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II Congresso Internacional de Estudos em

Linguagem
UEPG – Ponta Grossa – PR
24 a 26 de Outubro de 2017

MÁRIO DE ANDRADE E O MODERNISMO FICCIONALIZADOS POR


SILVIANO SANTIAGO

Helder Santos Rocha (doutorando) – UFPR

Resumo: Desde os últimos decênios do século XX, ficções das mais diversas surgiram
tendo como personagens e narradores alguns escritores ‘reais’ e até considerados cânones
pela crítica cultural e literária. A proposta desta comunicação é apresentar uma leitura do
conto ‘Caíram as fichas’, do livro Histórias mal contadas (2005), de Silviano Santiago,
que foca o escritor Mário de Andrade na elaboração da conferência O movimento
modernista, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1942, que se tornaria, segundo o poeta
paulistano, o “balanço histórico do modernismo”. Objetivou-se, neste trabalho, analisar a
elaboração narrativa empreendida pelo autor contemporâneo, ressaltando os efeitos
provocados pela mescla entre elementos historiográficos e ficcionais. Ancorado em
estudos teóricos e críticos sobre a ficção histórica contemporânea brasileira (Weinhardt,
2011; Esteves, 2010) e sobre a metaficção historiográfica (Hutcheon, 1991), o
questionamento central é verificar em que medida esse tipo de narrativa ficcional produz
reflexão relevante acerca da revisitação de um escritor da literatura brasileira de outrora,
sobretudo na ênfase da sua relação de intelectual com a política e com as ideias culturais
do seu tempo.

Palavras-chave: ficção, Mário de Andrade, modernismo, Silviano Santiago.

Resumen: En los últimos decenios, surgieron personajes y narradores de las ficciones,


haciendo referencia a la algunos escritores 'reales', que son considerados clasicos por la
crítica cultural y literaria. La propuesta de esta comunicación es presentar una lectura del
cuento 'Caíram as fichas', del libro Historias mal contadas (2005), de Silviano Santiago,
que enfoca al escritor Mário de Andrade en la elaboración de la conferencia El
movimiento modernista, ocurrido en Río de Janeiro, en 1942, que se convertiría, según el
poeta paulistano, es la "revisión histórica del modernismo". En este trabajo, se buscó
analizar la construcción narrativa emprendida por el autor contemporáneo, resaltando los
efectos provocados por la mezcla entre elementos historiográficos y ficcionales. Basado
en las teorias y críticas a respecto de la ficción histórica contemporánea brasileña
(Weinhardt, 2011, Esteves, 2010) y de la metaficción historiográfica (Hutcheon, 1991),
el cuestionamiento central es verificar en qué medida ese tipo de narrativa ficcional
produce reflexión relevante acerca de la revisitación de un escritor de la literatura
brasileña de antaño, sobre todo en el énfasis de su relación de intelectual con la política y
con las ideas culturales de su tiempo.

Palabras-clave: ficción, Mário de Andrade, Modernismo, Silviano Santiago.


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24 a 26 de Outubro de 2017

Introito

Em Histórias mal contadas (2005), livro de contos do escritor Silviano Santiago,


novamente a prática de ficcionalizar autores da literatura brasileira vem à tona. Dessa vez,
Santiago investiu na criação de cartas de escritores modernistas, como Mário de Andrade
e Carlos Drummond de Andrade, explorando a vida privada de tais autores e alguns de
seus momentos que foram cruciais para o cotidiano artístico, social e político brasileiro
da primeira metade do século XX. Novamente, a temática da relação conflituosa entre o
intelectual modernista e a política do momento, assim como ocorrera no romance Em
liberdade, acabou sendo o mote para o trabalho de pesquisa sobre documentos da vida
dos escritores, assim como ponte para se repensar algumas das noções e dos sentidos
atribuídos pelos modernistas aos rumos de sua arte na coletividade brasileira de então.
O conto ‘Caíram as fichas’ foca o escritor Mário de Andrade na elaboração da
conferência O movimento modernista, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1942, que se
tornaria, segundo o poeta paulistano, o “balanço histórico do modernismo”1. As “fichas”
surgem aqui com ironia devido ao duplo sentido, que ora remete aos próprios documentos
deixados por Mário e que hoje servem de material de pesquisa (material esse que é
utilizado pelo escritor S. Santiago), e ora remete à expressão popular que significa uma
compreensão atrasada ou que fora finalmente assimilada de todo após um determinado
período.
Os textos (as fichas) são apresentados como se fossem escritos pelo poeta Mário de
Andrade. No entanto, as mesmas foram “transcritas” por um narrador em primeira pessoa
que se apresenta logo nas primeiras linhas e que assume a autoria parcial: “pela cópia e
pelas notas de pé de página, Silviano Santiago” (SANTIAGO, 2005, p. 171). O autor das
fichas possui referência externa ao texto, porém, nem sequer destinou a publicação de

1
O discurso da palestra foi publicado no volume Aspectos da literatura brasileira (1978, 6. ed). Para José
Luís Jobim (2012, p. 26), “(...) na conferência “O movimento modernista” há este narrador que, no fim da
vida, reconstrói o passado sob um ponto de vista melancólico, desencantado, descrente em relação às suas
próprias crenças no passado, e gera uma imagem desse passado que tem mais a ver com o momento em que
as memórias se elaboram.” Já sobre o período de preparação da dita conferência, José Paula Jr. (2012, p.
57) diz que: “(...) é evidente que a inquietude derivava sobretudo de sua preocupação com o papel da arte,
do artista e do intelectual perante os horrores do mundo em guerra e do sequestro da liberdade no Estado
Novo brasileiro.”
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seus textos pessoais a um livro de contos do século XXI. O conto, por sua vez, faz parte
de um livro assinado pelo escritor Silviano Santiago, esse vivo, atuante e “sorrateiro”.
Nesse entremear de textualidades e autorias, o real, com toda problemática que o termo
acarrete, e o ficcional acabam por se mesclarem, provocando a problematização de suas
fronteiras.
Em determinados fragmentos, nota-se remissão direta à acontecimentos históricos,
que surgem no corpo do texto como uma espécie de reflexão do privado sobre o público
e de sua interferência recíproca naquele período especificamente. Mário de Andrade, em
preparação do texto de sua palestra, declara a sua consciência sobre os rumos do
modernismo e a situação da política brasileira de então (Estado Novo). Veja-se um trecho:

[FICHA 5]

Começo a palestra pelo relato dos conflitos que, por um lado, cercaram a quase
concessão pelo Conselho Universitário do título de Doutor Honoris Causa a Getúlio
Vargas e, pelo outro, motivaram a baderna armada pelos acadêmicos no centro da
cidade. Para bom entendedor e em filigrana, já estariam expostos os dois lados da moeda
que o modernismo paulista fez circular pelo Brasil.
Cara: o apadrinhamento dos artistas pelo dinheiro dos aristocratas do café e a reverência
ao poder estadual revolucionário.
Coroa: a criação de um espírito novo e a irreverência aos valores passadistas,
determinados pelos costumes políticos e sociais dominantes na elite brasileira.
Cara: o café toma conta da cidade.
Coroa: o café exportado se responsabiliza pela industrialização nacional. (SANTIAGO,
2005, p. 177).

O excerto exposto funciona como uma lâmina. Por um lado, publiciza pensamento
privado tal como foi elaborado por Mário no tempo em que fora escrito. Por outro, no
mesmo corte, desloca a sua temporalidade e funciona como um argumento do narrador
ficcionalizado do novo texto, que, por sua vez, é motivado pelo olhar crítico de S.
Santiago sobre os problemas do modernismo. O que era privado se torna público e, com
o devido distanciamento histórico, nota-se que a interferência entre um e outro era
recíproca, o que confere peso para a coletividade daquele momento.
Há, no texto de Santiago, um apelo à “enciclopédia” do leitor, que, por sua vez,
propicia dúvidas, ampliações e multiplicações de perspectivas, além de desconstruções
de sentidos sobre determinados aspectos da história. Nesse sentido, não se trata de uma
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mera sobrevalorização do discurso ficcional sobre o histórico, e nem de uma


reivindicação da historiografia no ficcional, visando limitar a força da inventividade. O
que ocorre é a emergência do impasse crítico e discursivo, com um texto aparentemente
não ficcional, eivado de ficção. Para Juan José Saer (2014, p. 12),

la ficción no es, por lo tanto, una reivindicación de lo falso. Aun aquellas ficciones que
incorporan lo falso de um modo deliberado –– fuentes falsas, atribuciones falsas,
confusión de datos históricos con dados imaginarios, etcétera, lo hacen no para
confundir al lector, sino para señalar el carácter doble de la ficción, que mezcla, de un
modo inevitable, lo empírico y lo imaginario.

Assim, pode-se propor uma leitura do conto levando em consideração muito mais
o efeito construído no deslocamento dos textos, sujeitos e suas temporalidades, ao invés
de impor uma busca da discriminação detalhista de fragmentos e sinais que
correspondam, originariamente, a cada criador/escritor. Aliás, tarefa típica dos
especialistas em “crítica genética”, como adverte ironicamente o narrador S. Santiago
logo no início do conto. Por isso, para a rentabilidade da análise, relembra-se a reflexão
sugerida por Borges em seu conto ‘Pierre Ménard, autor do Quixote’, no livro Ficções
(2007), quando o autor ficcionalizado no texto diz claramente que possui a intenção de
criar um novo Don Quixote, sem alterar qualquer palavra daquele outro escrito por
Cervantes há quatro séculos e numa contextualização irrecuperável. O palimpsesto é
como o caminho que percorre as águas (o tempo, o sujeito) que insistem em seguir.

1. Metaficção historiográfica, ficção-crítica

A peculiaridade da ficcionalização da história literária é uma prática que tem


interessado a alguns estudiosos da ficção histórica no Brasil. A partir de análise de
romances em que os protagonistas são escritores da literatura brasileira, Esteves (2010,
p. 123) afirma que, “(...) por intermédio deles, contam não apenas a história do Brasil,
com seus múltiplos dilemas, mas sua inserção na vida cultural e especialmente a história
do próprio cânone literário.” Trata-se de um exercício ficcional de acesso à narrativa
histórica, seja por meio da pesquisa biográfica de um autor conhecido, ou relegado ao
ostracismo como é o caso do dramaturgo Qorpo-Santo ficcionalizado por Assis Brasil,
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em Cães da Província (1987); seja por via da própria leitura da obra ficcional do autor
homenageado ou inquirido pelo autor segundo.
Mas esse fenômeno não é um caso isolado da produção brasileira, pois esta prática
de ficcionalização da história da literatura pode ser rastreada com pico de proliferação
quase simultâneo também em outros sistemas literários. Acerca desse tipo romanesco e
sua aparição pelo mundo, Leyla Perrone-Moisés (2011, p. 255) diz que:

(...) entre os “mil trabalhos atuais”, destaca-se um subgênero romanesco que tem
crescido visivelmente desde os anos 80 do século XX: o romance que tem por
personagem principal um “grande escritor”, isto é, um daqueles “heróis” da literatura
em sua época áurea. Não se trata de biografia, no sentido estrito, mas de invenção
ficcional que joga tanto com os dados biográficos como com dados colhidos na obra
desses escritores. Por terem uma grande parte de invenção, mas invenção fundamentada
em pesquisa biográfica e conhecimento das obras, esses romances têm uma função
crítica implícita (escolha, interpretação, ênfase em determinados temas, alusões e
intertextos).

A ensaísta prefere enxergar nessa produção ficcional uma espécie de homenagem


criativa de autores contemporâneos aos seus precursores, que podem, ou não, serem
considerados “heróis” literários. Em livro publicado recentemente, intitulado Mutações
da literatura no século XXI, Perrone-Moisés (2016, p. 135) reafirma que: “o simples fato
de eleger um escritor do passado como protagonista de romance já é uma homenagem e
uma celebração, mesmo que o romance contenha críticas e objeções ao herói.” Como
alguns exemplos de romances estrangeiros, Perrone-Moisés (2011, p. 255) ainda cita os
casos de O ano da morte de Ricardo Reis (1984), de José Saramago, e os romances Foe
(1986) e o Mestre de São Petersburgo (1994), de J. M. Coetzee, além de muitos outros
europeus, quase sempre elegendo os escritores da alta modernidade (fim do séc. XIX -
início do séc. XX) como dignos de terem pedaços da sua biografia misturados com a
recepção de suas obras recontadas sob nova roupagem.
Com efeito, torna-se digno de atenção a maneira como alguns escritores da
contemporaneidade trabalham o artifício da história de vida dos seus antecessores, para
evidenciarem que tais homenageados, ou apenas relembrados, são personagens de uma
importante narrativa nacional. De acordo com Carlos Reis (2012), essas narrativas de
ficção estariam, além de tudo, demonstrando a capacidade de influência que a
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Historiografia Literária exerce sobre a cultura de uma nação. Sublinhando alguns casos
exemplares na Literatura Portuguesa, em que surgem romances diversos colocando
nomes como os de Camões e Eça de Queirós como protagonistas, o articulista elabora
uma questão que serve de esteio para a compreensão do fenômeno: “quando dizemos o
“bruxo do Cosme Velho” estamos ainda a falar do maior romancista brasileiro ou de uma
espécie de personagem ficcional construída pela história literária?” (REIS, 2012, p. 20-
21).
Sendo assim, o que dizer das ficcionalizações de modernistas empreendidas por
Silviano Santiago? A percepção inicial é de que o autor contemporâneo toma esses artistas
como figuras representativas não só de uma geração literária, mas, sobretudo, como
fundamentais para o pensamento nacional de certa época. Aqui, torna-se relevante
considerar declarações do autor em outras ocasiões, destacando alguns modernistas que
ficcionalizou como grandes personagens de uma narrativa da historiografia literária e
cultural do país. Nota-se isso num ensaio em que ele discute a possibilidade de leitura da
obra e da atuação de alguns modernistas como intérpretes do Brasil, quando afirma que:
“(...) os três Andrades – Mário, Oswald e Carlos – não calçaram luvas de pelica para levar
a cabo a interpretação do país. Interpretar o Brasil era uma tarefa diária, destemida e
contínua, que fazia parte do cotidiano de cada um deles” (SANTIAGO, 2009, p. 22).
Tais ficções que se apropriam de temporalidades passadas por meio da história de
uma personalidade ou mesmo de suas produções artísticas parecem estar próximas da
‘metaficção historiográfica’, que, segundo Linda Hutcheon (1991), problematizam quase
tudo que o Romance Histórico, como aquele teorizado pelo Lukács (2011), tomava como
determinado e factual, desestabilizando as fronteiras rígidas entre história e ficção. Assim,
os textos de metaficção historiográfica tomam a história, dita ‘oficial’, como apenas mais
uma narrativa construída por uma subjetividade historicamente inserida em um contexto
específico, o que rejeita qualquer noção de universalidade imediata.
Desse modo, os textos ficcionais que transformam os criadores de outrora como
criaturas do agora, a partir da noção de metaficção historiográfica, indispensavelmente,
atribuem um elemento crítico ao trabalho de invenção, quiçá, numa tentativa de
interpretar o lugar do escritor e da própria produção literária nos tempos atuais,
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recorrendo a outros lugares de outros tempos, como os daqueles escritores que Silviano
Santiago costuma ficcionalizar (Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Carlos Drummond
de Andrade, Machado de Assis). Para tal, basta verificar quais textos e questões
envolvendo a vida desses escritores ficcionalizados mais interessaram ao Santiago. As
próprias ‘fichas’ selecionadas como partes do conto recortado, cujo enredo gira em torno
de reflexões particulares do artista Mário de Andrade, no ano de 1942, sobre os rumos
que as ideias estéticas da Semana de Arte Moderna tiveram, além da própria desilusão do
escritor em meio à política cafeeira de São Paulo e à ditadura de Getúlio Vargas, são
provas de tal inquietação do artista atual, quiçá, numa tentativa de compreensão do seu
presente, e do seu lugar que é, ainda em alguma medida, devedor dessa tradição literária
recente. Consoante Eneida Maria de Souza (2008, p. 28),

a posição de Silviano Santigo diante da estética modernista brasileira se caracteriza


também por essa leitura intervalar, perspectiva analítica voltada para o balanço do
movimento, de modo a respeitar o que ainda possui rendimento para a compreensão do
momento presente, ou o que não mais se sustenta em termos literários e retóricos.

É desse modo que a relação entre discurso inventivo e discurso crítico se unem,
exigindo do leitor uma atenção redobrada, porque o processo de leitura tende a borrar,
cada vez mais, as fronteiras que demarcam possíveis sinais entre formas discursivas
distintas. Segundo Weinhardt (2011), esses textos podem ser reconhecidos e
denominados como “ficção-crítica”. Ela destaca que:

(a) A vertente específica do diálogo com a própria história literária se expandiu. Este
incremento pode ser interpretado como sintoma de situações variadas, não
necessariamente excludentes: busca de esfumaçamento das fronteiras entre criação e
crítica; inserção da voz dos escritores de criação no espaço da história e da crítica
literária, e vice-versa; espaço de refúgio que restou à história literária; desilusão com o
poder de intervenção da literatura no plano social ou ideológico, restando-lhe fechar-se
sobre si mesma. (WEINHARDT, 2011, p. 49).

Importa ressaltar que tais hipóteses não são utilizadas com o intuito de trazer
respostas seguras e finais aos problemas que se apresentam, mas, antes, servem como
parâmetro para compreender a recorrência desse tipo de ficção, como é o caso específico
do conto ‘Caíram as fichas’, de Silviano Santiago, escritor que além do já conhecido Em
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liberdade, acaba de publicar novo romance sobre os últimos anos da vida do escritor
Machado de Assis, intitulado Machado (2016).

2. Vozes em diálogo, hibridismo autoral

Uma relevante questão que permeou boa parte dos estudos sobre a produção
literária por volta de meados do séc. XX foi sobre a existência, ou não, de uma autoria
reconhecível como fator preponderante para explicação de um texto literário. Estudiosos
como Roland Barthes e Michel Foucault se debruçaram nessa questão e trouxeram
indagações contundentes ao que anteriormente se atribuía como de extrema relevância
para a compreensão de um texto literário: a identificação do escritor de carne e osso.
Optando pela negação da figura real do escritor como decisiva para a compreensão
do texto literário, Barthes (2011, p. 50) afirma que, “(...) narrador e personagens são
essencialmente “seres de papel”; o autor (material) de uma narrativa não se pode
confundir em nada com o narrador desta narrativa.” Já Foucault (2009, p. 279), que
destaca a aporia, diz: “seria igualmente falso buscar o autor tanto do lado do escritor real
quanto do lado do locutor fictício; a função autor é efetuada na própria cisão – nessa
divisão e nessa distância.”
Tais formulações serviram como contestação a estudiosos e leitores que buscavam
uma autoria real como origem inconfundível dos textos artísticos, fruto de uma noção de
autonomia do campo literário. O tipo de análise biográfica, muito comum no século XIX,
pretendia cruzar os dados textuais com a biografia de quem escrevia e, com isso, poderia
extrair uma síntese segura ou um direcionamento correto para a sua compreensão. Mas,
como se percebe nas sentenças dos dois pensadores acima, há uma separação, uma “cisão”
entre pessoa real e pessoa do discurso. Existe uma mediação entre mundo e texto por meio
da linguagem, algo que não se pode ignorar.
Por isso, no conto de Silviano Santiago, que pelo trabalho de textualidade e de
ficcionalização já não seria tão seu assim ao final, é reconhecível nele, também, um
hibridismo peculiar, justamente pelo fato de trabalhar com outro texto de autor real. Pois,
as fichas foram escritas por Mário de Andrade, como o próprio narrador ironicamente diz:
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“transcrevemos” (inclusive com o destaque do plural acadêmico que denota


objetividade), mas estão dentro de um outro texto que já não é mais de Mário. O Silviano
insere pontuação, notas bibliográficas e comentários explícitos e diretos para o leitor,
modificando os sentidos, colaborando para a criação de um novo texto. Veja-se alguns
excertos:

1. Em duas cartas dirigidas a Murilo Miranda, Mário fala da homenagem. As hipóteses que
levantamos são, pois, verossímeis. (SANTIAGO, 2005, p. 171);

2. Possivelmente esta ficha acolheria os primeiros versos dum poema, que Mário não
chegou a escrever. Transformou-se na primeira das fichas que encerram as anotações
referentes à conferência. (SANTIAGO, 2005, p. 172);

9. Alusão a um conjunto de quatro poemas de As flores do mal, todos com o título de


“Spleen”. Talvez estivesse se referindo especificamente ao primeiro deles, que se refere ao
quinto mês do calendário adotado pela Revolução Francesa, chamado de Pluviôse, mês das
chuvas. (SANTIAGO, 2005, p. 191).

Essas notas de rodapé destacadas do conto são alguns exemplos da intervenção


explícita de Silviano Santiago no texto, simulando a faceta de um pesquisador erudito e
responsável, que apenas sugere e infere as fontes apontadas por Mário de Andrade em
suas fichas. Nesse sentido, a confissão de humildade logo na primeira nota (“hipóteses”,
“verossímeis”), além do uso de advérbios de hesitação nas demais notas
(“possivelmente”, “talvez”), só problematizam ainda mais a arquitetura de um texto que
apresenta um narrador que interfere, mas que explicita a busca pela imparcialidade, ou da
objetividade mencionada acima. O paradoxo funciona como mais uma ironia do autor
segundo. Para Souza (2008), pesquisadora interessada no trabalho de hibridismo de vozes
e de textos operado por S. Santiago com relação aos escritores modernistas,

a opção por se apropriar da experiência alheia para falar de si é um dos recursos usados por
Silviano para apagar a assinatura autoral, o que confere a seu texto alto grau de ficção e
tendência a embaralhar afirmações, inseridas tanto no texto-modelo quanto na cópia.
Marcada pela ambiguidade, a escrita se inscreve no registro factual e no fabular, no
autobiográfico e no biográfico, estratégia escolhida na composição de perfis identitários. A
contaminação de vozes narrativas impede associações que levem à indistinção entre
narrador e personagem, convidando, antes, ao deslocamento entre eles. (SOUZA, 2008, p.
24-25)
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Por isso, não se trata, com a afirmação do hibridismo autoral, de negar a


participação explícita e a intervenção do autor S. Santiago nos escritos de Mário de
Andrade. Entretanto, não se quer, também, conferir um peso decisivo à sua edição como
o suficiente para descartar a voz de Mário. Há, no texto, um diálogo entre vozes, entre
autorias. O trabalho efetuado pelo autor segundo, leitor do autor primeiro, dificulta o
reconhecimento de uma voz soberana, que poderia guiar, talvez ingenuamente, o leitor
por sentidos claros e definitivos. Trata-se da intromissão de um segundo ponto de vista,
que, pela problemática mesma, não anula um primeiro. História, realidade, questão,
temática são recolocadas. Não há uma só leitura possível. Quiçá, a maior mensagem disso
tudo.

3. Considerações (quase) finais

A escolha por remexer os arquivos pessoais de Mário de Andrade e simular um


narrador que se identifica com o autor que assina o livro, ou seja, como um intelectual,
pesquisador e escritor da contemporaneidade que é, indica a relevância de uma literatura
preocupada com a tradição, sobretudo de uma que a antecede, nos tempos atuais, não para
reproduzi-la passivamente, mas para repensá-la constantemente. Quiçá, num exercício de
atualização do manifesto antropófago do outro Andrade, o Oswald, que pregava, dentre
outras coisas, absorver o Outro para produzir algo ainda mais forte, junto com aquilo que
já constitui a cultura que recebe (ANDRADE, 1976). Além disso, verdades são
questionadas e a história relida, dessa vez, pela ficção. Como adverte Eco (1994, p. 145),
“refletir sobre essas complexas relações entre leitor e história, ficção e vida, pode
constituir uma forma de terapia contra o sono da razão que gera monstros”.
Portanto, é nesse sentido que a ficcionalização de um autor relevante da cultura de
um período e de uma nação, utilizando-se de seus próprios textos e de suas ideias,
colocados numa outra textualidade e em diferente temporalidade, permite ambiguidades
e multiplicidades de perspectivas sobre a própria realidade. A ironia para com os
elementos que, normalmente, conferem peso institucional e uma possível credibilidade
para a pesquisa documental é utilizada por S. Santiago para demonstrar, por meio de sua
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ficção, que a textualidade é processual e obedece a certos protocolos de escrita e de


leitura, de acordo com o contexto.
O hibridismo autoral é proposital. A mistura das vozes e de seus textos, assim como
a explicitação de suas assinaturas, produz uma problematização sobre a origem dos
discursos envolvidos. A tensão colocada sobre as possíveis verdades de outrora é fruto
não mais de uma dúvida sobre o passado, mas de uma dúvida sobre um passado que negue
o presente que o constrói.

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WEINHARDT, Marilene. Outros palimpsestos: ficção e história – 2001-2010. In:


PEREIRA, João Luís Pereira et all (Org.). Literatura: crítica comparada.
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