosas estén bien con lo que haya. Ya después nos
apañaremos”.

Encontramos la distinción de lo que hace “la gente que viene aquí”, sus compatriotas, poniéndose en
primer plano el costo afectivo que implica la elección que consiste en ahorrar la mayor cantidad de dinero
en el menor tiempo posible, con la idea de estancia transitoria en el país de inmigración. Asumiendo esta
opción, no puede desconocer que su propia elección, como contracara, implica posicionarse en una
situación económica muy precaria en el contexto de llegada.

Así pues, la familia de Daniel, se encuentra en una posición de desventaja que les produce mucho malestar.

[…] Pero es lo que hay. Por el momento es lo que tengo, y a lo que me tengo que aferrar a pesar de
que hay días que peleo con mi pareja, porque tanto yo, como ella nos estresamos. Es un estrés que
hay veces que no se puede soportar. Pero tienes que tirar adelante, porque si yo tiro la toalla que va a
pasar con mi niña?...en este momento lo más importante es mi niña. […]

Lo que Daniel comenta, indica la asunción de formas y estilos de vida similares a los de la sociedad
de instalación, que podrían comprenderse como signos de una “buena” integración. Paradójicamente, desde
el punto de vista económico, estas elecciones colocan a su familia en una posición de desventaja en
comparación con las demás personas inmigrantes que no asumen tales parámetros. Los coloca en una
situación muy precaria debido al tipo de trabajo y al estipendio al que acceden.

A Modo de Conclusión

El relato de Daniel nos coloca ante el necesario ejercicio de desnaturalización de la asociación entre
las tareas del cuidado y las mujeres, colocándose en la necesaria reflexión desde una perspectiva de género
en torno a las masculinidades. En esa línea es preciso reconocer los roles de género profundamente
imbricados en los contextos, como el analizado, atravesados por las regulaciones migratorias, la
organización feminizada de los cuidados, el escaso desarrollo de un Estado de bienestar, así como la crisis
socio-económica.

La experiencia que nos trasmite nuestro entrevistado muestra una inversión o “subversión” de los
roles de género al interior de la pareja pero que se produce en un marco de relaciones sociales generizadas y
étnico-extranjerizadas. Según el relato analizado, la inversión de roles de género condujo a los mismos
atolladeros del cuidado: su individualización, elevadas cuotas de sufrimiento y falta de reconocimiento de
su vital función.

Por la información obtenida por nuestro entrevistado, con sus claras y obvias limitaciones por su
singularidad y por el hecho de no estar producida para abordar esta cuestión sino la que hace referencia a la
formación laboral dirigida a personas migrantes en Barcelona, podemos señalar tanto la importancia de la
inversión de los roles de género para conocer sus posibilidades y sus límites, así como también la dificultad
de tal estrategia para lograr una disminución de las jerarquías en esas relaciones de género. Lo que puede
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aplicarse a contextos migratorios y a otros muchos. Para que se produzca la modificación de las relaciones
de género, se precisa, además, la transformación de las relaciones sociales en sentido amplio. En
consecuencia, estamos de acuerdo con lo señalado por Tania Bastia (2014) y por Denise Zenklusen (2016),
quienes no encontraron cambios sistemáticos en las relaciones de género en sus investigaciones sobre
familias migrantes, sino sólo cambios temporales.

No obstante, no podemos dejar de reconocer la importancia de la participación de los hombres en el


cuidado y de las múltiples causas que pueden llevarlos a involucrarse de una manera más intensa en ello: la
visibilización de los hombres cuidadores contribuye, como señalamos, a la desnaturalización de los
cuidados como tarea femenina, la necesidad de la distribución de tales tareas, el cuestionamiento a que el
trabajo remunerado sea un pilar de la identidad de género para los hombres. Procesos que tienen un gran
potencial transformador.

Para finalizar, en un plano más general, la forma de organización de los cuidados de una familia
inmigrada, pone de manifiesto las escasas e insuficientes políticas del cuidado. No sólo por la forma de
inserción laboral precaria de los y las inmigrados/as que limitan el acceso normalizado a los recursos de los
regímenes de bienestar. Sino también por cómo la crisis golpea de manera particular a los y las
inmigrados/as sin que sea posible una respuesta adecuada por parte de los sistemas de bienestar. Un desafío
pendiente, en la medida en que se encuentran invisibilizadas y no reconocidas las condiciones vitales de
quienes ayudan a que todo funcione, esto es, las cuidadoras y cuidadores.

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61
OLUTCHINDO: ARTICULAÇÕES SUBJETIVAS NO SUDOESTE ANGOLANO

Felizardo Tchiengo Bartolomeu Costa1

Introdução

Neste capítulo pretende-se desenvolver a idéia de que os povos Bantu que se instalaram na região
sudoeste de Angola, sobretudo na região dos Gambos e conhecidos hoje genericamente como Nhyaneca-
Umbi (Ovanyaneka-Nkhumbi), passam por processos de subjetivação resultantes de reconfigurações que
emanam de uma dinâmica cultural particular de continuidade da migração Bantu, metaforizando uma eterna
viagem numa complexa articulação de estruturas sociais típicas deste grupo étnico tais como: o Otchyoto, o
Okohambo e o Olutchindo, que serão detalhados mais adiante.

Crônicas de origem de um povo

A história que trata de explicar a origem dos Bantu é ainda hoje envolta em discussões nem sempre
consideradas conclusivas, porém convencionou-se admitir pelos menos em parte a teoria de que os Bantu
teriam partido da África do Oeste, região do Bahr al-Ghazāl (República do Sudão), das bacias dos rios
Zaire e Zambeze, ou da região interlacustre da África do Leste. Wilhem Bleek é considerado responsável
pela identificação em 1862 e uso do nome “Bantu”, para populações Bantu. Mais tarde Roland Oliver
(LWANGA-LUNYIIGO E VASINA, 2000) elaborou uma explicação sobre a expansão Bantu, na qual
explicava da seguinte maneira a mesma: uma rápida migração, ao longo dos cursos d’água do rio Congo, de
pequenos grupos de populações falantes de línguas “pré-bantas”, partindo das regiões arborizadas do centro
de Camarões e Oubangui, deslocando-se até regiões com as mesmas características, do Sul da floresta
equatorial do Zaire; um progressivo reforço da implantação destas populações que haviam migrado e a sua
expansão por meio da região arborizada estendida de um litoral a outro e abraçando o centro da África,
desde a foz do Congo até ao Zaire, na costa ocidental até o rio Rovuma, na Tanzânia, na costa oriental; a
rápida penetração dos Bantu na região mais úmida situada no norte e no sul da sua precedente zona de
expansão lateral e a ocupação do restante da atual África banta, processo que começou no curso do primeiro

1
Doutor em Psicologia pela Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Campus de Assis/São Paulo), Brasil.
Professor Auxiliar do Curso de Psicologia e Coordenador do Observatório da Educação e de Desenvolvimento (OBEDS) da
Escola Superior Pedagógica do Bengo, Angola.

62
Oluchindo: articulações subjetivas no sudoeste angolano

milênio antes da era crista e que não acabaria senão aproximadamente em meados do segundo milênio
dessa mesma era (LWANGA-LUNYIIGO E VASINA, 2000).

Segundo Bahu (2011) existem inúmeras incertezas quanto à origem dos Bantu, mas podemos
considerar que as migrações possam ter sido feitas a partir do Vale Médio do Benué, presumindo-se que o
processo tenha ocorrido para oeste e, por meio da savana Atlântica para sul. Outro grupo foi para leste,
cortando as savanas do Norte e dos planaltos que cercam os Grandes Lagos, chegando dessa forma ao país
Luba, no Shaba, dali seguiram para a África Austral. Neste processo foram além de pessoas, uma estrutura
complexa composta de uma cultura, técnicas de obtenção e fundição do ferro, mitos, folclore, religião,
meios de produção, que produziram alteração do cenário do continente africano.

A expansão fez-se por um longo período, haja vista que, no século XIX, ela não terminara
completamente na África Oriental. Entretanto, os primeiros viajantes árabes reportaram termos bantos
da costa oriental africana. Aproximadamente no século VIII, existiam portanto comunidades
bantófonas nas margens do Oceano Índico. Podemos concluir, a este respeito, que a expansão banta
estende-se não somente em uma terça parte do continente, cobrindo de dois a três milênios no tempo.
O que haveria de espantoso, desde logo, em não dispormos senão de apreciações muito genéricas e,
muito amiúde, fortemente divergentes acerca do seu desdobramento? (LWANGA-LUNYIIGO e
VASINA, 2000, p. 179).

Tal como acontece com outros povos, os Bantu migraram pelos mais diversos motivos, portanto não
somente em busca de novos modos de vida, por questões sociais, políticas, econômicas, mas também em
busca de novas experiências, de aventura, de novas relações e tantas outras razões.

Considerando a natureza das migrações na segunda parte do milênio passado, os incessantes


movimentos dos bantos, ao longo do I milênio da era cristã na África Subequatorial, podem explicar-se
por razões diferentes e, provavelmente, mais graves. As fomes, a busca de condições mais favoráveis
de existência, de terras cultiváveis e pastos, por exemplo, as epidemias, as guerras e o simples espírito
de aventura podem igualmente ter motivado os primeiros deslocamentos dos povos bantos; entretanto,
até o momento apenas pouca atenção foi dedicada a todas estas razoes (LWANGA-LUNYIIGO e
VASINA, 2000, p. 181).

De acordo com os historiadores os bantu continuaram os seus movimentos migratórios até por volta
dos anos 1100, realizando deslocamentos intensos e muitas vezes migrações de retorno, de tal sorte que não
se considera que os mesmos tenham ocorrido de modo linear, mas de forma algo irregular.

A expansão dos bantos não tomou a forma de um êxodo, de uma região à outra. Foram sem dúvida
deslocamentos de pequenos grupos de uma localidade a um vilarejo vizinho, com eventuais retornos
ao ponto de partida, processo repetido muito frequentemente até o dia em que as gerações sucessivas
finalmente atingiram os quatro cantos da África Subequatorial, talvez em um intervalo de um milênio
ou mais. Não se deve imaginar que as migrações dos bantos tenham sido uma progressão linear,
unidirecional, um perpétuo movimento adiante. No curso de milênios, movimentos em todas as
direçôes certamente ocorreram (LWANGA-LUNYIIGO e VASINA, 2000, p. 182).

Terminado o processo de migração e com a sua instalação sobretudo na África Subequatorial, suas
culturas começaram a tomar formas muitas mais específicas e adaptadas às características do local em que
se haviam instalado. Tornam-se dessa forma, cada vez mais regionais, fazendo eventualmente acentuando

63
Oluchindo: articulações subjetivas no sudoeste angolano

também as diferenças entre os diferentes subgrupos Bantu e abrindo dessa forma o contexto para o
surgimento dos Ovanyaneka-Nkhumbi.

[...] Quando falamos em Ovanyaneka-Nkhumbi como povos do sudoeste angolano, para quem lê, fica a
impressão de que esta região é habitada por apenas dois grupos: os Ovanyaneka e os Ovankhumbi. Os
Ovamuila, Cilenge, Cipungo, Handa e outros aparecem como subgrupos, porém os mesmos não
concordam com esta posição (BAHU, 2011, p.55).

Tal discordância deve-se, possivelmente, ao fato de os povos classificados nos subgrupos sentirem-
se numa condição de subalternidade, por serem minoritários e vistos como grupos de menor importância do
que aquele considerado como sendo o grande grupo (Ovanyaneka-Nkhumbi). Fato é que esses supostos
subgrupos reivindicam uma identidade cultural autônoma, desatrelada deste grupo.

O Otchyoto e a liberdade (im)possível

Na tradição do povo Nhyaneca existe o Otchyoto, uma estrutura que representa um interessante
paradoxo sócio-cultural. O Otchyoto é uma estrutura na qual se resolvem todas as querelas da comunidade.
Cada Embala2 possui o seu Otchyoto, que é comandado por uma autoridade tradicional conhecida pelo
nome de Seculo ou Soba. Este é simultaneamente o tribunal e o lugar de formação, sendo que assume cada
um destes papéis de acordo com o interesse do momento. É um espaço de restabelecimento da ordem, mas
também de profundas aprendizagens. As resoluções tomadas no Otchyoto são cumpridas obrigatoriamente e
sem regatear.

O Otchyoto é um espaço simples sem paredes e apenas com uma humilde cobertura, representando
desta forma uma radical liberdade simbolizada pela ausência total de portas e janelas, ou qualquer obstáculo
à entrada.

Essa estrutura remete para outro importante elemento, que é a representação da possibilidade de
circulação. O Otchyoto, possui uma arquitetura circular e sem portas, representando no imaginário cultural
do sudoeste de Angola a possibilidade de chegada/partida, simbolizando desta forma uma marca subjetiva
do próprio povo.

O Otchyoto representa, neste sentido a abertura para a continuação da viagem iniciada pelos
antepassados Bantu em direcção ao sudoeste africano, como abordado anteriormente. Entendendo que tal
viagem não se deu como encerrada, o Otchyoto mantém-se sempre aberto, representando a metáfora da
migração que apenas fez uma pequena pausa para logo tomar fôlego, portanto, sempre à espreita para partir
a qualquer momento.

2
A Embala representa um pequeno espaço autônomo administrativamente, regido por uma autoridade
tradicional normalmente o seculo, ou soba.
64
Oluchindo: articulações subjetivas no sudoeste angolano

Olucthindo a metáfora de uma eterna viagem

Entre uma parcela significativa dos Nhyanecas essa migração faz-se ainda hoje de modo
ininterrupto por meio do Olutchindo em direcção ao Okohambo. O primeiro (Olutchindo) refere-se à
viagem e o segundo (Okohambu) refere-se ao lugar de destino. Existe ainda o Ovanahambo, o viajante, o
indivíduo que um dia empreende ou empreenderá o Olutchindo.

O Olutchindo é do ponto de vista conceitual uma articulação entre a necessidade de levar o gado
para um lugar em que se possa oferecer pastagem mais rica e água e a recapitulação da migração histórica
dos Bantu metaforizada por essas viagens que permitem por meio de reedições, sucessivas
chegadas/partidas, que acompanham a saga desse povo. Por isto ao tratar do Olutchindo temos que fazer
considerações sobre suas feições mais específicas e que inclusive a distanciam da transumância surgida na
europa para designar movimentações cíclicas, em busca de melhores terras (humus) e clima em certas
estações do ano para agricultura ou para o trato com o gado.

O Olutchindo seria muito mais do que uma transumância (vista principalmente como uma simples
forma de pastoreio), seria inclusive incorreto pensar no Olutchindo como sinônimo de transumância, pois
reduziria a dimensão cultural/simbólica e subjetiva deste fenômeno considerando as múltiplas articulações
que se podem tomar na análise do mesmo.

Na experiência Nhyaneca a viagem empreendida (Olutchindo) deve ser entendida sob alguns dos
seguintes aspectos:

Estão implicados no Olutchindo não somente homens adultos, mas também mulheres e crianças, sendo
que estas últimas têm participação ativa. As mulheres acompanham o grupo de pastores, mas a sua presença
é requerida, sobretudo por causa das lides domésticas, elas são as responsáveis pelo preparo dos alimentos.
Quando não existem mulheres acompanhando os pastores, eles próprios ocupam-se dessa tarefa. É comum
que crianças menores de 15 anos também fiquem encarregadas de levar o gado para o Okohambo (o lugar
de destino), previamente preparado para proteger os animais de predadores naturais. Este lugar de destino
não compreende somente a cerca, mas é todo o território em que se encontram os Ovanahambo instalados e
pode ser em terreno baldio ou na vizinhança de alguma Embala. Para a preparação deste texto ouvimos
pastores que afirmam terem participado das suas primeiras aventuras no Olutchindo aos 4/5 anos, nessa
altura transportados às costas dos adultos. Aos 10/12 anos já eram responsáveis eles próprios pelo
Olutchindo sozinhos ou acompanhados tanto por adultos, quanto por outras crianças. Apesar da sua pouca
idade, esperava-se que fossem capazes de empreender em segurança o Olutchindo levando o gado ao
espaço escolhido para ser temporariamente o Okohambo.

65
Oluchindo: articulações subjetivas no sudoeste angolano

Um olhar mais cuidado nos permite compreender que o Okohambo é simbolicamente transportado pelo
Ovanahambo (viajante), o lugar está tanto no destino, quanto no local de retorno. O Ovanahambo estará
sempre a espera bem como todo o seu conteúdo simbólico. Este espaço se constrói e reconstrói na dinâmica
e complexa interação entre Olutchindo (a viagem) e o Ovanahambo (viajante). Não existe portanto o espaço
específico do Okahambo sem a confluência dos dois anteriores, neste sentido o Okahambo não é espaço
geográfico, mas simbólico (cultural, político e religioso).

O Olutchindo não é uma atividade remunerada, os Ovanahambos participam sem promessa de


pagamento, pois o gado levado pode pertencer a pessoas diferentes da comunidade, sendo que muitas vezes
operam-se ações de solidariedade nas quais ao longo dos anos os Ovanahambos vão-se revezando para irem
ano após ano ao Olutchindo. Essa solidariedade entre os membros da comunidade ajuda a reforçar os laços
entre os mesmos, já que a cedência do gado para o Olutchindo é mediada por relações de confiança
absoluta.

Diferente da experiência ocidental da transumância, o Olutchindo não está subssumido à um regime


legal de regulação das rotas, sendo que o que serve de limite são os próprios marcadores culturais.

Por último é pertinente olhar com certo cuidado para o fato de que a transferência do gado como tal
tem muito menos a ver com as necessidades de alimentação dos animais e muito mais com o esforço de
preservá-los. Entre os Nhyanecas o gado bovino tem uma importância central na vida social e cultural, ele é
símbolo de estatus, a sua transferência de uma geração à outra indica o reconhecimento de relações de
familiaridade e existem inclusive rituais específicos que devem ser respeitados no caso da morte de seus
donos. Situação que muitas vezes deixa perplexas pessoas estranhas à cultura tem a ver com as restrições
colocadas à venda dos animais como um simples comércio. O Nhyaneca não vê absolutamente qualquer
importância no papel moeda e evita a todo o custo transformar o gado em dinheiro, vendendo-o, preferindo
sempre a permuta. Assim a manutenção do gado não é somente a manutenção da riqueza material, mas
também da cultural e espiritual.

Neste texto também tentamos entender e situar a complexidade do Olutchindo, muito mais do que
apenas uma modalidade de transumância, mas ao contrário como um processo muito complexo e pleno que
contempla uma importante dimensão do que chamamos de processos contínuos de reabilitação da
subjetividade coletiva do Nhyaneca-Umbi.

O Olutchindo também encerra em si a possibilidade de resistir à sujeição, imposta inicialmente pelos


colonizadores portugueses e mais recentemente por um governo extremamente centralizador e
autoritário, lembrando que:

[...] a subjetivação se opõe à sujeição. Ela consiste em um processo de construção de si


mesmo, no sentido de fazer da vida uma obra de arte. Há, pois, um cuidado de si, uma prática
de si, uma política de si, um exercício de si sobre si que visam, acima de tudo, uma soberania
sobre si mesmo. O que a subjetivação se opõe à sujeição. Ela consiste em um processo de
construção de si mesmo, no sentido de fazer da vida uma obra de arte. Há, pois, um cuidado
de si, uma prática de si, uma política de si, um exercício de si sobre si que visam, acima de

66
Oluchindo: articulações subjetivas no sudoeste angolano

tudo, uma soberania sobre si mesmo. O que está em jogo é a técnica que deve ser utilizada
para se viver da melhor maneira possível (SALES, 2008, p. 3).

Este aspecto do uso do Olutchindo, como forma de opôr-se à sujeição, é ressaltado pelo antropólogo
angolano Ruy Duarte de Carvalho (1995), que conta que quando os portugueses tentaram estimular os
Kuvales (subgrupo dos Nhyanecas) a se mudarem para as cidades que estavam crescendo e sendo
urbanizadas, oferecendo-lhes dinheiro para essa mudança, eles rapidamente usaram todo o dinheiro obtido
para voltarem às terras de origem e comprar gado, caindo por terra o esforço português de retirar-lhes a
ligação com o gado.

Assim o Olutchindo parece ser na verdade uma articulação complexa entre cultura, economia,
espiritualidade e religiosidade Nhyaneca onde o fato de se repetir a transferência do gado por meio do
Olutchindo representa uma reedição da migração iniciada com os primeiros deslocamentos Bantu e o
Otchyoto funciona como uma lembrança de que a partida/chegada está sempre à vista.

Que subjectividade é possível entre o otchyoto e o olutchindo?

Subjetividade e sujeito são construtos articulados de modo a formarem o processo de subjetivação.


“Evidentemente a categoria subjetividade implica a categoria sujeito e, por essa via, tratando das duas
categorias, ou de uma delas pode-se fazer a análise do caráter histórico da subjetividade (Gonçalves, 1998,
p. 137)”. Deste modo, se o sujeito é criação de alguma coisa e, sobretudo criação de si próprio, a história
que o acompanha e que se recria junto com ele é o processo de subjetivação.

O sujeito se define por e como um movimento, movimento de desenvolver-se a si mesmo. O que se


desenvolve é sujeito. Aí está o único conteúdo que se pode dar à idéia de subjetividade: a mediação, a
transcendência. Porém, cabe observar que é duplo o movimento de desenvolver-se a si mesmo ou de
devir outro: o sujeito se ultrapassa, o sujeito se reflete (DELEUZE, 2001, p. 93).

É nesta duplicidade onde se encontra o que Deleuze chama de dupla potência da subjetividade. Em
vista disso somos tentados a questionar de que forma o Olutchindo permite ao Ovanahambo, sujeito do
Olutchindo, apresentar-se simbolicamente como resultado das respectivas articulações?

Deleuze (2001) rompe com a noção de uma unidade evidente atribuída ao sujeito. Este não está
dado, mas constitui-se pela experiência, no contato com os acontecimentos, que ocorrem nos variados
encontros com o outro. Não se trata apenas de nos diferenciarmos dos outros como forma de exercício da
nossa potência, mas inclusive de nós mesmos. Como existem maneiras diversas de viver os encontros,
inclusive, eles nem sempre são perceptíveis. Alguns passam desapercebidos, outros são fortes, marcantes e
até violentos (MANSANO, 2009).

Guattari e Rolnik (1996) descrevem processos duplamente descentrados e fazem importantes


considerações quanto aos agenciamentos sociais a que os sujeitos estão submetidos.

67
Oluchindo: articulações subjetivas no sudoeste angolano

O sujeito produz significações por meio das relações que estabelece com o mundo e existindo nele o
desejo pela busca de significantes, a sua condição de ser permite-lhe singularizar os objetos coletivos,
transformando desse modo o Olutchindo numa experiência simultaneamente singular-coletiva-histórica, na
medida em que se desenrola no bojo da viagem empreendida pelos antepassados Bantu, como uma
metáfora da mesma.

Para Guattari e Rolnik (1996) ainda que a subjectividade seja produzida e configurada no plano
social, é nos conjuntos sociais em que ela circula e é assumida e vivida.

Na mesma senda segundo Miranda (2005, p. 38) “Os processos de subjetivação não são centrados
nos agentes individuais [...]”, que neste caso assume-se como sendo o Ovanahambo, sendo ele o agente que
garante o trânsito engendrado pelo Olutchindo. Contudo, o socius não diz respeito simplesmente a um
ajuntamentos de subjetividades de vários indivíduos, tem sua representação respaldada num
entrecruzamento de produções coletivas com as mais diversas feições: sociais, políticas, culturais,
educacionais, artísticas, tecnológicas, de mídia, etc (GUATTARI E ROLNIK, 1986).

Segundo Mansano (2009) não há posse na subjetividade, mas uma interminável produção por meio
dos encontros com outro, que pode ser social, ou natural, que podem ocorrer em eventos, criações, e tudo
mais que afeta o corpo e o viver. Tais efeitos alastram-se através de múltiplos componentes de
subjetividade, circulando no campo social.

Dependendo dos efeitos produzidos pelos encontros, o sujeito é praticamente “forçado” a questionar e
a produzir sentidos àquela experiência que emergiu ao acaso e que, sem consulta, desorganizou um
modo de viver até então conhecido. Obviamente, o contato com esse tipo de dado e de acontecimento
gera uma série de estranhamentos, incômodos e angústias. A vida se desenrola nesse campo complexo
do qual fluem ininterruptamente os dados e os acontecimentos. Os enfrentamentos aí emergentes não
conhecem parada (MANSANO, 2009, p. 115).

Portanto a produção de subjetividade não cessa. Há produção de subjetividade quando se utilizam e


recriam signos que expressam algum modo de ser e de estar no mundo. Há produção de subjetividade
quando se faz uso da linguagem para expressar-se social ou culturalmente. Há, ainda, quando vivemos
experiências cotidianas ou reavaliamos histórias anteriores, nossas ou alheias, quando seguimos vivendo
nossas vidas e não percebemos os encontros. Neste sentido no Olutchindo destaca-se a experiência do
Ovanahambo (viajante) e é dela que emerge a hipótese de que a metáfora da migração Bantu reeditada no
Olutchindo é pertinente para compreender o processo de subjetivação do povo Nhyaneca-Umbi.

Ressaltamos a importância desta experiência, pois “ao se constituir em conceito teórico, a


subjetividade delimita o conjunto de experiências do sujeito. E, nesse conjunto, está a experiência do
conhecimento, incluindo a experiência do conhecimento sobre as próprias experiências subjetivas (BOCK,
ET. AL., 2012, p. 47)”, que, neste caso, conseguimos acessar por meio da tentativa de compreensão do
Olutchindo e sua implicação subjetiva no sujeito que, deixando de ser apenas mais um simples membro da
comunidade é elevado à figura do Ovanahambo (viajante). Ele é uma espécie de herói e descobridor, mas

68
Oluchindo: articulações subjetivas no sudoeste angolano

essencialmente ele é canal pelo qual se mantém viva a tradição. De cada vez que o Ovanahambo empreende
o Olutchindo, ele o faz em nome de uma comunidade de milhares de seus congêneres e também de todos os
seus antepassados. Assim ele mantém assim viva a chama da sua ancestralidade.

Podemos tomar a subjetividade simultaneamente como experiência e como conceito. Essa relação é
construída historicamente. Como experiência humana, ela toma formas várias no decurso da história
humana, como signo a subjetividade se modifica junto com a própria história permitindo simultaneamente a
expressão de tal experiência e transformando-a, além de ganhar o estatuto de conceito teórico, surgindo no
bojo do desenvolvimento da ciência na modernidade em áreas como a psicologia, mesmo não estando no
inicío formal da psicologia como um conceito explícito (GONÇALVES, 1998).

O sujeito, nessa perspectiva [...] só pode ser analisado a partir de uma processualidade, de um vir a ser
que não se estabiliza de maneira definitiva. Ele é construído à medida que experiência a ação das
forças que circulam no fora, e que, por diferentes enfrentamentos, afetam o seu corpo e passam, em
parte, a circular também do lado de dentro. Sob essa ótica, a produção do sujeito envolve um
movimento que não conhece sossego, pois ele não está dado de uma vez por todas. Dessa maneira, ele
pode ser sentido e percebido como uma existência particular e histórica, à medida que desenha
territórios subjetivos que são investidos desejantemente. Entretanto, esses territórios nada mais são do
que composições provisórias de forças (MANSANO, 2009, p. 115-116).

Deste modo, se por um lado o Olutchindo apresenta-se como a saída possível para este trânsito
processual, o que implica a circulação, a abertura para o movimento e para a viagem metaforizada em
várias de suas estruturas, o Ovanahambo seria o produto nunca definitivo de um vir-a-ser que se recompõe
de modo interminável nos territórios subjetivos investidos desejantemente.

À guisa de conclusões

Achamos que a principal contribuição destas análises e reflexões está em provocar a abertura de
uma discussão sobre que processos de subjetivação emergem das práticas tradicionais dos povos do
sudoeste de Angola conhecidos genericamente como Nhyaneca-Umbi (Ovanyaneka-Nkhumbi)
considerando sua dinâmica cultural particular de continuidade da migração Bantu, metaforizada numa
viagem reeditada persistentemente por meio de complexas articulações entre estruturas sociais típicas como
o Otchyoto, Olutchindo e o Okohambo.

Conclui-se assim, de modo provisório, que os processos de subjetivação engendrados na articulação


entre diferentes dinâmicas materializa-se, em parte, na (im)possibilidade tanto da partida, quanto da
chegada mantida pela presença na estrutura social Nhyaneca do Otchyoto, Olutchindo e o Okohambo e sua
importância na permanente recomposição subjetiva da figura do Ovanahambo.

Referências
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Oluchindo: articulações subjetivas no sudoeste angolano

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SALES, Márcio. Foucault e os modos de subjetivação. XIII Encontro Nacional de Filosofia, Canela, 2005,
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70
SOCIEDADE E PSIQUISMO NA CLÍNICA DO MIGRANTE: A HIPÓTESE DO “MITO DO
MIGRANTE EXITOSO” COMO ORGANIZADOR SOCIOCULTURAL

María Liliana Inés Emparan Martins Pereira1


Pablo Castanho2

Há um vilarejo ali
onde venta um vento bom
Terra de heróis, lares de mãe
Paraíso se mudou para lá
Toda gente cabe lá.
Palestina, Xangri-Lá...
(Trechos da canção Vilarejo
de Marisa Monte)

Introdução

Se pensarmos bem veremos que a migração é um fenômeno que se confunde com a própria
constituição do processo civilizatório, em que sujeitos se deslocavam na tentativa de encontrar um abrigo e
formar agrupamentos, como forma de lidar com o desamparo constitutivo que nos impulsiona,
principalmente na direção do outro. Os deslocamentos se produzem como efeito de guerras, conflitos, crises
econômicas e políticas, problemas climáticos, perseguições, racismos, discriminações etc.
Debieux Rosa (2016) aponta que a motivação para a migração é bastante relevante na configuração
de como será a experiência.

Ao falarmos de deslocamento territorial, diferenciamos processos por sua dimensão de escolha.


Embora mais óbvio no caso dos exilados e refugiados, reconhecemos a complexidade da situação na
escolha “forçada” dos imigrantes e migrantes que aliam os movimentos do sujeito à expulsão política
e social. Muitos que migram buscam, de certa forma, ampliar horizontes, conquistas, promover
deslocamentos psíquicos ou mesmo romper apegos melancólicos a estilos de vida estagnados e
superados. Mas é nas migrações forçadas pela violência e miséria, como no caso principalmente dos
refugiados ou dos migrantes, que a dimensão do perdido e a dificuldade de se localizar no mundo
tomam um lugar primordial e podem promover efeitos de desenraizamento ou de desterritorialização.
(ROSA, 2016, p. 57)

1
Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e Mestre pela Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo. Psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
Coordenadora do Projeto Ponte (Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae). Brasil.
2
Psicólogo. Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em Psicologia Social
pela Universidade de São Paulo. Professor Doutor do Departamento de Psicologia Clínica (graduação e pós-graduação) do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Brasil.

71
Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

Na clínica com migrantes, identificamos três momentos principais na travessia da experiência


migratória: a construção do projeto migratório ainda no país de origem, conjuntamente com a definição
da migração como forçada ou livre, e as consequentes categorizações dos sujeitos migrantes como
estrangeiros, refugiados, asilados, migrantes internos, brasileiros retornados etc.; a decisão de migrar e o
tipo de viagem que promoverá: o deslocamento propriamente dito e as condições da travessia concreta e
simbólica; o estabelecimento e a organização da vida como estrangeiro no país de destino:
documentação, emprego, moradia, língua, estabelecimento de novos laços, inclusão cidadã etc.

Estas categorias já sinalizam aspectos do campo sócio-histórico no qual se insere a experiência


migratória de cada sujeito, família, grupo humano. De fato, se o deslocamento acompanha a humanidade
desde seus primórdios, suas modalidades são peculiares a cada momento da humanidade.

Por isso mesmo, pensar a migração hoje em dia exige uma reflexão sobre a sua especificidade na
atualidade, em especial, sobre a permanência das assimetrias políticas e econômicas entre os países
(lembremos que a perspectiva da sobrevivência ou de melhores condições de vida impulsiona grandes
contingentes de migrantes e refugiados), bem como sobre as transformações do espaço e dos sentidos da
própria experiência da migração no contexto das transformações tecnológicas, sociais e econômicas do
capitalismo desenvolvido na atualidade.
Mas ao mesmo tempo em que é fundamental atentar para a dimensão concreta do processo
migratório e dos desafios que ele impõe a cada grupo, cada família, cada sujeito, devemos tomar cuidado
para não ficarmos cegos aos efeitos do sofrimento psíquico que tal processo pode implicar. É neste
cruzamento entre estas duas ordens de problemas que pensamos deva se inserir uma clínica do sujeito
migrante.
Para um dos autores deste texto, o interesse na temática dos efeitos da migração na vida dos sujeitos
se origina na própria experiência como migrante e na tentativa de elaboração do deslocamento. Tornava-se,
assim, imprescindível um trabalho psíquico de luto e reinscrição, de separação de histórias, sujeitos e
culturas do país de origem e de adoção e, paralelamente, o estabelecimento de ligações e pontes entre os
processos interrompidos-truncados no país de origem e os reconstruídos-recriados no país de destino.

Tal dado biográfico expressou-se também em um percurso profissional dedicado ao atendimento de


migrantes. Atendimento ocorrido, tanto no contexto do consultório particular quanto no âmbito de um
serviço de atendimento institucional chamado Projeto Ponte, que oferece atendimento psicoterapêutico de
orientação psicanalítica a migrantes, preferencialmente na modalidade de grupo. O Projeto Ponte foi
fundado há quase 10 anos e funciona na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo-
Brasil) constituindo importante inspiração para questões tratadas neste texto.

Este trabalho clínico com pessoas migrantes evidenciou a tentativa de recordar, falar e elaborar a
experiência migratória que, embora diversa e singular, traz as marcas das realidades sociopolíticas e
culturais dos países de origem e de destino e dos motivos e formas de migração.

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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

Deste modo, entendemos que a importância de levar em conta os processos sociopolíticos dos
deslocamentos na clínica da migração impõe uma reflexão sobre as formas de articular elementos da
sociedade com a realidade psíquica e lidar com eles na clínica. Este texto busca reafirmar a importância
destas duas dimensões no olhar da clínica do sujeito migrante, e investigar a hipótese do “mito do migrante
exitoso” como importante organizador sociocultural do processo de migração de grande relevância clínica.

Sobre os Deslocamentos na Atualidade

Se a clínica da migração não pode prescindir de um entendimento dos processos sócio-históricos


implicados na migração, iniciaremos abordando dois importantes aspectos do deslocamento humano na
contemporaneidade.
Segundo Bauman (1999), a globalização impõe a todos movimento: seja viajando, mudando de casa
ou navegando na Web, já que o espaço deixou de ser um obstáculo (p. 85). Neste sentido, as fronteiras
seriam questionadas e problematizadas, enquanto certo nomadismo comporia a fantasia dos sujeitos na
atualidade pós-moderna. A conquista e o estabelecimento nos espaços seriam, contudo, efêmeros e
poderiam ser sentidos como algo instantâneo, fugaz.
Neste sentido, o deslocamento, para alguns poucos, poderia ser visto como mais um “objeto” de
consumo, em um imperativo para consumir experiências, viagens, intercâmbios, novos empregos, novas
moradias etc., sendo compreendido a partir da voracidade do desejo, produzindo sujeitos que se comportam
como “turistas ou andarilhos-vagabundos”. Destacamos aqui o paradoxo contido na expressão “voracidade
do desejo”, pois desejar algo implica planejar, adiar, negociar, enfim se responsabilizar pela escolha, que
implica sempre uma renúncia. O homem pós-moderno não quer renunciar a nada, e parece mostrar nesse
movimento frenético que o consumo não é só por objetos, “mas pela excitação de uma sensação nova, ainda
não experimentada – este é o jogo do consumidor” (BAUMAN, 1999, p. 91). O consumo por experiências
formaria parte da ideia de pessoas vivendo como “turistas”, pessoas de passagem, evitando a fixidez dos
espaços.
Bauman indica, entretanto, uma diferença em função da condição socioeconômica do país:

Os habitantes do Primeiro Mundo vivem no tempo; o espaço não importa para eles, pois transpõem
instantaneamente qualquer distância. [...] Os habitantes do Segundo Mundo, ao contrário, vivem no
espaço, um espaço pesado, resistente, intocável, que amarra o tempo e o mantém fora do controle
deles. (BAUMAN, 1999, p. 97)

De fato, em paralelo às transformações na relação com o espaço e da metamorfose do deslocamento


humano, como experiência de consumo para parte da população global, a lógica hierárquica econômica e
política no nosso mundo segue fundamental para a compreensão da maior parte dos processos migratórios.

Na conjuntura sistêmica atual, é possível notar a permanência da relação predatória entre os grandes
polos e as periferias globais por meio da ressignificação do neocolonialismo do século XIX; da
etnofobia, racismo e xenofobia; do intervencionismo imperialista; das políticas de controle social,
como a restrição das fronteiras aos migrantes oriundos de economias periféricas do globo; e da
continuidade da exploração trabalhista das populações oriundas dessas localidades, as quais são
submetidas, por diversas vezes, a condições de trabalho análogas à escravidão. Assumido pelos
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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

ideólogos liberais como uma expressão da livre circulação, o processo de mobilidade do trabalho é
reconhecido por uma considerável parcela populacional como a única possibilidade de garantir a sua
subsistência. (CARDOSO, 2017, p. 26).

Desta forma, os processos migratórios não seriam exatamente movimentos ou decisões “livres”, mas
migrações forçadas, em sua grande maioria, por falta de condições de vida digna nos países de origem,
sejam estas motivações laborais, econômicas ou por melhores condições de moradia, saúde e educação. As
economias periféricas, através dos deslocamentos migratórios, empreenderiam um movimento em direção
aos centros de poder econômico, não por fazer realmente parte da chamada “aldeia global”, mas justamente
por estar fora do sistema real, segregados e excluídos. Neste sentido, os deslocamentos populacionais
massivos seriam efeito dos fluxos econômicos das economias periféricas às centrais e do campo aos centros
urbanos.
Portanto, estudar as migrações na era da globalização sem levar em conta o modelo econômico
vigente levaria a considerar equivocadamente que a decisão do migrante foi produto apenas de sua história
de vida e não do contexto sociopolítico no qual estava inserido. O desafio é articular a história de vida e as
motivações subjetivas ao contexto histórico e econômico atual.
O paradoxo das migrações massivas no mundo globalizado fica revelado na surpresa, no medo ou
na apatia com que se assiste a contingentes de pessoas caminhando por quilômetros, submetidos a coiotes,
viajando em transportes superlotados ou precários, como os botes que atravessam o Mar Mediterrâneo.
Apesar da ideia de que na aldeia global não haveria fronteiras e que a comunicação e informação
aconteceriam em tempo real, é justamente no deslocamento ao vivo de pessoas que a sociedade manifesta
uma estranheza profunda e incômoda.

Não admira que as sucessivas ondas de novos imigrantes sejam percebidas com ressentimento como
(recordando Bertolt Brecht) “precursores de más notícias”. Eles são personificações do colapso da
ordem (o que quer que consideremos a “ordem”: um estado de coisas em que as relações entre causas
e efeitos são estáveis e, portanto, compreensíveis e previsíveis, permitindo aos que fazem parte dela
saber como proceder), de uma ordem que perdeu sua força impositiva. (BAUMAN, 2017, p. 20)

Diante desta estranheza que o migrante delata, a sociedade edifica muros, arames farpados e
mecanismos de controle protegem as fronteiras; campos de refugiados revelam e escondem a catástrofe
humanitária que o modelo desigual construiu; xenofobia, exclusão e racismo se exacerbam denunciando a
falácia da não separação e do livre trânsito das pessoas.

Psicanálise e Migração: desamparo, estrangeiridade e alteridade

O risco de perder do horizonte, a dimensão sócio-histórica no atendimento clínico ao migrante


contrapõe-se ao seu contrário: a saber, de o atendimento ao migrante ocorrer sob o impacto das
necessidades objetivas, ignorando-se a dimensão do sofrimento psíquico que sempre o acompanha. Neste
sentido, recorrer a alguns conceitos psicanalíticos é especialmente importante para a compreensão do
sofrimento no processo de migração e pode se mostrar um recurso preventivo importante.
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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

O conceito psicanalítico mais frequentemente evocado para tratar da problemática da migração é o


Unheimilich, traduzido de diferentes formas como: “estranho”, “inquietante familiar” ou “estrangeiro”. A
riqueza do aprofundamento do conceito de estranho freudiano foi propor que algo sempre comporta o seu
contrário, de forma articulada e dinâmica, algo “que é idêntico ao seu oposto” (1919, p. 282), de forma tal
que o estranho (Unheimilich) inclui seu contrário: o familiar (Heimlich), formando, portanto, um binômio:
o estranho-familiar. Propomos um acréscimo a esta ideia do estranho-familiar que seria considerar que o
migrante condensa uma dupla estranheza: a do estranho-familiar (Unheimlich-Heimlich) e a do estrangeiro
como migrante advindo de outro país.
No texto O estranho (1919), a categoria do assustador também forma parte do conceito de estranho;
medo e horror que, sem dúvida, formam parte do que o migrante provoca com sua singularidade, com sua
cultura diferente e desconhecida, o que diz também da nossa própria estranheza, o estranho em mim: um
saber íntimo que se desconhece e se teme. Paralelamente, existe um movimento de atração e fascínio, algo
que nos atrai e fixa nosso olhar perante esse outro tão diferente.
Precisamos reconhecer, assim, que a categoria do estranho se assenta em fortes ambiguidades,
justamente por incluir sentidos tão contraditórios: atração e repulsa, familiar-estranho, medo-confiança, que
na verdade são um. Talvez seja justamente este aspecto da dupla estrangeiridade do migrante que
incremente e provoque tão fortes reações, alcançando mesmo uma sensação de ameaça e perigo: o migrante
e o refugiado como alguém que é perigoso, e não como alguém em perigo e vulnerável. Quando olhamos e
nos deparamos com a figura do estranho-estrangeiro, a ambivalência ressurge e se intensifica: precisamos
afastar o estrangeiro migrante, não permitir sua entrada, expulsá-lo do nosso território familiar.
Mas como é esse outro que se apresenta como estrangeiro, como migrante, como refugiado? O
migrante-refugiado é aquele que passará a encarnar a estrangeiridade, tanto no país de destino quanto no de
origem, assumindo um lugar entre culturas, espaços e tempos. O seu deslocamento e a presença/ausência
promovem um questionamento do instituído e compartilhado, como a cultura, a língua, a identidade
nacional etc.
Refúgio significa lugar para onde se foge para escapar a um perigo; aquilo que serve de proteção,
de amparo. Paradoxalmente, o migrante e o refugiado encarnam o desamparo, seja pelas duras condições de
vida para a maioria dos migrantes, seja pelos movimentos xenofóbicos de que são alvo, seja pela estranheza
ante o outro desconhecido que se estabelece nas relações entre nacionais e estrangeiros. Podemos inferir
que o horror de sua precariedade e vulnerabilidade nos interroga sobre o nosso próprio desamparo, a
ancestralidade familiar, a história do nosso país e, sobretudo, sobre a própria constituição da história
civilizatória.
Para a Psicanálise, o desamparo (Hilflosigkeit) é constitutivo do psiquismo, já que o ser humano é
sinônimo de prematuridade e dependência de um outro primordial, de alguém que possa lhe ofertar
cuidados para além da sobrevivência. Segundo Freud (1926), este desamparo humano se baseia na inter-
relação entre os fatores biológicos e os psíquicos. Portanto, a relação com o outro está no fundamento da
subjetividade, do tornar-nos sujeitos singulares.

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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

Sua existência intrauterina parece ser curta em comparação com a maior parte dos animais, sendo
lançado ao mundo em um estado menos acabado. [...] Além disso, os perigos do mundo externo têm
maior importância para ele, de modo que o valor do objeto que pode somente protegê-lo contra eles e
tomar o lugar de sua antiga vida intrauterina é enormemente aumentado. O fator biológico, então,
estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a
criança pelo resto da vida. (FREUD, 1926, p. 179).

A problemática do desamparo indica a dependência radical do bebê humano a um outro, que o


proverá dos cuidados necessários à sua sobrevivência, ofertando-lhe um mais além, que é a palavra, a
cultura, o espaço e o tempo, categorias inerentes ao humano. A partir desta relação primordial se
construirão subjetividades.
Diante do nosso desamparo constitutivo, a migração e o refúgio reencenam a relação perante o
Outro primordial. No entanto, este desamparo não é vivido apenas de forma isolada por cada sujeito, mas é
encarnado imaginariamente pelo (não) pertencimento a determinadas culturas, religiões e nacionalidades.
Esse outro primordial representa os cuidados e a mediação com a cultura.
Segundo Figueiredo (1998), o mundo será apresentado por um adulto significativo que com sua
presença implicará uma alteridade radical, uma estranheza.

Esta alteridade do adulto ‒ esta fonte estrangeira de mensagens – não seria constituída apenas pela
diferença entre o adulto e a criança; haveria algo mais decisivo nesta alteridade: tratar-se-ia da
diferença do adulto para consigo mesmo, ou seja, da alteridade implicada no/pelo inconsciente do
adulto como corpo estranho e estrangeirice própria; é essa alteridade do próprio, é este
inconsciente que toma o adulto enigmático para si mesmo e, mais ainda, para a criança.
(FIGUEIREDO, 1998, p. 63).

A alteridade deste outro primordial é portadora de um enigma; o adulto se apresenta como portador
de mensagens que implicam algo da sedução, do equívoco, da exclusão, da dúvida, da divisão e da falta.
Existe algo sempre da ordem do incompreensível, do indecifrável que funcionará justamente como produtor
de desejo.
Este modelo relacional estaria na base de todas as posteriores relações estabelecidas pelo sujeito
com os outros. Esse outro alter, contudo, nunca é totalmente diferente, ele é também um outro semelhante.
Este ponto nos interessa fundamentalmente ao pensarmos o outro do estranho-estrangeiro, do migrante, do
sujeito representante de outra identidade cultural, pertencimento nacional e língua diferente. Isto significa
que a sua alteridade radical também representa a semelhança do outro humano. Ou seja, que partes de sua
singularidade são alter, e partes dela são familiares. Portanto, o movimento ambivalente em relação aos
outros sempre oscilará entre o acolhimento e a hostilidade. Este movimento pendular implica o
reconhecimento e o não reconhecimento da diferença do outro. Esta hospitalidade-hostilidade diz respeito
à inclusão-exclusão do outro como sujeito humano.

O “Mito do Migrante Exitoso” como Organizador Sociocultural

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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

Como Kaës (1998) indica em Différence culturelle e souffrances de l´identité, cada cultura possui
representações sobre o que é estrangeiro, e diferentes categorias de estrangeiros podem estar presentes.
Notemos que a indissociabilidade entre as representações e os processos e formações psíquicas são um
tema de longa data em Kaës. Mais especificamente, são uma hipótese de base em sua concepção sobre o
grupo. Em o Aparelho Psíquico Grupal, originalmente publicado em 1976 (aqui utilizaremos a tradução
brasileira de 2017), Kaës procede a um estudo sobre as representações que envolvem o grupo e propõe que
aquilo que se passa de específico nos grupos é função destas representações. Deste modo, Kaës compreende
que as representações comuns e partilhadas, como construções coletivas, articulam processos e formações
psíquicas internas e externas, inconscientes e conscientes. Mais especificamente, Kaës (2017) distinguirá
dois sistemas de representação: o sistema psíquico e o sistema sociocultural, que denominará de
“organizadores” em função de seu papel de dar formas aos processos e formações psíquicas. Nas palavras
de Kaës:

Os organizadores socioculturais resultam da transformação, pelo trabalho grupal, desse núcleo


inconsciente. Comuns aos membros de uma atmosfera sociocultural dada, e eventualmente a várias
culturas, funcionam como códigos que registram, como o mito, diferentes ordens de realidade: física,
psíquica, social, política e filosófica. Possibilitam a elaboração simbólica do núcleo inconsciente da
representação e da comunicação entre os membros de uma sociedade. (KAËS, 2017, p. 53-54)

Para Kaës, dentre os organizadores socioculturais do grupo encontraremos narrativas que


permitiriam uma ancoragem social de cada grupo em particular. Retomando suas pesquisas sobre o assunto,
Kaës identifica três principais modelos com esta função: um de origem cristã, que nos remete ao grupo dos
doze apóstolos; outro de origem hebraica, que coloca o acento sobre a relação de aliança entre Yahweh
(Javé) e seu povo; e, finalmente, um de origem céltica, que remete a demanda do Santo Graal como um
grupo em busca de um objeto perdido maravilhoso. Para Kaës, muito do que podemos entender dos
processos de formações grupais diz respeito à atuação destas narrativas como organizadores socioculturais
do grupo.
Mas, para além da importância destas representações socioculturais ao estudo do grupo e de suas
possíveis imbricações na aventura migratória, entendemos que aqui Kaës nos oferece um método que pode
ser adotado para o estudo de outros fenômenos. Deste modo, entendemos que a experiência subjetiva da
migração seja interdependente das representações sobre migração que circulam na cultura. Há, certamente,
muitas especificidades culturais neste campo, dependendo da origem e dos destinos dos migrantes, mas a
globalização crescente, bem como a amplitude que a chamada cultura ocidental (nos referimos aqui à
cultura originalmente europeia levada ao mundo pelo processo de colonização e seus desdobramentos
imperialistas posteriores) pode permitir a identificação de alguns organizadores socioculturais comuns desta
experiência, dentre eles passaremos agora a discutir o que denominamos de “mito do migrante exitoso”.
Toda viagem é acompanhada, de alguma forma, pelo mito da categoria de paraíso: a “terra sem
males” dos Guarani, “El Dorado” da Espanha colonial, a “terra prometida” dos judeus são variações deste
tema. Pode-se ir em busca do paraíso ao viajar e ao migrar, idealizando o novo espaço. No caso das
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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

migrações, em especial para os refugiados, migrar pode facilmente ser representado como a possibilidade
de interrupção de um grande sofrimento no país de origem e a chegada ao paraíso ou “terra prometida”.
Como apontamos, os maiores contingentes de migrantes e refugiados hoje em dia desdobram o
movimento de saída do campo rumo à cidade, bem como um deslocamento de países economicamente mais
periféricos para economias mais centrais. Não é acidental, portanto, que muitas famílias que vivem em
situação de grande vulnerabilidade “apostem” em algum membro da família que migra, como possibilidade
de mudança de todos. Geralmente é o pai, o filho mais velho ou aquele que apresente melhores condições
físicas, intelectuais e uma rede de apoio que possa recebê-lo no país de destino. Existem outras famílias em
que, ao contrário, a escolha recai sobre a pessoa que está doente e precisa de tratamento de saúde,
inacessível no país de origem; ou naquele que é perseguido ou ameaçado de morte, naquele que sofre
preconceito por suas características religiosas, sexuais, políticas, étnico-raciais etc. Nesses casos, as
famílias vão juntando penosamente suas economias até conseguir enviar alguém para outro país na
esperança de que este possa melhorar de vida, enviar-lhes dinheiro e até receber e cuidar de outros
membros da família no país de destino. Esta é a realidade de muitos habitantes de países africanos, latino-
americanos ou do Oriente Médio, que precisam sobreviver, alimentar-se e ter a atenção médica que não
conseguem no seu país de origem, o que os leva a se deslocar pelos países limítrofes. É o caso da guerra da
Síria (2011-), dos conflitos na República Democrática do Congo (2016-), da devastação no Haiti
(especialmente após o terremoto de 2010), e, atualmente (2018), da crise na Venezuela (por conta da
situação político-econômica do país); são países em que para alguns de seus habitantes migrar parece ser a
única saída.
O “mito do migrante exitoso” tem como um elemento que o potencializa a própria desigualdade
entre os países que de fato sustentam os grandes movimentos migratórios e de refugiados da atualidade.
Este mito não passa somente por uma ideia superficial de sucesso financeiro ou êxito profissional; vai mais
além, demonstra como as populações mais vulneráveis, ao não encontrar no seu próprio território uma
estrutura que possa suprir suas necessidades básicas, colocam toda a sua esperança pulsional na mudança
para outro país. Em outras palavras, a outra face da suposta “vitória” do migrante apontaria muito mais para
o desamparo e o risco iminente de morte, e para a tentativa desesperada de encontrar alguma solução
alhures para a dramática realidade em que vive. Existe também, do lado do migrante, a dificuldade de
mostrar sua fragilidade e a impossibilidade de muitas vezes atender a esta expectativa. A visita, ou o
retorno, do migrante à pátria é acompanhada de muita expectativa. Em muitos casos, um grande número de
famílias sobrevive graças às divisas que os parentes enviam do exterior; como é o conhecido caso dos
mexicanos e dos cubanos que moram nos Estados Unidos.
Toda esta situação provoca sentimentos ambivalentes de ambos os lados: nos que ficaram e naquele
que migrou. Do lado de quem migrou, a sensação de ter sido escolhido, por ter melhores ou mais
específicas condições, a obrigação de conseguir emprego rapidamente e ganhar dinheiro, a dureza e a
solidão de estar em terras estrangeiras sem o apoio familiar, social e cultural. Do lado da família, existe
uma idealização de que esse outro está bem, mas também sentimentos de rivalidade e inveja, a incerteza ou

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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

negação sobre as condições em que ele vive, se poderá voltar etc. A angústia pode acompanhar as famílias e
os migrantes e ser a base dessa ambivalência.
Em muitas situações, o migrante se sente compelido a não desmontar essa ilusão, por diversos
motivos. As causas formam parte de um amplo leque que vai desde a desesperança completa da família,
devido à vivência de situações dramáticas políticas, econômicas ou sociais; a necessidade psíquica de
acreditar que é possível ou que existe um lugar melhor para se viver, menos perigoso, mais próspero e com
mais recursos; o desejo de não desapontar a família e o grupo social que investiram todas as economias e a
esperança nesse sujeito como alguém que pode mudar um destino.
De fato, o “mito do migrante exitoso” parece apontar para as alianças inconscientes e os pactos
denegativos explicitados por Kaës (2014) nas dinâmicas grupais. Os pactos denegativos são modalidades
de alianças inconscientes caracterizadas pelo afastamento da consciência de algum conteúdo em comum.
Aquilo que é objeto de um pacto denegativo não pode ser explicitado no grupo sob pena de desestabilizar o
vínculo do grupo e encontrar grandes resistências. O pacto denegativo, para Kaës, pode ser homogêneo
(quando, por exemplo, em um grupo um mesmo conteúdo é recalcado por todos os seus componentes); ou
heterogêneo, quando um mesmo conteúdo pode ser recalcado por alguns, recusado por outros, desmentido
por terceiros etc., apoiando-se em diferentes mecanismos de defesa individuais, mas convergentes, com a
proibição de que certas ideias circulem abertamente no grupo (KAËS, 2014).
Outra modalidade de aliança inconsciente desenvolvida por René Kaës (2014) é o contrato
narcísico, que o autor retoma e aprofunda a partir de Piera Aulagnier. Ao falarmos de contrato narcísico,
salientamos como, para o autor, todas as configurações grupais podem ser lidas do ponto de vista dos
investimentos recíprocos e de seus efeitos sobre a dimensão narcísica em seus membros. É assim que se
pode compreender o narcisismo como função dos investimentos recebidos pelo sujeito, entre um complexo
jogo entre o narcisismo primário, originário e secundário e os contratos narcísicos por eles caracterizados
(KAËS, 2014).
Neste sentido, propomos pensar o “mito do migrante exitoso” como uma coconstrução coletiva que
cumpre funções tanto para os sujeitos singulares como para suas famílias e grupos sociais. Coconstruções
que ordenam investimentos recíprocos e suas vivências narcísicas correspondentes, ao mesmo tempo em
que delimitam o terreno do que não pode ser dito e deve permanecer distante do discurso do grupo e
mesmo, com frequência, da consciência de seus membros (pactos denegativos).
Deste modo, entendemos que há, com muita frequência, por parte da família e do grupo de origem,
investimentos múltiplos no membro que migra. Como “migrante exitoso” ele serve ao equilíbrio psíquico
familiar de diversos modos. Pode permitir um arranjo de maior investimento recíproco, permitindo que o
contrato narcísico do grupo, ancorado no valor dado ao migrante exitoso, renda ganhos narcísicos para todo
o grupo. Como contrainvestimento, possui uma função defensiva potente contra o desamparo, mas também
reguladora de angústias relacionadas ao Unheimlich. Ao mesmo tempo, estabelece como interdito, como
pacto denegativo, tudo aquilo que foge desta idealização na experiência do migrante oferecendo, assim, um
“plus” defensivo às angústias oriundas da experiência vivida em território estrangeiro.

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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

Ao narcisismo e à não aceitação de que nem sempre a migração melhorou a vida do migrante se
aliam a culpa que ele sente por ter deixado sua família, seus amigos, seu lugar de pertencimento. Às vezes,
membros da família ou amigos insistem para que ele pague despesas de saúde, moradia, alimentação ou
educação de irmãos ou parentes, traga presentes caros, use roupas que demonstrem que seu status
melhorou, faça cursos universitários, aprenda idiomas, viaje etc. Esta exigência pode funcionar como uma
projeção do desejo narcísico de parentes ou dos pais de ter um suposto filho exitoso; em outros casos, a
extrema pobreza incide para que os pedidos por ajuda sejam frequentes e indispensáveis; a insistência do
êxito pode encobrir a angústia pela situação de perigo real por conta de perseguições, guerras, fome
extrema etc., a impotência diante do entorno caótico no país de origem, e a necessidade vital de que isto
cesse e ou se transforme.
Em certos casos, a dificuldade econômica na qual vivem algumas famílias leva a casos extremos de
denegação, em que a realidade da vida do migrante é desconsiderada e distorcida.
Foi o relato de uma migrante boliviana trabalhadora do ramo de costura que, ao retornar para uma
visita ao seu país de origem, compareceu a um casamento de um parente. Na Bolívia, existe o costume de
oferecer dinheiro aos noivos durante a festa de casamento. Nesse momento, a família e os amigos ao vê-la
ofertar moeda local, perguntaram-lhe com desprezo: “onde estão os dólares? Você ganha muito dinheiro
agora, então não pode colocar pesos bolivianos, tem que lhes dar dólares!!!” O constrangimento tomou
conta, já que esta pessoa tinha uma situação de vida muito precária, tendo migrado inicialmente para
Argentina e depois para o Brasil com o objetivo de ajudar financeiramente sua família, países onde viveu
situações de trabalho análogo à escravidão.3
Esta cena mostra que o mito do migrante exitoso pode funcionar como um aprisionamento, um
pacto denegativo onde a verdadeira situação do migrante não pode ser revelada, exigindo algo que não pode
dar, colocando-a em uma situação humilhante. Esta migrante não conseguiu reagir, inclusive por conta
deste pacto, mas tentou falar sobre seu mal-estar posteriormente. O suposto sucesso financeiro que a família
lhe atribuía seria uma forma de encobrir as dores e o desamparo que ela viveu no processo migratório.
Neste sentido, reafirmamos que o mito do êxito atribuído ao migrante pode funcionar como uma
aliança inconsciente dos membros da família, estabelecendo um pacto denegativo de não falar da situação
real vivida por ele. Seria uma forma de preservar os familiares mais velhos do sofrimento, do desencanto e
da privação, e também, neste caso, da dor vivida por esta mulher, mas à custa da saúde psíquica de todo o
grupo familiar.

3
É de domínio público que as grandes griffes do ramo têxtil terceirizam os trabalhos de costura especialmente a costureiras
bolivianas. As condições de trabalho nas oficinas de costura são deploráveis, com jornadas extenuantes de trabalho,
insalubridade, moradia conjunta ao espaço de trabalho, pagamento abaixo dos valores de mercado, retenção de passaportes por
parte dos empregadores, ameaças etc.

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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

Como explicitado por Kaës, ao se referir à aliança inconsciente entre Freud e Fliess no caso Emma4:
“O pacto entre Freud e Fliess permite verificar que sua aliança contém a representação daquilo que eles
querem precisamente manter não representado” (KAËS, 2014, p. 199).
No caso da migrante boliviana, a representação das condições de trabalho análogas à escravidão se
torna impossível de circular e de ser elaborada no grupo familiar; ao contrário, apoia-se e se articula na
suposta ideia de êxito financeiro da migrante, o que implicaria que ela não precisa de ajuda, e que deveria,
ao contrário, ajudá-los mesmo que isto implique excesso, violência e desamparo.
A cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais, Brasil, é conhecida pela forte migração de
seus moradores para os Estados Unidos. Muitas famílias compartilham esta condição de ter um ou mais
membros fora do país. As casas cujas famílias têm membros que migraram se destacam do resto pelo
tamanho, conservação, pintura, luxo, piscina etc. É a chamada casa dos “gringos”, na verdade dos
brasileiros que emigraram aos Estados Unidos. Muitas crianças têm um ou ambos os pais morando no
exterior.
Muitas crianças, além da casa abastada, exibem roupas, tênis, brinquedos e aparelhos eletrônicos
caros, impossíveis de serem adquiridos no Brasil. Algumas destas crianças, inferimos, podem apresentar
sentimentos ambivalentes: por um lado, o prazer do usufruto de bens que não poderiam ter normalmente,
seja pela condição financeira da família no Brasil, seja pela inexistência destes objetos no lugar onde
moram, o que promoveria um forte destaque em relação às crianças locais; por outro lado, uma diferença
que implica um afastamento parental difícil de suportar, ao conviver com seus pais ocasionalmente e serem
criados geralmente por tios ou avós.
Foi a situação de uma criança mineira, relato apresentado no lV Seminário do NIEM, em 2011 5. A
escola e a professora observaram que o menino não se desprendia, por semanas, de um casaco grosso,
normalmente usado para a neve, presente enviado pelos pais por ocasião de seu aniversário. A forte
temperatura mineira e os olhares dos colegas (de inveja?) pareciam não alterar ou até negar a provável
sensação de calor que ele sentia. Ou, como foi poeticamente descrito na apresentação: a criança parecia
sentir-se abraçada e amparada simbolicamente pelos pais, o casaco parecia restituir sua presença junto a
pele do menino.
Podemos inferir também que a origem e o tipo de casaco mostravam uma estranheza: o menino não
estava lá onde o casaco necessita ser usado para se proteger do frio e, no Brasil, o casaco demonstrava uma

4
Emma é uma paciente de Freud que é operada por Fliess em uma ablação do corneto nasal que seria a causa orgânica (segundo
Fliess) de sua histeria, hipótese à qual Freud adere. A paciente tem problemas pós-operatórios devido ao esquecimento de uma
gaze no seu nariz. Apesar de toda esta imperícia, Freud não consegue reprovar Fliess. O pacto opera para manter a amizade e a
relação homossexual entre ambos.

5 Tratou-se do lV Seminário do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Migrações, realizado de 9 a 11 de novembro de 2011,
na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o título: Implicações da migração na vida escolar dos filhos de migrantes em
Governador Valadares, e autoria de Érika Almeida Christina Gomes de Almeida, Maria Gabriela Parente Bicalho e Sueli
Siqueira.

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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

inadequação ao que ele precisava. Era um casaco estrangeiro de um menino que, em parte, parecia
estrangeiro ao usá-lo, mas que precisava também familiarizar-se com a realidade de condição migratória
vivida pelos pais. Todavia, esse presente-gesto era valorizado pela família que lhe repetia que ele podia ter
objetos caros graças à migração dos seus pais. O preço caro dos objetos também escondia as caras
presenças que provavelmente ele gostaria de ter mais perto.
Consideramos que existia, na família, uma impossibilidade de se falar da falta dos pais, tanto para o
filho como para a avó, e que os presentes caros não poderiam substituir. A família estabelece, assim, um
pacto denegativo que expulsa a tristeza e o questionamento para fora do espaço familiar, representando nos
objetos caros a ausência, o amor e a lembrança dos pais. Ou nas palavras de Kaës: “O pacto numa crença
comum protege da desilusão e do luto do objeto da crença” (2014, p. 119).
Interessante observar que esta negação aparece fortemente na escola e no grupo de iguais, fora da
família. É assim como a professora percebe que deve ser cuidadosa, mas, ao mesmo tempo, que deve
intervir sugerindo ao seu aluno que tire o casaco por ser um dia muito quente. Com esta ação, na nossa
opinião, ela retira um véu e assume uma interdição, interferindo na representação casaco=pais que
estava condensada.
O menino resiste por vários dias, mas acaba aceitando e deixa o casaco de lado. A partir deste gesto
que separa o objeto do sujeito, consideramos que talvez possa emergir uma falta e uma fala que expresse
sua estranheza, dor, abandono, desamparo e raiva. Esta descontinuidade colocaria em cena um trabalho
psíquico do menino que significaria lidar com a ausência dos pais e a escolha que implicou a migração
deles, e de não o levar para os Estados Unidos. A família provavelmente precisaria investir em outras
formas representacionais e relacionais mais adequadas à falta do filho.

Palavras Finais

O presente texto buscou situar a clínica da migração no cruzamento de considerações sociopolíticas


e psíquicas. Retomou assim alguns aspectos importantes dos processos de deslocamentos humanos na
atualidade, com ênfase na existência de assimetrias econômicas e políticas entre os países na configuração
atual do fenômeno da globalização.
Sublinhou alguns conceitos psicanalíticos de importância histórica e recorrente na abordagem das
migrações, partindo da ideia de uma dupla estranheza: a do estranho-familiar acrescida da estrangeiridade
dos migrantes. Paralelamente, o desamparo constitutivo também é colocado em xeque na travessia
migratória.
Buscou-se, assim, configurar de modo mais claro o problema, indicando a necessidade de
articuladores teórico-clínicos que nos permitam operar na clínica com migrantes no cruzamento entre a
dimensão sócio-histórica da migração e sua dimensão de travessia psíquica.

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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

É neste contexto que se evocam aportes do trabalho do psicanalista René Kaës para pensar a
realidade psíquica comum e partilhada, tanto por famílias e grupos como pelos representados por
organizadores socioculturais. A partir desta inter-relação entre fenômenos sociais e psiquismo, propõe-se a
hipótese do “mito do migrante exitoso” como importante organizador sociocultural do processo de
migração de grande relevância clínica. A nomeação ambivalente do significante “êxito” tentou
problematizar as expectativas familiares e sociais que os sujeitos migrantes suscitam ao deixar o país de
origem em busca de um espaço que condense a ideia de terra prometida ou paraíso perdido. A ideia de êxito
se assenta no objetivo de dar um destino diferente às condições de vulnerabilidade, perseguições e
exclusões que, muitas vezes, os migrantes enfrentam.
A análise das vinhetas clínicas objetivou a problematização das construções teóricas propostas a
partir do “mito do migrante exitoso” e sua relação com as alianças inconscientes e os pactos denegativos,
operadores clínicos propostos por René Kaës. Certamente, outros trabalhos deverão se seguir para melhor
delinear esta proposta, ao mesmo tempo em que testarão sua utilidade em diferentes contextos clínicos.

Referências

BAUMAN, Z. Turistas e vagabundos. In: Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro:


Zahar, 1999. p. 85-110

CARDOSO, C. C. Trabalho e mobilidade geográfica: as contradições dos debates sobre a questão


migratória na contemporaneidade. Epígrafe, São Paulo, v. 4, n. 4, p. 25-43, 2017.

DEBIEUX ROSA, M. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São


Paulo: Escuta, 2016.

FIGUEIREDO, L. C. A questão da alteridade nos processos de subjetivação e o tema do estrangeiro. In:


KOLTAI, C. (org.). O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 1998.

FREUD, S. (1919) O estranho. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

________. (1926 [1925]) Inibições, sintomas e ansiedade. In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

KAËS, R. Différence culturelle et souffrances de l’ identité. Paris: Dunod, 1998.

————. El grupo y el sujeto del grupo. Elementos para una teoría psicoanalítica del grupo. Buenos
Aires: Amorrortu Editores, 2006.

————. As alianças inconscientes. São Paulo: Ideias & Letras, 2014.

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Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como
organizador sociocultural

————. O aparelho psíquico grupal. São Paulo: Ideias & Letras, 2017

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PROJETO KAERU: RELATO SOBRE A EXPERIÊNCIA DE 10 ANOS NO ATENDIMENTO ÀS
CRIANÇAS RETORNADAS DO JAPÃO

Kyoko Yanagida Nakagawa1

O movimento dekassegui

Dekassegui2, em japonês, significa "sair de sua terra em busca de trabalho”. Esse termo foi utilizado
para denominar o movimento observado na comunidade nikkei (japoneses e seus descendentes),
inicialmente de maneira discreta, a partir de meados da década de 1980.

Esse chamado “movimento dekassegui” atingiu seu pico em 1991 após a reforma da Lei de Controle
de Imigração Japonesa de 1990. Na época, um crescimento sem precedentes da economia japonesa,
conhecida como “bubble keizai” (“economia de bolha”) possibilitou a exportação, a preços competitivos,
de produtos japoneses – sobretudo automóveis e equipamentos eletrônicos – suplantando os Estados Unidos
na liderança mundial.

Embora possua algumas peculiaridades, esse movimento deve ser analisado num contexto maior, o
das migrações internacionais, incluindo as grandes transformações no mundo do trabalho decorrentes da
globalização e suas consequências sob o ponto de vista social, cultural, econômico e educacional. Segundo
a ONU, se em 2000 a porcentagem das pessoas que migraram era de 2,8%; em 2017 essa taxa chegou a
3,4% representando um aumento de 49% envolvendo 258 milhões de pessoas em todo o mundo (incluindo
os refugiados3).

Assim, migrações - tanto legais como ilegais -, ocorrem em grande escala, sendo que a partir da
década de 1980, o fluxo de brasileiros para o exterior cresceu aceleradamente (Castro, 2001). Esses

1
Psicóloga clínica, formada pelo IPUSP atuando em consultório desde 1980, mestrado e doutorado pela PUCSP, Idealizadora e
coordenadora do Projeto Kaeru desde 2008 em, São Paulo.
2
O termo dekassegui foi usado originalmente para designar os migrantes japoneses que viviam e trabalhavam nas regiões
agrícolas situadas ao norte e ao sul do Japão, e que, nos períodos de entressafras (inverno), saíam de suas terras em busca de
trabalho nas regiões centrais e industrializadas como Tóquio e Osaka. Na comunidade nikkei, essa palavra tem sido usada para
designar as pessoas que saem do Brasil para trabalhar em outros países, principalmente para o Japão. Embora no dicionário
“Aurélio” de língua portuguesa já conste a palavra “decasségui” para designar os descendentes de japoneses que vão trabalhar no
Japão; usarei a palavra na sua forma original, em grifo, acrescentando-se o s quando me referir no plural para não restringir o
sentido da palavra apenas aos descendentes de japoneses, forma essa usada pela imprensa brasileira no Japão e entre os próprios
trabalhadores.
3
Vide relatório ONU. Disponível em:
<http://www.un.org/en/development/desa/population/migration/publications/migrationreport/docs/MigrationReport2017.pdf>.
Acesso em: 13 de out. 2019.
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Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

números, ainda segundo o MRE, apontaram para uma queda, após a crise econômica mundial de 2008 4,
embora ultrapassasse ainda a casa dos três milhões5. Em relação ao Japão, os números do Ministério da
Justiça apontam novamente para um aumento de brasileiros, a partir do final de 2015 6. Lembremos também
que, embora em pequeno número, está liberado o visto de longa permanência para yonseis na qualidade de
working holiday que entrou em vigor em 01.07.20187.

Esse movimento de trabalhadores nikkeis ao Japão teve como causa principal a difícil situação
econômica brasileira associada à falta de mão-de-obra no Japão (que era acentuada na época, embora
persista nos dias atuais). Com o incremento da exportação, a indústria japonesa aumentou
consideravelmente sua produção e, apesar de toda a modernização tecnológica, o país deparou-se com a
falta de mão-de-obra, especialmente da não qualificada, no setor das pequenas e médias empresas.

Esse déficit estava concentrado principalmente nos trabalhos chamados de “3K”, que os próprios
japoneses não queriam fazer: kiken, kitsui e kitanai que significam, respectivamente, “perigosos”,
“pesados” ou “árduos” e “sujos”. Posteriormente, foram acrescentados dois novos “K”: kibishii e kirai, isto
é, trabalho exigente e detestável. Em geral, esses trabalhos acabaram sendo destinados a imigrantes que
estão à margem da sociedade ocupando postos menos qualificados8.

Na tentativa de solucionar a carência de mão-de-obra, o Japão trouxe de volta os japoneses


residentes em outros países ou aqueles com dupla nacionalidade, sobretudo do Brasil, onde eram em maior
número. Acreditava-se que, por serem japoneses, se readaptariam mais facilmente, não teriam problemas de
comunicação verbal e, portanto, a recepção local poderia ser mais amistosa.

Essa medida não foi suficiente para atender à demanda e o governo japonês “abriu as portas” para a
entrada também dos nisseis e sanseis (segunda e terceira geração) que, na realidade, desde o início já
tinham aderido ao movimento dekassegui. Em junho de 1990, as mudanças na lei de imigração japonesa
facilitaram a entrada e a permanência desses descendentes, legalizando-se, assim, sua estada e atividades a
serem desenvolvidas.

4
Dados do MRE de Brasileiros no Mundo – Estimativas de setembro de 2009 apontavam para uma diminuição de
aproximadamente 700 mil brasileiros em comparação com os dados de julho de 2008. Mas, em 2016 contabilizaram 3.083.255
brasileiros espalhados pelo mundo.
5
Disponível em: <http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/a-comunidade/estimativas-populacionais-das-comunidades>.
Acesso em: 13 de out. 2019.
6
Disponível em: <http://www.moj.go.jp/housei/toukei/toukei_ichiran_touroku.html>. Acesso em: 13 de out. 2019.
7
Vide: IPC: Empregos, edição 349, de 9 de jun. 2018. Sobre o visto de yonseis, vide Ministério da Justiça. Disponível em:
<http://www.moj.go.jp/nyuukokukanri/kouhou/nyuukokukanri07_00167.html>. Acesso em: 13 de out. 2019.
8
Atualmente os próprios japoneses, especialmente mulheres, em certos tipos de serviços, designam a sua função como sendo de
7”K”s. Por volta de 2005, o “kitanai” foi se convertendo em “kaerenai” (“não conseguir voltar para casa”, no sentido de não ter
hora para voltar), Foram acrescidos aos poucos, com pequenas variações, outros “K”s: “Kisokuga kibishii” (“as regras são
rigorosas”), “kyûkaga torenai” (“não conseguir tirar férias”), “keshôga noranai” (“a maquiagem não pega”, no sentido da pele
ficar judiada), “kekkon dekinai” (“não conseguir se casar”, lembrando que na sociedade japonesa, o cuidado com a casa
geralmente é destinada para as mulheres).

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Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

No entanto, na época, diante das leis brasileiras, a intermediação dessa mão-de-obra era considerada
ilegal, situação rapidamente solucionada pelo governo brasileiro com pequena alteração no texto do artigo
206 do Código Penal. Nos anos de 1990, o Plano Collor, além de gerar a falta de confiança e segurança na
economia e crescimento do desemprego, elevou a inflação anual aos quatro dígitos. Em meio a essa instável
situação, muitos descendentes de japoneses acreditaram que a saída seria trabalhar no Japão, já que os
ganhos salariais eram maiores.

No início do movimento, a maioria dos brasileiros seguia sozinho, sem familiares, com intenção de
lá permanecer por um ou dois anos. Com o tempo, a esposa e filhos também seguiram ao Japão. Essa
mudança se deveu a vários fatores, tais como o peso da solidão, a crença na importância de manter a união
familiar e, principalmente, com o fim da “bubble keizai” (economia de bolha). Este último provocou a
redução drástica de horas extras, diminuição salarial e/ou outros tipos de benefícios, obrigando-os a
prolongar sua estada, visando atingir os objetivos propostos. Na ocasião, imaginou-se que poderia ser uma
experiência enriquecedora para as crianças, reforçada pela chance de conhecer e dominar uma nova língua e
cultura, de fazer novos amigos, entre outros.

Desde então, têm surgido inúmeros problemas, seja por despreparo dos que vão quanto da parte
receptora, seja por má vontade política, delegação inadequada de responsabilidades, etc. Na composição
familiar, os extremos economicamente não ativos acabam se ressentindo mais; isto é, as crianças e os
idosos. Estes, na maioria dos casos, se veem envolvidos passivamente, enfrentando as consequências que
estão relacionadas às questões afetivo-emocionais, educação, saúde, abandono, discriminação etc.

As dificuldades de comunicação decorrentes das diferenças de língua e cultura agravam as situações


já complicadas provocando, muitas vezes, o isolamento social e a formação de espaços fechados da
comunidade brasileira no seio da sociedade japonesa (os chamados “guetos”). Trata-se pois, de uma
situação de vulnerabilidade na inserção social onde – apesar de os indivíduos apresentarem vínculos com o
mundo do trabalho e relativo acesso a bens e serviços – há um déficit de integração, especialmente em
relação à moradia, vida cultural e desenvolvimento educacional. Em síntese, quer dizer que a coexistência
na sociedade é permitida, mas com a privação de certos direitos e de algumas formas de participação na
vida social japonesa.

Basicamente, os brasileiros, como outros estrangeiros, foram ao Japão para trabalhar nas
subcontratadas das grandes empresas localizadas principalmente nas regiões de Aichi (Toyota e Toyohashi),
Shizuoka (Hamamatsu e Shizuoka), Gumma (Ota e Oizumi), Kanagawa e Tóquio.

Os dados mais recentes, de dezembro de 2018, do Ministério da Justiça Japonesa apontam 201.865
brasileiros residindo no Japão (sem contar os de dupla nacionalidade) e dados ainda não completos de junho
de 2019 apontam para outro aumento, chegando a 212.044 mostrando uma tendência novamente para o
aumento. Mas, em anos anteriores houve uma redução de mais de 140 mil pessoas em comparação ao pico
atingido em dez/2007 quando havia aproximadamente 330 mil brasileiros, antes da grande crise econômica

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Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

de 2008. Em 2015, o número de brasileiros no Japão chegou a um pouco mais de 173 mil após o qual, vem
mostrando aumento devido à crise política e econômica de nosso país. A proporção de crianças e
adolescentes entre os brasileiros residentes no Japão sempre oscilou em torno de 20% do total. Assim,
embora não tenhamos um número exato da população infanto-juvenil que retornou ao Brasil, podemos
inferir que seja algo em torno de 28 mil.

O Projeto Kaeru

Pudemos observar em nossos trabalhos anteriores e em diversas pesquisas relacionadas ao público


infanto-juvenil envolvido nesse movimento migratório, que as crianças retornadas encontravam inúmeras
dificuldades de (re)adaptação à sociedade brasileira, bem como ao sistema educacional, tornando-as
altamente vulneráveis à exclusão social e educacional. No entanto, há alguns anos, observamos mudanças
no perfil dessa população. Embora cidadãs brasileiras, são nascidas no Japão e muitas delas não conhecem
o Brasil; chegam aqui, não na qualidade de retornadas, mas como novos imigrantes estrangeiros.

Diversas dificuldades são apontadas para (re)inserção das crianças. Podemos perceber que inúmeras
variáveis se inter-relacionam, revelando que cada criança apresenta uma problemática particular, ou seja,
seu estado de retorno ao Brasil depende muito da qualidade de sua estada no Japão. Alguns pontos em
comum podem ser citados, tais como: dificuldade com o idioma, especialmente a linguagem além do
básico; muitas delas sequer dominam o mínimo do português, nem mesmo para a vida cotidiana.

No perfil dessas crianças é recorrente o estresse resultante dos esforços para lidar com as enormes
diferenças culturais e questões sociofamiliares. Esses são fatores importantes e interdependentes na vida
delas: a fase em que migrou para o Japão, o tempo de estada, a cidade, a infraestrutura de recepção
existente no local, o tipo de escola que frequentou (ou desistiu de frequentar), as interrupções escolares e as
mudanças de domicílio, os relacionamentos interpessoais, a estrutura e dinâmica familiar, entre outros.
Enfim, são dificuldades particulares vividas no Japão por cada criança, que são somadas ao seu processo
pessoal de desenvolvimento.

As crianças brasileiras, especialmente aquelas que estão no ensino fundamental, apresentam um


quadro que, no Japão, costuma ser chamado de “double limited” 9 isto é, não possuem domínio em nenhum
dos dois idiomas. Apesar de perder a capacidade de comunicação em sua língua materna, não conseguiu
proficiência de japonês, apresentando dificuldade para acompanhar as aulas nas escolas japonesas, situação
que se agrava em séries mais avançadas quando é requerida a capacidade de operar com o pensamento
abstrato.

9
Melhor abordagem do tema em um artigo de YANO (2006).

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Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

Nas escolas japonesas, a falta de conhecimento da língua submeteu os alunos brasileiros numa
condição de “deficientes”, vistos e tratados como incapazes. Observou-se que, em muitos casos, são
alfabetizados em livros do nível primário básico, mesmo frequentando séries bem acima. São situações que
levam à sensação de impotência e insegurança e comprometem seriamente a autoestima, já bastante
abalada.

Assim, com todos os adultos ao seu redor trabalhando nas fábricas, esses jovens, sem conseguir
vislumbrar melhores perspectivas ao seu futuro, têm preferido abandonar o “vir a ser”, substituindo-o pelo
desejo de “ter”. Por conta disso, largam os estudos e optam pelo trabalho nas fábricas, garantindo o ganho
semelhante ao de seus pais e, rapidamente, o desejo de ter (consumo de bens materiais).

Outro questionamento constante se refere à melhor escolha para as crianças brasileiras no Japão:
escola para brasileiros ou escolas públicas japonesas? Na pesquisa de doutorado realizada pela autora foi
possível observar que a maioria dos pais optou por matricular seus filhos nas escolas japonesas, com
exceção daqueles que tinham firme propósito de retornar ao Brasil. Os motivos alegados para a escolha
raramente se referiam à qualidade de ensino mas, ao fato de a escola japonesa ser menos onerosa, aulas em
período integral ou localizar-se nas proximidades de suas residências.

A maioria das crianças que frequentava as escolas para brasileiros tinha desistido das escolas
japonesas por diversos motivos: ijime10 e outras discriminações, dificuldades com o idioma, de
acompanhamento das aulas e de relacionamento com colegas e professores, entre outros. Acrescentam-se
ainda, dúvidas em relação à adequação do método de ensino para estrangeiros e materiais pedagógicos
disponíveis.

As escolas para brasileiros, que teriam chegado a quase 110 estabelecimentos, no Japão funcionam
como empresas privadas e a maioria depende exclusivamente de mensalidades pagas pelos alunos. Por essa
razão, com a crise mundial que assolou o país e o consequente desemprego dos pais, vários desses
estabelecimentos, incluindo os considerados de grande porte por manter várias unidades, encerraram suas
atividades.

Para muitas famílias, o acesso a essas escolas não é possível por ser onerosas, estar localizadas
apenas em pontos de grande concentração de brasileiros, e a maioria adotar o regime de meio período.
Embora sejam alvo de críticas bastante severas e sua importância questionada por muitos, elas não deixam
de ser uma opção especialmente para aqueles alunos que não conseguiram se adaptar às escolas japonesas.

A questão das crianças que estão fora da escola no Japão, sempre volta à tona. Com a crise de 2008,
o desemprego atingiu “em cheio” os dekasseguis que ficaram sem condições de custear os estudos de seus
filhos nas escolas brasileiras. Na ocasião, imaginou-se que, em consequência disso, deveria aumentar o

10
Ijime é o chamado bulling. No Japão é um problema que ocorre não apenas com brasileiros/estrangeiros, mas também, entre os
próprios japoneses.

89
Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

contingente de brasileiros nas escolas japonesas, especialmente após as medidas como o “Projeto Arco
Iris”, do Ministério da Educação Japonesa, visando inserir essas crianças egressas no sistema educacional
japonês. Mas isso não aconteceu.

Como foi mencionado anteriormente, a maioria delas tentou ir para escola japonesa e, por diversos
motivos, essa inserção não ocorreu. Por conta disso, optou-se pela escola brasileira ou nenhuma delas.
Assim, com a crise, elas não voltariam, simplesmente, para as escolas japonesas... Acreditamos que, quando
a criança deixa de frequentar a escola não ocorre propriamente um processo de evasão, mas a exclusão na e
da escola. Começa sendo excluída na escola e depois acaba sendo excluída da escola, assim essa reinserção
não ocorre facilmente...

Diante das evidências cada vez mais fortes da necessidade de estabelecer uma infraestrutura de
recepção desses alunos em seu retorno ao Brasil, surgiu a proposta de um projeto visando criar o “tripé”
família, escola e criança que servisse de base para seu desenvolvimento integral.

Assim, “reeditou-se” o “Projeto Kaeru”,11 visando atender


as crianças regularmente matriculadas em escolas públicas de
ensino fundamental na cidade de São Paulo.

Esse nome foi escolhido, pelo fato de que, em japonês, a


palavra kaeru, dependendo do ideograma utilizado, possui pelo
menos três significados distintos, todos eles relacionados ao nosso
trabalho.

Kaeru, quer dizer, “voltar”, “transformar” e “sapo”, animal que sofre grande metamorfose até
chegar à idade adulta (assim como as crianças) e vive, durante a vida, em dois ambientes distintos: terrestre
e aquático. Carrega, portanto, o nosso desejo de que as crianças também sejam capazes de viver e transitar
pelas duas culturas e/ou ambientes distintos. Esse trabalho tem sido oferecido gratuitamente, dentro das
escolas municipais e estaduais de São Paulo.

Iniciamos nossas atividades em junho de 2008, em meio às comemorações do Centenário da


Imigração Japonesa ao Brasil, graças à iniciativa de uma ONG patrocinada pela Fundação Mitsui Bussan do
Brasil. Se o ano de 2008 começou com as comemorações, terminou com uma crise de abrangência mundial.
Após a quebra do Banco Lehman Brothers, o Japão mergulhou numa crise econômica muito intensa e, em
alguns locais de grande concentração de dekasseguis, a taxa de desemprego entre os estrangeiros chegou a
60% (segundo noticiários japoneses, documentários da NHK e pesquisas envolvendo brasileiros veiculados
em sites de brasileiros no Japão). Esses fatos geraram o retorno repentino e forçado de muitos brasileiros e,

11
Sobre essa experiência com o Projeto Kaeru atual, foi lançado em 19 de agosto de 2010, um livro com relato detalhado deste
trabalho, com distribuição gratuita, disponível no site para download. Os interessados podem acessar o
<www.projetokaeru.org.br>. Nesse ano de 2018, completados 10 anos, um livro relatando a experiência com maiores detalhes
está sendo preparado, já em fase de lançamento. Serão também disponibilizados no site em forma de e-book também.

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Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

consequentemente, de seus filhos em idade escolar, aumentando a demanda para o Projeto Kaeru - muito
além do que estávamos aptos a responder.

O Japão, logo no inicio de 2009, lançou diversas medidas de apoio a estrangeiros, seja por meio do
Ministério de Saúde, Trabalho e Bem-Estar Social ou do Ministério da Educação, liberando consideráveis
verbas com o intuito de amenizar os impactos causados pela crise, seja para “auxiliar o retorno” ao país de
origem seja aos que permaneceram no país.

Registramos a procura de informações/orientações por parte de pais e responsáveis pelas crianças –


também de alguns coordenadores, professores e até mesmo diretores das escolas municipais e
pesquisadores japoneses. Isso ocorreu especialmente no segundo semestre de 2009 com a ida do
coordenador (autor) ao Japão para o “Seminário sobre o Projeto Kaeru” promovido pelo Setor de
Responsabilidade Social da matriz Mitsui Bussan, de Tóquio, em locais de grande concentração de
brasileiros. Na ocasião, os contatos com o coordenador foram amplamente divulgados, por meio de
palestras, noticiários locais (rede de rádio, TV, e jornais japoneses e brasileiros), sites e revistas de
circulação no país, bem como na imprensa étnica no Brasil.

Mesmo passado esse período crucial, continuamos recebendo os retornados regularmente. Além de
prestar atendimento às crianças, pais e professores nas escolas, também atendemos via e-mails, telefones e
pessoalmente os que nos procuram na sede. Os seminários no Japão são realizados anualmente em diversas
cidades, envolvendo aquelas que possuem alta concentração de brasileiros, ou não, com baixa presença
deles e, exatamente por isso, mais carentes de assistência. Também dialogamos e mantemos interlocução
com as autoridades locais, com associações e prefeituras, com ONGs e OSCIPs, com escolas brasileiras e
japonesas, com secretarias de educação e até mesmo com os diretores dos ministérios japoneses,
especialmente os do Ministério da Educação; dos Negócios Estrangeiros; do Trabalho, Saúde e Bem-Estar
Social; bem como do Consulado e Embaixada Brasileira e, especialmente, com os brasileiros residentes
nessas localidades. Em 2018, esse seminário completou 10 anos.

O perfil das crianças do Projeto Kaeru e suas dificuldades

A maioria das escolas, em São Paulo, com alunos retornados do Japão afirma que eles “não
apresentam dificuldades”, ou “pequenas dificuldades” que podem ser rapidamente superáveis, como se isso
pudesse acontecer “automaticamente” pelo simples fato de frequentarem as aulas. Aqueles apontados como
sendo “portadores de dificuldades”, são os que criam dificuldades aos professores. Aqueles que não
perturbam as aulas são quase “invisíveis” nas salas, estão apáticos ou mesmo isolados, ou seja, não causam
problemas ao professor e, por isso, vistos como crianças “sem dificuldades”.

Na realidade, são exatamente esses casos que merecem atenção aos olhos dos profissionais da área
de psicologia e psicopedagogia. São crianças que nem ao menos conseguem “gritar por socorro”, sofrem

91
Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

caladas a dor da exclusão e do não pertencimento, não recebem atenção e não requerem isso por elas -
muitas vezes, até por terem desistido de tudo visto que se sentem realmente insignificantes e sem
importância. A imagem pré-concebida de que os “japoneses” são “esforçados” e “estudiosos” fazem com
que os professores acreditem que, na existência de alguma dificuldade, também será superada por si só.

Desde o início de 2009, o “Projeto Kaeru” teve de ampliar o atendimento, adaptando-se à nova
demanda. Com o retorno “forçado” ao país, muitas famílias não tiveram tempo hábil para preparar-se
emocionalmente, dedicar-se ao aprendizado do idioma português, buscar recolocação profissional ou, até
mesmo resolver a questão de moradia. Mesmo aqueles alunos aparentemente bilíngues sentem dificuldades
para acompanhar a grade curricular, especialmente nas séries mais avançadas, pelo simples fato de não
possuir o domínio razoável dos idiomas. Assim, quando os conteúdos exigem mais do que mera
memorização ou repetição de dados, passando a exigir abstração e raciocínios mais complexos, fica
evidente o quão se deixou de desenvolver adequadamente a capacidade cognitiva, fato observado até
mesmo entre os que retornaram há mais tempo.

O Projeto Kaeru, desde 2009, veio atendendo em média 70 alunos ao ano, em suas respectivas
escolas, para onde os profissionais da equipe técnica se deslocam semanalmente visando dar apoio
psicopedagógico e psicológico às crianças e seus familiares. Também há casos excepcionais de
atendimentos.

Como a maioria das crianças não é, de fato, retornada, pois nasceu e cresceu no Japão, frequentou
escolas públicas japonesas, a adaptação se dá como se fossem novos migrantes. Assim, a necessidade de,
rapidamente, aprender a língua portuguesa, muitas vezes são incentivadas a “esquecer” ou “deixar de lado”
o idioma japonês. Diante da urgência de tomar alguma medida para auxiliá-las, uma das providências foi a
criação de uma sala de aula para ensino do português, incentivando seu aprendizado, sem “negar” os
conhecimentos adquiridos nem proibir o uso da língua japonesa.

Infelizmente, o nosso atendimento estava restrito às crianças que vinham até a nossa sede visto que
não tínhamos condições de deslocar um professor alfabetizador para as escolas.

Também adotamos outra medida - a criação de um “espaço de convivência”. Embora os encontros


sejam realizados mensalmente, o nosso intuito é o de oferecer algumas oportunidades de inserção cultural e
social.

Retornadas recentemente, elas falam basicamente o japonês e, certamente, nas escolas brasileiras
não encontram interlocutores. Mesmo que exista outra criança nas mesmas condições, muitas vezes nem
chegam a tomar conhecimento de sua existência. Outras vezes, aquelas que aos poucos aprendem a falar o
português, um pequeno sotaque ou erros de pronúncia é motivo para chacota dos colegas o que faz com que
retornem ao mutismo anterior. Mesmo que isso não aconteça, a falta de assuntos, interesses e vivências em
comum, também são motivos para se sentirem solitários e desajustados.

92
Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

Assim, uma vez ao mês, promovemos um encontro, que denominamos de “workshops”, quando as
crianças e seus familiares são recebidos com uma atividade especial, geralmente uma aula de artesanato ou
algum evento cultural, seja referente à cultura japonesa ou uma interlocução com outras culturas (afro,
europeia, indígena etc.). Assim, promovemos numa situação de total descontração, em que todos
aproveitam para conversar sobre suas vivências e experiências em comum, mesmo em língua japonesa,
compartilhando o lanche preparado por nossos voluntários.

Constatamos que, vivendo no Japão, essas crianças não tinham acesso a atividades culturais como
recitais, museus e apresentações folclóricas e artísticas. Assim, na medida do possível, o Kaeru providencia
esse acesso por meio de parceria com outras entidades e em programações culturais gratuitas. Com isso,
oferecemos condições para que se apossem dos espaços públicos da cidade e, ao mesmo tempo, conheçam
um pouco da história local, do seu país, e façam uso dos recursos disponíveis na comunidade local.

Tomando como referência nossa experiência com esse projeto, e de atendimento às crianças tanto
em nossa sede como no Japão, é possível chegar a uma série de conclusões, entre elas, a falta de atenção à
educação infantil. Como resultado disso, constatamos que muitas delas receberam pouca estimulação,
adquiriram pouco vocabulário, desenvolveram poucas habilidades, inclusive motoras, e não alcançaram o
nível desejado de desenvolvimento emocional e cognitivo.

Ao mesmo tempo, a falta de participação dos pais nesse processo de desenvolvimento pode ser
apontada como fator crucial. Porém, se considerar as jornadas de trabalho a que estão submetidos no Japão,
atuando como mão-de-obra não qualificada, de nada adianta cobrar apenas deles. Faz-se necessário criar
mecanismos para amenizar esses problemas, tais como orientação e formação dos responsáveis que
convivem diretamente com essas crianças.

Em nossos atendimentos utilizamos materiais lúdicos (jogos cooperativos e de competição, livros,


materiais gráficos e digitais, técnicas expressivas e projetivas), conforme a necessidade de cada grupo, de
cada criança e o momento da dinâmica de atendimento. Priorizam-se os aspectos psicopedagógicos,
considerando-se os resultados das avaliações e entrevistas e os desejos das crianças naquele momento.

São enfocadas também as questões das diferenças culturais, disponibilizando-se materiais bilíngues
e jogos comuns aos dois países. Procuram-se mostrar as diferenças entre os dois países, sem estabelecer
juízo de valores, e incentiva-se a preservação dos conhecimentos adquiridos no Japão, especialmente o
idioma. Procura-se estimular a capacidade de transitar em duas culturas distintas, incluindo os dois idiomas,
e motivá-las para se adaptar ao novo e desconhecido. Afinal, acreditamos que isso é decorrente de
processos ativos fundamentados unicamente na vontade delas.

Em alguns casos, é possível observar que a interação social ocorre de forma bastante superficial. Em
decorrência de suas vivências, muitas delas apresentam dificuldades para estabelecer vínculos afetivos,
colocando-se de forma mais defensiva em suas relações. A maioria apresenta sinais de insegurança,

93
Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

sentimentos de inadequação, de impotência, e tendência ao isolamento e “desinteresse” de seu entorno.


Acreditamos que, além das diferenças culturais, no pano de fundo destaca-se a complexa dinâmica familiar.

É interessante perceber que, muitas das dificuldades apresentadas, poucas estavam relacionadas à
aprendizagem em si. Elas nos remetem aos primeiros estágios de desenvolvimento da criança, tais como:
educação nos primeiros anos de vida, adequação da estimulação recebida, recepção do meio em que
conviveu e aquisição da linguagem e inserção cultural, como mencionado, sobre a questão da Educação
Infantil.

Com a atual situação do país (Brasil), complicada em termos políticos, econômicos e sociais,
começa a surgir, novamente, um movimento de retorno ao Japão. No Seminário Kaeru em 2015 foi possível
observar, no Japão, um aumento gradativo de brasileiros, mesmo em cidades onde outrora a presença não
era marcante devido à existência de empresas de grande porte que fornecem peças para multinacionais. Em
meio a esse cenário, o que nos surpreendeu são os dekasseguis que estão partindo para o Japão pela
primeira vez. Será, de fato, uma retomada desse movimento migratório?

Pesquisa sobre os diagnósticos de TEA e outros distúrbios de desenvolvimento

De alguns anos para cá, uma questão tem preocupado e mobilizado muitos grupos que atendem os
brasileiros no Japão, incluindo o Kaeru. Trata-se do alto índice de diagnóstico de distúrbios de
desenvolvimento entre as crianças brasileiras.

Por volta de 2014, começou circular a informação que, entre as nossas crianças, havia um número
considerável delas com diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista). Antes disso, em 2013 ouvia-
se que, em um lugar ou outro, havia escolas com elevado número de “autistas”, especialmente nas primeiras
séries. Recebemos um e-mail da então presidente da AAVP (Associação Autismo Vencendo Preconceito)
solicitando ajuda e relatando que na região de Miyoshi (próximo à cidade de Toyota, na província de Aichi),
Hekinan e Okazaki havia mais de 100 crianças brasileiras com esse diagnóstico. Como não recebiam
orientações do que poderia - ou deveria ser feito - e não sabiam como proceder, os pais se uniram e
fundaram essa entidade para, juntos, encontrar alguma “luz”. Mas, na época, só se encontravam para
“chorar”, falar de suas angústias e fazer alguma refeição. Assim, surgiu a solicitação que, na ocasião do
seminário Kaeru no Japão, participasse de uma reunião da entidade para fornecer alguma informação ou
orientação para os pais. A demanda foi atendida em 2014 e, desde então, temos mantido esse canal de
comunicação.

Na época, fomos informados que, numa das cidades, havia uma escola em que a classe especial
tinha presença maciça de crianças brasileiras. Durante debate com representantes do comitê educacional e
professores, foi mencionado que, no ano seguinte, os brasileiros chegariam a 100% dessa classe especial,

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Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

afirmação essa que nos suscitou indignação e dúvida: naquela cidade não havia nenhum aluno japonês com
alguma deficiência? Por que só os estrangeiros seriam deficientes?

Diante disso, decidimos sondar um pouco sobre as outras regiões, mesmo porque estavam
começando a surgir entidades de apoio e assistência a essas “autistas” com determinadas propostas
terapêuticas, até mesmo com a presença de alguns profissionais brasileiros ou de atendimento exclusivo a
brasileiros.

Visitando as escolas públicas japonesas nas cidades de grande concentração de brasileiros e focando
um pouco nas chamadas “classes especiais”, pudemos observar um número significativo de crianças
estrangeiras/brasileiras nelas. Assim, membros do ABIC – Action for a Better International Community
(OSCIP incumbida pelas atividades do Kaeru no Japão, especialmente para organizar o Seminário Kaeru
anual) fizeram um levantamento da proporção das crianças estrangeiras/brasileiras nessas classes em
diversas cidades de grande concentração de brasileiros por meio de amostragem (2015, 2016 e 2017 quando
abrangeu uma amostra bem maior).

Os resultados registrados pelo ABIC, de 2015, quando foram sondadas as classes especiais de 7
escolas de 5 diferentes províncias, apontaram que a proporção de japoneses nas classes especiais em relação
à população total de nipônicos da escola oscilava de 0,75% a 1,82% com uma média de 1,48%, enquanto
que a mesma proporção entre os estrangeiros/brasileiros estava entre 4,41% a 12,84% numa média de
6,15%. Em 2016 foram pesquisadas 9 escolas das mesmas 5 províncias e os resultados foram: média de
2,17% para os japoneses e 5,94% para os estrangeiros/ brasileiros12.

No ano de 2017, ficamos sabendo informalmente que o próprio Ministério da Educação Japonesa
fez um levantamento em todas as escolas com alunos estrangeiros nas cidades que fazem parte do
Shujutoshikaigi13 e, embora esses dados não tenham sido divulgados, o fato é que os números encontrados
não foram muito diferentes dos já registrados.

Os resultados do ABIC estão sendo divulgados na mídia japonesa e em outros meios sociais - fato
que vem causando certo desconforto junto às autoridades japonesas, especialmente dos representantes dos
comitês educacionais que, nesse momento, buscam os “culpados” que forneceram os dados.

Nesse meio tempo, desde 2016 temos ido ao Japão para pesquisas sobre o assunto, especialmente
para ver como (que instrumentos são usados) e quem faz as avaliações e diagnósticos de nossas crianças.

12
Dados amplamente divulgados na imprensa japonesa em abril de 2018. Vide Kyodo News. Disponível em:
<https://www.47news.jp/2327668.html>. Acesso em: 13 de out. 2019. Vide Asahi Shinbum. Disponível em:
<https://www.asahi.com/articles/ASL4T43HKL4TUHBI01G.html>. Acesso em: 13 de out. 2019. Dados mais detalhados com a
ABIC.
13
Shujutoshikaigi é um encontro que ocorre anualmente, desde 2000, em alguma cidade de grande concentração de estrangeiros
quando os representantes dos governos locais e prefeitos, bem como os representantes da comunidade estrangeira discutem as
questões consideradas relevantes, buscam propostas e muitas vezes emitem declarações conjuntas de seus propósitos. Vide
página oficial. Disponível em: <https://www.shujutoshi.jp>. Acesso em: 13 de out. 2019.

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Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

Em 2017, pequena parte dessa pesquisa se constituiu na avaliação de algumas crianças por meio de testes
adotados no Japão (e no Brasil), usados em duas versões: brasileira e japonesa conforme a necessidade (no
caso, WISC-IV amplamente utilizado pelos japoneses para fins diagnósticos, muitas vezes, apenas ele).
Esse tipo de teste só foi possível por ter sido aplicado por um profissional bilíngue, tendo em mãos as
tabelas de validações da população japonesa e brasileira embora, ainda assim não nos parecesse ser a forma
mais adequada e/ou suficiente. Esse trabalho foi viabilizado graças a um fundo de pesquisa requerido por
uma professora da Universidade de Kanazawa com quem elaboramos essa pesquisa conjunta14.

Em 2016, por meio de contatos com o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar Social japonês,
tivemos acesso a um pesquisador considerado ícone na questão do desenvolvimento infantil e que estaria,
graças à verba dessa instituição, conduzindo um levantamento nacional envolvendo crianças com distúrbios
de desenvolvimento. Na ocasião, esse professor demonstrou interesse em incluir as estrangeiras,
especialmente das cidades com grande concentração delas. Posteriormente, estivemos com alguns “super
especialistas” japoneses nessa questão e os responsáveis pela condução da pesquisa em algumas regiões
onde estão as nossas crianças.

A Embaixada Brasileira elaborou um edital de concorrência, em 2017, para que os interessados se


inscrevessem para averiguar a situação, oficialmente, em uma pesquisa de maior porte. A Embaixada
Brasileira terminou a seleção (em junho de 2018) e os grupos selecionados começaram os trabalhos no
segundo semestre de 2018, sendo que deverá ser concluído e publicado ainda em 2019.

Em 2018, fizemos também um trabalho de sondagem junto aos profissionais que acolhem e atendem
essas crianças após o diagnóstico e os encaminhamentos feitos pelos especialistas japoneses com o intuito
de conhecer um pouco sobre os trabalhos de intervenção adotados. Sondagem essa que incluiu também os
professores japoneses que atendem as nossas crianças nas salas especiais.

No Brasil, sentimos a necessidade de estabelecer uma interlocução com as instituições que atendem
as crianças com TEA, razão pela qual, em 2017, criamos um canal de troca com algumas instituições como
a AMA (Assistência Médica Ambulatorial da Secretaria Municipal da Saúde), APAE (Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais), Lugar de Vida e PIPA (Projeto de Integração Pró-Autista).

Nesses 10 anos de trabalho, tivemos a oportunidade de realizar muitas trocas com as chamadas
associações internacionais de diversas cidades japonesas (Kokusai Koryu Kyoukai), com prefeituras,
comitês educacionais ou secretarias de educação dos municípios (Kyouiku Iinkai) onde as nossas crianças
residem/residiam, ONGs (NGO) e OSCIPs (NPO) que dão assistência a brasileiros, além de outras

14
Pesquisa compilada e relatada pela professora Makiko Matsuda, da Universidade de Kanazawa, após debate com todos os
pesquisadores envolvidos, inclusive conosco, pessoalmente e por Skype. Vide resumo. Disponível em:
<https://www.hakuhofoundation.or.jp/subsidy/recipient/pdf/12th_matuda.pdf>. Acesso em: 13 de out. 2019. Relatório publicado
em japonês num boletim. Disponível em: <https://www.matsudamakiko.com>. Acesso em: 13 de out. 2019. Vide texto sobre as
crianças avaliadas com WISC-IV em japonês. Disponível em: <http://doi.org/10.24517/00052062>. Acesso em: 13 de out. 2019.

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Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão

entidades de atendimento a crianças especiais, de reforço pós-aulas, entre outros. Além disso, recebemos a
visita de inúmeros pesquisadores, professores e pós-graduandos de diversas universidades japonesas,
especialmente das cidades de grande concentração e interesse no trabalho com estrangeiros: universidades
de Osaka, Aichi (Aichi Kenritsu Daigaku, Aichi Kyouiku Daigaku, Nagoya Daigaku), Shizuoka (Shizuoka
Daigaku, Tokoha Daigaku, Hamamatsu Ika Daigaku, Hamamatsu Gakuin Daigaku), Gunma, Utsunomiya,
entre outras inúmeras como Hiroshima, Mie, Fukuoka, Kobe, Tsukuba, etc.; sendo algumas federais e
outras privadas. A busca ocorreu também dos pesquisadores de universidades privadas, de renome, situadas
em Tóquio, como a Keio, Waseda, Sophia e Meiji Gakuin. Além das japonesas, também destacamos as
norte-americanas, como a de St Louis e Nova York. Também atuamos com pesquisadores e professores de
universidades brasileiras: USP (Universidade de São Paulo), UNIFESP (Universidade Federal de São
Paulo), UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), UNIP (Universidade Paulista) e Mackenzie.

Recebemos inúmeras solicitações da imprensa, televisionada (como a rádio e TV NHK do Japão) e


escrita, tanto brasileira quanto japonesa: Revista Veja, Educação, Nova Escola, Folha de São Paulo, assim
como da mídia brasileira no Japão, Revista Brasil, Alternativa, IPC ou da comunidade nikkei no Brasil: São
Paulo Shimbun, Jornal do Nikkey, Jornal Nippak, Made in Japan e da grande mídia japonesa como os
jornais: Asahi, Chunichi, Yomiuri, Mainichi, Keizai, Kyodo News e outros locais como Chugoku de
Hiroshima que referiu-se ao nosso trabalho por diversas vezes.

Fomos convidados para participar de mesas, seminários, simpósios nacionais e internacionais, de


publicações em capítulos de livros, anais, revistas e boletins no Brasil e Japão. Participamos e divulgamos
nossos trabalhos em grandes eventos da comunidade nikkei como Festival do Japão e Bunka Matsuri.
Também atuamos na interlocução com órgãos governamentais e autoridades de ambos os países, a começar
pelas embaixadas: a Brasileira no Japão, a Japonesa no Brasil, e junto aos consulados gerais: o Japonês no
Brasil e o Brasileiro no Japão e aos representantes dos ministérios da Educação, das Relações Exteriores, da
Saúde, Trabalho e Bem-Estar Social do Japão - separadamente ou em conjunto numa reunião em
Kasumigaseki (em Tóquio onde se concentram diversos ministérios, ou a palavra é usada como metonímia
significando governo central japonês) - ou mesmo no Ministério do Trabalho e das Relações Exteriores,
quando a questão dos trabalhadores brasileiros no Japão entra em pauta.

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FILHOS DE DEKASSEGUIS: OS DESAFIOS DOS IMIGRANTES BRASILEIROS NO JAPÃO

Cizina Célia Fernandes Pereira Resstel1


Mary Yoko Okamoto 2

Introdução

A migração japonesa a outros países teve início durante a era Meiji (1868), caracterizada por
grandes transformações e mudanças no país, momento marcado pela abertura para o mundo e por uma
política interna de mudança socioeconômica, que resultou na migração interna de agricultores, pois o
cenário econômico levou muitos a ultrapassarem as fronteiras, rumo ao estrangeiro. O Tratado de Amizade
Brasil-Japão, que entrou em vigor a partir de 1895 e estabeleceu relações diplomáticas entre os dois países,
fez do Brasil o destino principal da mão de obra japonesa (JAPANESE AMERICAN NATIONAL
MUSEUM, 2000; OKUBARO, 2008).

No início do século XX, ocorreu a imigração japonesa no Brasil, impulsionada pelas necessidades
vivenciadas por ambos os países: o Japão precisava escoar mão de obra por causa da situação de crise
econômica, ao passo que o Brasil contratava imigrantes para substituir a mão de obra escrava na agricultura
em decorrência da abolição da escravatura de 1888.

Em 18 de junho de 1908 (data oficial), a bordo do navio Kasato Maru, no porto da cidade de Santos,
chegavam ao Brasil 781 imigrantes contratados e 12 livres (OKUBARO, 2008; CHINEN, 2013), os
primeiros dekasseguis3 japoneses, que partiram da sua terra oriental para trabalhar nas lavouras cafeeiras do
estado de São Paulo, no país de destino – Brasil. Eram inúmeras as dificuldades que surgiram na época, em
razão das diferenças culturais – o idioma, os costumes, os hábitos alimentares, de higiene, entre outras –
responsáveis por uma grande barreira no processo de adaptação ao país estrangeiro. O comportamento e o
tipo físico dos japoneses chamavam atenção pela sua maneira peculiar de ser, aos olhos dos brasileiros, pois

1
Psicóloga, Especialista em Psicoterapias de Orientação Psicanalítica pela Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA).
Mestre e Doutora em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - FCL- Campus de
Assis – SP – UNESP. Atualmente é Psicóloga Clínica em Marília.
2
Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de são Paulo (Brasil) e Professora Assistente
Doutora do Curso de Psicologia (graduação e pós-graduação) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP-Campus de Assis), Brasil.
3
Dekassegui é uma palavra de origem japonesa que significa aquele que sai em busca de trabalho temporário para ganhar
dinheiro, sendo utilizada pelos próprios japoneses para designar aqueles trabalhadores que enfrentavam invernos rigorosos e
migravam para outras regiões (grandes centros) em busca de trabalho. Na década de 1980, o termo dekassegui tornou-se
conhecido como movimento de descendentes de japoneses que emigraram do Brasil para o Japão para trabalhar em serviços de
baixa qualificação nas fábricas e indústrias japonesas (tradução nossa).

99
Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

eram pessoas bem distintas no cenário social do país. De forma notória, o espírito japonês está apregoado à
hierarquia, disciplina e ao respeito ao imperador (BENEDICT, 2014; SAKURAI, 2016).

Prestes a completar o aniversário de comemoração dos cento e dez anos da presença japonesa no
Brasil, a história desses imigrantes e de seus descendentes, nos leva a viajar pelo passado que parece vivo
no presente, sendo assim, deparamo-nos com a repetição que vem sendo expressa por meio do
comportamento dos dekasseguis e seus filhos que embarcam para o Japão em busca, sobretudo, de trabalho
e/ou por outros motivos, como a consanguinidade e o desejo de conhecer as suas próprias raízes. Esse
encontro com o passado e o presente vem representando uma experiência viva, e, portanto, compondo a
migração contemporânea, como se formasse um círculo de repetições nas gerações de famílias dos
imigrantes japoneses.

Fenômeno dekassegui

Historicamente, o Brasil é conhecido como um país de fluxos contínuos de entrada de estrangeiros


em seu território. Na década de 1980, há uma descontinuidade na recepção de imigrantes, porém, um novo
marco aconteceu na história da migração brasileira, o país, além de ser conhecido como receptor de mão de
obra imigrante, também passou a ser reconhecido como país emissor de trabalhadores ao estrangeiro e,
como parte dessa mobilidade humana, os brasileiros descendentes de japoneses iniciaram um caminho
inverso da migração dos seus ascendentes.

Oliveira (2008) traz que, antes mesmo dos anos 80, precisamente no final de 70, já iniciava um
movimento contrário de imigrantes japoneses (isseis) radicados no Brasil, nascidos no Japão e que voltaram
para seu país de origem. Com o passar dos anos, aumentou o número de fluxo de pessoas que migraram
para o Japão, e assim surgiu o fenômeno dekassegui, em meados dos anos 80. O serviço de pouca
qualificação acabou atraindo muito o interesse da comunidade nikkei (descendentes de japoneses nascidos
fora do Japão) que foi trabalhar como operária nas fábricas e indústrias japonesas.

Ao mesmo tempo, o Brasil sofria com o período de recessão e desempregos, havia uma crise
política e econômica instalada no país. Com isso, surgia a possibilidade de trabalho na terra do sol nascente
para os descendentes de japoneses. Além do mais, seria a realização de fazer o caminho inverso e tão
sonhado pelos pais e avós.

Os dekasseguis são contratados como trabalhadores braçais no Japão. Entretanto, é o serviço que os
japoneses rejeitam e para o estrangeiro é uma forma rápida de ganhar dinheiro e realizar alguns sonhos.

Desde o início da migração, o trabalho pouco qualificado era reservado para o imigrante e ainda a
maior parte dos dekasseguis continua nesses postos de operários. Para os japoneses, esse tipo de trabalho é
conhecido como 3ks – Kitanai (sujo), Kiken (perigoso) e Kitsui (pesado) (OCADA, 2002) – e, conforme a

100
Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

socióloga Lili Kawamura, foram incluídos pelos imigrantes mais 2ks: Kibishi (exigente) e Kirai (detestável)
(OS 100 ANOS..., 2008).

No início desse movimento, na década de 1980, os nipo-brasileiros que se deslocavam para o Japão
eram os isseis (japoneses) e os nisseis (segunda geração), ou seja, os filhos de japoneses e aqueles que
tinham dupla nacionalidade. Esses primeiros dekasseguis sabiam falar o idioma, e a língua não seria uma
barreira entre as duas culturas.

As primeiras notícias sobre a ida de brasileiros nipo-descendentes para trabalhar temporariamente no


Japão apareceram nos meados da década de 1980, apresentando um movimento tímido quanto ao
volume. Em geral, eles não tiveram grandes problemas burocráticos para entrar no território japonês,
pois tinham origem japonesa; eram das primeiras gerações – issei (primeira geração ou os próprios
japoneses nascidos no Japão) e/ou nissei (segunda geração ou filhos dos migrantes japoneses
nascidos fora do Japão) –, logo, muitos tinham nacionalidade japonesa ou dupla nacionalidade
(podendo ingressar no Japão como japoneses); grosso modo, eram homens de idade avançada; chefes
de família; casados; sabiam falar japonês e tinham pretensões de estada temporária no Japão.
(SASAKI, 1999 apud SASAKI, 2006, p. 105, grifo do autor).

Em meados da década de 1990, houve uma reforma na Lei de Controle da Imigração do Japão, que
passou a aceitar os netos de japoneses e seus cônjuges (SASAKI, 2006). Em decorrência dessa alteração, o
fluxo emigratório para o Japão passou a ser mais intenso, os trabalhadores ilegais foram sendo substituídos
por descendentes de japoneses vindos da América do Sul, mudando o perfil dos imigrantes, que passaram a
chegar acompanhados pela família, esposa e filhos.

[...] o mercado japonês estava tendo sérios problemas com a falta de mão-de-obra em setores de
manufatura, esses empregadores – não apenas de firmas pequenas, mas também de grandes empresas –
substituíram gradualmente os trabalhadores ilegais por trabalhadores descendentes de japoneses
provenientes da América do Sul (Yamanaka, 1996; Komai, 1992, apud Morita & Sassen, 1994, p.162),
principalmente brasileiros e peruanos. Segundo Cornelius (1995, p.396), a política de oportunidades de
imigração facilitada para os nikkeijins da América Latina é vista pelas autoridades japonesas como
meio, politicamente de baixo custo, de ajudar a resolver a falta de mão-de-obra, com a vantagem
adicional de que os imigrantes com ancestralidade japonesa não são vistos a perturbar a
homogeneidade étnica mítica do país. (SASAKI, 2006, p. 106).

A aposta na consanguinidade por parte dos japoneses era o que poderia garantir uma boa
convivência entre as duas comunidades no país. Além dos traços físicos semelhantes, as culturas brasileira
e japonesa são bastante distintas, o que pôs em dúvida a questão da identidade dos descendentes de
japoneses que foram para o Japão. No Brasil, antes do fenômeno dekassegui, a comunidade nikkei se
consolidava com a identidade japonesa. No entanto, no Japão, os descendentes de japoneses são
considerados pelos próprios japoneses como gaijins, ou seja, estrangeiros; ao passo que, no Brasil, são
vistos e chamados de japoneses. Depois da ida dos filhos e netos ao Japão, observa-se o sentimento de não
pertencimento em nenhum dos dois países, ou seja, nem japonês e nem brasileiro.

101
Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

A nacionalidade no Japão é definida por meio do critério jus sanguinis (direito de sangue), no qual
somente os filhos adquirem a nacionalidade dos pais, ou seja, filhos de japoneses têm a cidadania japonesa.
O Brasil adota o princípio do jus solis (direito de solo), no qual a pessoa adquire a nacionalidade do
território onde nasceu. Assim, os filhos de dekasseguis nascidos no Japão adquirem a nacionalidade dos
pais, sendo registrados na repartição brasileira. Apesar de não ter nascido em solo brasileiro, e sim, em solo
japonês, o filho de brasileiros no Japão é de nacionalidade brasileira.

Os primeiros dekasseguis que chegaram ao Japão tinham pensamentos diferentes, procuravam


poupar ao máximo o dinheiro que ganhavam do árduo trabalho das fábricas, para o retorno ao Brasil. Com a
chegada das famílias inteiras, consequentemente, o dinheiro foi sendo direcionado para outras necessidades,
tais como a manutenção da casa no Japão. Desse modo, houve um aumento no tempo de permanência dos
dekasseguis no território japonês, uma vez que poupar e acumular economias ficou mais difícil.

A reforma da política de controle, em 1990, possibilitou a entrada legal de brasileiros descendentes


de japoneses para trabalhar no Japão. A presença brasileira em território japonês foi consolidada nessa
década. Em meados de 1995, houve a massificação de brasileiros no Japão. A partir do ano 2000, os
brasileiros passaram a adquirir o visto de permanência no país, em virtude da estadia prolongada. São nas
regiões centrais do arquipélago que se encontra o maior número de concentração de dekasseguis, em
especial nas seguintes cidades: Hamamatsu, Toyota, Toyohashi, Ota, Oizumi, entre outras (SASAKI,
2010).

A mão de obra de imigrantes brasileiros no Japão, logo de início se destaca pela presença de pessoas
do sexo masculino, pois, sem famílias, tinham o propósito de formar uma poupança rápida e voltar para o
Brasil. A temporariedade, a transitoriedade e o sentimento de retorno ao Brasil eram características desses
primeiros dekasseguis em terras japonesas, porém, essas estratégias também ocorrem com outras migrações
brasileiras que foram para os Estados Unidos e a Europa nas décadas de 1980 e meados de 1990
(OLIVEIRA, 2008).

Surgem, nesse novo contexto, as dificuldades de adaptação à vida cotidiana japonesa e o dekassegui
passa a sentir na pele a exploração de trabalho, a crise identitária, a ausência de um membro da família –
fatores impactantes e, portanto, geradores de sofrimentos e crises. Nas revistas e jornais para brasileiros no
Japão começam a ser divulgadas manchetes de procura por dekasseguis desaparecidos. Os
desaparecimentos de dekasseguis geram muitas dúvidas com relação aos motivos causadores dessa
situação, mas podem ocorrer por diversos fatores, como enfermidades, distúrbios psiquiátricos, mortes,
violência e até mesmo por insatisfação com a família, rompendo o vínculo com o grupo (OLIVEIRA,
2008).

Em meados da década de 1990, registra-se o início da presença feminina no Japão, vindo a


intensificar-se ao longo dos quatro anos seguintes. Assim, os casais passaram a emigrar, nem sempre
acompanhados de seus filhos que permaneciam no Brasil, em geral com avós. Porém, essa tentativa de

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Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

manutenção dos laços familiares foi frustrada, uma vez que a distância interferia na relação com os filhos,
mas acontecia, a princípio, a união do casal. No entanto, o ritmo acelerado do trabalho, os turnos diferentes,
o estresse e outros fatores geram novos problemas, como as separações entre os casais e a segregação da
família. Nesse ínterim, jornais publicam notícias da nova situação familiar dos dekasseguis, “[...] ausência
mesmo na presença, gerando títulos como ‘Família raramente se encontra’” (OLIVEIRA, 2008, p. 225).

O membro ausente da família do dekassegui era motivo de preocupação, de alterações de projetos e


de um prazo de estadia preestabelecido no Japão. Por isso, atualmente, houve nova mudança no cenário,
com a presença de toda a família na terra de destino, o tempo de permanência se estende, tendo a migração
uma característica mais definitiva, crianças são levadas para o Japão e outras nascem lá. O desejo era de
manter e continuar sendo família, mesmo em circunstâncias tão difíceis da migração (OLIVEIRA, 2008).

Outras necessidades surgem em âmbito familiar e social em face da presença de filhos de


dekasseguis no Japão. Os pais dekasseguis e seus filhos (yonseis), não estão mais separados pela distância
geográfica dos países, mas a separação é produzida na própria casa, pelo cotidiano característico de um
migrante, impossibilitando a presença e a participação dos pais na vida dos filhos. Os pais se ausentam da
vida de seus filhos por estarem envolvidos com jornadas exaustivas de trabalho e, por esta razão, originam-
se conflitos emocionais.

Oliveira (2008, p. 227-228) ressalta que a falta de definição de qual “é o meu lar”, acaba causando
instabilidade emocional e afetando ainda mais as crianças: “A problemática da educação desses filhos
pequenos (e mesmo os maiores e adolescentes) é um dos fatores de maior impacto nos desdobramentos
desse processo migratório”.

Com a presença dos filhos de dekasseguis, houve a necessidade de inserção dessas crianças e jovens
nas escolas japonesas, uma vez que, na década de 1990, não havia escolas brasileiras naquele país. As
crianças começaram a enfrentar dificuldades ao se depararem com a língua e o currículo escolar oriental.
Com a imigração, muitas crianças interromperam seus estudos no Brasil para emigrarem com seus pais para
o Japão. Com o tempo, essa frequência de interrupções passou a fazer parte do vai e vem temporário da
saga familiar, “nem fica lá” e “nem aqui”.

Desde então, esse quadro vem se alterando, trazendo novas necessidades e preocupações para a vida
cotidiana desses imigrantes, tais como o estudo das crianças, a língua, o emprego, assim como qual país
escolherá para residir, ou não.

Nos anos 2000 (AMARAL; CORES; MATSUO, 2010), as primeiras escolas brasileiras surgiram no
Japão, porém, eram particulares e de custo elevado. Além disso, as escolas brasileiras acabam sendo de
difícil acesso a uma parte das famílias de imigrantes, em virtude da localidade e/ou distância (geralmente as
escolas estão situadas em cidades maiores), sendo utilizado meio de transporte escolar (vans e micro-
ônibus) para a chegada da criança à escola, diferentemente das escolas japonesas que estão instaladas nos
bairros e as crianças podem chegar à escola caminhando, de bicicleta e/ou em grupos.
103
Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

Desde então, várias recessões ocorreram no país oriental, muitos pais, ao perderem o emprego,
retiram as crianças das escolas brasileiras e as matriculam nas escolas públicas japonesas. Diante da falta de
emprego no país, os pais acabam sem condições financeiras de manter os filhos na instituição particular. O
inverso também ocorre, ou seja, alguns pais, quando conseguem um emprego e fazem horas-extras, retiram
as crianças das escolas japonesas e as matriculam nas escolas brasileiras. Os pais parecem padecer de
dúvida em relação à escolha da escola para que o filho desenvolva a aprendizagem e o idioma, pois a
escolha de uma escola estrangeira acarreta uma série de mudanças para a família, como hábitos,
comportamentos, habilidade da língua que os pais brasileiros não possuem. Além disso, o planejamento do
futuro é algo distante de suas vidas, por esta razão, não elaboram um projeto de futuro de vida, vivendo
com foco principalmente no tempo presente.

Os efeitos da crise econômica de 2008 recaíram diretamente sobre os dekasseguis e o número de


residentes no Japão diminuiu para 175.410, caindo de terceira para a quarta maior comunidade de
contingente de estrangeiros no país, precedida pelos chineses, coreanos e filipinos (ISHIKAWA, 2016).

Em 2000, a comunidade brasileira ocupava o terceiro lugar, atrás da China e da Coreia, com
265.000 de brasileiros em solo japonês (BELTRÃO; SUGAHARA, 2006, ROSSINI, 2018). Em 2007, no
Japão, a população brasileira era de 313.771, e após a crise financeira de 2008, esse número vai caindo, até
chegar em 2015 com o contingente de 173.437, depois dessa data, houve um leve aumento populacional de
brasileiros no país. Dados mais atuais registram que a população brasileira é a quinta comunidade de
estrangeiros no Japão, sendo ultrapassada pelo Vietnã (BRASIL, 2017).

A economia de ambos os países funciona como uma balança medidora e impulsionadora da migração
de descendentes de japoneses, ou seja, a balança seria uma espécie de termômetro que avisa em que lado do
globo a economia está mais aquecida ou não. Além disso, no Japão, há acidentes naturais, como os terremotos
(jishin) e tufões (taifuu) que, dependendo da gravidade, acabam desencadeando o trânsito de retorno de
brasileiros para o Brasil.

Resstel (2014) coloca que nem todos os dekasseguis desejam retornar ao Brasil para morar, uma
parte já adquiriu residência fixa na terra do sol nascente, mas a problemática da educação dos seus filhos
vem sendo um ponto-chave nas discussões de imigração.

Grande parte dos filhos de dekasseguis é de yonseis, ou seja, a quarta geração de descendentes de
japoneses, nascida no Japão ou no Brasil. Essas crianças vivem uma realidade distinta dos seus pais. A
maioria dos sanseis – a terceira geração de descendentes – não domina o idioma japonês, uns foram para o
Japão com sua esposa e filhos e outros foram solteiros, mas constituíram família na terra dos antepassados.

Os entraves para o desenvolvimento da subjetividade em ambas as culturas são enormes, sobretudo


em razão da exclusão social da sociedade dominante para com esses filhos da imigração, a falta de domínio
da língua japonesa torna o imigrante um alvo fácil de reconhecimento do estrangeirismo pelos japoneses.
Entretanto, os seus pais migraram para o Japão com o objetivo principal de trabalhar, mas a segunda
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Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

geração de imigrantes, ou seja, os filhos de dekasseguis não pensam da mesma forma que os pais, não
aceitam ser estrangeiros no Japão e nem a realidade de suas vidas como filhos de imigrantes (KAWAGUTI,
2012). Além do mais, acabam sofrendo de crise identitária (SASAKI, 1999), os nikkeis, descendentes de
japoneses nascidos no Brasil, são reconhecidos e identificados como japoneses entre a comunidade
brasileira em virtude de seus traços fenotípicos. Entretanto, do outro lado do mundo, no Japão, os
dekasseguis e seus filhos são “os filhos da imigração”, não sendo reconhecidos e nem identificados como
japoneses, ou seja, são estrangeiros, ou, gaijin, utilizando o termo na língua japonesa. Uma parte dos filhos
de dekasseguis nasce no Japão e mesmo tendo o nome de registro da cidade japonesa, a sua nacionalidade é
brasileira, sabendo que uma parte desses filhos nem, ao menos, conhece a sua terra de origem.

Entre o trabalho acelerado e a vida familiar, os pais se deparam com diversas dificuldades de seus
filhos, especialmente com a escola. Quais são as dificuldades com as quais a segunda geração de filhos de
dekasseguis se depara no Japão?

Experiência de atendimento psicológico a filhos de dekasseguis no Japão

Esse trabalho é resultado da experiência de atendimento psicológico a filhos de dekasseguis no


Japão, durante a realização de um projeto denominado “Programa de Desenvolvimento de Apoio
Psicológico no Estado de São Paulo voltado aos dekasseguis e seus descendentes que permanecem no
Japão”, em cooperação internacional com a Japan International Cooperation Agency (JICA) e o Conselho
de Promoção para a Convivência Multicultural (Multicultural Society Promotion Council – MSPC), em
parceria com a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP, campus de Assis.

O projeto ocorreu nos anos de 2012 a 2014 e, durante esse tempo, as psicólogas acompanharam os
dekasseguis e seus filhos nas províncias de Aichi, Mie, Shiga, Gunma, Gifu e na cidade de Shizuoka.
Foram realizadas reuniões, palestras e acompanhamento psicológico breve – individual e em grupo – nas
escolas brasileiras e japonesas, e no Consulado-Geral do Brasil em Hamamatsu.

Neste capítulo, apresentamos os trabalhos realizados durante os meses de setembro a dezembro de


2012, desenvolvidos na província de Aichi. Assim sendo, percorremos algumas cidades e distritos para
conhecer as Associações Culturais e NPOs (Organização Sem Fins Lucrativos): Toyota, Hygashiura,
Inuyama, Komaki, Toyohashi e a própria cidade de Nagoya. A nossa viagem também se estendeu até a
Província de Shizuoka, na cidade de Hamamatsu, a segunda maior cidade em concentração de brasileiros.

Participamos de várias reuniões durante os três meses de permanência no país. Os participantes da


reunião eram os pais, os intérpretes, os coordenadores de NPOs, os professores japoneses e brasileiros, e os
responsáveis pelo setor multicultural das prefeituras e prefeitos. Foram discutidas as seguintes questões:
alto nível de evasão escolar entre as crianças estrangeiras; omissão dos pais em comunicar às prefeituras
sobre a mudança de cidade ou Estado, o que leva as prefeituras a perderem o contato com essas famílias;

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Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

dificuldades das crianças que frequentam escolas japonesas na aprendizagem da língua ou daquelas que
transitam pelas duas instituições, a brasileira e a japonesa. Além do mais, os pais acabam tão envolvidos
com o trabalho que praticamente não lhes sobra tempo para cuidar adequadamente dos filhos. O trabalho é
única fonte mantenedora do imigrante no estrangeiro e pensar que poderá ficar sem, os coloca em estado de
alerta, de preocupação contínua com o amanhã. As crianças passam a maior parte do tempo na escola e
outra parte, ficam sozinhas em suas casas, ao passo que os pais dekasseguis permanecem quase todo tempo
trabalhando nas fábricas e indústrias japonesas.

Morar no Japão, nunca foi fácil para os imigrantes descendentes de japoneses, e é muito mais difícil
para a segunda geração, independente do país onde nasceram, vivendo um sentimento de estrangeirismo,
até mesmo dentro de sua própria casa, com os pais, que viveram em outra cultura. Sem a fluência de ambas
as línguas – a portuguesa e a japonesa –, a segunda geração de filhos de imigrantes não tem o domínio e o
vocabulário de que necessitam para prosseguir com os estudos e ter uma formação universitária no país.

Ao chegar ao Japão, o imigrante deve obrigatoriamente procurar a prefeitura para fazer o registro de
sua residência no país e, assim, é orientado, nas prefeituras, a procurar o centro de apoio da língua (NPOs)
para a criança. Além disso, em algumas prefeituras funcionam os centros multiculturais, oferecendo a
aprendizagem da língua japonesa para criança e adulto. No Centro Internacional de Nagoya (NIC),
encontramos não apenas o ensino da língua japonesa, mas também psicólogos brasileiros que fazem
atendimentos a dekasseguis. As aulas de língua japonesa e os atendimentos nesses centros multiculturais
têm um custo mensal irrisório.

O maior número de crianças atendidas nas NPOs é de nacionalidade brasileira. Em seguida,


aparecem poucos peruanos e raramente surgem algumas crianças asiáticas. O tempo médio de permanência
dessas crianças nessas organizações é de uma hora diária e quando estão frequentando as escolas japonesas
são atendidas após a aula. Nem toda criança estrangeira frequenta as NPOs, em razão de vários fatores:
ausência de transporte, moradia distante do local e/ou pais que não aceitaram o apoio.

Outros problemas surgem com famílias de segundo ou terceiro casamento, ou de união estável,
tornando os relacionamentos mais complexos e de difícil convivência, sobretudo com filhos de cônjuges de
outros casamentos. Em alguns casos, as crianças vêm sofrendo agressões de padrasto e até da mãe
biológica, que deveria ser a pessoa acolhedora e protetora.

Dificuldades dos filhos de dekasseguis no Japão

Grande parte dos filhos de dekasseguis frequenta a escola pública japonesa, em razão do elevado
custo das escolas brasileiras no Japão, e pela facilidade de acesso. Porém, nas escolas japonesas, são
alfabetizados no idioma japonês, conforme mencionado anteriormente, e tal situação gera alguns impasses
na vida dessa geração, tais como a comunicação na família, a adaptação ao Brasil, caso ocorra, podendo

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Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

afetar a constituição identitária, uma vez que, embora a criança seja brasileira, o uso do idioma em terras
japonesas confere uma identidade nipônica.

Porém, ainda existe um número de crianças que frequenta as escolas brasileiras, nas quais o
currículo é o mesmo das escolas no Brasil e, nessas instituições, o idioma utilizado é o português. Portanto,
esse é um importante fator que diz respeito ao futuro dessas crianças e jovens, no tocante à continuidade de
estudos e entrada no mercado de trabalho, sem o domínio do idioma japonês.

Nesse sentido, consideramos que a perda do grupo social de referência também se converte num
processo de perda de identidade, já que a manutenção da língua e dos costumes (que representam símbolos
de etnicidade e de pertença familiar) servem de critérios de autoidentificação que têm como referência
interna uma etnia específica construída e embasada nos moldes da família e dos conteúdos nela
transmitidos. Estes aspectos subjetivos e simbólicos são muito importantes, pois marcam a constituição das
identidades étnicas fora de seu espaço de origem e que se basearam e foram construídas no novo espaço
ocupado por meio da formação em comunidade nos grupos étnicos específicos, revelando, assim, a
importância da crença do pertencimento a uma determinada coletividade que distingue e separa seus
membros de outros grupos.

A escolha do país da imigração é feita pelos pais (GRINBERG; GRINBERG, 1984). A criança
raramente é consultada e quando é inclusa à discussão da família, sua opinião parece não pesar tanto como
a dos adultos.

Para Grinberg e Grinberg (1984) e Higa (2006), apesar dos pais serem a capa protetora de seus
filhos na migração e a família o grupo protetor, a regressão emocional aparece e é vivida por eles nesse
deslocamento durante certo tempo.

Tal fato ocorre, porque, diante de tantas mudanças, os pais, desorientados emocionalmente acabam
não podendo se ajustar rapidamente à vida cotidiana no novo ambiente, deixando de oferecer e exercer
plenamente uma proteção adequada, ou necessária e satisfatória aos seus filhos (RESSTEL, 2014).

A identificação é considerada o principal mecanismo envolvido na transmissão psíquica que ocorre


entre gerações, responsável pela transmissão dos aspectos culturais do berço psíquico no qual todo sujeito
nasce inserido (GOMES; ZANETTI, 2009).

A compreensão da identidade nesse contexto aponta para a importância do pertencimento e da


dimensão familiar para sua constituição, uma vez que é na família que o sujeito apreende a capacidade e a
necessidade de criar vínculos afetivos como forma de afirmar sua existência singular e posterior elaboração do
sentimento de pertencimento a algo ou a uma cultura.

Nesse sentido, Correa (2000) aponta que a desvinculação dos grupos de pertença (tais como a
família, escola, trabalho, etc) gera uma crise de identidade, uma vez que o rompimento dos vínculos
afetivos com tais grupos causa um desamparo, resultante de uma identidade em crise que não consegue se

107
Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

afirmar. A família caracteriza-se como importante grupo de pertença, pois se constitui espaço que
possibilita a contenção psíquica dos sujeitos que a ela se vinculam, sobretudo em momentos de crise.

Segundo Correa (2000, p. 80), “com frequência, observamos crises, produzidas no nível identiário,
que tem sua origem, entre outros fatores, na perda das referências culturais e afetivas e em sua repercussão
na transmissão inconsciente da herança psíquica geracional”.

Desde a entrada dos primeiros dekasseguis brasileiros no Japão, o perfil da comunidade nikkei vem
sofrendo alterações. Com o passar dos anos, surgiram as redes sociais, trazendo propostas do governo, da
comunidade local e dos brasileiros em busca de estratégias para lidar com as dificuldades da imigração
(NAKAGAWA; NAKAGAWA, 2010). Portanto, conforme os autores, são muitos os entraves a serem
enfrentados pelos dekasseguis e seus filhos, um deles é a falta de domínio em ambas as línguas – japonesa e
a portuguesa – e outro entrave é a inacessibilidade à escola desses dekasseguis, que hoje são pais de
crianças e adolescentes.

A falta de vocabulário e o domínio em ambas as línguas provocam o que os japoneses chamam de


“Double limited” (YANO, 2006) ou “semilíngues”, a maior parte é de analfabetos funcionais e que não
tiveram acesso à educação formal. Hoje são pais, e seus filhos estão em idade escolar (NAKAGAWA;
NAKAGAWA, 2010).

Nakagawa e Nakagawa (2010, p. 353) questionam sobre a falta de um método de ensino-


aprendizagem, materiais didáticos, professores com experiência na alfabetização de crianças bilíngues, além
disso, “A crença tanto no Brasil como no Japão de que o ensino de uma nova língua deva ocorrer em
detrimento da língua materna traz uma dificuldade maior para a criança”, sabendo que o professor é o
mediador do ensino-aprendizagem do aluno, mas que ao se colocar numa posição superior acaba promovendo
distanciamento entre professor-aluno.

Diante de tantas dificuldades com a língua japonesa, encontramos nas escolas públicas japonesas,
intérpretes ou tradutores, contratados pelas prefeituras e direcionados às escolas que têm um número
considerado de brasileiros. Esses intérpretes, geralmente são de nacionalidade brasileira, e mesmo sem ter
alguma formação de ensino especializado em tradução, ajudam a amenizar os problemas de comunicação
das crianças enfrentados com a aquisição do idioma na escola. Dessa forma, cria-se, por intermédio do
intérprete, uma ponte de comunicação entre a criança, a família e os professores.

Para Grinberg e Grinberg (1984), a mudança de idioma é considerado o principal problema de


enfrentamento do imigrante no país estrangeiro. Ademais, a linguagem está vinculada à evolução do ser
humano, desde o nascimento, no desenvolvimento do sentimento de identidade e nos vínculos
comunicativos com seus familiares.

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Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

De acordo com Weissmann (2017), a constituição da identidade está atrelada à cultura e à terra
natal, numa construção contínua que, nos casos de migração, permite a constituição de uma identidade
intercultural, num movimento pendular entre a cultura de origem e a cultura de acolhimento.

Levando em consideração a dimensão do pertencimento à constituição identitária, o idioma é um


aspecto que exige um duro trabalho num processo migratório, no qual, além da perda da terra natal, também
resulta na perda da língua materna, considerada por Koltai (2013) como uma segunda pele, pois cada língua
tem uma maneira particular de interpretar o mundo e seus códigos, estabelecendo um laço identitário entre
os sujeitos que a compartilham. Assim, a aquisição da língua do país de acolhimento representa a busca de
restauração dessa segunda pele perdida e que assegura ao imigrante uma certa segurança e amparo, por
meio da articulação entre o individual e o social.

Tal fato nos remete à experiência da condição do estrangeiro, na qual não ocorre nem o
reconhecimento de si nem o reconhecimento social, seja na família seja na comunidade de acolhimento – o
Japão (CARIGNATO, 2013). Esta situação nos faz lembrar a experiência do ajeno4, que estabelece um nós
e os outros, na qual se delineia uma fronteira entre o conhecido – o familiar e a cultura de origem – e o
desconhecido – alteridade inquietante –, ou seja, uma diferença impossível de ser transposta que o outro
carrega apenas com a sua presença.

Apesar da importância da língua como um recurso que favorece a sensação de pertencimento ao lugar,
podemos notar que esse pertencimento também se refere ao reconhecimento dos outros, do social, para que os
sujeitos possam sentir pertencentes ao lugar. Porém, a constatação é a de que, mesmo tendo sido educadas na
cultura japonesa e adquirindo noções básicas do idioma japonês, os dekasseguis ainda são considerados
estrangeiros.

Isso significa que somos inscritos no mundo a partir de e através dos outros que nos incluem no
espaço com sua pluralidade e alteridade, concedendo-nos uma determinada cultura e um espaço
transobjetivo que demarcam um lugar comum entre aqueles que compartilham traços e inscrições
semelhantes. Tal aspecto constitui-se na trama do laço social que precede o sujeito e o sustenta na
filiação e a um pertencimento reconhecido por um grupo. (OKAMOTO; JUSTO; RESSTEL, 2017,
p. 206).

A falta de domínio na língua japonesa dos filhos de dekasseguis acaba gerando vários prejuízos em
suas vidas (pessoal, escolar e profissional). Não conseguem concluir o ensino médio nas escolas japonesas
e aqueles que concluem os estudos nas escolas brasileiras são vítimas de analfabetismo do idioma no país
em que vivem, já que o ensino da língua japonesa nessas instituições é insuficiente. A evasão escolar é um
ponto de discussão entre professores e governo, isso ocorre por causa das dificuldades de aprendizagem dos
filhos de dekasseguis e por falta de participação dos pais, já que eles vivem para o trabalho e quase não

4
O uso do termo ajeno em espanhol é justificado pela dificuldade em encontrar, na língua portuguesa de um sinônimo que possa
traduzir o sentido próprio do termo. Assim, o termo usado inclui os conceitos de estranho, estranhamento, alteridade, diferença
radical (WEISSMANN, 2017).

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Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

compreendem o idioma. De acordo com Kawaguti (2012), vivem a exclusão social, pois sem a fluência da
língua japonesa passam a ser vistos e tratados como estrangeiros pela sociedade nipônica e, diferentemente
de seus pais que partiram do Brasil para trabalhar nas fábricas japonesas, os filhos não aceitam ser
estrangeiros no Japão e nem a vida como filhos de imigrantes, pois desejam a vida do cotidiano japonês,
mas a realidade é que a vida deles não é assim.

A preocupação com a segunda geração de dekasseguis no Japão é manifestada pelo diretor e


professor Kimihiro Tsumura da Hamamatsu Gakuin University em entrevista concedida à IPC.DIGITAL
(2016), no Japão. Diz o professor que, sem oportunidade de estudos na língua portuguesa e nem de domínio
da língua japonesa, esta geração não consegue empregos. Uma parte pensa em retornar para o Brasil e por
isso não leva os estudos com afinco, desse modo, sua presença passa despercebida pela sociedade,
ignorados e invisíveis aos olhos dos japoneses.

Estranho no ninho

Sozinhos em casa... é assim que grande parte dessas crianças vive no Japão. Após a jornada de aula
na escola, a criança não tem uma casa de acolhimento, ou seja, de um parente ou de um vizinho onde possa
permanecer até a chegada dos pais.

Alguns conflitos emocionais são desencadeados pela distância entre os membros da família. A
infância e a adolescência são fases da vida que exigem mais atenção dos pais, pois são etapas de
desenvolvimento e de constantes mudanças.

A falta de convivência em casa fragiliza os laços familiares, em especial o idioma da família, que
representa um meio de comunicação entre os membros. Algumas situações de extremas dificuldades são
rotineiras para os filhos, mas causam sofrimentos emocionais e psicopatologias.

Os filhos de dekasseguis que estudam em escolas japonesas aprendem o idioma japonês. Como
conversar com os pais no idioma estrangeiro, que aprenderam na escola?

Pais e filhos vivem a ausência fabricada pelo meio de produção capitalista e pela migração. Viver na
ausência é diferente de viver na presença, não esquecendo que o lugar é o estrangeiro.

Na ausência fabricada, os filhos de dekasseguis crescem sem a presença dos seus pais na vida
cotidiana no Japão. Em decorrência desse modo de vida, os prejuízos surgem no campo afetivo, escolar, na
comunicação familiar, profissional, entre outros. Um ponto relevante que aparece é a falta de comunicação
entre pais e filhos. Qual é a qualidade da comunicação entre pais e filhos?

É muito comum que parte da família utilize o idioma português, ao passo que os filhos que
frequentam as escolas japonesas, dominam o idioma japonês, causando dificuldade de comunicação no
ambiente familiar, sobretudo no tocante às questões afetivas. Os pais dekasseguis não dominam o idioma

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Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

japonês e por isso acabam não alcançando o mesmo nível de compreensão da língua estrangeira do seu
filho, faltando com atendimento adequado às necessidades da criança. Os filhos, por sua vez, pelo fato de
não dominarem o idioma português, não estão conseguindo expressar o que necessitam e falar sobre os seus
desejos aos seus pais.

O sentimento de ser um estrangeiro na sua própria casa é marcado pela barreira da língua estrangeira
– não compreendida na família – e pelas dificuldades das duas culturas: a japonesa, dos filhos e a brasileira,
dos pais. Os pais percebem os filhos diferentes deles, e os filhos se sentem duplamente estrangeiros, na casa
e no país.

Pudemos perceber essa experiência de não pertencimento à família, especialmente em razão da falta
de marcadores sociais compartilhados com o ambiente externo, e o idioma é um desses fatores, seja pelo
distanciamento, seja pela ausência da família. Apontamos, assim, o denominado duplo pertencimento
(CORREA, 2015), ou seja, a necessidade de reafirmação de uma determinada cultura em detrimento de
outra, em razão do temor de perda das referências identitárias que marcou a fixação das famílias dos
imigrantes japoneses no Brasil, isso parece uma constante na vida dos seus descendentes.

Dantas et al. (2010) apontam que, pelo fato dos nikkeis possuírem características fenotípicas
marcantes de seu grupo étnico de origem, no Brasil, são considerados japoneses. Porém, ao migrarem para
o Japão, percebem que essa característica não é suficiente para que sejam considerados japoneses, onde são
então considerados brasileiros.

Considerações finais

Para esses imigrantes, o espaço de casa deveria ser o lugar de encontro dos membros da família, de
trocas de afetos, de interesse pela vida do outro, de ajuda e de cuidados, além disso, um espaço para as
brincadeiras, para usar a linguagem da família, ou seja, um espaço de convívio, que é quase inexistente na
vida migratória da família.

Com relação aos filhos dos dekasseguis – a segunda geração – que compartilham os espaços comuns
no contexto japonês e por isso são educados de acordo com os valores do país de acolhimento num
importante grupo de pertencimento, a escola, a experiência de ajenidad parece ainda mais radical e
conflituosa, e pode ser observada no sentimento que as crianças carregam de japonesidade que, por sua vez,
não é aceita pela sociedade local. Mesmo tendo nascido no Japão, são considerados brasileiros do ponto de
vista civil.

Nesse aspecto, podemos refletir a respeito do papel desempenhado pelo sistema cultural
representado pelos rituais, costumes e idioma compartilhados e que funcionam como mecanismos que
organizam o caos do mundo, possibilitando aos membros do grupo social o acesso à capacidade de
simbolização, ou seja, de nomear e atribuir significados ao mundo que os rodeia. Com relação à segunda

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Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

geração dos migrantes, o fato de nascer no Japão ou compartilhar de espaços sociais como a escola e
desenvolver o idioma, os hábitos e costumes locais não cumpre a função de proteger essa população da
obscuridade do desconhecido e, dessa forma, facilitar a constituição das referências identitárias. Ao
contrário, tem gerado uma fratura e falha subjetiva que pode favorecer a fixação nas perdas diante da
impossibilidade de sobrepor-se a elas.

Podemos pensar que, no processo de transmissão psíquica existente nessas famílias, não existe ainda
uma referência quanto ao pertencimento e ao reconhecimento da origem e do berço psíquico, que ainda
transita entre os dois países sem que haja um processo de integração que abriria a possibilidade para a
interculturalidade.
Ao contrário, a experiência e o sofrimento de seus filhos apontam que esse caminho ainda não
encontrou uma elaboração no sentido de um movimento pendular que integre as culturas e possibilite, ao
modo de uma colcha de retalhos, o acolhimento de marcas passadas e atuais conformadas num espaço
intercultural. Os filhos ainda demonstram que tal integração não é possível e parecem fixados no Japão, que
se constitui no país eleito como a referência identitária, e agora perdido, em virtude do retorno forçado por
contingências externas.
A questão que permanece é que essa transmissão dos aspectos identitários e de pertencimento é
marcada pela presença do traumático desde as primeiras gerações de nikkeis que nasceram no Brasil, uma
vez que a fixação das famílias no Brasil foi marcada pelo traumático diante da impossibilidade do retorno
ao Japão. O país permaneceu idealizado no imaginário do psiquismo familiar e a aceitação do Brasil, vivido
como crise que colocava em risco a identidade nipônica.
Assim, apesar de toda história de permanência no Brasil, a sensação é a de que esse país não se
constituiu um continente de proteção e sustentação para todas as gerações de nikkeis que partiram para o
Japão em busca desse continente perdido no passado, mas alimentado no imaginário das famílias e das
gerações.
Porém, ao desembarcarem nas terras dos antepassados, os dekasseguis percebem que aquele país
também não serve como a sustentação imaginada, são hostilizados e não são considerados como iguais ou
pertencentes ao país e à cultura.
Dessa forma, a transmissão dos processos identitários ainda não encontrou um continente que possa
assegurar e amparar as famílias em momentos de crise e isso é verificado na decisão do retorno, apesar de
toda a idealização que permeia o Japão e de todas as vantagens verificadas naquele país. Diante do temor da
morte e de uma crise financeira, os dekasseguis retornam ao Brasil e momentaneamente o país ocupou o
lugar que garantia a segurança, mesmo que temporariamente e especialmente para os pais. Mas nem todos
os filhos sentem o Brasil como a terra de origem, não se reconhecem no país e sentem falta do Japão.
Diante de todas essas dificuldades, talvez fosse importante refletir a respeito da importância dos
grupos de pertencimento social (escola, trabalho, por exemplo) para oferecer às famílias que viveram essa
experiência de ruptura provocada pela migração a possibilidade de um acolhimento coletivo que pudesse
resultar numa sensação de continência e que facilitasse o trânsito e a aceitação do e para o país de origem.
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Filhos de Dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão

Referências

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