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Resenha Forense

Prof. Marcelo Pichioli da Silveira


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RESENHA FORENSE
— versão escrita —

Canal RESENHA FORENSE

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA


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#004
Teoria da Incidência da Norma Jurídica, de ADRIANO SOARES DA COSTA

***
Confira a análise no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=0Rh-
7xWCTa0

ADRIANO SOARES DA COSTA é um jurista alagoano. Desde 1996, tem voltado seu
interesse ao direito eleitoral, propondo a construção de um curso de matriz essencialmente
dogmática (o Curso de Direito Eleitoral Online, gratuitamente disponibilizado em seu canal do
YouTube), argumentando que, infelizmente, este ramo jurídico acabou se tornando alvo de
análises voláteis, preocupadas apenas com julgados recentes dos tribunais superiores. Falta
uma séria sistematização1; e foi essa sua preocupação ao escrever a obra Instituições de Direito
Eleitoral, já na 10.ª edição pela Editora Fórum. Atualmente, dedica-se a obra que será
intitulada Improbidade Administrativa; além de, também, concentrar esforços dogmáticos
quanto ao conceito de situação jurídica.
A nossa resenha ocupa-se de outro livro de ADRIANO: enfrentamos, aqui, aquele
intitulado Teoria da Incidência da Norma Jurídica (com o subtítulo Crítica ao realismo linguístico
de Paulo de Barros Carvalho), atualmente na 2.ª edição, publicada pela Editora Malheiros.
Como informa em nota (ainda da 1.ª edição), a obra resulta da reunião de artigos
publicados pela Revista Tributária (da Ed. Revista dos Tribunais)2, sobrevindo um quinto
capítulo com a 2.ª edição3.
Atualmente, portanto, a obra tem cinco capítulos: 1) “Incidência e Aplicação da
Norma Jurídica”; 2) “Fontes do Direito e Fato Jurídico: Distinção entre ‘Fato’ e ‘Evento’”;
3) “Processo de Positivação do Direito: o Problema da Norma Individual e Concreta”; 4)
“Método e Processo de Positivação”; e 5) “Método e Cláusulas Gerais: o Problema da
Textura Aberta da Linguagem”.
Já no primeiro capítulo, ADRIANO SOARES DA COSTA demonstra o motivo de sua
inquietação jurídico-filosófica. Centrado em tensos problemas da teoria do conhecimento,

1
Cf. sua 1.ª aula, intitulada “Direito Eleitoral como ramo da ciência jurídica”, no seguinte link:
https://www.youtube.com/watch?v=A8kj2JvDh8w.
2
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
24.
3
Idem, p. 20.
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mais precisamente na relação que o sujeito tem com o seu objeto, é fácil notar as influências
que MIGUEL REALE operaram sobre sua vida acadêmica4.
Sua premissa gnoseológica, no entanto, foge dos modismos contemporâneos.
ADRIANO SOARES DA COSTA ressalta o papel do objeto sobre o sujeito cognoscente, sem
ignorar a importância do último. Em termos hermenêuticos, isso descamba na relação que
o jurista tem com a norma. Qual o limite daquele diante de seu objeto de estudo? É
enfrentando a proposta de PAULO DE BARROS CARVALHO (um tributarista) que ADRIANO
procura responder este questionamento.
Segundo ADRIANO SOARES DA COSTA, “o Direito é processo de adaptação social”,
sem que vise “ele a suprimir o eu, mas a tornar possível a polaridade do eu-tu”, interferindo
sobre as condutas humanas “por meio de sua coercibilidade” 5. Como é de se esperar, a norma
jurídica “é das mais importantes criações do homem”: se desatendida, “há patologia, que
deve ser reprimida pelos meios de coerção”. Daí se falar que “toda norma é portadora de
valores”6.
Conceito de “fonte do direito”: segundo o autor, “as normas jurídicas
ingressam no sistema jurídico através de fontes do Direito”, expressão que utiliza — citando
MIGUEL REALE — “no sentido preciso de veículos introdutores de normas jurídicas, vale
dizer, como estrutura normativa que processa e formaliza, conferindo-lhes validade objetiva,
determinadas diretrizes de conduta ou determinadas esferas de competência”, de modo que as fontes
do direito “são sempre resultado de um processo formal de ponência de normas jurídicas”.
Alerte-se que, para A. S. DA COSTA, “as normas jurídicas [...] não se confundem com as
fontes do direito, sendo seu conteúdo”7.
A proposta (criticada) de PAULO DE BARROS CARVALHO: em síntese, este
tributarista propunha uma teoria de cognição segundo a qual que o jurista/intérprete (=
sujeito cognoscente) criaria o objeto conhecido, “que apenas existiria como realidade ‘em
mim’, como realidade mental”. Para A. S. DA COSTA, a teoria de P. DE B. CARVALHO
possibilita um distanciamento radical entre o texto (de lei) e a norma (resultado da
interpretação imputada pelo jurista ao texto legal), segundo a percepção de IMMANUEL
KANT, que abrangia as máximas, de um lado; e as leis, de outro (as primeiras seriam
proposições subjetivas; as segundas proposições objetivas) 8. Com efeito, diz ADRIANO
SOARES, “a teoria carvalhiana incisivamente procede à separação kantiana entre Sein e Sollen,

4
Essa influência se nota em toda obra. Veja-se, e. g., o trecho entre as páginas 155 e 160 da obra agora
resenhada.
5
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
27.
6
Idem, p. 27.
7
Idem, p. 28.
8
Idem, p. 31.
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asseverando muito amiúde que o dever-ser não toca nunca as instâncias do ser”9. E segue o
autor agora examinado, já rebatendo essa proposta... E acentuando sua própria
ontognoseologia:

A significação se contém no texto, mas não apenas nele. Há texto e há


contexto. Contexto do texto e contexto do intérprete. Cada texto tem
sua historicidade, os valores que o impregnam, os fins a que visa. Cada
intérprete tem os condicionamentos históricos, psicológicos, culturais,
axiológicos. Tem uma carga de valores a condicioná-la como sujeito
cognoscente10.

Por que dissemos que há em ADRIANO SOARES DA COSTA uma ontognoseologia? A


resposta vem em seu próprio texto: “para cumprir seu fim, a norma há de ser compreendida
como significação socialmente aceita, ou seja, como vivência intencional [no sentido de HANS-
GEORG GADAMER, segundo o autor], ou, ainda, no dizer de Luis Recaséns Siches, como vida
humana objetivada”11.
Como se nota, o grande jurista alagoano não chega a ignorar o fato de o sujeito
cognoscente talhar o seu objeto. Mas não se pode negar que este último tem, em si,
categorias a priori: há limites. A norma jurídica, diz ADRIANO SOARES DA COSTA, jamais
pode ser apenas um “produto da interpretação individual de um sujeito psicologizado”12: em sua
tese não há espaço para relativismos exagerados. Do contrário, a norma passaria a ser “um
produto exclusivo do intérprete, cuja compreensão pode ser diversa de um outro sujeito,
assim ao infinito”13.
E segue ADRIANO: “o relativismo hermenêutico, como qualquer relativismo, traz
embutido um núcleo cético e subjetivista, que termina por negar possa haver uma forma
objetiva de controle das significações de um texto”; a interpretação de textos encerra um
“processo de construção intersubjetiva da significação expressa no suporte físico que é o
grafema adscrito em uma folha de papel”. Ora, “se cada receptor recebesse uma mesma
mensagem de modo diverso, sem meios de controle do seu sentido, seria a comunicação
uma impossibilidade lógica", de maneira que “todo processo hermenêutico pressupõe o
outro”, e “quem quer significar, quer significar algo para alguém”14.

9
Idem, p. 32.
10
Idem, p. 32.
11
Idem, p. 32-33.
12
Idem, p. 33.
13
Idem, p. 34.
14
Idem, p. 34.
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Aliás, parece-me de bom alvitre salientar que a proposta gnoseológica de MIGUEL


REALE, que tanto inspirou o alagoano agora estudado, não menoscaba o objeto. Não sem
razão, também REALE propusera uma ontognoseologia15.
O que ADRIANO SOARES DA COSTA tenta asseverar, no começo de sua obra, são
suas premissas hermenêuticas. Defende haver, no bojo de sua teoria do conhecimento, uma
relação triádica entre “sujeito, objeto e o outro”, onde “a norma é a significação construída a
partir do texto positivado”. É de se atentar ao fato de que “a linguagem tem uma gramática,
ou seja, regras predispostas pelo costume, ou não, para a produção de sentido”. E
exemplifica o nosso autor:

Se escrevo asktrwin, sei que não terei como ser compreendido, porque
esta palavra está redigida sem observância da gramática portuguesa e sem
que meus leitores tenham sobre ela conhecimento. É signo sem
significação. Posso eu atribuir ao termo (significante) um significado,
mas será ele privado; salvo se estipulá-lo para o uso comum, definindo-
o16.

Por isso, a proposta teórica de PAULO DE BARROS CARVALHO é cética e


relativista. Não podemos ignorar que o ato de interpretar tem de levar em conta um a
priori “da coisidade do texto”17 — justamente por isso imputei acima, com certa
tranquilidade, uma proposta ontognoseológica ao ideal teórico de ADRIANO SOARES DA
COSTA. A norma jurídica não pode ser “apenas criação de um intérprete psicologizado. Sem
sua inserção no simbolismo jurídico, sem sua institucionalização sancionada, não há norma
jurídica”; e “todo ato de todo ato de interpretação de um texto não se exaure na relação
sujeito/objeto, intérprete/texto, mas pressupõe sempre uma comunidade linguística e
comunicativa, que estabelece uma relação sujeito/(co-sujeito). Daí Ch. S. Peirce advogar
que a relação é, na verdade, triádica: sujeito/objeto/comunidade”18.
O exemplo dado pelo próprio autor confirma isto: “pense-se em uma cultura
antiga, por exemplo. Imagine que encontrássemos hoje uma série de textos em uma língua
morta: tentaríamos atribuir sentido àqueles textos ou tentaríamos descobrir os sentidos que
eles expressam?”. Neste sentido, “a interpretação é dinâmica, mas não é arbitrária: porque

15
Sobre o assunto, aliás, cf. nossa contribuição: SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. O Direito como Experiência,
de Miguel Reale. Empório do Direito, Florianópolis, out. 2017. Disponível em: https://goo.gl/3NWbTF.
Acesso em 03 nov. 2017.
16
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
35.
17
Idem, p. 37.
18
Idem, p. 37.
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não se atribui sentido de fora para dentro, mas se busca respeitar a algo que o
texto quer falar, exprimindo-o”19.
Assim, por mais que o sujeito trabalhe com o objeto diante de si, há certos atributos
deste que não são retiráveis (nem modeláveis), por força de determinados caracteres ônticos
transcendentais. Essa relação pode ser exemplificada (segundo nossas próprias construções):
a) na relação do jurista com o seu principal objeto de estudo: a lei (em sentido
abrangente);
b) na relação do músico com uma escala diatónica, ele jamais poderá tocar, em seu
piano, e. g., um “sol” no lugar de um “si”, e terá de levar em conta a inserção de uma clave
de sol em sua partitura, pois ela indicará a nota “sol” na pauta respectiva:

c) na relação de um futebolista com um jogo de futebol, ele jamais poderá crer que
o gol é um chute para a arquibancada, mas apenas o cruzar da bola, em sua inteireza, após a
linha das traves;
d) na relação de um piloto com a corrida, ele jamais poderá correr na contramão
segundo o juízo de sua “construção social” — um GP de Interlagos será sempre no sentido
anti-horário; um GP como o de SPA-Francorchamps terá sempre o charme de sua Eau Rouge,
em sentido horário;
e) um penalista jamais poderá sugerir, dogmaticamente, que crime culposo possa
ser tentado, algo “tão inadmissível como um cilindro de cinco vértices”, um verdadeiro
“monstro lógico inconcebível, uma aberração absolutamente inaceitável”, como dissera JOSÉ
HENRIQUE PIERANGELI20;

19
Idem, p. 38 (destaquei).
20
PIERNAGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Especial. 2.ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, p. 47.
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f) um discurso sociológico jamais será veiculado pela linguagem da Física, assim


como jamais será possível imaginar um discurso psicológico travestido de língua da
Jurisprudência21-22 etc.
Em resumo:

[...] os signos são esponjas embebidas de significação pelo/para uso


social. Sentidos, esses, publicamente vividos, independentemente de
serem pensados pela mente de um sujeito aqui e agora, como as
proposições em si ou lektòn de Bolzano ou jetos pontesianos. E mesmo
quando o sujeito empírico (eu, você, alguém que não
conhecemos) se põe diante de um texto, já sempre estará
inserido em um diálogo contrafactual do qual faz parte, em
que as significações não são atribuídas aleatória e
arbitrariamente. [...]. A questão, que poderia ser posta com
honestidade intelectual, seria a seguinte: onde estão situados os sentidos?
Do mesmo modo, poder-se-ia perguntar: onde estão situados os valores?
Os céticos de plantão respondem: em lugar algum, porque eles não
existem como objetos ideais ou como objetos culturais. Seriam
sentimentos ou fenômenos psicológicos. Logo, reduzidos à mera
subjetividade. Ou, ainda: os valores e os sentidos apenas são enquanto
usados concretamente. Significados e valores seriam vivências subjetivas,
exclusivamente. Assim pensam Paulo de Barros Carvalho e Humberto
Ávila, por exemplo. Todavia, ainda que assim pensem, não negam que
existam um sentido preliminar ou prima facie nos textos, nada obstante
não procurem explicar que sentido seria esse que, não sendo atribuição
do intérprete, existiria nos enunciados (destaquei)23.

Influência de FRANCISCO CAVALCANTI PONTES DE MIRANDA: ADRIANO


SOARES DA COSTA é, confessadamente, um jurista ponteano. Chegou a defender PONTES de
uma acusação de plágio feita por ANTONIO DO PASSO CABRAL24, primeiro na série que
denomina “dialogando”, em seu canal do YouTube, numa conversa com ROBERTO CAMPOS

21
SILVA, Jhonatan de Castro e. Linguagem, poder simbólico e interpretação: suas implicações sobre a ciência do
direito, 2012. Disponível em: https://goo.gl/hJs0wF. Acesso em 18 dez. 2015. Como conheço bem o autor
deste texto, aviso que o termo “Jurisprudência” é usado, por CASTRO E SILVA, com o “J” maiúsculo, para
designar a ciência do direito. Isso advém da obra de REALE, que utiliza “Jurisprudência” com o mesmo
sentido.
22
“O direito é linguagem. Não apenas linguagem, porém, e muito menos ainda apenas linguagem
formalizada. Há o direito positivo e a Ciência do Direito. Estamos a nos referir àquele através dessa; ali,
linguagem-objeto versada, aqui, pela metalinguagem” (COSTA, Adriano Soares da. A descritividade da ciência
do direito: diálogo com Humberto Bergmann Ávila. Disponível em: https://goo.gl/OaW0Rq. Acesso em 21 dez.
2015).
23
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
38-39.
24
Cf. CABRAL, Antonio do Passo. Alguns mitos do processo (III): a disputa entre Pontes de Miranda e
Haroldo Valladão em concurso para professor catedrático na Universidade do Rio de Janeiro entre 1936 e
1940. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, n. 96, out./dez. 2016, p. 11-47.
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GOUVEIA FILHO, dizendo, abertamente, que esse tipo de acusação é leviana e falsa como
uma nota de três reais25; depois escrevendo um texto duríssimo contra o texto do
processualista carioca, que pecou ao não ter feito “a joeira cuidadosa do estudo empírico,
próprio de quem pretende fazer pesquisa com método histórico”, faltando-lhe “verificar, no
contexto da vasta obra de Pontes de Miranda, quais das suas principais contribuições teóricas
à Ciência do Direito teriam sido contaminadas com eventual plágio, demonstrando a
ausência de originalidade do jurista alagoano”26.
No contexto da obra agora resenhada, A. S. DA COSTA vale-se da teoria da
incidência da norma jurídica de F. C. PONTES DE MIRANDA: todo fato jurídico, por ser
fato jurídico, necessariamente existe. Ou há o suporte fático, ou não há o suporte fático. O
plano da existência de um fato jurídico é a análise de sua estrutura, tal qual engendrada pela
norma jurídica, incidente. Como diz MARCOS BERNARDES DE MELLO (outro autor ponteano),
“ao sofrer a incidência de norma jurídica juridicizante, a parte relevante do suporte fáctico
é transportada para o mundo jurídico, ingressando no plano da existência. Neste plano, que
é o plano do ser, entram todos os fatos jurídicos, lícitos ou ilícitos. No plano da existência”,
prossegue M. B. DE MELLO, “não se cogita de invalidade ou eficácia do fato jurídico,
importa, apenas, a realidade da existência”27-28.
Como se nota, essa teoria dispensa a “confirmação” da factibilidade jurídica por
uma autoridade competente, como defendia PAULO DE BARROS CARVALHO29. Este
tributarista opera com uma diferenciação entre “fato” e “evento”. O evento é aquilo ocorrido
no mundo que só “ganha significação jurídica se for veiculado através de norma individual e
concreta, que o relate em linguagem competente” 30. Na seara do direito tributário, “o

25
Cf. https://www.youtube.com/watch?v=kbaVhqy1LTI.
26
COSTA, Adriano Soares da. Pontes de Miranda e a acusação de plágio: anotações à margem de Antonio do Passo
Cabral. Disponível em: https://goo.gl/fiJXDq. Acesso em 04 nov. 2017.
27
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 154.
28
É de se destacar a ponderação construída por ANDRÉ LUCAS FERNANDES, jovem e talentoso ponteano que,
igualmente, manifestou-se no sentido de questionar as balizas centrais do texto de A. DO P. CABRAL. É de
seu texto o seguinte trecho: “[...] a primeira questão, da prudência, é o argumento colocado de forma
explícita por Adriano Soares da Costa de que a tese impugnatória não ataca elementos e teses centrais de
Pontes, e apesar do seu desvalor claro e dado valioso, não destroem o edifício de fundações bem colocadas
– eis a metáfora colocada por ele. A segunda questão é que uma pesquisa como a imaginada, creio eu que de
forma ingênua, exigiria por o método força bruta, ou seja, ler ‘página à página’, citação por citação, em
comparação com seus originais em TODOS os livros de Pontes de Miranda – além das alterações possíveis
em reedições. Uma coisa é, com todo respeito pelo resgate arqueológico de Antonio Cabral, fazer isso com
base na cirurgia titânica empreendida por Haroldo Valladão, provavelmente fruto dos sentimentos mais
energéticos. Outra coisa é fazer isso do zero” (FERNANDES, André Lucas. Sobre o problema da mitificação e
de se tocar em pontos complexos do tecido da realidade – o caso do plágio de Pontes de Miranda. Disponível em
https://goo.gl/ezN8ZY. Acesso em 07 nov. 2017).
29
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
42.
30
Idem, p. 67.
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lançamento seria o enunciado protocolar, denotativo, que constituiria o evento


(propriedade etc.) em fato jurídico, assoalhado em provas admitidas em Direito. Por
conseguinte, teríamos [no exemplo do IPTU]: (a) o evento ocorrido em 1.º de janeiro; (b) o
relato (ato de enunciação) do evento, ocorrido validamente em 25 de maio; e (c) o fato
jurídico, produto da enunciação protocolar do evento”. Isso enseja a seguinte pergunta: “se
o evento se torna fato jurídico pelo relato (lançamento), qual o enunciado
protocolar que faria jurídico o relato? Ou seja: o relato (ato de enunciação,
lançamento), para ser fato jurídico, seria relatado por qual outro ato de
enunciação (enunciado)?”31.
Poderíamos ampliar os horizontes desses questionamentos de ADRIANO SOARES DA
COSTA para outros ramos jurídicos, e tal pretensão de universalidade não se revela inútil:
trazer a abrangência da ideia pode confirmar o “acerto” de especulações filosóficas. Um
penalista poderia dizer que um crime, analiticamente considerado uma conduta típica, ilícita
e culpável32, depende do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público para que seja
considerado juridicamente existente? Mais ainda: um dogmata do direito comercial poderá
negar que determinada pessoa não exerce empresa apenas por não ter procedido com o
registro na junta comercial?
Cabe, pois, entrelaçar esses nossos questionamentos às seguintes indagações de
ADRIANO SOARES DA COSTA: “o lançamento [de um tributo] seria um fato jurídico? Se a
resposta for afirmativa, qual o enunciado protocolar, denotativo, que o juridicizaria? [...]
De onde, então, proviria a juridicidade do texto que veicula a norma individual e concreta
(ou seja, o ato de enunciação)? [...]. É evidente, desse modo, que o lançamento não obtém
sua juridicidade de qualquer enunciado protocolar. Ao revés, segundo pensamos, o lançamento
é fato jurídico porque assim qualificado pela norma geral e abstrata veiculada no art. 142 do CTN,
que incide, fazendo-o jurídico, no mundo do pensamento (Pontes de Miranda)”33. Dos exemplos de
nossa parte, poderíamos indagar: se o crime dependesse da propositura de uma peça
acusatória em juízo (para que “existisse”), a denúncia seria um fato jurídico? Ela não pode
existir com uma nulidade, e. g.? Ora, trata-se de fato jurídico assim qualificado no art. 41
do CPP. O mesmo pode ser dito, com adaptações, ao exemplo do empresário.

31
Idem, p. 68 (destaquei).
32
Segundo LUIZ REGIS PRADO, essa é a orientação majoritária, tanto que seguida por penalistas como H.
WELZEL, H-H. JESCHECK, M. ROMANO, R. MAURACH, H. ZIPF, G. FIANDACA & E. MUSCO, R. GAROFOLI,
J. CEREZO MIR, A. BRUNO, J. MESTIERI, H. C. FRAGOSO, J. F. FREDERICO MARQUES, A. M. COSTA, E. M.
NORONHA, M. REALE JR., C. R. BITTENCOURT, E. R. ZAFFARONI & J. H. PIERANGELI, J. L. LOPES, N.
BATISTA, R. GRECO, G. DE S. NUCCI, N. M. TELLES, dentre outros (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito
Penal brasileiro – parte geral. 10.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 251-252).
33
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
69-70.
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Um enlace entre K. POPPER e F. C. PONTES DE MIRANDA: uma das propostas


mais interessantes de ADRIANO SOARES DA COSTA é a de entrelaçar, teoricamente, KARL
POPPER com FRANCISCO CAVALCANTI PONTES DE MIRANDA. Este último traz, na exposição
de seu pensamento, algo que seus críticos (e os próprios ponteanos) costumam esquecer:
“todas as vezes que Pontes de Miranda define o que seja incidência, sublinha ser ela fato do
mundo do pensamento [...]. Afinal, o que seria esse mundo do pensamento, a que se referia Pontes
de Miranda?”. E responde A. S. DA COSTA:

Para que compreendamos o que Pontes de Miranda denomina de mundo


do pensamento, é necessário ter presente que ele não desconhecia a lógica
moderna, nem tampouco lhe eram estranhos os problemas da filosofia
da linguagem, sobre tudo aqueles enfrentados pelo primeiro
Wittgenstein do Tractatus Logico-Philosophicus. Embora não tenha tido a
preocupação de empregar de modo distintos os signos “lei” e “regra
jurídica”, a ele não passou despercebida a distinção entre “texto” e
“significação”, tão cara à teoria carvalhiana. Porém, ao contrário do
eminente professor paulista, Pontes de Miranda não via o Direito apenas
como linguagem, mas sobretudo como processo de adaptação social 34.
O Direito existe para submeter o mundo social a uma certa ordem e
previsibilidade. Sendo assim, o conteúdo dos sinais ópticos dos textos
positivados, apreendido pelo intérprete, não esgota o processo de
revelação da norma jurídica. A interpretação individual não cria norma:
norma é fato do mundo social35.

Portanto, aquilo que PONTES DE MIRANDA chamava de “mundo de pensamento”


seria “uma realidade que ultrapassa a subjetividade, situado nessa dimensão simbólica do
homem, que o transcende e tem realidade própria, metapessoal”36.
E KARL POPPER? Este, “na esteira de Frege, percebeu nitidamente a insuficiência
da dualidade do mundo material/mundo mental sobre a qual se ergueu a Filosofia”,
propondo “três mundos: o primeiro é o mundo material, ou mundo dos estados
materiais; o segundo é o mundo mental, ou mundo dos estados mentais; o terceiro é o
mundo dos inteligíveis ou das idéias no sentido objetivo” (destaquei)37. Essa influência de
POPPER sobre ADRIANO SOARES DA COSTA faz a ontognoseologia deste ter um plus,

34
Aliás, é da leitura do 1.º tomo do Sistema de ciência positiva do direito que EDUARDO JOSÉ DA FONSECA COSTA
concluiu que F. C. PONTES DE MIRANDA vislumbrava a ciência do direito como uma sociologia especializada
(COSTA, Eduardo José da Fonseca. O “direito vivo” das liminares: um estudo pragmático sobre os pressupostos
para a sua concessão. Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009, f. 19).
35
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
44-45.
36
Idem, p. 50.
37
Idem, p. 50.
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consistente no aceite da premissa de que este “terceiro mundo” de POPPER e,


automaticamente, numa atitude intelectual contra relativismos exagerados.
Basicamente, os três mundos de KARL POPPER seriam os seguintes:

Como se nota, não parece haver entre os “mundos” de POPPER uma hierarquia;
mas entre o mundo mental e o mundo dos inteligíveis há uma distância abissal: o sujeito
cognoscente tem de aceitar que há objetos ideais, apriorizáveis, e a própria interpretação reside
neste mundo, do qual o sujeito cognoscente não é dono.
É que “mesmo o ato subjetivo ou estado disposicional de compreensão só pode ser
compreendido, por sua vez, através de suas conexões com o terceiro mundo. É dizer: o
produto da interpretação se descola do sujeito cognoscente, passando a ser
algo pensado, comunicável e, por isso mesmo, objetivável. Essa significação
intersubjetiva, para além do sujeito que pensa, é (existe) no mundo do
pensamento”38. Assim, para darmos mais exemplos, ninguém em sã consciência se dirigirá
ao concerto de IRON MAIDEN esperando a execução de um LAMARTINE BABO; nenhum

38
Idem, p. 52 (destaquei).
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torcedor flamenguista ousará cantar “Botafogo, Botafogo, Campeão desde 1910”, como
nenhum torcedor vascaíno cantará que é “tricolor de coração”.
O que autoriza um magistrado fixar honorários advocatícios abaixo do mínimo de
dez, por exemplo? A redação do § 2.º do art. 85 do CPC/2015 não é clara? O que explica
tanto entusiasmo sobre o jurista (sujeito cognoscente) e tanto menosprezo sobre a lei
(objeto)?
Outro exemplo: o parágrafo único art. 1.379 do Código Civil consagra prazo de
vinte anos para usucapião de servidões. O enunciado 39 de n.º 251 do Conselho da Justiça
Federal, porém, aduz: “o prazo máximo para o usucapião extraordinário de servidões deve
ser de 15 anos, em conformidade com o sistema geral de usucapião previsto no Código
Civil”. O que autoriza o jurista enxergar “20” no lugar de “15”? O que autoriza essa
repercussão autoritária sobre o “terceiro mundo” de KARL POPPER?
E a relação entre POPPER e PONTES DE MIRANDA sugerida por ADRIANO SOARES
DA COSTA é a seguinte:

Haveria alguma relação entre a teoria pontesiana da incidência da norma


jurídica, no plano do pensamento, e a teoria dos três mundos de Popper?
Gaetano Carcaterra, professor de Filosofia do Direito da Universidade
de Roma “La Sapienza”, aponta-nos na teoria do conhecimento
desenvolvida por Pontes de Miranda, o elo de ligação. De fato, Pontes
concebeu a teoria dos “jetos”, pondo entre parêntesis o “sub” e o “ob” do
“su(b)-jeito” e do “ob-jeto”, extraindo deles o que sobraria de comum no
processo do conhecimento: o “jeto”. Mais ainda: separou o “-jeto” (com
traço anteposto) – antes da extração do “jeto” do objeto pelo sujeito –
do “jeto” como tal, como conhecimento assubjetivado. O “jeto” seria a
realidade para além do sujeito que quer conhecer e do objeto que se
deixa conhecer. É dizer, seria uma terceira realidade, além do objeto
(mundo material) e do sujeito (mundo mental)40.

O caráter excludente do realismo linguístico de PAULO DE BARROS


CARVALHO: ao reduzir o direito apenas ao que as autoridades disserem no que ele consiste, P.
DE B. CARVALHO ignora um sem número de condutas humanas jurídicas. Desde o simples
comprar de um pãozinho na padaria até a observância ordinária das normas de trânsito: “se
uma pessoa vem em seu veículo e para o carro diante de um sinal luminoso vermelho, sua
atitude de parar seu automóvel decorre do atendimento aproblemático da norma jurídica,

39
Para uma crítica (praticamente isolada, infelizmente!) a respeito dos enunciados, cf. SILVEIRA, Marcelo
Pichioli da. Poder semiótico de enunciados “doutrinários” é preocupante. Empório do Direito, Florianópolis,
out. 2017. Disponível em: https://goo.gl/SovbVe. Acesso em 04 nov. 2017
40
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
52.
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socialmente vivida, de que, diante de um sinal vermelho no trânsito, deve o condutor do


veículo pará-lo. Se, ao sinal verde, volta a pôr em movimento seu carro, mais uma vez
atende à norma jurídica que dispõe sobre as condutas devidas no fluir do trânsito. Esse agir
humano, subordinado a normas jurídicas, dentro de um consenso pré-reflexivo, como nossas
ações cotidianas e nossa percepção aproblemática no contexto em que nossas vidas se dão,
como ser-aí (pre-sença), é o que chamamos de mundo da vida, que, embora experienciado,
não é objetivado nem objetivável: é vivenciado” 41. Para PAULO DE BARROS CARVALHO e seus
adeptos (TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM, por exemplo), a pessoa que para seu carro diante
do sinal vermelho só está no bojo de um fato social42-43...
Pois bem: a teoria carvalhiana chega ao extremo de reduzir a norma hipotética
fundamental de um HANS KELSEN apenas ao evento da assembleia constituinte. E aí vem o
brilho de ADRIANO SOARES DA COSTA ao ponderar: “qual não é a surpresa ao se perceber
que, em verdade, esse órgão é havido por competente apenas porque há uma norma anterior
que o qualifica como tal, a norma fundamental”44... Eis o relativismo extremado da teoria
carvalhiana: nela, “a norma jurídica (significação) [...] seria construída pelo intérprete no
ato de aplicação do Direito, a partir do texto jurídico (significante). O significante, todavia,
não conteria significação alguma: seria mera dimensão gráfica e material do signo. Essa a
razão pela qual não adotamos a teoria de Paulo de Barros Carvalho, porque levaria a um
relativismo hermenêutico extremado, ficando a norma, como significação, à
mercê da construção individual do intérprete. Como entabular um consenso se
cada qual produz a ‘sua’ norma a partir de um mesmo texto positivo?”45.
Essa discussão não encerra um “sexo dos anjos”, podendo descambar para temas
sensíveis da processualística civil. Apenas para endossar as propostas de ADRIANO SOARES
DA COSTA, perguntamos: o que seria um título executivo? Um ato jurídico com eficácia

41
Idem, p. 62.
42
Idem, p. 95.
43
Outro exemplo: “se alguém compra um refrigerante, paga e o consome, e se o vendedor não emitir um
recibo de quitação, não teria havido juridicamente pagamento”, como defenderia um dos importantes
adeptos da teoria carvalhiana, TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM. Nessa ótica, “sem essa emissão de um
documento positivo de quitação não haveria falar em fato jurídico” (COSTA, Adriano Soares da. Teoria da
Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 97). Ora, CARLOS ROBERTO GONÇALVES
nos mostra o quão complexa é a natureza jurídica do pagamento, havendo profundas divergências entre os
civilistas. De qualquer maneira, depois de arrolar teses de SILVIO RODRIGUES, de FRANCESCO CARNELUTTI,
de ORLANDO GOMES, de ROBERTO DE RUGGIERO, de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, de ANDREAS VON
TUHR, de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO e de ALBERTO TRABUCCHI, conclui que o pagamento pode
ter natureza jurídica de ato jurídico lato sensu; de ato jurídico stricto sensu; ou mesmo de negócio jurídico,
bilateral ou unilateral, conforme o caso (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Teoria Geral
das Obrigações. 13.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 256-258). Como se percebe, pagamento é algo bem
diverso do documento que eventualmente o instrumentaliza.
44
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
87.
45
Idem, p. 89-90 (destaquei).
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executiva ou o documento que eventualmente o tenha instrumentalizado? Seria o tema tão-


somente uma questão probatória?
Um FRANCESCO CARNELUTTI partirá da premissa de que, enquanto o processo “de
conhecimento” se satisfaz, simplesmente, com uma pretensão; o processo “de execução”
invoca, para sua instauração, um pedido que esteja conforme ao direito 46. Assim, o juízo da
execução só teria condições de presidir a tutela executiva se houvesse um projeto seguro
para a indicação desse caminho47. Nesta lógica, jamais haveria absoluta certeza em torno do
crédito, e o título faria, pois, prova legal ou integral do crédito 48. Isso quer dizer que
CARNELUTTI encara o título como verdadeiro ato documentado (parece aproximar-se, pois,
das propostas de PAULO DE BARROS DE CARVALHO — ou este daquele). O título, pois, seria
um documento representativo de um crédito. Seria, digamos assim, a pura versão física do
documento ou, grosso modo, o “papel”49.
Não é sem razão que tal proposta é muito criticada pelos processualistas. Em pós-
graduação por mim cursada, o Prof. ALEXANDRE FREITAS CÂMARA asseverou que esta visão
deve ser evitada. Os argumentos são bem interessantes, e são reproduzidos conforme as
seguintes notas de aula obtidas por mim:

[...] a sentença, por exemplo, é título executivo. É o único título


presente em todos os ordenamentos processuais do mundo. A noção
processual de sentença não se reduz a um “documento”, nem a um
“pedaço de papel”. É um ato do juiz. O título é um ato jurídico, não o
documento. O título executivo é o ato jurídico que recebe da lei eficácia
executiva. A lei escolhe alguns atos e estes que escolhe atribui uma
eficácia que os outros atos jurídicos não têm. É a eficácia executiva. Os
atos a que a lei tenha atribuído eficácia executiva são títulos executivos.
É a lei, e só a lei, que pode dotar de eficácia executiva alguns atos. [...].
A lei indica um certo ato e atribui a este ato a eficácia executiva. Por
eficácia executiva entende-se a especial aptidão para permitir a
incidência da responsabilidade patrimonial. A responsabilidade permite
uma agressão ao patrimônio. O título executivo permite a incidência da
responsabilidade patrimonial, viabilizando as agressões patrimoniais50.

46
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 159.
47
O próprio F. CARNELUTTI chegou a fazer uma analogia entre esta ideia com a execução da construção de
um edifício: o engenheiro da execução da obra seguirá, necessariamente, um projeto (cf. CARNELUTTI,
Francesco. Diritto e processo. Nápoles: Morano, 1958, p. 312).
48
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 159.
49
Segundo ARAKEN DE ASSIS, são defensores desta ideia ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E
NORA, ANDRÉS DE LA OLIVA SANTOS e MIGUEL ANGEL FERNÁNDEZ (ASSIS, Araken de. Manual da Execução.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 159). ALEXANDRE FREITAS CÂMARA inclui neste rol, ainda,
PAOLO D’ONOFRIO, NICOLA JAEGER e PRIETO-CASTRO Y FERRÁNDIZ (CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições
de direito processual civil – volume 2. São Paulo: Atlas, 2014, p. 184).
50
CÂMARA, Alexandre Freitas. Aula 1: Módulo de Execução Forçada e Tutelas de Urgência. 2014. Notas
de aula. Tomando nota dessa minha comparação das teses de ADRIANO SOARES DA COSTA com a discussão
da natureza jurídica do título executivo, ROBERTO CAMPOS GOUVEIA FILHO me provou a interessante
discussão. Disse o processualista pernambucano: “há relevância de ter a sentença como um título executivo?
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Com efeito, a dogmática aponta várias razões para que a proposta de CARNELUTTI
não seja observada: 1.ª) dizer que o demandante precisa apresentar um documento é, a
rigor, exigir dele uma prova, e o direito não é objeto de prova; 2.ª) se o título fosse uma
prova, haveria cognição estranha ao rito executivo, já que o juízo teria que afirmar se a
existência do crédito foi, ou não, demonstrada pelo exequente; e 3.ª) não se pode confundir
o ato jurídico com a sua forma51.
Há quem diga que, em verdade, CARNELUTTI não passou de alguém que
recepcionou uma concepção de título de procedimentalistas como LODOVICO MORTARA,
RICCI e MANFREDINI52.
Por outro lado, um processualista como ENRICO TULLIO LIEBMAN fez frente ao
posicionamento do título enquanto documento. Defendeu a teoria do título executivo como
ato jurídico, em tese que logrou a adesão de muitos processualistas brasileiros 53.
De acordo com TEORI ALBINO ZAVASCKI, a exposição de LIEBMAN chegou a fazer
com que F. CARNELUTTI revisasse alguns de seus conceitos, sem deixar de defender, porém,
a natureza jurídica documental do título executivo, reconhecendo, por outro lado, que o
uso da expressão “prova legal” fora incapaz de descrever o fenômeno que objetivava
demonstrar54.
Na síntese do próprio LIEBMAN, “título executório é [...] um ato jurídico dotado
de eficácia constitutiva, porque é fonte imediata e autônoma da ação executória, a qual, por
conseguinte, é, em sua existência e em seu exercício, independente do crédito”. Por isso,
prossegue, “não somente se torna dispensável, mas supérflua e irrelevante qualquer prova
do crédito: o título basta para a existência da ação executória”55.
Não queremos, aqui, encerrar a discussão travada pela processualística sobre a
efetiva natureza do título executivo; a ideia é, apenas, a de fomentar uma abrangência ainda

O sentido deste não seria o de algo que é equiparado àquela? A executividade da decisão está no próprio ser
dela: no ser atividade judicial. É dizer: é executiva porque é sentença. Agora, a outras atividades faz-se
necessária a equiparação. Daí se falar em título executivo”. Seria redundante, disse-me, prever a sentença
como título executivo judicial. Completa: “a teoria do título executivo é servível aos extrajudiciais”.
51
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil – volume 2. São Paulo: Atlas, 2014, p. 185.
Este autor nos lembra, ainda, que o Código de Processo Civil de 1939 tratara o contrato verbal de locação
como título executivo (art. 298, inciso IX).
52
“No fundo, o enunciado de Carnelutti recepciona a concepção primitiva sobre o título, encontrada em
procedimentalistas do jaez de Mortara, Ricci e Manfredini” (ASSIS, Araken de. Manual da Execução. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 159).
53
Entram neste rol ALEXANDRE FREITAS CÂMARA (CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual
civil – volume 2. São Paulo: Atlas, 2014, p. 186), CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO (DINAMARCO, Cândido
Rangel. Execução Civil. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 480), SÉRGIO SHIMURA (SHIMURA, Sérgio. Título
executivo. São Paulo: Saraiva, p. 112), dentre outros.
54
ZAVASCK, Teori Albino. Título Executivo e Liquidação – coleção de estudos de processo Enrico Tullio Liebman.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 57.
55
LIEBMAN, Tulio Enrico. Embargos do Executado – oposições de mérito no processo de execução. São Paulo:
Saraiva, 1968, p. 135.
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maior para a discussão travada por ponteanos e por ADRIANO SOARES DA COSTA, de um
lado; e por juristas como PAULO DE BARROS CARVALHO e TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM, de
outro.
A grande luta intelectual travada por ADRIANO SOARES DA COSTA, ao menos no
âmbito jurídico, é a de nos avisar que o sujeito cognoscente (o jurista) não pode tudo. Ele
tem freios, limites. A linguagem tem de ser construída sobre o mundo empírico em que vivemos; sob
pena de abstrações inúteis ou, mesmo de um engrandecer perigoso do sujeito cognoscente,
que tudo pode... Inclusive transformar “vinte” em “quinze” (vide o exemplo do enunciado
n.º 251 do CJF); criar teses contra legem; autorizar o Poder Judiciário a fazer as vezes do
Poder Executivo; possibilitar a execução provisória da pena, sem trânsito em julgado (contra
a lúcida redação do inciso LVII do art. 5.º da Constituição Federal) 56 — o que autoriza o
jurista a operar com “hermenêutica” que altere o significado de “trânsito em julgado”?
Um link interessante com a tese de ADRIANO pode ser feito com a melancólica e
angustiante história de um rapaz que perde os olhos, o nariz, a boca e a audição após a
explosão de um petardo durante a guerra (Johnny Got His Gun, de DALTON TRUMBO, 1971).
Esse é o filme cujos trechos são exibidos no clipe da música One, do METALLICA (letra de
LARS ULRICH, o baterista, e de JAMES HETFIELD, o vocalista)57.
Como se pode imaginar, Johnny fica preso em seu próprio corpo: tem, apenas, o
tato que restou em seu tronco e em sua testa (já que também perdeu os membros superiores
e inferiores). O filme é uma verdadeira lição para o sujeito cognoscente que se acha maior
que o objeto, que o mundo da vida em que está inserido.
Curiosamente, o alento de Johnny é... Justamente o pouco de realidade exterior
que lhe sobra! Um momento interessante do clipe é aquele em que a enfermeira consegue
escrever, em seu peito, “merry christmas”. Johnny só consegue captar o sentido da frase...
Porque sentiu as letras M-E-R-R-Y C-H-R-I-S-T-M-A-S em seu peito. Uma prova cabal do
“mundo 3” de POPPER.
Ao final do filme, Jhonny consegue se comunicar com a junta médica militar que
dele cuidava através de Código Morse. Pedia, desesperadamente, o fim de sua vida. O
pedido lhe é negado; o fim do filme é um melancólico Jhonny sobre a cama clamando S.O.S.
Isso explica, aliás, a letra de One: “Landmine has taken my sight, taken my speech, taken my hearing,
taken my arms, taken my legs, taken my soul... Left me with life in Hell” [tradução livre: “o campo
minado retirou minha vista, minha fala, minha audição, meus braços, minhas pernas, minha
alma. Me deixou com vida no inferno”].

56
Cf. STF, ADC n.º 43 e ADC n.º 44.
57
Cf. https://www.youtube.com/watch?v=EzgGTTtR0kc.
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Eis a figura de um sujeito cognoscente desprovido da realidade em que está inserido...

Em arremate, uma leitura séria e atenta da obra agora resenhada pode sugerir que
ADRIANO SOARES DA COSTA foi além de um mero diálogo crítico com as propostas teóricas
de PAULO DE BARROS CARVALHO e adeptos. Trata-se de uma empreitada teórica que logrou
alcance maior que seu propósito inicial: temos uma verdadeira proposta teórica de
hermenêutica jurídica, preocupada com a dialética cognitiva do sujeito/jurista com o seu
objeto/norma. ADRIANO SOARES DA COSTA labora no deôntico com sua bagagem ponteana
(sempre levando em conta o “mundo do pensamento” a que se referia F. C. PONTES DE
MIRANDA), sem deixar de considerar questões ônticas e axiológicas no estudo de um jurista.
Não é sem razão que sustenta o seguinte:

Toda a análise que fizemos até agora ainda é insuficiente para demonstrar
as limitações do reducionismo da teoria carvalhiana. De fato, quando
procedemos à análise do todo (objeto) estávamos pressupondo sempre a
relação sujeito/objeto, nos moldes das teorias do conhecimento
construídas com assento subjetivista. Como é cediço, durante a história
do conhecimento humano a verdade sempre foi vista como
correspondência entre as representações do sujeito cognoscente e as
coisas conhecidas. Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de
Aquino, Hume, Russell, Carnap, primeiro Wittgenstein etc., em que
pese às diversas escolas e correntes de pensamento, tomavam a verdade
como analítica da linguagem, chegando aos extremos da abordagem da
filosofia analítica da linguagem, de haver por científicas apenas as
proposições protocolares (Schlick, Carnap) ou atômicas (Wittgenstein),
que empiricamente pudessem ser comprovadas. De outra banda,
seguindo as pegadas de Descartes (Kant entre eles), não faltaram os que
vissem a verdade como adequação do sujeito do pensamento ao objeto
pensado. O objeto mesmo ficou de fora do lado do
conhecimento, como nomenon, sendo a verdade uma
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propriedade exclusivamente mental e, portanto,


eminentemente subjetiva. O sujeito passou, sobretudo em
Kant, a construir o objeto através de suas representações, do
poder nomotético do espírito.
Entretanto, ambas as concepções, com suas inúmeras
vertentes, tomam o sujeito como apto a conhecer, per se, o
objeto, desvinculando-o do mundo da vida. Tomam-se o sujeito
e o objeto transcendentalmente, para, além da experiência, do sujeito e
do objeto, hic et nunc58.

O grande questionamento do jurista alagoano agora estudado é o seguinte: “se


todos constroem significações e todas elas são válidas, como saber qual norma (entre tantas
normas criadas pelos diversos intérpretes) é aplicável e deve ser seguida? Como construir
um sentido comum que permita aos cidadãos saberem a fronteira entre o lícito e ilícito?” 59.
O quinto e capítulo é reservado para uma pontual discussão sobre aquilo que se
convencionou designar de “cláusula geral”: uma “crise do princípio da legalidade” conduziu-
nos ao optar de técnicas legislativas centradas em texturas abertas... Em contrapartida, surge
o acentuado problema da discricionariedade de atos administrativos. Parece-me ganhar relevo,
aqui, a divisão proposta no direito anglo-saxão em de agentes públicos em
administradores de elite, em supervisores gestores, e em agentes de rua (street-
level bureaucrats)60. Dentro dessas categorias, pergunta-se: todos eles têm margem de liberdade?
Se sim... Todas essas margens podem ser chamadas de discricionariedade?
Exemplos61:

(1) o bombeiro que tem o dever funcional de salvar pessoas. Num momento de
perigo, em determinado prédio, este bombeiro se depara com uma senhora de 70
anos clamando por socorro e com outra menina bonita desacordada. Quem ele
salva? Seu código interno estabelece que ele deve salvar a pessoa sã, pois só tem
tempo para salvar uma. Se ambas estivessem acordadas, o bombeiro teria que
decidir: ele teria uma margem de liberdade. Essa margem de liberdade é
discricionariedade?

(2) um médico de hospital público (portanto, agente público). Duas pessoas


chegam baleadas – o ladrão, que tentava assaltar; e a vítima, que também deu
entrada no hospital. O policial provavelmente dirá quem é quem. O médico tem
o dever de salvar quem? Quem tem a maior chance de vida. Se só tem tempo e
instrumentos hábeis para salvar um, tem também uma margem de liberdade de
decisão. Essa margem de liberdade é, também, discricionariedade?

58
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
148-149.
59
Idem, p. 152.
60
Sobre o assunto, cf., por todos, LIPSKY, Michael. Street-level bureaucracy: dilemmas of the individual in public
services. Nova York: Russel Sage Foundation, 1980.
61
Os exemplos são do Prof. ANDRÉ SADDY. Foram trabalhados em aula de pós-graduação lato sensu de direito
administrativo, cursada por este que vos escreve.
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São propostas que faço ao gentil e inteligente autor alagoano, ao qual presto minhas
homenagens nesta resenha.

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