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ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia

Diretoria 2015-2016
Marcelo Carvalho (UNIFESP)
Adriano N. Brito (UNISINOS)
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros (USP)
Antônio Carlos dos Santos (UFS)
André da Silva Porto (UFG)
Ernani Pinheiro Chaves (UFPA)
Maria Isabel de Magalhães Papa-Terra Limongi (UPFR)
Marcelo Pimenta Marques (UFMG)
Edgar da Rocha Marques (UERJ)
Lia Levy (UFRGS)

Diretoria 2013-2014
Marcelo Carvalho (UNIFESP)
Adriano N. Brito (UNISINOS)
Ethel Rocha (UFRJ)
Gabriel Pancera (UFMG)
Hélder Carvalho (UFPI)
Lia Levy (UFRGS)
Érico Andrade (UFPE)
Delamar V. Dutra (UFSC)

Equipe de Produção
Daniela Gonçalves
Fernando Lopes de Aquino

Diagramação e produção gráfica


Maria Zélia Firmino de Sá

Capa
Cristiano Freitas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Hegel / Organizadores Marcelo Carvalho, Ricardo Tassinari, José


H361 Pertille. São Paulo : ANPOF, 2015.
393 p. – (Coleção XVI Encontro ANPOF)
Bibliografia
ISBN 978-85-88072-21-3
1. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831 2. Filosofia
alemã I. Carvalho, Marcelo II. Tassinari, Ricardo III. Pertille, José
IV. Série
CDD 100
COLEÇÃO ANPOF XVI ENCONTRO

Comitê Científico da Coleção: Coordenadores de GT da ANPOF

Alexandre de Oliveira Torres Carrasco (UNIFESP)


André Medina Carone (UNIFESP)
Antônio Carlos dos Santos (UFS)
Bruno Guimarães (UFOP)
Carlos Eduardo Oliveira (USP)
Carlos Tourinho (UFF)
Cecília Cintra Cavaleiro de Macedo (UNIFESP)
Celso Braida (UFSC)
Christian Hamm (UFSM)
Claudemir Roque Tossato (UNIFESP)
Cláudia Murta (UFES)
Cláudio R. C. Leivas (UFPel)
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso (UECE)
Daniel Nascimento (UFF)
Déborah Danowski (PUC-RJ)
Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ)
Dirk Greimann (UFF)
Edgar Lyra (PUC-RJ)
Emerson Carlos Valcarenghi (UnB)
Enéias Júnior Forlin (UNICAMP)
Fátima Regina Rodrigues Évora (UNICAMP)
Gabriel José Corrêa Mograbi (UFMT)
Gabriele Cornelli (UnB)
Gisele Amaral (UFRN)
Guilherme Castelo Branco (UFRJ)
Horacio Luján Martínez (PUC-PR)
Jacira de Freitas (UNIFESP)
Jadir Antunes (UNIOESTE)
Jarlee Oliveira Silva Salviano (UFBA)
Jelson Roberto de Oliveira (PUCPR)
João Carlos Salles Pires da Silva (UFBA)
Jonas Gonçalves Coelho (UNESP)
José Benedito de Almeida Junior (UFU)
José Pinheiro Pertille (UFRGS)
Jovino Pizzi (UFPel)
Juvenal Savian Filho (UNIFESP)
Leonardo Alves Vieira (UFMG)
Lucas Angioni (UNICAMP)
Luís César Guimarães Oliva (USP)
Luiz Antonio Alves Eva (UFPR)
Luiz Henrique Lopes dos Santos (USP)
Luiz Rohden (UNISINOS)
Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP)
Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA)
Maria Aparecida Montenegro (UFC)
Maria Constança Peres Pissarra (PUC-SP)
Maria Cristina Theobaldo (UFMT)
Marilena Chauí (USP)
Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA)
Milton Meira do Nascimento (USP)
Osvaldo Pessoa Jr. (USP)
Paulo Ghiraldelli Jr (UFFRJ)
Paulo Sérgio de Jesus Costa (UFSM)
Rafael Haddock-Lobo (PPGF-UFRJ)
Ricardo Bins di Napoli (UFSM)
Ricardo Pereira Tassinari (UNESP)
Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS)
Sandro Kobol Fornazzari (UNIFESP)
Thadeu Weber (PUCRS)
Wilson Antonio Frezzatti Jr. (UNIOESTE)
Apresentação da Coleção
XVI Encontro Nacional ANPOF
 

A publicação dos 24 volumes da Coleção XVI Encontro Nacio-


nal ANPOF tem por finalidade oferecer o acesso a parte dos trabalhos
apresentados em nosso XVI Encontro Nacional, realizado em Campos
do Jordão entre 27 e 31 de outubro de 2014. Historicamente, os encon-
tros da ANPOF costumam reunir parte expressiva da comunidade de
pesquisadores em filosofia do país; somente em sua última edição, foi
registrada a participação de mais de 2300 pesquisadores, dentre eles
cerca de 70% dos docentes credenciados em Programas de Pós-Gradu-
ação. Em decorrência deste perfil plural e vigoroso, tem-se possibilita-
do um acompanhamento contínuo do perfil da pesquisa e da produção
em filosofia no Brasil.
As publicações da ANPOF, que tiveram início em 2013, por
ocasião do XV Encontro Nacional, garantem o registro de parte dos
trabalhos apresentados por meio de conferências e grupos de traba-
lho, e promovem a ampliação do diálogo entre pesquisadores do país,
processo este que tem sido repetidamente apontado como condição ao
aprimoramento da produção acadêmica brasileira.
É importante ressaltar que o processo de avaliação das
produções publicadas nesses volumes se estruturou em duas etapas.
Em primeiro lugar, foi realizada a avaliação dos trabalhos submetidos
ao XVI Encontro Nacional da ANPOF, por meio de seu Comitê
Científico, composto pelos Coordenadores de GTs e de Programas de
Pós-Graduação filiados, e pela diretoria da ANPOF. Após o término
do evento, procedeu-se uma nova chamada de trabalhos, restrita aos
pesquisadores que efetivamente se apresentaram no encontro. Nesta
etapa, os textos foram avaliados pelo Comitê Científico da Coleção
ANPOF XVI Encontro Nacional. Os trabalhos aqui publicados foram
aprovados nessas duas etapas. A revisão final dos textos foi de respon-
sabilidade dos autores.
A Coleção se estrutura em volumes temáticos que contaram, em
sua organização, com a colaboração dos Coordenadores de GTs que
participaram da avaliação dos trabalhos publicados. A organização te-
mática não tinha por objetivo agregar os trabalhos dos diferentes GTs.
Esses trabalhos foram mantidos juntos sempre que possível, mas com
frequência privilegiou-se evitar a fragmentação das publicações e ga-
rantir ao leitor um material com uma unidade mais clara e relevante.
Esse trabalho não teria sido possível sem a contínua e qualificada
colaboração dos Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em
Filosofia, dos Coordenadores de GTs e da equipe de apoio da ANPOF,
em particular de Fernando L. de Aquino e de Daniela Gonçalves, a
quem reiteramos nosso reconhecimento e agradecimento.
 
Diretoria da ANPOF
 
Títulos da Coleção ANPOF XVI Encontro
Estética e Arte
Ética e Filosofia Política
Ética e Política Contemporânea
Fenomenologia, Religião e Psicanálise
Filosofia da Ciência e da Natureza
Filosofia da Linguagem e da Lógica
Filosofia do Renascimento e Século XVII
Filosofia do Século XVIII
Filosofia e Ensinar Filosofia
Filosofia Francesa Contemporânea
Filosofia Grega e Helenística
Filosofia Medieval
Filosofia Política Contemporânea
Filosofias da Diferença
Hegel
Heidegger
Justiça e Direito
Kant
Marx e Marxismo
Nietzsche
Platão
Pragmatismo, Filosofia Analítica e Filosofia da Mente
Temas de Filosofia
Teoria Crítica
Apresentação

O conjunto dos 28 trabalhos aqui apresentados pelos integrantes


do GT Hegel é a expressão do estudo e da pesquisa realizados atu-
almente sobre Hegel nos Cursos de Pós-Graduação em Filosofia do
Brasil. Fruto do trabalho de docentes, doutores, doutorandos, mestres
e mestrandos, nele é possível perceber o alto grau de maturidade e de
profundidade em que se encontra, hoje, no Brasil, a pesquisa e o estu-
do do pensamento hegeliano e de sua relação com demais autores e
com nosso tempo presente.
Os textos foram agrupados de acordo com três grandes eixos.
Questões lógicas, fenomenológicas, metafísicas e estéticas: sob este tema,
encontram-se os textos que tratam temas e conceitos relativos à lógica,
à fenomenologia, à metafísica e à estética no pensamento de Hegel.
Questões morais, éticas e políticas: nessa parte, encontram-se trabalhos
que tratam de um dos aspectos mais estudados do pensamento hege-
liano, as dimensões morais, éticas e políticas do ser humano. Hegel em
perspectiva: aqui, encontram-se os textos que confrontam o pensamento
hegeliano com o pensamento de demais autores.
Os enfoques de tais trabalhos são variados. Têm-se: textos de
exegese do texto hegeliano, em suas várias interpretações; estudos
do pensamento de Hegel frente a outros autores, como Platão, Tomás
de Aquino, Descartes, Nietzsche, Fichte, Schelling, Feuerbach e Hei-
degger; e pesquisas que buscam confrontar o pensamento hegeliano
com o momento presente. Nesse contexto, tal busca de atualização do
pensamento hegeliano mostra como esse pensamento ainda se encon-
tra vivo e passível de incorporar a diversidade de visões, na medida,
principalmente, em que essa diversidade, desde o tempo de Hegel,
é assumida como necessária e constitutiva desse próprio pensamen-
to. Inversamente, tal atualização do pensamento hegeliano mostra a
necessidade e atualidade dos estudos de tipo histórico-filosófico, na
medida em que se torna necessário o aprofundamento na análise dos
conceitos hegelianos, para tal confronto com o tempo presente.
A história do GT Hegel remonta a 1998, quando a Assembléia
Geral da ANPOF, fundada em 1983, decide promover a criação de
Grupos de Trabalho. Nessa época, surge o GT A Matriz Hegeliana da
Crítica Filosófica da Modernidade Política. Em 2002, para ampliar o foco
de interesse em mais dimensões do pensamento hegeliano, o GT passa
a denominar-se GT Matrizes Hegelianas da Crítica da Modernidade. Em
2004, fruto da interação cada vez mais estreita entre o GT e a Sociedade
Hegel Brasileira (SHB), fundada em 2001, decidiu-se tomar como obje-
to de estudo e pesquisa do GT a filosofia hegeliana em geral, com suas
diversas temáticas e sua pluralidade de interpretações, quando passou
a ser denominado de GT Hegel.
Hoje, os trabalhos aqui apresentados revelam o papel central
que o GT Hegel desempenhou e vem desempenhando, desde 1998,
no cenário da pesquisa em Filosofia nos Cursos de Pós-Graduação em
Filosofia no Brasil, no que concerne ao pensamento hegeliano, na me-
dida em que a maior parte dos autores ou já eram membros do GT ou
foram formados por esses membros. Mostra ainda o resultado de um
processo, que desde sua criação, tem sido realizado com empenho e
dedicação pelas coordenações do GT Hegel e pelos seus integrantes,
bem como tem sido espontâneo, pois, é a expressão da vontade e da
paixão de seus membros por esse pensamento.
Oferecemos, pois, aqui, esses trabalhos aos leitores interessados
seja em aprofundar seus conhecimentos em Hegel seja em simples-
mente conhecer esse instigante pensador, esperando que encontrem
neles pelo menos parte da satisfação que encontramos em realizá-los.

Ricardo Pereira Tassinari


Coordenador GT Hegel 2015-2016
José Pinheiro Pertille
Coordenador GT Hegel 2010-2014
Sumário

Questões lógicas, fenomenológicas, metafísicas e estéticas

Teoria da Infinitude na Lógica do Ser de Hegel


Agemir Bavaresco 15

O Silogismo dialético como corolário da Metafísica do Espírito
Alfredo de Oliveira Moraes 28

O encadeamento entre a Fenomenologia e a Lógica no sistema


em Hegel
Marcia Zebina Araujo da Silva 39

Ceticismo e exame do conhecer na Introdução à


Fenomenologia do Espirito
Luiz Fernando Barrére Martin 54

A Efetividade como manifestação do Absoluto


Marloren Lopes Miranda 66

O significado e o conteúdo da música na estética de Hegel


Adriano Bueno Kurle 76

O conceito de Erfahrung em Hegel


Carla Vanessa Brito de Oliveira 92

As implicações dialético-históricas do tema do “fim da arte”


na estética de Hegel
Guilherme Ferreira 100

Religião e Filosofia no jovem Hegel


Rosana de Oliveira 112

Questões morais, éticas e políticas

Universalismo e particularismo na eticidade hegeliana


José Pinheiro Pertille 129
Práticas Compartilhadas e Justificação de Normas: revisitando
a discussão de Hegel acerca da “suspensão”
da moralidade na eticidade
Erick Calheiros de Lima 143

Expresión y retrospección: la concepción hegeliana de la acción


Juan Ormeño Karzulovic 161

Da coisa quebrada à dignidade da pessoa na Filosofia


do Direito de Hegel
Pedro Geraldo Aparecido Novelli 179

A Auto-determinação do Sujeito Moral na Filosofia do
Direito de Hegel
Paulo Roberto Monteiro de Araujo 194

A apresentação do conceito de família na Filosofia do
Direito – a substancialidade imediata do espírito
Greice Ane Barbieri 213

A estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel


Marly Carvalho Soares 225

A Liberdade Efetivada no Estado Hegeliano


Bárbara Santiago de Souza 245

O estado de guerra em Hegel


Rodrygo Rocha Macedo 253

A Revolução sob a ótica Hegeliana: Implicações no Estado


Contemporâneo
Henrique José da Silva Souza 265

O Estado como Fundamento da História em Hegel
Pedro Henrique Fontenele Teles 278

Hegel em perspectiva

Proposição pós-moderna do idealismo especulativo puro:


Uma intervenção no confronto de Heidegger
e Schelling versus Hegel
Manuel Moreira da Silva 291

A Liberdade para o Bem (Abordagem vaziana sobre a vida
ética em diálogo com Platão e Hegel).
Maria Celeste de Sousa 308

As Conferências de 1804 de Fichte diante do Sistema no


Differenzschrift (1801) de Hegel
Luciano Carlos Utteich 326

Objetivação e Essência Genérica em Ludwig Feuerbach


João Batista Mulato Santos 348

O espírito e a prática cristã: um debate entre Hegel e Nietzsche


Adilson Felicio Feiler 354

De Hegel a Tomás de Aquino: Lima Vaz e o tomismo


transcendental
Philippe Oliveira de Almeida 363

Descartes e o começo absoluto: uma interpretação hegeliana


da filosofia de Descartes.
Carlos Gustavo Monteiro Cherri 379

Vontade, Razão e Liberdade em Hegel: breves notas a partir


da obra “A Ideia de Justiça em Hegel”, de Joaquim Carlos Salgado
Diego Vinícius Vieira, Vinícius Balestra 386
Questões lógicas, fenomenológicas,
metafísicas e estéticas
Teoria da infinitude na lógica do ser de Hegel

Agemir Bavaresco
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

O conceito de infinitude está relacionado ao de finitude. As


coisas finitas tem um limite e na sua dialética podem cair numa má
inifinitude, ou seja, um progresso infindável. Porém, para Hegel
o conceito de infinito não pode ser o resultado da sucessão infinita
de finitos. A mediação entre finito e infinito é fundamental para
compreender a rede categorial que compõe toda a Lógica. Por isso, o
pensamento especulativo apreende o infinito como a identidade da
identidade e da diferença do finito.

1 – Estrutura da infinitude

A teoria da infinitude1 é exposta na Lógica do Ser, capítulo 2 que


trata do ser aí, item “C’, da Ciência da Lógica de Hegel. No preâmbulo
afirma-se que o conceito de infinitude é uma nova definição do abso-
luto, ou seja, o infinito é como o ser e o devir, os quais apresentam a
primeira definição do absoluto, no começo da Lógica. Porém, esta defi-
nição é ainda uma forma simples, enquanto que o infinito é a negação
do finito. É preciso distinguir o conceito verdadeiro de infinito elabora-
do pela razão, do conceito de má infinitude, próprio do entendimento.

1
Christian Iber. Manual para o Seminário Filosofia e Interdisciplinaridade: Introdução à Ciência da
Lógica de Hegel. A lógica do ser-aí: o ser-aí, finitude e infinitude. Porto Alegre: PUCRS, 2013,
p. 18-27. Daqui para frente usaremos como citação: Iber, Manual.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 15-27, 2015.
Agemir Bavaresco

Hegel enumera três determinações do infinito: a) O infinito é,


inicialmente, “na determinação simples, o afirmativo como negação do
finito”2. b) O infinito é, depois, “na determinação recíproca com o finito
e é o infinito unilateral, abstrato”. c) Enfim, o infinito é “o suprassumir-
-se desse infinito como o finito enquanto um único processo – é o infi-
nito verdadeiro” (Hegel, 2013, p. 1).
a) O infinito em geral é “a negação da negação”, isto é, a nega-
ção do finito, através de dois momentos: 1º) O infinito origina-se da
suprassunção do finito, pois este nega-se e tornar-se infinito. É impor-
tante observar que o infinito não é algo pronto, mas algo que emerge
da própria suprassunção do finito, pois é próprio do finito relacionar-
-se consigo, indo além de sua barreira como um dever ser em relação
consigo. 2º) Com isso temos o infinito afirmativo como resultado da
suprassunção do finito, “assim o finito desapareceu no infinito, e o que
é, é apenas o infinito” (Hegel, 2013, p. 3).
O infinito precisa ser provado através da suprassunção do finito,
pois é da natureza do finito tornar-se infinito. Dito de outra maneira, a
lógica hegeliana prova o infinito como um resultado do processo do fini-
to. Nisto está a diferença da lógica hegeliana em relação a Schelling que
parte imediatamente do infinito, sem descrever a lógica do finito como
método para alcançar o conceito de infinito. (cf. Iber, Manual 2013).
b) Determinação alternada do finito e do infinito: Neste item
descreve-se a transição do infinito simples e monístico ao mau infinito,
isto é, o problema do dualismo entre o infinito e o finito. Essa transição
ocorre devido a recaída do infinito na categoria do algo com um limi-
te, isto é, o rebaixamento da negação da negação à negação simples.
Depois do desaparecer do finito no infinito nessa transição, temos o
ressurgimento do ser do finito, que como outro está agora exterior-
mente frente ao infinito. Hegel critica o infinito do entendimento (a má
infinitude) e descreve a determinação recíproca do finito e do infinito.
O “infinito afirmativo” é descrito como um único processo em que se

2
G. W. F. Hegel. A Infinitude. In: Wissenschaft der Logik I. Theorie Werkausgabe in 20 Bän-
den. Eva Moldenhauer, Karl Markus Michel, Vol. 5, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag,
1969. Tradução: Christian Iber; Revisão Técnica: Luis Sander; Revisão Final: Karl Heinz
Efke, Agemir Bavaresco e Tomás Farcic Menk. Esta tradução foi usada no Seminário Intro-
dução à Ciência da Lógica, 2013, PPG Filosofia PUCRS. Daqui para frente usaremos como
citação: Hegel, 2013.

16
Teoria da infinitude na lógica do ser de Hegel

suprassume o mau infinito e o finito. Hegel compreende o infinito ver-


dadeiro como unidade do infinito e do finito e, com isso, critica tanto
o finito autônomo como o infinito unilateral. Este item “b” pode ser
dividido em duas partes: A crítica ao mau infinito e a crítica ao pro-
gresso infinito.
1) Crítica ao mau infinito: a lógica do entendimento – A determinação
recíproca do finito e infinito começa com a imediatidade do infinito
sendo a negação do finito. Essa relação caracteriza-se pela contrapo-
sição em que cada um permanece fora do outro. O infinito ainda está
preso na categoria do algo com um limite, o que faz recair no finito,
ressurgindo as categorias da finitude (limite, barreira e dever ser). Po-
rém, o infinito é o nada do finito, refletindo-se de modo afirmativo.
Com isso o infinito suprassume a barreira, porém, ainda de modo ime-
diato, tendo o finito na sua frente. “O infinito é o vazio indeterminado,
o além do finito, o qual não tem seu ser em si no seu ser aí que é um ser
aí determinado” (Hegel, 2013, p. 4).
Hegel chama este infinito posto diante do finito como mau infi-
nito, ou seja, trata-se do infinito do entendimento, pois ele é um infinito
ainda finito. Esta é a contradição básica: O mau infinito é o infinito fini-
to. Então, o entendimento precisa tomar consciência que seu conceito
de infinito permanece na contradição não resolvida, pois permanece
no nível da finitude: “Há dois mundos, um infinito e um finito, e na
sua relação o infinito é apenas um limite do finito, sendo com isso, ape-
nas um infinito que é, ele próprio finito” (Hegel, 2013, p. 5).
O desenvolvimento da contradição do mau infinito apresenta al-
gumas formas tais como: O infinito em sua negação imediata face ao
finito entende-se numa relação espacial acima ou aquém, ou seja, postas
de modo separada num dualismo infinito e finito. A lógica do enten-
dimento mantém dois espaços separados, porém, nós sabemos que o
infinito é o resultado do ser afirmativo por meio da negação do finito,
por isso “eles são inseparáveis. Mas essa unidade deles está escondida
no ser outro qualitativo dos mesmos, ela é a [unidade] interior que
apenas serve de base” (Hegel, 2013, p. 6). Face a visão da lógica do en-
tendimento, Hegel descreve a lógica dialética, explicitando a unidade
interior que ainda está escondida, porém ela se encontra na base desta
relação entre infinito e finito.

17
Agemir Bavaresco

2) Crítica ao progresso infinito – O que temos é um movimento de


transição ou de passagem do finito ao infinito e vice-versa, caracteri-
zando-se por ser uma relação imediata e exterior. Porém, neste movi-
mento dá-se a determinação recíproca do finito e do infinito, pois eles
são inseparáveis, uma vez que “cada um tem o outro de si nele mesmo;
assim cada um é a unidade de si e de seu outro” (Hegel, 2013, p. 7),
apresentando a estrutura dialética da contradição.
No entanto, essa determinação recíproca é interpretada como
uma contradição não resolvida, originando a tese do progresso infinito
“que em tantas figuras e aplicações, é tido um último além do qual não
se vai mais, mas chegando àquele ‘e assim por diante para o infinito’.
Esse progresso é, portanto, a contradição que não está resolvida, mas
sempre só é expressa como dada” (Hegel, 2013, p. 7-8). Portanto, o
progresso infinito é uma má infinitude, pois persiste numa alternância
monótona e enfastiante entre o finito e o infinito. A infinitude do pro-
gresso infinito é, de fato, ainda limitada e finita. Há uma unidade entre
o finito e o infinito, porém, ainda não refletida: “Mas é apenas ela que
faz nascer no finito o infinito e no infinito o finito, sendo, por assim
dizer, a mola propulsora do progresso infinito” (Hegel, 2013, p. 9).
Hegel retoma na Observação 1 o tema do progresso infinito. Ele
mostra que o infinito entendido como progresso infinito permanece na
contradição de um mero ir além. Por exemplo, a causa e o efeito podem
ser alternados ao infinito de forma separada sem que resulte numa
unidade refletida de modo inseparável. Nesta observação ele critica
a concepção de Schelling sobre o infinito, isto é, como o infinito sai
para fora de si chegando até a finitude. A resposta à questão de como
o infinito se torna finito, Hegel afirma: “Não há um infinito que seja
primeiro infinito e só depois precise se tornar finito, precise sair para
fora de si até a finitude, mas ele é, já para si mesmo, finito enquanto
infinito” (id. p. 25). Ainda a respeito desta questão de como o infinito
sai para o finito, pode ser formulada assim: Colocar a pressuposição de
que o infinito inclui em si o finito, ou seja, pressupor a unidade como já
dada. O problema é como separar essa unidade de modo que ocorra a
mediação dos polos. De fato, “essa unidade do infinito e do finito e sua
distinção são o mesmo inseparável como a finitude e a infinitude” (id.
p. 27), formando uma unidade abstrata.

18
Teoria da infinitude na lógica do ser de Hegel

c) A infinitude afirmativa: Hegel apresenta a infinitude verda-


deira e a teoria da falsificação da unidade do finito e do infinito e sua
crítica, partindo da determinação recíproca do finito e do infinito na
sua forma exterior. Descreve-se a infinitude afirmativa, considerando-
-se, de um lado, a relação mútua do infinito e do finito, e de outro,
cada um é tomado, separadamente, para si. Essa é a unidade tripla do
infinito e do finito, ao mesmo tempo, simples e dupla: infinito/finito =
infinito; finito/infinito = finito; infinito/finito = infinito. Hegel afirma
que essa unidade apenas apresenta a contradição “e não também a
resolução da contradição pela negação da determindade qualitativa de
ambos; assim a unidade universal, inicialmente simples do infinito e
do finito é falseada” (Hegel, 2013, p. 11).
O que temos aqui é a falsificação da unidade do infinito e do
finito pelo entendimento. Essa falsificação pelo entendimento dá-se
uma vez como infinito finitizado e outra vez como finito infinitizado.
Isso ocorre porque na primeira unidade o infinito é tomado como não
negado e, na segunda, o finito é, igualmente, tomado como não nega-
do. Assim, persiste uma falsa unidade do infinito e do finito, típica da
lógica do entendimento.
Hegel explicitará a unidade do conceito do infinito e do finito,
recapitulando o progresso infinito. O que é necessário da parte de am-
bos é o ato de suprassumir sua passagem de ir além, a comparação
exterior e a alternância: “Aquilo em que o finito se suprassume é o
infinito como o negar da finitude” (Hegel, 2013, p. 13), isto é, a negação
da negação. Partindo do próprio progresso infinito elabora-se a relação
junto a si tanto do finito como do infinito: “Assim, ambos, o finito e o
infinito, são esse movimento de retornar a si por meio da sua negação;
eles são apenas como mediação dentro de si, e o afirmativo de ambos
contém a negação de ambos e é a negação da negação” (Hegel, 2013,
p. 16). O entendimento opõe-se a esse resultado como unidade do fi-
nito e do infinito. Ele não é capaz de ver a negação de ambos que está
dada no próprio progresso infinito, “que aí eles apenas existem como
momentos de um todo e que eles emergem apenas por meio do seu
oposto, mas essencialmente do mesmo modo, por meio do suprassu-
mir de seu oposto” (id. p. 15). Ou seja, o finito e o infinito são momen-
tos do progresso, “eles são comunitariamente o finito, e na medida em

19
Agemir Bavaresco

que eles estão do mesmo modo, negados comunitariamente nele e no


resultado, esse resultado, como negação daquela finitude de ambos,
chama-se, na verdade, o infinito” (id. p. 15).
Constata-se que eles têm uma diferença num duplo sentido:
Numa autorrelação, “o finito tem o duplo sentido, primeiramente, de
ser só o finito contra o infinito que se defronta com ele, e, em segundo,
de ser ao mesmo tempo o finito e o infinito que se defronta com ele”
(id. p. 15). Noutra autorrelação, o infinito também tem o duplo sentido,
de ser o infinito contra o finito defrontando-se com ele, e depois, de ser
ao mesmo tempo o infinito e o finito se autorrelacionando.
Linearidade X circularidade: A determinação do infinito verdadei-
ro não é algo imóvel, mas o movimento dos dois momentos como de-
vir. O devir inclui toda a sua evolução desde o momento inicial entre
o ser e o nada, passando pelas determinações do ser-aí, como algo e
outro, alcançando, “agora como infinito, finito e infinito, eles mesmos
em devir” (Hegel, 2013, p. 18). Hegel usa a imagem da linha reta para
mostrar o movimento do progresso infinito como um ir além, enquan-
to que a “infinitude verdadeira, flexionada para trás em si, sua imagem
se torna círculo, a linha que atingiu a si, que está concluída e inteira-
mente presente, sem ponto inicial e fim” (id. p. 18), isto é, dá-se a nega-
ção autorrelacionante do finito e do infinito em si mesmos.
Realidade X idealidade: “O finito não é o real, e sim o infinito. As-
sim, a realidade é determinada progressivamente como a essência, o
conceito, a ideia etc.” (id. p. 18). Hegel parte sempre do mais imediato
e abstrato, isto é, da idealidade do finito para efetivar as determinações
mais concretas: a realidade do infinito: “Assim, a negação está determi-
nada como idealidade; o ideal é o finito, assim como ele é no infinito
verdadeiro” (id. p. 18).
Hegel descreve a transição do ser-aí ao ser-para-si como o pro-
cesso do devir, ou seja, uma categoria que significa negação e transi-
ção. Aqui, trata-se da estrutura complexa do devir como suprassumir
da finitude e da infinitude. Agora, a negatividade da infinitude, atra-
vés de sua estrutura circular, coincide consigo mesma com a imediati-
dade do ser. Porém, esse ser-aí é portador de negação, ou seja, negação
da negação, a negação que se relaciona consigo, de ser-aí passar para
ser para si (id. p. 19).

20
Teoria da infinitude na lógica do ser de Hegel

d) Observação 2: O idealismo - Hegel apresenta a prova da ide-


alidade do finito: “A proposição de que o finito é ideal constitui o ide-
alismo. O idealismo da filosofia não consiste em outra coisa do que em
não reconhecer o finito como sendo verdadeiro” (id. p. 25). Ou seja,
toda a filosofia é um idealismo na medida em que explicita a ideia
de algo como verdadeira. Porém, esta ideia precisa ser implementada
efetivamente para alcançar a sua verdade. Portanto, não se trata de
estabelecer uma oposição entre filosofia idealista ou realista, mas de
explicitar a idealidade da realidade. Ou seja, a prova da idealidade do
finito dá-se pela explicitação do princípio idealista da filosofia.
A filosofia não atribui ao ser aí finito o ser verdadeiro, mas su-
prassume as coisas sensíveis no conceito, na ideia e no espírito. O duplo
movimento do infinito é uma explicitação desta idealidade da filosofia:
“Por um lado o ideal é o concreto, o verdadeiramente sendo, mas, por
outro lado, seus momentos também são o ideal, o suprassumido nele,
mas, de fato, é apenas o único todo concreto do qual os momentos são
inseparáveis” (id. p. 26).
O ideal segundo o modo de ver da representação pode ser con-
siderado sob (1) a forma da representação e sob (2) o conteúdo da re-
presentação. No idealismo subjetivo, a idealidade é apenas atribuída
à forma da representação, isto é, o eu ou a consciência representa o
ser aí real dentro de si como seu, em que o conteúdo é deixado na sua
finitude. “Tal idealismo é formal, na medida em que não observa o
conteúdo do representar ou [do] pensar, o qual, nesse caso, pode, no
representar ou no pensar, permanecer inteiramente na sua finitude”
(id. p. 27).
Falta a forma da representação o processo de mediação do conte-
údo para que ele seja suprassumido em sua finitude e se torne infinito,
correspondendo a sua ideia. O que temos é uma oposição da forma da
subjetividade e da objetividade na sua finitude, ou seja, o conteúdo é
absorvido na sensação, na intuição como dados abstratos da represen-
tação, sem o processo de negação da infinitude. O idealismo objetivo
ou absoluto superará a forma e o conteúdo do idealismo subjetivo, ele-
vando a finitude da forma e do conteúdo de acordo com a ideia (cf.
Iber, 2013, p. 27).

21
Agemir Bavaresco

2 – Finitude e infinitude: totalidade em movimento

O conceito de infinitude é uma totalidade que não é condiciona-


da e nem limitada por outra coisa fora dela, mantendo uma estrutura
coerente em que os elementos estão relacionados entre si. “Um uni-
verso infinito não é necessariamente ilimitado; ele pode ser, antes, um
todo ordenado. A verdadeira noção de infinito é uma noção ontologi-
camente fundada na natureza do espírito infinito. É oposta ao infinito
como o meramente sem limites, a extensão indefinida que não possui
unidade interna” (Taylor, 2014, p. 266).
O infinito verdadeiro une o finito e o infinito, negando a se-
paração ou oposição entre eles. Ou seja, o absoluto não está separado
do mundo ou além dele, mas o infinito inclui o finito como sua cor-
porificação. Porém, o infinito não inclui o finito como o progresso
sem fim abrange os termos individuais. Aqui, a unidade não se reali-
zaria, pois sempre haveria algo pela frente a ser incluído. O conceito
hegeliano de infinito é uma vida infinita corporificada num círculo
de entes finitos em que cada um dos quais é inadequado a ela. Por
isso os entes finitos sucumbem, porém, eles são articulados numa ou-
tra ordem mais elevada, sendo que a série toda não é ilimitada, mas
aberta dentro de um círculo de círculos. Esse círculo de categorias
compõe a Lógica, o círculo das Filosofias da Natureza e do Espírito
(o círculo de instituições que constituem o Estado). “Os elementos de
fato são finitos e perecíveis, ao passo que o todo é infinito e eterno.
Porém, não há separação entre os dois porque o infinito só existe den-
tro da ordem necessária do finito” (id. p. 267).
O conceito de infinito desenvolve-se a partir da dialética do
finito, isto é, o ser aí é um ser determinado que sucumbe, por isso é
finito. A coisa finita relaciona-se, interagindo com outras coisas finitas,
sucumbindo neste processo dinâmico, exigindo uma outra categoria
mais abrangente para compreender esta dialética incessante dentro da
finitude. Então, “o finito não pode subsistir por si mesmo, porque o
ente finito sempre nos remete para além dele próprio. Necessitamos de
outra categoria para englobar o todo da realidade ou a realidade en-
quanto autosssubsistente” (id. p. 267). Essa nova categoria mais abran-
gente chama-se infinitude.

22
Teoria da infinitude na lógica do ser de Hegel

A infinitude não existe além do finito, pois uma tal infinitude seria
vazia, não seria o verdadeiro infinito e nem um conceito do todo, mas
tal infinito seria finito. Precisamos de um conceito de infinito autossub-
sistente. O finito é dependente de outras coisas, formando uma rede de
dependência tanto no tempo como também no sentido categorial, pois
provém de outras coisas finitas e de outras categorias. As relações de
dependência, no entanto, não podem se prolongar infinitamente, pois
não viriam a ser determinadas. Por isso, as relações de dependência se
articulam num todo que é autossubsistente, porque não é dependente
de nenhuma outra coisa fora dele. O conceito de infinito articula o todo
das coisas finitas, formando uma rede de relações que não depende e
nem é limitado por qualquer outra coisa. Por isso, esse infinito identifi-
ca-se e inclui o finito, sendo, porém, o infinito o todo englobante.
Hegel elabora a transição do mau infinito do progresso infinito
para o infinito verdadeiro como uma contradição entre o entendimen-
to finito e a razão infinita. O mau infinito gera uma série interminável
de coisas finitas, sucedendo-se e substituindo-se uma a outra. A passa-
gem para o verdadeiro infinito dá-se quando há identidade na mudan-
ça, isto é, o algo em seu passar para o outro, coincide consigo mesmo.
De fato, as coisas finitas são efêmeras. Elas passam e sucedem-se num
processo contínuo em seu devir e perecer, isto é, a identidade na dife-
rença. Porém, o desenrolar das coisas finitas e particulares, das coisas
efêmeras e limitadas, da realidade limitada e dependente é articulada
por Hegel no conceito do todo autossubsistente: a infinitude. Articular
o finito no infinito é a metodologia hegeliana aplicada ao longo de toda
a Lógica, observando a especificidade de cada momento e movimento,
ou seja, articulando, dialeticamente, a parte e o todo.
A unidade entre o finito e o infinito é uma idealidade, afirma He-
gel. Compreendemos plenamente uma coisa quando a relacionamos
com sua Ideia, isto é, a verdade do infinito é sua idealidade. Este con-
ceito explicita-se a partir do finito como a esfera da contradição. Então,
o infinito inclui o todo das mudanças que o finito desenvolve em seu
processo de contradição. O processo interno do infinito é a plenitude da
idealidade do finito. Como este processo ocorre a partir da coisa finita?
A coisa finita sucumbe, porém, não desaparece, mas é substituí-
da por outra coisa determinada. Por exemplo, a semente apodrece na

23
Agemir Bavaresco

terra e emerge dela a planta, a flor, o fruto. Há um desenvolvimento


do conceito de Ser em algo determinado, no ser aí da semente. Vemos
que a morte da semente, ou seja, de uma coisa finita é o nascimento
de outra. Compreender este movimento como infinito é a coisa mais
difícil para o entendimento não especulativo, porque ele não é capaz
de apreender nas coisas finitas o movimento da contradição que faz
captar no finito o infinito, ou seja, na parte o todo. O entendimento
que pensa o infinito como algo fora do finito, ou seja, além do finito é
o mau infinito. Para Hegel, o infinito precisa determinar-se no finito, a
infinitude é o todo autossubsistente que engloba todas as coisas finitas,
não como uma coletânea de coisas finitas, mas como uma “totalidade,
um todo cujas partes estão intrinsicamente relacionadas umas com as
outras, isto é, em que cada uma delas só pode ser entendida por meio
de suas relações as outras” (id. p. 269).
A infinitude é uma categoria que tem um caráter ontológico alcan-
çando no final da Lógica, a Ideia. Trata-se de um todo autossubsistente
formando uma rede conceitual corporificado em coisas finitas. Porém,
aqui a infinitude é ainda uma categoria pobre e abstrata da Ideia que
se torna mais rica. No entanto, a passagem do ser aí para a infinitude já
é uma determinação mais rica de conteúdo. À medida que avançamos
na Lógica há um processo de interiorização em que a atividade torna-
se autônoma, isto é, alcançamos um modelo aproximado ao do agir do
sujeito. O conceito de “algo” (etwas) como negação da negação, aponta
para um ser que se autossustenta. Agora, temos um centro mais profun-
do, cuja atividade torna-se mais complexa de transformações, devires e
pereceres. Temos uma negação da negação, uma unidade mais abran-
gente, com um grau maior de interioridade, um nível mais profundo de
conexão entre as coisas, embasando as coisas e as transformações uma
na outra. “O primeiro movimento da lógica termina com Hegel tendo
estabelecido a sua visão ontológica básica do ser finito enquanto veículo
de uma vida infinita que não está separada dele” (id. p. 270).

3 – Negação, mediação e idealismo

Na teoria da infinitude explicita-se o cerne da lógica hegeliana


que irá constituir a rede conceitual até alcançar a ideia: A negação de-

24
Teoria da infinitude na lógica do ser de Hegel

senvolve o conceito do ser aí, ou seja, a teoria da negação do ser aí par-


te da imediatidade para negar a identidade e na diferença constituir
o movimento de mediação de uma nova identidade. Este movimento
caracteriza-se pela relação ou seja, pela mediação do ser aí que vai se
negando e constituindo-se como efetivação da ideia. Por isso, o ser aí
como finito nega-se e diferencia-se, isto é, autorrelacionando-se torna-se
infinitude. Portanto, a idealidade do finito é constituir-se na infinitude.
A negação tem um duplo movimento: imediatidade e media-
ção, ou seja, identidade e diferença. É através deste movimento que
uma determinação conceitual nega a sua imediatidade dada e passa a
mediação categorial. O desenvolvimento dialético dos conceitos é te-
cida pelo movimento imediato e, ao mesmo tempo, pressupõe, impli-
citamente, a sua negação. A Lógica apresenta a dialética dos conceitos
nesta estrutura da negação: Sair da identidade imediata, passar para a
diferença da oposição, para a mediação da contradição que dilui todo
o conceito dado, fazendo-o alcançar sua idealidade. Este processo é de-
nominado pela categoria suprassunção, pois a contradição dissolve o
categoria em seu substrato para eleva-la a fluidez da autorrelatividade.
Na lógica do ser aí temos os seguintes momentos da negação:
1ª Afirmação: Identidade imediata.
2ª Negação: a) Negação da Afirmação: Diferença em mediação.
b) Oposição entre Identidade e Diferença.
3ª Contradição mediatizante: Resultado de uma nova Afirmação.
A mediação como autorrelação dos polos opostos dissolve o substrato
do ser aí e assim alcança-se uma nova determinação conceitual.
Este é o método hegeliano que se explicita pela força dialética
da negação que sempre introduz a mediação autorrelativa das catego-
rias, dissolvendo seu substrato imediato elevando-as a sua idealidade
conceitual. Porém, este processo de suprassunção categorial na Lógi-
ca do Ser apresenta um permanente déficit ou resíduo de positividade
não completamente negada, que faz as categorias moverem-se numa
transitividade de passagem de sua finitude e infinitude até atingirem a
reflexividade na Lógica da Essência.
A estrutura da mediação entre finito e infinito é o princípio dialé-
tico que serve de base a ideia da lógica hegeliana. Ou seja, a estrutura
é autorrelacional, havendo uma pressuposição mútua entre o imediato

25
Agemir Bavaresco

finito positivo e a sua negação pelo infinito negativo, constituindo uma


oposição mediatizante ou autorrelacionante que conduzirá a contradição
do finito para que ele se transforme infinito. Aqui, não ocorre o regresso
ou o progresso infinito dos metanívies, mas a negação mediatizante que
constitui novos conceitos lógicos mais abrangentes ou infinitos.
O idealismo de Hegel é o desenvolvimento conceitual do finito,
ou seja, as coisas finitas perecem conforme a teoria da finitude, porém,
não desaparecem, porque elas são inseridas na ideia de infinitude. A
finitude é um momento da ideia que dissolve o substrato finito em
sua teleologia imanente da rede conceitual. O perecer do finito não é
o desaparecer das coisas finitas, mas a sua dissolução na ideia infinita
lógica. Então, a suprassunção ideal da realidade não elimina a dialética
entre finito e infinito, ou seja, entre realidade e idealidade. A oposição
entre realidade finita e idealidade infinita do pensar no processo lógico
não torna o mundo finito uma aparência, mas antes uma dissolução de
todos os substratos teórico-práticos dados, para alcançarem a efetiva-
ção da ideia efetiva do conceito.

Conclusão

Na primeira parte da pesquisa Estrutura da infinitude reconsti-


tuímos o texto hegeliano explicitando a tríplice estrutura do infinito
em seus momentos e movimentos lógicos conforme são desenvolvidos
por Hegel na Lógica do Ser, 1ª seção, capítulo 2 que trata do ser aí, item
C, A Infinitude.
Na segunda parte do texto Finitude e infinitude: Totalidade em mo-
vimento descrevemos o idealismo de Hegel que não nega completa-
mente o finito (como é o caso na filosofia da substância de Spinoza e
na filosofia do absoluto de Schelling), mas ele mantém o finito no infi-
nito, transformando o finito em uma nova categoria alcançando mais
amplitude. Para isso descrevemos a teoria da negatividade hegeliana
legitimando o lado produtivo do idealismo de Hegel na terceira parte,
que trata da Negação, mediação e idealismo.
Há outros pensadores que criticam a tese da manutenção do finito
no infinito, ou seja, uma metafísica da infinitude da reflexão absoluta.
Aqui, o finito aparece como produto da infinitude. Segundo Christian

26
Teoria da infinitude na lógica do ser de Hegel

Iber, isso é problemático, porque há uma diferença ôntica entre o finito e


o infinito (entre realidade e pensamento, objeto e sujeito, espírito e mun-
do, espírito e natureza etc.) que não pode ser suprassumida. Em outras
palavras, o pensamento infinito não é capaz de produzir a realidade a
partir de si mesmo por causa dessa diferença ôntica não suprassumível.
Mas exatamente essa é a posição do idealismo absoluto de Hegel. Na
opinião de Iber, “precisamos, defender Hegel, mas também ir além de
Hegel. A posição de Hegel é a seguinte: Aqui está a realidade, isto é, aqui
emerge ou ressurge a realidade produzida pelos próprios pensamentos”
(cf. Iber, Apresentação da observação: O idealismo, 2013, p. 4).

Referências

HEGEL, G. W. F. A Infinitude. In: Wissenschaft der Logik I. Theorie Werkaus-


gabe in 20 Bänden. Eva Moldenhauer, Karl Markus Michel, Vol. 5, Frankfurt
am Main: Suhrkamp Verlag, 1969. Tradução: Christian Iber; Revisão Técni-
ca: Luis Sander; Revisão Final: Karl Heinz Efke, Agemir Bavaresco e Tomás
Farcic Menk. Esta tradução foi usada no Seminário Introdução à Ciência da
Lógica, 2013, PPG Filosofia PUCRS.
IBER, Christian. Manual para o Seminário Filosofia e Interdisciplinaridade: Intro-
dução à Ciência da Lógica de Hegel. A lógica do ser-aí: o ser-aí, finitude e
infinitude. Porto Alegre: PUCRS, 2013, p. 18-27.
TAYLOR, Charles. Hegel. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: É Realizações Edi-
tora, 2014.

27
O Silogismo dialético como corolário
da Metafísica do Espírito

Alfredo de Oliveira Moraes


UFPB/UFPE/UFRN.

A proposição deve expressar o que é o verdadeiro, mas isso é, es-


sencialmente, o sujeito; e, enquanto tal, é só o movimento dialéti-
co, este processo que se engendra a si mesmo, que se desenvolve
e retorna a si.
G. W. F. Hegel – Fenomenología del Espírito, p. 43

Sabemos que a Enciclopédia das Ciências Filosóficas é a obra na qual


Hegel faz em Compêndio a mais completa exposição do seu Sistema1, e,
também, que nessa obra propõe a sua mais ousada reconciliação, ou
como já disse em outra ocasião, na verdade uma tríplice reconciliação
que se opera de modo imbricado e simultâneo, ainda que a linguagem,
sobremodo, a escrita discorra em sucessividade; nessa exposição da
reconciliação do Espírito Absoluto consigo mesmo observo que:
a) A consciência-de-si finita ou o Espírito Finito que teve seu apa-
recimento e desenvolvimento antropológico apresentado na riqueza
dos detalhes da Fenomenologia do Espírito, e lá chegou a alcançar o Saber
Absoluto, momento em que se converteu num saber que se sabe a si
mesmo ou em Espírito que se sabe como Espírito; aqui, desde a pers-
pectiva metafísica, tomou esse saber como ponto de partida e desde a
dimensão do Ser, ou melhor, do Espírito Absoluto pôde apreender a si

1
Conf. se pode apreender na leitura de Bourgeois, B. – Éternité et Historicité de l’Esprit selon
Hegel, p. 12.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 28-38, 2015.
O Silogismo dialético como corolário da Metafísica do Espírito

mesmo como figura na qual se manifesta o Absoluto, na dialética do


finito – infinito; e assim, ao perceber a si mesmo como o ente a quem
cabe tornar efetiva a determinação fundamental do Espírito Absoluto,
seja, a Liberdade, realizando na História a Ideia de Liberdade, reconcilia-se
consigo mesmo através desse Conhecer, afirma-se como livre e dá a si
mesmo esse destino.
b) A consciência-de-si absoluta, o Espírito Absoluto, o Absoluto
inicialmente imerso na contradição de que em sua infinitude nenhuma
realidade lhe é exterior, posto que Ele é a Realidade Absoluta, e ao
mesmo tempo, como Espírito somente é na medida em que se mani-
festa – equivale dizer, realiza sua Entäusserung; suprassume essa con-
tradição no jogo de suas automediações, no qual manifesta-se a si e
em si mesmo nas idealidades efetivas que constituem a sua criação, de
modo que a totalidade das idealidades que é o mundo é uma necessi-
dade que Ele dá a si mesmo em sua Liberdade Absoluta. Mas, consti-
tui, de igual modo, uma necessidade do Espírito o saber a si mesmo e
ao Espírito Absoluto cabe o saber no absoluto de sua verdade, seja, no
Conhecer; assim, o Espírito Absoluto ao pôr a si mesmo na Verdade do
Conhecimento, eleva esse Conhecer ao seu Si, vem a ser um Conhecer
que é Ser, no qual Ele se conhece em sua Verdade, transfigura esse Co-
nhecer no Reconhecer e desse modo reconcilia-se consigo mesmo.
c) Ao metamorfosear a prova da existência de Deus, de modo a
que nela não se busque mais o fundamento objetivo de Deus e sim a
elevação do espírito finito ao conhecimento de Deus, ao conhecimen-
to divino que é Deus mesmo, na compreensão segundo a qual Deus
é, simultaneamente, seu ato criador e o mundo criado, que a criação toda é
consubstancial ao Sujeito criador2, as determinações divinas, assim como
aparecem na Doutrina dos Nomes Divinos, são como modos e têm
também seu lugar no sistema da Verdade.
Assim, de um lado, as determinações de Deus, postas sob a de-
signação do nomen misericordiae, são reconduzidas à verdade de si
mesmas, pois não podem ser descartadas como se dissessem respeito
ao momento pueril da humanidade, na verdade, constituem o acesso
ao divino no âmbito da sentimentalidade pura, no qual a consciência-
-de-si no recôndito do interior de si mesma encontra no estado-de-oração

2
Bourgeois, B. – Le Dieu de Hegel: Concept et Création, in La Question de Dieu selon Aristote
et Hegel, p. 295.

29
Alfredo de Oliveira Moraes

a sua infinita dimensão de profundidade que lhe abre o caminho à


assunção da condição humana a ser Um com Deus, pois aí Deus se
fez Um conosco; e, de outro lado, o conhecimento absoluto, enquanto
é o Absoluto mesmo que nele se revela - ao ter enunciado a si mesmo
no seu nomen substanciae, é tanto a efetividade de Deus no conhe-
cer quanto o conhecer efetivo de Deus e manifesta à consciência-de-si
finita sua condição de coparticipante do ser divino enquanto um com
seu ato criador na Ideia que é a vida do Conceito e o Conceito mesmo.
Com efeito, desse modo, estão reconciliadas as determinações
divinas enquanto modos do ser de Deus apreendidos na Doutrina dos
Nomes Divinos com o Deus da Prova que revela sua substância no Co-
nhecer Absoluto. Poderia dizer, então, que o que o Entendimento sepa-
rou, a Razão unificou e o Espírito Absoluto reconciliou.
A que propósito trago, de início, essas formulações? Na verdade,
desejo com isso ressaltar o grau de dificuldade de condensar em um
único silogismo, ainda que dialético especulativo, o todo de uma obra
com tamanha complexidade, vitalidade e constituída de uma pletora
de mediações em movimentos internos de suprassunção.
Passo, então, aos silogismos que, enquanto figuras lógicas, têm
aqui a significação de indicar o retorno ao começo, o acabamento em
que se arremata o círculo de círculos. Não ignoro que, segundo alguns
comentadores, os silogismos com que Hegel expõe nos três parágrafos finais,
a estrutura dialética da filosofia representam três ordens possíveis de leitura da
Enciclopédia,3 mas, atendendo aos meus propósitos – aqui, a exposição
demonstrativa de que os silogismos podem ter o estatuto de corolário
da Metafísica do Espírito, irei ater-me à perspectiva metafísica de apre-
ensão do Absoluto em seu desenvolvimento e efetividade.
“A primeira aparição é constituída pelo silogismo que tem o lógico
como fundamento, enquanto ponto de partida, e a natureza como meio
termo que conclui o espírito com o mesmo. Torna-se o lógico, natureza
e a natureza, espírito. A natureza, que se situa entre o espírito e sua
essência, não os separa, decerto, em extremos de abstração finita, nem
se separa deles para [ser] algo autônomo, que como Outro só conclui-
ria Outros; porque o silogismo é na ideia, e a natureza essencialmente
só é determinada como ponto-de-passagem e momento negativo: ela
é, em si, a ideia. Mas a mediação do conceito tem a forma exterior do

3
Id., p. 73.

30
O Silogismo dialético como corolário da Metafísica do Espírito

passar, e a ciência, a do curso da necessidade; de modo que somente em


um extremo é posta a liberdade do conceito, enquanto seu concluir-se
consigo mesmo.”4
Para melhor entender o lógico como fundamento, vale ressaltar
que na dialética interna da lógica o fundamento é a unidade da identidade
e da diferença; a verdade daquilo como se produziu a diferença e a identidade: a
reflexão-sobre-si, tanto como a reflexão-sobre-o-outro; e vice-versa. É a essên-
cia posta como totalidade.5 Mas, há ainda um ponto importante a notar: O
fundamento é a essência em si essente, que é essencialmente fundamento, e é
fundamento somente enquanto é fundamento de Algo, de um Outro.6
Não obstante, não se pode atribuir ao fundamento determina-
ções efetivas quanto ao seu conteúdo com indiferença à essência, pois,
o fundamento não tem ainda nenhum conteúdo determinado em si e para si,
nem é fim, portanto não é ativo nem produtivo, mas uma existência somente
provém do fundamento.7
Ora, isto significa que toda coisa tem de possuir um fundamento,
porém, não se pode ir buscar esse fundamento fora dela ou para além
dela, mas na coisa mesma; isto é, em sua essência. A essência é, assim, a
unidade do fundamento e do fundamentado (da coisa que fundamenta).
Em consequência, o fundamento só é enquanto é fundamento de algo.
Com efeito, o ser que assim se fundamenta na essência é a existência.
Razão pela qual nesse primeiro silogismo, Hegel apresenta o
percurso do desenvolvimento, desde uma perspectiva da aparição ou
manifestação exterior da Ideia; o termo médio que é a natureza é a
ideia em sua exterioridade, a Natureza é interposta como mediação
entre o Lógico e o Espírito. Considerando-se que a natureza constitui,
enquanto o negativo da ideia, o ponto no qual a ideia mais se distancia
de si mesma, esse silogismo pela exterioridade e distanciamento, em
que se configura nele o termo médio, é aquele em que a verdade do
sistema - a liberdade - encontra-se naquilo que lhe é menos adequado,
pois nele, a ciência se encontra no reino da necessidade, de modo que a
racionalidade da ideia é, aqui, apenas o princípio pressuposto.

4
Hegel, G. W. F. - Enciclopédia das Ciências Filosóficas, vol. III, pp. 363, 364.
5
Id., § 121, p. 237.
6
Id., p. 238.
7
Id., § 122, p. 242.

31
Alfredo de Oliveira Moraes

Com isso se põe que o fundamento longe de ser algo como um


interior abstrato é posto como existente, de modo que a existência mes-
ma não é carente de fundamento, como se este fosse uma abstração
mental surgida dos jogos do intelecto; mesmo a linguagem da consci-
ência não-filosófica expressa isso ao se referir, por exemplo, ao funda-
mento de um edifício e nisso significar algo que existe no interior do
solo, mas como uma parte da edificação sem a qual o edifício não pode
ser o que é, ou ainda, no sentido de algo que dá sustentação e cimenta o
nexo do existente, como diz o próprio Hegel quando a consciência ordi-
nária considera como fundamento da constituição de um povo, seus costumes
e condições de vida.
Resulta daí que: “a reflexão-sobre-Outro do existente é, no en-
tanto, inseparável da reflexão-sobre-si. O fundamento é sua unida-
de, da qual procedeu a existência. Portanto, o existente contém, nele
mesmo, a relatividade e sua multiforme conexão com outros existen-
tes, e está refletido sobre si mesmo enquanto fundamento. Desse modo,
o existente é Coisa.”8
A coisa, (como já sabemos desde a Fenomenologia), é essa mul-
tiplicidade de existentes que, simultaneamente, existem separados e
enlaçados por múltiplas conexões com todos os demais. A coisa não só
tem propriedades, mas somente se define por suas propriedades, são
estas que fazem com que uma coisa determinada e concreta possa ser
distinta de todas as outras.
Não obstante, convém assinalar que aqui lidamos com a coisa en-
quanto objeto da metafísica. Hegel, no seu idioma, encontra uma faci-
lidade maior em expressar essa distinção usando Die Sache e Das Ding,
para esta última o sentido de coisa em geral, e para a primeira o sentido
de Coisa espiritual, ou ainda coisa que mantém uma relação de identi-
dade com causa; daí sua apreensão como coisa metafísica; que não pode,
por isso mesmo, ser objeto de determinações empíricas. De modo que
essa aparição conceitual somente alcança a consumação de sua contra-
dição interna na metamorfose de fazer-se coisa na Natureza, ou ainda:

“Essa aparição é suprassumida no segundo silogismo, porquanto


esse é já o ponto de vista do espírito mesmo, que é o mediatizan-
te do processo: pressupõe a natureza e a conclui com o lógico. É o
8
Id., § 124, p. 243.

32
O Silogismo dialético como corolário da Metafísica do Espírito

silogismo da reflexão espiritual na ideia: a ciência aparece como


um conhecimento subjetivo que tem por fim a liberdade, e que é,
ele próprio, o caminho de produzir-se a liberdade [a si mesma].”9

No segundo silogismo, enquanto esse é posto na perspectiva do


espírito mesmo, é suprassumida a exterioridade e distanciamento do
primeiro, pois, nele o espírito põe a si mesmo como termo médio, o
que se visa é já a reflexão do espírito, ou ainda, é o silogismo da reflexão
espiritual na ideia da Filosofia ou da sua realização no ato do Espírito que é
mediação entre a Natureza e o Lógico.10
Contudo, é imprescindível lembrar que: Na Lógica vem à existên-
cia a vida do conceito, a vida que somente se explicita retrospectiva-
mente a partir da Filosofia do Espírito, que irá revelar a consciência-de-si
como a verdade desta vida. O conceito de vida, por conseguinte, não
pode ser tomado aqui como uma propriedade do ser vivo, mas como
algo inerente a todo sistema vivo, de modo que o conhecimento como
sistema da verdade é também a vida da verdade ou se se prefere a
vida do Conceito; esse deixa sair de si suas determinações ou, o que
é o mesmo, expressa sua liberdade ao se pôr no seu outro imediato
numa opacidade que exige sua própria luz, mediada pela consciência
finita, para fazer brilhar sua presença na realidade efetiva. Os termos
que expressam o desenvolvimento da vida do conceito não podem ser
reduzidos, simplesmente, a pares de opostos: ser e nada, fundamento
e fenômeno, essência e existência, necessidade e contingência; esses
termos não apenas se opõem, mas se negam, isto é, se determinam reci-
procamente e, enquanto têm cada um em si mesmo sua negação, cada
um somente alcança seu vir-a-ser na relação com o seu oposto ou outro
de si mesmo, ou ainda, significa dizer que cada um somente encontra
sua verdade no outro de si mesmo.
De igual modo, no movimento de sua exposição a Metafísica de
Hegel, se não pode ser reduzida à sua Lógica, também não pode ser
apreendida como se seus momentos – (Ciência da) Lógica, (Filosofia
da) Natureza e (Filosofia do) Espírito – fossem apenas opostos que se
superam, deixando cada um atrás de si o cadáver da figura precedente,
na verdade, são momentos do movimento imanente do ser na efetiva-

9
Id., p. 364.
10
Vaz, H. C. de L. – Escritos de Filosofia III, Filosofia e Cultura, p.75.

33
Alfredo de Oliveira Moraes

ção das determinações que o conduzem a plenitude do Si no conheci-


mento absoluto.
O Ser determina-se a si mesmo e nisso nega-se a si mesmo como
Logos (na Lógica) e, como Natureza, pode-se dizer desta oposição que
é absoluta, no entanto, cada um é o todo que se opõe a si mesmo; de
modo que cada um é em si mesmo o seu oposto e apresenta o outro
em seu elemento, em sua determinidade própria, constituindo com
seu oposto uma unidade, daí que a diferença já não tem o caráter de
exterioridade, mas enquanto diferença no si mesmo é diferença inte-
rior, expressão autêntica da verdadeira infinitude. Por conseguinte, o
Espírito não é simples síntese, mas reconciliação do Ser ou Absoluto
consigo mesmo.
Dissolvida a exterioridade da oposição, emerge a imanência no
movimento dialético do conhecer que expressa a verdade e manifesta
a efetividade do Ser, ou ainda, no que diz respeito às efetividades do
Ser é necessário perceber que cada figura deve ser apreendida na pers-
pectiva de que algo é agora momento, mas também e anteriormente o Todo.11
O Logos é a translucência perpassada pela luz do ser que ilumina
a opacidade da natureza, faz com que esse Proteu que ama ocultar-
-se comunique o seu ser e revele-se como o Ser na sua alteridade. Na
Natureza, o Logos encontra sua realidade efetiva, assume a coisidade
e se torna objeto efetivo – o Logos é Natureza; o Logos nega-se ou
determina-se a si mesmo na Natureza, enquanto outro de si mesmo, ao
realizar-se na Natureza cobra dela o seu sentido, busca nela o conhe-
cimento e desvenda o desdobrar-se do conceito de si mesmo nesse seu
outro – a Natureza é Logos.
Por conseguinte, a ciência está aqui na forma de um conhecer
subjetivo, e tem como fim a liberdade. Contudo, a racionalidade abso-
luta da ideia ainda não se fez o meio efetivo do processo, ela é, nesse
ponto, o fim que se pressente ou que se apreende no vir-a-ser, no co-
nhecer absoluto. De modo que nisso se revela a necessidade do terceiro
silogismo, posto que:

“O terceiro silogismo é a ideia da filosofia, que tem a razão que se


sabe, o absolutamente universal, por seu meio termo que se cinde
em espírito e natureza; que faz do espírito a pressuposição, en-
quanto [é] o processo da atividade subjetiva da ideia, e faz da

11
Theunissen, M. – Sein und Schein – Die kritische Funktion der Hegelschen Logik, p. 238.

34
O Silogismo dialético como corolário da Metafísica do Espírito

natureza o extremo universal, enquanto [é] o processo da ideia


essente em si, objetivamente. O julgar-se pelo qual a ideia se re-
parte nas duas aparições as determina como manifestações suas
(as da razão que se sabe), e o que se reúne nela é que a natureza
da Coisa - o conceito - é o que se move para a frente e se desen-
volve; e esse movimento é igualmente a atividade do conheci-
mento, a ideia eterna essente em si e para si, que eternamente se
ativa, engendra, e desfruta, como espírito absoluto.”12

No terceiro silogismo o termo médio é a lógica ou, o que é o


mesmo, é a própria ideia absoluta; por conseguinte, ele se apresenta
como o suprassumir dos silogismos anteriores, nele se desenvolve o
pensamento que se pensa a si mesmo, o conhecer que se conhece a si
mesmo, e é o movimento de sua própria efetivação. Portanto, a filoso-
fia vem a ser o momento no qual o absoluto se manifesta no meio que
lhe é mais apropriado - o pensamento, e em sua forma e configuração
peculiar - o conceito.
Com efeito, pode-se dizer que: Aqui se unifica o Conceito (Begriff)
no seu avançar e desenvolver-se que é, igualmente, a atividade do conheci-
mento: é a Ideia eterna que é em-si e para-si e que, como Espírito Absoluto,
eternamente se atua, se engendra e a si mesmo se frui.13
Assim como no final da Fenomenologia do Espírito o saber absoluto
não é o saber absolutamente tudo, mas o saber que se sabe a si mesmo
ou o momento em que o espírito alcança o saber de si mesmo como es-
pírito, aqui, o Espírito Absoluto não é o espírito despótico que tudo go-
verna, mas o espírito que através do percurso de suas mediações - na
lógica enquanto mundo do pensar, no mundo da natureza enquanto
outro imediato e no mundo humano enquanto domínio da consciên-
cia-de-si - logrou o suprassumir daquele saber em conhecimento efe-
tivo; o espírito absoluto é conhecer na absoluta identidade com o ser,
ser que se conhece enquanto conhecer de si e de sua realidade efetiva.
Ao final do terceiro silogismo Hegel conclui a Enciclopédia brusca-
mente com uma citação da Metafísica de Aristóteles, como se pretendes-
se com isso fazer uma dupla remissão: de um lado, reafirmar que do que
se trata é da metafísica mesma; de outro lado, seu retorno a Aristóteles
assinala a culminação do círculo hermenêutico iniciado na Lógica.


12
Hegel, G. W. F. - Enciclopédia das Ciências Filosóficas, vol. III, p. 364.

13
Vaz, H. C. de L. – Escritos de Filosofia III, Filosofia e Cultura, p.75.

35
Alfredo de Oliveira Moraes

Com efeito, nesse ponto, ainda não se esgota a Metafísica do Es-


pírito, ou do Conceito, ou de base relacional, pois, sabemos que a Coisa
mesma não se esgota em seu fim, mas em sua atualização; nem o resultado é o
todo efetivo, mas sim o resultado junto com o seu vir-a-ser.14 A filosofia não
pode ser pensada como o hipostasiar da verdade, sua perene cristaliza-
ção, antes é o ponto no qual, uma vez tornada realidade efetiva a iden-
tidade absoluta do conhecer e do ser, tem início mais propriamente o
movimento que conduz o Espírito à plenitude de si mesmo, ao conhecer
que é no ato infinito de conhecer-se a si mesmo a Realidade Absoluta.
Destarte, a remissão hegeliana à metafísica de Aristóteles, no pon-
to em que nela o estagirita proclama: Declaramos que Deus é vivente, eter-
no, ótimo, de modo que a vida e duração contínua e eterna competem a Deus:
pois Deus é isto: [vida, eternidade]. Implica, com efeito, a necessidade de
abordar, como vir-a-ser do processo e desde a perspectiva do Conceito,
o problema do conhecimento de Deus em Hegel, ponto no qual culmina
ou se consuma o caminho no oceano hegeliano do Conceito.
A base material se desmanchou no ar, as ciências físicas já não
dispõem, propriamente, de algo físico no sentido estrito, diz-se até que
os físicos ao penetrarem, com o olhar da ciência, no interior do átomo se
depararam com uma fluidez e uma incerteza jamais imaginadas, não há
nesse interior algo que ainda possa ser chamado adequada e exclusiva-
mente partícula, na verdade, o que encontraram foram relações conecti-
vas e conectadas, que formam unidades compactas e constituem como
que a base última na qual se assenta a nossa realidade ‘física’.
Poderia mesmo dizer que o objeto de conhecimento das ciências
físicas é agora o Conceito em sua evanescente manifestação, e por isso,
talvez, a crise de paradigmas seja um sintoma da carência de Filosofia,
mais especificamente, da filosofia que implica um redimensionamento
do conhecimento a partir do que denomino de Metafísica de base não
material ou relacional, na linguagem estritamente hegeliana de Meta-
física do Espírito.
Com efeito, as ciências econômicas que pareciam ter respostas às
inquietações do espírito objetivo, de modo a terem sido postas como
definidoras de rumos, deram provas da sua insuficiência, nenhum
se quer dos grandes economistas foi capaz de, ainda que na véspera,


14
Hegel, Fenomenologia do Espírito, p. 23.

36
O Silogismo dialético como corolário da Metafísica do Espírito

antecipar-se à quebra dos sistemas financeiros do final do século pas-


sado, sobretudo, dos asiáticos, e de todas as implicações e desdobra-
mentos daí decorrentes, cujo horizonte tendencial é, ainda e para dizer
o mínimo, um mistério que obnubila o presente.
O capital já parece assumir uma nova figura e nela já não produz
senão a si mesmo de forma imediata e de forma mediata opera transfor-
mações sociais e políticas nos países onde se instala, com repercussões
inclusive no meio ambiente; numa sociedade na qual interessa mais pro-
duzir uma patente do que um bem de consumo, no sentido clássico, o
capital financeiro investe na sua capacidade de gerar a transnacionaliza-
ção do capital financeiro-especulativo-volátil, sua forma de globalizar-
-se concentrando ainda mais a riqueza. Mas, nesse âmbito também se
padece na fluidez e na incerteza, e as ciências econômicas já não têm pa-
radigmas ou modelos a oferecer, talvez, porque lhes falte a capacidade
de, na apreensão da nova realidade, operar a construção do conceito na
compreensão da Coisa mesma, cuja aquisição implica a perda da prepo-
tência e, quiçá, a abertura de um diálogo com a Filosofia, enquanto esta
se pretende o logos do Conceito mesmo posto na existência.
Em tudo se revela o advento de uma nova figuração, a evanes-
cência imposta pela nova figura, que se traduz tanto no quantum de
informação (conhecimento) produzida como na velocidade na qual
essa informação revela sua insuficiência ao ser suprassumida quase
imediatamente à sua aceitação como verdade; em tudo se manifesta
para o homem contemporâneo o indicativo de que seu mundo tem
uma nova configuração e de que ele próprio enquanto criador-criatura
desse mundo necessita abandonar os ultrapassados pressupostos do
cientificismo positivista (neutralidade do conhecimento, isenção do
sujeito no ato de produção do saber, possibilidade de obter a verdade
definitiva das coisas mediante a investigação empírica, etc.) para lan-
çar-se ao desafio de compreender a si mesmo e a sua realidade efetiva,
a partir de um ser que é pleno vir-a-ser e que em sua identidade com o
conhecimento é um conhecer que é ser.
A metafísica de Hegel, como aparece em minha breve tentativa
de demonstração do seu conceito no movimento interno dos jogos dos
três silogismos, não é e nem poderia ser a ‘panaceia universal’ (descul-
pem-me a expressão) que viesse, por assim dizer, a curar os males de

37
Alfredo de Oliveira Moraes

uma compreensão inadequada do homem e de sua realidade efetiva;


mas é bem possível que possa contribuir muito para, num universo
marcado pelas Peripécias da Razão, afirmar de novo a Filosofia, não
só como amor ao saber, mas como saber efetivo capaz de nos ajudar na
realização da Ideia de Liberdade no processo histórico, liberdade que é
fundamento de nosso ser e razão de ser da nossa existência. E assim, o
homem histórico ao realizar o seu projeto de contribuir para que a Filo-
sofia ocupasse de novo o seu lugar na Ciência e não mais como ativi-
dade desinteressada, permite que a Razão manifeste sua astúcia e realize
no seu sistema o projeto de uma nova Metafísica.
Destarte, se dizemos que uma meta existe para ser um alvo, mas
quando o poeta diz meta pode estar dizendo o inatingível15, quando o Filósofo
diz meta pode estar querendo significar algo que excede sempre as condi-
ções finitas de sua efetuação.16 Essa a razão pela qual a meta da Metafísica
de base relacional é culminar o processo da tríplice reconciliação, anun-
ciada no tríplice silogismo que como corolário de um sistema filosófico
é um convite ou uma incitação à perenidade do filosofar.

Referências
Bourgeois, B. Éternité et Historicité de l’Esprit selon Hegel. Paris. J. Vrin,
1991.
Hegel, G. W. F. Werke in 20 Bänden. Frankfurt am Main. Suhrkamp, 1990.
- Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Vol. I e III em
Trad. Paulo Meneses, e vol. II em Trad. De José N. Machado. São Paulo. Loyo-
la, 1995.
- Fenomenologia do Espírito, in 2 vols. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis. Vo-
zes, 1992.
Moraes, A. de Oliveira. A Metafísica do Conceito. Porto Alegre: EDPUCRS,
2003.
Theunissen, M. Sein und Schein. Frankfurt am Main. Suhrkamp, 1980.
Vaz, H. C. L. Escritos de Filosofia III. São Paulo: Loyola, 1997.


15
Gilberto Gil – na canção Metáfora.

16
Bourgeois, B. – Le Dieu de Hegel: Concept et Création, in op. cit. p. 317.

38
O encadeamanto entre Lógica
e Fenomenologia no sistema de Hegel

Márcia Zebina Araújo da Silva


Universidade Federal de Goiás

I
O debate sobre o papel e o lugar da Fenomenologia no sistema de
Hegel é bastante amplo e muito variado. Por um lado, pode-se questio-
nar a função da Fenomenologia, em virtude do projeto inicial de Hegel
ao publicá-la e do lugar que ela veio a ocupar, posteriormente, no sis-
tema maduro da Enciclopédia. Por outro lado, pode-se também questio-
nar o papel inicial a ela atribuído, de crítica - como introdução crítica
ao sistema da ciência - e a posterior designação desta tarefa crítica à
própria Ciência da Lógica. Algumas questões poderiam ser colocadas
para pensarmos a articulação do sistema hegeliano e o papel que a
Fenomenologia nele ocupa: (i) deveríamos considerar a Fenomenologia do
Espírito como uma introdução ao sistema da ciência, o que implicaria
na sua articulação com as demais partes deste sistema? (ii) Deveríamos
considerá-la como uma obra pronta e acabada, com uma unidade in-
terna que abarcaria a totalidade do sistema, como sugere Labarrière1?

1
Labarrière, P.J. in Structures e moviment dialectique dans la Phénoménologie de l´Esprit de Hegel.
Paris: Aubier, 1968, considera que a Fenomenologia tem uma unidade interna que a torna
completa, uma coerência que é um movimento. Nesta primeira obra dedicada ao estudo
da Fenomenologia, o autor investiga os paralelismos internos da obra, tendo em mente esta
velha questão de saber se esta é uma introdução ao sistema ou a primeira parte do mesmo.
Defende a tese da unidade da Fenomenologia, principalmente em face do sistema tardio da
Enciclopédia. Contudo, no confronto entre a Lógica e a Fenomenologia, a considera como uma
introdução e como a primeira parte do sistema, que também apresenta, de modo concentra-

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 39-53, 2015.
Márcia Zebina Araújo da Silva

(iii) Deveríamos assumir a proposta de Hegel na Enciclopédia, que se


mantém até a sua morte, desconsiderando a posição inicial da Fenome-
nologia como introdução ou primeira parte do sistema? Ou (iv) deverí-
amos levar a sério as referências que Hegel faz à Fenomenologia na in-
trodução da Ciência da Lógica, concebendo-a como uma pressuposição
necessária que superou a oposição da consciência?
Estes são temas controversos e de difícil acordo, mas deve-se as-
sinalar que na Enciclopédia, reeditada em vida por Hegel, a Fenomenolo-
gia aparece reduzida ao âmbito da consciência, na Filosofia do Espírito
Subjetivo, como etapa intermediária entre a Antropologia e a Psicolo-
gia, ainda que Hegel ressalte a sua importância, tanto no prefácio da
edição de 1827, quanto no de 18302.
Chiereghin (1998, p. 11) observa que a Fenomenologia do Espíri-
to é a obra de Hegel „menos prevista pelo autor“, como também é a
obra em que há menos indícios „nos escritos anteriores“, ao menos até
1805. Com efeito, no chamado período de Jena (1801-1807) as infor-
mações disponíveis indicam sucessivas reelaborações de uma Lógica
e da própria ideia de sistema, sem prever um lugar sistemático para
acolher uma obra com as características da Fenomenologia3. O esboço
do, a antecipação do mesmo. Em sua mais recente obra dedicada à Fenomenologia, Labarrière
(Phénoménologie de l´esprit, Hegel. Paris: Elipses, 2002, p. 53-54) volta a discutir o lugar que ela
ocupa no sistema hegeliano e sustenta a tese de que é uma introdução científica ao sistema
da ciência, ao mesmo tempo em que mostra que a Lógica constitui o mais profundo da cons-
ciência como sistema da razão. Apóia-se em uma nota redigida por Hegel em 1831, pouco
antes de sua morte, onde se encontra um esboço de uma nova versão da Fenomenologia em
que estaria trabalhando. Hegel não estaria somente empenhado em reescrever a Lógica, pa-
ralelamente empreendia a reescrita da Fenomenologia.

2
Chiereghin, F. Introdução à leitura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Lisboa: Edições 70,
1998, p. 3-11. Na introdução do seu livro, Chiereghin dedica-se a analisar os vários aspectos
da Fenomenologia, tanto aqueles que se referem ao lugar que esta ocupa no sistema, quanto os
aspectos historiográficos e biográficos que procuram mostrar o contexto intelectual em que
a obra foi composta, bem como os diversos momentos em que Hegel refere-se a ela ao longo
de sua vida e de seus escritos, além das controvérsias que surgiram ao longo do tempo entre
os seus estudiosos. Chiereghin avalia os vários aspectos de importância da Fenomenologia
como introdução ao sistema, mas também como uma obra com sua própria auto-suficiên-
cia, pois por um lado ela torna-se independente do sistema e, por outro, acaba tendo uma
função totalmente alterada, tal como aparece na Enciclopédia. Porém, como obra autônoma,
exerceria a função especulativa de procurar uma justificação para a filosofia enquanto saber
absoluto, o que os prefácios da Enciclopédia atestariam.

3
Jaeschke W. (2014, p. 35-41), em seu artigo, “O sistema da Razão Pura”, faz uma reconsti-
tuição histórica da elaboração da Lógica de Hegel, salientando os mudanças ocorridas no
pensamento do autor sobre a ideia de metafísica e da própria lógica, dentro do que se con-
vencionou chamar de o período de Jena. Nos fragmentos que chegaram até nós, ele observa
as várias reelaborações do esboço de sistema com a preocupação em definir o escopo da
lógica e o papel da metafísica, sem qualquer referência à Fenomenologia.

40
O encadeamanto entre Lógica e Fenomenologia no sistema de Hegel

do sistema elaborado neste período seria composto de uma primeria


parte - Lógica e Metafísica - , seguida de duas ciências do real - Natu-
reza e Espírito. Esta ideia de sistema gestada em Jena ainda não prevê
uma parte destinada a algo como uma Fenomenologia do Espírito, seja de
modo autônomo, seja como um elemento preliminar ao próprio siste-
ma. De fato, esta ideia de sistema se assemelha muito mais ao que será
publicado posteriormente com a Enciclopédia de 1817. Na breve nota
que Hegel redige para apresentar ao público a Fenomenologia, ele afir-
mar que a obra „diz respeito à preparação para a ciência, numa pers-
pectiva graças à qual ela é uma nova, interessante e a primeira ciência
da filosofia“ (PhG, p. 593)4. Ao cumprir a sua função preparatória, a
Fenomenologia desempenha o papel negativo ‚de liberar o sistema da
razão pura‘, que é a lógica especulativa, ‚da oposição da consciência ao
objeto‘ (Cf. WdL, p. 43-44; CL p. 29)5, como podemos conferir na Intro-
dução da Ciência da Lógica, intitulada de „conceito geral da lógica“: „A
ciência pura pressupõe, com isso, a liberação da oposição da consciên-
cia. [...] A lógica tem de ser desse modo apreendida como o sistema da
razão pura, como o reino do puro pensamento“ (Idem).
Em poucas palavras, o fio condutor da Fenomenologia é, precisa-
mente, o caminho da experiência da consciência até a ciência ou sa-
ber absoluto. O caráter negativo de tal caminhada, acima aludido, se
asemelha a um ceticismo que amadurece progressivamente através do
discernimento que vai se processando na consciência da não-verdade
do saber aparente, o que caracteriza as desiluções da consciência ao
aperceber-se dos seus enganos e desenganos.
Por ocasião da publicação da Fenomenologia, Hegel6 a apresenta
como a “primeira parte“ do Sistema da Ciência, que deverá ser segui-
do de uma “segunda parte“ composta de uma lógica como filosofia


4
Hegel, G.W.F., Phänomenologie des Geistes, Werke 3, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993.
Doravante designada no corpo do texto (PhG com o número da página), quando tratar-se da
edição brasileira (1992), será designada como FE e o número da página.

5
Hegel, G.W.F., Wissenschaft der Logik I, Werke 5, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993. Dora-
vente designada no corpo do texto como WdL, com o número da página e CL, com o número
da página, quando tratar-se da tradução brasileira de Marco Aurélio Werle dos Excertos da
Ciência da Lógica (2011).

6
A obra é publicada com o título de “ System der Wissenschaft, Erster Theil, die Phänome-
nologie des Geistes”. Na mesma nota de publicação aludida anteriormente, (PhG, p. 593),
Hegel esclarece sobre o segundo volume que ele pretendia publicar.

41
Márcia Zebina Araújo da Silva

especulativa, uma ciência da natureza e uma ciência do espírito. É inte-


ressante notar que, se retirarmos a Fenomenologia - como primeira parte
do sistema- com as modificações pertinentes ao seu lugar e função,
a estrutura do sistema - Lógica, Natureza e Espírito - é mantida nas
publicações posteriores e definitivas de Hegel. Contudo, precisamente
esta concepção dual do sistema - concepção na qual a Fenomenologia
aparece como a primeira parte seguida de uma Lógica, uma Ciência da
Natureza e uma Ciência do Espírito, que juntas constituiriam a segun-
da parte - é única, sendo posteriormente abandonada por Hegel. Como
observa Chiereghin (1998, p. 12) „esta estrutura bipartida do sistema
constitui um unicum na evolução do pensamento hegeliano“, uma vez
que, antes da redação da Fenomenologia, não há indícios desta estrutu-
ra bipartida, com a primeira parte do sistema composta de uma obra
autônoma, bem como, posteriormente, no sistema maduro, tal ideia
recua até desaparecer completamente.
No período de Nuremberg (1808-1816), pode-se observar ain-
da a presença da Fenomenologia na Propedêutica7 e, ao mesmo tempo, a
transformação que lentamente vai se processando no pensamento de
Hegel até mudar completamente com a publicação da Enciclopédia em
1817. Nesta obra definitiva observa-se, em suas três edições, que não há
mais lugar para a estrutura dual ou bipartida do sistema e ele deve ser
dotado de uma autosuficiência intrínseca, articulando, internamente,
Lógica, Natureza e Espírito, sem a necessidade de uma introdução - ou
primeira parte do sistema - separada.
Embora estes aspectos históricos/metodológicos não sejam o foco
do nosso trabalho, cabe reiterar que Hegel não abandona a Fenomeno-
logia, simplesmente. Ainda que a ideia de sistema tenha sido alterada,
com a supressão de um lugar definido para a Fenomenologia, a função
a ela atribuída, de superação ou liberação da oposição da consciência,


7
Hegel, G.W.F., Nürnberger und Heidelberger Schriften 1808-1817, Werke 4, Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1993. Nos Nürnberger Schriften, também traduzidos como “Propedêutica Filosó-
fica”, vê-se que Hegel ministrou um curso em 1808/09 intitulado: Bewusstseinlehre für die
Mittelklasse, no qual trata da Pneumatologia ou doutrina do espírito. Em 1809 ele ministrou
novamente um curso com o título Bewusstseinlehre für die Mittelklasse, cujos temas são os
mesmos da Fenomenologia até a razão. Na nota de rodapé do título, vemos a indicação de
que segundo Rosenkranz, trata-se do segundo curso, primeira seção: “Phänomenologie des
Geistes oder Wissenschaft des Bewusstseins”. Nos demais cursos não aparece mais a refe-
rência à Fenomenologia.

42
O encadeamanto entre Lógica e Fenomenologia no sistema de Hegel

permanece, o que pode ser constatado pelas menções que aparecem


tanto em 1812, na introdução da Ciência da Lógica, tendo decorrido um
curto espaço de tempo - 5 anos - desde a sua publicação, quanto nas
edições da Enciclopédia de 1827 e 1830, esta última, pouco antes de sua
morte. Na introdução da Ciência da Lógica Hegel afirma:

Na Fenomenologia da espírito expus a consciência em seu movi-


mento progressivo, desde a oposição primeira e imedita dela e
do objeto até o saber absoluto. Esse caminho percorre todas as
formas da relação da consciência com o objeto e tem como seu
resultado o conceito da ciência. Esse conceito [de ciência] (inde-
pendentemente de nascer da própria lógica) não necessita aqui,
portanto, de nenhuma legitimação, porque ele a adquiriu no pró-
prio caminho. (WdL, p. 42; CL, p. 27-28)

No parágrafo seguinte desta mesma introdução encontramos:


„O conceito de ciência pura e a sua dedução são dessa maneira pressu-
postos no presente tratado, tendo em vista que a Fenomenologia do espí-
rito nada mais é do que a dedução do mesmo“ (WdL, p. 43, CL, p. 28)
E no parágrafo 25 da última edição da Enciclopédia encontramos:
Na minha Fenomenologia do Espírito - que, por isso, quando se pu-
blicou foi designada como a primeira parte do Sistema da Ciência
- tomou-se o caminho de começar pela primeira [e] mais simples
manifestação do espírito, pela consciência imediata, e de desenvolver
sua dialética até o ponto de vista da ciência filosófica, cuja necessi-
dade é mostrada através dessa progressão. (E I, A § 25,)8.

II

Percebe-se, por esta breve explanação histórica e nas citações in-


dicadas, que a Fenomenologia sofre importantes alterações na tragetória
intelectual de Hegel, recebendo um novo lugar no sistema tardio e, ao
mesmo tempo, permanecendo como objeto de referência nas diferen-
tes obras publicadas até a morte do autor. A questão, me parece, não

8
Hegel, G.W.F., Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften I, Werke 8, Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1995. Doravante será designado como (E I) com a indicação do parágrafo, quan-
do se tratar do caput ou, ainda, seguido de ‘A’, quando se tratar da Anotação (Anmerkung) ou
de ‘Z’ quando se referir ao Adendo (Zusatz). Citações conforme a tradução de Paulo Meneses,
São Paulo: Loyola, 1995.

43
Márcia Zebina Araújo da Silva

deveria restringir-se ao cárater valorativo, tentando aquilatar a impor-


tância maior ou menor da Fenomenologia diante das demais obras do
sistema de Hegel, mas tampouco prender-se ao contrato encontrado
que indicaria o projeto de uma nova edição revisada da obra que foi
interrompida pela morte abrupta do autor9.
Parece mais adequado, a meu juízo, tentar articulá-la ao sistema,
dentro do âmbito daquilo que foi apresentado ao público pelo autor.
Todavia, deve-se observar que as mudanças de lugar dentro do siste-
ma - vindo a ocupar uma etapa do espírito subjetivo - e de tamanho -
reduzindo-a ao campo da consciência -, embora não sejam os aspectos
mais relevante, não devem ser subestimados, uma vez que são indica-
dores das mudanças de compreensão de sistema do próprio autor. Por
outro lado, a Ciência da Lógica, embora apareça como a ciência primeira
em sua autonomia e em sua relação com o sistema da Enciclopédia, afir-
ma, em sua introdução, que pressupõe a Fenomenologia10. Esta observa-
ção deveria ser considerada por sua relevância, mas não como oposi-
ção ao sistema tardio que situa a Fenomenologia na parte intermediária
do Espírito Subjetivo.
Com efeito, o propósito deste trabalho é assumir as duas de-
signações principais de Hegel para a Fenomenologia acima indicadas:
(i) de que ela é um pressuposto necessário da Lógica, como o lócus
de desenvolvimento do conceito de ciência pura, e (ii) de que ela é o
momento intermediário do espírito subjetivo, designação sistemática
apresentada nas 3 edições da Enciclopédia. Além disso, (iii) pretende-se
assumir que estas posições não são antagônicas ou contraditórias, mas
ao contrário, elas são reveladoras da ideia de filosofia presente no pen-
samento de Hegel, que diz respeito ao mais profundo da investigação
teórica, tendo como pano de fundo o problema do começo do filosofar,
do seu ponto de partida inicial, se mediado ou imediato.


9
Pinkard (2000, p. 161) observa que em 1831, ano se sua morte, Hegel tinha assinado um
contrato para a publicação de uma edição revisada da Fenomenologia. Ver T. Pinkard, Hegel´s
Phenomenology and Logic: an overview. In: German Idealism, Cambridge, 2000.
10
Ver WdL, p. 42-44; CL, p. 27-29.

44
O encadeamanto entre Lógica e Fenomenologia no sistema de Hegel

(i) A Fenomenologia como pressuposto


necessário da Lógica.

Podemos perceber, na introdução da Ciência da Lógica, que He-


gel está preocupado em ressaltar a peculiaridade desta ciência filosófica
diferenciando-a das demais ciências. Ele nos apresenta, ainda que em
linhas gerais, aquilo que deverá ser exposto ao longo do desenvolvimen-
to completo da Lógica. O tema central, que marca o início de toda a ex-
posição, é a singularidade desta ciência que exige que se entre direto no
problema, sem rodeios e sem pressupostos: “Em nenhuma ciência que
não a ciência lógica sente-se mais fortemente a necessidade de começar
com a coisa mesma, sem reflexões preliminares” (WdL, p. 35; CL, p. 21).
Esta frase que abre a introdução e, consequentemente, a Ciência da Ló-
gica, nos coloca diante da peculiaridade desta ciência que não pode ter
pressupostos e deve iniciar de imediato com o seu objeto, a coisa mesma.
Não obstante, nesta mesma introdução, como assinalamos ante-
riormente, Hegel assevera de modo contundente que a Fenomenologia do
Espírito é o pressuposto necessário da Lógica, de que através do caminho
percorrido de todas as relações da consciência com o objeto chegou-se
ao resultado do conceito da ciência pura e este deve ser tomado como
o verdadeiro ponto de vista da Lógica. O começo Lógico, deste modo,
parece justificado de antemão no percurso percorrido na Fenomenologia
do Espírito: “Esse conceito [de ciência] (independentemente de nascer da
própria lógica) não necessita aqui, portanto, de nenhuma legitimação,
porque ele a adquiriu no próprio caminho” (WdL, p. 42; CL, p. 27). A
ciência pura, que pressupõe a “libertação da oposição da consciência”,
como afirma Hegel, contém “o pensamento na medida em que ele é
igualmente a coisa em si mesma ou a coisa em si mesma na medida em
que ela é igualmente o puro pensamento” (WdL, p. 43; CL, p. 29).
O que transcorreu no percurso fenomenológico foi que a saber
absoluto superou todas as oposições da consciência com o seu objeto,
que ele - o saber absoluto - é “a verdade de todos os modos da consci-
ência, [...] apenas no saber absoluto se dissolveu perfeitamente a sepa-
ração entre o objeto e a certeza de si mesmo e se tornaram idênticas a
verdade dessa certeza bem como essa certeza da verdade.” (WdL, p. 43;
CL, p. 28-29). Percebemos que, por um lado, a Lógica não deve e não

45
Márcia Zebina Araújo da Silva

pode ter qualquer pressuposto, mas por outro lado, a Fenomenologia do


Espírito é, pelas razões já elencadas, a sua pressuposição necessária11.
De um modo interno à argumentação hegeliana, poderíamos di-
zer que a Lógica começa com o puro pensamento, livre das amarras da
consciência; este pensamento livre, como ponto de partida, chegou a
sua situação de liberdade no transcurso das figuras da consciência até
o saber absoluto, que alcançou a unidade de ser e pensar. Neste senti-
do, o conceito da lógica provém da Fenomenologia, como afirma Hegel
na ‚Divisão geral da lógica‘: „o próprio conceito da lógica foi indicado
na introdução como o resultado de uma ciência que reside num ou-
tro lugar e que aqui foi igualmente indicada como uma pressuposição.“
(WdL, p. 57; CL, p. 40) A lógica como ciência do pensamento puro tem
como seu princípio o saber puro, mas este saber puro é „unidade não
abstrata, mas concreta, viva“ (Cf. WdL, p. 57; CL, p. 40), nesta unidade
a oposição da consciência foi superada e „o ser é sabido como puro
conceito nele mesmo e o puro conceito como o verdadeiro ser. Esses
são assim os dois momentos que estão contidos no lógico“. (WdL, p.
57; CL, p. 40). É essa unidade dos dois momentos - do ser e do puro
conceito -, por conseguinte, que constitui o princípio lógico: a unidade
de ser e pensar na forma do pensamento.

(ii) A Fenomenologia como o momento


intermediário do espírito subjetivo.

Não pretendo me estender na consideração da mudança do lu-


gar sistemático da Fenomenologia no sistema tardio, mas apenas assina-
lar que o domínio do espírito é o tema do terceiro momento da ideia,
a ideia em si e para si, que vai constituir toda a Filosofia do Espírito.
É por sua vez, no momento intermediário da filosofia do espírito sub-
jetivo que Hegel situa o âmbito da Fenomenologia, restrita, desta feita
ao domínio da consciência. Deve-se observar, contudo, que a Filosofia
do Espírito, em seu todo, retoma vários temas também pertencentes
aos domínios da Fenomenologia do Espírito, tanto no âmbito do espíri-

11
Marcos Müller (2013, p. 65), no texto: “A negatividade do começo absoluto”, reconstrói bre-
vemente a discussão do começo, especialmente do começo lógico, para mostrar que este
começo filosófico, que tem que ser absoluto, revela, na verdade “a aporia do começo que não
pode ser nem mediado, nem imediato, mas que tem que ser ou um ou outro”.

46
O encadeamanto entre Lógica e Fenomenologia no sistema de Hegel

to objetivo: a moralidade e a eticidade, quanto do espírito absoluto: a


arte, a religião e a filosofia. É como se Hegel tivesse desmembrado a
Fenomenologia e realocado vários dos seus temas ao longo da Filosofia
do Espírito na Enciclopédia.
A pertinência ou não desta realocação, não nos cabe avaliar nes-
te momento, mas deve-se observar que a mudança de perspectiva da
ideia de sistema redimencionou todas as esferas do saber. O campo do
saber da ideia que retorna a si - o Espírito, que agora sabe, ficou situa-
do no terceiro momento do sistema, como a negação da negação e não
mais ao início, como a concepção da Fenomenologia do Espírito, enquan-
to introdução ao sistema da ciência, sugeria. Primeiro temos a Lógica
(Cf. E I, § 18) como a ciência do puro saber, da ideia em si, depois temos
a Natureza, como a ciência da ideia sendo para si, como o momento da
exteriorização do saber em sua alteridade na forma da alteridade. De-
pois temos o Espírito, como o retorno da saber a si mesmo, a ideia em
si e para si, que nega a alienação da natureza e retorna ao saber, mas
agora, como afirmava Hegel na divisão geral da lógica, como ‚unidade
concreta, viva‘ (Cf. WdL, p.57; Cl, p. 40). O espírito resulta da natureza
e a mantém, os domínios de determinação do espírito serão os passos
de sua constituição e desenvolvimento.
Na interioridade do sistema tardio não há mais lugar para uma
Fenomenologia como primeira parte do sistema, mas agora ela está re-
dimensionada no âmbito do espírito e, de certo modo, redefinida em
suas demais determinações. Me parece que este novo lugar indica a
mudança de perspectiva em relação a ideia de sistema e, consequente-
mente, de filosofia. Não apenas o sistema deixa de ser bipartido, como
também o ponto de partida do sistema passa a ser a lógica. Não obstan-
te, como vimos, o resultado alcançado pela Fenomenologia permanece.
A tarefa, me parece, é pensar está nova unidade do sistema que, come-
çando com a Lógica tem um desenvolvimento aparentemente linear,
e que, todavia, tem que ser interpretado sob uma perspectiva circular.

(iii) A radicalização da ideia de sistema

Ao nos encaminharmos para a conclusão, gostaria de retomar


alguns temas relativos a questão da consciência fenomenológica para

47
Márcia Zebina Araújo da Silva

articulá-la na perspecitva que pretendemos abordar aqui: assumindo a


ideia de sistema tardio em conjunto com a necessidade lógica da pres-
suposição da Fenomenologia.
Na perspectiva de Hegel, a consciência fenomenológica segue o
caminho do desencantamento do mundo, ela vai, paulatinamente, con-
frontando suas crenças inicias e compreendendo seus equívocos, a tal
ponto que percebe que nada pode ser dito, ou mesmo pensado, se per-
manecido no âmbito da multiplicidade do particular, „o universal é,
portanto, de fato, o verdadeiro da certeza sensível“ (PhG, p. 85; FE § 96).
Esta questão diz respeito ao confronto da consciência com o mun-
do e consiste no ponto de vista epistemológico de como apreendemos,
ou construímos, ou fantasiamos o mundo diante de nós. Todavia, este
não é o ponto de vista da Lógica. Nela o começo é puro, vazio, sem lu-
gar para uma consciência que está começando a tarefa de pensar sobre
o mundo com que ela interage. Não há consciência e não há mundo,
a Ciência da Lógica coloca o problema da ciência primeira, do ponto de
partida absoluto em que não há nada disponível ainda, nem a cons-
ciência diante do dado, nem a multiplicidade do dado que se oferece
à consciência. Não há, portanto, a clássica realação sujeito/objeto e, o
que deverá surgir do desenvolvimento da Lógica, são as categorias, ou
conceitos gerais que permitem a justificação dos dados do pensamento
que, ao fim e ao cabo, dizem respeito também ao mundo de objetos,
embora na lógica, não se trate da apreensão de objetos enquanto tais,
mas da possiblidade de sua compreensão12.
Todavia, este ponto zero inicial da Lógica, este começo absoluto
em que nada ainda está disponível só o é enquanto o ponto de vista
do filosofar, porque o filósofo que escreve a obra está lá, assim como o
mundo. Isso é evidente, mas o que não é tão evidente é que Hegel quei-
ra tematizar, no interior do sistema e da própria exposição da Ciência
da Lógica está duplicidade da posição inicial e da condição daquele que
debate a questão. Não é à toa que, ao final da Lógica surja a Ideia do
conhecer como uma espécie de Filosofia do Espírito Subjetivo na parte
12
Discorrer sobre o objeto da Ciência da Lógica e do que ela trata é uma tarefa que não nos pro-
pomos aqui neste trabalho. Envolveria, necessariamente, muitas outras discussões. Nosso
ponto, contudo, diz respeito ao encadeamento da Fenomenologia com a Lógica e de que as
posições clássicas assumidas por Hegel sobre a questão não são contraditórias e nem proble-
máticas e revelam o mais profundo da sua compreensão do fazer filosófico.

48
O encadeamanto entre Lógica e Fenomenologia no sistema de Hegel

intermediária da Doutrina do Conceito. Poderíamos dizer que é aí que


entra a Fenomenologia no interior mesmo da Ciência da Lógica, enquanto o
Eu que se relaciona com o mundo. No entanto, trata-se apenas da ideia
do espírito e não da sua dimensão fenomenal. „Na ideia lógica do es-
pírito, por conseguinte, o eu, tal como se mostrou a partir do conceito
da natureza com a sua verdade, é imediatamente o conceito livre, [...] o
conceito como a sua ideia“, ( WdL II, p. 496; CL, p. 257-258). Por um lado,
a Fenomenologia é pressuposta porque o mundo está dado aí ao filósofo
e disponível a qualquer um que queira filosofar ou não, por outro lado,
e o mais importante, ela é pressuposta porque o superação da oposição
da consciência teve que ser efetuado antes de se iniciar o ponto zero da
Lógica; isto porque, na Lógica, estamos no ponto de vista do saber ab-
soluto em que temos a unidade de ser e pensar. É a partir desta unidade
pressuposta que serão postas as categorias lógicas que permitem pensar
o objeto ou repor o mundo.
Para expormos este ponto de vista adequadamente, sugiro lançar
mão da interpretação que Martial Gueroult faz de Descartes em torno
da relação entre a ordem das razões e a ordem das coisas em sua famo-
sa obra: „Descartes selon l´ordre des raisons“13. Em uma interpretação
livre, segundo o espírito e não a letra de Gueroult, poderíamos usar esta
distinção para articular o sistema hegeliano. Do ponto de vista da or-
dem das razões, ou seja, do ponto de vista do sistema da Enciclopédia, a
Lógica é primeira; mas do ponto de vista da ordem das matérias, ou das
coisas, a filosofia do espírito é primeira. A Fenomenologia do Espírito, sob
determinado ponto de vista, constitui o domínio do espírito que retrata
o que está aí. Ela parte do mundo do espírito subjetivo que é sempre o
nosso estar fenomenológico no mundo diante dos objetos, até mostrar
os esquívocos da consciência ingênua, que é aquela encantada com o
multiplicidade do dado - ( o ponto de vista do mito do dado).
O que a articulação do sistema hegeliano revela é que o sujeito
não tem uma natureza bruta, estática postada diante de si. O objeto
não está instalado diante de nós para ser descoberto. O objeto só é para
nós, enquanto investido de conteúdo conceitual a cada passo mínimo
em que vai sendo incorporado pelo conceito/sujeito, e este investimen-
to não decorre de uma atividade necessariamente racional/consciente,
mas está no próprio plano das percepções. Ele só pode ser apreendido
enquanto tal como o universal, isto é, como pensamento ou conceito.


13
Gueroult, M. Descartes selon ordre des raisons I. Paris: Aubier-Montaigne, 1968.

49
Márcia Zebina Araújo da Silva

Por outro lado, e este é o ponto que me interessa, este investi-


mento conceitual do qual o objeto é dotado deve ser compreendido em
sua dinâmica histórico/cultural, no sentido de que nenhuma pessoa e
nenhum mundo estão confrontados imediatamente no ponto zero do
universo. Estamos, desde sempre, imersos em um contexto de conhe-
cimento e visão de mundo que constitui nossa apreensão do objeto, ele
mesmo - o objeto - está imerso em um contexto mundo que o constitui.
Esta dimensão ‚pragmática‘14 do conhecimento está presente em He-
gel, mas ele deseja demonstrá-la dialeticamente/metodologicamente,
de modo que a teoria pura possa ser capaz de expressar a sua „impu-
reza“. Ou seja, ela não é pura e simplesmente destituída de elementos
circunstanciais. O Eu não é vazio, ou transcendental, mas é Espírito,
„para nós, já está presente o conceito do espírito“ (PhG, p. 145; FE, §
177) - um Eu que é Nós, um sujeito num mundo de sujeitos e objetos.
Isso a filosofia tem que ser capaz de demonstrar. Neste sentido, o pon-
to zero da Lógica que constitui as determinações conceituais de todas
as coisas apreensíveis pelo pensamento, é o começo absolutamente va-
zio da teoria e a exposição da ordem das razões. Por outro lado, a Fi-
losofia do Espírito, na Enciclopédia, a dimensão do espírito subjetivo no
interior da própria Lógica, com a ideia do conhecer, além da própria
Fenomenologia do Espírito, como superação das oposições da consciên-
cia, consistem na ordem das coisas posta em dois tempos diferentes.
(i) Como horizonte da sociabilidade humana - o espírito - que põe o
mundo de sentido sempre já anterior ao sujeito que conhece; (ii) como
unidade sujeito/objeto ou absoluto que foi demonstrado nos passos de
superação da oposição da consciência, disponibilizando para a Lógica
a unidade de ser e pensar.
O ponto zero da Lógica é o ponto da indeterminidade, ele reve-
la o sentido do próprio projeto hegeliano desta unidade superada, „o
mérito de tal começo é que ele não necessita pressupor nenhuma de-
terminação dada de qualquer lugar, especialmente a pressuposição
de uma estrutura conceitual que normativamente determina o que
conta como conhecimento“ (Stern, 1993, p. 105)15, mas em seu inte-

14
Não quero assumir compromissos com o pragmatismo ao fazer esta afirmação, mas apenas
situar de modo livre esta noção pragmática/fenomenológica do conhecer.

15
David Stern, Foundationalism, holism or Hegel? In: G.W.F. Hegel: Critical Assessments, N.
York, Routledge, 1993, V. III, p. 93-105.

50
O encadeamanto entre Lógica e Fenomenologia no sistema de Hegel

rior a própria oposição irá ressurgir e ser novamente superada. Esta


situação factual fenomenológica, que estamos sempre dentro de um
contexto mundo, tem que ser logicamente demonstrada. A Lógica in-
terna da Fenomenologia fez isso, em um certo sentido, mas a Ciência da
Lógica, que parte desta superação, tem que repô-la em seu interior e,
igualmente, superá-la.
A Lógica trata de pensamentos de pensamentos, que consideram
as determinações do pensamento nelas mesmas, e não como na episte-
mologia kantiana, que as considera em relação a alguma coisa externa
ao próprio pensamento. Em Hegel, ‚as determinações de pensamento
não fazem referência ao domínio ôntico ao qual as categorias podem
ser aplicadas‘ (Cf. Stern, 1993, p. 104). „O Ponto crucial é em realidade
muito simples, apenas dentro do próprio pensamento a verdade do
pensamento pode ser justificada, e não por apelo a qualquer coisa fora
do pensamento“. (Idem, p. 105).
Partindo da citação do Stern de que o começo indeterminada da
Lógica nada pressupõe, parece que caimos em uma armadilha, uma
vez que a Fenomenologia não poderia cumprir o papel de um pres-
suposto da Lógica, pois esta, por sua própria natureza, não poderia
admitir qualquer pressuposto, qualquer elemento dado fora daquilo
que será desenvolvido internamente. Por isso, a assunção da afirma-
ção de Hegel na Lógica de que é preciso considerar a Fenomenologia
como pressuposta, não pode ser de um equívoco, que se expressaria
do seguinte modo: (i) ou a Fenomenologia do Espírito não deve ser pres-
suposta, (ii) ou se a pressupomos, a Ciência da Lógica não pode ser a
ciência pura que tira de si todos os seus elementos de determinação.
A proposta de assumir a Lógica como o ponto inicial de exposição do
sistema da ciência, segundo a ordem das razões, guardando o lugar
ao domínio do espírito e à superação da oposição da consciência pela
Fenomenologia, segundo a ordem das coisas, permite pensá-las ambas
como estruturadas dentro de um sistema filosófico circular. Se assu-
mimos a sistema da Enciclopédia e não retornamos, depois do espírito
absoluto, ao ponto de vista filosófico da Lógica, mantemos a lineridade
do sistema, o que contraria a própria ideia de Hegel da filosofia como
um círculo de círculos (Cf. E I, § 15).

51
Márcia Zebina Araújo da Silva

Dessa maneira a filosofia se mostra como círculo que retorna


sobre si, que não tem começo - no sentido das outras ciências
-, de modo que o começo é só uma relação para com o sujeito,
enquanto esse quer dicidir-se a filosofar, mas não para a ciência
enquanto tal. Ou, o que é o mesmo, o conceito da ciência e por
isso o primeiro conceito - e, por ser o primeiro, contém a separa-
ção [a saber], que o pensar é o objeto para um sujeito filosofante
(de certo modo exterior) - [esse conceito] deve ser apreendido
pela própria ciência. (E I, § 17)

A proposta de análise da articulação do sistema nesta dupla or-


dem de determinação procura colocar o ponto de vista circular como
a maneira adequada de leitura, de modo que o domínio do espírito
é o contexto mundo sempre aí diante de nós e dos filósofos. A Feno-
menologia do Espírito tem a peculiaridade de expor a questão central
da modernidade filosofica alemã, as relações e equívocos da consci-
ência subjetiva com o dado fora dela. Como a filosofia é o elemento
de apreensão do seu tempo em pensamentos, poderímaos dizer que a
Fenomenologia é expressão mais adequada desta expressão. Mas o pon-
to fundamental que esta articulação pretende ressaltar, é que o âmbi-
to do conhecimento e do pensamento estão situados em um contex-
to mundo, no espaço da sociabilidade humana - o mundo do espírito
que antecede e ultrapassa o sujeito - e este mundo deve ser levada em
consideração para que possamos compreender o alcance da proposta
hegeliana da filosofia. Mas isso já seria tema de uma outra exposição.

Referências

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boa: Edições 70, 1998.
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52
O encadeamanto entre Lógica e Fenomenologia no sistema de Hegel

______________. Wissenschaft der Logik II, Werke 6, Frankfurt am Main:


Suhrkamp, 1993.
______________. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften I, Werke 8,
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______________. Ciência da Lógica, Excertos. São Paulo: Bacarolla, 2011.
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______________. Propedêutica Filosófica. Lisboa: Edições 70, 1989.
JAESCHKE, W. O sistema da razão pura. In: O pensamento puro ainda vive: 200
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_________________. Phénoménologie de l´esprit, Hegel. Paris: Elipses, 2002.
MÜLLER, M.L. A negatividade do começo absoluto. In: O pensamento puro
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PINKARD, T. Hegel´s Phenomenology and Logic: an overview. In: German
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STERN, D. Foundationalism, holism or Hegel? In: G.W.F. Hegel: Critical As-
sessments, Hegel´s Phenomenology of Spirit and Logic, N. York, Routledge, 1993,
V. III, p. 93-105.

53
Ceticismo e exame do conhecer
na Introdução à Fenomenologia do Espírito

Luiz Fernando Barrére Martin


Universidade Federal do ABC

A certa altura da Introdução à Crítica da Razão Pura, Kant faz a se-


guinte observação: “Portanto, a crítica da razão conduz por fim neces-
sariamente à ciência; o uso dogmático da razão sem crítica conduz, ao
contrário, a afirmações infundadas, às quais se pode contrapor outras
igualmente aparentes, por conseguinte, ao ceticismo.”1
A fim de evitar o “uso dogmático da razão”, qual seja, aquele
que na determinação de um conhecimento filosófico se vale de prin-
cípios há muito utilizados pela razão, sem se investigar a respeito da
validade dos mesmos para a tarefa que se propõem, Kant vislumbra
na crítica da razão o empreendimento capaz de fazer frente ao ceticis-
mo. O dogmatismo seria para ele, assim, esse exercício de uma razão
que não se preocupou em examinar se a maneira como operava a li-
vrasse de uma oposição cética. Nas palavras de Kant: “Dogmatismo
é, portanto, o procedimento dogmático da razão pura sem uma crítica
precedente da sua própria capacidade.”2 Apenas a crítica da razão, julga
Kant, trará uma delimitação de seu poder acerca do saber de objetos.
Nesse sentido, Kant supõe que ele não comete o mesmo erro que a fi-
losofia sempre cometeu e não a fez avançar nenhum passo em direção
à constituição da metafísica como ciência. O procedimento dogmático
1
Kant, I. Kritik der reinen Vernunft. Hamburg: Meiner, 1990, B 22-23. (doravante citada abrevia-
damente por KrV, seguida da letra B e do número da página para a 2ª edição alemã).

2
KrV, B XXXV.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 54-65, 2015.
Ceticismo e exame do conhecer na Introdução à Fenomenologia do Espírito

da razão apenas a direcionou para a formulação de “afirmações in-


fundadas”, isto é, afirmações que o cético pirrônico denominaria de
dogmáticas. Diante destas, como bem notou Kant, o ceticismo pode a
ela contrapor outras, sem que, ao fim ao cabo, possamos ir além desse
conflito de posições sem solução. Nesse campo de batalha, Kant ape-
nas observa um combate simulado entre as diversas filosofias e a vi-
tória, de uma perante as outras, é apenas momentânea. Para o cético,
entretanto, nem momentânea é, pois ele combate todas as filosofias
que pretendem dizer as coisas como elas são, ataca suas pretensas
verdades e realidades.
Contra o método cético das antinomias, que Sexto chama de
“princípio maior da ordenação cética”, e que manda opor a todo dis-
curso um discurso com ele conflitante (“systáseos dè tês skeptikês estìn
arkhè málista tò pantì logo lógon íson antikeîsthai”)3, não é suficiente apre-
sentar mais uma doutrina filosófica, visto que ela também será alvo
dessa oposição que desemboca numa aporia. A crítica da razão talvez
possa ter êxito perante o ceticismo em virtude de seu caráter não-dou-
trinal. Ela não é ainda o sistema da filosofia da razão pura, mas antes a
crítica da própria faculdade pura da razão. Crítica que bem conduzida,
trar-nos-á a pedra de toque para avaliar o conhecimento que a ciência
filosófica possa gerar.4
A par do que foi exposto, a questão que resta é a seguinte: Kant
conseguiu efetivamente escapar da alternativa ou ceticismo ou dogma-
tismo? Para o que nos interessa, a saber, a posição de Hegel frente ao
encaminhamento do problema fornecido por Kant, a resposta só pode
ser negativa. Não basta afastar a possibilidade do questionamento cé-
tico, é preciso antes aprofundar a relação da filosofia com o ceticismo,
já que de outro modo, ele continuará a enfrentar a filosofia que não se
pretende cética.

* * *
Dentre os autores que se preocuparam com o ceticismo na es-
teira da filosofia de Kant, Hegel talvez seja aquele que com maior pro-

3
Cf. Sexto Empírico, Outlines of Pyrrhonism, vol.1, trad. De R.G. Bury, Cambridge: Harvard
University Press, 2000, livro I, parágrafo 12. (doravante citado por HP, seguido da indicação
do livro e do parágrafo)

4
KrV, B 26.

55
Luiz Fernando Barrére Martin

fundidade se dedicou ao tema. Em certa medida, o interesse dele pelo


ceticismo se deve à constelação de autores que se dedicaram a discutir
e estudar o ceticismo em relação à filosofia de Kant, mas também a
procurarem uma compreensão do ceticismo em sua autonomia. É de se
notar até existência de uma tradução de parte das Hipotiposes Pirrônicas
feita por Niethammer e publicada na Alemanha em 1792.5
No que toca especificamente a Hegel, no início do século XIX,
precisamente em 1802, a ocupação com a filosofia cética se mostra
efetiva com a publicação de um alentado ensaio intitulado “Relacio-
namento do ceticismo à filosofia”6, destinado a abordar um livro re-
cém-publicado (1801) por Gottlob Ernst Schulze, a Crítica da Filosofia
Teórica7, no qual este autor apresentava sua compreensão do que seria
o ceticismo. Em seu ensaio, Hegel se vê obrigado a expor o ceticismo
pirrônico e delinear a distância existente entre o ceticismo antigo e sua
forma moderna e barateada proposta por um epígono como Schulze.
Se desde tal momento já existe em Hegel a destinação de um cer-
to papel a ser cumprido pelo ceticismo na filosofia, isso não impede ao
mesmo tempo uma descrição e interpretação, do ponto de vista histo-
riográfico, bastante acurada do ceticismo pirrônico. Podemos mesmo
afirmar que a leitura hegeliana do ceticismo antigo é um marco, não
apenas para a filosofia do período, como também para os estudos con-
temporâneos acerca do tema. Não se trata aqui de avançar na análise
mais aprofundada desse artigo de Hegel a respeito do ceticismo, mas
o fato é que existe, na apreciação positiva que ele faz dessa corrente fi-
losófica, uma continuidade, a ser de modo patente observada, com sua
famosa, importante e difícil obra de 1807, a Fenomenologia do Espírito.8
5
F. I. Niethammer, Probe einer Übersetzung aus des Sextus Empiricus drei Bücher von den Grun-
dlehren der Pyrrhoniker. In: Beyträge zur Geschichte der Philosophie. Hg. v. G. G. Fülleborn.
1792, Heft 2.

6
Hegel, G.W.F. Verhältniss des Skepticismus zur Philosophie, Darstellung seiner Verschiedenen
Modificationen, und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten. (Relacionamento do ceticismo à filo-
sofia, exposição de suas diferentes modificações e comparação do novíssimo com o antigo) Gesammelte
Werke, Rheinisch-Westfälischen Akademie der Wissenschaften (hrsg. von H. Buchner und O.
Pöggeler). Hamburg: Meiner, 1968, Bd.4, S. 197-238. (=GW)

7
Schulze, G. E. Kritik der theoretischen Philosophie, Band 1, Hamburg, 1801 (reimpressão por
Aetas Kantiana. (1973). Bruxelas: Culture et Civilisation).

8
Hegel, G.W.F. Phänomenologie des Geistes (Fenomenologia do Espírito) Gesammelte Werke, Rheinisch-
-Westfälischen Akademie der Wissenschaften (hrsg. von W. Bonsiepen und R. Heede). Hamburg:
Meiner, 1980, Bd.9. (=GW); tradução brasileira por Paulo Meneses, Petrópolis: Ed. Vozes, 1992.

56
Ceticismo e exame do conhecer na Introdução à Fenomenologia do Espírito

Já no artigo de 1802 acima citado, Hegel nota que toda autêntica


filosofia comporta implicitamente o ceticismo.9 Nesse sentido, o per-
tencimento do ceticismo à filosofia não a torna uma expressão dessa
corrente filosófica não detentora de uma doutrina. Se essa incorpora-
ção do ceticismo à filosofia é, de alguma forma, a superação de sua
perspectiva filosófica, essa “superação” não se assemelha à superação
kantiana do ceticismo, pois neste caso tanto ele quanto o dogmatismo
precisam ser afastados.
Com efeito, é na relação positiva com o ceticismo e que envolve
a sua incorporação à filosofia, que Hegel tenta evitar que a filosofia
padeça da mesma crítica que, por exemplo, ele lança contra Kant na
Introdução à Fenomenologia do Espírito. A investigação filosófica em
Hegel vai se valer do ceticismo para constituir-se como ciência funda-
mentada, quer dizer, como ciência que é capaz de estabelecer seus pró-
prios critérios acerca daquilo que estabelecerá como saber e verdade.
Nesse sentido, o ceticismo “torna o espírito capaz de examinar o que
é verdade”.10 E a questão que poderia agora ser feita diz respeito ao
seguinte: o que há na atitude cética que faz Hegel adotar essa filosofia
como procedimento metódico na Fenomenologia do Espírito? Talvez a
crítica a Kant no início da Introdução nos traga pistas para que vislum-
bremos uma resposta satisfatória.
Como notamos no início dessa exposição, Kant pretendia evitar
ceticismo e o dogmatismo a partir de uma crítica da razão, pois apenas
esta, é o que ele espera, traria a possibilidade de afastar a filosofia de
um estado de conflito e indecisão que, ao fim ao cabo, desembocasse
no ceticismo. A crítica da razão estabeleceria os critérios para que a in-
vestigação filosófica impedisse o dogmatismo, que para Kant consistia
no uso de conceitos há muito utilizados e por isso mesmo não ques-
tionados. Antes de esmiuçar a nossa própria razão por meio de sua
crítica, não haveria, por parte do dogmatismo, nenhum receio em se
utilizar de princípios que não passaram pelo crivo de um exame da sua
viabilidade com vista à tarefa que se propunham. E não era no mesmo
sentido que se direcionava a crítica de Hegel a Kant na Introdução à Fe-
nomenologia do Espírito? Mas antes de tentar responder a essa questão,
vale observar que, para Kant, portanto, só o investigar do instrumento,

9
GW 4, p.208.
10
GW 9, p.56; tradução p.67.

57
Luiz Fernando Barrére Martin

a própria razão pura, prepara o terreno para que a filosofia se estabele-


ça em bases seguras. Sem esse trabalho prévio, que para Kant significa
alterar o método seguido pela metafísica, a esperança de um resultado
proveitoso, de uma revolução nessa ciência, fica prejudicada. O aspec-
to a ser sublinhado é justamente esse: o método. Tanto é assim que
Kant denomina a crítica da razão como um tratado do método e não
um sistema da própria ciência.11
Para que a metafísica possa se erguer solidamente fundada, é
preciso seguir uma orientação diferente daquela que até hoje apenas
impediu seu desenvolvimento. Esse novo método consiste em, antes
de efetivamente conhecer algo, antes de avançar na proposição de um
sistema filosófico, examinar a própria razão, seus princípios e seus li-
mites. E uma vez levado a termo esse exame prévio do nosso pensar
no seu sentido mais amplo, aí então teremos condições de realizar a
metafísica como ciência. Mas será isso mesmo?
Aos olhos de Hegel, essa mudança de método que poderia evitar
o dogmatismo, não teria sido tão feliz quanto à radicalidade de sua
investigação e, portanto, ainda estaria, de alguma forma, vinculada ao
dogmatismo que tanto execra. Dessa perspectiva, a crítica que Kant
endereça àqueles que simplesmente se valem em suas investigações de
princípios não examinados, mas, entretanto, válidos porque consagra-
dos pelo uso, reaparece em Hegel e direcionada agora ao próprio Kant.
Vejamos o que é dito a respeito por Hegel na Fenomenologia do
Espírito. Lá na Introdução da obra, Hegel a inicia referindo-se ao que
ele denomina uma “representação natural” acerca do conhecer, qual
seja, de que antes da filosofia pretender efetivamente conhecer, haveria
necessidade que se fizesse uma investigação mais ampla a respeito do
que significa conhecer.12
Conforme a essa “representação natural” do conhecer filosófico,
a mesma se faria necessária para seus adeptos, visto haver divergên-
cias quanto ao que seja conhecer. Hegel menciona duas orientações bá-
sicas para o conhecimento filosófico: 1º o conhecer como instrumento
para se apoderar do absoluto; 2º o conhecer como meio através do qual
o absoluto é contemplado. Como saber qual dessas orientações seria
correta? O exame do conhecer, nota Hegel a respeito dos que assim

11
KrV, B XXII.

12
Sobre o que é dito a seguir, ver de modo geral, GW 9, pp.53-55; trad. pp. 63-66.

58
Ceticismo e exame do conhecer na Introdução à Fenomenologia do Espírito

vêem a questão, talvez forneça essa resposta, além do que, parece a


quem adota essa “representação natural”, que a faculdade do conhecer
possua uma delimitação precisa do que ela é e a determinação “de sua
natureza e limites”13, talvez traga uma definição cabal do que seja a
atividade do conhecer. Essa precaução embutida nesse trabalho de me-
dição da faculdade do conhecer acaba, prossegue Hegel, nos levando à
convicção de que se trata de um contra-senso (Widersinnig) apreender
o que é em-si mediante o conhecer e se o em-si não pode ser conhecido,
é porque haveria uma linha que separaria o conhecer do absoluto.
Apesar de não indicar o autor que estaria norteando a caracte-
rização dessa “representação natural” acerca do conhecer, parece-nos
que o filósofo que mais se encaixa na crítica elaborada por Hegel seja
Kant. E a despeito de reconhecer a relevância filosófica do kantismo,
não concorda Hegel com esse trabalho prévio de conhecer o instru-
mento antes dele efetivamente ser empregado para a tarefa que lhe é
própria. Tal maneira de proceder implica em se aceitar uma série de
pressupostos que antes necessitariam ser problematizados. Se a filo-
sofia quer se realizar como ciência autêntica, não há como escapar da
exigência de não aceitação de pressupostos injustificados. O método
proposto por Kant, entretanto, ainda não realizaria esse intento.
O que essa exigência de um exame da faculdade de conhecer nos
proporciona, portanto, são oposições tais como essa entre o que pode-
mos conhecer e aquilo que não está ao nosso alcance conhecer, a saber,
o em si. De um lado temos o conhecer, e de outro o absoluto. Mas se
conhecemos algo que não é o absoluto, mesmo assim esse conhecimento
seria verdadeiro? A consequência dessa oposição será sim justamente
essa: de que o conhecido fora do absoluto, que é a verdade, também é
verdadeiro. Para Hegel, teremos então duas verdades: uma, a que não
temos acesso, e outra, a que temos acesso, mas é uma verdade, dirí-
amos, mais fraca. Hegel vai se referir a essa “solução” como passível
de desembocar numa “distinção obscura entre um verdadeiro absolu-
to e um verdadeiro ordinário.”14 A própria investigação do conhecer
que leva a essas distinções, não se dá conta que termos como absoluto,
conhecer etc. também estão sujeitos a terem sua significação esmiuçada.
Se aporias são geradas, é porque nos valemos de termos atrelados a

13
GW 9, p. 53; trad. p.63.

14
GW 9, p.54; trad. p.65.

59
Luiz Fernando Barrére Martin

certo significado não questionado. E agora podemos voltar à questão


formulada no começo e que retomo nos seguintes termos: a crítica de
Kant ao dogmatismo, ou seja, de que conforme ao mesmo se tentasse
progredir no conhecimento a partir de princípios consagrados pelo uso e
por esse mesmo fato não se conseguisse avançar nenhum passo adiante,
não é a mesma que agora Hegel dirige a ele? A mim me parece que sim, e
nesse sentido Hegel parte do mesmo diagnóstico que Kant para criticar
o mesmo. E se tanto em um quanto em outro autor exista um exame
do conhecer, Hegel procurará aprofundar esse exame de modo que seja
possível evitar os problemas apontados no caso de Kant.
Posto isso, a questão que se põe agora é: como proceder com
esse exame sem que fiquemos vulneráveis a um ataque como esse
dirigido por Hegel a Kant? Haveria um método segundo o qual esse
exame do conhecer tivesse chance de obter êxito? De que modo teria
de se constituir essa, nos termos de Hegel, “investigação e exame da
realidade do conhecer”,15 a fim de que o conhecimento filosófico pu-
desse ser realizado?
A resposta de Hegel vai no sentido de propor um método que
nos mantivesse afastados tanto do ceticismo puro e simples quanto do
dogmatismo. Ao mesmo tempo, esse método de exame é conduzido
pelo que Hegel denomina de “ceticismo em vias de consumação”. Há,
portanto, a incorporação do próprio ceticismo à filosofia como forma
de evitar que se torne vítima da crítica cética por ser considerada uma
forma de dogmatismo. A presença do ceticismo nesse exame se justifi-
ca para Hegel em virtude desse caráter radical da investigação cética e
consistente em tudo ser passível de investigação até que, porventura,
possa ser aceito como válido. Se o cético não adotasse como postura a
investigação permanente, se ele propusesse alguma verdade, então ele
não se distinguiria dos dogmáticos, e por conseguinte, cairia naquele
mesmo conflito das filosofias que ele tanto critica. A isenção e a neu-
tralidade de seu exame se assentam nessa ausência de dogmas, de não
partir de nenhuma verdade, seja ela qual for ou diga respeito ao que
quer que seja. Por isso o exame dos enunciados dos dogmáticos se efe-
tua levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram, e
os argumentos utilizados pelos céticos para combater tais enunciados,

15 GW 9, p. 58; trad. p. 69.

60
Ceticismo e exame do conhecer na Introdução à Fenomenologia do Espírito

expressam única e tão somente a forma por eles encontrada para veri-
ficar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto.16
Nada pode, sob pena de incoerência, ficar excluído do exame por
ele proposto. Para Hegel, o aspecto fundamental desse radical exame
diz respeito ao ceticismo pôr sob investigação tanto o conteúdo quanto
a forma do que é dito. Na proposição “a folha é verde”, o cético pode
muito bem se contrapor a essa afirmação dizendo que a ele lhe aparece
que a folha é amarela. Mas ele também pode se preocupar em examinar
essa própria estrutura da proposição e as categorias aí subjacentes, caso
das categorias de ser e de singularidade. Mas de volta à crítica a Kant, a
falta de um exame mais detido de representações acerca, por exemplo,
do conhecer, absoluto, do objetivo e do subjetivo, permite que Hegel
aponte os impasses não resolvidos pelo criticismo kantiano. Digamos
que Kant estava confortavelmente instalado numa certa linguagem es-
tabelecida, sem pôr em questão o significado dos usos consolidados dos
termos dessa linguagem. Via de regra o pensamento dogmático não
se questiona a respeito do que diz. É como se desde sempre os concei-
tos dos quais se vale tivessem os significados que, num determinado
contexto, prevaleceram. O cético recua ante esse emprego ingênuo das
palavras e examina se as “essências” que nelas habitam são efetivamen-
te “essências” estáveis. Nesse exame da “essência do expresso”, para
falar em linguagem hegeliana, se atinge o caráter limitado e instável
dessas “essências”. E ao se atingir a limitação das mesmas, descobre-se
também que as mesmas não podem ser visadas apenas na sua unilate-
ralidade. Em suma, para que possamos pretender aceitar determinada
posição, filosófica ou não, é necessário que nada deixe de ser investi-
gado. É uma tal atitude que leva Hegel, é o que me parece, a adotar o
ceticismo como o condutor do exame a ser empreendido na Fenome-
nologia do Espírito, e um exame que “provoca um desespero nas assim
chamadas representações naturais, pensamentos e opiniões, que é in-
diferente denominar próprias ou estranhas e das quais a consciência
que procede diretamente a examinar ainda está cheia e embaraçada, e
dessa maneira é de fato incapaz do que quer empreender”.17 A crítica
a esse exame do conhecer logo no início da Introdução é um exemplo
16
A respeito do ceticismo antigo, ver de modo geral de Sexto Empírico as Hipotiposes Pirrônicas
e, particularmente, para a orientação geral da atitude cética, cf. HP, I, 1-30.

17
GW 9, p.56; trad. p.67.

61
Luiz Fernando Barrére Martin

patente dessa consciência “incapaz do que quer empreender”. E nesse


contexto de radicalidade da investigação cética e que, ao mesmo tempo,
é incorporada ao método de exame na Fenomenologia do Espírito, que
Hegel começa a tratar do método, apontando um problema crucial em
relação ao mesmo, a saber: o problema do critério.
Com efeito, o que é necessário para que haja um exame? Como
avaliar se o exame é dotado de correção ou não? Aquele que examina,
precisa de um critério para guia-lo nessa investigação. A esse respeito,
Hegel assinala que esse exame “não parece poder acontecer sem um
certo pressuposto colocado na base como padrão de medida. Pois o
exame consiste em aplicar ao que é examinado um padrão aceito, para
decidir, conforme a igualdade ou desigualdade resultante, se a coisa
está correta ou incorreta”.18
De uma perspectiva cética, não foi possível admitir algum cri-
tério para julgar acerca da realidade ou não realidade das coisas. Um
critério que nos permitisse afirmar se encontramos ou não a verdade.19
Por que, cabe perguntar, há tanta dificuldade por parte do cético em
se comprometer com algum critério de verdade? Como saber se há um
critério de verdade universalmente válido quando, observa Sexto, há
controvérsia acerca de sua existência ou não? Uns, caso dos estoicos,
afirmam que ele existe, outros como Xeniades, que ele não existe.20 Se
um critério de verdade existe ou não, talvez seja necessário um critério
para julgar essa disputa, mas primeiro precisaríamos saber se é possí-
vel existir um critério para só então aceitar um critério de julgamento
acerca da disputa em torno da existência ou não de um critério. O que
temos aqui, portanto, é um raciocínio circular, pois para julgar acerca
da existência ou não de um critério de verdade, precisamos de um cri-
tério de julgamento, mas esse critério depende, por sua vez, de saber-
mos se é possível a existência de um critério.
Em contrapartida, adotar pura e simplesmente um critério, signi-
fica que outro pode pressupor um outro critério e então como decidir
por um ou pelo outro? Um critério é posto tão arbitrariamente quanto
o outro. Por fim, apresentar um critério para fundamentar esse crité-
rio pressuposto, exigiria um outro critério para esse critério, e assim
18
GW 9, p.58; trad. p.69.
19
Cf. HP, II, 14.
20
Cf. HP, II, 18.

62
Ceticismo e exame do conhecer na Introdução à Fenomenologia do Espírito

acabaríamos numa regressão ao infinito.21 A questão que resta então


responder é a seguinte: como superar essas dificuldades geradas pelos
modos céticos de oposição de argumentos?
Apenas adotar um certo critério para exame, não nos preservaria
da acusação de inconsistência dessa investigação. Por quê? Justamen-
te porque nesse início do trabalho de exame nada se justifica como
critério ou padrão de medida. Muito facilmente seríamos vítimas de
investidas céticas. Um exame levado a cabo por um ceticismo que se
consuma, não pode correr o risco de ser criticado da mesma maneira
como os céticos sempre o fizeram contra os dogmáticos. Portanto, para
que algo se justifique como critério de verdade, ou nos termos de He-
gel, como a essência ou o em si, não convém simplesmente pressupor
um padrão de medida.
No início, portanto, nada se justifica como padrão de medida. Um
autêntico cético não aceitaria que o exame prosseguisse sem o exame do
critério de exame. Hegel, como defensor da radicalidade da postura cé-
tica na Fenomenologia, está consciente desses pormenores da discussão
acerca do critério. Tanto que em vista da dificuldade em ter um critério
de exame, ele nota que fomos levados a uma aporia. Para haver um
exame é preciso um padrão de medida, mas como ter um padrão de
medida no início, quando nada se justifica como a essência ou o em si?
A solução indicada por Hegel é justamente não propor nenhum
critério. Nessa relação em que há um para um outro, isto é, uma cons-
ciência para a qual existe um outro ao qual ela se relaciona, nós não
temos que nos intrometer, pois a nós só nos cabe observar o exame que
a consciência faz em si mesma acerca do saber, e que ela extrai dessa
relação com algo outro que é para ela. Mas de onde então surge o pa-
drão de medida que torna possível o exame? “A consciência fornece,
em si mesma, sua própria medida,; motivo pelo qual a investigação
se torna uma comparação de si consigo mesma, já que a distinção que
acaba de ser feita incide na consciência.”22
Apenas a título de esclarecimento, toda essa discussão acerca do
método de exame do conhecer se faz tendo em vista o modo como
essa ciência filosófica se estrutura nesse momento inicial, a saber, como
um saber que aparece a uma consciência, quer dizer, um saber que se

21
Cf. HP, I, 20.

22
GW 9, p. 59; trad. p.69.

63
Luiz Fernando Barrére Martin

estrutura a partir dessa relação de um para um outro, de uma consci-


ência relacionada a algo diferente dela. E é dentro desse contexto que a
consciência fornece seu próprio padrão de medida.23
Mas de volta ao método de exame, assim como o cético apenas
examina o saber dogmático que a ele se apresentava como verdadei-
ro, o exame cético da consciência fenomenal parte da verdade que a
própria consciência extrai da atividade de conhecimento que se passa
nela. É o próprio saber a ser examinado que fornece seu padrão de me-
dida ou critério de verdade. Se ele se sustenta ou não, isto depende dos
seus próprios pressupostos, que serão ceticamente examinados. A nós,
só nos cabe observar esse exame a partir dos próprios elementos for-
necidos pela consciência fenomenológica. Se alguma “verdade” nossa
entrasse nesse exame, então poder-se-ia questionar a validade daquilo
que trouxemos para a investigação.
A consciência fornece sua própria medida, por esse motivo a
comparação com o critério é imanente, pois a distinção entre o em-si e
o que é para a consciência é fornecida pela própria consciência. Nela,
portanto, incidem os dois momentos, isto é, o do saber, no qual existe a
relação de um para um outro, e o da verdade, fora dessa relação ou em
si e originado dessa relação de saber.
A constituição do em si é, por conseguinte, fruto da relação de sa-
ber que se estabelece na consciência e a cada novo exame essa verdade
é testada a fim de se saber se continua a se sustentar. E na comparação
entre o que o exame nos traz e aquilo que era dito como verdade, se o
resultado do exame for outro que aquele que a verdade propunha, en-
tão a verdade se aniquilou e uma nova verdade vem a ser estabelecida.
O que Hegel chama de conceito é o saber, ou seja, a própria re-
lação de saber que acontece no interior da consciência, já o objeto é o
ser ou a verdade. O objeto não é, portanto, um simples objeto empírico
com o qual aquele que conhece se depara e pretende então conhecê-lo.
O objeto como a verdade é o resultado dessa relação de saber que se
passou na consciência.
Quando Hegel afirma que “o essencial é manter firmemente
para o todo da investigação que ambos os momentos, conceito e obje-
to, ser-para-um-outro e ser-em-si-mesmo, incidem no próprio saber que


23
Cf. GW 9, pp. 58ss; trad. p.69ss.

64
Ceticismo e exame do conhecer na Introdução à Fenomenologia do Espírito

investigamos(...)”24, ele dessa maneira nos faz perceber que o aquilo


que se firmará como o em si é resultado desse processo que se passa
no interior da consciência. Não temos, portanto, um em si como algo
separado da consciência e exterior a ela. O em si no âmbito da consci-
ência fenomenal é gerado pela própria consciência que procura saber
algo. Se o que é em si se põe como verdade, a mesma ainda se dá no
âmbito da consciência.
Vemos, portanto, que é por esse método que o saber pode ser
examinado. Além disso, compreendemos também porque a consciên-
cia é para si mesma seu conceito.25 É ela própria que fornece a si mesma
o seu padrão de medida e autoexamina se esse padrão ou critério é ca-
paz de se sustentar. Se o critério da correção do saber não se sustenta, é
a própria consciência que ceticamente põe a prova esse critério a fim de
descobrir se ele não constituía uma ilusão de saber. Nesse movimento,
a negação do critério implica o estabelecimento de um novo critério ge-
rado pelo autoexame da consciência. É desse modo que Hegel julga ser
capaz de fazer frente à crítica do ceticismo ao dogmatismo e ao mesmo
tempo permita à filosofia constituir-se como saber que dá a si próprio
sua fundamentação e justificação.

Referências
Hegel, G.W.F. Phänomenologie des Geistes (Fenomenologia do Espírito) Gesammel-
te Werke, Rheinisch-Westfälischen Akademie der Wissenschaften (hrsg. von
W. Bonsiepen und R. Heede). Hamburg: Meiner, 1980, Bd.9; tradução brasi-
leira por Paulo Meneses, Fenomenologia do Espírito, Petrópolis: Ed. Vozes, 1992.
Hegel, G.W.F. Verhältniss des Skepticismus zur Philosophie, Darstellung seiner
Verschiedenen Modificationen, und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten. Gesa-
mmelte Werke, Rheinisch-Westfälischen Akademie der Wissenschaften (hrsg.
von H. Buchner und O. Pöggeler). Hamburg: Meiner, 1968, Bd.4, S. 197-238.
Kant, I. Kant, I. Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura). Hamburg:
Meiner, 1990.
Schulze, G. E. Kritik der theoretischen Philosophie, Band 1, Hamburg, 1801 (reim-
pressão por Aetas Kantiana. (1973). Bruxelas: Culture et Civilisation).
Sexto Empírico. Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirrônicas), vol.1, trad. De
R.G. Bury. Cambridge: Harvard University Press, 2000.

24
GW 9, p. 59; trad. p.70.

25
GW 9, p. 57; trad., p.68.

65
A efetividade como manifestação do absoluto

Marloren Lopes Miranda


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Para Hegel, pensar concretamente um objeto é considerar esse


objeto numa perspectiva de totalização, ou seja, é considera-lo não se-
paradamente de tudo, detendo-se apenas nele, mas, a partir disso, rela-
cioná-lo a outros objetos, considerando suas conexões com eles, numa
perspectiva de unidade desses elementos. Pensar concretamente é, para
Hegel, considerar as relações de uma parte com o todo. Para isso, parti-
mos de um ponto de vista mais abstrato, ou seja, o qual o objeto é consi-
derado sem essas relações e determinações e, na medida em que avan-
çamos na investigação desse objeto, expondo suas conexões com o todo
de diferentes perspectivas e, assim, determinando-o cada vez mais, tor-
namos esse objeto cada vez mais concreto, até chegarmos nesse ponto de
vista da totalização. Desse modo, o resultado é algo mais concreto que as
outras partes, pois contém em si a totalidade das relações do objeto com
os outros objetos, numa perspectiva de unidade.
A noção de verdade, para Hegel, está intrinsecamente ligada a
essas definições: “o verdadeiro é o todo”, já exprime o parágrafo 20
da Fenomenologia. Nesta obra, Hegel pretende elevar a consciência e
o saber do senso comum ao pensar filosófico ou científico. Em outras
palavras, Hegel pretende, na Fenomenologia, grosso modo, elevar a
consciência e o saber de um ponto de vista mais abstrato para o mais
concreto: a consciência ainda está presa a perspectivas dualistas de

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 66-75, 2015.
A efetividade como manifestação do absoluto

acesso à realidade, escolhendo entre este ou aquele modelo de pensar


dos objetos, e é preciso, se ela quer chegar à verdade, que ela possa ter
acesso à realidade como um todo, a partir de um método que a permita
abarcar a realidade dessa maneira.
Esse método é o que chamamos de dialética-especulativa – ou
simplesmente dialética –, que contém em si o movimento de supras-
sunção (Aufhebung): o entendimento atua fixando dualismos, fixando
oposições, das quais partimos, para que a razão dialética (ou negativa)
ponha em questão essas oposições, dissolvendo-as como oposições.
Nesse momento negativo, de negação de oposições, emerge a razão
especulativa (ou positiva), engendrando essa negatividade novamente
no processo, produzindo um nova perspectiva, um novo modo de pen-
sar os objetos. Através do movimento de suprassunção, a consciência
supera os momentos de dualidade, negando-os, mas conservando seus
pontos de vista e o que se aprende com eles em um novo patamar. Ao
analisar esse próprio, ao rever todas essas suprassunções em conjunto,
a consciência chega ao saber absoluto, isto é, ao saber puro: ao ponto
de vista que permite pensar a realidade de maneira unitária, não mais
dualista. A verdade, para Hegel, então, depende das relações que se
consegue articular em torno de uma teoria, considerando-a nessas re-
lações, ou seja, buscando uma perspectiva de totalização, mais ampla
e complexa do que uma visão meramente dualista, que busca deter-
minar o verdadeiro opondo-o ao falso. “A verdadeira figura, em que a
verdade existe, só pode ser o seu sistema científico” (HEGEL, FE, §5).
Essa figura é a do saber absoluto, ou ainda, do saber filosófico: a
filosofia é, segundo Hegel, a ciência capaz de pensar a realidade como
uma unidade de uma multiplicidade porque é capaz de unir esse múlti-
plo conceitualmente. A filosofia, assim, para Hegel, é um ponto de vis-
ta acerca da realidade, a saber, o ponto de vista conceitual – e, por ser
conceitual e, assim, capaz de unir a multiplicidade sem dissolvê-la, é o
ponto de vista mais verdadeiro e concreto, é o ponto de vista da totali-
zação, no qual é possível manifestar a profundidade das relações reais e
efetivas sem, com isso, perder-se em uma realidade fragmentada.
A realidade é, assim, o verdadeiro objeto de investigação filosó-
fica, e deve ser investigado pela filosofia a partir do seu próprio mé-
todo, isto é, a filosofia não deve buscar modelos científcos em outras

67
Marloren Lopes Miranda

ciências, como teria pretendido fazer Kant com relação à física e, antes
mesmo, também Descartes, com relação à matemática. Para Hegel, a
filosofia deve fazer filosofia, e não matemática ou física, e para isso,
precisa de um método próprio, que seria o próprio método dialético. A
dialética seria o método essencialmente filosófico justamente por pro-
porcionar o acesso ao objeto, à realidade, de maneira unitária, manten-
do nessa unidade sua multiplicidade, através da conservação presente
na suprassunção.
A Fenomenologia, então, é a ciência da experiência da consciência:
a consciência experimenta diversas perspectivas de acesso às coisas e
reflete a respeito delas, negando suas meras oposições, conservando
essas experiências e o que se aprende com elas e elevando-as a no-
vas perspectivas, cada vez mais amplas, complexas e profundas, até
alcançar aquela que a permite compreender que o ponto de vista mais
complexo é aquele que une as multiplicidades sem que isso torne a
realidade fragmentada, ou seja, o ponto de vista do saber absoluto ou
do saber filosófico. É importante ressaltar que o vocábulo “ciência” em
alemão (a saber, Wissenschaft) tem a mesma raiz que “saber” (wissen)
e, portanto, que a noção de ciência, para Hegel, é mais uma espécie de
sabedoria e, embora diferente do que nós costumamos relacionar à sa-
bedoria, algo como sabedoria popular ou não-científica, conserva algo
disso: a experiência.
A noção de experiência em Hegel é central para compreender-
mos o que significa esse tipo de saber que a filosofia proporciona e por-
que ela nos permite ver a realidade de maneira mais profunda e, por-
tanto, mais verdadeira. Todo o percurso fenomenológico é mediado
pela experiência: a consciência experimenta maneiras de acessar a re-
alidade; a partir dessas perspectivas, experimenta a realidade, ou seja,
ela se orienta a partir de uma visão da realidade. Isso é constantemente
posto à prova, o que faz a consciência rever seus aprendizados, sua
forma de ver a realidade, até chegar ao saber absoluto, que a faz mu-
dar de perspectiva, integrando diferentes formas de acesso à realidade
numa unidade, vendo a realidade como uma unidade de multiplici-
dades, isto é, vendo que todos os objetos os quais ela experimentou e
suas relações com eles – com outras coisas, com outras consciências e
com o mundo, com a cultura, com a religião – não são fragmentos, mas

68
A efetividade como manifestação do absoluto

partes de um todo. O próprio saber absoluto é, portanto, uma forma


de experimentar a realidade, isto é, é um tipo de experiência: para He-
gel, a experiência da consciência que mais dá conta do conhecimento
dos objetos, isto é, a perspectiva mais complexa e profunda acerca dos
objetos é o saber absoluto, pois exprime uma suprassunção de todo o
processo anterior – de todas as experiências anteriores da consciência,
de tudo o que a experiência vivenciou nesse processo, de todo o seu
aprendizado – em uma perspectiva de unidade. A consciência percebe
que o melhor modo de compreender os objetos é compreender que há
perspectivas diferentes acerca deles, de acordo com sua época, com
seus costumes; mas que ela faz parte do processo de construção desses
objetos, pois não apenas os objetos são uma unidade, mas também a
consciência faz parte dessa unidade: ela não apenas pensa esses obje-
tos, ou pensa a realidade, mas ela é a realidade, na medida em que dela
faz parte. Conhecer a realidade do ponto de vista do saber absoluto é,
portanto, também conhecer-se a si mesmo.
Assim, o ponto de vista conceitual da realidade é o ponto de
vista de uma unidade do sujeito e do objeto: a experiência de ser
parte da realidade. Isso seria a ciência ou o conhecimento filosófico:
investigar, a partir de uma perspectiva de unidade, como é a rela-
ção entre o sujeito e o objeto, incluindo aí as diferentes perspectivas:
culturais, políticas, lógicas. O saber absoluto hegeliano, então, não
envolve apenas um conhecimento técnico, um domínio de alguns
assuntos filosóficos – ou um domínio de algumas qualidades acadê-
micas, por assim dizer – mas também da experiência, do constante
processo de pôr à prova suas crenças, de negá-las como definitivas e
complexifica-las cada vez mais, sem descolar o conhecimento científi-
co de toda a realidade, pois ele também é parte dela. O conhecimento
técnico filosófico, então, para Hegel, é impossível sem a experiência
da consciência e essa experiência não é algo meramente sensível, mas
é uma experiência conceitual, também é refletir (no sentido latu da
palavra): experimentar, para Hegel, em um sentido mais forte, é pen-
sar, é não descolar o pensamento da realidade. Saber é experimentar,
e experimentar envolve, necessariamente, pensar e ser: experimentar
a realidade do ponto de vista filosófico é fazer parte dela, é ser ela, e,
por isso, é pensar a seu respeito.

69
Marloren Lopes Miranda

Ao finalizar o percurso fenomenológico, o que temos presente,


então, é o objeto da filosofia, a realidade. Temos agora uma unidade
que, embora saibamos que contém nela os múltiplos objetos fenome-
nológicos, não tem ainda nenhuma determinação a partir desse novo
ponto de vista, o do saber absoluto. Visto que o saber absoluto é o sa-
ber puro, no sentido de não estar mais atrelado a dualismos, mas estar
sob uma perspectiva de unidade, ele também é aqui puro não porque,
como costumamos pensar, está desvinculado da experiência (ou da ex-
periência empírica, para ser mais exata), mas porque está vinculado a
uma experiência, mas uma experiência conceitual – uma experiência
que pensa sobre si mesma e que, por isso, é. A pureza desse saber con-
siste em abandonar pontos de vista imediatos e pobres e deter-se no
ponto de vista mais mediado e rico, o conceitual, só que esse ponto de
vista só é rico da perspectiva fenomenológica: da perspectiva do saber
absoluto, da ciência ou da sabedoria propriamente dita, esse ponto de
vista não tem nenhuma determinação. É como se fôssemos os explo-
radores marítimos do século XV e XIV: saímos em nossos navios em
uma longa viagem e chegamos a um território novo e inexplorado;
durante a viagem, temos diversas experiências, mas, ao encontrar esse
novo território, é preciso deixar de lado a viagem que foi feita e iniciar
uma nova etapa, a de explorar esse novo território. Do ponto de vista
da viagem como um todo, temos determinações de como chegamos
nesse território, mas do ponto de vista do território ele mesmo, não
sabemos nada a respeito. Assim, o saber puro é tomado aqui como um
novo início, um novo ponto de partida de investigação da realidade –
um novo imediato, sem, estritamente, ser imediato no mesmo sentido
que o saber da consciência no ponto de partida da Fenomenologia. Esse
é o início da filosofia como ciência ou sabedoria, a realidade conceitual
partindo do ser puro, pois agora se sabe qual é o seu objeto e como é
preciso investigá-lo, mas ainda não sabe nada acerca desse objeto e
de suas determinações mesmas. Essa é, grosso modo, a passagem da
Fenomenologia à Ciência da Lógica.
A Lógica, por sua vez, é a investigação dessa realidade no seu
nível conceitual, mais concreto e complexo do que seu nível fenome-
nológico. Lógica, para Hegel, ganha, portanto, uma nova acepção: não
é meramente a investigação das formas dos juízos, nem de categorias

70
A efetividade como manifestação do absoluto

que estão em nós a priori e que nos possibilitam compreender a reali-


dade a partir delas – permanecendo, segundo Hegel, em um ponto de
vista subjetivo ou meramente da opinião, não avançando de fato ao co-
nhecimento das coisas nelas mesmas. Lógica é a investigação das cate-
gorias da realidade como ela é nela mesma, do ponto de vista filosófico,
conceitual, partindo dela mesma e fazendo suas categorias surgirem
de dentro de outras categorias, ao longo do processo dialético. Não há,
neste sentido, categorias pré-lógicas, como se fosse preciso determinar
as regras de um jogo antes de jogar: não tem como determinar essas
regras antes do jogo, pois o jogo é justamente essa determinação das
suas regras. A lógica é justamente o determinar das categorias da lógi-
ca, pois isso é também o determinar da realidade e não há como ter um
ponto de vista externo à realidade. É neste sentido que as determina-
ções lógicas – e, portanto, as determinações da realidade – são ineren-
tes ao processo, e não transcendentes, como pretendeu Kant na Crítica
da Razão Pura. Determinações lógicas não são categorias do sujeito, as
quais ele precisa para experimentar empiricamente a realidade, mas
são determinações da própria realidade, as quais o sujeito pode conhe-
cer e, por fazer parte da realidade, pode também produzi-las. Assim, a
Ciência da Lógica é um conhecimento que é produzido no processo de
conhecimento das categorias lógicas da realidade.
A realidade começa a ser experimentada filosoficamente, para
Hegel, pela Lógica, a partir da categoria mais imediata que se apresen-
ta, o ser (Sein). Esse ser, como vimos, não é a noção mais comum de ser,
como o ser desta cadeira ou desta mesa – uma noção empírica de ser
– mas uma noção já determinada pelo processo fenomenológico, mas
não ainda pelo lógico. A partir da determinação deste ser, do ser puro,
o processo dialético concretiza as categorias da lógica que surgem a
partir dessa noção de ser, determinando-as e, assim, determinando
cada vez mais a realidade. Essa realidade vem a ser, neste processo,
uma realidade mais profunda, mais complexa, cada vez mais determi-
nada, a saber, a realidade efetiva ou efetividade (Wirklichkeit).
Além de ser o último momento da Lógica Objetiva, primeira par-
te da Ciência da Lógica, é também o último momento do segundo livro
dessa parte, a Doutrina da Essência. Assim, a efetividade, além de ser
o resultado do processo objetivo, das determinações lógicas objetivas

71
Marloren Lopes Miranda

da realidade, é também o resultado do processo de determinação es-


sencial, a saber, de um retorno ao seu fundamento e, a partir disso,
de um aparecimento e uma manifestação do que é essencial e funda-
mental na realidade.
A palavra alemã Wirklichkeit significa um estado ou momento
que é experimentado ou vivido verdadeiramente, de fato. Seu adjetivo,
wirklich, traz em si o sentido de algo que é de fato mesmo, verdadei-
ro, sem dúvidas. Não é a toa que a categoria da efetividade faz parte
do momento da determinação essencial da realidade: a essência é o
momento experimentado verdadeiramente; ou seja, a efetividade é o
momento de experimentar a realidade de modo verdadeiro – ou ainda,
de modo mais concreto, porque é o momento no qual são totalizadas
todas as categorias ou determinações anteriores, do ser e da essência
da realidade, suprassumidas neste conceito. A efetividade é uma rea-
lidade, mas uma realidade efetiva, a realidade que de fato (wirklich) é, o
ponto de vista mais essencial da realidade.
A efetividade surge da dissolução do momento do aparecimen-
to (Erscheinung), quando ele se mostra como dois mundos: o mundo
que é nele mesmo (an sich selbst) e o mundo que aparece (erscheint).
O primeiro momento da efetividade é a dissolução desse mostrar-se
como duplo, tomando uma nova perspectiva: uma visão de unidade
desses dois mundos, ou seja, um como o aparecer do outro. O mundo
em si mesmo é o interior do mundo que aparece; esse, por sua vez, é
o exterior do mundo em si mesmo. Ambos são um só, um é o lado da
superfície, outro é o lado do substrato. Essa perspectiva de totalização,
do aparecimento daquilo que é, é a determinação do Absoluto.
O Absoluto é determinado através da reflexão (Reflexion): ele se
opõe a algo aparente, a algo que aparece como externo a ele e, com
isso, determina-se a si mesmo. Ele, sendo o Absoluto, uma unidade
de todos os momentos anteriores, opõe-se ao vazio, a um mero apare-
cer. Primeiramente, ele é uma identidade simples; depois ele se opõe
à negatividade, ao negativo como negativo, ou ainda, podemos dizer,
à negação de si mesmo. Uma vez que esse negativo é algo externo (ao
menos, aparentemente), e nessa relação com algo externo ele determi-
na esse vazio com as determinações que o Absoluto já contém, ele mes-
mo se externa (äußern), (pois, no movimento de determinar o externo

72
A efetividade como manifestação do absoluto

que é nulo, ele sai de si mesmo e se torna exterior também); então ele
retorna a si mesmo, exterioriza-se (entäußern), dissolvendo essa oposi-
ção. Nesse retorno, ele não apenas se mostra para algo externo, mas,
como o externo era uma aparência, isto é, ele é aparentemente um ex-
terno, e isso é dissolvido, o Absoluto manifesta-se, em última instância,
para si mesmo. O Absoluto é o movimento de se expor a si mesmo, de
se manifestar, como externalização de si mesmo, não em oposição a
alguma outra coisa nem como apenas movimento interno ou interna-
lização, mas como um mostrar-se. O Absoluto é, agora, efetividade – a
segunda determinação dentro da categoria da efetividade, que ainda
terá novas determinações, como possibilidade, acidentalidade, contin-
gência, necessidade, as quais não temos tempo de desenvolver aqui.
No entanto, é preciso ressaltar que essas são também determinações
do Absoluto, uma vez que, a partir de agora, não há mais externo, já
que isso acaba de ser suprassumido no próprio Absoluto: há apenas
o determinar do próprio Absoluto, que é efetivamente real, e o qual
podemos experimentar.
É importante ressaltar uma última determinação da efetividade:
a noção de substância e suas relações com os acidentes. Uma vez que o
Absoluto é a efetividade, que ele suprassume em si todas as categorias
anteriores e também a exterioridade e que, por isso, é a totalidade, o
Absoluto é também, segundo Hegel, substância – ou ainda, é a subs-
tância essencial da realidade. A substância, portanto, é a totalidade,
pois também é suprassunção das categorias anteriores em si mesma.
No movimento de determinação de si mesma, o movimento de Refle-
xão, ela, o todo, opõe-se ao nulo, o aqui aparentemente externo, deter-
minando isso como acidentalidade. A substância determina o acidente
e, nesse sentido, é sua causa; o acidente é, por sua vez, efeito (Wirkung)
da substância, porque recebe as determinações da essência e passa a
ser parte dessa substância, pois são uma unidade mais fundamental,
que suprassume a aparente oposição. Uma vez que a substância su-
prassume a oposição entre ela e o acidente e passa a ser com ele uma
unidade, o acidente também passa a ser causa da substância, pois tam-
bém a determina (como unidade, por exemplo). A causa contém e está
contida no efeito; o efeito contém e está contido na causa. Essa relação
de causalidade recíproca é a relação de interação (Wechselwirkung), a

73
Marloren Lopes Miranda

relação mais essencial da substância e de seus acidentes, ou ainda, do


Absoluto consigo mesmo – ou seja, a relação mais concreta e verdadei-
ra que se pode experimentar na realidade efetiva; pois é a perspectiva
de totalização objetiva mais completa e, uma vez que “o verdadeiro é o
todo” (HEGEL, FE, §5), a perspectiva verdadeira.
O Absoluto, para Hegel, é, portanto, o momento mais imediato
da efetividade, uma primeira perspectiva de totalização do que apa-
rece e do que é, pois ambos são o mesmo, mas também um constante
determinar-se ao longo de toda a efetividade como momento lógico,
constituindo a própria realidade, em sua instância mais essencial, por
conseguinte, a instância objetiva verdadeira e concreta. Assim, o que
aparece na realidade efetiva é o Absoluto: a multiplicidade de coi-
sas e de conceitos que aparece como um conceito só, uma unidade
de diferenças, que cada vez mais se determina. O Absoluto é, então,
realidade; não no sentido de ter uma mera existência empírica, não
no sentido de poder ser meramente submetido às categorias a priori
do entendimento, como uma perspectiva kantiana apresentaria a no-
ção de realidade, mas no sentido de ter uma existência conceitual, ou
seja, não meramente imediata, para a qual é necessário que haja uma
construção de categorias lógicas que deem conta dessa existência e
da possibilidade da experiência dessa existência, pois essa realida-
de é efetiva. A possiblidade da experiência desse tipo de existência
(Existenz), ou ainda, desse nível de realidade (da realidade efetiva ou
efetividade – de Wirklichkeit), portanto, não depende de categorias
que estejam apenas em nós, a priori, mas de categorias que estejam na
realidade ela mesma e que por nós sejam produzidas e determinadas,
pois nós somos parte dessa realidade, e essa efetividade é um tipo de
experiência, como vimos anteriormente. O Absoluto se dá a conhecer
no processo lógico, que é uma determinação da realidade, aqui no seu
nível mais profundo, essencial; o Absoluto se manifesta (manifestirt
sich) na realidade: não na realidade empírica, imediata, mas na reali-
dade efetiva, através das determinações que fazemos emergir dessa
realidade. Assim como era preciso um longo caminho fenomenoló-
gico para chegar ao saber filosófico, também é preciso um longo ca-
minho lógico para chegar ao conhecimento do Absoluto, a esse nível
de experiência da realidade: de experimentar (e, portanto, de ter sa-

74
A efetividade como manifestação do absoluto

bedoria filosófica, por assim dizer) do Absoluto como substância ou


como essência da realidade.

Bibliografia

HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica. São Paulo, Barcarolla, 2011.


____________. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2008.
____________. Wissenschaft der Logik. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag,
1994. Volumes 5 e 6.

75
O significado e o conteúdo da música
na estética de Hegel

Adriano Kurle
PUC/RS

1. Significado e a arte em Hegel

Queremos investigar o significado da música na estética de Hegel.


Para tanto, podemos iniciar esclarecendo que sentido a palavra “signifi-
cado” pode tomar aqui. Isto envolve também a abordagem do conteúdo,
e a contextualização destes dois conceitos depende, por sua vez, da com-
preensão do papel que cumprem na concepção de pensamento e dentro
do sistema hegeliano. Por final, a arte também deve ser compreendida
a partir do papel que cumpre na manifestação do espírito (Geist) e da
liberdade humana no interior do sistema, o que é, ao mesmo tempo,
manifestação concreta da racionalidade no real (síntese esta que com-
preende-se como o efetivo ou, no termo original, Wirklichkeit). A música
tem seu significado e conteúdo determinados no interior da significação
artística, sendo analisada por Hegel como uma forma de arte individual,
que pertence à forma particular de arte romântica.
Para a devida contextualização da arte, devemos iniciar com os
conceitos de significado e de conteúdo na filosofia de Hegel. Temos de
considerar, inicialmente, que o que se entende por “significado” aqui
não se identifica com o sentido meramente semântico, a qual boa parte
da filosofia contemporânea o prende. Significado não é um caminho
linguístico que aponta para uma realidade fora dele mesmo. Seguin-

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 76-91, 2015.
O significado e o conteúdo da música na estética de Hegel

do a mesma linha, o conteúdo não deve ser entendido como algo que
permanece separado em duas realidades ontológicas separadas, com
o conteúdo cognitivo ou mental de um lado, e o conteúdo material de
outro – como se de um lado houvesse um conteúdo para o sujeito e
outro do objeto mesmo. Muito embora Hegel se utilize por vezes desta
abordagem que relaciona dois polos distintos através de uma conexão,
ele o faz para buscar relacioná-las não apenas através de um elo ou
uma corda (que neste caso seria o sentido ou o significado), mas para
levá-los ao caminho de reconciliação através do embate direto entre
suas diferenças. Isto implica que significado e conteúdo não são duas
coisas separadas, mas duas faces de uma mesma coisa – ou, podemos
dizer, duas concepções de uma mesma relação. Na estética, Hegel usa
estes termos de maneira intercambiável.
A imbricação entre conteúdo e significado é abordada como um
processo do pensamento, onde as categorias lógicas (que tem também
valor ontológico) de universal, particular e singular se relacionam na
constituição da efetividade1. O conceito tem o caráter da universali-
dade, e é a marca do pensamento. Por outro lado, o real tem a marca
da particularidade e da singularidade. Estes dois termos distinguem-
-se epistemologicamente e ontologicamente, pois o particular é repre-
sentado pelos exemplares concretos de um conceito, enquanto a sin-
gularidade, embora perpassada pelo conceito, é único. Esta diferença
categorial não é apenas uma diferença epistemológica, como uma clas-
sificação que o sujeito faz sobre os objetos a fim de organizá-los na
mente, mas também uma categorização ontológica.
Na concepção de Hegel, uma vez que a racionalidade só é par-
te do real quando se efetiva nele, há necessidade de particularização
e singularização não apenas em uma mente apartada do mundo, mas
estes objetos mesmos são atravessados pelo conceito, são constituídos
por ela – podemos dizer, assim, que eles são conceitos não apenas para
outro (como um sujeito fora dele que o pensa como objeto), mas em si.
1
Devemos considerar a diferença entre Wirklichkeit e Realität. Hegel faz uma diferenciação
conceitual entre os dois termos, onde o segundo se refere à realidade enquanto materiali-
dade ainda não perpassada pelo conceito ou, dito de outra forma, momento onde ainda há
cisão entre natureza e espírito. A superação desta cisão dá-se quando o espírito se reconhece
na própria natureza, fazendo o processo de materialização do conceito e conceitualização da
matéria. Aí que encontramos a realidade propriamente racional, a Wirklichkeit, que traduzi-
mos por efetividade. É o conceito feito e satisfeito consigo mesmo.

77
Adriano Kurle

A atividade racional reflexiva do homem faz com que ele se relacione


com suas manifestações e assim tome consciência de si, e através disto a
efetividade toma significado racional não apenas em si e para outro, mas
também para si. Este momento reflexivo Hegel chama em si e para si.
É através destas categorias lógicas que a ideia do Belo, enquan-
to elemento universal, expressa-se artisticamente no individual, e o
movimento dialético entre universal e singular geram momentos de
reflexividade para o espírito através da arte, que permitem alcançar a
plenitude da ideia do Belo em suas manifestações diversas, e o desen-
volvimento de formas de arte com diferentes relações de forma e con-
teúdo na história, assim como também seu desdobramento em dife-
rentes formas individuais de arte, de acordo com seu material sensível.
Sobre a ideia do Belo (que não é a mesma coisa que a ideia em
geral, expressa na Lógica):
Decerto, a ideia como tal é a verdade em si, a verdade em sua
generalidade ainda não objetiva, ao passo que a ideia do belo ar-
tístico possui uma função mais precisa: a de ser uma realidade
individual do mesmo modo que as manifestações individuais da
realidade se destinam a deixar transparecer a ideia de que são as
realizações. Isso significa que deve haver uma adequação com-
pleta entre a ideia e a forma enquanto realidade concreta. Assim
entendida, a ideia realizada em conformidade com o seu conceito,
constitui o ideal2.

A arte, para Hegel, encontra-se em uma situação de expressão da


verdade. Diferentemente das concepções dualistas, para Hegel a verda-
de não é uma adequação da mente ou do discurso à alguma realidade
fora, mas a concretização mesma da racionalidade do espírito na rea-
2
HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro Ri-
beiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 95. Grifo do autor. Para a tradução ao português da
Estética de Hegel utilizamos a edição citada (com o respectivo segundo volume), enquanto
que para a tradução alemã utilizamos as obras completas da Suhrkamp (cf. “Bibliografia”).
Há, porém, uma diferença entre a versão utilizada para a tradução da Martins Fontes e a edi-
ção da Suhrkamp. A tradução portuguesa, utilizada pela Martins Fontes, utiliza-se da edição
crítica (parcial) de Georg Lasson, e assim tem a introdução e os dois primeiros capítulos
diferentes da edição da Suhrkamp (sobre este ponto, cf. WERLE, M. A. A Poesia na Estética de
Hegel. São Paulo: Associação Editorial Humanitas/ FAPESP, 2007, pp. 23 – 34; ainda ESPINA,
Y. La Razón Musical em Hegel. Navarra: Ediciones Universidad de Navarra, 1996, pp. 11 – 24).
Utilizamos referência tanto à edição alemã quanto brasileira quando dos trechos em comum.
Nos outros casos, apenas a brasileira ou apenas a alemã.

78
O significado e o conteúdo da música na estética de Hegel

lidade. Deste modo, a verdade não pode ser tomada unilateralmente:


ela não é apenas o “acerto” ou “erro” da mente ou do discurso em
reproduzir um outro (neste caso, a realidade externa ou o objeto), nem
uma produção deste outro através de categorias mentais, mas a ver-
dade é a efetividade enquanto a realidade conceitualizada e, ao mesmo
tempo, o conceito realizado.
O conceito se manifesta no real lhe moldando a forma e lhe sig-
nificando. E o homem tanto expressa sua relação conceitual com o real
quanto consigo mesmo, efetivando assim a reflexão do espírito. Esta
manifestação está ligada àquilo que o constitui, e isso está ligado às
suas relações sociais e às significações que o grupo social dá ao mundo
e às expressões artísticas, uma vez que o sentido da arte não se encon-
tra apenas na intenção do artista, mas também na recepção social da
obra. O significado da arte está ligado à visão existencial de um povo3.
A arte expressa a liberdade humana, pois é a feitura do mundo de
acordo com a ação que busca expressar seu conceito.

2. As formas de arte particular

Através da relação entre consciências de si (ou seja, da relação


humana) é possível superar a limitação do individual rumo à relação
intersubjetiva e social. Este caminho envolve a negação da consciência
de si como absoluto (totalidade), da sua independência da natureza e
do outro através da relação com o medo da morte e da submissão ao
mais forte. Apenas aí a consciência de si reconhece o seu pertencimen-
to e dependência do mundo natural e da vida, tornando-se a oposição
entre consciência de si e mundo mediada pela outra consciência de si
e, através da negação do desejo, que desencadeia o trabalho4.
A relação artística encontra-se como progresso do espírito obje-
tivo (onde o homem desenvolve suas relações sociais e morais) para o

3
Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 14: Vorlesung über die Ästhetik II. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, p. 232/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino
e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 657.

4
Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 3: Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1989, pp. 137 – 155./ HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses e Karl-
-Heinz Efken. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, pp. 135 – 151; HEGEL, G. W. F. Werke 13: Vorlesung
über die Ästhetik I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, p. 50 – 52; HEGEL, G. W. F. Curso
de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins
Fontes, 1996, p. 35 – 37.

79
Adriano Kurle

espírito absoluto5. Porém, é de se compreender que não ocorre primei-


ro a relação social e, apenas depois de certo ponto, a arte. A arte trans-
passa os níveis de relações sociais e os representa. Ela está relacionada
com (e tem por conteúdo) a religião, e torna-se a atividade criativa em
que o homem busca compreender sua relação com o espírito, compre-
ender a si mesmo e moldar as próprias coisas para além da necessida-
de do desejo. Assim, a arte tem como pressuposto a capacidade do tra-
balho (onde o homem nega seu desejo de consumo imediato do objeto,
permitindo o trabalho sobre ele), mas não se limita a ele: a arte envolve
uma relação de representação, projeção, e a negação do consumo, por-
tanto, é uma relação que Hegel chama de teórica6.
A arte é, assim, uma manifestação do espírito no mundo natural,
concreto, através da consciência humana. Esta manifestação permite
ao homem determinar a ideia ainda indeterminada, dando-lhe forma
concreta e individual. Ao mesmo tempo que o homem manifesta sua
consciência, ele também tem relação receptiva com esta manifesta-
ção. Através desta relação entre exteriorização e recepção o homem
transforma-se e transforma o mundo. Através da expressão ele tor-
na manifesto aquilo que estava oculto e indeterminado, e através da
relação com sua própria obra transforma-se e toma consciência mais
determinada do conteúdo espiritual. A manifestação artística e seu de-
senvolvimento é a manifestação da autonomia e liberdade do espírito,
e a necessidade de exteriorizar-se no material concreto é o seu fazer-se
substância. Neste sentido, a arte cumpre a função de tornar a substân-
cia, sujeito, e vice-versa.
É com a distinção entre as diferentes maneiras de relacionar forma
e conteúdo que Hegel desenvolve o que ele chama de “formas de arte
particular”, que são modos de expressão históricos da consciência
artística. Esta depende do modo de concepção e manifestação do
conteúdo (o Absoluto) e a maneira como este se expressa ou se concebe
na realidade material e natural (a forma). Hegel distingue entre três tipos
de artes particulares: a arte simbólica, a arte clássica e a arte romântica.


5
Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 10: Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften III. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1986.
6
Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 14: Vorlesung über die Ästhetik II. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, p. 255-256/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O sistema das artes. Tradução de Orlando
Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 14.

80
O significado e o conteúdo da música na estética de Hegel

Segundo Hegel:

Resumiremos estas breves considerações dizendo, pois, que a


arte simbólica procura realizar a união entre a significação in-
terna e a forma exterior, que a arte clássica realizou essa união
na representação da individualidade substancial que se dirige à
nossa sensibilidade, e que a arte romântica, espiritual por exce-
lência, a ultrapassou7.

O conteúdo está sempre ligado ao espírito e à ideia. Inicialmente,


o conteúdo é indeterminado e abstrato. Este conteúdo, na estética de He-
gel, encontra-se geralmente ligado à alguma aspiração religiosa. Por isto
estas formas de manifestações históricas da arte estão relacionadas tam-
bém com a busca de manifestação e conscientização deste conteúdo ab-
soluto. Concretizar-se em forma sensível é justamente o caminho da arte. Deste
modo, a relação dialética entre manifestação e recepção reflexiva desta
manifestação acaba as transformando reciprocamente: de um lado, o es-
pírito toma conhecimento de si mesmo através do seu estranhamento
com a natureza; de outro, a própria natureza se adapta, enquanto forma,
ao conteúdo espiritual. O objetivo do espírito é encontrar uma concilia-
ção possível com as formas naturais, onde ele possa se reconhecer.
Ora, o espírito é aqui a racionalidade no seu sentido mais am-
plo, e encontra-se individualizado no ser humano. Portanto, é através
da busca do ser humano, já como ser social e participante do espírito
objetivo, que a realização artística ocorre. De início, a arte simbólica
manifesta a tentativa de expressar um conteúdo universal e infinito na
concretude e finitude da natureza, através da forma individual. Mas
este conteúdo nunca permite-se atingir uma forma determinada que
permita mostrar tudo que o conteúdo é. Há sempre, na forma de arte
simbólica, uma diferença entre aquilo que o conteúdo deveria expres-
sar e a sua forma de concretização. Na tentativa de expressar o con-
teúdo espiritual, este é posto em figuras que lhe são insuficientes, em
representações da natureza como trovões, vento, entre outras forças da
natureza, animais e representações antropomorfizadas de animais. Ou
ainda, signos que estão ali como representando algo que não consegue


7
HEGEL, G. W. F. Werke 13: Vorlesung über die Ästhetik I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989,
p. 392/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Ál-
varo Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 340.

81
Adriano Kurle

se expressar plenamente na forma material (como seria o caso dos hie-


róglifos). É nestes casos que o espírito não encontra a forma adequada
de se manifestar, porque sua individualização é sempre insuficiente8.
O caminho de superação desta insuficiência se dá quando há
uma identificação entre o conteúdo e a forma, pois “a verdadeira sig-
nificação só se encontrará, portanto, quando o conteúdo espiritual de
um objeto já nele mesmo está implicado e através dele é perceptível
quando o espiritual se manifesta em toda sua realidade e o corporal
é apenas uma explicação adequada do espiritual e da interioridade9.”
É na figura humana que a racionalidade se manifesta enquanto indi-
vidualidade, sendo o corpo e a figura concreta do homem a perfeita
adequação entre conteúdo e forma. Quando o homem, portanto, torna-
-se a figura central da manifestação artística chegamos ao ideal da arte
clássica. Através do corpo humano e das narrativas das ações huma-
nas, através da transformação dos deuses em figuras humanas, é que é
superada a inadequação entre conteúdo e forma10.
Não deixando de ser uma manifestação da liberdade e, ao mes-
mo tempo, de dominação da natureza, a expressão artística passa para
sua última forma, onde o homem reconhece a sua própria interiori-
dade e se distingue da natureza, reconhecendo-se como livre diante
dela: “O espírito tem de começar por se retirar da natureza e regressar
a si mesmo, por se elevar acima dela e ultrapassá-la, antes até de nela
poder se orientar como num elemento sem resistência e dela fazer a
expressão positiva da sua própria liberdade11.”
Assim passamos da arte clássica para a arte romântica, onde o
espírito uma vez mais cinde-se do mundo material, porém desta vez
ultrapassando-o. Isto porque através do reencontro reflexivo com a

8
Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 13: Vorlesung über die Ästhetik I. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1989, pp. 393 – 546/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando
Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 341 – 472.

9
HEGEL, G. W. F. Werke 13: Vorlesung über die Ästhetik I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989,
p. 546/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Ál-
varo Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 472.
10
Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 14: Vorlesung über die Ästhetik II. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, pp. 19 – 20/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vi-
torino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 479.
11
HEGEL, G. W. F. Werke 14: Vorlesung über die Ästhetik II. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, p. 33/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e
Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 479.

82
O significado e o conteúdo da música na estética de Hegel

sua interioridade, agora o espírito – desta vez já corporificado no ho-


mem – reconhece sua infinitude e independência da natureza. De início
permanece separado da natureza e a considera apenas negativamente,
para depois superar esta mera negatividade para buscar afirmar sua
independência e liberdade neste mundo material, de diversas formas.
Nas palavras de Hegel “O verdadeiro conteúdo da arte romântica é
constituído pela intrisencidade absoluta, e a forma correspondente pela
subjetividade espiritual consciente da sua autonomia e da sua liberda-
de12.” Enquanto a arte clássica representa a fusão do ideal com o mundo
material através da manifestação humana, na arte romântica expressa-
-se a conciliação da alma consigo mesma, da subjetividade interna.

Levada a este grau, a interiorização não é mais, por assim dizer, do


que o exterior despojado da sua exterioridade objetiva, um exte-
rior invisível e imperceptível, uma sonoridade que emana de uma
origem misteriosa, um voo sobre as águas, uma música de ondas
que se expandem sobre um mundo que, pelos seus fenômenos he-
terogêneos, apenas constitui um fraco reflexo daquele ser-em-si
da alma. Para resumir esta relação entre o conteúdo e a forma na
arte romântica, diremos que isso onde o tom fundamental da arte
romântica aparece no seu aspecto mais autêntico é de natureza
musical e, devido ao conteúdo preciso da representação, lírica; isso
explica-se porque aí a universalidade é levada ao grau mais eleva-
do e porque a alma, para se exprimir, não cessa de rebuscar nas
suas mais íntimas profundezas. Na verdade, o abismo constitui a
característica elementar, essencial da arte romântica13.

3. A música como arte individual

É neste ponto que devemos inserir a questão da música. Em


primeiro lugar, a música é considerada dentro das formas de arte
individuais, isto é, nas diferentes formas sensíveis e nos diferentes
materiais que a expressão artística se utiliza. Hegel compreende que
apenas a visão e a audição são sentidos passíveis de expressão artística,

12
HEGEL, G. W. F. Werke 14: Vorlesung über die Ästhetik II. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, p. 129/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino
e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 571.

13
HEGEL, G. W. F. Werke 14: Vorlesung über die Ästhetik II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990,
pp. 140 – 141/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino
e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 580 – 581.

83
Adriano Kurle

considerando uma primazia racional destes sentidos sobre os outros,


que são não-racionalizáveis. Deste modo, apenas a visão e a audição
serão consideradas, e estas consideradas como racionalizáveis porque
passíveis de representação sensível organizada: permitem associações
e guardam a lembrança (são sentidos teóricos).
As relações puramente teóricas dependem dos órgãos dos sen-
tidos, da visão e da audição; tudo quanto vemos e ouvimos nós deixa-
mos tal e qual, quer dizer, intacto. Pelo contrário, os órgãos do olfato
e do paladar já fazem parte das relações práticas. Só podemos, efe-
tivamente, sentir o cheiro daquilo que a si mesmo se consome, e só
podemos saborear destruindo14.
Há uma passagem progressiva também de uma arte individual
para outra: primeiro, as artes visuais que estão mais ligadas ao mundo
físico, ao peso da matéria: a arquitetura e a escultura. Estas funcionam
principalmente enquanto arte simbólica (no caso da arquitetura) e clás-
sica (no caso tanto da arquitetura quanto da escultura). Já a pintura é
a arte visual que passa já pelo processo de interiorização da imagem,
e pertence à forma de arte romântica. Esta já se dá com maior liber-
dade de expressão subjetiva e em apenas duas dimensões. Quando a
negação do espaço ocorre, e o movimento de vibração passa unidi-
mensionalmente a representar as relações deste movimento de corpos
vibrando, e o relacionamos com o fenômeno do som, chegamos à mú-
sica. A música também é considerada uma arte romântica, e está presa
à temporalidade e à interioridade subjetiva15.
A sonoridade da música é sem referência, sem objeto, e mani-
festa o eu puro, vazio, a pura temporalidade. Neste ponto, a pura
subjetividade interior e o tempo representam a forma da música. Seu
conteúdo, por outro lado, são os sentimentos. Enquanto a alma tem
a forma da temporalidade sonora, a música a afeta diretamente, sem
intermediários, e esta vibração da alma tem como conteúdo os senti-
mentos. Na música:


14
HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro
Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 167.

15
HEGEL, G. W. F. Werke 15: Vorlesung über die Ästhetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, pp. 131 – 148/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O sistema das artes. Tradução de Orlan-
do Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp. 287 – 300.

84
O significado e o conteúdo da música na estética de Hegel

[...] a região das suas composições propriamente dita é constituí-


da pela interioridade formal, pela sonoridade pura, e o seu apro-
fundamento do conteúdo traduz-se não por uma exteriorização,
mas por um retorno à liberdade interior, por um recolhimento em
si mesmo e em certos ramos da música, pela certeza de que como
artista é independente do conteúdo. Se podemos considerar a
contemplação do belo em geral como aquilo que tem por efeito
uma certa libertação da alma, desligando-nos das necessidades
e fraquezas da existência finita; se é verdade que a arte possui
o poder de suavizar por uma figuração teórica os mais cruéis e
trágicos destinos, transformando a dor em prazer, é preciso re-
conhecer que a música atinge esta libertação no mais alto grau16.

Ainda:

Mesmo fora da arte o som, como interjeição, como grito de dor,


suspiro ou riso, constitui a expressão mais viva e imediata dos es-
tados da alma e dos sentimentos, aquilo que eu chamaria de o oh!
e o ah! da alma. Estamos em presença de uma objetivação da alma
por e para si mesma, de uma expressão que ocupa o centro en-
tre a concentração inconsciente e o retorno a si, para pensamentos
interiores definidos: trata-se, enfim, de uma relação sem alcance
prático, de um caráter puramente teórico semelhante ao canto das
aves que, ao cantar, encontram alegria na sua própria produção17.

O eu se confunde com o tempo, e através da música o encontro


de forma e conteúdo se dá na interioridade:
Em termos mais precisos, podemos dizer que o próprio eu real
faz parte do tempo com o qual se confunde, se abstrairmos do
conteúdo concreto da consciência; e isto porque na realidade não
é mais do que tal movimento vazio que consiste em conservan-
do-se unicamente a si próprio, em suma, como o eu. O eu existe
no tempo e o tempo é o modo de ser do sujeito. Ora, dado que é o
tempo, e não a espacialidade, o elemento essencial ao qual o som,
em virtude deste princípio penetra no eu, aprendendo-o na sua
existência simples, e o põe em movimento pela sucessão rítmica

16
HEGEL, G. W. F. Werke 15: Vorlesung über die Ästhetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, p. 141/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O sistema das artes. Tradução de Orlando
Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 294.

17
HEGEL, G. W. F. Werke 15: Vorlesung über die Ästhetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, p. 150/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O sistema das artes. Tradução de Orlando
Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp. 301 – 302.

85
Adriano Kurle

dos instantes do tempo, enquanto as outras figurações dos sons,


como expressão dos sentimentos, completam o efeito produzido
pela simples sucessão rítmica no tempo, levando a emoção ao
seu mais alto grau e destruindo as últimas resistências que o in-
divíduo podia ainda opor em se deixar seduzir. Tal seria a razão
essencial do poder elementar exercido pela música18.

Tanto a música quanto a poesia têm como material o som. Mas


em diferença da música, que não tem relação nenhuma com o exte-
rior e não designa objetos ou imagens, a poesia é capaz de sintetizar
a visão e a audição, ainda que tendo como material o som. Na poesia,
é possível designar objetos, construir contextos e, assim, fazer refe-
rência ao mundo exterior ao às formas deste, através da representa-
ção. A música não gera nenhuma objetividade autossuficiente, e sua
forma e seu conteúdo praticamente se identificam, uma vez que seu
objeto torna-se o sentimento e a própria interioridade em movimento
sonoro19. É por isto que Hegel considera que a música é superada pela
poesia, pois a música, enquanto tem como material a sonoridade pura,
é sem conceito, e serve para expressar apenas os movimentos da alma,
como sentimentos, emoções e paixões. Já a poesia utiliza o som em
palavras, que são capazes de representar o mundo objetivo e permite,
assim, a liberdade para que o espírito recrie, através do pensamento,
seu próprio mundo objetivo com a maior liberdade possível20.

4. Conclusão

A estética de Hegel parece anacrônica se lida criticamente atra-


vés da arte moderna. O que podemos pensar sobre arte através da
concepção hegeliana depois das artes do século XX? Em que lugar se
encaixariam os modelos musicais atonais, pós-atonais e eletroacústico?


18
HEGEL, G. W. F. Werke 15: Vorlesung über die Ästhetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, pp. 156 – 157/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O sistema das artes. Tradução de Orlan-
do Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 307.
19
Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 15: Vorlesung über die Ästhetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, p. 153/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O sistema das artes. Tradução de Orlando Vi-
torino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 304.
20
HEGEL, G. W. F. Werke 15: Vorlesung über die Ästhetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1990, pp. 226 – 227/ HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O sistema das artes. Tradução de Orlan-
do Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 362 – 363.

86
O significado e o conteúdo da música na estética de Hegel

Será que a música, em específico, e a arte, em geral, estagnou depois do


que Hegel chama de “forma de arte romântica”? Será que as artes mo-
dernas podem ser entendidas em seu sentido sócio-histórico e racional
através das formas de arte hegelianas? Será que elas se encaixam no
modelo simbólico, clássico ou romântico?
Podemos buscar encaixar as artes modernas na estética hegeliana
ou como novas configurações de formas artísticas já existentes, ou ainda
como figuras de crise destas formas mesmas. Outra alternativa é criti-
carmos a concepção de Hegel, o que pode ser feito em vários caminhos.
O nosso foco de crítica deve partir da concepção de espírito e
deste enquanto realização progressiva em níveis hierárquicos e com
uma realização final21. Através desta concepção cumulativa, hierárqui-
ca e progressista, Hegel classifica as formas de realização e manifesta-
ção racional pelo seu papel na realização do objetivo final. As formas já
superadas permanecem existindo, e nada nos diz que Hegel não aceite
suas transformações e novas configurações. O que podemos dizer atra-
vés da filosofia de Hegel sobre estas formas superadas é que elas não
podem mais mudar o sentido e o conteúdo da realização do espírito,
e não tem nada mais a contribuir para ele. Seus conteúdos, de certa
maneira, já foram determinados, e suas possibilidades de manifestação
giram em torno destes conteúdos. Não apenas seus conteúdos, mas as
maneiras em que se relacionam conteúdo e forma. Desta maneira, as
figuras do espírito podem aparecer em novas configurações, mas que
representariam estágios já superados, repetições de figuras já assimila-
das (visto que as três formas de arte particular esgotam as possibilida-
des desta relação).
A hierarquização segue uma lógica de acumulação onde as figu-
ras não se formam necessariamente em ordem cronológica, mas onde
sua realização lógica e ontológica depende da realização anterior de
pressupostos conceituais e fenomenológicos. Podemos distinguir a re-
alização fenomenológica do conceito (ou seja, a concretização da lógi-
ca) das possibilidades fenomenológicas diversas que podem represen-
tar de outras maneiras o mesmo conteúdo conceitual ou lógico22. Desta
21 Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 10: Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften III. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1986, pp. 366 – 395.
22
Cf. ESPINA, Y. La Razón Musical em Hegel. Navarra: Ediciones Universidad de Navarra,
1996, pp. 29 – 36.

87
Adriano Kurle

maneira, as formas de arte particulares são realizações fenomenológi-


cas do conteúdo lógico. Porém, são distinguidas pela maneira em que
a forma e o conteúdo se relacionam.
Isto implica que cada forma de arte particular tem sua determi-
nação nesta relação entre forma e conteúdo, tendo algumas relações
papel central (como o caso da síntese forma e conteúdo na figura sen-
sível do humano). Apesar disto, cada forma de arte particular contém
em si figuras distintas e um processo de desenvolvimento – do seu
surgimento, desenvolvimento, decadência e fim. No interior de cada
forma de arte particular cabem diferentes figuras, enquanto que o es-
sencial destas formas de arte é a consciência de si do espírito que elas
expressam, distinguidas através da relação entre conteúdo e forma.
Mas é possível que, depois do espírito alcançar a consciência de si no
nível mais alto (na arte romântica ou, ainda, em formas superiores à
arte, como a religião e a filosofia) ele possa de fato se manifestar nestas
formas “inferiores”? Ainda que elementos destas formas possam ser
utilizados na arte “pós-romântica”, é possível que eles representem a
forma do qual são originários?
O que também está implicado neste processo de desenvolvimen-
to é que existem condições para a realização de certas figuras ou formas
de arte particular. A arte simbólica deve ser manifesta fenomenologi-
camente para que a arte clássica possa aparecer, e o mesmo se pode
dizer da relação da arte clássica com a arte romântica. O processo de
superação (Aufhebung) é necessário para o desenvolvimento conceitual.
O que significa que a arte clássica não seria o que é se não contivesse
já o desenvolvimento e a negação da forma de arte anterior. Podemos
pensar se não seria possível um salto direto já para as formas poste-
riores. Mas isto não teria o mesmo significado e não representaria a
mesma efetivação. Assim, maneiras de manifestação da racionalidade
podem conter em si elementos que ainda não foram assimilados pela
consciência. E o que Hegel considera aqui não é apenas o que está con-
tido objetivamente, mas o que, na relação entre a consciência do espí-
rito e sua manifestação pode ser reconhecido enquanto tal, ainda que
não necessariamente expresso enquanto consciência discursiva.
Da mesma maneira, o desenvolvimento do espírito objetivo é
pressuposto para o espírito absoluto, onde a arte se encontra. Isto sig-

88
O significado e o conteúdo da música na estética de Hegel

nifica que a arte apenas adquire sentido e significado através da efe-


tivação da relação social. Porém, isto não significa que as figuras do
espírito objetivo devam estar todas realizadas para que as artes pos-
sam se desenvolver – o que implicaria que arte só poderia nascer no
século XIX. Antes, este desenvolvimento artístico, religioso e filosófico
pode ocorrer concomitantemente com o desenvolvimento das figuras
do espírito objetivo.
Na Estética, Hegel aborda a arte como contendo, desde o início,
um pressuposto universal que é o conteúdo religioso. A arte aparece,
assim, atrelada às concepções de existência consideradas enquanto re-
ligião. A própria religião teria se desenvolvido através das manifes-
tações artísticas. Por outro lado, o espírito não significa apenas a re-
lação da consciência finita e subjetiva do homem com este conteúdo
universal e conceitual, mas também o desenvolvimento da consciência
trans-subjetiva, ou seja, do desenvolvimento objetivo das concepções
existenciais, religiosas, artísticas, filosóficas, políticas, éticas e das ma-
nifestações práticas e fenomenológicas nas relações entre consciências
finitas e na sociedade. O espírito representaria uma consciência supra-
-humana objetiva e independente das consciências subjetivas e finitas,
uma vez que estes indivíduos portadores desta consciência subjetiva
são não apenas portadores de concepções e opiniões pessoais, mas sua
própria consciência é determinada e se desenvolve através dos senti-
dos objetivamente presentes no espírito objetivo e no espírito absoluto.
Isto implica que não é necessário que a consciência subjetiva re-
conheça o conteúdo do espírito para que ele esteja efetivado. A consci-
ência subjetiva está, assim, aquém do espírito. Esta concepção de Hegel
abre-nos a possibilidade de tratar de condições sócio-históricas en-
quanto conteúdo objetivo de uma cultura humana determinada. Desta
forma, a arte cumpriria um papel tanto de manifestar transformações
sociais quanto de condicionar novas figuras e formas de consciência
para a transformação destas relações culturais e sociais objetivas. Mas
o espírito hegeliano não significa apenas o desenvolvimento objetivo
das relações sócio-históricas, mas também contém a pressuposição de
todo conteúdo lógico e teológico que está para além das relações sócio-
-históricas e se desenvolvem através delas. Portanto, Hegel não é um
relativista com relação ao desenvolvimento cultural.

89
Adriano Kurle

Para que possamos conceber os sentidos de transformação da


arte moderna, precisamos de uma perspectiva que enfraqueça a tele-
ologia do espírito hegeliano e torne a arte independente do conteúdo
religioso (ainda que possa ter seu sentido atrelado à condições sócio-
-históricas objetivas e perspectivas existenciais).

Referências

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º 29, 1996, pp. 53 – 69.
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90
O significado e o conteúdo da música na estética de Hegel

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WERLE, M. A. A Poesia na Estética de Hegel. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas/ FAPESP, 2007.

91
O conceito de Erfahrung em Hegel

Carla Vanessa Brito de Oliveira


Universidade Federal da Bahia

O escopo do texto, a saber, abordar o conceito de Erfahrung em


Hegel a partir de uma perspectiva prática no contexto da apropriação
contemporânea desse conceito, aparece aqui em um primeiro esboço
dos seus resultados preliminares de investigação. Desse modo, a pre-
sente comunicação apresenta um tom mais ensaístico que conceitual-
-analítico. Tomamos como referência a produção filosófica do Pragma-
tismo e, em especial, Habermas e sua obra Verdade e Justificação (1999).
Objetivando uma incursão ao processo de experiência tematiza-
do por Hegel através de aportes teóricos que dimensionam a compre-
ensão da experiência em um sentido prático-cognitivo a situando, so-
bretudo, em planos de imanência, recorremos inicialmente a Habermas
quando este autor discorre em Verdade e Justificação (1999) acerca da
destranscendentalização do sujeito cognoscente e considera Hegel o pre-
cursor desse movimento. A destranscendentalização significa o deslo-
camento do sujeito de conhecimento do plano transcendental para o
plano imanente, no tempo histórico e no espaço social, o que Habermas
chama de «corporificar a razão». Segue que, a destranscendentalização
se realiza enquanto crítica de superação ao mentalismo ao passo que
nos revelaria um caráter intersubjetivo do espírito. A experiência seria
estruturada através de «meios», os quais são identificados por Haber-
mas como sendo a linguagem, o trabalho e a interação. Tais mediações

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 92-99, 2015.
O conceito de Erfahrung em Hegel

perfazem a relação entre intersubjetividade e objetividade comprovan-


do a natureza social do conhecimento. Esse resultado de um espírito
estruturalmente interacionista é observado por Habermas na figura da
dialética entre senhor e escravo que, na narrativa hegeliana da formação
do espírito, compõe o processo de experiência, a Erfahrung.
Ademais, a investigação do sentido prático do conceito de Er-
fahrung em Hegel posta na atualidade da produção filosófica, nos situa
no Pragmatismo, no qual também é defendida uma apropriação da
filosofia hegeliana a partir da crítica oferecida por Hegel ao modelo
epistemológico de representação. O professor Paul Redding, da Sidney
University, em seu artigo Hegel and Pragmatism, destaca que a influên-
cia hegeliana já se faz presente nos trabalhos dos próprios fundadores
do Pragmatismo, especialmente Dewey e Peirce. E embora essa influ-
ência seja eclipsada no contexto do aparecimento da filosofia analítica,
ela é recuperada com o chamado “Pragmatismo Analítico” do filósofo
americano Wilfrid Sellars. Por sua vez, Sellars, principalmente atra-
vés da formulação crítica do “mito do dado”, influencia sobremaneira
Richard Rorty e Robert Brandom, estes que também se apropriam da
leitura hegeliana.
Erfahrung, conforme Inwood (1997) traduz o conceito hegeliano
do processo de experiência, itinerário cuja narrativa constitui a obra Fe-
nomenologia do Espírito (1807). Experiência, em Hegel, diz respeito à ex-
periência da consciência, à sua constituição reflexiva de auto­conhecimento
através da interação entre sujeito e objeto na construção do saber. Nesse
sentido o próprio Habermas, em Conhecimento e Interesse (1968), afirma
que «Hegel substitui a tarefa da teoria do conhecimento pela autorrefle-
xão fenomenológica do espírito» (HABERMAS, Conhecimento e Interesse,
p. 28). Desse modo, é realizada uma crítica do conhecimento cujos alvos
são os conceitos normativos da ciência e do Eu. Habermas considera,
pois, que a experiência fenomenológica se movimenta:

no Medium de uma consciência que, por sua vez, distingue re-


flexivamente entre o em-­si do objeto e ela própria, para quem o
objeto se apresenta. A passagem da contemplação ingênua do
objeto como existente em si, para o saber reflexivo do ser­-para-­
isto do em-­si, permite à consciência fazer uma experiência com
ela mesma junto a seu próprio objeto (HABERMAS, Conhecimen-
to e Interesse, p. 36­-37).

93
Carla Vanessa Brito de Oliveira

Desse modo, diferentemente de Kant, em Hegel, a autoconsci-


ência não está dada, não está posta, não se faz como certeza imediata
que contém todas as minhas ideias e representações. Nesse sentido, a
experiência da consciência com ela mesma, a autorreflexão crítica do
conhecimento, não está posta de antemão, mas depende de um proces-
so formativo estabelecido através do objeto que, produzido no curso
da experiência fenomenológica, não deve ser pressuposto. Ademais,
como mostra Habermas, a distinção kantiana entre razão teórica e ra-
zão prática também não se sustenta, pois a consciência crítica se faz na
reflexão do surgir histórico da própria consciência.

No contexto contemporâneo do Pragmatismo, Antje Gimmler


em seu artigo Pragmatic Aspects of Hegel’s Thought (2004), assim como
Paul Redding em Hegel and Pragmatism, identificam na experiência fe-
nomenológica, especialmente na dialética do senhor e do escravo, uma
estrutura prática-pragmática da filosofia de Hegel. Gimmler (2004)
compartilha da opinião que,

[...] vários representantes do neopragmatismo fazem referên-


cia a Hegel porque, no idealismo de Hegel, os temas centrais
do neopragmatismo já podem ser identificados como pré-­
configurados, ou pelo menos podem ser aí atribuídas as suas
origens, a saber: a problematização ou a rejeição de uma teoria re-
presentacional da epistemologia e seus pressupostos epistemológicos
ou ontológicos relacionados [grifos nossos] (GIMMLER, Pragmatic
Aspects of Hegel’s Thought, p. 48).

Posto isso, é necessário compreendermos como a experiência fe-


nomenológica se faz em uma interpretação prática, através de estrutu-
ras conceituais proto-pragmáticas, tendo em vista a problematização da
epistemologia de representação. Para tanto, nos localizamos no debate
da destranscendentalização promovido por Habermas em Verdade e Justi-
ficação (1999), no qual ele retoma o debate epistemológico entre Kant e
Hegel, desenvolvido também em Conhecimento e Interesse. A partir das
preleções de Jena sobre a filosofia do espírito e considerando a Feno-
menologia como a culminância desse processo, Habermas identifica na
dialética senhor e escravo, na «luta pelo reconhecimento», a transição da
consciência para a constituição intersubjetiva da autoconsciência.

94
O conceito de Erfahrung em Hegel

O movimento fenomenológico que a consciência constrói até o


estágio da relação entre as figuras do senhor e escravo compreende a
superação da certeza sensível em direção à certeza de si mesmo, a saída
da verdade do objeto para o reconhecimento da verdade do sujeito.
A consciência-­de-­si apenas é consciência-­de-­si superada da sua ime-
diatez abstrata, de modo que ela é consciência­-de-­si para Outra cons-
ciência. Instaura-­se a dialética do reconhecimento, na qual se dá a relação
senhor e escravo. Conforme Hegel, no parágrafo 178 da Fenomenologia do
Espírito: “A consciência-­de-­si é em si e para si quando e por que é em
si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido”
(HEGEL, Fenomenologia do Espírito, p. 142).
A consciência­-de-­si não é, portanto, uma anterioridade solip-
sista. A certeza de si só se faz enquanto reconhecida em outro sujeito.
Reconhecimento que, no curso da experiência, se estabelece quando
o Eu já não é mais contemplação passiva, mas se fez desejo negador
concretizando a consciência­-de-­si quando o puro Eu indiferenciado,
enquanto objeto imediato tem, na imediatez, a mediação: pois so-
mente com o desejo negador do objeto independente tem­-se a certeza
da consciência-­de-­si que, no entanto, só se estabelece como verdade
na reflexão redobrada, sendo ela mesma um objeto para consciên-
cia. Hegel, nesse sentido, nos revela que a experiência da consciência
transcende o abismo da separação entre sujeito e objeto, sendo falsa a
independência do mundo representado. E a certeza de si mesmo, re-
alizada através do reconhecimento mútuo com outro sujeito, apenas
é possível na medida em que tal abismo é superado. Para Habermas,
é possível afirmar, diante do exposto, que o mundo seria construído
intersubjetivamente.
A ruptura com o mentalismo situa Hegel no campo da destrans-
cendentalização, conforme Habermas em Verdade e Justificação, e possibi-
lita uma apreensão da experiência da consciência a partir de estruturas
práticas de mediação (linguagem, trabalho e interação), isto porque
Hegel engendra uma crítica ao sujeito autorreferente da autorreflexão
inaugurada por Descartes, bem como aos dualismos da filosofia refle-
xiva, os quais ele entende como falsas oposições. O sujeito do conhe-
cimento é também o sujeito da ação e suas relações com o mundo se
estabelecem através dos “meios”. Habermas defende que, consequen-

95
Carla Vanessa Brito de Oliveira

temente, o saber do mundo objetivo é de natureza social, o que pode


ser verificado na dialética senhor e escravo, a qual esclareceria a rela-
ção entre intersubjetividade e objetividade.
Precede a relação entre intersubjetividade e objetividade, confor-
me já posto, a ruptura com o mentalismo, o que demarca a destrans-
cendentalização. O mentalismo se configura a partir da virada episte-
mológica promovida por Descartes. A virada epistemológica atesta a
evidência do sujeito cognoscente ao considerar que, na medida em que
eu reflito sobre minha reflexão, eu me descubro enquanto ser pensan-
te, enquanto “subjetividade”. Habermas observa que esta autocons-
ciência me leva ao saber das condições genéticas do conhecimento e,
assim, o sujeito cognoscente é um Si­-mesmo que possui representações
de objetos. No entanto, esse conceito de autoconsciência “sugere um
modelo dualista de relações sujeito-­objeto”, diz Habermas (Cf. HA-
BERMAS, Verdade e Justificação, p. 187); de tal modo que pode ser tradu-
zido nas seguintes suposições: a) primeiro, a da introspecção: o sujei-
to passa a ter acesso privilegiado às suas próprias representações que
são dadas como “vivências imediatamente evidentes” (ibidem, p. 187);
b) segundo, a explicação genética, ou seja, a certificação das vivências
subjetivas possibilita a explicação genética do saber dos objetos; c) por
fim, “os enunciados epistemológicos se medem pela verdade enquanto
evidência subjetiva ou certeza” (idem).
A concepção da autoconsciência cartesiana sustenta uma sepa-
ração entre sujeito e objeto. Essa opinião de independência entre o su-
jeito que representa e o objeto representado, sofre uma modificação no
idealismo alemão, especialmente com Kant, para o qual o mundo dos
objetos é projetado por um sujeito espontâneo (ibidem, p. 188). Não
significa a dedução idealística do próprio mundo, mas inaugura, em
contraponto a oposição radical entre sujeito e objeto, uma interação
entre espírito e mundo resultado da relação entre sensibilidade e en-
tendimento. No entanto, as oposições conceituais persistem, precisa-
mente por supor que existe a coisa em si em distinção do fenômeno.
Para Habermas, Kant ainda se situaria no paradigma mentalista
o que seria criticado por Hegel. De fato, a filosofia hegeliana, em seu
próprio movimento de constituição, promove uma crítica aos dualis-
mos kantianos (matéria e forma; universalidade e particularidade; coi-

96
O conceito de Erfahrung em Hegel

sa em si e fenômeno...) bem como ao Eu transcendental da apercepção.


Cito Habermas:

Nas preleções de Jena sobre a filosofia do espírito, o alvo princi-


pal de ataque é a representação mentalista de uma subjetividade
autossuficiente, que se delimita em relação ao que lhe é exterior.
[...] Hegel contesta a ideia de que o sujeito que conhece, fala e
age se vê diante da tarefa de transpor um abismo entre si mesmo
e um Outro separado dele. Um sujeito que, de saída, é junto ao
Outro não sente nenhum déficit ávido por compensação. As per-
cepções e os juízos articulam-­se numa tessitura conceitual adian-
tada pela linguagem; as ações se efetuam nos trilhos de práticas
usuais. Tal sujeito não pode ser junto a si mesmo sem ser junto ao
Outro; só no relacionamento com o outro sujeito ele forma cons-
ciência de si mesmo (HABERMAS, Verdade e Justificação, p. 191).

Nesse sentido, Habermas explicita que é na estrutura dialética de


reconhecimento recíproco que as pessoas se individualizam. As pessoas
só se veem como indivíduos em uma rede intersubjetiva de socialização.
É no medium da linguagem e do trabalho que se desenvolvem a
consciência teórica e prática. Entretanto, de acordo com as palavras
de Habermas:

(...) o que os sujeitos individuais produzem só pode ganhar exis-


tência duradoura na moldura de um mundo da vida intersubje-
tivamente partilhado, ao se tornar parte integrada seja da cultu-
ra de uma comunidade, seja da base material de uma sociedade
com divisão de trabalho (ibidem, p. 197).

Aparece, então, a noção da objetividade da intersubjetividade, da


qual o saber social é resultante. Porque a estrutura do reconhecimento
recíproco acaba por desempenhar o papel epistêmico do formar o fun-
damento intersubjetivo da suposição formal de um mundo objetivo.
Habermas identifica, então, a luta do reconhecimento como
uma “luta por visão de mundo”. Logo, o problema de ordem prática,
passa a ter significado epistêmico (Cf. ibidem, p. 205). De fato, a cons-
tituição intersubjetiva da autoconsciência, revela a natureza social do
saber e da experiência. Para Habermas, portanto, a dialética senhor e
escravo pretende:

97
Carla Vanessa Brito de Oliveira

(...) à construção social de um ponto de vista com pretensão à im-


parcialidade, o qual possibilite as referências objetivas ao mundo
e juízos que tenham força de obrigação intersubjetiva (HABER-
MAS, Verdade e Justificação, p. 206).

Não obstante, Habermas realiza essa leitura epistêmica porque,


para ele, Hegel filosofa a partir de uma cultura intelectual que pode
fundamentar a si mesma. E o filósofo que faz esse empreendimento,
retorna à autoconsciência autorreferente, autorreflexiva. Trata­-se de
um Eu privilegiado capaz de fazer a narrativa da consciência através
da autorreflexão. Nesse sentido, a leitura destranscendentalizada de
Hegel encontra limites em seus próprios termos.
A leitura de destrascendentalização da filosofia hegeliana, a par-
tir da dialética senhor e escravo, evidencia a crítica de Hegel a uma
concepção mentalista de uma subjetividade autossuficiente na medida
em que explicita os «meios» que estruturam previamente as relações
entre sujeito e objeto, conferindo ao espírito um caráter intersubjetivo.
Nesse sentido, a objetividade da experiência e do saber é de natureza
social. No entanto, o reconhecimento da natureza social da experiên-
cia, em Hegel, está circunscrito ao paradigma da consciência.
Desse modo, avaliamos o movimento de destranscendentalização
aqui exposto, tendo em vista o conceito de Erfahrung em Hegel, como
um caminho que circunscreve os limites e as possibilidades de uma
apropriação prática da dialética da consciência.

Referências

GIMMLER, Antje. Pragmatic Aspects of Hegel’s Thought. In: EGGINTON,


W.; SANDBOTHE, M. (Org.). The Pragmatic Turn in Philosophy: Contemporary
Engagements between Analytic and Continental Thought. Albany: State Uni-
versity of New York Press, 2004. p. 47-65.
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: Ensaios Filosóficos. Trad. De Mil-
ton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
________. Conhecimento e Interesse. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 6ª Ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

98
O conceito de Erfahrung em Hegel

INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
(Dicionário de Filósofos)
REDDING, Paul. Hegel and Pragmatism.In: BAUR, M. G. W. F. HEGEL: Key
Concepts. Acumen. 2014. Disponível em: <https://paulredding.net/Redding_
Hegel-Pragmatism.pdf>

99
As implicações dialético-históricas do tema
do fim da arte em Hegel

Guilherme Ferreira
Universidade Federal de Minas Gerais

1. O tema da arte em Hegel

Por demonstrar-se de natureza muito geral, “o tema do fim da


arte é um dos temas que dão margens a especulações e prognósticos
de toda ordem” (WERLE, 2011, p.10). Nesse sentido nossa proposta
aponta para uma análise sistemática e uma releitura deste prognóstico
hegeliano a partir do conceito de dessubstancialização, ou mais preci-
samente dessubstancilização ética.
No ponto de vista sistemático o “fim da arte” concerne à reali-
zação de um Ideal espiritual que une à aparência material a máxima
espiritualidade. Este ideal realizou-se historicamente na forma da
arte grega, que Hegel denomina como clássica. A Forma de arte clás-
sica desapareceu e a união Ideal de matéria e Espírito que substancia
a vida ética de um povo respondendo as necessidades mais altas da
coletividade, nunca mais poderá voltar. Por conseguinte torna-se re-
levante compreender: como se configura de fato o “fim da arte” no
que tange à questão da história da arte; se a arte pós-romântica, que
segue à grega é antitributária de uma Forma, ou seja, de um modelo
Ideal que a configure em um determinado período histórico; quais
são as consequências desta perda do Ideal como modelo da configu-
ração artística. Para propormos uma interpretação a estas questões

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 100-111, 2015.
As implicações dialético-históricas do tema do fim da arte em Hegel

precisaremos traçar um percurso metodológico que nos leve, dentro


dos Cursos de Estética, à compreensão tanto dialética quanto histórica
da temática do “fim da arte” uma vez que, no sistema de Hegel, “o
sistemático e o histórico se correspondem na elevação da espirituali-
dade natural por sobre a espiritualidade bela para a espiritualidade
livre” (VIEWEG, 2008, p. 152). Elevação esta que, numa perspecti-
va dialético-histórica, corresponde às três Formas universais de arte:
simbólica, clássica e romântica.
É interessante investigar o que Hegel compreende por “fim da
arte”, pois a expressão no sistema hegeliano recebe um sentido siste-
mático próprio, não obstante, seu campo de abstração intenta trans-
cender ao próprio período em que a expressão foi postulada. Isso se
deve ao fato de que esse filosofema “fim da arte” não se refere ao fato
de que a arte acabou, chegou ao término, “mas indica um conjunto de
fatores duradouros” (WERLE, 2011, p.11). O “fim da arte”, muito me-
nos, é o fim das obras de artes – de quadros, de esculturas, de música
ou de literatura.
A esse respeito Benedito Nunes (1993, p. 10), afirma que, Hart-
man e Croce acusam Hegel de preparar o serviço fúnebre para arte
ao relacioná-la com o Absoluto, “preparou-lhe a dissolução que advi-
rá da passagem do espírito às duas formas vizinhas (religião e filoso-
fia), Croce destaca esse destino de formação (Bildung) artística, por ele
chamado expressamente de morte da arte.” Nessa perspectiva, Nunes
(1993, p.10) afirma que a cláusula modal despercebida por Croce que
restringe aquela afirmativa encontra-se na introdução dos Cursos de
Estética onde Hegel afirma que “a arte é e continua sendo para nós,
quanto à suprema destinação, algo do passado” (HEGEL, 2001, p. 25).
E justifica sua sentença:

Ao contrário desta, a reflexão de Hegel não é conjectural. Trata-se


de um singular prognóstico ao revés de uma profecia já realizada
no presente mesmo em que a reflexão estava sendo feita – o mo-
mento da dominância de romantismo, de que a estética de 1835
é, de certa maneira, uma teorização crítica que podemos, ligar
o presente de Hegel ao nosso atual Dasein histórico e retirar da
doutrina do caráter passado da arte a rígida dependência lógica,
estabelecida por Croce, em relação ao sistema. (NUNES, p. 12)

101
Guilherme Ferreira

Retirar da doutrina do caráter passado da arte a rígida depen-


dência lógico-sistemática imputada na interpretação de Croce, não
significa aniquilar o caráter estritamente especulativo que perfaz o tema
do “fim da arte”, mas, atribuir a ele um desenvolvimento progressivo
no devir histórico. Essa interpretação parece dar ao prognóstico do
“fim da arte” um caráter mais coesivo. Trataremos da problemática
sobre o “fim da arte” com mais precisão mais tarde, por hora ficare-
mos com questões mais ulteriores deste trabalho, a saber, como a arte é
tratada por Hegel nos Cursos de Estética, obra em que a arte ganha um
lugar autônomo e privilegiado, coisa que não acontece no caso da Fe-
nomenologia do Espírito onde a arte está atrelada ao fenômeno religioso.

2. A arte nos Cursos de Estética

O pensamento crítico contemporâneo recebeu, em diversas pers-


pectivas, influência dos estudos que Hegel desenvolveu sobre a arte.
Os Cursos de Estéticas representam um marco na mudança de compre-
ensão filosófica da arte em suas múltiplas vicissitudes. Este mérito atri-
buído a Hegel relaciona-se de maneira intrínseca a duas mudanças no
paradigma da compreensão da arte empreendidas por ele: a primeira
refere-se ao estabelecimento de uma preferência ao belo artístico em
detrimento ao belo natural, ao passo que a última relaciona-se com o
lugar privilegiado dado a arte em seu sistema filosófico.
No Primeiro capítulo dos Cursos de Estética, intitulado A concep-
ção Objetiva da Arte, Hegel elimina o belo natural do objeto de estudo da
ciência do belo. Em oposição à estética de Kant “que privilegia o belo
natural em detrimento do belo artístico levando em conta a evidência
apenas de casos raros de genialidade artística” (DUARTE, 2012, p. 30).
Para Hegel, a verdade é essencialmente espiritual, podendo esta ser
apenas vislumbrada pelos efeitos de um produto do espírito humano,
em um determinado devir histórico. Assim “enquanto o belo natural é
um mero reflexo do espírito, em sua forma imperfeita, o belo artístico
é uma criação deste e toda criação do espírito é um objeto a que não se
pode recusar dignidade.” (NOVAIS, 1993, p.183). Além de por de lado
o belo natural da agenda da ciência do belo, Hegel ainda realça o lugar
de supremacia ocupado pelo belo artístico:

102
As implicações dialético-históricas do tema do fim da arte em Hegel

Pode-se desde já afirmar que o belo artístico está acima da nature-


za. Pois a beleza artística é a beleza nascida e renascida do espírito
e, quanto mais o espírito e suas produções estão colocados acima
da natureza e seus fenômenos, tanto mais o belo artístico está aci-
ma da beleza da natureza. Sob o aspecto formal, mesmo uma má
ideia, que por ventura passe pela cabeça dos homens, é superior
a qualquer produto natural, pois em tais ideias sempre estão pre-
sentes a espiritualidade e a liberdade. (HEGEL, 2001b, p. 28).

Esta oposição de Hegel em relação à estética Kantiana e ao mesmo


tempo, sua influência, embora crítica, com os românticos, “é a trans-
ferência do interesse cognitivo e ético à beleza artística, implantada ao
lado da religião e em concorrência com a filosofia, na região do Espírito
Absoluto1” (NUNES 1993, p. 12). Destarte a arte é presentificada no
sistema de Hegel – embora seja limitada em sua forma – com um lugar
elevado. Mas do que se trata este lugar superior? Para Hegel seria a
esfera do Absoluto, i.é., “a realidade em si, reunião da natureza (objeto
da natureza) e do espírito (sujeito). A reconstituição do Absoluto, por
sua vez, se realiza no devir histórico, na qual a arte participa como
etapa” (NOVAIS, 1993, p.183). Nesse sentido, a arte como produto do
espírito, seria uma parte, ao lado da religião e da filosofia, a primeira e
mais imediata forma de manifestação dos interesses mais elevados do
espírito: sua natureza, beleza e liberdade. A esse respeito afirma Hegel.

A necessidade desta liberdade espiritual, ele satisfaz na medida


em que, por um, lado internamente, transforma que é em para,
bem como realiza este ser- para-si [fürsichsein] externamente e,
assim, para si e para os outros nesta duplicação de si, traz a intui-
ção e ao conhecimento o que nele existe. Esta é a livre racionali-
dade do homem, na qual, como em todo o agir e saber, a arte tem
seu fundamento e sua necessária origem. (HEGEL, 2001b, p. 53)

E nesse sentido – de uma racionalidade livre do homem – uma


perspectiva histórica se concretiza ao lado deste movimento lógico-
-dialético em termos de Ideal ou Formas de arte.


1
ou seja, aquela esfera da vida que ultrapassa os interesses subjetivos e objetivos. São dimen-
sões totalizantes que permitem ao homem encontrar uma satisfação última e elevar-se acima
das restrições impostas pela vida prática e teórica.

103
Guilherme Ferreira

3. O Ideal de beleza e as três Formas de arte universais

Nos Cursos de Estética, Hegel sistematiza o Ideal2 sob três Formas


de arte, em três períodos na história, a saber, o período simbólico, o
período clássico e o período romântico.
Essas formas sintetizam o nexo por onde ocorre o regime de suas
diferenças, da idéia com a forma, do conteúdo com a matéria sensível:
fluxo impreciso na simbólica, relativa às grandes culturas orientais (Ín-
dia, Pérsia, Egito), adequado na clássica correspondendo à cultura gre-
ga do século V a.c, e novamente laxo, vago, na romântica, abrangendo
o mundo medieval e moderno sob a égide do cristianismo (NUNES,
1993, p.19).

Estas formas são, para Hegel, modos pelos quais a Ideia é repre-
sentada, ou seja, são os modos da relação entre conteúdo espiri-
tual e forma sensível da arte3, “e referem-se à verdade absoluta
que a arte alcança em certos períodos históricos” (HEGEL, 2000a,
p. 341-342).

A arte simbólica (início da arte no sistema de Hegel) – conside-


rando o desenvolvimento dialético e histórico do espírito – se encon-
tra no estágio menos desenvolvido em relação às outras duas Formas,
pois, “o peso da matéria sobrepuja a força do elemento espiritual, dan-
do origem aos colossos da antiguidade não-clássica nos quais a dife-
renciação entre a obra da natureza e a da mão humana apenas se faz
sentir” (DUARTE, 2006 p. 379). Nesta primeira Forma de arte, a relação
entre o conteúdo (espiritual) e a forma (material) que será dada a este
ainda não é esclarecida para o artista.

Ela... Procura aquela unidade consumada entre o significado in-


terior e a forma exterior, que a arte clássica encontra na exposi-
ção da individualidade substancial para a intuição sensível e que

2
“... o Ideal é a ideia identificada à sua realidade.” (HEGEL, 2001b, p. 249).
3 A tradução brasileira desta obra utiliza “Forma” para traduzir “Form, enquanto “Gestalt
é traduzida por “forma”. “A diferença básica entre Form e Gestalt reside no fato de que
Gestalt é necessariamente uma forma efetiva, determinada, ao passo que a Form possui um
cunho mais geral, universal e determinado”. (WERLE in HEGEL, 2001b, p. 12)

104
As implicações dialético-históricas do tema do fim da arte em Hegel

a arte romântica ultrapassa4 em sua espiritualidade proeminente


(HEGEL, 2000, p. 22).

Se na Forma de arte simbólica a relação entre conteúdo e forma


não traduz a unidade da interioridade espiritual com a exterioridade
material, na arte clássica essa relação é harmonizada. A dimensão espi-
ritual que é presentificada na obra de arte traduz o ponto mais alto em

termos de história da arte. Isso se deve ao fato de que “o perfeito equi-


líbrio entre os elementos materiais e espirituais pode-se entrever ao
alcançamento de um estágio civilizatório superior, historicamente cor-
respondente ao classicismo da Grécia Antiga” (DUARTE, 2006, p.379).
E estes elementos materiais e espirituais se traduzem na escultura do
deus grego, que materializa o ideal hegeliano de beleza manifestando
de forma mais adequada à Ideia divina na forma material sensível5.
Esta estrutura de perfeita realização da Ideia representada no Ideal da
arte clássica suscita além – e por consequência – da antropomorfização
da espiritualidade, uma espécie de formação (Bildung) substancial no
Ethos grego, de modo que a arte se torna a mola propulsora para a
fundação e configuração dos modelos para ação humana. “As configu-
rações do belo – a formação é a obra de arte subjetiva, a mitologia é a
obra de arte objetiva e a constituição da polis é a obra de arte política”
(VIEWEG, 2008, p.154). Entretanto, se a Forma de arte clássica, por um
lado, seja a que mais se realizou nos termos da história da arte, por ou-
tro ela possui um caráter de limitação “na arte e na linguagem da arte
mesma” (HEGEL, p. 2001, p. 11), esta limitação relaciona-se ao fato de
que “a determinidade de conteúdo, o significado ainda não tem status
da livre espiritualidade, a ideia inicialmente dominante como figura
artística” (VIEWEG, 2008, p. 156). Esta liberdade de espírito na arte só
terá seu apogeu na Forma de arte romântica.
Na arte romântica o espírito, depois de ter se externado e su-
prassumido na objetividade sua realização bela sob a forma antropo-
mórfica, agora se volta para si e conquista em si mesmo essa objetivi-

4 Este conceito, aqui, refere-se ao que Hegel considerou como sendo o ponto mais alto da
elevação do espírito absoluto, ele (o espírito) já saiu de si, suprassumiu a exterioridade ao se
expressar a ela e, assim, tornou-se autoconsciente de si.
5
Cf. CECCHINATO, Giorgia. Er-innerung e arte, in Verifiche, 2009, pp. 207-229.

105
Guilherme Ferreira

dade, que antes era buscado na exterioridade e na sensibilidade, nesse


sentido este espírito não é mais dependente do elemento material (sen-
sível), doravante, sua liberdade se concretiza, pois agora este espírito
é consciente de si como livre. A esse respeito afirma o próprio Hegel:

Esta elevação do espírito para si mesmo, por meio da qual ele


conquista em si mesmo sua objetividade, que antes ele precisava
procurar no exterior e no sensível da existência, e se sente e se
sabe nesta unidade consigo mesmo, constitui o princípio funda-
mental da arte romântica (HEGEL, 2000a, p. 252).

No entanto com o advento do período moderno e com ele seu


forte crescimento de racionalização e secularização do conteúdo abso-
luto, a arte romântica vai perdendo cada vez mais seu modo caracterís-
tico ou peculiar uma vez que seu conteúdo espiritual transfigura-se do
divino para o humano, da representação de deus para o pensamento e
reflexão humano como conteúdo este privilegiado pelo seu pontecial
elevação das necessidades mais altas da humanidade.
As obras de arte “já não satisfazem nossas mais elevadas necessi-
dades. Nós nos elevamos sobre o nível de poder venerar e adorar obras
de arte divinamente.” (HEGEL, 1989-1990, v1, p. 24). Mas então a arte
morre pra dar à reflexão? Obviamente não, sua dessubstancialização
ética junto à sua perda de capacidade de expressão do absoluto é trans-
mutada para outra dimensão ainda mais elevada espiritualmente: sua
substância ética se faz sujeito e seu modo expressão do absoluto que era
divina agora expressa, ou melhor, agora instiga o conteúdo próprio do
absoluto na modernidade, a reflexão. Mas é preciso explicitar melhor
esta questão. Faremos isso com o próprio filosofema do “fim da arte”

4. A questão do fim da arte nos Cursos de Estética

Embora Hegel não se dedique a um capítulo específico nos


Cursos de Estética ao tema do “fim da arte”, este aparece como forma
de conclusões em diversas passagens desta obra o que, de certo modo,
impele diversos autores contemporâneos tomarem tal tema como po-
lêmico. Diversas posições são atribuídas a Hegel em relação ao filoso-
fema do “fim da arte”. Stephen Bungay em Beauty and Truth: A Study of

106
As implicações dialético-históricas do tema do fim da arte em Hegel

Hegel’s Aesthetics classificou estas posições em três grupos: 1) “aqueles


que acham que Hegel se equivocou; 2) os que consideram parcialmen-
te errado; 3) os que nele descobrem um discernimento, não sobre o fim
da arte, mas sobre o futuro da arte” (Bungay apud FIGURELLI, 1993,
p. 90). Nossa interpretação participa do terceiro grupo e, nesse senti-
do, propomos duas interpretações. A primeira aponta para um “fim
da arte” que, de maneira sistemática, na tríade do Espírito Absoluto, a
arte esgota-se como um modo mais privilegiado de manifestação dos
interesses mais elevados do espírito, e assim entrega seu lugar à reli-
gião e à filosofia. A segunda se refere às implicações que a história da
arte é acometida em relação a este movimento dialético: a) a perda de
uma Forma ou Ideal que configure a arte em um dado período his-
tórico; b) e a “dessubstancialiazação ética” da arte em relação a esse
processo de desenvolvimento dialético-histórico.
De acordo com Gonçalves (2005), “há aparentemente a posição
de uma hierarquia entre intuição (Anschauung), representação (Vors-
tellung), e conceito (Begriff)”. Em relação a esta hierarquização dos mo-
dos de expressão do Espírito, Hegel nos sinaliza para nossa primeira
interpretação, a saber, o “fim da arte” tomado como esgotamento da
arte como o modo mais privilegiado de apreensão do Absoluto.

Ao atribuirmos à arte esta alta posição, devemos, entretanto,


lembrar que ela não é, seja quanto ao conteúdo seja quanto à
forma, o modo mais alto do absoluto de tornar conscientes os
verdadeiros interesses do espírito. (...) Em todas estas relações a
arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista da sua destina-
ção suprema, algo do passado (HEGEL, 2001, p.34-35).

Benedito Nunes nos chama atenção para essa doutrinação do ca-


ráter passado da arte por Hegel no que se refere a essa última frase da
citação acima.

(...) o que essa última frase resume num lapidar epitáfio, conflita
com o ensinamento fundamental da própria estética: a concei-
tuação da arte como produto do espírito, sempre atual e perma-
nente. Não podemos desviar-nos dessa aparente contradição que
divide em polos antagônicos as interpretações da Estética (NU-
NES 1993, p.9).

107
Guilherme Ferreira

Não obstante às outras interpretações sobre o tema do “fim da


arte” nossa primeira interpretação tem como pedra de toque esta dou-
trina do caráter passado da arte, exposto na Introdução dos Cursos de
Estética de Hegel. Entretanto nossa leitura não toma – em consideração
ao próprio desenvolvimento dialético do espírito no devir histórico –
o esgotamento da arte no sentido coloquial do termo, mas de forma
sistemática, afinal a passagem da intuição artística para representação
religiosa, doravante, para a conceituação filosófica não pressupõe um
aniquilamento da primeira, mas, ao contrário, uma suprassunção (Au-
fheben) desta em relação às outras duas. Entretanto, esta doutrina do
caráter passado da arte só pode ser compreendida de maneira a evitar
equívocos se se levar em consideração o fato de que, no sistema hegelia-
no, dialética e história estão imbricadas de maneira inexorável, onde a
segunda é a efetivação da primeira. Nesse sentido apontamos nossa se-
gunda interpretação: às implicações que a história da arte é acometida
em relação a este movimento dialético. Rodrigo Duarte, no seu texto O
Tema do fim da Arte na Estética Contemporânea, sinaliza que a arte...

...não se extingue em termos propriamente factuais, mas tem res-


peitabilidade comprometida em virtude de sua capacidade de
expressar o momento histórico, num contexto correspondente ao
que Hegel entendera como perda de substancialidade das mani-
festações artísticas (DUARTE, 2006, p. 401).

Nesta mesma direção Henández (2008. p. 92) afirma que “a arte


não nos proporciona mais uma formação (Bildung) substancial de con-
teúdos, mas uma formação formal de cultura e elementos para os nos-
sos critérios”. Para Klaus Viewer (2008, p. 158), “o mundo moderno
não pode mais ser apreendido como obra de arte, sua substância fun-
damental não pode mais ser descrita de modo suficiente”.
Nossa leitura toma a mesma direção no sentido de apontar uma
“dessubstancialização ética” 6 da arte. Apesar das múltiplas vicissitu-
des do conceito de substância (Material, matéria, essência, conteúdo

6 Cf. Vale lembrar a ambiguidade que o termo substância é acometido no sistema de Hegel:
1) material, matéria; 2) uma coisa permanente independente, em contraste com se acidentes;
3) ESSENCIA permanente de uma coisa; 4) substancia ética: na forma do Estado moderno,
espelha o universo como um todo. A doutrina de Spinoza reflete a cidade-estado grega e, na
visão de Hegel, revela uma instabilidade parecida (INWOOD, 1997, p.297-299).

108
As implicações dialético-históricas do tema do fim da arte em Hegel

essencial, etc.) no sistema de Hegel, escolhemos o conceito de substân-


cia ética para fundamentar nosso trabalho. A escolha se deve ao fato
de que, na esfera do Espírito Absoluto – esfera que trata dos interesses
que compreendem e, ao mesmo tempo, transcendem a vida teórica e
prática do homem – o conteúdo espiritual que a arte desvela assume
um papel importante na formação (Bildung) de uma dada cultura. A
Grécia Antiga é a que mais se destaca neste processo pelo fato de que
neste conteúdo desvelado uma substância ética é presentificada, ou
seja, a arte é o modo mais privilegiado de formação (Bildung) da cultu-
ra, seja na religião, na educação ou na política. O fato é que a arte já não
se destaca mais como formadora de uma cultura na sua totalidade e, é
nesse sentido que ela dessubstacializou-se no momento em que passou
esta tutela à religião e à filosofia.
Nesse sentido, o filosofema do “fim da arte”, aponta mais para
uma secularização da arte pós-romântica, uma mudança de compre-
ensão do seu potencial enquanto fenômeno artístico do que para seu
esgotamento como queria afirmar Hertman e Croce. O processo de
dessubstancialização ética da arte implica necessariamente numa sub-
jetivação da mesma, ou seja, aquela arte outrora capaz de tecer uma
cultura na sua totalidade no sentido da sua formação, agora tece os
interesses propriamente subjetivos na medida em que, a partir da sua
potencialidade conceitual, faz erigir a reflexão como um modo privile-
giado para capacidade inventiva do ser humano, bem como sua cons-
tante busca de liberdade. Seu caráter conceitual a faz plural e nessa
pluralidade regozija a humanidade de liberdade.

Referências
Primárias

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na História – Uma Introdução


Geral à Filosofia da História. Trad.: Beatriz Hartman. São Paulo: Centauro,
2001а.
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109
Guilherme Ferreira

. Cursos de Estética - Vol. III. Trad.: Marco Aurélio Werle. São Paulo:
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110
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111
Religião e Filosofia no jovem Hegel

Rosana de Oliveira
Universidade de São Paulo

O período de juventude de Hegel oferece uma apreciação de


muitos dos temas que serão tratados, em sua maturidade, de forma
sistemática, e assim o é com a complexa relação entre filosofia e reli-
gião. Sobretudo no período de Frankfurt, que compreende os anos
entre 1797 e 1800, Hegel apresenta uma concepção da relação
entre religião e filosofia que se sustenta face a seus interesses na
época, forjados sob influência de sua formação teológica, para a qual
concorreram ainda a filosofia kantiana em sua recepção pela ortodo-
xia do seminário de Tübingen. A partir de seu grande manuscrito do
período de Frankfurt denominado O Espírito do cristianismo e seu desti-
no e do antigo Fragmento de Sistema buscamos examinar a relação entre
religião e filosofia, contextualizando tais fragmentos quanto ao seu
escopo a apresentando os pontos em comum destes. Por um lado,
enquanto no primeiro plano do manuscrito O Espírito do cristianismo se
trata do desenvolvimento da liberdade em suas formas lógica e histó-
rica, a partir de onde se pode falar da filosofia (e, melhor dito, da filo-
sofia de seu tempo) e sobretudo da religião; no Fragmento de Sistema se
encontram os apontamentos mais conceituais sobre religião e filosofia.
Nosso intento neste artigo será mostrar uma interpretação sobre
o que representam e de como se articulam estes conceitos de religião e
filosofia para o jovem Hegel de Frankfurt. Pretende-se, assim, apresen-
tar uma possibilidade de interpretação, que sem dúvidas não esgota a

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 112-126, 2015.
Religião e Filosofia no jovem Hegel

complexa relação entre dois temas tão extensos, mas que busca mobili-
zar estes temas em uma leitura interna dos escritos de Frankfurt. Par-
tiremos da apresentação dos escritos de Frankfurt localizando-os na
produção de Hegel, passando por sua articulação interna neste percur-
so da liberdade, para em seguida mostrar uma possível conexão desta
articulação interna com os temas da religião e da filosofia, e propôr, ao
final, uma interpretação da relação entre religião e filosofia.
A primeira tarefa deste artigo consiste na explicitação da ex-
pressão “jovem Hegel de Frankfurt”, diferenciando os outros mo-
mentos de seu desenvolvimento e delimitando aqui o período de
Hegel em Frankfurt entre os anos de 1797 e 1800, quando contava
com quase 30 anos e trabalhava como preceptor na casa dos Gogel.
Nascido em 1770, os primeiros anos de estudo de Hegel foram reali-
zados no Ginásio de Stuttgart; entre 1788 e 1793, estuda Filosofia e Te-
ologia no Seminário de Tübingen, onde se torna amigo de Hölderlin
e Schelling. Os materiais desta época, que consistem em cadernos e
exercícios de aula e um diário pessoal, apontam para uma rica cons-
tatação dos objetos de estudo de Hegel: os antigos (no fragmento de
1787 intitulado Über die Religion der Griechen und Römer), religião
(os 04 Predigten), e ainda fragmentos que indicam a leitura e conhe-
cimento de teóricos de sua época. Do período de Tübingen restam
também o Fragmente über Volksreligion, nos quais são temas centrais a
sensibilidade e a religião.
Entre 1793 e 1796 Hegel se instala em Berna, onde surgem os
ensaios mais acabados A Vida de Jesus e A Positividade da religião cristã,
nos quais há uma espécie de aproximação entre o discurso cristão e o
kantiano, mas que admite também uma investigação sobre o caráter
positivo do cristianismo. Do final deste período data ainda o manus-
crito O Mais antigo programa de sistema do idealismo alemão (1796), cuja
autoria desconhecida é questionada entre Hegel, Schelling ou Hölder-
lin, mas que foi atribuída a Hegel por grandes pesquisadores hegelia-
nos como Pöggeler.
Em 1797 Hegel se muda para Frankfurt. A importância deste
momento reside num caráter transitório que se identifica em seus es-
critos quando comparados aos anteriores e posteriores, de modo que o
período de Frankfurt marca um momento de passagens de seus temas

113
Rosana de Oliveira

juvenis para o sistema maduro, como ele mesmo narra em carta a


Schelling, de novembro de 1800:

Na minha formação científica, que partiu de necessidades huma-


nas secundárias, eu tive de ser conduzido à Ciência, e o ideal
juvenil teve que tomar a forma da reflexão, ao mesmo tempo conver-
tendo- se em sistema; agora eu me pergunto, enquanto ainda me
ocupo disso, qual retorno é encontrado para intervir na vida dos
homens (HEGEL, 1961, p. 59-60; itálico nosso)1.

Desta forma, o período de Frankfurt e os escritos desta época re-


fletem um momento em que o discurso religioso, pautado numa série de
temas transportados da teologia que dominavam seus escritos anteriores,
começa a dar espaço para uma elaboração mais filosófica e conceitual.
Ora, mas a quais escritos nos referimos sob o nome “escritos de
Frankfurt”? Referimo-nos a uma série de manuscritos controversos,
sobre os quais sempre pairaram dúvidas quanto à datação e organiza-
ção – sua primeira edição esteve a cargo de Hermann Nohl, que atri-
buiu à uma série de fragmentos de Frankfurt o título O espírito do Cris-
tianismo e seu destino. As pesquisas de Gisela Schüler representaram
outro momento decisivo na análise destes manuscritos, mas só em
2014 publicou-se a edição crítica2, sob organização de Walter Jäschke.
De acordo com a edição crítica, o presente artigo examina em especial
os fragmentos sobre Fé e Religião (Texto 40-42) e sobre a história de Is-
rael (43-48), creditados ao período de Berna, mas com reformulação
em Frankfurt, e os fragmentos I. União e Amor (49-50); III. A religião
cristã (52-60); IV. A religião judaica (61-62); V. A religião (63-64); VI. O
conceito da religião positiva (65).
1
Livre tradução. Também as citações de O espírito do cristianismo e seu destino se referirão
à edição alemã das Werke in zwanzig Bänden (Frankfurt am Main: Surhkamp, 1971; Frühe
Schriften, Werke 1) em livre tradução para o português mediante o cotejo das edições espa-
nhola (México: Fondo de Cultura Econômica, 1978), inglesa (New York: The University of
Chicago, 1948), das edições francesas (Paris: Vrin, 1988 e Paris: Presses Pocket, 1992) e dos
excertos traduzidos para o português por Adílson Felício disponibilizados na Revista Opi-
nião Filosófica. As citações referentes ao antigo Fragmento de Sistema constam da tradução
de Eric C. de Lima, nos Cadernos de Filosofia Alemã.
2
HEGEL, Gesammelte Werke, Bd. 02: Frühe Schriften. Teil II. Bearbeitet von Friedhelm Ni-
colin, Ingo Rill und Peter Kriegel. Herausgegeben von Walter Jaeschke. Düsseldorf: Felix
Meiner, 2014.

114
Religião e Filosofia no jovem Hegel

Embora a recente edição crítica desmonte a ideia de que estes


manuscritos constituam uma obra “fechada” e os apresente como frag-
mentos coordenados apenas por temas, traz a vantagem de colocá-
-los junto a outros excertos como o antigo Fragmento de Sistema. Assim,
como se pretende expôr aqui, é possível reconhecer no antigo Espíri-
to do Cristianismo uma certa coerência interna que permite interpretar
parte destes fragmentos a partir de um ponto articulador, a saber, uma
história ou percurso da liberdade. Sob o horizonte da liberdade podem
então ser relacionados os grandes temas dos fragmentos de Frankfurt
que, num nível conceitual, são representados pelas etapas da legalida-
de, da positividade, da moralidade, do amor, da religião, da vida, da
união, do destino, do crime e do castigo, e que encontram sua corres-
pondência concreta ou factual na religião judaica, na religião cristã e
na filosofia kantiana, e que admite ainda diversos contrapontos
com o mundo grego. Mas na medida em que na nova edição o antigo
Fragmento de Sistema também está presente, é possível analisar todos
estes excertos em conjunto, resultando em diferentes e complemen-
tares concepções de filosofia e religião e da relação destas, sobretudo
pelo conceito de Vida.
Partindo dos fragmentos compõem o Espírito do cristianismo, ser-
vimo-nos das palavras do próprio Hegel:

Jesus opõe à ideia dos judeus de Deus como seu senhor e so-
berano a relação de Deus para com os homens como a de um pai
com seus filhos. A moralidade supera a dominação na esfera da
consciência, o amor supera as barreiras da esfera da moralida-
de; mas o amor é em si ainda natureza incompleta; no momento
do amor feliz não há espaço para a objetividade; mas cada
reflexão supera o amor, põe de volta a objetividade, e com ela
começa novamente o campo das limitações. O religioso é então
o pleroma do amor (reflexão e amor unidos, ambos pensados
ligados (HEGEL, 1971, p. 370).

Desta forma, pensando num percurso da liberdade que


se exprime tanto nas religiões quanto em conceitos, a relação entre
o divino e o humano no judaísmo é primeiro momento. Trata-se do
momento da lei positiva e teocrática que é representada pela religião
judaica, pensada sobretudo pela narrativa bíblica – através da narrati-

115
Rosana de Oliveira

va bíblica Hegel aponta desde os antepassados judaicos a persistência


das relações positivas e puramente legais que determinam o destino
de sua descendência judaica.
Exemplo disso é o evento do dilúvio, que traz a mensagem da
separação entre o homem e a natureza e que significou – nas
palavras de Fischbach em nota à edição francesa – a “ruptura da
unidade original imediata e indiferenciada do homem e da natureza”
(HEGEL, 1992, p. 158). A partir desta ruptura se colocam duas possi-
bilidades: a de dominação ou de reconciliação com a natureza.
A vida da reconciliação com a natureza é representada pela
Grécia Antiga: na mitologia grega, após o dilúvio se buscou a re-
conciliação através da ação fundadora da nova humanidade com o
casal Pirra e Deucalião, que para constituir a nova raça humana deve-
ria jogar para trás pedras que se transmutariam em ossos e formariam
novos homens e mulheres. Com isso, afirma Hegel, converteram-se
nos “progenitores (Stammeltern) de belas nações e tornaram sua épo-
ca a mãe de uma natureza renascida e com a flor da juventude conser-
vada” (HEGEL, 1971, p. 277).
O mundo judaico, por sua vez, representa a via da dominação
empreendida de duas formas no pós-dilúvio: através de uma domina-
ção ideal e transcendente com Noé, e através de uma dominação real e
imanente com Nimrod.
Como Noé não pôde, sozinho, fazer frente à natureza após o
dilúvio, projetou a dominação em seu ideal delegando esta função ao
Deus transcendente. Neste sentido se trata de uma dominação ideal
– projetada no ser pensado – e transcendente – pois o ser pensado é
totalmente separado do mundo dos homens e da natureza.
Após Noé a dominação da natureza é reforçada com seu neto
Nimrod, “que foi o primeiro homem poderoso da terra” (Gn 10, 8) e
que tentou estender esta dominação de um modo real e imanente por
sobre a unidade dominante ao se rebelar contra Deus. Seu plano era
construir uma torre que chegaria ao alto dos céus, a Torre de Babel,
mas Deus interfere e obstaculiza a construção desta torre ao atribuir
aos homens diferentes línguas.
Estes eventos configuram o antepassado da religião judaica na
medida que iniciam uma relação positiva com Deus após a separação

116
Religião e Filosofia no jovem Hegel

da natureza. O começo efetivo da religião judaica se dá com patriarca


Abraão, chamado por Deus a abandonar sua pátria e sua família para
partir em busca da terra prometida através de um ato primordial, de
uma espécie de pecado original pelo qual “executa realmente a cisão
que só era ainda ideal em Noé” (HEGEL, 1992, p. 158). Neste sentido,
Abraão dá prosseguimento à dominação ideal e transcendente da na-
tureza iniciada com Noé ao se representar o Deus como “o ser pensado
elevado à unidade dominante sobre a natureza hostil, pois o hostil só
pode se apresentar na relação de dominação” (HEGEL, 1971, p. 278),
projetando a dominação em seu Deus que, por um lado, não seria
mais que o espelhamento dele mesmo, como explica Beckenkamp:
“... a religião de Abraão é uma reflexão de si mesmo, no caso não
em si mesmo, mas sobre um todo da contraposição absoluta” (BE-
CKENKAMP, 2009, p. 135). O Deus de Abraão, assim como o de Noé,
é um Deus “criado” pelo homem a fim de realizar a dominação sobre
a natureza de um modo ideal e transcendente, uma vez que os homens
não conseguiriam.
O ato primordial que torna Abraão o patriarca judeu “é uma se-
paração, que destroi os vínculos da convivência e do amor, a totalidade
das relações, nas quais ele vivera com os homens e a natureza até
então; rejeita estas belas relações de sua juventude” (HEGEL, 1971,
p. 277). Desta forma, é através desta negação consciente do amor e
das belas relações que Abraão tenta construir sua autonomia e li-
berdade, pois como afirma Hegel, “Abraão não queria amar e por
este motivo ser livre” (HEGEL, 1971, p. 277), mas acaba recaindo na
dependência em lugar da liberdade. A negação do amor e das belas
relações ainda ocorre quando Abraão sublinha sua diferenciação e
a de sua descendência em relação aos outros em uma característica
física, a circuncisão.
Se, por um lado, é com Abraão que a história efetiva dos ju-
deus se inicia, é com o profeta Moisés que ela adquire seu aspecto
predominante, a saber, o estabelecimento da relação entre homem e
Deus mediante leis, que são impostas por Deus a Moisés e a seu povo
sob a forma dos dez mandamentos ou decálogo (e que na tradição
judaica existem como a Torá). Deve-se notar que a figura de Moisés,
enquanto profeta, representa um intermediário entre Deus e os

117
Rosana de Oliveira

homens, tal qual Abraão. Isto reforça o sentido da positividade,


de um Deus transcendente que não se comunica com os homens senão
mediante o profeta, e que para exortá-lo, não se mostra diretamente,
mas em formas como as da sarça ardente, que queimava sem se consu-
mir. O divino estava sempre numa esfera superior, “o sagrado estava
sempre fora deles, invisível e não-sentido” (HEGEL, 1971, p. 285);
por isso não havia problema para os judeus falar sobre o culto, sobre
suas leis: o próprio culto também não era sagrado. É também por isso
afirma Hegel que “a raiz do judaísmo é o objetivo, isto é o serviço, a
dominação frente a um alheio” (HEGEL, 1971, p. 298; itálico nosso), a
dominação sob um Deus transcendente que impõe leis.
Assim, a legislação teocrática de Moisés – cujo centro e sujeito
era o próprio Deus transcendente e exterior e que ganha força não só
no campo das relações entre homem e Deus mas também no âmbito
civil e particular – reforça a transcendência e a positividade divinas e a
obediência dos homens reduzidos a “um nada e algo feito, enquanto o
objeto infinito faz dele algo, um feito, um não-ser, que não tem vida,
não tem direito e não tem amor” (HEGEL, 1971, p. 283).
Todos estes traços destacados por Hegel e reforçados com o es-
tabelecimento da legislação mosaica estão em estreita relação com a
ausência de possibilidade de liberdade para o povo judeu, pois mes-
mo quando são passivamente tornados livres por Moisés com a fuga
do exílio no Egito, escolhem permanecer sob o jugo de seu libertador
tornando-o legislador do povo. Daí a afirmação de Hegel de que “para
os judeus foram feitos atos grandiosos, mas eles não começam com
atos heroicos” (HEGEL, 1971, p. 282), pois ainda que a libertação do
cativeiro egípcio representasse um grande acontecimento, os judeus
estavam passivos em relação à própria liberdade. A legislação judaica
tem origem, portanto, na indiferença ou total ausência de consciên-
cia da liberdade, e o significado desta indiferença se evidencia pela
comparação com a legislação dos antigos.
Hegel nota que, tal qual a legislação judaica, também os legisla-
dores antigos Sólon e Licurgo limitaram certos direitos privados como
o direito da propriedade sob as leis estatais. A diferença é que os anti-
gos o fizeram ao perceber a ameaça à liberdade dos cidadãos frente
a uma crescente desigualdade de fortunas que poderia, inclusive, re-

118
Religião e Filosofia no jovem Hegel

sultar numa aniquilação política dos cidadãos, enquanto a legislação


judaica tomaria medidas para impossibilitar legalmente o aumento da
propriedade com outros propósitos: ao conceder o direito de resgatar
as terras, de modo que se um “irmão se tornar pobre e vender uma
parte de seu bem, seu parente mais próximo que tiver o direito de res-
gate se apresentará e resgatará o que o seu irmão vendeu” (Lv 25, 24-
25), aparentemente se asseguraria a propriedade das famílias. Porém,
a ideia subjacente era a de que tudo o que os judeus possuíam era de
empréstimo divino, como lembra Deus a Moisés: “a terra não se ven-
derá para sempre, porque a terra é minha, e vós estais em minha casa
como estrangeiro ou hóspede. Portanto, em todo o território de vossa
propriedade, concedereis o direito de resgatar a terra” (Lv 25, 23). Na
verdade os judeus não possuíam direito algum, de modo que para
Hegel, “a aparência de que existia uma relação de direito público
entre os judeus desaparece ao examinar o princípio que estava na
origem destas leis” (HEGEL, 1971, p. 290). Desta forma, a legislação
dos antigos limitava a propriedade para assegurar a liberdade e
a igualdade de seus cidadãos, enquanto a judaica lhes asseguraria a
igualdade de aniquilação e de ausência de direitos e de liberdade.
A esta perspectiva da pura legalidade se opõe Cristo. Numa
leitura do Sermão da Montanha, Hegel analisa o discurso do cristia-
nismo primitivo que propõe a completude da legalidade pelo amor e a
partir disto ressalta que por mais que a legalidade possa ser superada
pela moralidade, esta superação só se dá parcialmente. Referindo-se
por moralidade à filosofia de Kant, Hegel aponta que não se pode
superar a positividade e a legalidade pela moralidade uma vez que
esta esteja fundamentada em leis e deveres universais, porque deste
modo o universal da lei se opõe ao particular e só preservam sua for-
ma, seu caráter alheio ao homem, mantendo uma dimensão de positi-
vidade, de um elemento externo.
Assim, a leitura de Hegel sobre Kant vai no sentido de reafir-
mar que a moral kantiana não consegue superar a positividade da lei,
mas só traz essa positividade para dentro do homem. No campo da
religião, isso se reflete no seguinte: enquanto as religiões estatutárias
como o judaísmo tinham um senhor fora dos homens, um deus trans-
cendente, a “religião racional” interiorizava esta relação. Daí que

119
Rosana de Oliveira

Hegel afirme, a respeito das religiões estatutárias e da moral kan-


tiana, que “a diferença não está em que aqueles sejam escravos e este
seja livre, mas em que aqueles têm seu senhor fora de si, enquanto o
segundo o leva dentro de si mesmo, sendo ao mesmo tempo seu pró-
prio escravo” (HEGEL, 1971, p. 323).
Portanto, ainda que a moral kantiana do dever oferecesse a lei
uma completude ao tentar fundamentá-la no homem, na universalida-
de da razão, ela não supera a positividade porque mantém a oposição
dentro do homem dado o caráter próprio à lei, que fere a autonomia
do homem e não efetiva a liberdade. No limite, a moral do tipo kantia-
na e, para alguns comentadores, também a fichteana (cuja referência
estaria ainda mais explícita em excertos como o Fragmento 40, ante-
riormente denominado Moralidade, Amor e Religião) e as religiões esta-
tutárias como a judaica representariam um mesmo lado, a saber, o da
dependência e da ausência de liberdade: nas filosofias da subjetivida-
de, o da dependência de um sujeito absoluto sob a forma da subjetivi-
dade racional; na religião judaica, a dependência de um objeto absoluto
(BECKENKAMP, 2009, p. 145).
Assim, não é pela via da moralidade que o cristianismo pro-
põe superar a legalidade, mas pelo amor. No cristianismo primitivo,
como narra o Evangelho de João, Deus era o Verbo, Logos, Razão, mas
também se materializou entre os homens na figura do Cristo. Cris-
to, como filho de Deus e filho do Homem, representa uma tentativa
de união entre as esferas outrora separadas do divino e do humano
propondo o amor como complemento da lei. O amor é pensado por
Hegel em sentido distinto do amor kantiano que, pensado a partir da
Crítica da Razão Prática (KANT, 1986, pp. 98-99), concebe a expressão
de Jesus “Ama a deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti
mesmo” (Mt 22, 37-39) como um mandamento do dever “que exige
respeito a uma lei que ordena o amor” (HEGEL, 1971, p. 325; itálicos
nossos), e isto seria para Hegel uma “profunda redução do que ele
chama de um mandamento: amor de Deus sobre todas as coisas e
ao próximo como a ti mesmo, ao seu mandamento do dever” (HE-
GEL, 1971, p. 325). Contra este amor da dimensão limitada do dever
kantiano, Hegel destaca no sermão da montanha as passagens que
priorizam a subjetividade do homem em vez da mera lei e das rela-

120
Religião e Filosofia no jovem Hegel

ções jurídicas e só então se abre um campo para a liberdade, a saber,


através da colocação dos próprios limites:
Ao opôr a subjetividade ao positivo se esvai a indiferença do
serviço e suas barreiras. O homem é responsável por si mesmo,
seu caráter e sua ação se tornam Ele mesmo; ele só tem limites
onde ele mesmo os coloca, e sua virtude só tem determinações,
onde ele as limita. Essa possibilidade da limitação da oposição é
a liberdade, o “ou” na virtude ou no vício (HEGEL, 1971, p. 337).

Portanto, a liberdade só poderia existir onde há responsabilida-


de própria, autonomia para colocação dos limites, superando a forma
da lei ao opôr à lei a virtude. O fato, porém, desta liberdade vir com
um acento preponderante na subjetividade já indica parte do que
será, para Hegel, uma das dificuldades do amor cristão.
Ao amor cristão falta um lado objetivo que configura o “impulso
para a religião” (HEGEL, 1971, p. 406): o representar-se objetivamen-
te, o ligar-se do subjetivo e do objetivo, do sentimento e da exigência
pelos objetos, o entendimento na beleza através da fantasia. Falta a
representação (Vorstellung) da união para que o amor se torne re-
ligião (HEGEL, 1971, p. 407). Ademais, o amor ainda encontra suas
dificuldades no mundo prático com a ideia de um Reino de Deus
que, estando na terra, estava sob a jurisdição do Estado romano,
de seus impostos e da relação com a propriedade, que podem repre-
sentar obstáculos à realização de um ideal de unificação pleno. O amor
é aqui, portanto, ainda limitado, tal qual a liberdade no cristianismo
que, ao se propôr a responsabilidade própria na colocação dos limites,
tem sua ênfase estritamente no sujeito.
Em sua limitação, o amor consegue superar a forma da lei ao
opor no homem a lei à virtude, mas ainda não consegue reconciliar lei
e crime. No campo das relações jurídicas, a reconciliação de lei e crime
só se daria no destino trágico, pois este liga o criminoso à vida no
momento em que este percebe que a vida ferida também é a sua
vida. Portanto, é através do conceito de vida no destino que a ideia
de reconciliação se repõe, trazendo com ela o amor, a unificação e o
ser, acima das esferas jurídicas limitadas.
Desta forma é que Hegel concebe, no manuscrito, uma sucessão
de momentos nos quais se expressam, por assim dizer, as ma-

121
Rosana de Oliveira

nifestações religiosas (judaico-cristã) e filosóficas (Kant) sob a pers-


pectiva da liberdade, que se vê impedida de se efetivar em relações
positivas, como as estabelecidas entre Deus e os judeus, mas também
na moral do tipo kantiana, na qual a positividade é remanescente e
interiorizada. Com o cristianismo a subjetividade se sobrepõe à le-
galidade e à moralidade através do amor e é possível alcançar
um patamar de liberdade, mas o amor ainda carece da completude na
religião ligando-se à reflexão, à uma certa classe de positividade, e não
supera o caráter positivo remanescente na lei punitiva, no castigo. A
reconciliação só é restabelecida no destino, na dimensão da vida, que
expõe o criminoso ao reconhecimento do outro como pertencente à
vida que também é sua. Na vida se restabelecem então as esferas da
unificação, do amor, do ser.
Ora, mas como conectar esta exposição dos momentos do
percurso da liberdade com a relação entre religião e filosofia? Antes
de apresentar uma possível interpretação, a pergunta a ser colocada
de partida é o que significa neste momento falar de religião e de filoso-
fia. Afinal, no campo da religião, ao tratar do judaísmo Hegel o pensa
como legalidade; da mesma forma, pensando o cristianismo Hegel o
toma sob a conceituação do amor, de modo que religião ou religioso
parecem indicar outra coisa que as religiões. Neste mesmo sentido,
também é possível perguntar a que se refere Hegel pela ideia de
reflexão ou de filosofia, pois ao tratar de uma filosofia como a kan-
tiana, Hegel parece tomá-la em um campo de intersecção (que não
foi totalmente bem-sucedida) entre religião e moral.
Para pensar a religião e a filosofia a partir deste percurso, uma
possibilidade é tomá- las, provisoriamente, a partir do negativo, do
que elas não podem nem devem ser: sabe-se o que as religiões não
devem ser positivas, nem que a filosofia deve ser puro formalismo e
manutenção das oposições. A exigência que se coloca é a de reconci-
liação, sobretudo no campo ético.
No caso da religião, é por isso que muitos dos temas religiosos são
tirados de um contexto propriamente teológicos, mas tratados mais em
seu sentido prático que teológico. Assim é que, quando pensa a religião
em sua formulação kantiana, na interpretação de Lukács o argumento
de Hegel para a crítica de Kant seria a não-resolução do problema ético

122
Religião e Filosofia no jovem Hegel

através de um conceito de dever absolutizado (LUKÁCS, 1973, p. 247)


e de uma falsa unificação (LUKÁCS, 1973, p. 252). Ora, no limite, isto
também guiaria a concepção de liberdade de Hegel: não basta à religião
cristã instaurar a possibilidade da liberdade pela responsabilidade pró-
pria abolindo o serviço e o dever se ela se limita ao campo individual.
O conceito de liberdade no cristianismo não daria conta do todo como
a liberdade entre os antigos, cuja manutenção, como vimos, conduzia
a decisões como a limitação das riquezas para evitar a aniquilação
política dos mais pobres. É o que Marcuse, em Razão e Revolução,
identifica no cristianismo: ele se propõe a salvação do indivíduo e não
da sociedade ou do Estado, e por isso haveria nas reflexões do jovem
Hegel o indício da necessidade de uma outra forma além da religião de
abordar os problemas de seu tempo:

a medida que Hegel se convencia de que as contradições eram


a forma da realidade, mais filosófica se tornava sua discussão –
somente os conceitos mais universais poderiam, então, compre-
ender as contradições, e somente os últimos princípios do conhe-
cimento poderiam produzir os princípios que as resolvessem
(MARCUSE, 2004, p. 42).

Assim, tal como na efetivação da liberdade o puro lado subjetivo


e individual não era suficiente, também a religião tinha de se pensar
de um modo mais amplo, sobretudo refletindo sobre seu lugar na so-
ciedade, como aponta Beckenkamp:

se é correto ver no conjunto de textos reunidos sob O espírito do cris-


tianismo e seu destino a elaboração de uma teoria da religião como
contribuição para o seu esclarecimento, cumpre lembrar, por outro
lado, que essa teoria da religião é desenvolvida com o inte-
resse determinado de identificar a função que a religião cumpre
na constituição do domínio prático das sociedades humanas. Para
a compreensão da formação do pensamento filosófico de Hegel é
importante registrar ainda a presença de uma especulação latente
que vai determinando sua própria conceituação na medida que se
aprofunda na análise de seu objeto (BECKENKAMP, 2009, 134)

Portanto, o que Hegel toma aqui por religião está ligado às exi-
gências de reconciliação que guiam seu estudo a rejeitar a positividade

123
Rosana de Oliveira

remanescente e a considerar que o amor cristão, apesar da liberdade in-


dividual da colocação dos próprios limites, não é ainda suficiente para a
unificação do homem. A religião é o momento em que se supera o lado
subjetivo, por isso a necessidade da objetivação, da representação.
E onde fica a filosofia nesta história? Neste ponto a edição crítica
traz a vantagem de poder incorporar aqui o fragmento 63: absolute
Entgegensetzung, anteriormente denominado Fragmento de Sistema,
que apesar de não entrar no plano do antigo O Espírito do cristianismo,
pertence ao período de Frankfurt e trata religião e filosofia em lin-
guagem “especulativa”, mostrando como ambas são necessárias para
pensar o todo.
Se até aqui vimos que Hegel nos fragmentos do Espírito do
cristianismo trabalha mais extensamente a ideia de religião apontando
para a necessidade de um conceito que não seja limitado, o fragmen-
to 63 vem conectar uma noção de filosofia a um tema muito caro
ao Espírito do Cristianismo, a noção de Vida, pensada em suas relações
com a totalidade. No fragmento 63 afirma Hegel: “Esta elevação do ser
humano não do finito ao infinito – pois estes são apenas de produtos
da mera reflexão e, enquanto tais, sua separação é absoluta –, mas
antes da vida finita para a vida infinita é religião” (HEGEL, 2007, p.
133; itálico nosso). E completa:

Este estar-parcial (Teilsein) do vivo se suspende na religião, a


vida limitada se eleva à [vida] infinita; o finito traz dentro de si,
somente pelo fato de que ele mesmo é vida, a possibilidade
de se elevar à vida infinita. A filosofia tem, justamente por isso
de terminar em religião, porque aquela é um pensar e, portanto,
tem uma oposição, por um lado, [entre ele e] o não-pensar (Ni-
chtdenken); e, por outro lado, entre o pensante e o pensado. Ela
tem de desvelar, em todo finito, a finitude e, através da razão,
exigir a complementação (Vervollständigung) do mesmo; em es-
pecial, [tem de] reconhecer (erkennen) as enganações [causadas]
pelo seu próprio infinito e, assim, pôr o verdadeiro infinito fora
dos limites de seu âmbito (HEGEL, 2007, p. 134).

Desta forma, encontramos no Fragmento 63 uma exposição


de Hegel sobre a religião e a filosofia que complementa aquela do
Espírito do cristianismo, na medida em que ambas, religião e filosofia,

124
Religião e Filosofia no jovem Hegel

já não são tratadas quanto a suas “manifestações” históricas e sim


em linguagem conceitual. Neste sentido, para Hegel elas estão ligadas
indissociavelmente ao conceito de Vida, enquanto produção da vida
humana e não da mera reflexão, na dimensão da vida finita e infinita,
para além da finitude e da infinitude que, quando consideradas sob a
perspectiva da reflexão – em outras palavras, na perspectiva kantia-
na –, permanecem na oposição absoluta.
Assim, se nos fragmentos do antigo Espírito do cristianismo a vida
surge como conceito capaz de restaurar a reconciliação mobilizando o
destino por sobre a lei e trazendo consigo novamente o amor, o ser
e a unificação, da mesma forma que a religião e a liberdade apon-
tam para a necessidade de um pensamento do todo, no Fragmento 63
a vida é tratada de um ponto de vista especulativo em sua ligação
com a totalidade, como vida finita e infinita, e isto pauta sua relação
com a filosofia e com a religião, postas a serviço dela. É enquanto
vida infinita que a filosofia reconhece a finitude e as próprias limita-
ções, ascendendo à religião. Nem por isso, porém, se coloca a relação
entre filosofia e religião nos termos de “primário” e “secundário”,
pois são igualmente necessárias, momentos necessários no todo da
vida. Citando Bourgeois, Lima define no comentário à tradução do
Fragmento 63: “O Systemfragment de Frankfurt é assim a elaboração
reflexiva, já bastante técnica, da autocrítica da reflexão filosófica, afir-
mando que só a religião, o outro da filosofia, poderia levá-la a termo,
em sua infinitude, em sua totalidade” (HEGEL, 2007, p. 121).
Portanto, nestes escritos de Frankfurt Hegel, mas começa a de-
senvolver suas concepções próprias de filosofia e religião afastando-se
do que considera como figuras limitadas e limitadoras em prol das
exigências de reconciliação e do pensamento do Todo. É por isso que,
apesar da liberdade subjetiva e individual proporcionada no amor da
religião cristã, o cristianismo primitivo ainda precisa de outras com-
plementações, e o percurso da liberdade aponta para a ideia de uni-
ficação, mostrando a necessidade do momento além do subjetivo, da
reflexão unida ao amor, para que se chegue à religião, da mesma forma
que já se superara a moral kantiana. Em linguagem especulativa a re-
ligião tem de abarcar também a filosofia, que de sua própria limitação
enquanto vida finita consegue chegar à vida infinita. Ainda que muitas

125
Rosana de Oliveira

das reflexões do jovem Hegel de Frankfurt partam e sejam resultado


de sua formação e interesse na religião, à filosofia também é con-
cedido um lugar de importância em suas demandas por unificação.

Bibliografia Básica

HEGEL, G.W.F. Werke in zwanzig Bänden. Suhrkamp, Frankfurt, 1980, vol. 1


Escritos de Juventud. México: Fondo de Cultura Econômica, 1978
L’Esprit du Christianisme et son Destin. Trad., apresentação e comentá-
rio por Franck Fischbach. Paris: Presses Pocket, 1992.
On Christianity, in Early Theological Writings. Trad. T. M. Knox. New
York: The University of Chicago, 1948.
O Espírito do cristianismo e seu destino. Excertos. Trad. Adilson
Felício Feiler. Revista opinião filosófica. Jul/Dez de 2010, n. 02, v.01, pp. 190-197
O Espírito do cristianismo e seu destino. Excertos. Trad. Adilson Felí-
cio Feiler. Revista opinião filosófica, Porto alegre, 2012, v.03; n. 01, pp. 214-226
O Espírito do cristianismo e seu destino. Excertos. Trad. Adilson Felí-
cio Feiler. Revista opinião filosófica, Porto alegre, 2013, v.04; n. 01, pp. 449-467
Fragmento de um Sistema de 1800. Trad. Erick C. De Lima, in Cader-
nos de Filosofia Alemã, nº 10, Jul-Dez 2007, p. 131-140.

Complementar
BECKENKAMP, J. O jovem Hegel. Formação de um sistema pós-kantiano. São
Paulo: Edições Loyola, 2009
KANT, l. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Ed. 70, 1986
LUKÁCS, G. Der junge Hegel. Über die Beziehung von Dialektik und Ökono-
mie. Suhrkamp: Zürich , 1973
MARCUSE, H. Razão e Revolução. São Paulo: Paz e Terra, 2004

126
Questões morais, éticas e políticas
Universalismo e particularismo na eticidade
hegeliana

José Pinheiro Pertille


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

A eticidade é um dos conceitos maiores do sistema hegeliano. O


interesse filosófico em bem determiná-lo aparece, por um lado, para
um ponto de vista intrínseco ao hegelianismo, o qual visa compreender
esse corolário da doutrina do espírito objetivo no marco das etapas
cada vez mais concretas de efetivação da vontade livre, dentro do âm-
bito maior do sistema de Hegel como um sistema da liberdade. Por ou-
tro lado, de uma perspectiva extrínseca, o interessante é compreender
o modelo ético hegeliano presente neste terceiro termo introduzido a
partir da distinção clássica entre direito e moral, configurando assim
uma alternativa própria e robusta no conjunto das posições teóricas da
filosofia prática.
Mais precisamente, a crítica de Hegel às pretensões da moralida-
de em guiar a consciência moral pela ideia do Bem na forma do dever
afasta sua concepção de eticidade de uma posição ética universalista.
Ou seja, a eticidade para Hegel não é pautada por regras, mandamen-
tos ou ideais abstratos, postos na ordem do dever-ser e não do ser. Esse
é um horizonte kantiano, de uma ética do dever, mas não corresponde
à ideia da eticidade hegeliana. Por outro lado, não se poderia concluir
que sua crítica ao universalismo moral conduza a uma posição ética
particularista, na qual a percepção moral do sujeito em determinadas
circunstâncias seria prioritária. Isto é, a eticidade para Hegel não é fun-

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 129-142, 2015.
José Pinheiro Pertille

damentada pelas decisões do ser humano prudente em uma aprecia-


ção circunstancial do que deve ser feito. Esse é um viés aristotélico,
uma ética da virtude, mas não é o viés da eticidade hegeliana.1
Em termos hegelianos, se, por um lado, contra o universalismo,
a eticidade é o Bem vivente que substitui o Bem abstrato da moralidade
através de sua expressão objetiva nas instituições da família, sociedade
civil-burguesa e Estado, a eticidade, por outro lado, contra o particu-
larismo, se apresenta para o indivíduo ético como uma doutrina de
obrigações, regras intersubjetivamente compartilhadas que constituem
a medida para a sua retidão e para a sua virtude.
Com vistas a colocação deste problema, pautado por esse duplo
interesse, intrínseco e extrínseco, examinaremos aqui um aspecto espe-
cífico de cada uma dessas dimensões:
i) analisaremos a estrutura conceitual e o processo especulativo
da eticidade, tal como apresentada no conjunto dos §§ 142 a
157 da Filosofia do Direito, os quais fornecem, por um lado, a
base para a ligação da eticidade com o direito abstrato e com
a moralidade, e, por outro lado, as condições para a passa-
gem às instâncias da família, da sociedade civil-burguesa e
do Estado, e,
ii) verificaremos a dupla Aufhebung que nesse contexto se perfaz.
Primeiramente, a Aufhebung de uma posição ética universalis-
ta, presente na negação do bem universal abstrato e formal da
moralidade, acompanhada da conservação de uma universa-
lidade concreta de regras éticas aportadas pelos costumes, tal
como apresentam os §§ 148 e 149 sobre a obrigação (Pflicht).
Em segundo lugar, a Aufhebung de uma posição particularista,
apresentada na negação do princípio da escolha moral pauta-
da pela excelência pessoal, seguida pela conservação do reco-
nhecimento da consciência de si de suas relações éticas, situa-
da na análise do § 150 acerca do conceito de virtude (Tugend).


1
Cf. Marco Zingano, “Particularismo e Universalismo na Ética Aristotélica” in Analytica, vol.
1, número 3, 1996, p. 75-100.

130
Universalismo e particularismo na eticidade hegeliana

A eticidade como ideia da


liberdade enquanto bem vivente

A abertura da definição de eticidade (Sittlichkeit), tal como costu-


ma acontecer nos parágrafos introdutórios das seções dos textos hege-
lianos, estrutura-se pelo recolhimento dos desdobramentos anteriores
necessários para sua determinação, e pela indicação do avanço que a
noção em questão representa.
Nessa direção, lemos na primeira oração do primeiro parágrafo
da seção sobre a eticidade, FD § 142, que “a eticidade é a ideia da liber-
dade enquanto bem vivente” (die Sittlichkeit ist die Idee der Freiheit, als
das lebendige Gute...).
A referência à noção de “ideia da liberdade” (Idee der Freiheit, ex-
pressão nessa frase por Hegel destacada mediante seu grifo) remete
aos fundamentos da Filosofia do Direito em sua inserção no sistema en-
quanto explicitação do “espírito objetivo”. Nesse contexto, a Filosofia
do Direito apresenta “o sistema do direito” como “o reino da liberdade
efetivada”, FD § 4. Ou seja, na Filosofia do Direito se apresentam as di-
versas etapas, em uma ordem crescente de concretude, não apenas do
conceito geral da vontade livre (corolário do espírito subjetivo), mas
desse conceito acompanhado das condições para a sua realização efeti-
va (agenda principal do espírito objetivo). Note-se que aqui está pre-
sente o sentido lógico da “ideia” como “a unidade absoluta do conceito
e da objetividade” (ECF I § 213, CL HW 6, 464), significado lógico de
ideia que já está presente em FD § 1, “a ciência filosófica do direito tem
por objeto a ideia do direito, o conceito do direito e sua efetivação”.
A eticidade é então um momento da realização objetiva da von-
tade livre, mais exatamente, o momento da totalização das etapas ante-
riores do direito abstrato e da moralidade. Na eticidade estão supras-
sumidas as determinações do direito abstrato e da moralidade, ou seja,
na eticidade as determinações dos momentos anteriores encontram-se
negadas, conservadas e elevadas. Assim como resume Gilles Marmas-
se em seu recente comentário geral à FD intitulado Força e Fragilidade
das Normas, “[e]stamos aqui [na eticidade] frente a uma série de gru-
pos organizados, nos quais os indivíduos interagem uns com os outros
obedecendo a normas gerais. Enquanto no direito abstrato se trata ape-

131
José Pinheiro Pertille

nas de indivíduos considerados em suas relações a bens apropriáveis e,


na moralidade, de indivíduos determinando subjetivamente a máxima
de sua ação, na vida ética encontramos instituições que reúnem uma
pluralidade de membros sob normas compartilhadas. Na medida em
que os indivíduos se reconhecem reciprocamente como pertencentes à
mesma unidade espiritual, a vida ética é o momento de reconciliação.
Ela constitui o “retorno a si” do espírito objetivo”.2
O conceito desse retorno a si do espírito objetivo através da etici-
dade pode ser mais precisamente demarcado em torno das noções de
“bem vivente” (lebendiges Gut) e da “disposição de espírito” (Gesinnung) da
consciência de si.
O “bem vivente” é a verdade ética do “bem abstrato” da morali-
dade. De maneira geral, na terceira seção da Moralidade dedicada ao
“bem e a consciência moral”, apresentam-se diversos tópicos impor-
tantes da filosofia prática hegeliana: a relação dialética entre os concei-
tos de bem e de consciência moral, a crítica ao formalismo kantiano e a
crítica à absolutização da subjetividade pelos românticos.
Segundo Hegel, a moral kantiana da autonomia presente no con-
ceito de consciência moral (Gewissen, FD § 136) configura uma instân-
cia radical de avaliação e justificação de tudo aquilo que se apresenta
como objetivamente válido. Este é o aspecto positivo da autonomia
da consciência moral, o qual deve ser preservado. “Somente e pela
primeira vez, graças à filosofia kantiana, o conhecimento da vontade
adquiriu o seu fundamento sólido e seu ponto de partida mediante o
pensamento da autonomia infinita da vontade” (FD § 135 Obs.). “O
princípio [presente na filosofia kantiana] da independência da razão,
de sua absoluta autonomia em si mesma, deve ser considerado de ago-
ra em diante como princípio universal da filosofia, e também como um
dos preconceitos da época” (ECF I, § 60 Obs.).
No entanto, conforme Hegel, é preciso que essa consciência mo-
ral ultrapasse o formalismo e a universalidade abstrata que a consti-
tuem, para adentrar-se nas instituições éticas objetivas da família, da
sociedade civil-burguesa e do Estado modernos. Como afirma Mar-
cos Müller na Introdução à sua tradução da terceira seção da FD: “[a]
ideia da consciência moral constitui-se como uma reflexão permanente

2
Gilles Marmasse, Force et Fragilité des Normes, Principes de la Philosophie du Droit de Hegel.
Paris: PUF, 2011. Tradução José P. Pertille.

132
Universalismo e particularismo na eticidade hegeliana

da subjetividade sobre as instituições, que atua constantemente como


o poder de legitimação e efetivação, mas também de volatização das
mesmas, na medida em que elas representam ou não as condições ob-
jetivas de realização da autonomia, isto é, da liberdade subjetiva de
todos. A intenção fundamental de Hegel na sua crítica a Kant não é a
abolição da autonomia moral do sujeito moderno, mas sua reformula-
ção especulativa, no sentido de que aquela só não permanece no for-
malismo abstrato do dever e só não afunda nas diferentes formas da
absolutização da subjetividade que culminam na ironia romântica se
ela integrar as condições econômicas, sociais e políticas da sua efetiva-
ção como implicações da própria autoreflexividade prática da liberda-
de, isto é, de uma liberdade cuja determinação e destinação essencial é
a efetivação da liberdade de todos”.3
Nesse contexto, o bem discernido pela consciência moral entre
aquilo que é um bom para um segmento particular (das Wohl) e o que é
o bom para um todo universal (das Gut) constitui o “universal substan-
cial da liberdade”. Aqui reside o direito da vontade subjetiva em reco-
nhecer como válido aquilo que ela sabe como bom para si e para todos.
Esse é o direito do indivíduo em aceitar somente o que seja submetido
ao seu livre exame segundo um critério de universalidade, frente às
normas e às instituições particulares imediatamente existentes.
No entanto, a universalidade da consciência moral é abstrata na
medida em que seu critério de discernimento do que é o bem é pura-
mente formal, residindo na capacidade da máxima de uma ação ser
representada como lei universal sem cair em contradição consigo mes-
ma. Aparentemente, essa seria uma consequência e uma vantagem do
ponto de vista da autonomia da vontade. Afinal, ao invés de uma ética
de primeira ordem que estabelece regras determinadas (fundamental-
mente heterônomas), a lógica da consciência moral institui uma ética
de segunda ordem, ou seja, não se determina a priori os deveres do su-
jeito, mas o sujeito moral decide por si mesmo a partir do imperativo
do dever que ele se dá a si mesmo (autonomia). Mesmo com sua vonta-
de patologicamente determinada pelas inclinações sensíveis, o sujeito
moral pode livremente agir de maneira racional determinando seus

3
G. W. F. Hegel – Princípios Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do
Estado em Compêndio (1820), Segunda Parte – A Moralidade, Terceira Parte – O bem e a cons-
ciência moral. Tradução Marcos L. Müller. Ideias, Campinas, I (2): 39-80, jul./dez.,1994.

133
José Pinheiro Pertille

conteúdos, desde que não contraditórios. Por exemplo, eu não devo


contrair uma dívida que sei não poder pagar, não por medo das leis
que me impedem fazer isso (legalidade), mas pela noção moral de não
me contradizer ao me valer de um recurso que estarei colaborando
para destruí-lo (moralidade).

“A liberdade da escolha é essa independência de ser determina-


do por impulsos sensíveis. Este é o conceito negativo de liberda-
de. O conceito positivo de liberdade é aquele da capacidade da
razão pura de ser, por si mesma, prática. Mas isto não é possível,
salvo pela sujeição da máxima de toda ação à condição de sua
qualificação como lei universal, uma vez que, como razão pura
aplicada à escolha independentemente de seus objetos, não contém
em si a matéria da lei; assim, como uma faculdade de princípios
(aqui princípios práticos, daí uma faculdade legisladora), nada
mais pode fazer, exceto erigir em lei suprema e em fundamen-
to determinante da escolha, a forma da aptidão das máximas da
própria escolha como sendo lei universal.” Kant, Metafísica dos
Costumes, Introdução (grifos JPP).

Ora, para Hegel, essa noção formal é abstrata na medida em que


não pagar o empréstimo não implica necessariamente uma contradição
da vontade, mas uma negação do princípio da propriedade privada, o
qual pode ser querido ou não pela vontade (FD § 135 Obs.). A contradição
não está na vontade, mas no princípio formal que dispensa e ao mesmo
tempo depende do conteúdo. Por sua vez, a radicalidade do argumento
de Hegel não conduz a uma forma de relativismo, pois sua crítica ao
universalismo formal da consciência moral não reside no particularismo
das vontades. O que se impõe é um outro tipo de universalidade, não
derivado de uma racionalidade transcendental, que se mostrou abstrata,
mas um universalismo que se expressa na objetividade do espírito, isto
é, na história e na cultura. Frente ao universal abstrato importa a Hegel
determinar o universal concreto. Ao invés de uma metafísica racional dos
costumes, Hegel propõe a perspectiva dos modos de efetivação da razão
nos costumes. Daqui surge o bem vivente como o conjunto das determi-
nações objetivas presentes no mundo que servem de referenciais para os
indivíduos em suas relações nas instituições éticas.4

4
Cf. André Stanguennec, Hegel, critique de Kant Paris: PUF, 1985, especialmente a terceira par-
te sobre a filosofia prática, capítulo 1: Les fondements de la philosophie pratique: morale et
droit chez Kant et Hegel, p. 187-193.

134
Universalismo e particularismo na eticidade hegeliana

Como atesta FD § 141, onde se apresenta a transição da mora-


lidade para a eticidade, “para o bem, [entendido] como o universal
substancial da liberdade, mas ainda abstrato, determinações em geral
são exigidas, assim como para o princípio dessas determinações en-
quanto idêntico ao bem; da mesma maneira, para a consciência moral,
princípio somente abstrato do ato de determinar, a universalidade e a
objetividade de suas determinações são exigidas”.

A efetividade do bem vivente pela consciência de si

Em complemento a esse aspecto substancial da liberdade apresen-


tado pelo bem vivente, emerge como fator incontornável a dimensão
da liberdade individual, através da consciência de si que confere efeti-
vidade a esse Bem vivente através de seu saber, seu querer e seu agir.
Assim, da dialética entre o bem e a consciência moral considerados na
abstração da moralidade se passa à dialética entre o bem vivente obje-
tivo e a consciência de si subjetiva na concretude da eticidade.
Nos termos de FD § 142: “A eticidade é a ideia da liberdade enquan-
to bem vivente que tem na consciência-de-si o seu saber e o seu que-
rer. Graças ao agir dessa consciência-de-si, o bem vivente adquire sua
efetividade. Da mesma maneira, a consciência-de-si tem no ser ético
seu fundamento e seu fim motor em si e para si. A eticidade é o conceito
da liberdade que veio a ser mundo presente e natureza da consciência-de-si.”
Nesse contexto da eticidade, o bem vivente e a consciência de
si formam uma unidade diferenciada em si mesma, ao modo de uma
circularidade entre a subjetividade que põe a objetividade e a objeti-
vidade que serve de parâmetro para a subjetividade. Não que estes
aspectos objetivos e subjetivos estejam ausentes dos desdobramentos
anteriores do espírito objetivo. A eticidade não é uma simples síntese
da objetividade do direito abstrato e da subjetividade da moralidade.
No direito abstrato já temos presente os dois elementos da objetivida-
de e da subjetividade, ao modo da expressão da vontade sobre objetos
(momento da objetividade) por parte de uma personalidade jurídica
(momento da subjetividade). Da mesma maneira, na moralidade, a
consciência-moral (instância da subjetividade) compromete-se por seu
caráter prático com a efetivação de suas determinações na realidade
(instância da objetividade).

135
José Pinheiro Pertille

O que temos de novo na eticidade é a instituição de uma circula-


ridade constitutiva entre esses aspectos, tanto do ponto de vista do ser
ético que contém imediatamente em si as dimensões da objetividade
e da subjetividade, quanto do ponto de vista do saber ético que pode
para si tratar distintamente os diferentes aspectos da eticidade ao modo
de uma unidade diferenciada dentro de si mesma. Como afirma o §
143, a unidade que a eticidade apresenta entre o conceito da vontade
e seu ser-aí, ou seja, entre o conceito e a realização da vontade livre,
está presente em cada vontade particular. Assim, o ser dessa unidade,
do ponto de vista da vontade particular, é o saber dessa unidade. É do
ponto de vista do saber do ético que a exposição continua.
Note-se que essa perspectiva de uma unidade autodiferenciada
da eticidade, conteúdo do § 143, retoma o mesmo modo de abordagem
do manuscrito Sistema da Vida Ética. Aqui, Hegel afirma que do ponto
de vista “ontológico” do absoluto e da ideia, a intuição particular e
o conceito universal referentes à eticidade são iguais entre si. Porém,
de um ponto de vista “epistemológico”, para que essa identidade seja
conhecida, é preciso partir da diferença que é posta entre intuição e
conceito pelas apreensões do ético feitas na antiguidade e na filosofia
moderna para então formar a verdadeira identidade, não imediata-
mente dada, mas a partir da diferença. Nas palavras de Hegel, “para
conhecer a ideia da vida ética absoluta é preciso que a intuição seja
tornada perfeitamente adequada ao conceito, pois a ideia é justamente
a identidade dos dois” (SVE 415).
Após essas definições gerais, aparecem então no texto duas di-
visões sem títulos, indicadas pelas letras alfa (§§ 144 – 145) e beta (§§
146 – 157), e que nos apresentam “o círculo da necessidade ética” (ex-
pressão utilizada nos § 145 e § 148 Obs.). A saber, as determinações
mais precisas da relação circular entre a objetividade da substância ética
e a subjetividade da consciência de si posta na eticidade, antes de suas
instanciações históricas nas ordens da eticidade moderna: a família, a
sociedade civil-burguesa e o Estado. Essa relação é circular no sentido
de ser o círculo a linha perfeita, sem começo e sem fim, no qual se pode
tanto seguir na direção da objetividade para a subjetividade quanto
na direção da subjetividade para a objetividade, a partir de qualquer
ponto desse círculo.

136
Universalismo e particularismo na eticidade hegeliana

Na ordem do saber dessa circularidade ética, primeiramente, os


aspectos mais objetivos da eticidade aparecem, a partir do bem vivente
e do ser ético, ao modo mais determinado de uma substância concreta
que se apresenta nas leis e nas instituições formando as “forças éticas
que regem a vida dos indivíduos” (§§ 144-145). Em segundo lugar, os
aspectos mais subjetivos da eticidade são dispostos em uma ordem
crescente de identificação da vontade particular com a vontade uni-
versal: é onde aparecem as determinações da segunda natureza, da
confiança ética, da obrigação, da virtude e do costume (§§ 146-151).
Não seria inapropriado identificar um terceiro grupo de considerações
abrangendo os §§ 152 a 156, os quais tratam da relação mais precisa
que nos costumes se faz entre a subjetividade e a substância éticas, mas
essa terceira divisão de fato não aparece no texto.
Neste contexto, à luz da questão sobre a relação entre univer-
salismo e particularismo na eticidade hegeliana, vejamos os casos da
Obrigação e da Virtude.

Obrigação (§§ 148, 149)

A obrigação ética suprassume o dever moral, mantendo a perspec-


tiva universalista frente ao que é subjetivo e indeterminado, mas ne-
gando o formalismo do dever ao incorporar determinações substan-
ciais enquanto expressões do universal concreto (§ 148). Dito de outro
modo, o dever moral, ao dar uma volta no círculo da necessidade ética,
e assim passando pelo reconhecimento de seus inevitáveis conteúdos,
retorna ao seu ponto como obrigação ética.
A obrigação ética se movimenta entre dois escolhos. De uma
parte, “a doutrina das obrigações éticas não deve ser apreendida no
princípio vazio da subjetividade moral, pois esse nada determina”. O
princípio vazio da moralidade aparece no aspecto formal do dever,
enquanto fonte de uma normatividade universal, porém abstrata. Em
sentido inverso, na pluralidade das obrigações éticas “não se acrescen-
ta a cada uma delas o apêndice: essa determinação é uma obrigação
para o homem”. As obrigações éticas estão sempre localizadas em um
determinado contexto ético.

137
José Pinheiro Pertille

De outra parte, a doutrina das obrigações éticas não deve ser


considerada fora da ciência filosófica, pois assim seus conteúdos ge-
rais aparecem misturados com a opinião e o bem-estar particular.
Nesse caso perde-se a necessidade das obrigações, recaindo-se em um
relativismo que desconsidera a formação da cultura universal. Nesse
quadro mais amplo da trajetória do espírito ao longo da história apare-
cem determinados padrões de racionalidade que servem de parâmetro
para as obrigações, ou seja, para as regras que configuram os papeis
sociais dos indivíduos.
Nesse sentido, então, as obrigações não são exatamente limitan-
tes da vontade, a não ser para uma subjetividade indeterminada, para
uma vontade natural ou para uma liberdade abstrata. As obrigações
representam uma oportunidade para o indivíduo libertar-se da depen-
dência do impulso natural e do abatimento de uma particularidade
subjetiva que permanece dentro de si e não logra sua efetivação. “Na
obrigação, o indivíduo liberta-se para a liberdade substancial”. Hegel
com isso recupera, como etapa de um processo, o valor ético das regras
de primeira ordem, isto é, o papel formador dos mandamentos.

Virtude (§ 150)

A virtude é o ético se refletindo no caráter individual. A virtude


pode ser entendida de duas maneiras: enquanto conformidade do in-
divíduo que reconhece as obrigações referentes às relações a que per-
tence, e assim ela é mais propriamente retidão, ou enquanto excelência
pessoal em uma situação de indefinição ética, assim como nos Estados
antigos, onde a eticidade não se desenvolvera em um livre sistema de
desenvolvimento autônomo. Fora dessas duas situações, o discurso
sobre a virtude corre o risco de passar por uma declamação vazia, um
moralismo, expressando o arbítrio individual e o bel-prazer subjetivo.
A virtude ética suprassume a virtude moral particularista. O que
é preciso que o indivíduo faça, quais obrigações deve cumprir para
ser virtuoso, transparece na rede de relações de uma comunidade éti-
ca estável. Aqui não está implicado o puro particularismo do agente
moral, mas a universalidade concreta da comunidade ética a qual ele
pertence, universalidade reconhecida pela particularidade. No círculo

138
Universalismo e particularismo na eticidade hegeliana

da necessidade ética, as obrigações objetivas remetem à virtude subje-


tiva da probidade.
Antecipando a temática do § 268 referente aos dois tipos da dis-
posição de espírito política, colocados nos termos do patriotismo das
ações extraordinárias e do patriotismo cotidiano, a discussão sobre a
virtude remete a duas formas de virtude, a virtude dos comportamen-
tos ordinários e a virtude das decisões extraordinárias. Ou seja, por um
lado apresentam-se os parâmetros tangíveis dos valores praticados nas
comunidades éticas que apresentam um adequado desenvolvimento
das autoconsciências que se reconhecem nas suas instituições. Por outro
lado, na ausência sistêmica desses parâmetros, a virtude como tal reside
nas decisões da particularidade que vão ao encontro da universalidade.
Ora, no entanto, isso não implica que não existam “hard cases”
para as consciências em uma situação ética definida. A questão, segun-
do Hegel, é diferenciar os falsos dos verdadeiros conflitos, na medida
em que uma reflexão abstrata por parte de uma moralidade pode in-
ventar conflitos para valorizar sua particularidade e postular sacrifí-
cios a serem feitos. Isso implica em uma forma de má consciência, sur-
gida nessa decalagem entre a virtude em sentido concretamente ético
e em um sentido abstratamente moral.

O círculo (dinâmico) da necessidade ética


A guisa de conclusão, aplicaremos o princípio do círculo da neces-
sidade ética acima exposto à questão acerca do gênero de institucionalis-
mo hegeliano, forte ou moderado, nos termos da discussão travada entre
J.-F. Kervégan e D. Henrich.5 A ideia é mostrar que em se reconstituindo
a noção hegeliana do círculo da necessidade ética como um círculo em
movimento, que conduz da objetividade à subjetividade e da subjetivi-
dade à objetividade, é possível ultrapassar a questão da força maior ou
menor do institucionalismo hegeliano. Além disso, indica-se finalmente
qual seria o próximo desdobramento dessa questão.
Conforme Henrich, a partir de sua Introdução ao manuscrito
anônimo do curso de 1819-1820 da Filosofia do Direito, a doutrina de-
fendida por Hegel na Filosofia do Direito pode ser definida como um

5
J.-F. Kervégan, “Le ‘droit du monde’. Sujets, normes et institutions” in Hegel Penseur du Droit,
J.-F. Kervégan, G. Marmasse (orgs.). Paris, CNRS Éditions, 2004, p. 31-46.

139
José Pinheiro Pertille

“institucionalismo”. Institucionalista é uma teoria do direito fundada


sobre o princípio da vontade autônoma individual que prevê uma “or-
dem de vida” na qual aquele princípio se realiza. Nesse contexto, a
teoria de Hegel seria a de um institucionalismo forte. Ela ensina que a
liberdade da vontade individual somente pode se realizar em uma or-
dem objetiva que tem ela mesma a forma da vontade racional, e assim
inclui inteiramente em si a vontade individual e a subsume em suas
próprias condições, mesmo que isso se faça sem alienação. “A vontade
individual, por Hegel chamada de “subjetiva”, é inteiramente absorvi-
da na ordem das instituições e é somente nelas justificada”.
Segundo Kervégan, o institucionalismo moderado hegeliano se
faz ver na definição do espírito objetivo como bem vivente, no qual se
apresentam três elementos. Primeiramente, o bem vivente assegura
uma forma de atualização da normatividade prática (moral). A ideia
da liberdade recebe com o bem vivente uma efetividade que ela não
teria por si mesma, e o bem abstrato ao qual se refere a subjetivida-
de moral torna-se vivo, pois encarnado em práticas e representações
comunitárias. Em segundo lugar, o espírito objetivo repousa sobre
uma interação complexa entre a universalidade objetiva (o ser ético,
a substância ética) e a subjetividade singular (a consciência de si dos
indivíduos); a primeira é a base da segunda, e a segunda é o princí-
pio de atualização da primeira. Em terceiro lugar, o espírito objetivo
supera a cisão aparentemente originária do sujeito e do mundo; ele
é um “mundo” que se impõe como algo imediato (ele é vorhanden,
presente sob o modo da evidência), mas também é um mundo de
intersubjetividade, um mundo no qual a subjetividade se constitui
praticamente sob uma dupla relação, relação com outras subjetivida-
des (com as quais ela está engajada em um jogo complexo de reco-
nhecimento) e relação com este “dado” que está sempre aí, mas que,
no entanto, não é senão pela(s) subjetividade(s).
Assim, por um lado, o elemento ético objetivo, o mundo social, é
como um círculo da necessidade, que tem sobre os indivíduos e sobre
suas representações de si, dos outros e de seu meio de vida “uma au-
toridade e uma potência absolutas”. De outro lado, no entanto, estas
potências objetivas “não são estrangeiras ao sujeito”, pois elas garan-
tem “o direito do individuo à sua particularidade”, ou seja, instituem

140
Universalismo e particularismo na eticidade hegeliana

a individualidade. Ocorre então uma constituição recíproca entre o eu


e o mundo, decorrente do processo de receber uma realidade, com-
preendê-la em sua razão de ser, e modificá-la ou conservá-la em suas
estruturas e em suas particularidades.
Ora, esse movimento do círculo da necessidade ética apenas
reflete suas determinações lógicas e reais. A determinação lógica está
exposta em FD § 145: “O fato de que o ético seja o sistema das deter-
minações da ideia constitui sua racionalidade”. A racionalidade aqui
envolvida consiste no duplo movimento de diluição dialética das de-
terminações fixadas pelo entendimento e de engendramento especu-
lativo de novos sentidos, tal como estabelecida em ECF §§ 79-82 que
expõe as faculdades discursivas do entendimento, da razão dialética
ou negativa e da razão positiva ou especulativa.
Por sua vez, a determinação real pertence à realidade efetiva do
espírito objetivo em sua conjunção com o espírito subjetivo e com o
espírito absoluto, que remete a eticidade à sua historicidade, ao modo
de um perspectivismo, Ou seja, o conceito de eticidade exige sua co-
locação na perspectiva de uma época, de modo a considerar seus ele-
mentos universais (tal como a mútua constituição entre indivíduo e so-
ciedade, presente em qualquer contexto ético) em conjunção com seus
aspectos particulares (como a maior ou menor força das instituições ou
da individualidade, a partir da relação entre essas forças tal como ela
se apresenta naquele contexto ético).
Portanto, a força ou a moderação das forças éticas, assim como a
força ou a moderação da individualidade não podem ser estabelecidas
a priori, independentemente do contexto ético no qual elas se colocam.
Deste fato, uma eticidade mais individualista enseja por parte dos in-
divíduos uma demanda maior por um reconhecimento institucional,
assim como uma eticidade mais substancialista provoca uma demanda
maior pela liberdade individual. Essa é a conclusão do silogismo do es-
pírito objetivo, posto em seu processo lógico de desenvolvimento entre
a subjetividade e a objetividade, e a particularidade e a universalidade.
Conforme afirma D. Rosenfield, nem toda realidade substancial
é livre. “A substância ética, em movimento de atualização de si, está
exposta aos perigos decorrentes da coisificação, que pode ocorrer em
qualquer realidade, podendo fixar-se a qualquer momento sob o peso

141
José Pinheiro Pertille

de uma positividade histórica determinada”.6 Assim, a resposta acerca


da discussão do gênero do insitucionalismo hegeliano não pode ser
buscada por um ponto de vista abstratamente universalista, transcen-
dental, como no conceito de um contrato social. Tampouco se trata de
uma afirmação particularista, expressando a mera vontade subjetiva
dos indivíduos, mas expressa uma demanda de equilíbrio ético, resul-
tado de uma dinâmica entre diferentes forças.
Após essa determinação da dinâmica do círculo da necessidade
ética, na qual se apresentam as condições lógicas e reais para a efetivação
da liberdade individual e coletiva, restaria passar às suas determinações
éticas mais precisas. Isto é, tratar-se-ia de estabelecer as relações entre
particularidade e universalidade na família, na sociedade civil burgue-
sa e no Estado. Como aparece em FD § 181, na passagem da família à
sociedade civil-burguesa, nessa transição, “a determinação da particu-
laridade de fato se vincula com a universalidade, de modo que essa é seu
fundamento, mas ainda apenas interior, e por causa disso é de maneira
formal, aparecendo apenas no particular.” Assim, da discussão sobre os
conceitos de universalismo e particularismo na eticidade hegeliana se
passa ao problema dos princípios da particularidade e da universalida-
de no seio da eticidade moderna, o que coloca em questão a sociedade
civil-burguesa como o sistema da eticidade perdido nesses dois extre-
mos da particularidade e da universalidade (FD § 184). Essa passagem
também exige uma precisão maior de seu sentido lógico, tanto no exa-
me das categorias da lógica da essência ali presentes (Aparência e Fe-
nômeno), quanto na determinação das categorias da lógica do conceito,
presente nas diversas disposições entre universalidade, particularidade
e singularidade no Silogismo, considerado como ponto de chegada de
todas as dialéticas da subjetividade e ponto de passagem em direção à
determinação do conceito em sua objetividade (CL, Doutrina do concei-
to, primeira seção, terceiro capítulo; ECF §§ 181-193).


6
Denis Rosenfield, Política e Liberdade em Hegel. SP: Brasiliense, 1983, p. 137.

142
Práticas Compartilhadas e Justificação de
Normas: revisitando a discussão de Hegel
acerca da “suspensão” da moralidade
na eticidade
Erick Lima
Universidade de Brasília

Pretendo aqui fazer comentários gerais ligados ao tema Hegelia-


no da “suspensão” da moralidade na eticidade. Vou avançar em três
estágios. Primeiro, vou defender, a partir da Introdução à Filosofia do
Direito, uma interpretação do conceito de liberdade como sustentando
uma ligação intrínseca entre práticas compartilhadas e uma justifica-
ção autônoma de normas (1). Em seguida, gostaria de indicar como tal
imbricação, que se insinua na interpretação dialética da noção de auto-
determinação, constitui a ideia Hegeliana de direito (Recht) (2). Final-
mente, procuro retomar, a partir dos pontos anteriores, os principais
elementos da argumentação em torno da “suspensão” da moralidade
na eticidade (3).

1. Modernidade e Liberdade

Hegel entende que o desafio a ser enfrentado por seu esforço fi-
losófico consiste em corresponder à dinâmica da própria modernida-
de com uma teoria acerca de seu principal emblema: a liberdade, mas
pensada em suas dimensões subjetiva e objetiva, normativa e institu-
cional. A tese mais geral defendida por Hegel consiste em sustentar
que a modernidade não compreende apropriadamente sua principal
reivindicação, mesmo quando, tal como em Rousseau, Kant e Fichte, a

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 143-160, 2015.
Erick Lima

liberdade é entendida como autodeterminação. Como mostram os tex-


tos de Frankfurt e Jena, o desenvolvimento deste programa conduziu à
necessidade de equipar a compreensão subjetivista da liberdade como
autodeterminação com um componente objetivista, institucional e subs-
tancialista, correspondente às práticas pelas quais se pode dar a institu-
cionalização dos processos modernos de justificação. Hegel empreende
esta sofisticada síntese recorrendo a pensadores como Platão, Aristóteles
e Montesquieu. Sem comprometer o alcance da concepção moderna de
justificação, pensada a partir da categoria de autodeterminação, torna-se
possível pensar a normatividade moderna do ponto de vista dos proces-
sos institucionais constitutivos de formas de vida1, ou seja, a visualiza-
ção da forma como processos especificamente modernos de legitimação
se encontram ou podem se encontrar inseridos nas práticas modernas.
Ao pensar, em sua complementaridade, os processos de justificação e
sua concretização em práticas, Hegel tenciona explicitar, assim, o pró-
prio sentido em que a liberdade como autodeterminação pode ser a re-
alização moderna da liberdade. Finalmente, boa parte dessa intenção
teórica se acha consolidada na noção de reconhecimento.
Hegel orienta sua reflexão introdutória acerca da liberdade na
Filosofia do Direito de maneira a evitar a submissão da dinâmica da au-
todeterminação a uma frenagem que confunde a liberdade com uma
propriedade de um sujeito idêntico a si mesmo, a vontade. Segundo
“esse antigo modo de proceder do conhecimento”, pressupõe-se “a re-
presentação (Vorstellung) da vontade e se tentava extrair daquela uma
definição da vontade fixando-a” (HEGEL, 1970, 7, 47). Afastando-se
disso, para Hegel, “a dedução (Deduktion) de que a vontade é livre e do
que seja a vontade e a liberdade pode ocorrer exclusivamente ... na co-
nexão do todo (im Zusammenhange des Ganzen)” (HEGEL, 1970, 7, 47)2.
Nos formidáveis e muito comentados §§ 5-7, fica claro o que podería-


1
Trata-se da “racionalidade objetiva da ordem social, a ordem que incorpora a pretensão a
autoridade normativa de uma maneira consistente com a única origem possível de tal auto-
ridade: agentes livres, racionalmente autodeterminantes em relações inevitáveis de reconhe-
cimento recíproco.” (PIPPIN, 2008, 236)

2
Sobretudo pelas relações com os desenvolvimentos da Ciência da Lógica e a interpretação da
vontade livre no momento da singularidade como sendo “o próprio conceito” (der Begriff
selbst), que permanece para o entendimento, a fixação da identidade, o “inconcebível” (das
Unbegreifliche) (HEGEL, 1970, 7, 54), o “incompreensível”( Unfaßbares) (HEGEL, 1970, 10,
226) e o “indizível” (das Unsagbare) (HEGEL, 1970, 8, 70).

144
Práticas Compartilhadas e Justificação de Normas: revisitando a discussão de
Hegel acerca da “suspensão” da moralidade na eticidade

mos chamar de frenagem da dinâmica da autodeterminação. Hegel é


levado a estilhaçar a compreensão tradicional da liberdade da vontade
como capacidade manifestada por um sujeito idêntico a si mesmo: ao
contrário, “a liberdade da vontade ... constitui o conceito ou a substan-
cialidade da vontade” (HEGEL, 1970, 7, 54)
Em vista da tese de Hegel de que o “conceito concreto de liberda-
de” (HEGEL, 1970, 7, 55), aquele em que se faz jus à dinâmica da auto-
determinação sem “reificar” a vontade, é o fundamento dos momentos
abstratos e unilaterais, entende-se melhor como a filosofia prática tra-
dicional possa ter privilegiado a concepção da liberdade da vontade
como arbítrio (HEGEL, 1970, 7, 64). “O arbítrio ... é a vontade como
contradição” (HEGEL, 1970, 7, 65), o paradoxo de um conteúdo con-
tingente, mas necessário. Eis por que, em vista da separação estanque
entre forma e conteúdo, subjetividade e objetividade, indeterminação
e determinação, Hegel associa o arbítrio a uma posição dogmática,
centrada numa autodeterminação puramente subjetiva, que sucumbe
com rara facilidade às investidas do determinismo (HEGEL, 1970, 7,
65), bem como também ao dogmatismo empirista que compreende o
conteúdo como “algo previamente encontrado” (HEGEL, 1970, 7, 65).
O arbítrio (Willkür), que implica na “indeterminidade do eu e na de-
terminidade de um conteúdo” (HEGEL, 1970, 7, 66), não apenas é a
compreensão “mais usual que se tem a respeito da liberdade” (HE-
GEL, 1970, 7, 65), mas, por isso mesmo, a liberdade da vontade em sua
inverdade, “na qual não se encontra nenhum pressentimento do que
seja vontade livre em si e para si, o direito e a eticidade” (HEGEL, 1970,
7, 65). Isso ocorre, sugere Hegel, porque, “se eu quero o que é racional,
não ajo enquanto indivíduo particular, mas, sim, segundo os conceitos
de uma eticidade em geral: numa ação ética faço valer não a mim mes-
mo, mas a Coisa ... O racional é a estrada principal, na qual cada um
anda, na qual ninguém se distingue.” (HEGEL, 1970, 7, 66) Por não ser
capaz de penetrar nas minúcias de uma autodeterminação imanente
sempre em jogo na eticidade em geral, em mundos da vida concretos
(PIPPIN, 2008, 262), a liberdade da vontade como arbítrio condensa,
em termos de conceitos práticos, a má infinitude (HEGEL, 1970, 7, 67),
eternamente insatisfeita com a simples finitude da determinação, com
seu caráter por princípio inapropriado à pureza da forma, má infinitu-

145
Erick Lima

de esta que desencadeia, mormente numa modernidade induzida aos


processos de autocertificação e autojustificação, a alternância tediosa
das adesões a práticas, um processo no qual afeta estruturalmente o
sentido ético, institucional e compartilhado das ações.
Isso serve de preâmbulo a uma tematização da interpretação dia-
lética da autodeterminação, tema do célebre §7, intrepretação relacio-
nada à ideia de que a filosofia especulativa ousa “apreender a negativi-
dade imanente no universal e no idêntico, como no eu”, e que, por causa
disso, torna-se capaz de apreender “o dualismo da infinitude e da finitude
... na imanência e na abstração.” (HEGEL, 1970, 7, 52). Segundo essa
interpretação, a autodeterminação da vontade, quando compreendida
coerentemente, é, enquanto unidade dialética da indeterminação e da
determinidade, o conceito como singularidade mediada consigo e em
si mesma e, sendo assim, “o concreto e verdadeiro (e todo verdadeiro é
concreto) é a universalidade que tem o particular por oposto, mas um
particular que pela sua reflexão dentro de si igualou-se ao universal”
(HEGEL, 1970, 7, 54). Segundo este “conceito concreto de liberdade”
(HEGEL, 1970, 7, 56), diz Hegel, “a liberdade não reside ... nem na
indeterminidade, nem na determinidade, senão que ela é ambas” (HE-
GEL, 1970, 7, 56).
A partir disso, creio poder depreender uma imbricação entre justi-
ficação e práticas compartilhadas constitutiva do conceito chave de von-
tade livre em si e para si, desenvolvida nos §§ 21-24, a universalidade
que, enquanto forma infinita, tem-se a si mesma como objeto e fim e
que constitui, como diz Hegel, “o princípio do direito, da moralidade e
de toda a eticidade” (HEGEL, 1970, 7, 71). Interessa-me aqui sobretudo
aquilo que nesse contexto pode render uma interpretação mais ético-po-
lítica da má infinitude como aporia resultante da concepção insuficiente
que a modernidade tem de seu próprio emblema: a liberdade.
A vontade livre em si e para si é, diz Hegel, verdadeiramente
infinita e, na verdade, o infinito atual, efetivamente infinita, já que “o
ser-aí do conceito, ou sua exterioridade objetual, é o interior ele mes-
mo.” (HEGEL, 1970, 7, 73) Por outro lado, a modernidade sistematica-
mente retém (HEGEL, 1970, 7, 73) essa dinâmica, essa fluidez estabe-
lecida pela imbricação entre a infinitude e a finitude, entre o ser-aí e
o conceito. O resultado disso é a fixação numa concepção de infinitu-

146
Práticas Compartilhadas e Justificação de Normas: revisitando a discussão de
Hegel acerca da “suspensão” da moralidade na eticidade

de meramente potencial, incapaz de acessar a relação imanente entre


finito e infinito, pensada numa compreensão do infinitum actu, uma
“infinitude meramente negativa e ruim, a qual não tem, assim como
a verdadeira [infinitude], o retorno adentro de si mesma. A vontade
livre é verdadeiramente infinita, pois ela não é meramente uma possi-
bilidade e disposição, mas antes seu ser-aí exterior é sua interioridade,
ela mesma.” (HEGEL, 1970, 7, 73) Mas como interpretar o sentido éti-
co-político e societário da má infinitude? Do ponto de vista relevante a
uma teoria da sociedade moderna, a má infinitude é resultante de uma
hipertrofia da dimensão puramente subjetiva da liberdade e, como em
Kant, Rousseau e Fichte, da autodeterminação. Trata-se, portanto, da
formulação “lógica” do desapreço por práticas institucionalizadas de-
terminadas, bem como uma tendência à afirmação radical de liberdade
na figura da singularidade excludente.
Por outro lado, a vontade livre em si e para si, célula-tronco da
filosofia Hegeliana do direito, é a tentativa de vencer, do ponto de vista
de uma filosofia política, de uma filosofia social e de uma teoria da jus-
tiça, essa unilateralidade, conduzindo à apreensão da imbricação entre
as práticas compartilhadas e institucionalizadas, por um lado, e a forma
paradigmática dos processos modernos de justificação e legitimação.
Este itinerário retoma o desenvolvimento intelectual de Hegel,
no qual noções da filosofia prática ocidental são assimiladas critica-
mente e combinadas numa teoria abrangente da atualização prático-
-institucional da dinâmica moderna da justificação de normas, emba-
sada na noção de autodeterminação. A minha tese consiste em que esse
projeto, que pode ser descrito como tentativa de visualizar a dinâmica
social especificamente moderna em termos de uma complementarida-
de entre autodeterminação e atualização, é o constituinte fundamental
da noção incomum que Hegel tem do Direito.

2. A amplitude do conceito de direito

Hegel diz que a “ciência do Direito é uma parte da Filosofia. Por


isso, [como ciência] ela tem de, a partir do conceito, desenvolver a ideia,
enquanto esta é a razão de um ob-jeto, ou, o que é o mesmo, ela tem
de dirigir o seu olhar ao próprio desenvolvimento imanente da coisa
mesma.” (HEGEL, 1970, 7, 30)

147
Erick Lima

Aplicando, por assim dizer, este programa ao problema, discuti-


do logo em seguida, da distinção entre natural e positivo, Hegel parece
defender que a justificação racional e a explicação histórica tem de ser
diferenciadas enfaticamente, mas que não se pode perder sua cone-
xão intrínseca, sua imbricação e, por conseguinte, não se pode deixar
de apontar os potenciais de práticas concretas e compartilhadas para
desenvolver padrões de justificação de normas que sejam condizentes
com a noção de autodeterminação. O resultado direto desse programa
é a ideia de que os processos tipicamente modernos de legitimação
necessitam ser ancorados e sustentados em práticas e instituições que
favoreçam seu desencadeamento. Por outro lado, sua premissa funda-
mental consiste em que, para não sucumbir às decorrências da má infi-
nitude, os dois momentos têm de estar interligados, pensados em sua
unidade contraditória, o que implica assumir o caráter em si racional
dos quadros institucionais modernos, uma concepção de racionalida-
de objetiva que, compatível com a ideia de graus de justificação, seja
capaz de explicar como pode desenvolver sobre si mesma a coerção do
processo de autodeterminação.
Hegel discute, sobretudo nos §§ 25-28 o conceito de direito em
seus componentes subjetivo e objetivo. Interessa-me reter o sentido
de tal ideia mais relevante para a teoria Hegeliana de normatividade.
Antes já havia sugerido que a filosofia tem a ver sobretudo com a in-
dicação da unilaterialidade e inverdade de “meros conceitos” (bloße
Begriffe), ou seja, com a crítica de compreensões da realidade a que
comumente se recorre, mas que são incapazes de pensar seu próprio
lastro institucional. O que mais interessa à filosofia, desvencilhando-se
dos meros construtos do entendimento, é mostrar que “é o conceito ... o
que unicamente tem efetividade e que a tem de modo tal, que ele mes-
mo se dá esta efetividade” (HEGEL, 1970, 7, 29), isto é, desenvolver a
teoria da normatividade conceitual capaz de abranger o pensamento
de sua própria efetividade: apenas uma teoria da normatividade capaz
de corresponder ao desiderato por uma apreensão de sua institucio-
nalidade faz jus ao emblema mais sofisticado da modernidade, isto é,
a liberdade como autodeterminação, como racionalidade que dá a si
mesma seu conteúdo. “A configuração (Gestaltung) que o conceito se dá
na sua efetivação é, para o conhecimento do próprio conceito, o outro
momento essencial da ideia, diferente da forma de ser somente concei-
to.” (HEGEL, 1970, 7, 29) Hegel tenciona explicitar o escopo de uma te-

148
Práticas Compartilhadas e Justificação de Normas: revisitando a discussão de
Hegel acerca da “suspensão” da moralidade na eticidade

oria da normatividade racional que, do ponto de vista da filosofia prá-


tica, seja capaz de corresponder às mais profundas exigências postas
pela modernidade no sentido de uma compreensão da interpenetração
dos processos de justificação e do quadro institucional3.
Trata-se, a um só tempo, da compreensão da dimensão institu-
cional, efetiva, objetiva, assim como também da dimensão subjetiva,
aquela dimensão da justificação, da validade, à qual se referem Rous-
seau e Kant como sendo digna de uma semântica específica (BRAN-
DOM, 2002, 234) e, do ponto de vista dos processos históricos pelos
quais a modernidade se impôs, omniabrangente, isto é, capaz de se
insinuar na compreensão das diversas práticas institucionalizadas e
compartilhadas. Veremos abaixo que nisso reside a ambiguidade da
relação entre Hegel e o sofisticado esforço rousseauísta-kantiano. Por
um lado, o subjetivismo dessa concepção de autodeterminação a re-
vela como mero conceito e, por isso, como unilateral; por outro lado,
por pensar o componente institucional como intrinsecamente atrelado
à normatividade conceitual, Hegel faz jus, de maneira radical, à pró-
pria noção de autodeterminação: “a ideia do Direito é a liberdade, e
para ser verdadeiramente apreendida, ela tem de ser conhecida no seu
conceito e no seu ser-aí.” (HEGEL, 1970, 7, 29)
O ponto de partida é, portanto, para Hegel, uma interpretação
da síntese que ele pensa ter sido proposta por Montesquieu do natu-
ral e do positivo como constitutiva de sua noção de espírito. “O solo
do Direito é, em geral, o [elemento] espiritual” (HEGEL, 1970, 7, 45)
Este entrelaçamento, consitutivo do espírito, é o ambiente no qual o
direito, em sua acepção especificamente Hegeliana, terá seu desenvol-
vimento imanente. Este ambiente é dinamizado pela assimilação do
desenvolvimento teórico moderno nos processos de legitimação: “seu
[do Direito] lugar mais preciso e o seu ponto de partida [é] a vontade
que é livre” (HEGEL, 1970, 7, 45). Os §§ 5, 6 e 7 mostrarão como Hegel
pretende fazer isso, ou seja, a partir do argumento de que o conceito
rousseauísta-kantiano de autodeterminação conduz, caso seja compre-
endido de forma consistente, à tese especulativa de que “a liberdade
constitui a sua substância e a sua destinação” (HEGEL, 1970, 7, 45)


3
Hegel deseja que sua ciência filosófica do direito possa ultrapassar, de forma imanente, a
visada propiciada pelo entendimento acerca da explicação histórica, alcançando, a partir da
tessitura prático-normativa do quadro institucional, “o significado de uma justificação válida
em si e por si” (HEGEL, 1970, 7, 34)

149
Erick Lima

Assim, ao estabelecer a liberdade não apenas como estruturação subs-


tancial da vontade livre, conexão imanente de seus momentos positivo
e negativo, finito e infinito, factual e legítimo, mas também como seu
fim, sua destinação, seu objeto, seu mundo, Hegel propõe uma teoria
do direito que rompe com a tendência formalista de um abstracionis-
mo institucional, unindo à teoria do direito, ao contrário, uma teoria
da justiça, e à filosofia política, uma teoria social normativa. O resul-
tado mais geral desse programa é a explicitação da segunda natureza
forjada a partir de uma teoria das instituições condizente com a noção
enfática de normatividade conceitual desenvolvida a partir da noção
moderna de autodeterminação. “O sistema do direito é o reino da li-
berdade efetivada, o mundo do espírito produzido a partir do próprio
espírito como uma segunda natureza .” (HEGEL, 1970, 7, 45)
Tal interpretação pode ser respaldada no esclarecimento termi-
nológico avançado por Hegel nos §§ 25 e 26. Segundo a observação ge-
ral constante no § 26, os componentes subjetivo e objetivo da vontade
livre somente podem – e eis aí a marca inconfundível da estruturação
dialética (HEGEL, 1970, vol.7, 76) da liberdade concreta – ser compre-
endidos em sua relação recíproca4. A tese mais geral de Hegel parece
ser a de que, para se compreender a vontade livre não se pode perma-
necer apenas na diferença estanque entre seus componentes, justamen-
te porque eles somente são sabidos como o concreto, como “unidade de
determinações diferentes” (HEGEL, 1970, 8, 176). Interessa-me aqui per-
seguir as decorrências desta ideia para as concepções mais enfáticas,
mais legítimas (hochberechtigte) e, aparentemente, mais independen-
tes de objetividade5 e subjetividade6: a objetividade férrea do mundo

4
“Na vontade ... que só pode ser sabida como o concreto, tais oposições, que devem ser abstra-
tas e simultaneamente determinações desta vontade, conduzem por si mesmas a essa identi-
dade das mesmas e à troca das suas significações” (HEGEL, 1970, 7, 76)
5
“a vontade objetiva, porém, enquanto desprovida da forma infinita da autoconsciência, é a von-
tade imersa no seu objeto ou no seu estado, como quer / que esteja constituída segundo o seu
conteúdo” (HEGEL, 1970., vol.7, 75/76). Neste sentido enfático, em cuja aparente e extrema
independência a modernidade filosófica cai quase que “inconscientemente” (bewußtlos) (HE-
GEL, 1970., vol.7, 76) por força de sua própria dinâmica conceitual, ergue-se a pretensão de
se falar numa pura institucionalidade, numa substancialidade férrea e sobre a qual não se
operou a autorreflexão (HEGEL, 1970, vol.7, 77).
6
“a pura forma, a unidade absoluta da autoconsciência consigo mesma, unidade na qual a au-
toconsciência, enquanto eu = eu, é absolutamente interior e [um] repousar abstrato sobre si
– a pura certeza de si mesmo, diferente da verdade” (HEGEL, 1970, vol.7, 75) Assim, sugere

150
Práticas Compartilhadas e Justificação de Normas: revisitando a discussão de
Hegel acerca da “suspensão” da moralidade na eticidade

institucional, do horizonte valorativo compartilhado, das orientações


práticas seguidas de maneira imediata; por outro lado, a forma insti-
tucionalmente desconectada e pura da justificação de normas. Enfim,
trata-se aqui daquilo que Hegel desenvolverá sob as noções de direito
da subjetividade e direito da objetividade7.
A posição de Hegel neste trecho pode ser significativa, apesar (e
talvez justamente por causa) do tom paradoxal que evoca a contradi-
ção da liberdade da vontade como arbítrio: a liberdade como interior
(HEGEL, 1970, 7, 76), a própria subjetividade autodeterminante e au-
torreferente, embora devesse conter em si as condições de seu aporte
objetivo e institucional (conceito de vontade), ao se retrair frente à ob-
jetividade, permanece na dimensão da finitude e, por isso mesmo, ema-
ranhada (verwickelt) com o objeto, sem a força de completar “o retorno
infinito (a)dentro de si.” (HEGEL, 1970, 7, 77) Ora, justamente o esforço
de pensar a necessária interpenetração entre o subjetivo e o objetivo,
sem incorrer no abstracionismo institucional, mas sem perder a opor-
tunidade de retornar (a)dentro de si a partir do envolvimento com for-
mas limitadas e particulares de existência, eis aí, eu dizia, o elemento
programático constitutivo do conceito Hegeliano de direito.
Fica mais claro o motivo de o ponto de chegada da introdução à
Filosofia do Direito, a tese de que direito é a “liberdade enquanto ideia”
(HEGEL, 1970, 7, 79), fazer uma enfática marcação de posição em rela-
ção aos teóricos da liberdade enquanto autodeterminação8. Hegel pa-

Hegel, apesar dos significados de “subjetividade” da vontade livre mais atrelados ao indiví-
duo particular, há que se reter sobretudo este como o mais legítimo, vinculado à dimensão
efaticamente moderna da autodeterminação (HEGEL, 1970, vol.7, 77)

7
“O direito de não reconhecer nada que eu não tenha discernido como racional é o direito
supremo do sujeito, mas, pela sua determinação subjetiva, ao mesmo tempo, [um direito]
formal, e contra ele permanece firmemente estabelecido o direito do racional enquanto [direi-
to] do objetivo sobre o sujeito.” (HEGEL, 1970, vol.7, 244) Assim, para Hegel, o direito da
objetividade significa a reivindicação feita pelo mundo institucional ou das práticas com-
partilhadas pelo reconhecimento prévio, por parte dos agentes, das regras pré-existentes e
compartilhadas. O “direito da objetividade, correspondente à ação, assume a seguinte figu-
ra: visto que a ação é uma alteração que deve existir num mundo efetivo e quer, portanto,
ser reconhecida neste, ela tem de ser em princípio conforme àquilo que tem validade nele.
Quem quer agir nessa efetividade submeteu-se, precisamente por isso, a suas leis e reconheceu
o direito da objetividade.” (HEGEL, 1970, vol.7, 245)

8
A definição puramente coercitiva e restritiva do direito em Kant consuma o programa geral
desenvolvido por Rousseau de que “o que deve ser a base substancial e o primeiro não é a
vontade enquanto sendo em si e para si, enquanto vontade racional, não é o espírito enquan-
to espírito verdadeiro, mas sim enquanto indivíduo particular/, enquanto vontade do singular
em seu arbítrio próprio.” (HEGEL, 1970, 7, 79/80)

151
Erick Lima

rece justamente acusar Rousseau – e, com ele, Kant – de haver conce-


bido de maneira excessivamente subjetivizada o conceito de liberdade
como autodeterminação. O que era para ser compreendido como in-
vestigação do enlace entre as dimensões subjetiva e objetiva da “liber-
dade enquanto ideia” (HEGEL, 1970, 7, 79), ou seja, a visualização das
conexões entre os processos de justificação condizentes com a noção de
autodeterminação e um quadro institucional apropriado, o qual não
pode ser inteiramente separado daquela rede de práticas já produzi-
das pelos processos de modernização, torna-se, nas mãos de Rousseau
– e, principalmente, nas de Kant – uma teoria focada na capacidade
racional individual para a autodeterminação. Hegel retira então sua
mordaz conclusão: se tudo que a liberdade como autodeterminação
pode ser é uma faculdade individual, então, embora se possa esperar
que instituições se compatibilizem fortuitamente com a dimensão sub-
jetiva da liberdade, em geral a racionalidade das instituições e práticas
teria de ser pensada como extrínseca, exterior, coercitiva, estranhada e,
com isso, opressiva. O “racional só pode vir à luz enquanto restringin-
do essa liberdade, assim como, também, não enquanto algo imanen-
temente racional, mas sim, enquanto um universal externo, formal.”
(HEGEL, 1970, 7, 80) Mais claro ainda fica o fato de que Hegel possa
assim ver, na subjetivização da autodeterminação, não somente uma
perspectiva filosoficamente insuficiente, mas sobretudo uma perspec-
tiva que, por ser proveniente do mesmo processo pelo qual a moder-
nidade sucumbe a um sistema insuficiente de racionalidade, se desen-
volve em paralelo com descaminhos e insuficiências não simplesmente
filosóficas, mas concretizadas em práticas, instituições, no mundo da
vida. “Esse ponto de vista está desprovido de todo pensamento espe-
culativo e é rejeitado pelo conceito filosófico, porquanto ele produziu,
nas cabeças e na efetividade, fenômenos cujo horror só tem paralelo na
trivialidade dos pensamentos nos quais se fundavam.” (HEGEL, 1970,
7, 80)9 Eis por que, embora a modernidade tenha inventado o conceito
de liberdade como autodeterminação, a maneira formal e subjetiviza-


9
Assim, para Hegel, a subjetivização kantiana da autodeterminação nada mais é do que a ex-
pressão, na filosofia prática moderna, do formalismo, o qual, de resto, é não somente a marca
inconfundível da insuficiência do paradigma moderno de racionalidade, como ainda se co-
necta de múltiplas formas com os fenômenos da “positividade” (HEGEL, 1970, 1, 321/322), da
cisão (HEGEL, 1970, 2, 20) e da ruptura na eticidade moderna (HEGEL, 1970, 7, 339).

152
Práticas Compartilhadas e Justificação de Normas: revisitando a discussão de
Hegel acerca da “suspensão” da moralidade na eticidade

da como a concebe faz com que a filosofia prática, resumida por Hegel
no seu conceito de direito, perca seu aguilhão e sua envergadura, sua
sacralidade, a conexão indissociável entre subjetividade e objetivida-
de, entre justificação e institucionalidade, conexão que compõe a ver-
dadeira infinitude da liberdade. “O direito é em princípio algo de sagra-
do, unicamente porque ele é o ser-aí do conceito absoluto, da liberdade
autoconsciente. – Mas o formalismo do direito (e, mais adiante, o do
dever) surge da diferença [resultante] do desenvolvimento do conceito
de liberdade.” (HEGEL, 1970, 7, 82)

Notas sobre o argumento de suspensão


da moralidade na eticidade

Talvez a maneira mais interessante de perceber o impacto da no-


ção Hegeliana de direito sobre toda aquela dimensão pensada tradicio-
nalmente sob o título de “filosofia prática” seja vincular tal noção ao
projeto de “doutrina imanente dos deveres”, bem como a relação desta
com os impulsos10. O esforço da Filosofia do Direito consiste, em última
instância, em apreender o conteúdo volitivo e pulsional na forma de
uma sistematização racional enquanto “deveres” (HEGEL, 1970, 7, 69),
ou seja, enquanto um tecido de práticas compartilhadas condizentes
com o emblema moderno da justificação moral. Com certa liberdade
interpretativa, poderíamos ver nesse encaminhamento geral o projeto
de transformar a dimensão categórica da justificação em termos de au-
todeterminação, desenvolvida sobretudo por Rousseau e Kant, numa
filosofia prática de alcance mais aristotélico, isto é, comprometida com
a sensibilidade para práticas e instituições. Ora, para dizer a verdade,
num tal projeto nem Kant nem Aristóteles subsistem incólumes, pois
se trata de uma filosofia prática, capaz de se desdobrar intrinsecamen-
te numa teoria normativa das práticas e instituições, bem como numa
filosofia social de matriz crítica e, portanto, enfaticamente normativa.
Em forte conexão com sua interpretação dialética da noção de
autodeterminação, Hegel restringe consideravelmente o potencial do

10
Hegel pretende que seu esforço na Filosofia do Direito tenha um traço em comum com a exi-
gência, de resto indeterminada, de “purificação dos impulsos” (HEGEL, 1970, 7, 69), a saber:
que também nesse tópico clássico se tenda a pensar a organização sistemática racional dos
impulsos como determinações da vontade.

153
Erick Lima

ponto de vista moral para alcançar, dentro de seu próprio escopo, a


determinação de deveres concretos, algo que Hegel vê como essencial
ao seu projeto, levado a termo na Filosofia do Direito, de “uma doutrina
imanente e consequente dos deveres” (HEGEL, 1970, 7, 296), a qual
conteria o “desenvolvimento das relações, que através da ideia de liber-
dade são necessárias e, por isso, são efetivas.” (HEGEL, 1970, 7, 296)11
A sumária retomada da argumentação Hegeliana que pretendo
aqui apresentar faz parte de uma estratégia interpretativa mais ampla,
a qual consiste basicamente no seguinte: mostrar que a relação dia-
lética entre concepções de intersubjetividade, cuja história de desen-
volvimento nos textos de Hegel eu reconstrui numa publicação recen-
te, insinua-se na Filosofia do Direito na forma de um contraste entre as
versões da relação intersubjetiva privilegiadas pelo direito abstrato12 e
pela moralidade13. Assim, se conectarmos a tese, defendida por Hegel
no § 71 de que a “relação de vontade a vontade é o terreno peculiar e
verdadeiro no qual a liberdade tem ser-aí.” (HEGEL, 1970, 7, 151) com
a comparação, feita pelo próprio Hegel §112, entre as formas de inter-
subjetividade14, teríamos o terreno no qual o argumento Hegeliano de
passagem da moralidade à eticidade deve ser apreciado.

11 “O dever-ser, que, por isso, ainda está [presente] na moralidade, só é alcançado, e pela pri-
meira vez, no [elemento] ético” (HEGEL, 1970, 7, 208)
12
“Mas como ser-aí da vontade, ele é para outro somente enquanto para a vontade de uma ou-
tra pessoa. Esta relação de vontade a vontade é o terreno peculiar e verdadeiro no qual a
liberdade tem ser-aí.” (HEGEL, 1970, 7, 151) Para Hegel, trata-se aqui de uma consequência
da tese mais geral de que para o contrato, assim como para “relação do espírito objetivo, o
momento do reconhecimento já está nele contido e pressuposto” (HEGEL, 1970, 7, 152)
13
“Ora, a subjetividade exterior assim idêntica comigo é a vontade dos outros (§ 73). – O terreno
da existência da vontade é, agora, a subjetividade (§ 106), e a vontade dos outros é a existência
que eu dou ao meu fim [e] que, ao mesmo tempo, é outra para mim. – Por isso, a execução
do meu fim tem dentro de si esta identidade da minha e das outras vontades, – ela tem uma
relação positiva à vontade dos outros.” (HEGEL, 1970, 7, 209)
14
“No [elemento] moral, ao contrário, a determinação da minha vontade em relação à vontade
dos outros é positiva, quer dizer, a vontade subjetiva, naquilo que ela realiza, tem presente
a vontade sendo em si como algo interior. Está presente, aqui, uma produção ou alteração
do ser-aí, e isto tem uma relação à vontade dos outros ... No direito, não é relevante que a
vontade dos outros queira algo em relação à minha vontade, que se dá ser-aí na propriedade.
No [elemento] moral, pelo contrário, trata-se do bem-próprio também dos outros, e somente
aqui essa relação positiva pode intervir.” (HEGEL, 1970, 7, 210)

154
Práticas Compartilhadas e Justificação de Normas: revisitando a discussão de
Hegel acerca da “suspensão” da moralidade na eticidade

A parte mais fundamental da crítica de Hegel à absolutização do


ponto de vista moral operada por Kant e, por conseguinte, a demons-
tração da necessidade da passagem (Übergang) para o ponto de vista
da eticidade, está contida nos §§ 133-135, após a enfática diferenciação
dos direitos da objetividade e da subjetividade, feita no §132. No §133,
Hegel fornece uma lacônica, porém profunda, caracterização do ponto
de vista alcançado pela moralidade kantiana: a esfera de uma obriga-
ção que se caracteriza por uma relação extrínseca do bem ao sujeito
particular (HEGEL, 1970, 7, 249).
É bastante conhecido o reconhecimento por Hegel do mérito da
posição kantiana. Mais importante ainda, entretanto, é o reconhecimen-
to deste reconhecimento numa avaliação mais sóbria da posição de He-
gel. “Devo praticar o dever em vista dele mesmo, e o que eu realizo
plenamente no dever é a minha própria objetividade no sentido verda-
deiro: ao cumpri-lo permaneço junto a mim e sou livre. É o mérito e
o ponto de vista elevado da filosofia kantiana no domínio prático, ter
salientado a significação do dever.” (HEGEL, 1970, 7, 250) O mérito con-
siste, em geral, no reconhecimento da estrutura normativa da existência
prática. Hegel não propriamente condenará Kant rejeitando sua posição,
mas a unilateralidade da mesma, sua incapacidade de passar ao ponto
de vista, teoriacamente mais relevante, de uma eticidade reflexiva. Em
geral, a crítica de Hegel pode ser assim compreendida: em condições
modernas de vida, o ponto de vista moral é imprescindível, pois agora,
mais do que em qualquer outra época, operamos sob a exigência histori-
camente produzida de um acolhimento autodeterminado ou autônomo
de máximas. Entretanto, o ponto de vista instaurado pela pura e simples
pressuposição da autodeterminação como capacidade subjetiva não é
capaz em si mesmo de determinar o conteúdo de deveres particulares.
“Porque o agir exige para si um conteúdo particular e um fim determi-
nado, mas o abstrato do dever não contém ainda nem um nem outro,
surge a pergunta: o que é dever? Para esta determinação ainda nada está
à disposição, num primeiro momento, senão isto: fazer o que é direito e
cuidar do bem-próprio, do seu e do bem-próprio em sua determinação
universal, o bem-próprio dos outros.” (HEGEL, 1970, 7, 250)
Assim, embora a filosofia de Kant contenha um “ponto de vista
sublime, enquanto estabelece o ser-conforme do dever com a razão, é

155
Erick Lima

preciso, contudo, pôr aqui a descoberto a falha desse ponto de vista,


que está em lhe faltar toda articulação (Gliederung).” (HEGEL, 1970,
7, 252). O célebre §135 retira daí, então, as principais consequências
pertinentes a uma compreensão da apreciação Hegeliana do caráter
unilateral e, portanto, teoricamente indesejável, da moralidade kanti-
na. “Ao próprio dever, enquanto ele é na autoconsciência moral o es-
sencial e o universal da mesma, tal como ela no interior de si mesma se
refere somente a si, resta, portanto, apenas a universalidade abstrata,
e ele tem por sua determinação a identidade sem conteúdo ou o positivo
abstrato, o que está privado de determinação.” (HEGEL, 1970, 7, 251)
Segundo Hegel, apenas uma teoria normativa do mundo moderno
como eticidade reflexiva é capaz, a um só tempo, de compatibilizar o
reconhecimento do mérito do ponto de vista kantiano com a supressão
de sua unilaterialidade. De acordo com Hegel, o grande problema é
que a permanência no ponto de vista da “pura e incondicionada auto-
determinação da vontade como a raiz do dever” (HEGEL, 1970, 7, 251),
a insistência apenas na perspectiva do “pensamento da autonomia in-
finita da vontade” (HEGEL, 1970, 7, 251), não permite “a passagem ao
conceito de eticidade” (HEGEL, 1970, 7, 251), ou seja, aquilo que pode-
ria tornar possível uma teoria da modernidade do ponto de vista da vi-
sualização da compatibilidade de práticas compartilhadas com formas
enfaticamente modernas de justificação normativa, ou, nas palavras de
Hegel, o que poderia tornar possível uma “doutrina imanente do de-
ver” (HEGEL, 1970, 7, 251).
Num lance argumentativo que, parece-me, antecipa fortemente
a análise gramatical proposta por Wittgenstein acerca da atividade de
seguir regras, o caráter abstrato da filosofia prática de Kant se encontra
no fato de que não se pode ampliá-la ao ponto de vista de uma teoria
imanente da normatividade, isto é, por permanecer necessariamente
extrínseca a formas determinadas de justificação normativa, a filosofia
prática de Kant se torna incapaz de pensar a relação intrínseca entre
formas diferenciadas de normatividade, entre graus diferenciados de
justificação, os quais tem que ser levados sempre em conta do ponto de
vista das práticas compartilhas nas quais os sujeitos aptos aos procedi-
mentos morais de justificação de normas sempre já se encontram, por
assim dizer, imediatamente. Com isso, a filosofia prática de Kant não

156
Práticas Compartilhadas e Justificação de Normas: revisitando a discussão de
Hegel acerca da “suspensão” da moralidade na eticidade

encontra condições em si mesma, sugere Hegel, de se estabelecer como


uma teoria normativa das instituições historicamente produzidas pe-
los processos de modernização, uma vez que se estabelece um hiato tal
entre os graus de justificação que as práticas compartilhadas simples-
mente não podem ser reconhecidas como eticamente relevantes.
Eis então o alcance formidável do veridito Hegeliano. Esta inca-
pacidade do ponto de vista da pura autodeterminação “rebaixa igual-
mente esse ganho a um formalismo vazio e a ciência moral a uma falação
sobre o dever em vista do dever ... pode-se, certamente, introduzir de fora
um material e graças a ele chegar a deveres particulares; porém a par-
tir daquela determinação do dever enquanto ausência de contradição e
concordância formal consigo, que nada mais é do que a fixação da indeter-
minidade abstrata, não se pode passar à determinação de deveres parti-
culares, nem reside naquele princípio, se entra em consideração um tal
conteúdo particular para o agir, critério algum / de se ele é ou não um
dever. Ao contrário, dessa maneira todo modo de agir ilícito e imoral
pode ser justificado.” (HEGEL, 1970, 7, 251/252)
Mas, afinal, com que tipo de perspectiva teórica se compromete a
incorporação, tencionada por Hegel, da teoria kantiana da normativida-
de numa teoria da eticidade moderna ? Em primeiro lugar, Hegel quer
eliminar o inconveniente causado por uma doutrina da subjetividade
pura, a qual, na solidão de seu livre exame do teor moral das máximas,
paira no vazio de práticas, valores e orientações prévias. Em segundo
lugar, a partir disso, estabelece-se uma relação mais horizontal entre
práticas compartilhadas e processos de justificação de normas, uma re-
lação que pode ser compreendida em termos de graus de justificação
e, por conseguinte, também do ponto de vista da tese enfática acerca
da incontornabilidade das justificações prévias nas quais sempre já nos
encontramos. Em terceiro lugar, tornar-se-á possível, sobretudo na parte
dedicada à eticidade na Filosofia do Direito, uma teoria normativa das
instituições historicamente produzidas na modernidade política, uma
teoria que não simplesmente toma as instituições e práticas compartilha-
das como por princípio extrínsecas ao ponto de vista de uma justificação
pela via da da concepção da liberdade como autodeterminação, mas sim
que detém uma sensibilidade sui generis para a investigação do potencial
das práticas compartilhadas para manifestarem formas emancipadas de

157
Erick Lima

engajamento, condizentes com o emblema moderno da autonomia, do


estar em si no seu absolutamente outro. Como diz Hegel no adendo ao §
138, “a subjetividade, assim como ela volatiliza todo conteúdo dentro de
si, também pode e tem de desenvolvê-lo novamente a partir de si ... Se é
justo, portanto, volatilizar o direito e a obrigação na subjetividade, não
é justo, por outro lado, que esta base abstrata não se desenvolva por sua
vez.” (HEGEL, 1970, 7, 259)
Para concluir, uma consideração da diferença entre moralidade
e eticidade em termos da imbricação entre “intersubjetividade”, “ob-
jetividade valorativa” e “justificação”, contida na noção de reconhe-
cimento15, antecipa vigorosamente temáticas do pragmatismo ético. A
“normatividade inerente às nossas práticas de conhecimento e ação é
irredutível” (QUANTE, 2004, p. 13). Assim, diretrizes como a “crítica
de Hegel ao formalismo e ao ceticismo ético, sua defesa de um


15
Uma leitura da Filosofia do direito, inspirada pela noção de intersubjetividade, pode fazer vê-
-la como compatível com um movimento de virada pragmática na ontologia, o qual prepara
uma noção instigante de “ontologia social”, de múltiplas decorrências, como constituída
pelas práticas e conceitos compartilhados comunitariamente, elementos dotados de auto-
ridade normativa. O conceito Hegeliano de espírito ou de “ordem normativa” “requer, em
última instância, que a natureza da autoridade de tais coerções normativas e ideais seja au-
tolegislada [...] sob estas premissas, exercer a autoridade normativa em geral é compreendido
enfaticamente como a expressão de intenção no espaço público e social, funcionando como
[norma] que autoriza somente se há um contexto social suficientemente harmonioso e dotado
de sentido, capaz de responder, de maneira correta, a possíveis desafios apresentados a uma
tal autoridade (PIPPIN, 2008, p. 236). Por outro lado, segue daí a conexão entre a filosofia
prática e a teoria social pela via de uma percepção inspirada no “pragmatismo ético”, da
“ontologia social”, do “entrelaçamento entre racionalidade e realidade social”, uma ligação
entre a socialidade da razão e a crítica social. Tal orientação se embasa numa percepção dos
conceitos de “eticidade” e “espírito objetivo” (HONNETH, 2007, pp. 51-2) em que concorrem
elementos provenientes do pragmatismo e da discussão do sofrimento social elaborada pela
teoria crítica. Em sua crítica à moral deontológica, Hegel opera, sob o título de “eticidade”,
com a tese de que “na realidade social, ao menos na modernidade, encontram-se dispostas
esferas de ação nas quais inclinações e normas morais, interesses e valores já se misturaram
anteriormente em formas de interação institucionalizadas” (HONNETH, 2007, p. 52). Com
essa ideia, Hegel se torna capaz de objetar a Kant, num paralelo à sua crítica ao “vestígio
mentalista da teoria kantiana do conhecimento” (HONNETH, 2007, p. 93), a abstração proce-
dimental da síntese prática prévia entre normatividade e práticas compartilhadas. Pippin consolida
esta diretriz sustentando a partir de Hegel uma noção “racionalidade objetiva” que revoga a
“perspectiva pré-institucional”. “O que Hegel pretende por racionalidade objetiva não pode,
portanto, ser interpretado como pretensões por um tipo indireto de racionalidade subjeti-
va, como se racionalidade desembocasse “naquilo que agentes racionais capazes de escolha
iriam querer”, ou “naquilo que compreenderia as condições objetivas necessárias para a atu-
alização do livre agir. Hegel parece ter em mente um sentido mais robusto de racionalidade
genuinamente objetiva” (PIPPIN, 2008, p. 262).

158
Práticas Compartilhadas e Justificação de Normas: revisitando a discussão de
Hegel acerca da “suspensão” da moralidade na eticidade

realismo ético com respeito a práticas sociais e sua adesão a uma con-
cepção de ética materialmente enriquecida”, bem como a ideia de que
“as práticas sociais são fundacionais”, são “traços fundamentais de
um pragmatismo ético” (QUANTE, 2004, pp. 10-1). Para Quante, “a
tese Hegeliana acerca da superação da moralidade na eticidade é para
ser interpretada não de um ponto de vista da teoria da validade [...]
mas da perspectiva de uma teoria da fundamentação [...] toda argu-
mentação moral tem de se apoiar sobre premissas éticas pressupostas”
(QUANTE, 2011, p. 287). É nesse sentido que a “superação da morali-
dade na eticidade” se deixaria ler como uma “estratégia pragmatista
de fundamentação” (QUANTE, 2011, p. 293).

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160
Expresión y retrospección
La concepción hegeliana de la acción*

Juan Ormeño Karzulovic

1. Introducción

Para poder discriminar acciones (algo que alguien hace) de even-


tos (algo que ocurre), solemos contar con la descripción de la acción
que el propio agente hace, que devela la perspectiva que el propio
agente tenía de lo que estaba haciendo. Esta perspectiva de primera
persona recoge el contenido de los estados mentales relevantes (típica-
mente, deseos y creencias) en los que el agente se encontraba al actuar
y que constituye – se piensa – su “razón para actuar” (en el sentido
en el que apelamos, retrospectivamente, al contenido de tales estados
para racionalizar y explicar la acción).1 Normalmente, la descripción
que el propio agente hace de su acción, que incluye sus “razones”
para haber actuado como lo hizo, presenta esta realización suya como
una “acción intencional” (esto es, hecha “a propósito” o “adrede”). En
consecuencia, lo que significa que un agente ha hecho x “intencional-
mente” parece poder vertirse, sin pérdida de sentido, con la expresión:
* Este artículo fue redactado en el marco del proyecto de la Dirección de Investigación de la
Universidad de Chile: “Teoría de la acción e imputabilidad moral y jurídica” (SOC 09/24-
2), dirigido por el Prof. Miguel Orellana Benado y co-dirigido por el autor. Agradezco los
comentarios a versiones previas de este artículo a los participantes del proyecto, en especial
a Guillermo Silva, Antonio Morales, Sebastián Figueroa, Manuela Veloso. Javier Gallego,
Ernesto Riffo, Javier Contesse y Juan Pablo Mañalich.

1
Davidson 1994.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 161-178, 2015.
Juan Ormeño Karzulovic

“actuar por razones”. Sin embargo, las “razones” que pueden aducirse
para explicar lo que un agente ha hecho como una acción intencional
admiten varias interpretaciones.
Se suele pensar, por ejemplo, que la importancia que tiene para la
imputación de responsabilidad la descripción intencional que un agente
hace de su propia acción se derivaría, en última instancia, del acceso
privilegiado que el agente tiene al contenido de esos estados psicológi-
cos (v.gr. conciencia inmediata de los mismos). Pues la remisión a tales
estados nos permite entender la acción como el resultado (o “conclusi-
ón”) de un fragmento de razonamiento práctico, en el que el contenido
de esos estados figuraría como premisa. Es más, de acuerdo a algunas
teorías de la acción intencional,2 podemos entender tales estados, que
constituyen la “razón primaria” para actuar, como causas de la acción, lo
que es consistente con nuestra manera habitual de pensar, que es “pros-
pectiva”, la relación entre dichos estados y las acciones que producen.
Por contraste, los demás sólo tienen un acceso mediado o inferencial a
tales contenidos (o “razones”), por lo que la responsabilidad que impu-
ten (o “adscriban”) al agente desde esta perspectiva “externa”, siempre
podría ser equívoca (o injusta). De ahí, por ejemplo, que en asuntos mo-
rales la “voz” del propio agente, la de su propia conciencia, nos parezca
tan fundamental. Ahora bien, desde una perspectiva de tercera persona,
la acción puede ser descrita, además, por sus consecuencias causales,
incluso por aquellas que el propio agente no haya podido prever. Es ob-
vio que nuestras prácticas de evaluación normativa e imputación de res-
ponsabilidad requieren criterios públicos de adscripción, que limitan el
alcance o la importancia de la descripción del propio agente. Con todo,
la descripción que contiene la perspectiva de primera persona no puede
reducirse a la perspectiva de tercera persona (Aunque, desde posiciones
naturalistas, se ha intentado una reducción semejante, que equivaldría
a concebir la agencia en términos puramente causales, ello implicaría
dejar de lado la dimensión de la racionalidad que es central para la con-
cepción de la agencia). Si los estados mentales del agente fuesen pura-
mente privados o si las especificaciones no-intencionales que hacen los
demás fuesen puramente externas, las perspectivas de primera y tercera
persona estarían totalmente separadas, generando, entre otros proble-
mas, un divorcio entre “reglas privadas” (las que el agente ha seguido al


2
Modélicamente, Davidson 1994.

162
Expresión y retrospección
La concepción hegeliana de la acción

actuar) y “reglas públicas” (aquellas por las que la comunidad lo juzga).


Semejante divorcio conlleva otros problemas: por ejemplo, si el están-
dar normativo que la comunidad aplica a la hora de evaluar las razones
que un agente declara haber tenido al actuar es conmensurable con esas
razones. ¿Cómo ha de concebirse la racionalidad práctica para hacer tal
conmensurabilidad posible? ¿Puede (o debe) contar semejante estándar
normativo como una “razón para actuar” para el propio agente?
En el presente trabajo pretendo explorar el concepto “expresivo”
de acción que puede encontrarse en la filosofía de Hegel, (1) porque
ejemplifica bien el desideratum de tratar de reunir, de modo sistemático,
los aspectos psicológicos y los aspectos sociales o públicos de la acción,
y (2) porque su manera de tratar el problema lo vincula con intentos
parecidos en el último Wittgenstein, en Ch. Taylor y en el pragmatismo
de R. Brandom. Por un lado, Hegel parece asumir que no podemos
identificar un evento (una ocurrencia o una realización) como una ac-
ción, a menos que podamos remitir el evento, de modo significativo, al
saber y al querer del agente que lo ha causado. Por otro lado, sin em-
bargo, al analizar la acción en contextos sociales específicos, Hegel sos-
tiene (1) que el agente sabe qué es lo que había contenido en su intenci-
ón recién una vez que la ha realizado (lo que tiene como consecuencia
negar que el acceso que el agente tenía a los estados mentales que lo
habrían llevado a actuar de ese modo sea un acceso privilegiado); y (2)
que la acción no debe concebirse como un efecto de tales estados men-
tales, sino que debe concebirse como “expresión” de quién el agente
es. Es esta concepción de la acción como expresión (entendida como
“traducción” de lo “no visto a lo visto” o como el hacer explícito un
contenido que originalmente estaba implícito) la que permitiría con-
cebir, en su continuidad y diferencia, los aspectos tanto sociales como
los aspectos psicológicos de la acción, y al mismo tiempo oponerse a
teorías mentalistas, causalistas y naturalistas de la misma.3


3
El uso que hago aquí de la noción de expresión para interpretar la concepción hegeliana de
la acción y de la agencia no es sólo tributaria del trabajo de filósofos analíticos como Taylor
(Taylor 2005) y Brandom (Brandom 2004), que a su vez lo toman de Herder y Wittgenstein. Es
una noción que subyace al tratamiento que el propio Hegel hace del concepto clave de su filo-
sofía, a saber, el concepto de espíritu: “La determinidad del espíritu es, pues, la manifestación.
Él no es alguna determinidad o contenido, cuya exteriorización o exterioridad sólo fuese una
forma distinta de ello; de modo que el espíritu no revela algo, sino que su determinidad y con-
tenido es este revelar mismo”. Hegel 1992c, § 383. La traducción es mía. Quien ha desarrollado
una interpretación completa de la teoría de la agencia racional en Hegel es Pippin 2008.

163
Juan Ormeño Karzulovic

2. La concepción de la agencia como unidad


entre lo privado y lo público

En la literatura reciente, quienes desean referirse al concepto de


acción y a la noción de agencia en Hegel apoyan sus tesis, básicamente,
en pasajes particulares tanto de la Fenomenología del espíritu4, como de la
Filosofía del derecho5. Los contenidos en la primera obra forman parte de
la sección “Razón” y llevan por título “La realización de la conciencia
racional por sí misma” y “La individualidad que es para sí real”. Los
contenidos en la segunda obra forman parte del capítulo “Moralidad” e
incluyen los §§ 109 - 113 de la introducción al capítulo y los parágrafos
comprendidos en las secciones tituladas “El propósito y la culpa” y “La
intención y el bienestar”. Que en las obras mencionadas, publicadas con
13 años de distancia y que sirven a propósitos tan distintos, encontremos
una concepción unitaria de la acción, no ha sido hasta el momento pues-
to en duda por nadie. No obstante, quienes han interpretado el concepto
de acción y de agencia según Hegel centrándose en la obra de 1807 han
enfatizado lo que podríamos llamar el carácter público o social de la
acción, que puede inferirse de las críticas que Hegel realiza ahí a varios
modos “individualistas” de entender la agencia racional (hedonismo,
interés por el propio bienestar como un caso típico del bienestar de to-
dos, la racionalidad de orientar la propia acción por lo que el interés
general requiere cuando este no coincide con el bienestar particular de
nadie y lo que podríamos llamar la realización de un plan racional de
vida). Sólo mencionaré, por lo pronto, dos de las consecuencias más no-
tables de esta crítica: 1) lo que podría llamarse el carácter retrospectivo
de la propia acción – y no sólo de su racionalización pública posterior
–, que equivale a decir que el agente sabe cuál es el contenido que pre-
tendía llevar a cabo con su acción recién una vez que lo ha realizado.
Consecuentemente, se priva al acceso privilegiado del propio agente a
sus estados mentales – los que, presumiblemente, lo habrían llevado a
actuar de ese modo – del rol que habitualmente le concedemos en la


4
Esta obra se cita de acuerdo al vol. 3 de las Werke, edición de Moldenhauer y Michel (Hegel
1992b) y la traducción de W. Roces (Hegel 1966).

5
Hemos tenido a la vista la traducción de Carlos Díaz de la edición de Karl-Heinz Ilting (He-
gel 1993) y el vol. 7 de las Werke, edición de Moldenhauer y Michel (Hegel 1992a). Como es
tradicional, esta obra se cita por el número de parágrafo (§).

164
Expresión y retrospección
La concepción hegeliana de la acción

explicación de la acción;6 2) el carácter fundamentalmente expresivo de


la acción: dado que en ella revela el agente por vez primera, tanto para
otros como para sí mismo, qué tipo de persona es (v.gr. “por sus frutos
los conoceréis”), las cuestiones relativas a la causalidad de las acciones
(la “fuerza” que deberíamos presumir tienen los deseos, las creencias,
los motivos, las disposiciones, etc., para generar acciones) carecen, para
Hegel, de todo interés.7
Quienes, en cambio, se han concentrado en los pasajes de la Fi-
losofía del derecho han enfatizado lo que podríamos llamar los aspectos
sicológicos de la acción (es decir, la relación de la misma con ciertos
estados mentales del agente). En esa obra Hegel parece asumir que
no podemos identificar un evento (una ocurrencia o realización) como
una acción si no podemos remitirlo, de modo significativo, al saber y
al querer del agente que lo ha causado. Aún cuando Hegel distingue
claramente las cuestiones relativas a la causalidad de las cuestiones
relativas a la responsabilidad que podamos imputarle al agente por su
acción, con todo parece razonable atribuirle también una teoría de la
misma en la que la causalidad y la perspectiva en primera persona del
agente juegan un rol esencial.8
Sin embargo, y pese a las diferencias, quienes han realizado esos
énfasis coinciden con aquellos que sostienen la necesidad de afirmar
una concepción unitaria.9 El centro de esta unidad en la concepción he-
geliana de la acción la constituye lo que Hegel llama la “identidad del
contenido” (aquél que el agente se propone realizar con su acción, es
decir, el fin de la misma), y que está bien representada por los siguien-
tes dos textos, uno de la Fenomenología, otro de la Filosofía del derecho:
6
Se trata, en rigor, de que el contenido de esos estados mentales no puede determinarse pri-
vadamente, toda vez que tal determinación es de naturaleza conceptual, y el acceso privile-
giado que el agente tenga a esos estados no puede hacer nada por determinarlos. Que para
esa determinación sea esencial la realización de la acción –es decir, su ejecución en el espacio
público que el agente comparte con otros agentes- se debe al hecho de que las consecuencias
causales de la acción, que proveen descripciones no intencionales de la misma, no pueden
ser excluidas como pertenecientes a ella sólo por el hecho de que el agente las desconociera.
Pero de modo más relevante: la realización de la acción revela al propio agente los com-
promisos prácticos implícitos en el fin que se había propuesto realizar, precisamente por el
modo en que los demás juzgan lo que el primero ha hecho.
7
Speight 2001, Pippin 2004.
8
Quante 2004.
9
Brandom 2002, Pippin 2008, Moyar 2008.

165
Juan Ormeño Karzulovic

a) En tanto la individualidad es la actualidad [Wirklichkeit] en sí mis-


ma, [ella] es la materia del actuar [wirken] y el fin del obrar en el
obrar mismo… El elemento, en el que la individualidad presenta
su figura, tiene el significado del acoger puro de esta figura; es el
día en general, a [cuya luz] la conciencia quiere mostrarse. El obrar
no altera nada ni va contra nada; es la pura forma de la traducción
del no ser visto al ser visto, y el contenido que así sale a la luz y se
presenta no es otra cosa que lo que tiene ya en sí este obrar.10
b) En la voluntad que se autodetermina la determinación [Bes-
timmtheit] es a) primeramente como [algo] puesto en ella por ella
misma –es decir, la particularización de sí en ella misma, un con-
tenido que ella se da. Esta es la primera negación y su límite formal
es ser sólo algo puesto, algo subjetivo. En cuanto reflexión infinita
en sí este límite es para ella misma y ella es b) el querer superar
esa barrera – la actividad de traducir este contenido desde la sub-
jetividad a la objetividad en general, a una existencia inmediata. C)
La simple identidad de la voluntad consigo misma en esta contra-
posición es el fin, el contenido que frente a estas diferencias de la
forma permanece igual en ambas.11

Ambos textos refieren una determinación formal característica


de la agencia en general. De acuerdo con Hegel, todo suceso que pue-
da admitir una descripción en tanto acción (en tanto realización de
la agencia de un sujeto racional, para distinguirlo de la descripción
de un suceso cualquiera) debe ser concebido bajo la forma general de
la exteriorización de algo que hasta ese momento era, aparentemente,
puramente interno.12

10
Hegel 1992b, 293/1966, 232.
11
Hegel 1993, § 109.
12
Las expresiones “externo” e “interno” y sus cognados deben ser tomadas, en todo caso,
cum grano salis: aunque Hegel no pretende negar toda diferencia entre lo que es subjetivo y
lo que es objetivo, pues esta diferencia es constitutiva de la conciencia del agente en tanto
agente, niega, en todo caso, que tal diferencia pueda ser absolutizada. “El principio: en la
acción despreciar las consecuencias, y el otro; juzgar las acciones a partir de las consecuen-
cias y convertirlas en la medida de lo que sea justo y bueno –es en ambos casos el mismo
entendimiento abstracto. Las consecuencias, en tanto configuración propia inmanente de la
acción, sólo manifiestan su naturaleza y no son más que ella misma; la acción, por tanto, no
puede negarlas ni despreciarlas. Pero, a la inversa, también se comprende lo que interviene
externamente y lo que se añade contingentemente, que no concierne a la naturaleza misma
de la acción” (Hegel 1993, observación al § 118).

166
Expresión y retrospección
La concepción hegeliana de la acción

Según el texto (a), podemos entender este tránsito de lo interno a


lo externo, o de lo subjetivo a lo objetivo, en términos expresivos, como
un tránsito de lo implícito a lo explícito, por medio del cual el propio
agente adquiere una figura, o para ser más preciso, un predicado pe-
culiar por medio del cual una audiencia puede identificarlo; es decir,
por medio de las acciones de un agente, una audiencia puede referirse
a él como un individuo peculiar, distinto de otros: “ese que hizo x en
t”, que le confiere una identidad práctica específica. Puede decirse que
su acción lo ha caracterizado de un modo público. Más aún, tal posibi-
lidad no queda reservada exclusivamente a una audiencia conformada
por otros, sino que el propio agente puede referirse públicamente a
sí mismo, frente a otros, por medio del mismo predicado (“Yo, el que
hizo x en t”). Incluso son imaginables contextos en los que podría tener
sentido que el agente, sin estar en un escenario público, pero hablan-
do consigo mismo, se refiriese a sí mismo de la misma manera (por
ejemplo, dándose ánimo para emprender una tarea difícil o peligrosa:
“Cómo no voy a poder hacer z, si fui capaz de hacer x”). Es obvio que,
para que la referencia sea exitosa, necesitamos especificar el contenido
de la acción (es decir, la finalidad o propósito que por medio de la ac-
ción fue realizado, que aquí he simbolizado con x y z) y, en el caso de
la audiencia, los índices espacio-temporales apropiados. Pero tomado
de un modo totalmente general, esta determinación formal de la acción
implica, como lo sugiere el texto (a), que toda acción debe ser interpre-
tada como una “autorrealización”.13 Este último término no implica, sin
embargo, que tal realización sea exitosa, medida de acuerdo a paráme-
tros más específicos; sólo implica que la “subjetividad” del agente ad-
quiere, por medio de la acción, existencia pública por medio de la cual
tanto la audiencia como el propio agente pueden evaluarla de acuerdo
a diferentes criterios (por ejemplo, utilitarios, estéticos o morales). Con
todo, sólo el propio agente podría verse tentado a evaluar la existencia
pública de su propósito comparándolo con su (previa) intención de
realizarlo y considerar que la existencia empírica independiente que su


13
“[E]l obrar es en él mismo su verdad y su realidad y la presentación o la expresión (Ausspre-
chen) de la individualidad es para este obrar fin en y para sí mismo” (Hegel 1992b, 292/1966,
231). Esto es consistente con la determinación abstracta de la libertad en Hegel como “estar
consigo mismo en el otro”: la acción solo en sí libre cumple con la característica formal de
toda acción; sólo la acción realmente libre permite que el agente pueda reconocerse (identi-
ficarse) completamente con sus actos.

167
Juan Ormeño Karzulovic

acción ha adquirido en la opinión de los demás “no le hace justicia” a


su “subjetividad”, esto es al modo en el que el agente se la representa.
Para que esta “autocomparación” pudiese ser informativa – en lugar
de simplemente autocomplaciente, autoflagelante o, en cualquier caso,
meramente narcisista –, el agente tendría que presuponer que lo que él
sabe de su intención tiene un privilegio especial respecto de lo que los
demás puedan decir acerca de la misma.

3. El carácter expresivo – Contra la “causalidad”

Si se entiende la agencia en general básicamente en términos ex-


presivos, es decir como “traducción” de un contenido desde la forma
“ser un fin subjetivo, o un propósito meramente pensado” a la forma
de una “existencia inmediata”, intersubjetivamente accesible – “tra-
ducción” en la que el contenido permanece idéntico consigo mismo
–, entonces deberíamos entender la acción libre, propiamente dicha,
de un modo correspondiente. Como ya he sugerido, si entendemos
este carácter expresivo de la acción como determinación formal y ge-
neral – i.e. como describiendo la estructura de la agencia en general
–, entonces no hay forma de que esta estructura nos permita discer-
nir entre una expresión exitosa y una fallida, entre una buena y una
mala traducción. La estructura expresiva de la acción parece tener una
pretensión puramente descriptiva a la que se conforma tanto la acción
exitosa como la fallida; tanto la realización de la finalidad, tal y como
el agente la ha concebido, como también la realización de la finalidad
sin que el agente esté en condiciones de reconocerla como “suya” (o de
reconocerse en la significación pública que ésta ha adquirido una vez
realizada) – o, incluso, si la finalidad misma es inadecuada para contar
como realización de la agencia racional (como en la “pasión”, concebi-
da como monomanía).14 Hegel comenta – en una anotación al margen
Véase: Wood 1990. Todavía nos falta precisar cuáles son los criterios que nos permiten decir
14

de ciertos eventos que son acciones). Pero a partir de la idea de “expresión” o, como la llama
Hegel en la Enciclopedia, de manifestación o revelación de algo interno en lo externo (véase
nota 3), podemos derivar algunos de esos criterios. No tiene sentido utilizar un vocabulario
expresivo para explicar la trayectoria del movimiento de un cuerpo en el espacio o para ex-
plicar los enlaces químicos entre los átomos que conforman una molécula. El ámbito propio
de la explicación típica en las ciencias de la naturaleza es lo que Hegel llama el “ser exterior
a sí mismo de la naturaleza” (lo que descarta la apelación a un interior que se manifieste).

168
Expresión y retrospección
La concepción hegeliana de la acción

al §7 de su Filosofía del derecho, en el que ya ha expresado su idea de


que la libertad es “permanecer consigo mismo en el otro” – que en esta
fórmula abstracta todo depende de la “naturaleza de lo particular”:15
es decir, que yo pueda identificarme con un acto mío depende de qué
tipo de fin haya yo escogido16. Si todas las acciones que realizas expre-
san fielmente cuál es el contenido de tu subjetividad, entonces saber
qué significa ser libre, implica responder una pregunta (1) acerca del
contenido que los agentes se proponen realizar y (2) acerca de si los
agentes pueden identificarse racionalmente con la realización de tales
contenidos (sin enajenación y sin tragedia).
La pregunta por la libertad del agente no es, por tanto, una pre-
gunta relativa al poder causal de la voluntad o de la razón en compa-
ración con varios mecanismos naturales (por ejemplo, no es una pre-
gunta que requiriese decir algo sobre si la voluntad y la razón pueden
imponerse a otro tipo de impulsos causales – v.gr. pasiones e inclina-
ciones); tampoco una pregunta relativa a la posibilidad de haber elegi-
do de otra manera (esto es, si ser libre implica no estar determinado).
Se trata más bien, como ya dije, de si bajo ciertas condiciones sociales
y psicológicas el agente puede afirmar su realización (no sólo de una
acción particular, sino de su agencia en general) como algo querido
y sabido por él y en la que su agencia se vea confirmada, respaldada

El caso interesante (estoy tentado de llamarlo “caso límite”) es la consideración de los or-
ganismos vivos (porque “tienen el principio del movimiento en ellos mismos”., Pero los
organismos no son un caso límite porque la biología no sea una ciencia natural, o porque no
podamos remitirnos, para explicar los mecanismos que posibilitan, por ejemplo, el apren-
dizaje, al sistema nervioso, sino porque ellos reaccionan frente a los estímulos del entorno
a partir de un “sentimiento de sí” o una proto-subjetividad. Su conducta podría ser tratada
provechosamente como expresión de estados internos (como ocurre en las versiones ciber-
néticas del sistema nervioso). El caso de la subjetividad humana es peculiar, no porque no
podamos apelar a consideraciones “externas”, sino porque en la mayoría de los casos enten-
demos mejor la conducta de los seres humanos cuando la entendemos como manifestación
de su “subjetividad”. La explicación meramente causal es deficiente, por ejemplo, a la hora
de imputar responsabilidad. O, en general, entendemos mejor la conducta de los agentes
cuando la entendemos como conclusión de un razonamiento práctico.

15
Hegel 1992a, 57.

16
“Este retorno de la voluntad a sí misma es lo formal – primeramente en general – un deber-ser
– se siente igualmente que [el hecho de que] el yo esté en ello [sc. lo realizado] como consigo
mismo, depende de la naturaleza de lo particular. Lo particular es el fin – ciertamente, de modo
formal es mi fin, pero este puede tener un contenido que me es dado de alguna otra parte y que
es distinto del yo” (Hegel 1992a, 57). Anotación marginal de Hegel al § 7. La traducción es mía.

169
Juan Ormeño Karzulovic

por otros. Pero puesto así, el punto es complicado: 1) el criminal que


a sabiendas lesiona el derecho de otro cumple con los dos primeros
requisitos (v.gr. reconoce la acción como algo suyo), pero no puede
afirmar su agencia en el reconocimiento de esa acción por parte de la
comunidad, aunque todavía podría, en la compañía apropiada, jactar-
se de esa acción suya. Tal acción no sería del todo libre, de acuerdo con
Hegel, porque las razones que el agente podría aducir para explicar
esa conducta no podrían ser compartidas por toda la comunidad – no
es lo suficientemente universal. 2) Tanto el criminal, así como la comu-
nidad de la que él forma parte, podrían estar de acuerdo en que el cas-
tigo merecido por su crimen es su propia obra (pues sólo tiene sentido
imponer un castigo si quien realizó la acción injusta cumple con los
requisitos de la culpabilidad), pero es difícil imaginar que el criminal
diga del castigo que eso era lo que quería y sabía de su acción. 3) Pro-
bablemente uno es libre cuando el bien que representa la realización
de la acción para el agente puede ser afirmado por los demás también
como bueno. Esto puede ocurrir, sin embargo: a) cuando te identificas
con la realización de lo socialmente deseable, o b) cuando te identificas
con la realización de lo socialmente admisible. Ambas cosas pueden
ocurrir sin que sea necesario que tu concepción del bien (o la de tu
comunidad) sea “totalmente” racional. Menciono estas cosas porque,
desde este punto de vista, la concepción que Hegel tiene de la acción
se conecta naturalmente con la idea del bien (como ocurre en la sección
“Moralidad”) y con su concepción de la “vida ética de un pueblo” –su
visión de las instituciones modernas “objetivamente racionales”. Aun-
que no puedo tratar aquí este asunto, me parece que queda claro el
modo en que Hegel liga la posibilidad de que un agente sea libre con
su participación en una comunidad conceptual con otros.
Naturalmente, la mención al saber y querer del agente nos remi-
te al otro énfasis en la concepción hegeliana de la acción que he men-
cionado más arriba y que se relaciona con una cuestión importante, a
saber, cuáles son los criterios que nos permiten seleccionar un evento
o suceso, una ocurrencia, como una “acción”. Un movimiento corpo-
ral, algo que digo o, en general, un evento que mi cuerpo cause en
el mundo no cuenta, por ello, como mi acción, a menos que eso que
he hecho se vincule de modo especial con un contenido mío, a cuya

170
Expresión y retrospección
La concepción hegeliana de la acción

realización mi conducta sirva como medio. Importante es aquí, según


Hegel, que el contenido “no sólo contenga mi subjetividad para mí
en cuanto finalidad interior mía, sino también en cuanto ha recibido
la objetividad exterior”;17 que, además, en cuanto contenido particular
de una voluntad, esta finalidad – consista ella en la satisfacción de una
necesidad natural o social, como el hambre, el apetito sexual o el honor
– deba poder ser articulada proposicionalmente –i.e. tener un cierto
grado de generalidad, de modo que pueda ser instanciada en distintas
realizaciones y, por tanto, ser realizada correcta o incorrectamente, de
acuerdo o en desacuerdo con un estándar normativo.18 La existencia
inmediata que este contenido adquiere por medio de la realización es
el modo en el que otros la juzgan: en el juicio de otros agentes la re-
alización del contenido es interpretada y evaluada según estándares
públicos, o adquiere una existencia intersubjetiva.19 (Estoy tentado de
decir que el status que otros confieren a esa realización es esa existencia
inmediata). De esto Hegel concluye: “La exteriorización de la voluntad
como subjetiva o moral es la acción. La acción contiene las determina-
ciones señaladas de: a) ser sabida por mí como mía en su exterioridad;
b) relacionarse de forma esencial con el concepto como un deber; y c)
estar en relación con la voluntad de otros”.20
Preguntarse si un acto realiza una intención no es una cuestión
relativa al poder causal que podamos atribuirle a ciertos estados in-
ternos, sino que se refiere más bien a si a) el agente puede identificar
ese acto como suyo y si b) los demás pueden reconocerlo como algo
que puede serle atribuido o imputado (lo que requiere, según Hegel,
prácticas institucionalizadas donde esto sea posible. Prácticas de im-
putación requieren una comunidad de conceptos compartidos por to-
dos quienes forman parte de esa “forma de vida”. 21 En la antigüedad,
tal comunidad conceptual podía ser local e idiosincrática, vinculada a

17
Hegel 1992a/1993, § 110.
18
Hegel 1992a/1993, § 111.
19
Hegel 1992a/1993, § 112.
20
Hegel 1992a/1993, § 113.
21
Debo esta idea a un interesante artículo del prof. Edgar Maraguat, del Departamento de
Metafísica y Teoría del Conocimiento de la Universitat de València, titulado “Acción, vo-
luntades y objetividad”, que presentó en el congreso del 2010 de la Sociedad Española de
Estudios sobre Hegel y cuya versión original no publicada, tuvo la amabilidad de enviarme.

171
Juan Ormeño Karzulovic

nociones religiosas de la responsabilidad. En la comunidad moderna,


en cambio, tales conceptos tienen pretensiones de validez universal). 22

4. El carácter retrospectivo de la acción

Hegel parece pensar, como Anscombe,23 que debemos poder


“leer” la intención con la que un agente actúa a partir de la observaci-
ón de la conducta y no simplemente esperar que el agente nos cuente
las razones que él dice haber tenido para hacer lo que hizo. Nuestras
prácticas institucionalizadas de atribución de intenciones y de respon-
sabilidad presuponen un acceso intersubjetivo a la “intención” en la
acción (i.e. aquella descripción de una realización que la interpreta
como conclusión de un razonamiento práctico o, como lo dice Ans-
combe, aquella descripción que no excluye la pertinencia de la pre-
gunta: ¿por qué hiciste x?), que luego puede ser contrastado con la
racionalización que el propio agente hace de su acción. Concordemos
que en muchos casos, sobre todo en los casos más simples, lo que pue-
dan decir los observadores coincidirá o será similar a la racionalización
del propio agente (por ejemplo, habiendo dos bebidas disponibles, té
y café, vemos al agente beber té. Si el acto es intencional, el observador
interpretará la selección del té como el resultado de una ponderación
o juicio: “A cree que es mejor beber té que café”, respaldado por al-
guna razón – v.gr. “porque el café a esta hora le hace mal”´, “porque
no toma café” o “porque le gusta el té (más que el café)” – y luego
preguntar al agente. Naturalmente, la respuesta del agente podría di-
vergir de lo que nos parece razonable o normal (como en el ejemplo de
Anscombe del individuo que, habiendo aserrado unas tablas, contes-
ta a la pregunta “por qué” diciendo que le encanta el ruido que hace
la sierra al cortar la madera o que estaba ejercitando sus bíceps), y,


22
“Partes completas del mundo, África y el oriente, no han tenido esta idea [sc. la de la libertad] y
no la tienen aún. Griegos y romanos, Platón y Aristóteles, incluso los estoicos tampoco la tuvie-
ron. Por el contrario, sabían sólo que el ser humano era efectivamente libre por nacimiento (en
tanto ciudadano ateniense, espartano, etc.), o por la fuerza de su carácter, su educación o por
medio de la filosofía (el sabio incluso como esclavo y en cadenas es libre). Esta idea ha llegado
al mundo por medio del cristianismo, según el cual el individuo como tal tiene un valor infinito,
en cuanto objeto y fin del amor de Dios está destinado a tener con Dios su relación absoluta, a
tener este espíritu habitando en él – es decir, que el ser humano está en sí destinado a la libertad
suprema”. Hegel 1992c. Observación al § 482. La traducción es mía.
23
Anscombe, 1991.

172
Expresión y retrospección
La concepción hegeliana de la acción

con todo, vincularse con la realización, racionalizando la acción, aun-


que de modo exótico. Esta posibilidad de divergencia es importante
para Hegel, porque provee el vocabulario de las excusas con las que
el agente puede, si no rechazar, al menos atenuar la responsabilidad
que se le imputa. Para permanecer en el ejemplo anterior: a la pregun-
ta “¿por qué está Ud. aserrando las tablas de Juan?”, la persona que
está aserrándolas podría contestar: “No sabía que estas tablas eran de
Juan”. Es decir, la descripción de la acción como “aserrar tablas de
Juan”, aunque verdadera, no es la descripción intencional de la acción
(bajo esa descripción el agente no puede reconocer lo que creía estar
haciendo y, por tanto, tampoco lo que quería hacer). Pero aunque la
posibilidad de apelar al “saber y querer” del agente parece ser, por sí
misma, suficiente para determinar qué “acción” es la que se ha llevado
efectivamente a cabo (la contenida en la descripción intencional del
evento al que refiere), no es, según Hegel, suficiente para asegurar que
el contenido de la intención del agente sea un contenido que pueda ser
determinado privadamente. Una razón para ello es que una acción es
un ejemplo, un caso o una instancia de un tipo general – en el lenguaje
de Hegel, la acción no es simplemente este evento particular, sino que
puede ser subsumida bajo un predicado general (como cuando deci-
mos que la muerte de Juan como resultado de un golpe que Pedro le ha
propinado califica la acción de Pedro como homicidio). Ciertamente,
predicamos de la acción su pertenencia a una clase general, porque la
acción ha tenido una consecuencia causal que no se hallaba contenida
en el propósito (golpear a Juan para dañarlo, pero no para matarlo).
En rigor, Hegel distingue el propósito – en este caso, golpear a Juan
–, de la intención bajo la cual el propósito queda subsumido como un
medio – en este caso, dañar a Juan. Pero si la acción es intencional (v.gr.
Pedro podría alegar que sólo pretendía dañar a Juan y así evitar que se
le impute la consecuencia), el agente no puede evitar que se le impute
la consecuencia cuya posibilidad está contenida en el aspecto universal
de su intención (matar a Juan es una manera, entre otras muchas posi-
bles, de dañar a Juan): en tanto agente racional conoce [debe conocer]
esta conexión “entre lo singular y lo universal”. Hegel realiza estas
distinciones cuando habla del “derecho de la intención”, que consiste
en que al agente se le impute la “cualidad general” de la acción sólo en

173
Juan Ormeño Karzulovic

la medida en que esté en condiciones de conocerla (lo que excusaría a


“niños, idiotas, locos, etc.”).24 Pero al mismo tiempo le contrapone lo
que él llama “el derecho de la objetividad de la acción”, que consiste
en que el agente no puede rechazar que se le impute lo que, en tanto
racional, debería haber sabido.
Podríamos reinterpretar las anteriores diferenciaciones distin-
guiendo entre “consecuencias externas de la acción” (aquellas que ésta
tiene por el hecho de, en tanto evento, formar parte de múltiples cadenas
causales, cuyas conexiones el agente no podía prever) y “consecuencias
internas” de la misma (aquellas contenidas como ejemplificación posible
del carácter general de la intención). Pero quizás es más fructífero usar
el idioma de Brandom para categorizar este asunto y, así, retornar a la
cuestión acerca del carácter retrospectivo. Que el agente pueda remitir a
lo que sabía y quería de su acción (lo que está contenido en el propósito
que el agente se ha formado y la intención a la cual tal propósito sirve
como medio) para delimitar su responsabilidad por las consecuencias
de la misma, equivale a afirmar una autoridad que el agente tiene sobre
su propia acción, por medio de la cual éste pretende tener un título para
limitar los alcances del juicio de los demás (i.e. el agente pretende tener
autoridad sobre las prácticas institucionalizadas de imputación). Que
esta pretensión de autoridad esté justificada dependerá de cómo se con-
ciba la agencia en una comunidad determinada. Como ya sugerí, Hegel
sostiene que entre los modernos, que se conciben como sujetos moral-
mente responsables por los fines que deciden perseguir, tal pretensión
está justificada, al menos hasta cierto punto. Con todo, esa pretensión de
autoridad no puede ser concebida independientemente de la correspon-
diente responsabilidad: si tal fuese el caso, el “sujeto moral” ejemplifica-
ría el tipo de pretensión de dominio absoluto que Hegel vincula con la
autoconciencia del señor de la sección “Autoconciencia”, que, según él,
es una posición insostenible.25

24
Hegel 1992a/1993, § 120.

25
En el famoso capítulo IV de la Fenomenología del espíritu, Hegel considera el escenario ficticio
de una originaria lucha por el reconocimiento entre dos individuos, A y B, que tiene lugar
porque la independencia que cada uno de ellos cree tener se ve potencialmente menoscaba-
da por la independencia del otro. En el intento de ambos por lograr que el otro reconozca
su independencia, cada uno pretende someter al otro –es decir, acabar con la independencia
del otro. Previsiblemente no hay una buena solución a un conflicto planteado en términos
tan radicales: o bien A mata a B, o bien es muerto por él. La única solución posible –el único

174
Expresión y retrospección
La concepción hegeliana de la acción

La comunidad puede tomar en cuenta, como un dato esencial,


lo que el agente sabía y quería en su acción, pero también tomará en
cuenta, de modo igualmente esencial, lo que podríamos llamar la “pre-
tensión de autoridad” que el juicio de la comunidad eleva al calificar la
acción según el predicado general que ejemplifica. Es decir, el agente
puede pretender razonablemente un privilegio respecto de cuál de las
descripciones posibles de su acción él considera que expresa su “saber
y querer”, pero esto no implica que el sentido que su acción pueda
tener (y, por tanto, tampoco el sentido de su “intención”) pueda deter-
minarse privadamente, por la sola referencia a las razones del agente
antes de la acción. Esta explicación puede darle plausibilidad a la idea
contraintuitiva, según la cual la determinación de la intención sólo
puede ocurrir después de que esta ha sido realizada en la acción.
Teorías que explican la acción por referencia a estados mentales
incorregibles, a los que antes de la acción sólo tiene acceso el propio
agente en cada caso, tienen que presuponer que el contenido de tales
estados (su sentido o significado) está ya determinado de antemano.
Y arguyen, razonablemente, que si esos estados no hubiesen tenido el
contenido determinado que tenían antes de la acción, la acción hubiese
sido diferente o no habría tenido lugar en absoluto. Pero consideremos
algunos casos intuitivamente plausibles: la persona que juzga acerca
del propio carácter, atribuyéndose o negándose una cierta cualidad
(valentía o firmeza), antes de haber hecho la experiencia que hubiese
puesto a prueba la verdad de semejante certeza, descubre habitual-
mente algo nuevo acerca de sí mismo cuando, después, juzga lo que
ha realizado efectivamente. Algo similar puede decirse del estudian-
te que, antes de que se le entreguen los resultados de la evaluación,
está cierto del resultado de la misma (bueno o malo) o del artista o del
académico que, satisfecho o insatisfecho de su obra, espera la misma

escenario en el que puede darse el reconocimiento de la independencia de, al menos, uno


de ellos- es una mala solución: uno de ellos (digamos A) se rinde para salvar su vida, y con
ello, produce una situación en la que B ve reconocida su propia independencia en el some-
timiento total (o la falta de independencia total) de A. Esta relación del señor y el siervo es
potencialmente inestable: B dispone de autoridad absoluta, pero no tiene ninguna responsa-
bilidad. A, en cambio, sólo tiene responsabilidades, pero no dispone de ninguna autoridad.
Pero es obvio que una posición de autoridad sólo puede mantenerse cuando implica la res-
ponsabilidad que tal autoridad conlleva. De lo contrario, no es posible justificarla frente a
otros. Véase: Brandom 2004 y Pippin 2011.

175
Juan Ormeño Karzulovic

reacción por parte de la audiencia y del agente bien intencionado que,


tratando de hacer el bien a otros los perjudica. En cualquiera de estos
casos la falsedad o verdad del “saber y querer” previos a la acción pue-
den no depender de la agudeza o cortedad del juicio del agente, sino
de lo que sale a luz en el juicio de los demás. Lo que la conciencia es en
sí, escribe Hegel, lo sabe sólo a partir de su actualidad: “El individuo,
por tanto, no puede saber qué es él, antes de que se haya llevado a la
actualidad por medio de su obrar”.26
En el libro III de la Ética nicomáquea dice Aristóteles que sólo la
acción realizada por ignorancia, pero que luego va acompañada de
pesar, puede ser calificada de involuntaria y, por tanto, ser excusa-
da, pues no había tenido su principio en el propio agente.27 Parte del
enigma que este pasaje ha presentado a los intérpretes se basa en una
concepción de la acción intencional que la remite a estados mentales
del agente, dotados de poderes causales, en el que se funda nuestro
hábito prospectivo habitual. Pues, ¿cómo podría un juicio posterior a
la acción modificar su carácter, es decir, en los términos de Aristóteles,
hacerla pasar de ser una acción “no-voluntaria” a ser una acción “in-
voluntaria”, y por tanto excusable? ¿Cómo podría ser modificada la
acción de Edipo por el terrible descubrimiento posterior de que aquél
al que ha matado era su padre y no un desconocido? Tal modificación
de la acción parece ser externa, relativa sólo a la cualificación que la
acción ha merecido tanto al agente como a la audiencia.28 Y no quisie-
ra sugerir aquí que Aristóteles, en un atisbo genial, anticipó esto que
he llamado “concepción retrospectiva de la acción”. Pero imaginemos
una persona que realiza lo que hace porque cree no sólo que es lo justo,
sino que además se siente moralmente compelida a hacer justicia. Tal
persona podría descubrir, después, que su intención no era justa sino
injusta, que la compulsión del deber no era sino obstinación y sostener,
26
Hegel 1992b, 297.
27
Aristóteles 1985, 1110 b, 15-20.
28
Aristóteles dice que “todo lo que se hace por ignorancia es no voluntario, pero, si causa dolor
y pesar, es involuntario”. Según Christof Rapp, que se hace cargo de la perplejidad de los in-
térpretes, es necesario leer este pasaje no en relación con las acciones, sino en relación con el
carácter del agente, para juzgar el cual las emociones son centrales. Una acción propiamente
involuntaria no nos permite sacar conclusión alguna acerca de las virtudes del carácter del
agente. En cambio, la acción no-voluntaria, como la llama Aristóteles nos muestra que, al
menos, la acción no va contra el carácter del agente (Rapp 1995, 119).

176
Expresión y retrospección
La concepción hegeliana de la acción

como lo hace Antígona, que “porque sufrimos, sabemos que hemos


obrado mal”.29 Una concepción expresiva y retrospectiva de la acci-
ón podría, con más fortuna que la concepción mentalista y causalista,
iluminar nuestra comprensión de la acción trágica y de la agencia alie-
nada – dos casos de infortunio práctico que no están vinculados a la
irracionalidad en la acción sino a la naturaleza social de la comunidad
en la que tales acciones tienen lugar – y hacernos comprender mejor
cuál es la naturaleza de nuestra libertad.

Bibliografía

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Hegel, G.W.F. 1993. Filosofía del derecho. Madrid: Libertarias/Prodhufi.


29
Verso 926 de la Antígona de Sófocles. Citado por Hegel en Hegel 1992b 348/1966 278. En la
traducción de Leandro Pinker y Alejandro Vigo (Bs. Aires: Biblos, 1994. p. 104), se lee “des-
pués de sufrir, podríamos reconocernos equivocados”.

177
Juan Ormeño Karzulovic

Moyar, Dean. 2008. “Self-completing alienation: Hegel’s argument for trans-


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178
Da coisa quebrada à dignidade da pessoa na
filosofia do direito de Hegel

Pedro Geraldo Aparecido Novelli


Unesp – Campus de Marília

Introdução

Em suas “Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito” 1, na se-


ção dedicada ao Direito Abstrato, Hegel considera a necessidade de
efetivação da vontade livre no ser aí, no mundo. A vontade que é livre
em si somente se dá conta de ser aí livre na medida em que se vê livre
para si. É o já conhecido sair de si para estar em si talvez até pela pri-
meira vez. Aparentemente ter-se-ia aqui um abandono de si para a si
se ter, se encontrar. Muito embora a vontade já seja livre em si ela se
afirma livre ao se negar através do como se põe enquanto livre. Para
Hegel a vontade livre se quer livre e, consequentemente, se sabe livre
porque se faz livre. Ela não é senão dependente de si mesma e somente
de si. Ela faz o que quer porque quer o que faz. O que faz não é senão
ela mesma. Com isso a vontade livre se expande ou se espalha por so-
bre o que quer que seja como sendo a si mesma e o que aí está ou toda
e qualquer objetivação não é senão a própria vontade. Ela começa ser
em si no ser outro que aos poucos ela reconhecerá como o outro de si.


1
G.W.F. Hegel. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do
Estado em Compêndio. Trad. de Paulo Meneses et al. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2010.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 179-193, 2015.
Pedro Geraldo Aparecido Novelli

O medo da coisa quebrada

No momento do Direito Abstrato a vontade se põe inicialmente na


coisa, depois numa coisa e, finalmente, coisifica-se. Inicialmente na coisa
porque a vontade livre se apropria independentemente do que quer que
isso possa obter ou ser como determinação. Trata-se de uma determinação
indeterminada por não coincidir nem se resumir em coisa alguma, mas tão
somente na coisa. Por isso, a vontade livre aparece nesse momento como
apropriadora, como feitora do ser da coisa ela própria. Ao se apropriar a
vontade livre se faz a própria coisa que, por sua vez, ainda não seria coisa
alguma. Com a apropriação a vontade livre se põe na coisa e põe a coisa em
si. A universalização da vontade livre percorre a senda da particularização,
pois se deixa determinar na determinação limitante da coisa. Já que a von-
tade livre ao se por na coisa traz a coisa consigo, ela é no ter da coisa ou no
ter a coisa o que a leva a se apossar da coisa. Concomitantemente a vontade
livre se apossa de si mesma porque é pela coisa ou por si mesma coisificada
que ela vem a se reconhecer. Eis a tomada de posse na qual a delimitação
da coisa começa a adquirir conteúdo. No entanto, o conteúdo da coisa não
é nada mais nada menos do que a vontade livre pela qual a coisa é o que
é, mas, ao mesmo tempo, institui objetivamente a própria vontade livre.
A tomada de posse ou o assumir que se possui ou ainda trazer
sob seu controle e cuidado faz com que a indeterminação da coisa seja
suprassumida na relação de determinação do possuidor e do possuí-
do. Já ocorre nesse momento a posse do possuído como possuidor e,
deste, como possuído. A vontade livre que se quer possuidora se torna
possuída na coisa que possui. A coisa possuída advém possuidora da
possuidora. Cria-se a interdependência entre a vontade livre e a coisa.
A coisa parece adquirir autonomia, pois desde a apropriação a desa-
propriação começa a tomar lugar porque o que se torna por um aspec-
to apropriado por outro vem a ser desapropriado. Assim como o que é
deixa de ser por exatamente ser, de igual modo o que é apropriado se
constitui como o que se desapropria. Com a tomada de posse isso se
evidencia ainda mais porque o que se tornou de um deixou de ser de
outro e, por ser de um cria as condições para ser de outro. A tomada de
posse nega a apropriação porque esta necessita ser objetivada para não
permanecer uma abstração. Portanto, ao se realizar a concretização da

180
Da coisa quebrada à dignidade da pessoa na filosofia do direito de Hegel

apropriação na tomada de posse, contraditoriamente, se estabelece a


negação do ato de se apropriar.
O processo, assim dito, comandado pela vontade livre se lhe tor-
na um processo alheio porque ao querer se impor a coisa e, de fato fa-
zê-lo, ela também se torna presa da coisa da qual passa a depender e a
qual acaba por atribuir sua própria sustentação. Isso se evidencia na
obsessão desenvolvida pela vontade livre em relação à coisa manifes-
tado na ânsia pela coisa e no temor com respeito à perda da mesma.
Conforme já mencionado anteriormente a vontade livre passa a ser coi-
sa de sua coisa. Se, inicialmente, a vontade livre precisava da coisa
para chegar a si mesma agora ela busca a coisa para ficar na própria
coisa como que abdicando de si mesma. Na verdade não é possível que
ela o faça, mas ela chega a ficar tão delimitada pela coisa que deixa de
se conhecer e reconhecer como causa e efeito de si. A vontade livre
presa à coisa e presa da coisa passa a experimentar o desconforto de
perder a coisa ou como ameaça permanente ou como fato consumado.
A perda da coisa é sua própria perda. O verdadeiro medo que seria a
perda de si lhe é roubado. Seu medo passa a ser o medo da coisa que-
brada. Não é incomum que ao se relatar uma batida de automóvel a
pergunta seja invariavelmente “Estragou muito?” Entenda-se aqui que
se refere ao automóvel, se é que alguém tenha alguma dúvida sobre
isso. Dificilmente se pergunta, não seria possível sem um certo esforço,
“Você se machucou?” “Tudo bem com você?” Curiosamente os bens
de alguém invariavelmente são identificados com as coisas que este
alguém possui. Faria sentido indagar o que se pretende quando se
cumprimenta alguém lhe dizendo “Tudo bem?” E, quando não se está
bem de fato, qual seria o quadro a partir do qual alguém deixaria de
estar bem? É inegável que os bens de toda espécie ajudam a garantir
que se esteja bem ou num certo estado do bem e de bem. No entanto, a
vontade livre no ato da tomada de posse começa a descobrir o medo de
se perder na coisa que se perde. Hegel já adverte no início do Direito
Abstrato que a coisa é posta a perder no exato instante de sua apropria-
ção, pois ela é posta e exposta primeiramente à cobiça e depois à sua
procura enquanto necessidade. Em outras palavras o que é de alguém
se torna dos demais na medida em que o que um tem o outro pode vir
a querer por saber desse algo. Além do mais se é bom para alguém e,

181
Pedro Geraldo Aparecido Novelli

isso é evidenciado por quem possui, então por que não poderia ser
igualmente para um outro? Desse modo a coisa escapa à posse do pos-
suidor, pois se não posso ter o que o outro tem, então talvez possa ter
algo bem parecido ou também feito e ou produzido para mim. Aparen-
temente o possuidor poderia evitar a perda empreendendo esforços no
sentido de preservar a coisa, porém isso também implica na perda da
coisa porque a coisa precisa ser guardada, preservada. A coisa se esva-
nece na sua inefetividade ou o que levaria o possuidor a deixar de ser
o que é. Talvez se a coisa se restringir à exposição somente a mim a
perda possa ser diminuta ou quase inexistente. Contudo, a tomada da
posse, segundo Hegel, já implica no uso da coisa por ser minha e não
de outro. A coisa para mim é a coisa empregada em meu benefício,
para o meu bem. Enquanto a coisa permanece o que é, isto é, minha
coisa, ela cumpre o papel de ser o meu bem, porém não o bem de to-
dos. A coisa que é para a vontade livre faz com que também a vontade
livre seja para a coisa. A objetivação da vontade livre na coisa é algo
grandioso porque não somente estabelece o senhorio da vontade livre
sobre o mundo como também revela uma infinidade de exposições e
realizações da vontade livre nas coisas que ela possui. É aí que a von-
tade livre descobre sua satisfação, seu gozo, sua afirmação. Que a von-
tade livre seja capaz de se apossar fica patente em cada posse, mas ela
sucumbe presa da posse que precisa ser repetida e atualizada perma-
nentemente. Não é mais possível deixar de possuir, pois isto significa-
ria a nulidade e a abstração do indeterminado. Por isso, a aquisição
contínua é uma outra forma de preservação. Talvez seja o que comu-
mente se caracteriza como o “ter para ser”. A posse da coisa é garanti-
da com a sua constante e repetida aquisição. Eis a figura do consumo
do qual não se pode abrir mão porque sem ele a coisa deixa de estar aí.
Por um lado, poder-se-ia pensar que se trata do consumo pelo consu-
mo o que seria uma forma de substituir a coisa específica pela coisa em
geral. Por outro lado, pode-se também considerar um consumo da coi-
sa desnecessária porque o consumo garante a posse da coisa sem que a
coisa em si seja determinante. Como consequência o que se tem é a
invenção da coisa desnecessária necessária. Em outras palavras não se
sabe porque se precisa da coisa, não se sabe porque se tem a coisa, mas
a coisa está aí como resultado de um esforço intencional e programado

182
Da coisa quebrada à dignidade da pessoa na filosofia do direito de Hegel

para tanto. O estado de necessidade para Hegel se opõe ao estado de


liberdade, mas, dialeticamente, gesta e gera a liberdade. Contudo, é da
natureza do estado de necessidade gestar e gerar a si mesmo, ou seja, a
necessidade vive de si mesma. Necessidade produz necessidade e de
um modo a cercear a ruptura desse círculo. É verdade que não há ne-
cessidade sem satisfação, porém a satisfação não pode ultrapassar, su-
perar (não no sentido de (Aufhebung, suprassunção) porque o reino da
necessidade seria derrotado. No contexto da posse da coisa a necessi-
dade se torna uma satisfação e a satisfação uma necessidade. A neces-
sidade satisfaz a necessidade de si. A satisfação, por sua vez, se faz
necessária enquanto necessidade da necessidade. Esse é o torvelinho
no qual a vontade livre se enreda na medida em que se encontra na
coisa. Se esse estado de coisas para a vontade livre pode significar sua
perda enquanto vontade e enquanto livre, então ela deveria se esforçar
por abandonar tal estado. Mas, ela tem consciência disso? Ela sabe no
que é que se pôs? Hegel deixa entender que sim porque é a vontade
que constitui a coisa ou na coisa. Ao mesmo tempo isso não parece
claro para a vontade porque ela se descobre enquanto o que é no pro-
cesso de fazer e de se fazer. Entretanto, o mais curioso ainda seria in-
dagar se a vontade livre desejaria abandonar tal situação. Ela experi-
menta a submissão de tudo a si. Ela se submete a si mesma. Ela faz de
si o que deseja. O que mais ela poderia encontrar fora dessa situação?
O que faria com que ela abrisse mão da coisa? Essa pergunta parece ter
sua atualidade diante da enorme e prazerosa possibilidade de satisfa-
ção que o ter proporciona. Será que faz sentido o desafio do “De que
vale a pena o homem ganhar o mundo se vier a perder sua alma”? Ou
ainda mais simplesmente “Dinheiro não é tudo”? Para Hegel a respos-
ta a essas questões não pode vir de nada mais do que da própria von-
tade livre. O estado de coisas ou para as coisas no qual a vontade livre
se encontra não tem sua origem, desenvolvimento e instituição senão
na própria vontade livre. Ela pode até atribuir a autoria de suas des-
graças e privilégios a algo mais que não ela mesma, mas é ela sempre
que realiza tal delegação. Portanto, para que ela deixe a situação na
qual se encontra por entender que sua identificação e afirmação na coi-
sa lhe é perniciosa ou lhe retira o próprio querer e a liberdade, ela
precisa querer a mudança. A Filosofia do Direito afirma e demonstra

183
Pedro Geraldo Aparecido Novelli

desde seu início que a vontade livre é essencialmente relação. Ela não
é isolamento da auto-suficiência. Ela é vontade livre que se conhece e
se reconhece enquanto tal. Precisamente nesse aspecto se encontra a
viabilidade da mudança que se dá através da confrontação da vontade
livre consigo mesma. A vontade livre é coletividade e individualidade,
e consequentemente, não pode ser tomada como solipsista. Com razão
poder-se-ia agora interpelar afirmando que na coisa, nessa saída de si,
a vontade ainda não se sabe livre, aliás, nem como vontade, mas se
encontra no processo para tanto. No entanto, se esse é um momento
que a vontade precisa percorrer isso não significa que obrigatoriamen-
te vá além dele e, indo além dele não significa também que a ele não
retorne. A vontade livre não somente não é um isolamento, mas tam-
bém não é coletividade formal e abstrata. Ela é efetividade histórica
instituída. Conforme o próprio Hegel afirma não é suficiente dizer que
se é livre; é necessário sê-lo de fato. Sempre seguindo Hegel é cabal que
a vontade livre nem sempre se soube livre do mesmo modo e nem para
todos. A sua instituição confrontou a indeterminação e a arbitrarieda-
de, pois não se é livre de qualquer modo nem segundo a compreensão
de alguns mais do que de outros. Então, a vontade livre é individual e
é também muitas individualidades que se deparam umas com as ou-
tras e estabelecem por suas escolhas com o máximo de consciência pos-
sível como permanecerem em relação umas com as outras. O meu e o
seu ficam explicitados nesse momento. Estes podem ceder lugar ao
nosso como forma de garantir o “meu” e o “seu”, mas podem igual-
mente recusar ao “nosso” precisamente por entenderem que é assim
que o “meu” e o “seu” serão preservados. Note-se que ainda estamos
aqui marcados pela relação com a coisa. O “meu”, o “seu”, o “nosso” o
que seriam? Não são outra coisa que expressão da posse com a diferen-
ça de que ou se tem temendo deixar de ter ou tendo sem que o temor
do deixar de ter seja o determinante.

O medo de perder a vida

Pelo “meu” e pelo “seu” a coisa permanece sempre sob a ameaça


de já não continuar mais sob a posse. Não é de se estranhar que a posse
da coisa enquanto privada em toda a sua extensão, seja de indivíduos

184
Da coisa quebrada à dignidade da pessoa na filosofia do direito de Hegel

quanto de grupos, ela evoca a necessidade de proteção, de seguro. Tudo


passa a ser segurado. Tudo seria exagero, pois isso se aplica às coisas,
porém não obrigatoriamente às pessoas. Nem todos possuem seguro de
vida e não porque a vida seja menos ameaçada do que as coisas. As ame-
aças contra a vida são também do âmbito do imprevisível, do incontro-
lável. Casas, por exemplo, possuem seguro da estrutura física e de seu
conteúdo com exceção das pessoas. Como o seguro “morreu de velho”,
então porque não muros altos, cercas elétricas, cães, que dependendo
da raça podem até atacar o próprio dono, pois é melhor pecar por exa-
gero do que lamentar depois o que mais poderia ter sido feito, e ainda
pode-se contar com vigilância monitorada, etc. Não se pode nem se deve
esquecer ainda o aparato judicial que se mobiliza rapidamente quando
o patrimônio é lesado o que, aliás, é sempre ampla e largamente coberto
pela mídia. Por outro lado, o “nosso” não pode se pautar pela exclusão
nem pelo receio diante de quem quer que seja, pois não há quem aí não
se encontra na posse do que quer que seja. O proprietário não é dificil-
mente conhecido ou sabido porque qualquer um o é. Aqui talvez pareça
muito mais ser o desejo pelo que se gostaria de ter como organização so-
cial, mas Hegel sabe que não se vive segundo o que deveria ser e, como
bom leitor de Maquiavel, sabe que o mundo não é como gostaríamos
que fosse, mas é como é. No entanto, o que o mundo é, é o que queremos
que ele seja sendo que esse querer é coletivo e a coletividade é multifa-
cetada, com os mais diferentes interesses e até tolerante com a variedade
de escolhas que mesmo por isso não são sempre coincidentes. O direito
abstrato introduz aos poucos o que a seção dedicada à sociedade civil
burguesa escancara, ou seja, que o comum aí é o interesse. Contudo, não
se trata do interesse pelo outro. Em relação ao outro existe muito mais
a atenção. Quando o outro se aproxima o que será que ele quer? Eu não
consigo, somente eu e mais ninguém, deixar de pensar que ao ser abor-
dado numa rua, por exemplo, que alguém não venha até mim pedir-me
o substituto universal da coisa, dinheiro. O outro sempre quer o que
eu tenho. Não se pode deixar de notar também que invariavelmente se
acredita que sempre temos algo. Não há espaço aqui para considerar a
ideia de que quem tem fez por merecer, pois ter é sinônimo de qualifica-
ção que predispõe para o ter. Estar no lugar certo, na hora certa e até ser
esperto poderia ser identificado com a meritocracia.

185
Pedro Geraldo Aparecido Novelli

Hegel deixa claro que na medida em que a vontade livre se dei-


xa prender à coisa e somente aí ter a sua afirmação e confirmação ela
experimenta o esgotamento de si como querer e querer livre, pois ela
não consegue mais porque na verdade não quer, retornar a soberania
de si que suprassume a coisa. Esse aspecto não é pouco conhecido nem
pouco criticado até mesmo na atualidade e encontra sua expressão no
desapego, na renúncia, no interesse pelos verdadeiros valores e até na
valorização da pobreza. É o que comumente de traduz pelo ser ao in-
vés do ter ou sou pobre, mas sou honesto. O problema não é a pobreza,
o comedimento, a escolha de valores ditos mais elevados, mas a insis-
tência no fato de que as pessoas devem ter menos porque não preci-
sam de tanto. Sem considerar desde onde essas falas são proferidas é
necessário lembrar que o espírito não se dissocia da matéria porque
aí ele se degrada. Não, a sua dissociação é a elevação da materiali-
dade à universalidade. O homem continua precisando da coisa para
sua satisfação e não se pense aqui que se trata somente do necessário
para sobreviver, mas para viver para além da quantidade também com
qualidade. Este é certamente um problema da vontade livre que se
encontra presa da coisa. Ela não se conforma com o fato de que a coi-
sa possa ser possuída por todos pelo receio de vir a ser ameaçada em
seu ter. Ela sabe que para ser é necessário ter. Precisamente por isso
ela procura ter e ter em abundância. Como de fato não há ser sem ter,
então é a mesma vontade livre que se incita coletivamente ao ter para
ser. Se, por um lado. o ter sem limites significa a exaustão do próprio
ter, por outro lado, o ter altamente limitado também conduz ao impe-
dimento do ter. Por que se deve ainda alardear aos quatro ventos que a
beleza do canto das sereias deve ser reservada a alguns privilegiados, a
alguns destinados sob o pretexto de eles se sacrificam por todos os de-
mais? Uns parecem somente pensar enquanto outros somente fazem.
E pensar é mais elevado do que fazer. Desde o começo dos tempos os
sacerdotes ou aqueles que dedicam o ócio ao sagrado, são vistos como
os melhores e mais dignos porque se sacrificam para o bem dos outros
fazendo por merecer um tratamento diferenciado e destacado que, não
se pode esquecer, seria garantido por aqueles que somente fazem. Por
que seriam estes menos dignos? Por que estariam estes se sacrificando
menos do que os outros? Por que fariam estes por merecer menos?

186
Da coisa quebrada à dignidade da pessoa na filosofia do direito de Hegel

Por que deveriam estes se contentar em ter menos? Se, por um lado, a
vontade necessita superar, no sentido aqui de deixar para trás, sua de-
terminação na coisa, por outro lado, ela não pode deixar para trás, aqui
no sentido de superar, a coisa. Não somente é pela coisa que a vontade
se conhece e se reconhece, mas é também pela coisa que a vontade se
põe também como vontade que existe como um ser-aí. Não se trata
de se render à materialidade ou se tornar materialista, mas afirmar
sua realidade na matéria no que esta tem de específico na medida em
que promove a subsistência, a preservação e a manutenção da mesma
vontade. A coisa em si não representa, para Hegel, uma ameaça à von-
tade nem um perigo à integridade da mesma, mas, sim, a relação da
vontade com a coisa ou como a vontade se determina em relação com
a coisa. No momento do Direito Abstrato a vontade aparece pela coisa
e tem na coisa sua efetividade. De certa forma, no mesmo sentido, a
vontade precisaria livrar-se da coisa para ser o que pode e deve ser,
ou seja, soberana. Contudo, se a coisa pode representar uma ameaça
à vontade através da excessiva dependência e ou identificação com a
coisa, de igual modo, e não menos ameaçadora é a independência em
relação a coisa, pois a vontade não é mera intelectualidade. A vontade
é o ser-aí da pessoa que vive do uso da coisa. Daí, a relação vontade e
coisa é a afirmação da coisa quista e da vontade que expõe o ser da coi-
sa no para si da mesma vontade. Com isso a vontade coloca a coisa no
lugar que lhe pertence de direito, isto é, de ser de uso da vontade, de
ser apropriada pela vontade, de ser realização e efetivação da vontade.
Não sem motivo a última parte da seção dedicada ao Direito Abstrato
é, conforme Hegel a organiza, a consideração da alienação da proprie-
dade e não da vontade muito embora na medida em que a vontade
encontra-se presa a coisa ela se perde no perder da coisa, mas também
a vontade se perde ao perder a coisa.
Entende-se que nesse estágio Hegel permite identificar o medo
que suplantaria o medo da coisa quebrada que seria o medo da perda
da vida. Esta não pode ser posta a perder por não poder ser simples-
mente substituída como ocorreria com a coisa. Além do mais a vida
não é algo que se tenha nem que se possua como compreendida pelos
contratualistas, mas o que o indivíduo é porque a vida de um indiví-
duo é ele mesmo e não algo do qual ele participa. A vida é sua totalida-

187
Pedro Geraldo Aparecido Novelli

de. Ela somente pode ser colocada em perigo se sua universalidade for
por aí afirmada e confirmada.

“O fato de que eu sou vivo e tenho um corpo orgânico não se-


gundo o aspecto pelo qual existo como o conceito sendo para si,
mas como o conceito imediato, repousa sobre o conceito de vida
e o do espírito enquanto alma – sobre momentos que são toma-
dos da Filosofia da Natureza e da Antropologia.” 2

A vontade que inicialmente conhece a coisa e aí se reconhece en-


quanto vontade tem nesse reconhecimento o conhecimento de si como
determinante de si no ser aí das coisas. A vontade vem a saber de si
como senhora da coisa e não mais coisificada ou indistinta da coisa.
A vontade que agora se tem em si para si após se dar no ser aí se vê
vontade. Seu ser, sua efetividade é apreendido agora nela mesma. O
receio de perder a coisa é muito mais o receio de se perder. A proteção
dada à coisa é a proteção dada a si porque ela já se sabe necessitada
da coisa, mas muito mais ainda sabedora de que sem ela a coisa pouco
lhe importa. A coisa é para sua proteção, para sua preservação, para
sua conservação. A coisa é para ela enquanto viva. A coisa se lhe torna
uma contingência ou um descartável porque ela reduz a coisa a si, ao
seu interesse e necessidade que é ela mesma em si. Ela passa a temer
por si, pela vida ou por si viva. Por mais que ela necessite da coisa ela
se tem nesse momento como o centro de toda atenção e preocupação.
Mais do que nunca a coisa é para ela e a vontade viva é que se imporá
a constituição da coisa seja na sua produção, confecção ou construção
como o que quer para si. Para Hegel isso se deve ao fato de que com
isso a vontade se quer. “Eu tenho esses membros, a vida, apenas na
medida em que eu quero: o animal não mutilar-se ou suicidar-se, mas
o homem pode.” 3 Nesse sentido a vida que se dá na imediatidade é
vida para a vontade na vontade viva porque esta a quer. A vontade
não se quer viva de qualquer modo nem segundo a contingência por-
que não se efetiva de qualquer modo nem de forma e ou determinação
genérica. A vontade viva se põe como se quer e pelo que quer. O viver
é conforme o que quer. Consequentemente o seu morrer se constrói a

2
Hegel. 2010, § 47.
3 Hegel. Op. Cit., § 47.

188
Da coisa quebrada à dignidade da pessoa na filosofia do direito de Hegel

partir do querer de seu viver. Porque a vontade viva se quer viva ela
não se efetiva como vivente de qualquer modo, mas estabelece para si
modos, meios, estruturas, etc pelos quais se quer garantir como vida.
Não é de se estranhar que a vontade viva passe a compreender a vida
em suas mais variadas manifestações como o parâmetro para a vida
em geral. Sua vida ou ela viva chega a se colocar como a vida em si e a
vida que deveria ter a primazia sobre todas as demais formas de vida.
Quanto mais a vontade viva se toma como a vida tanto mais ela apren-
de os perigos que pairam sobre sua efetividade. Como consequência
a vontade que se sabe viva se cerca de todos os cuidados necessários
para sua proteção. Daí, a coisa e sua posse se transformam em acu-
mulo, em concentração, em exclusividade. A maior expressão de seu
temor por si como vida assume a forma da propriedade privada ou
do que ela procura restringir somente à sua posse e desfrute. Pela pro-
priedade privada estabelece-se um claro limite e ou separação entre
a vontade viva e tudo mais que possa representar uma ameaça à sua
integridade. As demais vontades também passam a indicar um perigo
o que leva a vontade viva a se proteger diante delas seja mantendo-as
sob sua vigilância seja reduzindo-as a si. Tanto num caso quanto no
outro as outras vontades são tomadas como passíveis de determinação
pela vontade viva e, de certa forma, quase que, talvez completamente,
ao campo da coisa a qual se controla e, mais ainda, se reduz ao que
se quer para si. Não se pode aqui deixar de pensar a escravidão tanto
como uma acumulação quanto como uma apropriação de bens que as
vontades possuídas venham a proporcionar a vontade viva. Esta não
temerá expandir seu domínio para que possa se garantir. Mas, qual
seria nesse contexto o momento de conhecimento e de reconhecimento
da vontade viva? Se, ela parecia superar sua definição e delimitação
pela coisa e se saber querer em outros quereres, então agora ela parece
retroceder à coisa. De fato, seu temor pela sua vida a leva a renunciar a
si mesma como querer e se submeter novamente ao domínio da coisa.
Mais do que isso ela mesma se entrega a coisicidade sendo uma posse
dentre muitas posses. Essa é a figura da vontade viva que renuncia seu
querer diante do medo da morte por entender que o preço a ser pago
com a vida pode ser substituído pela sua submissão. Essa é a recusa
que a vontade viva se impõe, isto é, abrindo mão de si enquanto autora

189
Pedro Geraldo Aparecido Novelli

de si e se refugiando sob a proteção de outra vontade que garanta sua


vida que será uma vida pertencente à outra vontade. A vontade viva
que se submete a outra vontade entende que se ganha ao se perder.
Sua fixação na ânsia por viver renuncia ao querer de si. Ela se vê pelo
querer a vida e não mais pela vida do querer. É sua escolha a renúncia
que assume e que se perpetua como abandono do querer. Na verdade
a vontade viva se quer continuamente viva e seu querer permanece
sempre aí diante dela. Sua vida é o empenho do auto engano, pois se
quer convencer de que seu querer já não atua e não importa mais. O
ápice de sua renúncia é a entrega de sua liberdade. Para a vontade que
teme pela sua vida não haveria nada mais importante do que sua vida
em relação a qual ela sacrificaria o que quer que fosse necessário para
a sua proteção e salvaguarda. Por isso, para a vontade viva é mais im-
portante a vida do que a liberdade.

A perda da liberdade como o verdadeiro medo

Assim como a vontade faz a coisa ser sua coisa no momento do


contrato, pois no momento precedente a coisa ainda não é da vontade,
mas a vontade é na coisa, de igual modo no estabelecimento do con-
trato a vontade se reconhece não somente mais na coisa, mas também
pela coisa que ela faz ser sua coisa. Ora, o contrato explicita a posse e
a privatização da coisa torna-a pública, isto é, contraditoriamente faz
com que ela passe a ser desejada por muito, vários ou todos os demais
que não a tem. Eis a possível ruptura do contrato e as diversas formas
do ilícito na ilicitude não intencional, na fraude, na coação e no crime.
Então, diante da possibilidade de que a vontade viva seja negada em
sua vida ela se abre para a empreitada de sua defesa pondo-se em si-
tuação de risco ao buscar sua preservação. Ao delegar a salvaguarda
de sua vida à outra vontade ela aprende que obtém não somente o que
quer, ou seja, a proteção, mas também o contrário disso ao poder ser
empregada pela vontade possuidora a qualquer momento. É precisa-
mente devido aos abusos que possa vir a sofrer que ela se vê forçada a
agir e assumir sua autodeterminação. Exemplo disso é que a vontade
viva precisa lidar com a aniquilação da vida através da pena de morte.
Seu problema aqui é equacionar quais os motivos, os parâmetros e a

190
Da coisa quebrada à dignidade da pessoa na filosofia do direito de Hegel

autonomia que decide sobre a vida. Enfim, não basta a vontade pôr
a vida sob os cuidados de uma outra vontade, mas se faz necessário
saber como essa vontade exercerá a proteção ensejada.
Isso se dá abertamente na passagem do Direito Abstrato à Mo-
ralidade. Diante da arbitrariedade e da indeterminação que permeiam
o cuidado com a vida põe-se como necessário o enfrentamento da
obscuridade e da incerteza da decisão sobre o viver. Desse modo a
vontade viva sente a necessidade de saber como se dará sua proteção
e salvaguarda. Ela se põe a obrigação de aceitar previamente, de con-
cordar, de escolher mais claramente o que permite sobre si. Com isso a
vontade viva acorda e concorda na relação com outras vontades o que
não lhe poderá ser retirado sem sua prévia anuência. Daí o direito ou
a vontade livre em si se torna direito válido e efetivo pela negação do
ilícito. A vontade viva manifesta desse modo sua mediatidade atra-
vés do movimento para si. Com a assunção do direito agora não mais
como um imediato, mas que se mediatiza pelo movimento da vontade
viva para si, ocorre o ganho de si mesma da vontade viva como um
objeto. Em outras palavras a vontade viva não somente se torna sujeita
de si mesma, mas também objeto de si mesma. Sua cisão em relação à
coisa, ao mundo é suprassumida de modo que ela se toma no que quer
que seja como um distinto dela. Por isso, as ameaças contra a vida, sua
vida, não são mais as ameaças que ela desconhece nem que poderia
lhe surpreender porque ela agora reconhece como sendo suas próprias
ameaças. Esse é o passo na direção da tomada de si como livre no ser
aí, no direito como em si e para si. A vontade viva e livre se efetiva não
mais no que lhe é exterior, estranho, mas nela mesma. Ela é seu ser aí.
O ser aí é ela. Ela se torna livre para si ou como sua atividade. A vida,
sua vida é posta e tomada em suas mãos e o medo diante da perda da
vida passa a ser o medo de deixar de ser livre. Hegel descreve esse mo-
mento da figura da liberdade como o direito da vontade subjetiva cuja
análise mais detida dar-se-á ao nível da Moralidade. “Nessa esfera a
principal coisa é meu propósito, minha intenção, meu objetivo porque
a exterioridade agora se mostrou ser completamente de nenhuma im-
portância.” 4 A propriedade, a posse da coisa já não é mais a determi-
nação da vontade viva e livre. Já no momento do contrato ela foi posta

4
G.W.F. Hegel. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Herausg. von Eva Moldenhauer und Karl
Markus Michel. Farankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, Werke in 20 Bände, Werke 7, § 33, Z..

191
Pedro Geraldo Aparecido Novelli

em relação com outras vontades e aí identificada na coincidência entre


elas ainda devido à posse. Contudo, isso também conduziu a vontade
pata além da coisa e mais ainda para si. A vontade viva e livre se revela
aqui em sua particularidade como a que quer se fazer e faz seu querer.
Esse é o momento da Moralidade que Hegel indica pela Enciclopédia5
que não deve ser confundido com uma doutrina moral.

“O moral deve ser tomado no sentido mais amplo, no qual não


se significa simplesmente o moralmente bom. “Le moral”, na lín-
gua francesa, é oposto ao “physique” e significa o espiritual, o
intelectual em geral. Mais aqui o moral tem o sentido de uma
determinação-da-vontade, na medida em que ela está no interior
da vontade em geral, e portanto abrange em si o propósito e a
intenção, assim com o moralmente mau.” 6

A vontade particular que no direito abstrato ou formal aparece


como pessoa, será na moralidade conceituada como sujeito.

“O indivíduo livre que é somente pessoa no direito (imediato),


agora é determinado como sujeito - vontade refletida sobre si
mesma, de modo que a determinidade do querer é determinado
como sujeito - vontade refletida sobre si mesma, de modo que
a determinidade do querer em geral como ser-aí da liberdade
em uma coisa exterior. (...) Essa liberdade subjetiva ou moral é
principalmente o que se chama liberdade, no sentido europeu.” 7

Conclusão

No sistema filosófico de Hegel a liberdade moral constrói contra-


ditoriamente um momento sistemático do vir-a-ser da liberdade: com
a saída do nível do Direito Abstrato a vontade deve ser determinar ain-
da mais. Além disso, a vontade também conhece no momento da Mo-
ralidade a si mesma como condição para a validade do direito. Se, con-
forme já mencionado, pelo contrato a vontade se manifesta enquanto
vontade coletiva, se estabelece também o querer e o reconhecimento


5
G.W.F. Hegel. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. 3 volumes. Trad. de
Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995.
6
Hegel. Op. Cit., § 503.
7 Hegel. Ibid., § 503.

192
Da coisa quebrada à dignidade da pessoa na filosofia do direito de Hegel

do sujeito que somente na Moralidade o saber de si se desenvolverá


em liberdade abstrata. “A vontade, que no direito abstrato é apenas
enquanto personalidade, de agora em diante tem essa por seu objeto;
(...).” 8 Por um lado a vontade viva e livre se assume num avançar para
um patamar mais elevado, “terreno da liberdade” 9 e, por outro lado, o
subjetivo expressa a liberdade adequada como uma coisa exterior, isto
é, a liberdade é ao mesmo tempo interiorizada e exteriorizada subjeti-
vamente. Nesse duplo aspecto a vontade traz consigo em seu avanço
ou progresso o medo da coisa quebrada como o quebrar de si mesma
e o medo de morrer para a construção do que lhe aparece agora como
seu verdadeiro medo, ou seja, a perda da liberdade. O que antes no Di-
reito Abstrato era uma condição agora é na Moralidade uma obtenção.
A coisa não pode ser simplesmente deixada de lado, nem a vida pode
ser tratada como algo insignificante, porém nem uma nem outra por si
mesmas, mas sim porque a vontade quer cada uma delas e muito mais
a si mesma.


8
Hegel. Ibid., § 104.

9
Hegel. Ibid., § 106.

193
A autodeterminação do sujeito moral na
Filosofia do Direito de Hegel.

Paulo Roberto Monteiro de Araujo


Mackenzie – São Paulo

O processo dialético da vontade como forma de realização par-


cial da ideia de Liberdade na Filosofia do Direito culmina no surgi-
mento do sujeito moral. A vontade, ao se descobrir como sujeito das
suas ações, muda a sua perspectiva em relação à concretização do con-
ceito de Liberdade.
O nosso interesse em analisar a moralidade é tentar apreender o
caráter universalizante, porém, abstrato, da particularidade das ações
do sujeito moral e as suas consequências no mal. A Moralidade, como
resultado do movimento dialético do direito abstrato, surge como au-
todeterminação de si mesma, na esfera da vontade subjetiva. A Mora-
lidade, como vontade, possui a sua existência (Dasein) em si mesma.
Na subjetividade da moral a vontade se toma internamente por objeto.
Tomando-se por objeto a vontade suprime a sua imediaticidade confi-
gurada na personalidade do direito abstrato, em que a sua existência
(Dasein) estava vinculada à exterioridade das coisas. Deste modo, na
Moralidade, a vontade se afirma como objeto de si mesma na sua inte-
rioridade reflexiva.
Mantendo uma relação interna entre elas, Moralidade e Vontade
conjugam uma identidade. Por isso, “o ponto de vista moral é o ponto
de vista da vontade” (Der moralische Standpunkt ist der Standpunkt
des Willens). O ponto de vista moral torna-se a dimensão reflexiva da

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 194-212, 2015.
A autodeterminação do sujeito moral na Filosofia do Direito de Hegel

própria vontade; não somente através do seu simples em si (bloss ansi-


ch), como também do seu para si infinito (für sich unendlich).
A interioridade do ponto de vista da moral vai possibilitar a von-
tade ser para ela mesma. Significa que, se anteriormente, no direi-
to abstrato, a vontade precisava de uma propriedade para poder se
expressar como livre, na moralidade ela só necessita de si mesma. A
vontade perde a sua dependência em relação à coisa. Na esfera da per-
sonalidade, a vontade se experimentava sob a forma imediata sensível-
-abstrata da coisa. Já na moralidade a vontade se experimenta como
objeto de si mesma. Entretanto, essa segunda experiência da vontade
a leva para abstração interna de si mesma. Essa abstração, a partir do
ponto de vista da moral possibilita a vontade ter uma reflexão infinita
de si mesma. A instância da reflexão é a base determinativa do desen-
volvimento do sujeito moral. Além disso, a reflexão da vontade possi-
bilita o surgimento do sujeito, no que diz respeito à autodeterminação
da vontade em si mesma.

A autodeterminação da vontade
e a circunstancialidade da subjetividade

Como autodeterminação de si mesmo, a vontade se põe como


sujeito, porém, a sua existência está vinculada à circunstancialidade
subjetiva do indivíduo. Cria-se, então, uma inadequação entre a von-
tade, como subjetividade, e o conceito de vontade em si. Deste modo,
o conceito da vontade depende para se realizar da subjetividade livre
autodeterminante na sua existência. A subjetividade da vontade apa-
rece, então, como a realizadora do conceito da vontade em si.
Por meio da subjetividade ocorre uma diferença entre a vontade
e o seu conceito. Nesta diferença é que o pensamento hegeliano desen-
volve o seu trabalho conceitual, tendo como base o conflito entre o con-
ceito e a sua concretização. Porém, esse conflito fica como que escondi-
do nas relações existenciais entre a vontade subjetiva, como indivíduo
livre, e o conceito de vontade em si. É essa inadequação que Hegel
procurará solucionar ao longo do processo dialético da Moralidade.
O estatuto de existência da Idéia de Liberdade é dado pela pró-
pria subjetividade, como anteriormente era dado pelo direito abstrato.

195
Paulo Roberto Monteiro de Araujo

Hegel sabe que não pode “lutar” contra a circunstancialidade da subje-


tividade, e por isso faz com que a Idéia se “dobre” aparentemente a ela,
para poder se concretizar, mesmo que de uma forma conceitualmente
distorcida. É isto que faz Hegel apresentar a subjetividade formalmen-
te como a realizadora da vontade em si.
A subjetividade da vontade como Moralidade é o que vai dar o
caráter real do conceito de vontade em si. Pois, é na Moralidade que
o sujeito, na sua individualidade livre, tem domínio sobre as suas
ações no mundo. Tendo domínio das suas ações o sujeito se torna
conhecedor do Bem.
Não é na esfera das leis do direito abstrato que se dá a violação
daquilo que é justo ou injusto, mas é na própria reflexão moral que o
indivíduo vai distinguir o que está na sua ação, em adequação com o
direito em si. A estrutura reflexiva da subjetividade é que determina o
próprio conceito de direito.
Hegel pretende com a subjetividade trazer a questão da Liber-
dade para o plano da moralidade, que tenta sobrepor a forma do juízo
moral à forma do direito em si. Sendo que esta última só pode ser,
como conceito, por meio daquela. A determinação do direito está pre-
sa ao ponto de vista da moral. Sendo assim, o conceito de direito fica
condicionado à subjetividade moral.
Para o direito poder ser é preciso que ele seja reconhecido como
tal em relação à vontade subjetiva. Daí a necessidade do direito ter que
se condicionar à autodeterminação da vontade subjetiva para poder se
realizar como Idéia na esfera da universalidade.
A subjetividade da vontade não admite nenhuma outra determi-
nação que não esteja ligada ao seu processo reflexivo. A ação reflexiva
da subjetividade faz com que as coisas passem pelo crivo do seu para si.
Além disso, é esse para si que faz com que a vontade subjetiva
apresente-se distinta da vontade em si. A diferença entre esses dois
planos do conceito da vontade marca a abstração da vontade subjetiva
em relação ao em si do seu próprio conceito.

A universalidade formal da vontade

A subjetividade como autodeterminação infinita da vontade


constitui o elemento formal da mesma (§108). Em outros termos, ela

196
A autodeterminação do sujeito moral na Filosofia do Direito de Hegel

assegura a universalidade formal do direito em si da vontade por meio


da sua reflexão autodeterminante.
Em assegurando a universalidade formal da vontade a subjetivi-
dade reafirma a sua diferença com a vontade em si. Ela só possui este
caráter de formalidade em relação ao conceito de vontade, não man-
tendo uma relação de identidade com a substância mesma da vontade.
Na ação de pensar, a autodeterminação da subjetividade não
consegue apreender a determinação objetiva do conceito de vontade
em si. Daí a pura inquietação da autodeterminação da subjetividade
em relação àquilo que ela, como consciência, pensa ser diferente de si
mesma. O ponto de vista da moral é deste modo, o ponto de vista da
diferença, que resultará no processo de identidade entre a vontade e o
seu conceito na terceira parte da Filosofia do Direito.
A própria formalidade é o resultado do ponto de vista da von-
tade subjetiva, a qual no seu movimento de autodeterminação se dá
o seu próprio conteúdo. A formalidade aparece como algo colocado
pela própria subjetividade. Por isso, “na sua determinação geral, esta
formalidade contem primeiramente a oposição da subjetividade e da
objetividade e a atividade que lhe se relaciona” (§ 109).
A formalidade dentro do processo de oposição entre subjetivi-
dade e objetividade, como aponta Hegel no § 109, tem como função
limitar os conteúdos que a subjetividade se dá, no seu processo de auto-
determinação infinita. Isto é, o limite formal procura suprimir a própria
delimitação subjetiva fazendo com que os conteúdos da subjetividade
passem para um plano objetivo. Daí formalidade da vontade ter um ca-
ráter de dever, que tenta identificar, na ação moral, aqueles conteúdos
da subjetividade que estão em conformidade com o Bem (§ 110).
O trabalho da vontade subjetiva referente a tentativa de apreen-
der a sua própria identidade consigo mesma faz com que ela não saia
dos seus conteúdos dados por si mesma. A vontade subjetiva tenta dar
a esses conteúdos um limite por meio de um elemento formal. Entre-
tanto, ela não consegue suprimir os seus conteúdos subjetivos. Pois,
mesmo o elemento formal é um conteúdo seu. A vontade subjetiva fica
dando voltas em círculos em torno dos seus próprios conteúdos.
A vontade subjetiva ao obter em si mesma e para si mesma o seu
conteúdo, isto é, sua autoidentidade, vai ter como fim íntimo (inne-

197
Paulo Roberto Monteiro de Araujo

rer Zweck) a realização dos seus conteúdos, enquanto determinação


particular, na esfera de uma exterioridade objetivada (§110). Porém,
essa forma objetivada dos conteúdos da vontade subjetiva (ou moral)
precisa continuar como sendo resultado de uma intenção ou projeto da
vontade em si e para si mesma no plano da sua determinação interna.
A vontade só reconhece aquilo que é produto da sua reflexão. Deste
modo, a exterioridade objetiva do seu conteúdo precisa ser um produ-
to da consciência subjetiva.
A conseqüência imediata desse fim íntimo (innerer Zweck) da
vontade subjetiva é o problema da adequação entre o seu conteúdo e a
essência do conceito de vontade em si. Tendo em vista, que a reflexão
da autodeterminação da vontade subjetiva permanece numa formali-
dade da sua diferença com a vontade em si, o conteúdo dessa reflexão
tem que se pôr uma exigência (Forderung) para poder estar em ade-
quação com a essência universal da vontade. Pela própria determina-
ção subjetiva da vontade o seu conteúdo engloba a possibilidade de
não estar conforme o conceito (§111). A exigência está no conteúdo
da reflexão, que deve estar em conformidade com a universalidade do
conceito de vontade.
O fim íntimo (innerer Zweck) da vontade ao ser executado (Aus-
führung) conserva o próprio caráter autodeterminante da subjetivida-
de, entretanto faz com que esse fim se exteriorize de modo objetivo. Há
então uma superação da subjetividade na sua simplicidade imediata.

A estruturação da ação moral

Hegel ao analisar a determinação da subjetividade sistematiza


a estrutura da ação moral. A pretensão do pensamento hegeliano é
mostrar o carácter de finitude dessa ação em relação à realização do
conceito de Liberdade. Contudo, Hegel não descarta o direito da sub-
jetividade em pretender, através da sua ação moral, ser o fundamento
da concretização da Liberdade. Deste modo, o nosso filósofo analisa o
próprio direito da subjetividade com o fito de realçar os limites da sua
ação moral.
A realização da vontade como vontade subjetiva ou moral vai
estar na ação (§113). A Ação contém a estruturação determinativa da

198
A autodeterminação do sujeito moral na Filosofia do Direito de Hegel

vontade moral. Deste modo, Hegel chama atenção no § 113 para as


determinações do conteúdo da ação, as quais se subdividem em três.
A primeira determinação está relacionada com o próprio saber
da vontade em relação à sua ação, enquanto proviniente de si mesma.
Deste modo, ao estar ciente de si mesma a vontade subjetiva é respon-
sável por aquilo que faz na sua ação. A segunda determinação vincula-
-se à exigência que a vontade se faz para adequar o conteúdo da sua
ação ao conceito. A terceira está relacionada à vontade de outras sub-
jetividades. São estas três determinações do conteúdo da ação da von-
tade que darão suporte às três seções que compõem a Moralidade, na
instância do seu direito ou liberdade de realizar a Idéia de Liberdade.

O Projeto (Der Vorsatz) e a responsabilidade (die Schuld)

A questão que perpassa a primeira seção da Moralidade é a rela-


ção entre a ação da vontade subjetiva, na sua finitude, e a exterioridade
circunstancial do mundo, enquanto objeto da própria ação. Por isso, a
vontade subjetiva já pressupõe a infinitude da realidade. O projeto da
vontade subjetiva é concretizar, por meio da ação, o conteúdo da sua
liberdade, enquanto conceito.
Além disso, está em questão a mudança que a ação da vontade,
como projeto, realiza no mundo. A responsabilidade que a vontade
tem nessa mudança reforça a sua consciência em relação às suas ações.
Essa consciência provém da sua estrutura existencial, que a vontade
possui em relação à exigência que ela se põe em estar de acordo ao
conceito. Realizando uma mudança na realidade existente, a vontade
se sente responsável por essa mudança. Pois, sendo sujeito, na ação de
mudança, a vontade subjetiva coloca os seus conteúdos (como predi-
cados abstratos) na realidade modificada (§115).

O direito de saber sobre a realidade

Fundada na argumentação do direito do seu saber, a vontade


se mostra completamente finita em relação à existência da realidade.
A sua ação está condicionada ao seu saber do real. Existe, então, uma
barreira limitando as próprias ações da vontade, pois o seu saber está

199
Paulo Roberto Monteiro de Araujo

enquadrado nas representações que ela tem da realidade, enquanto


objeto exterior.
A vontade embora procure se identificar, na sua ação, com a re-
alidade, continua somente idêntica a sua particularidade finita. A sua
finitude lhe coloca numa relação de diferença com o seu objeto. Daí
responsabilidade da vontade subjetiva só aparecer a partir da sua con-
tradição em relação ao projeto embutido na sua ação, onde ela não pode
alegar desconhecimento. Quando a vontade age em pleno conhecimen-
to de causa, aí lhe pode ser imputado uma responsabilidade (§117).

A intenção (die Absicht) e a felicidade moral (das Wohl)

Na intenção (die Absicht) a vontade tem não somente o saber do


conteúdo singular da sua ação, mas antes ela está ciente do lado uni-
versal que essa ação deve ter ao se exteriorizar (§119).
A intenção (die Absicht) quer julgar o resultado universal da
ação, fundado na subjetividade, como projeto de si mesma. Projeto
esse que busca universalizar os conteúdos singulares da ação da von-
tade. A vontade subjetiva como sujeito da ação tenta criar, na sua ação,
predicados com validade universal (§119).
Para a intenção da vontade subjetiva, a determinação isolada da
realidade mostra a sua natureza como conexão externa. A parte isola-
da da realidade externa tocada, enquanto ponto particular (einzelnen
Punkte), contém pela sua natureza universal a extensão (Ausdehnung)
da realidade na sua totalidade. Por isso a ação da vontade ao se con-
cretizar na realidade torna-se uma proposição da realidade mesma,
proviniente do ato da vontade (§119). Com isso a ação particular da
vontade alcança uma identidade com a totalidade do real.
O que Hegel chama a atenção é para aquilo que se refere a uma
ação moral. Para Hegel a ação moral se funda em um conteúdo par-
ticular da vontade como intenção, mas que ao mesmo tempo preten-
de, através do seu projeto, universalizar esse conteúdo. “A ação tem
este duplo sentido de elemento universal contido na intenção” (aden-
do §121). Daí Hegel considerar a determinação do sujeito. A vontade,
como sujeito pretende algo fundado nele mesmo, quer satisfazer sua
paixão, seu desejo (adendo §121).

200
A autodeterminação do sujeito moral na Filosofia do Direito de Hegel

A busca pela racionalidade da ação

Deste modo, “o Bem e o justo constituem nele também um con-


teúdo possível, pois não se trata de um conteúdo simplesmente natu-
ral, mas de um conteúdo colocado pela racionalidade” (adendo § 121).
Sendo assim, o ponto de vista moral se sobrepõe aos móbiles individu-
ais, pois a satisfação da vontade deve estar na ação que busca aquilo
que é justo (adendo § 121).
A ação (Handlung) tem por meio da particularidade um valor
subjetivo (§122). É isto que Hegel enfoca na discussão entre o projeto
da ação como fim universal e a intenção interessada em um objetivo
particular para a vontade. O valor subjetivo da ação se dá, enquanto
interesse, para um “eu” subjetivo.
A ação, na instância do projeto, de concretização do universal se
contrapõe ao conteúdo particular da ação. O que existe na ação exami-
nada, no seu conteúdo ulterior, é rebaixado à categoria de meio (§122).
Ou seja, o fim universal como conteúdo objetivo passa a ser considera-
do um fim particular na ação. Por outro lado, na perspectiva de um fim
particular, enquanto alguma coisa de finito, tal fim pode ser também
rebaixado como meio para um fim universal da ação. Em outros ter-
mos, “ele pode, por sua vez , ser rebaixado à classe de meio por uma
intenção ulterior e assim por diante, ao infinito” (§122).
A reflexão da vontade não apreende o conceito de Liberdade,
porém, ela se limita a refletir sobre os seus conteúdos naturais ime-
diatos. O que surge nessa reflexão é uma oposição entre a esfera do
universal e do particular, a partir da diferença que a reflexão da sub-
jetividade apreende nas determinações dos seus conteúdos.
As conseqüências dessas diferenças vão estar ligadas diretamente às
ações da vontade, enquanto fins particulares ou universais. A reflexão
do pensamento da vontade não consegue apreender a identidade des-
sas duas diferenças. Sendo assim, tal reflexão introduz uma concepção
de moralidade, que só vê na vida moral um combate enfurecido contra
a satisfação pessoal (§124).
O lado da satisfação da vontade na sua ação não significa um
afastamento do universal, pois a subjetividade com o conteúdo parti-
cular do bem-estar (Wohls) permanece relacionada ao universal.

201
Paulo Roberto Monteiro de Araujo

Na intenção e no bem-estar moral, como momentos da Mora-


lidade, há uma espécie de manutenção do direito particular. E é esse
direito que a vontade tenta esclarecer para ela através das ações con-
cretizadas na realidade a partir do ponto de vista da moral. O que está
em jogo é a própria consciência da liberdade particular como direito.
Por outro lado, nesse processo de conhecimento do seu direito à liber-
dade, a vontade apercebe-se que tal liberdade precisa está alinhada ao
princípio substancial da própria Liberdade em si.

Ela não pode então se afirmar na contradição com o seu princí-


pio substancial. É por que uma intenção que concerne meu bem-
-estar assim que aquele de outros - e nesse caso, ela é chamada
mais particularmente uma intenção moral- não pode justificar
uma ação contra o direito (§126).

Daí a necessidade da vontade subjetiva reconhecer a diferença
entre as suas intenções e as do fim substancial da Liberdade. Mas ain-
da, em termos fenomenais, não está claro essa determinação diferen-
cial entre a particularidade e a universalidade das suas ações. A uni-
versalidade fica limitada ao conteúdo particular da vontade.

A problemática entre o bem e a consciência moral

É na terceira parte da estrutura da vontade subjetiva, como pon-


to de vista da moral, que se radicalizará a problemática da relação en-
tre o conceito da Liberdade em si, enquanto Bem, e a particularidade
do direito. A relação dessa problemática se dá na instância do Bem e da
consciência moral. A busca pelo Bem, como conceito da vontade livre,
se mostrou na instância da intenção e do bem-estar moral como puras
unilateralidades pertencentes à reflexão subjetiva, a qual se remetia so-
mente aos seus conteúdos e não ao Bem.

O Bem é a Idéia, como unidade do conceito de vontade particu-


lar, na qual o direito abstrato, como também o bem-estar moral
(Wohls), a subjetividade do saber e a causalidade da existência
exterior, suprimem-se como autônomos para si, porém mesmo
com isso são mantidas e conservadas com suas essências - A li-
berdade realizada, o absoluto objetivo final do mundo (§129).

202
A autodeterminação do sujeito moral na Filosofia do Direito de Hegel

Cada um desses elementos citados acima só tem valor enquanto


subordinados ao Bem. Daí a abstração da intenção e do bem-estar mo-
ral, os quais estavam somente relacionados a si mesmos, isto é, às suas
unilateralidades, sem que tivesse o fundamento do Bem universal.
O papel que a consciência moral (Gewissen) tem é o de ser a ati-
vidade que determina o Bem interiormente nela, como autodetermina-
ção, tanto da universalidade como da particularidade.
A vontade subjetiva é o momento da efetividade real (Wirkli-
chkeit) do Bem, assim como o Bem é aquilo que dá valor (Wert) e dig-
nidade (Würde) às intenções daquela. Porém, o Bem ainda continua a
se realizar, nessa relação, como pura abstração da sua própria Idéia,
porque a vontade subjetiva ainda não se coloca integrada a ele, em ter-
mos conceituais. Pois, na relação que a vontade subjetiva mantém com
o Bem ele aparece como externo às suas determinações. Além disso,
como é próprio da determinação da vontade subjetiva, ela precisa exa-
minar em si mesma e para si mesma o próprio Bem, embora seja este
mesmo Bem que dá o veredicto das suas intenções.
Na esfera das relações exteriores tanto o Bem como a vontade
subjetiva tornam-se meio um para outro, enquanto lugar de realização
de suas determinações essenciais. Por isso, o Bem só encontra na von-
tade subjetiva a mediação que o torna realizado (§131). É essa media-
ção que precisa ser superado para que haja uma completa identidade
entre a vontade e o Bem.
Hegel cita, no adendo do § 133, que Kant foi quem melhor ex-
pressou o significado de dever. A pergunta pelo o que é o dever que
põe em questão o próprio significado de Liberdade individual. Porque
é a vontade individual que se põe esse dever de apreender em si mes-
mo o conceito de Liberdade, ao querer que a sua ação seja moral. E
preciso que a vontade seja livre para se obrigar a fazer algo.
Desta sorte, “para determinar o que é o dever, não há outra coi-
sa que agir conforme ao direito e se preocupar com o Bem, isto é, do
seu Bem próprio e do Bem na sua determinação universal, e do Bem
de terceiros” (§134). Porém, sendo que o dever constitui a essência ou
o universal, no seio da consciência moral de si (im moralischen Sel-
bstbewusstsein), a qual, na sua interioridade, só se relaciona consigo
mesma, esse dever que ela almeja é uma universalidade puramente

203
Paulo Roberto Monteiro de Araujo

abstrata e tem por determinação a ausência mesma de toda determi-


nação (§135).
O Dever torna-se em puro formalismo (em termos kantianos) do
dever pelo dever. Pois, “dizer que o dever deve ser desejado unica-
mente como dever e não por razão de um certo conteúdo, é enunciar
uma identidade formal que vem a excluir todo conteúdo e toda deter-
minação” (§135).
A consciência moral (Gewissen) por estar na instância da refle-
xão afasta qualquer conteúdo sensível tanto interno como externo que
dê margem a qualquer determinação particular. Embora ela própria
esteja na esfera do particular, a consciência moral (Gewissen) procu-
ra o universal como Bem, porém, somente na “certeza” absoluta dela
mesma, na sua universalidade refletida sobre si e para si (§136).
A consciência estando em uma reflexão de si e para si consegue
pelo seu pensamento se impor uma obrigação. O Dever-ser da cons-
ciência é essa radicalização do seu auto-impor. Por outro lado, isso
significa que com essa atitude a consciência ganha a consciência da sua
própria liberdade, como já apontamos acima.
Na obrigação enquanto autoconhecimento da sua reflexão a
consciência aparece como consciência verdadeira (wahrhafte Gewis-
sen) na sua atitude moral (Gesinnung) que deseja o que é em si e para
si bom (137). A atitude essa que permanece ao lado de princípios fir-
mes (ferte Grundsätze), os quais representam para consciência verda-
deira as determinações objetivas e os deveres (§137). Para permanecer
nessa atitude moral a consciência nega o seu conteúdo subjetivo, pas-
sando a não ter conteúdo próprio.
A conseqüência da atitude moral da consciência, de negar as suas
determinações, a leva ter uma certeza formal infinita de si mesma, isto
é, certeza da sua interioridade abstrata em si e para si, enquanto sujeito
das suas próprias obrigações.
Considerando conceitualmente o Bem, este permanece abstrato
no âmbito da consciência verdadeira. Pois, mesmo que a consciência
esteja numa atitude moral ou disposta a estar de acordo com aquilo
que é bom em si e para si, ela só expressa o Bem, fundado na certeza
daquilo que ela sabe de si, como consciência de si subjetiva (das sub-
jektive Selbstbewusstsein) (§137). A questão sobre o saber do Bem está

204
A autodeterminação do sujeito moral na Filosofia do Direito de Hegel

na unidade entre o saber subjetivo da consciência e aquilo que ela ar-


roga conhecer em relação ao Bem em si e para si.
Para Hegel a consciência verdadeira tendo como base o saber
subjetivo, passa a ser, na sua relação com o Bem, pura opinião subje-
tiva. Além disso, podemos salientar as perspectivas diferentes entre
o ponto de vista moral e o ponto de vista ético, que Hegel nos chama
atenção no § 137.

O surgimento do mal

A possibilidade da consciência verdadeira, como consciência


de si, em transformar as determinações do Bem em determinações da
sua particularidade, faz com que haja uma duplicidade do conceito
de Bem. É nesta duplicidade que aparecerá não a realização do Bem,
porém, a do mal.

A consciência de si (Selbstbewusstsein) na futilidade (Eitelkeit)


de toda determinação outrora vigente e na pura interioridade da
vontade é tanto a possibilidade de construir por princípio, a uni-
versalidade em si e para si, como fazer da arbitrariedade, a par-
ticularidade mesma acima da universalidade e realizá-la através
da ação - possibilidade de ser mal (§139).

A consciência de si faz passar como princípio universal a sua pró-
pria arbitrariedade, isto é, a sua própria particularidade. É na aparente
ultrapassagem do particular sobre a universalidade que a consciência
mostra o seu real ponto de vista a respeito do Bem, fundado na interio-
ridade subjetiva. Dependendo da própria decadência de regras vigentes
no seio de uma determinada sociedade a consciência de si, no ponto de
vista da moral, arroga-se o direito de fundar uma nova ordem moral.

A questão da arbitrariedade e o mal

A dependência de uma nova instauração de um Bem está ligada


à própria escolha arbitrária da subjetividade da consciência. O Bem
depende, então, para se realizar de uma escolha, a qual pode não estar
de acordo com as suas próprias determinações.

205
Paulo Roberto Monteiro de Araujo

A origem (Der Ursprung) do mal está vinculada ao processo de


interiorização da própria vontade. O processo ocorre através da nega-
ção de si mesma da vontade, enquanto das suas determinações sensí-
veis. A negação da vontade ao sensível faz com que a vontade se reme-
ta à racionalidade abstrata interna da sua reflexão. A interiorização da
vontade é o próprio processo de certeza para si daquilo que ela é no
seu saber reflexivo de si, na sua pura abstração interna. Há, então, uma
incompatibilidade da vontade com ela mesma.
É na incompatibilidade consigo mesma que a vontade desenvol-
ve o seu caráter contraditório. É esta particularidade contraditória da
vontade com ela mesma, que dá margem para a realização do Mal.
Só a partir do processo de interiorização da vontade que as de-
terminações da vontade, como desejos, inclinação, paixões e etc. ga-
nham a conotação de serem boas ou mais. É a reflexão da vontade,
na sua particularidade, que dá aos conteúdos naturais da vontade a
determinação de serem boas ou mais. Na cisão que a subjetividade faz
entre o fato de algo ser bom ou mal, que pode ocorrer o próprio mal.
A subjetividade tem, como infinitude da reflexão, a oposição entre o
bem e o mal diante dela, assim como esta oposição já existe também
nela (§139).
Por essa oposição a subjetividade é, na sua arbitrariedade, respon-
sável por aquilo que ela faz nos seus atos. O sujeito individual é, então,
responsável pelo mal que ele venha cometer (§139). O mal e o bem por
serem dois aspectos da própria vontade, eles são inseparáveis. Além dis-
so, essa inseparabilidade está fundada no fato de eles serem objeto para
o conceito da vontade em si livre. Como objeto, eles são determinações
diferentes do próprio conceito de vontade (adendo §139).
O admirável de tanto o bem como mal serem inseparáveis na dife-
rença de suas determinações é explicado por Hegel, como que se pensa
unicamente a vontade tendo uma relação somente positiva com ela mes-
ma. Deste modo o Bem não pode ser tomado só em sua face positiva. É
porque a vontade, como conceito ou Idéia, tem o caráter de negar a si mes-
ma, ela pode através desta negação realizar a positividade de outras face-
tas da sua determinação, como é o caso da origem do Mal.
É esse caráter duplo que vem à tona com a interioridade da von-
tade. Mas o que interessa nessa duplicidade da consciência de si da

206
A autodeterminação do sujeito moral na Filosofia do Direito de Hegel

vontade é o surgimento do seu saber a respeito do conceito de Liber-


dade. Por isso, um dos motivos de Hegel dizer que “quando se fala do
Bem, se entende por isso o saber do Bem” (adendo. §139). Na reflexão
a vontade chega ao saber da sua própria liberdade, ou do conceito de
Liberdade, ainda que de forma não totalmente desenvolvida.
O Bem sendo abstrato adquire qualquer tipo de conteúdo a par-
tir da vontade. A sua positividade torna-se dependente das determi-
nações das boas intenções subjetivas. O Bem é reconhecido como isto
que é bom na intenção mesma. A inversão do Bem se dá na própria
intenção da vontade na ação. “É assim que se considera como boas as
ações seguintes: roubar para vir a ajudar ao pobres, fugir do curso da
batalha para cumprir com os deveres a respeito da própria vida, para
tomar conta da família (...)” (§140).
Por outro lado, o Mal também possui essa mesma abstração de
conteúdo como o Bem. O Mal também recebe a sua determinação da
subjetividade. Sendo assim, a consciência moral procura motivos para
que as suas ações estejam de acordo com aquilo que ela considera bom
e essencial; mesmo que a ação tenha um caráter aparente do Mal, como
fugir da batalha, roubar para os pobres e etc. A consciência converte
assim em boa intenção o próprio Mal. Ela faz com que uma má ação
se torne boa. “Assim se diz que certamente não existe mal algum, por
que nunca se quer o mal à causa do mal mesmo, isto é, o puramente
negativo como tal, senão que se quer sempre algo positivo e, portanto,
segundo este ponto de vista, um Bem” (§140).
É nesse jogo de inversões que se instaura a própria indeterminação
do Bem. o Bem, enquanto abstrato, absorve qualquer conteúdo particu-
lar proveniente da boa intenção, por isso ele torna-se vazio de si mesmo
na sua conceitualização (ver §140). Esta indeterminação do Bem faz sur-
gir o arbítrio do sujeito moral sob a forma da convicção (Überzeugung).
A convicção como produto da opinião subjetiva faz passar a ação
moral como tendo a sua raiz nela mesma. A natureza ética da ação
vincula-se somente à convicção. Dentro dessa visão subjetiva das ações
morais, Hegel denuncia a total nadificação das diferenças entre o que é
bom e o que é mal. Tanto a ação má como boa podem ter as suas deter-
minações invertidas pelas formas da convicção, assim como também
da boa intenção.

207
Paulo Roberto Monteiro de Araujo

A nadificação do bem

Com a convicção todas as ações realizadas pela consciência pas-


sam a ter justificação no âmbito da moralidade. Sendo assim, o ponto
de vista da moral ao invés de possibilitar a concretização do conceito
de Bem o nadifica através de categorias resultantes da reflexão abstrata
da consciência.
As determinações do Bem se limitam a uma formalidade que a
consciência tem em relação às suas convicções. É nesta formalidade
que podemos apreender o próprio esvaziamento do Bem, enquanto
conceito. As conseqüências do esvaziamento das determinações do
Bem estão vinculadas diretamente ao indivíduo. Pois, o indivíduo
pode estar cometendo, na sua ação, um Mal, que dentro dos parâme-
tros da sua convicção, está de acordo com os princípios do Bem.
O indivíduo, como sujeito moral, não se apercebe que a catego-
ria, que ele utiliza para apreender as determinações do Bem não está
vinculada ao Bem, naquilo que se refere à sua existência conceitual.
A última forma que Hegel trata sobre a estrutura da vontade sub-
jetiva em relação ao Mal, enquanto nadificação do Bem é a ironia. Hegel
esclarece, primeiramente, que a ironia está ligada ao uso socrático em
relação à consciência inculta ou sofística nas discussões sobre a verdade.
A ironia que Hegel quer caracterizar é a da subjetividade extrema,
que se coloca como saber e como poder de resolver e de decidir sobre a
verdade, o direito e o dever (§140). Porém, o ponto chave dessa categoria
da consciência moral consiste na sua relação com a objetividade ética.
A consciência moral irônica conhece isto que constitui a objetivida-
de ética, mas não se envolve propriamente dito com a estrutura objetiva
do ético ou da vida ética. A consciência irônica só se relaciona com essa
estrutura ética a partir daquilo que a sua subjetividade quer e decide
através da reflexão. A consciência irônica tem a capacidade de discernir
o que é ético ou não em uma ação. Contudo, é a sua vontade particular
que decide subjetivamente a sua opção entre aquilo que é bom ou mal.
A ironia não considerar a objetividade ética, desprezando-a em
função da subjetividade. É a subjetividade que se coloca como fun-
damento da própria objetividade ética. Mesmo estando de acordo e
aceitando uma lei a consciência irônica se põe como não sendo tomada

208
A autodeterminação do sujeito moral na Filosofia do Direito de Hegel

por ela. Pois, é a consciência irônica se considera como sendo o funda-


mento da lei. A estrutura objetiva da lei está, nessa perspectiva da iro-
nia, na própria subjetividade do eu que se põe como autofundamento
da realidade, naquilo que diz respeito ao conceito de Liberdade sob a
forma das leis e das regras.
O problema que Hegel levanta é a perda da diferença entre a cons-
ciência e o seu objeto no processo de realização do conceito de Bem, na
esfera da comunidade. Hegel, como aponta Hyppolite, parte da ideia de
comunidade nos seus estudos de juventude (1788-1793) e dos seus jul-
gamentos do pensamento Schleiermacher sobre ética. A bela alma da Fe-
nomenologia possui então esse ideal de tornar a sua autocontemplação
como existência objetiva. Esse elemento objetivo consiste na expressão
do saber e da interioridade contemplativa da consciência.
Todo o processo de absolutização da subjetividade ocorre atra-
vés do movimento de universalização do si consciência. Fazendo do
seu si um si universal, a consciência obtém para o seu si (subjetivo)
uma validade universal.

A passagem para a eticidade

A necessidade da passagem faz parte do próprio movimento on-


tológico do conceito, como assinala Hegel no adendo do § 141. Entre-
tanto, podemos deduzir que a relação entre subjetividade e objetivida-
de, ou ainda entre a consciência moral e o Bem acaba em uma aporia,
que precisa ser ultrapassada. A unilateralidade da consciência a leva a
uma radicalidade da sua própria abstração, como vimos ao longo do
presente capítulo.

Conclusão

Com a moralidade, Hegel desenvolveu categorias relativas à de-
terminação da subjetividade na esfera da ação moral. Com efeito, o
que Hegel pretendeu foi mostrar a própria limitação do ponto de vista
moral em relação à concretização da Idéia de Liberdade. Mesmo se
propondo à universalidade da Liberdade, a moralidade permanece li-
mitada à finitude dos seus conteúdos subjetivos.

209
Paulo Roberto Monteiro de Araujo

O caráter relacional entre a vontade subjetiva e o seu conceito,


na teorização da ação moral, mostra desde o início da primeira seção
da moralidade a exterioridade existente entre o plano subjetivo das
determinações do sujeito moral e a universalidade objetiva das deter-
minações do conceito.
Deste modo, ao se saber particular, enquanto consciência de si,
a vontade, na sua ação, se impõe um dever (Sollen) de não permitir
que nenhum conteúdo seu faça parte do seu projeto de realização do
conceito de Liberdade.
Surge uma relação de pura formalidade entre a vontade subjetiva
e o conceito de Liberdade. Esta formalidade significa já o caráter exterior
entre a universalidade a particularidade no âmbito das ações morais.
O problema de adequação entre o universal e o particular é apa-
rentemente solucionado, na segunda seção da Moralidade, através da
Intenção (Absicht), a qual, enquanto categoria da vontade subjetiva se
considera ilusoriamente capaz de ser universal em si mesma. Ao ser
universal, a intenção tem o caráter de tornar, através da ação, qualquer
parte da realidade em totalidade desta. A vontade, na instância da In-
tenção, toma, então, a sua particularidade como sendo organicamente
a própria universalidade.
Deste modo, diferentemente do Projeto, da primeira seção, que
partia do particular para alcançar formalmente a universalidade, a
Intenção parte já da universalidade do particular. É através da Inten-
ção que a vontade subjetiva entra em um processo de absolutização
de si mesma, que resultará na terceira seção na nadificação das deter-
minações do Bem.
Com a terceira seção, a vontade tenta, no interior da sua cons-
ciência, determinar tanto o particular, como o universal. É através,
então, da consciência moral que a particularidade e a universalidade
perdem aparentemente o caráter de unilateralidade uma em relação à
outra. Pois a universalidade do Bem se realiza através da particulari-
dade da consciência, enquanto certeza de si. Entretanto, a certeza do
si da consciência moral gera um processo de absolutização da subjeti-
vidade, em que as determinações objetivas do Bem não concretizam a
sua existência conceitual no mundo.
Hegel demonstra, ao final da Moralidade, que apesar da consciên­
cia moral alcançar um grau de racionalidade teórica em relação ao con-
ceito de Liberdade, ela se limita a uma construção abstrata desta.

210
A autodeterminação do sujeito moral na Filosofia do Direito de Hegel

É a própria determinação subjetiva da consciência moral que


inviabiliza a concretização do conceito de Liberdade enquanto Bem. O
máximo que a consciência moral atinge é a elaboração do Bem univer-
sal abstrato, na instância do para si da particularidade da consciência.
Com o processo de absolutização do si da consciência moral,
como apontamos acima, o Bem se torna vazio de si mesmo. O subjeti-
vismo da vontade moral suprime qualquer presença da objetividade
do Bem. Deste modo, o Bem entra em um processo de negação de si
mesmo através do Mal. O Mal acaba sendo a realização às aversas das
determinações Bem.
Desta sorte, se na Moralidade a particularidade da vontade subje-
tiva realiza a sua liberdade, como sujeito livre, o qual determina as suas
ações no mundo, ela se mostra incapaz de realizar a Liberdade no plano
objetivo do conceito. Como Hegel aponta a liberdade subjetiva desco-
nhece a própria lógica que forma a existência a Idéia de Liberdade.
Não é no plano do sujeito individual consciente do Si da sua
liberdade autodeterminante, então, que a Idéia de Liberdade se con-
cretiza. Pois, a autoconsciência moral subjetiva é limitada pela sua
própria finitude das suas determinações. A Consciência moral não se
apercebe que a absolutização do seu Si subjetivo não consegue abarcar
as determinações infinitas da Idéia de Liberdade. Por isso, o resultado
catastrófico das determinações do Bem no Mal.

Referências Bibliográficas.

HEGEL, G.W. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Saa-
tswissendchaft im Grundrisse. Frankfurt, Surkamp, 1988.
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211
Paulo Roberto Monteiro de Araujo

____________. Encyclopédie des Sciences Philosophiques I (la Science de la Logique).


Tradução Bernard Bourgeois. Paris, Vrin, 1979.
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BOURGEOIS, Bernard. La Raison Moderne et le Droit Politique. Paris. Vrin, 2000.
__________________. L’Idéalisme Allemand – Alternatives et Progrès. Paris. Vrin,
2000.

212
A apresentação do conceito de Família
na Filosofia do Direito – a substancialidade
imediata do espírito.

Greice Ane Barbieri


IFSul - UCS/CAPES

A seção “Família” (a primeira raiz ética do Estado) é exposta por


Hegel, de forma geral, como o primeiro momento da Eticidade, da Fi-
losofia do Direito. Esse momento é marcante, porque é o primeiro em
que o indivíduo deixa de ser exposto como uma pessoa ou como um
sujeito. Na família, o indivíduo é mais que sua unidade própria: ele é
parte de um todo, mesmo que seja um todo que está calcado em um
elemento natural. Entretanto, ressaltemos: a família, embora calcada
no elemento natural, surge como uma segunda natureza, uma natu-
ralidade já mediada, refletida. Vejamos como chegamos a esse ponto,
antes de passarmos propriamente ao momento da Família, em Hegel.
Retomando rapidamente os momentos anteriores da Filosofia do
Direito, vemos que, no Direito Abstrato, como uma pessoa, o indiví-
duo dá-se conta de sua vontade por meio da posse de si mesmo e dos
objetos. Todavia, essa vontade da pessoa é regulada pelas interdições,
pelas regras que lhe aparecem apenas como delimitações de seus atos.
Posteriormente, essa pessoa dá-se conta de que as regras do Direito
Abstrato são a formalização de preceitos que podem ser buscados não
externamente, mas internamente.
Isso significa que as leis, na verdade, são oriundas de um sentido
de responsabilidade que mediaria as ações dos sujeitos, sujeitos que re-
fletem sobre essas leis (ou regras) e compreendem quais conteúdos são

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 213-224, 2015.
Greice Ane Barbieri

adequados, ou não, a elas. Esse é o momento da Moralidade, que colo-


ca a reflexão do sujeito no caminho da constatação de que seus atos não
lhe dizem respeito apenas individualmente, mas tocam e se refletem
num mundo, que é formado por outros sujeitos, tão livres quanto ele
próprio. Assim, quando ocorre a reflexão sobre as conseqüências dos
atos realizados na concretude do mundo, o sujeito percebe-se como
capaz, ao mesmo tempo, não só de tocar os outros sujeitos com suas
ações, mas provocar o Mal. E é essa percepção da sua capacidade para
o Mal que conduz o engendramento para a próxima seção. Ao perce-
ber a sua capacidade para o Mal, o sujeito percebe que sua vontade
não pode ser soberana no que se refere à objetividade do mundo, uma
vez que esse mundo em que ele habita é, também, habitado por ou-
tros sujeitos que estarão à mercê de seus atos. Nesse caso, impor a sua
vontade como soberana diante das outras vontades se configura numa
abstração que isolaria esse sujeito, de tal maneira que ele deixaria de
fazer parte da racionalidade e universalidade que ele compartilha com
os outros humanos.
Essa reflexão sobre o outro, provocada pela percepção do alcan-
ce das ações do sujeito, pela possibilidade do Mal como algo concreto
no mundo, constrói no sujeito a percepção de que ele não está sozinho
no mundo. E, ainda, a reflexão sobre a concretização do Mal, da objeti-
vação da vontade do sujeito, atingindo outro é uma capacidade não só
dele, mas dos outros sujeitos; desse modo, o sujeito compreende tam-
bém que o Mal é uma possibilidade, que o Mal pode ser posto no mun-
do não somente por ele, mas por qualquer outro sujeito. Em oposição,
o sujeito compreende que fazer o Bem, significa faze-lo neste mundo,
como Bem vivente, e que concretizar a sua vontade, tendo como obje-
tivo o exercício de uma vontade livre não é possível sem incluir nela a
participação de outros sujeitos. E, concretização de uma vontade subje-
tiva na objetividade do mundo que almeje o Bem, traz benefícios para
todos. Assim, a passagem para o momento da Eticidade, é aquele em
que o sujeito passa a ser visto e tomado enquanto ‘membro de’, isto é,
alguém que não se percebe como um, mas como parte de um conjun-
to, no caso dessa apresentação, membro do seio familiar. Ou melhor,
como nos diz Hegel, no § 158, “é ter a autoconsciência de sua individu-
alidade nessa unidade enquanto essencialidade sendo em si e para si, a
fim de ser nela não uma pessoa para si, porém como membro”.

214
A apresentação do conceito de Família na Filosofia
do Direito – a substancialidade imediata do espírito

Esse novo patamar da vontade, que não se coloca mais apenas


como uma pessoa para si, já que terá o seu exercício da liberdade
entremeado pelas outras vontades, utilizará como ponte entre essas
vontades e aquela vontade um sentimento que seja capaz, justamen-
te, de agregar, de fazer com que essa vontade se coloque como livre
junto com outras vontades. Podemos inferir que Hegel compreende
que, parar fazer a passagem da vontade subjetiva para uma objeti-
vidade ética, seria necessário um elo que partisse do sujeito, porém,
que tivesse alcance universal.
Então, quando o conceito de família é apresentado “enquanto
substancialidade imediata do espírito”, Hegel está se utilizando de uma
esfera já bem estabilizada dentro da sociedade, que possui algo nela
que garantiria essa ponte entre a vontade subjetiva e a vontade objeti-
vada. O âmbito familiar já aparecia como extremamente importante e
como fundamento da esfera política desde Aristóteles. A substanciali-
dade imediata do espírito, que aparece na esfera familiar, se constitui-
rá de determinações próprias e, ao mesmo tempo, que possam fazer a
ligação entre a Moralidade e a subjetividade do sujeito e a Eticidade e
a objetividade nascente daquele que agora é um “membro de”. Essas
determinações são o amor e uma disposição do espírito que amalgama
a autoconsciência, o saber de si, como individualidade nessa unidade.
Neste trabalho, focaremos no sentimento de amor. Esse é carac-
terizado como uma forma que a autoconsciência toma em relação a
outro indivíduo, o qual compõe a unidade característica do amor – isto
é, como sabemos, o amor, enquanto fundamento da esfera familiar é
uma formação unitária, embora constituída por mais de um membro.
A raiz dessa unidade no sentimento talvez possa ser encontrada ainda
na seção Moralidade, tomando como base o conceito de bem-estar.
O bem-estar individual se coloca ao lado de outras determina-
ções igualmente importantes para a vontade livre, como, por exem-
plo, aquelas que obedecem a um critério universal, tal como o dever-
-ser1. Isso quer dizer que o direito da particularidade, ou o direito da

1
Esta parece ser uma crença antiga de Hegel, uma vez que, em 1810, já se refere a ela: “Na re-
alidade, estamos habituados, desde uma época passada da representação, a separar a cabeça
e o coração, o pensar e o sentir, ou como quer que se possa ainda designar esta diferença,
como dois seres independentes e indiferentes um em relação ao outro”. HEGEL. Discursos
sobre a educação. [Discurso de Encerramento do Ano Letivo – 14 de Setembro de 1810]. p. 48.
Nesse mesmo sentido, Hegel ainda se expressa, no início da Filosofia do Direito, pois para o

215
Greice Ane Barbieri

liberdade subjetiva, é apreendido como fazendo parte da estrutura


da vontade livre. Quando este conteúdo particular, refletido sobre si,
volta-se para a realidade externa, tendo como fundamento a vontade
em si, ele se torna o bem-estar dos outros. Esse bem-estar dos outros
pode ser mais bem compreendido se tomarmos a perspectiva de que
os seres humanos não vivem isoladamente e, então, tem um interesse
que aqueles que fazem parte de suas relações também usufruam de
sua própria satisfação2. Dentro daquilo que Hegel chama de direito
da liberdade subjetiva, que encontra no bem-estar a sua forma de con-
secução, encontram-se diferentes determinações que têm diferentes
lugares de realização. Uma dessas determinações é o sentimento éti-
co, ou a disposição de espírito ética do amor, cuja significância maior
é constatada dentro da seção Família, da Filosofia do Direito. O amor,
constitutivo da família, apresenta-se como o primeiro contato do indi-
víduo sentindo-se como parte de uma comunidade, membro de uma
unidade, sentimento esse de pertença, que permeia toda a parte final
do Espírito Objetivo, a Eticidade.
Para Hegel, embora o amor seja um conceito que preserva e faz
com que a subjetividade do sujeito persevere, isso não significa que esse
sentimento seja desprovido de valor universal; isso significa que, para
o autor, o amor encontra-se no mesmo patamar de outras disposições
de espírito éticas e instituições. Tanto que, ainda no Prefácio à Filoso-
fia do Direito, Hegel aponta a “superficialidade” como tendo potencial
para destruir a Eticidade interna, a reta consciência moral, o amor e o
direito entre as pessoas privadas, assim como a ordem pública e as leis
do Estado. Parece contraditório, mas o amor, em Hegel, não pode estar
alicerçado aos princípios superficiais dos sofistas, “que colocam o que
é o direito, nos fins e nas opiniões subjetivos, no sentimento subjetivo e na

autor, o pensar e o querer foram vistos, constantemente, ao longo da história da filosofia,


como duas faculdades separadas e se determinando por si mesmas. Ora, para Hegel, nada
poderia ser mais unilateral e vazio do que essa abstração que se coloca na forma de duas fac-
uldades, como se o homem tivesse “num bolso o pensar e, no outro, o querer”. Cf. HEGEL.
Introdução à Filosofia do Direito. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2005. § 4 Z, p. 48.

2
“O ‘bem-estar’ de outrem é particular, pois consiste na satisfação das suas pulsões, desejos
e carecimentos, só interessando-se por si, entretanto, o seu direito ao ‘bem-estar’ torna-se
universal, pois o ‘sujeito’ reconhece-se como igual a outrem”. ROSENFIELD, Denis Lerrer.
Política e Liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 115.

216
A apresentação do conceito de Família na Filosofia
do Direito – a substancialidade imediata do espírito

convicção particular”, terminando por fazer ruir as instituições e a própria


formação dos indivíduos3.
Assim, o amor, para Hegel, não é algo que esteja no âmbito de
uma mera opinião subjetiva, sentimento subjetivo e convicção particu-
lar; antes, o amor, na Filosofia do Direito, está de acordo com uma visão
ética e institucional, embora não perca a sua qualidade de ser expres-
são da subjetividade, sendo uma das formas do direito da particularida-
de, ou da liberdade subjetiva – que “constituiu o ponto de inflexão e o
ponto central da diferença entre a Antiguidade e a época moderna”4. Ora,
tudo isso por meio do florescimento do Cristianismo e da considera-
ção, cada vez mais forte, de que o matrimônio – um dos três momentos
da família – é algo dependente da livre eleição do cônjuge, assim pro-
porcionando o caminho pavimentado para um sentimento ético, já que
a possibilidade do exercício da liberdade é uma das condições para
que a vontade se realize na Idéia de Liberdade.
O sentimento subjetivo do amor transformar-se-á em ético e des-
se modo será cooptado e constitutivo de uma nova determinação ne-
cessária à liberdade dos indivíduos: o sentimento, então, torna-se base
quando “a nova família tem por fundamento o amor ético”5. Esse amor
ético, mesmo tendo uma base natural não é, meramente, o impulso
da sexualidade, pois ele já se apresenta como uma determinação cujo
ponto é o da diferenciação e do avanço entre o período antigo e o pe-
ríodo moderno. Isso porque, ao longo dos séculos, podemos dizer que
se reconheceu o amor como um sentimento diferente do mero desejo
sexual ou da paixão.
O amor, nos moldes da compreensão hegeliana, apresenta-se
como expressão humana da junção entre o desejo e o cuidado, o ser-em-
-si e o ser-para-si. Se levarmos em conta que “liberdade”, para Hegel,
nunca se conforma a uma libertinagem, o poder de se fazer meramente
o que se quiser, também o amor, para Hegel, não é um mero “amor li-
vre”, pois ele envolve, necessariamente, dois sujeitos que buscam mais
do que simplesmente o prazer obtido de seus corpos. Um corpo abriga
uma unidade dele mesmo e uma mente e esta também deve ter sua
cota de participação não somente no ato sexual, mas pela companhia
3
Cf. HEGEL. FD. Prefácio, p. 39.
4
HEGEL. FD. § 124, p. 139.
5
HEGEL. FD. § 172, p. 181.

217
Greice Ane Barbieri

constante de outro ser que se torna, então, parte dele mesmo. Tratar-
-se-á de um reconhecimento mais íntimo, o qual será obtido por meio
de outro participando dessa intimidade e que, por sua vez, também
exigirá o seu próprio reconhecimento. Todavia, esse reconhecimento
almejado pelas pessoas, em sua intimidade e por meio da intimidade,
somente poderia ocorrer se esses mesmos sujeitos tivessem a liberdade
necessária para decidirem sobre a eleição de seu cônjuge e o direito de
escolher com quem partilhar a sua intimidade.
Pode-se dizer que a função ética do amor, na Eticidade, e a sua
absorção por esse momento do Espírito Objetivo já aparecem desde os
apontamentos de Hegel que servem como base para a Filosofia Real, de
1805-1806. Nessa obra, o sentimento de amor é nomeado, pela primei-
ra vez, dentro da parte denominada de Filosofia do Espírito, na seção
“Vontade”, – uma espécie de prelúdio para aquilo que, na Enciclopédia,
Hegel denominou de “vontade livre”.
Nesse momento do texto, Hegel diz que a vontade dividiu-se,
ela mesma, em dois extremos (zwei Extreme): num, ela é completa, uni-
versal; no outro, é singular6. Entretanto, esses dois extremos têm de
serem postos (setzen) em um: o extremo singular tem de avançar para o
seu conhecer, isto é, tem de deixar de ser apenas uma vontade em-si e
avançar até a vontade para-si. O saber da vontade singular, ao tornar-
-se para si, acaba mediando-se com o outro extremo, o da universalida-
de, o qual também deve ser conhecido pela singularidade. E, o extremo
universal será aquele capaz de abarcar em si esse extremo singular,
que se voltou para a universalidade em função de seu próprio conhe-
cer. Mas, a vontade somente irá alcançar sua forma mais desenvolvida
quando, depois desse processo, volta-se, então, para fora de si mesma
na sua relação com outra vontade.
Então, as vontades se encontram em oposição mútua, mas, por
estarem em oposição, se reconhecem como autônomas e idênticas. “Em
si, ambos se suprassumem; cada um é igual ao outro precisamente


6
Cf. HEGEL, G. W. F. Filosofía Real. Madrid-Buenos Aires: FCE, 1984. p. 170-171. Cabe, ainda,
ressaltar que se diz, na margem, sobre a vontade em seu extremo singular, “a sua existên-
cia alcançou sua perfeição”. Isso significa que uma vontade “aperfeiçoada” é aquela que se
encontra segura de si na sua singularidade, ou seja, que se torna sua para si mesma, isto é,
torna-se não meramente em-si, mas para-si.

218
A apresentação do conceito de Família na Filosofia
do Direito – a substancialidade imediata do espírito

naquilo no qual se opõe”7. A identidade é afirmada pela oposição por-


que, ao afirmar o oposto, uma vontade se diferencia e se coloca como
autônoma frente à outra vontade, que, igualmente, é vista por essa
como opositiva e autônoma. Assim, ambas se reconhecem como von-
tades e, assim, iguais, mas enquanto diferentes, pois não são o agrega-
do de uma só vontade. Entretanto, quando cada uma dessas vontades,
além de reconhecer-se no outro e reconhecer o outro, também se sabe
no outro, ocorre a renúncia de si mesmo: o amor.
O movimento que ocorre entre as vontades, no que diz respeito
à relação de amor é descrita de um modo um tanto intrincado. Basica-
mente, ele envolve os preceitos, por exemplo, do movimento do algo
e do outro, ainda na Doutrina do Ser, da Ciência da Lógica. Cada um
se sabe imediatamente no outro e também de modo inverso, cada um
sabe que o outro se sabe nele mesmo. E nesse movimento, cada um se
suprassume como ser para si e torna-se um ser para outro e um sabe
que o outro se sabe no outro, tendo, portanto, sua realidade fora de si
mesmo, assim como em si mesmo. Segundo Hegel, ocorre a supras-
sunção do ser-para-si em ser-para-outro, o que significa que o outro
é para mim, ele se sabe em mim8. Hegel ainda acrescenta que “este é
o elemento da ética comunitária” no seu pressentimento. Isso aponta
para o sentimento do amor como uma disposição ética, ou seja, como
algo que predispõe o sujeito a uma adaptação mais adequada às dife-
rentes instituições.
Para Hegel, o conceito de amor desempenha um papel redentor e
abarcador. Ele fornece uma espécie de primeiro elemento aglutinador
para a Eticidade. Isso porque o amor é um princípio que confere ao in-
divíduo, enquanto construção histórica (espiritual), um valor infinito. O
ser humano, segundo Hegel, ao tornar-se alvo do amor de Deus, atra-
vés do Cristianismo, conquista, teoricamente, um direito não somente
de igualdade abstrata frente aos seus semelhantes, mas também adqui-
re um valor per se (em-si): se Deus ama igualmente todos, porque todos
são seus filhos, nenhum deles é inferior e, portanto, nenhum pode ser
submetido ao jugo do outro9. Ou seja, todos os seres humanos são, pe-
7
HEGEL, G. W. F. Filosofía Real. Madrid-Buenos Aires: FCE, 1984. p. 171.
8
Cf. HEGEL, G. W. F. Filosofía Real. Madrid-Buenos Aires: FCE, 1984. p. 172.
9
Importa notar que esse amor de Deus a todos os seus filhos, pode ser creditado, inicialmente,
a qualquer religião monoteísta, uma vez que nas religiões politeístas, nos parece acertado

219
Greice Ane Barbieri

rante Deus, iguais e livres. Todos são, igualmente, livres. A liberdade é


condição para que o ser humano exerça a sua individualidade e, assim,
possa ser responsável por si mesmo e por seus pecados.
Com essa percepção religiosa, o homem passa a introjetar tal vi-
são de mundo religiosa também para a “existência mundana (weltli-
chen Existenz), como a substância do Estado, da família, etc.”10. E essa
noção do indivíduo, “como sendo objeto e alvo do amor de Deus”, aca-
ba tendo relações “elaboradas por aquele espírito e constituídas como
ajustadas a ele, quanto se torna a disposição de espírito [Gesinnung]
da vida ética, mediante tal existência, imanente ao singular”11. Essa
imanência da liberdade ao singular acaba tornando o indivíduo “livre
efetivamente nessa esfera da existência particular, do sentimento e do
querer presentes”12. Desse modo, de um princípio religioso, que di-
zia respeito a uma lesão da substância do ser-aí dos cristãos, ao serem
negociados como escravos e terem as suas propriedades entregues ao
bel-prazer, passou-se para um princípio da “efetividade dos homens”,
que diz respeito “a ideia que eles são” e fundamenta o “espírito livre”.
E, essa ideia do que o ser humano é para si mesmo o recoloca diante de
si mesmo como agente na e da realidade. Em sendo assim, ele deverá
decidir, por si mesmo e não porque é a lei, o que é o Bem para ele, pois,
desse modo, ele atinge a consciência moral.
Com o princípio da liberdade engendrada pelo Cristianismo, se-
gundo Hegel, os sujeitos começaram a ver a si mesmos como essencial-
mente iguais no amor de Deus e, por isso, pode-se estabelecer o prin-
cípio da liberdade subjetiva. E, esta liberdade subjetiva – “isto é, [o]
saber dos homens de que sua essência, meta e objeto é a liberdade”13
– tem o seu momento de concretização na Moralidade. É o momento
em que o sujeito “põe a particularidade”, e começa, então, a se deter-
minar e a decidir. Nesse momento, ele começa a querer o que é bom

dizer que os deuses “só amam aos heróis e somente a esses, os quais, por sua vez, são filhos
dos deuses, o que os qualifica como ‘amados dos deuses’”. Cf. COHEN, Hermann. La religión
de la razón desde las fuentes del judaísmo. Barcelona: Anthropos, 2004. p. 111.
10
HEGEL. ECF (III). § 482 A, p. 275.
11
HEGEL. ECF (III). § 482 A, p. 275.
12
HEGEL. ECF (III). § 482 A, p. 275.
13
HEGEL. ECF (III). § 482 A, p. 275.

220
A apresentação do conceito de Família na Filosofia
do Direito – a substancialidade imediata do espírito

em si e para si como uma disposição de espírito (Gesinnung), a qual é a


consciência moral verdadeira14.
Essa mesma disposição de espírito, formada na Moralidade, per-
sistirá como a substancialidade subjetiva, que encontra sua concretude
nas instituições éticas, como a família, por exemplo. No caso da famí-
lia, a substancialidade objetiva se apoiaria no contrato matrimonial,
enquanto que a substancialidade subjetiva colocar-se-ia pela disposi-
ção de espírito do amor15.
Salientemos que a Eticidade do matrimônio se radica na consci-
ência desta unidade do casal como um fim substancial e na unidade
destes com seus filhos, portanto, no amor, na confiança e na comuni-
dade da totalidade da vida individual16. Para Hegel, é somente no e
pelo casamento que se inicia a instituição primordial, dentro da qual
os indivíduos se desenvolvem e tem o primeiro contato. Desse modo, é
interessante que a família apresente, desde já, uma coesão e segurança
capazes de mostrar ao indivíduo uma essencialidade do todo, mesmo
que este todo seja, ainda, de cunho singular. Ora, nada mais eficaz do
que um sentimento, elevado à racionalidade, por meio do consenti-
mento e do contrato, para ser o início e o local de acolhimento das
crianças e a estruturação do ou da jovem que inicia sua própria famí-
lia. E essa coesão de pessoas diferentes, com funções diferentes dentro
da família fundamenta-se no amor que garante a união verdadeira do
casal, gerando a unidade espiritual, capaz de educar ou formar os in-
divíduos, seus filhos que estarão inteiramente colocados sob a égide da
disposição de espírito ética do amor.
Quando o casal se vê e se sente como uma unidade, o próprio
instinto natural é suspendido no sentimento de amor de comunidade,
e esse instinto natural é, então, visto como um momento que será satis-
feito. Ou se, quando o laço espiritual se eleva – dado que os anseios da
naturalidade se extinguem em sua própria satisfação mostrando o lado
espiritual – ao seu legítimo lugar como princípio substancial, ele ficará


14
Cf. HEGEL. FD. § 137, p. 148. „Gesinnung“ é traduzida por J.-F. Kervégan e B. Bourgeois por
“disposition-d’esprit”, o que é melhor, do ponto de vista hegeliano, do que “disposición inte-
rior”, de J. L. Vermal, “disposição”, de P. Meneses, e “disposição de ânimo”, de M. L. Müller.
Na tradução brasileira, optou-se por disposição de espírito.

15
Cf. BORGES, Maria de Lourdes. A atualidade de Hegel. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009. p.
93-94.

16
Cf. HEGEL. FD. § 163, p. 176.

221
Greice Ane Barbieri

acima das paixões e dos gostos particulares, legitimando e concreti-


zando a sua unidade e indissolubilidade17. Ora, desse modo, família
requer a suspensão das contingências e paixões, além do bel-prazer
que poderiam servir de únicos guias para a união matrimonial. Nesse
caso, a vontade deve ser forjada e acompanhada pelo desenvolvimento
de uma disposição de espírito apropriada a cada etapa da Eticidade18.
Já no § 161, da Filosofia do Direito, Hegel afirma que o “casamento”
ou o “matrimônio” (Ehe) não é uma relação qualquer, mas uma “relação
ética imediata” (unmittelbare sittliche Verhältnis), ressaltando que se trata
de uma “relação substancial” (substantielles Verhältnis). Nesse mesmo
parágrafo, Hegel também nos lembra das determinações naturais do
casamento, a saber, a “efetividade do gênero” e a “unidade dos sexos”.
Porém, esses dois momentos da “vitalidade natural” voltam-se, na ver-
dade, para a “unidade espiritual” – por meio de seu esgotamento na
relação mesma e no gozo mútuo proporcionado pelos cônjuges. Ora,
por isso, no § 161 Z, Hegel reafirma que “o casamento é essencialmente
uma relação ética”19, isto é, o casamento possui eminentemente, como
sua característica, a “relação ética”, e não uma relação apenas natural
e, essa unidade natural composta no casamento é alterada pela espiri-
tualidade, pela “autoconsciência de sua individualidade”20. Contudo,
isso também significa que, em seu conceito, o casamento tem outras
determinações diferentes da relação ética, as quais se encontram des-
critas no Espírito Objetivo, nas seções do Direito Abstrato e da Mora-
lidade. Sendo preponderantemente uma relação ética, segundo Hegel,
“é também grosseiro considerar o casamento somente como um contra-
to civil [bürgerlichen Kontrakt]”21.

17
Cf. HEGEL. FD. § 163, p. 176.

18
Ao mesmo tempo, não devemos subestimar a importância do sentimento para a celebração
do casamento e sua manutenção. Se o sentimento não fosse uma determinação importante
para o casamento, não haveria motivos para que Hegel inserisse o reconhecimento da sub-
jetividade do sentimento, pela livre escolha do parceiro, como uma determinação moderna.
Trata-se do reconhecimento de que o sentimento importa para o casamento e impacta na
unidade do casal.
19
HEGEL. FD. § 161 Z. [TP] 7/309. „Die Ehe ist wesentlich ein sittliches Verhältnis“. HEGEL.
Principes de la philosophie du droit ou droit naturel et science de l‘État en abregé. 2nd ed. Revue
et augmentée. Texte presenté, traduit et annoté par Robert Derathé. Paris: Vrin, 1986. § 161
Z, p. 200. [TP].
20
HEGEL. FD. § 158. p. 174. Uma das formações consolidadas na seção Moralidade.
21
HEGEL. Principes de la philosophie du droit. Paris: Vrin, 1986. § 161 Z, p. 200. [TP]. Itálico nosso.

222
A apresentação do conceito de Família na Filosofia
do Direito – a substancialidade imediata do espírito

Dessa maneira, para Hegel, a primeira raiz ética do Estado, a


unidade substancial que é a família, envolve a disposição de espírito
do amor (die Gesinnung der Liebe), isto é, um sentimento alçado à posi-
ção de disposição espiritual (Gesinnung) para a formação de uma insti-
tuição primordial em toda a construção da Eticidade. Entretanto, essa
participação de uma disposição de espírito com base no sentimento
não exclui o viés contratual. Sabemos que “Hegel não ignora o aspecto
contratual do casamento”, porém, o autor evita que ele seja reduzido
a “esta única dimensão”22. O casamento envolve elementos já conheci-
dos da esfera do Direito Abstrato e da determinação contratual, como
o livre consentimento dos noivos, com a declaração solene e pública do
laço matrimonial, e o reconhecimento desse fato pela família dos nu-
bentes e pela comunidade, com isso constituindo uma pessoa. O viés
contratual é bastante óbvio se tomarmos, por exemplo, o § 162, onde
Hegel afirma que o casamento envolve, como “ponto de partida objeti-
vo”, o “livre consentimento das pessoas”, a fim de “constituir uma pes-
soa”, de direito, como veremos, e não meramente enquanto metáfora
romântica. E, essa pessoa, justamente, por isso, demanda uma renún-
cia “à sua personalidade natural e singular nesta unidade [Einheit]”23.
Ao mesmo tempo, pelas razões elencadas acima, nem sempre
parece que esse seja o caso, pois, no início do § 176, Hegel afirma: “Por-
que o casamento, inicialmente, é apenas a ideia ética imediata, com
isso tem sua efetividade objetiva na intimidade da disposição de es-
pírito subjetiva e do sentimento, nisso está a contingência primeira de
sua existência”24. A existência do casamento pode se iniciar com um
sentimento natural, que se transforma numa disposição ética do amor,
tendo sua fundação em elementos que irão depender, na verdade, do
futuro do relacionamento entre marido e mulher. Ou seja, primeira-
mente, há a inclinação e o casamento se configura como uma ideia
ética imediata, ou seja, uma forma da Eticidade se colocar, mas não
totalmente trabalhada pela consciência. Esse trabalho virá por meio
da intimidade e da disposição espiritual subsequente, na qual se dará,
ou não, a efetividade da relação, na objetividade mesma. Afinal, “con-

22
RAMOS, Cesar Augusto. Liberdade subjetiva e Estado na filosofia política de Hegel. Curitiba:
UFPR, 2000. p. 137.
23
HEGEL. FD. § 162.
24
HEGEL. FD. § 176, p. 183.

223
Greice Ane Barbieri

siste na natureza do próprio casamento, enquanto Eticidade imediata,


a mistura de relação substancial, de contingência natural e de arbítrio
interno”25. Podemos dizer que o arbítrio interno sofre influência tanto
da relação substancial – que tende à manutenção do laço ético – quanto
da contingência natural – a qual, normalmente, exerce força inversa,
tendendo a ser uma força desagregadora. Isso garante ao casamento
que seu terreno não seja totalmente estável. Por isso, existe um ele-
mento de contingência primeira, no qual o casamento terá ou não sua
existência garantida enquanto instituição.

Bibliografia

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2009.
ROSENFIELD, Denis Lerrer. Política e Liberdade em Hegel. São Paulo: Brasilien-
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pinas: IFCH/UNICAMP, 2005.
_____. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do
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COHEN, Hermann. La religión de la razón desde las fuentes del judaísmo. Barce-
lona: Anthropos, 2004.
RAMOS, Cesar Augusto. Liberdade subjetiva e Estado na filosofia política de Hegel.
Curitiba: UFPR, 2000.


25
HEGEL. FD. § 180 A, p. 186-187.

224
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

Marly Carvalho Soares


universidade federal do ceará

Introdução

O presente capítulo propõe uma análise da sociedade civil e foca-


liza o duplo sentido oriundo da compreensão e efetivação do paradigma
hegeliano da liberdade no contexto da eticidade, mas também tecendo
algumas considerações com o direito abstrato. Por um lado, como bem
lembrou o Prof. Dr. Arnaldo, o paradigma hegeliano de liberdade apare-
ce como “um contraponto radical à concepção de liberdade de mercado
com a qual o liberalismo econômico construiu a sua teoria capitalista”.
Essa visão crítica parece consolidada no passado, como no presente,
diante do avanço do capitalismo rumo ao século XXI.
Concordo com a tese acima proposta, porém gostaria de assi-
nalar como hipótese pontos que talvez contribuíssem para que o li-
beralismo econômico avançasse na sua compreensão e concretização.
É o germe liberal da organização da sociedade que na sua essência é
louvável. Porém elevada ao seu egoísmo unilateral alimentaria o ger-
me da dominação e exclusão social, econômica e cultural própria do
capitalismo. Eu não posso permanecer nesse contexto, o que implica
a sua superação e, conseqüentemente é possível “a combinação real
entre Ética e Economia”, só que a prioridade não seria o mercado, mas
o ser humano. Por outro lado, Hegel mostra na sua compreensão que a

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 225-244, 2015.
Marly Carvalho Soares

sociedade civil na sua estrutura liberal já faz parte também do exercí-


cio da eticidade. A liberdade passa pelo econômico, justificando assim
a relação: eficácia versus justiça social.
A primeira consideração é que a liberdade no sentido hegeliano
supera todos os níveis da esfera psicológica (livre-arbítrio, decisão, es-
colha) e também a esfera econômica da liberdade. O ser humano nesse
espaço é trabalhador, produtor, consumidor, mas ainda não é o homem
propriamente racional e, portanto não real- efetivo. Só concretizando
todas as dimensões do Espírito: a moral, o econômico, o jurídico, o
político e o ético é que se efetiva o império da liberdade realizada, cuja
idéia é o Direito. O pecado é ficarmos cristalizado na particularidade,
em um só desses aspectos, acarretando prejuízos ao todo. O Direito
não é só o jurídico no contexto da sociedade civil, mas, envolve toda
a passagem do espírito subjetivo ao espírito objetivo, culminando no
direito internacional na história universal.
A segunda consideração diz respeito ao paradoxo na sociedade
civil perdida nos seus extremos: particularidade e universalidade, em
que a universalidade se mantém como meio para satisfazer a particu-
laridade. O nós nunca pode ser meio para satisfazer o eu e sempre fim.
Nessa dialética do egoísmo econômico é impossível uma verdadeira
eticidade o que exige a saída para o ético real.
E finalmente a consideração a respeito do duplo sentido de
cultura: enquanto “sistema de carências” que sedimenta o Estado do
entendimento e a Cultura enquanto manifestação do Espírito, ser-aí
objetivo do Estado. A exigência atual e o cuidado que devemos ter é
impedir que a cultura enquanto “produção material” não ofusque e
destrua a cultura simbólica que contempla o ser humano em toda a
sua estrutura e relações: os nossos valores éticos, políticos, artísticos,
religiosos e espirituais, além do econômico.
A grandeza da sociedade civil gira em torno de uma única pro-
blemática: a do sentido e a aplicação do direito querem na sua rejeição
do direito natural, quer na sua especificidade de direito positivo, quer
na sua efetivação de direito racional. Hegel opõe com nitidez e preci-
são incomparáveis a sua concepção orgânica do Direito à concepção
do direito natural igualitário e universal que fora a do século XVIII
– levado a cabo por um individualismo filosófico nas suas fontes ime-

226
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

diatas: Kant e Fichte. Isto implica dizer que o sujeito do direito não é
o homem natural, mas o homem do mundo da cultura que alcança
o reconhecimento universal. Acrescenta-se também que Hegel rejeita
o direito que se resume no âmbito da decisão judicial, em lugar de
situá-lo na universalidade da lei, pois nenhum indivíduo pode ter a
pretensão de ser uma fonte de direito. Esse desequilíbrio entre a de-
terminação do universal e o confronto com os indivíduos possibilitou
também o aparecimento da violência, que segundo Hegel não é ori-
ginária, mas resultado de certo tipo de relação entre os homens. Mas
por outro lado, também a particularidade tem o direito de exigir o seu
bem-estar, e essa proteção se efetiva através da polícia e corporação.
Desse modo a função da justiça é apenas tornar necessário o aspecto
da liberdade pessoal da sociedade civil, uma vez que foi o sistema da
particularidade que motivou a emergência do direito. Como o direito
que é universal pode emergir da particularidade? Qual foi a dialéti-
ca tecida por Hegel para refutar estas constatações e acrescentar uma
nova modalidade?

1. Formação do conceito de sociedade civil

A concepção de sociedade civil ( Bürgerlich Gesellschaft ), se-


gundo Hegel, refere-se não ao antigo conceito de “ societas civilis da
tradição clássica oposto à sociedade doméstica ” que perdura de Aristóteles
a Kant, mas à esfera das relações de interesse de trabalho que se cons-
titui a partir da formação da economia liberal de mercado, tal como se
formara na emergência da sociedade industrial do século XVIII.
Desde os seus inícios, o pensamento de Hegel é marcado pelo
interesse em torno da atividade laboriosa do homem e da Economia
Política. Essa postura é reconhecida por alguns estudiosos de Hegel,
ao afirmarem que foi o primeiro filósofo moderno a integrar organica-
mente no seu sistema os problemas do trabalho e da riqueza das novas
condições criadas com o advento da indústria moderna. Luckás chega
a expressar que a análise da nascente sociedade capitalista foi sempre
uma diretriz na juventude de Hegel1.


1
VAZ, H.C. de Lima. Sociedade Civil e Estado em Hegel. Síntese. (19) : 23.

227
Marly Carvalho Soares

Os estudos da Economia política ( Steuart, A. Smith ) revelaram


a Hegel a originalidade da esfera do trabalho livre e da satisfação das
necessidades, onde prevalece o arbítrio do indivíduo e a defesa dos
seus interesses. O burguês passa a ser o centro da gravidade da nova
sociedade, em contraposição a casa-célula social da velha sociedade e
o novo cidadão da futura sociedade política. As relações econômicas
passam a constituir o tecido da sociedade pré-estatal e a distinção entre
a pré-estatal e a estatal é figurada cada vez mais como distinção entre
a esfera das relações econômicas e a esfera das instituições políticas2.
Nessa nova esfera das relações econômicas o conceito de nature-
za sofre também alterações; apesar de já ter sido anteriormente analisa-
do por Locke na sua obra: “Segundo Tratado sobre o Governo Civil ” - cap.
5, Da Propriedade - com matizes diferentes - em que frisa a concepção
do trabalho como exteriorização do homem. A natureza deixa de ser
algo divino, intocável e aparece como pólo do trabalho.
Na interpretação que a Filosofia do Direito nos oferece de tal so-
ciedade, ela é mais abrangente e definida. Por um lado, não é mais con-
siderada como o reino de uma ordem natural, tal como se manifestava
em Locke até os fisiocratas, mas como reino “da dissolução, da miséria e
da corrupção física e ética ” (FD ,§185) que deve ser superado na ordem
superior do Estado. E é só nesse sentido que ela é considerada um
conceito pré-marxista. De outro lado, é abrangente, porque não inclui
somente as esferas das relações econômicas e a formação das classes,
mas também a administração da justiça e o ordenamento administra-
tivo e corporativo3.

2. Estrutura jurídica administrativa (§208 - §228)

Dentre a estrutura complexa da sociedade civil destacaremos


somente a administração da justiça na sua estrutura jurídica que se
resume na efetivação do direito enquanto proteção da propriedade em
contraposição à justiça em abstrato, isto é, do ponto de vista do direito
abstrato. (FD; § 34 – 104).

2
BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro,
ed. Graal, 1982, p. 28.

3
BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro,
ed. Graal, 1982, pp. 29-30.

228
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

Na parte introdutória da Filosofia do Direito, um dos esforços de


Hegel é mostrar que não existe Direito Natural, mas que todo direito é
positivo, embora este nem sempre seja racional. Isso implica que “o su-
jeito do Direito não é o homem natural, mas o homem do mundo da cultura que
alcança o reconhecimento universal”. Pois foi o sistema da particularidade
que motivou a emergência do Direito, embora externo, para proteção
efetiva do trabalho e da propriedade, uma vez que são os carecimentos
que têm primazia, e o direito aparece como meio para sua satisfação4.
Sem a jurisdição, os conflitos aumentariam e, além do mais, im-
pediriam o dinamismo da vontade particular, devido à insegurança
em que se encontrava. Trata-se, então, de efetivar a realidade objetiva
do Direito superando o meramente sensível; de reger-se pela universa-
lidade da idéia do Direito mediante leis, considerando o homem, não
por suas condições particulares, senão pelo fato de ser homem. “O ho-
mem vale por ser homem, e não por ser judeu, católico, protestante, alemão
ou italiano”, isto é, que eu seja apreendido como pessoa universal no
qual todos são idênticos. O domínio da lei pertence à pessoa universal,
e não ao indivíduo concreto, e precisamente como universal é que é
aquele domínio que concretizará a liberdade.
O pensamento estabelece uma comunidade verdadeira, confe-
rindo universalidade a indivíduos que, de outra maneira, estariam iso-
lados. O direito aplica-se aos indivíduos, na medida em que estes são
universais. Mas para isto, é necessário que o homem seja educado para
pensá-lo, só o que pensa tem em si liberdade. Para que eu possa captar
liberdade, é preciso que eu enquanto liberdade possa pensar, e isto,
significa que possa dirigir minha vontade de acordo com uma vontade
universal. Isto é deixar-se reger pelas leis da universalidade5.
Criado o espaço da universalidade, o Direito tem todo campo
para efetivar-se e isto implica “que seja conhecido e sabido, tenha validade
e daí ser conhecido como algo universalmente válido”. Em última palavra,
torne-se lei e por esta determinação o Direito é um direito positivo
em geral. Pelo fato do Direito ser estabelecido e conhecido, desaparece
toda contingência do sentimento e da opinião, e assim o Direito chega
à sua verdade determinada. Não se trata de aceitar os indivíduos e

4
VAZ, H.C de Lima. Sociedade Civil e Estado m Hegel. Síntese, (19): 21-29, 1979.

5
FD.§ 209. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Filosofia Política de Kant a Marx. (pro manus-
crito) - curso de 1984.

229
Marly Carvalho Soares

suas consciências tais como são, empiricamente dados, mas a tarefa da


liberdade é chegar à consciência do que eles são essencialmente. Em
conseqüência, um código verdadeiro de leis é o resultado da atividade
do pensamento que leva em consideração a relação vida-conceito, isto
é, todo o percurso histórico da razão6.
Com isso, Hegel rejeita todas as doutrinas que situam o Direito no
âmbito da decisão judicial, em lugar de situá-lo na universalidade da lei,
e critica pontos de vista que fazem dos juízes, permanentes legisladores,
ou entregam ao seu discernimento a decisão final de uma questão.
Na sociedade Civil, todos os indivíduos têm interesses privados
pelos quais se opõem ao todo, e nenhum indivíduo pode ter a preten-
são de ser uma fonte de direito. Além do mais, a igualdade jurídica7
dos homens, diante da lei, não elimina suas desigualdades materiais
e nem supera a contingência geral que limita a condição social que ela
possui. Mas apesar disso, ela é mais justa do que as relações sociais que
geram desigualdades, conflitos e outras injustiças. A lei pelo menos se
baseia em alguns fatores essenciais comuns a todos os indivíduos - por
exemplo - a posse da propriedade privada. Firmando-se no seu princí-
pio de igualdade fundamental, a lei é capaz de retificar certas injustiças
flagrantes, sem transtornar a ordem social existente.
A primeira forma de existência do Direito é a Lei8, cujo conteúdo
se refere às ações no que elas têm de exteriores. Trata-se então, das rela-
ções complicadas da Sociedade Civil no que toca a matéria de Contratos
e tipos de propriedades, também a certas relações éticas, na medida em
que estas contêm algo do Direito Abstrato e, por fim, alguma matéria
que decorre dos direitos e deveres da própria administração da justiça.
Esse seria o primeiro passo da efetivação da lei9. É uma conquista da
modernidade a separação de normas jurídicas e normas morais.


6
FD.§ 211. No § 211 Ad - Hegel chama atenção para o valor do conhecimento da lei. Ele diz:
“O sol e os planetas têm igualmente as suas leis, mas não são conscientes delas; os bárbaros são gover-
nados por impulsos, costumes e sentimentos, mas não têm consciência deles”.
7
FD. § 209 N.
8
Fd. § 213.
9
Só pode ser objeto da Legislação positiva aquilo que tem caráter de exterioridade, ou seja,
aquilo que eu posso alienar. Aquilo que diz respeito à interioridade, como o amor, a religião,
não podem ser objetos da legislação positiva. Daí a divergência de legislação nos diversos
Estados. FD. § 213 Ad.

230
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

Mas, para que estas leis tenham força de obrigação é indispen-


sável que sejam conhecidas e proclamadas publicamente. Onde existe
liberdade civil, aí o direito de cada um deve ser por ele conhecido10.
Daí o direito de facilitar o conhecimento da lei a todos - o que não
depende da opinião de formação dos outros, mas unicamente da lei,
embora esta nem sempre seja de direito, isto é, de acordo com a razão,
mas sim com a legislação vigente. Portanto, o conhecimento da lei não
é monopólio de ninguém - nem daqueles (juristas ) que se arvoram em
conhecedores particulares das leis11. É um direito de subjetividade, se
quisermos que esse direito seja obrigatório para todos
Outra consideração a ressaltar é a questão da perfeição e da
flexibilidade das leis12. Não basta só fazer leis, mas ordená-las numa
sistematização conseqüente. De sorte que por um lado - haja determi-
nações gerais simples que regulam todo e qualquer contexto, dando
assim uma noção de fechamento; mas por outro lado, há uma contínua
precisão de novas determinações legais; isto é, aberto às especificações
susceptíveis de mudanças em função do caráter histórico do conteúdo.
Pelo fato de estarmos neste peregrinar histórico, não podemos exigir
algo perfeito e acabado, a não ser a perfeição da prática da justiça para
todo e qualquer caso. “A lei deve ser perfeita no que concerne sua forma - a
justiça para todo mundo sem exceção - é lá que se encontra seu caráter justo
e não no conteúdo histórico, infinitamente múltiplo”. Além do mais, exigir
que um código seja perfeito, querer que constitua algo acabado do que
possa aceitar qualquer modificações ou acrescentamento por medo de
atingir uma existência imperfeita para o futuro raciocínio demonstra
ignorância a respeito da natureza dos objetos finitos, como também o
desconhecimento da diferença que há entre a razão e o entendimento
na sua aplicação à matéria do finito. E conclui Hegel: “O ótimo é inimigo
do bom. Temos o bom, então caminhemos para o melhor ”13.
10
FD. § 215.
11
FD. § 215 Ad.
12
FD. § 216.
13
FD. § 216 N. É bom lembrar que nenhuma ciência tem a pretensão de esgotar o Todo.
Portanto, nenhum saber é completo. Mas isso não significa que podemos parar. Pelo con-
trário, é uma motivação para o avançar, pois o melhor pode ainda mais adiante. “ Uma
grande árvore e bela árvore ramifica-se cada vez mais, sem por isso se tornar uma nova árvore.
Seria insensato não querer plantar árvores por causa dos novos ramos susceptíveis de crescer ”. Cf.
FLEISCHMANN, E. § 216 Ad.

231
Marly Carvalho Soares

Por conseguinte, o Direito privado na Sociedade Civil é então


tomado como lei. Assim o existir anterior imediato e abstrato do meu
direito individual assumem a significação do ser reconhecido como
existência no querer e no saber universal. Portanto, todas as aquisições
e ações se assentarão no Contrato e nas formalidades - que passam a
ter caráter demonstráveis e de Direito. É este ato formal, tal como assi-
natura de um Contrato, que torna este reconhecimento eficaz.
No nível da Sociedade Civil, a formalidade é muito mais impor-
tante que no Direito Abstrato. Ela é um ato simbólico, consciente, pois
simboliza a vontade do indivíduo de participar por sua propriedade
à riqueza social comum14. Como também o essencial da forma é que
o que é de Direito em si seja igual neste estabelecimento como tal. A
partir dessas formalidades, qualquer atentado a um membro da Socie-
dade - atinge toda sociedade - porque se torna uma violação da coisa
pública que nela possui uma existência firme e sólida. Daí se modi-
fica a natureza do crime, não em função do conceito, mas em função
da existência exterior da lesão que passa a atingir a representação e
a consciência da Sociedade Civil e não somente do atingido. Por um
lado, a dimensão do crime torna-se maior, enquanto por outro lado,
devido à potência da Sociedade Civil, diminui a importância exterior
da violação e conduz com maior suavidade a aplicação da lei15. A se-
veridade da estima depende necessariamente do valor que a sociedade
dá a ele; e isso depende muito da mentalidade histórica mais ou menos
evoluída da sociedade. Um código penal pertence, necessariamente, a
seu tempo e ao correspondente estado da Sociedade Civil.
O tribunal tem por finalidade fazer valer o universal da lei nos
casos singulares, independente da impressão subjetiva dos interesses
particulares. Daí ser o lugar de efetivação da justiça, onde se restabelece
o direito lesado, comandado unicamente pela lei que é a determinante e
a inspiradora do tribunal. Cabe então ao cidadão o direito de recorrê-lo
para solução de qualquer conflito jurídico. O único interesse do juiz só
pode ser o que a lei concede e a ele cabe fazer prevalecer a lei16.


14
FD.§ 217; FLEISCHMANN, E. Op cit., § 217.

15
FD.§ 218 N. Nos tempos antigos os cidadãos não se consideravam atingidos pelos crimes das
casas reais ( Tragédia Grega ).

16
FD.§ 219.

232
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

Na Sociedade Civil, enquanto tal, as pessoas não estão habitua-


das a se determinarem a partir do universal. E isso, possibilita no con-
fronto entre os indivíduos, o aparecimento da violência, que, segundo
Hegel, não é originária, mas resultante de certo tipo de relação entre
os homens. A vingança é uma das formas de violência, que “é apenas
um direito em si, um direito que não tem a forma do direito, isto é, não é jus-
tificado na sua existência”17. Daí o tribunal toma o lugar do ofendido não
enquanto parte, mas enquanto universal e reconcilia com a lei através
da pena. Em outras palavras, a jurisdição transforma a vingança que
é decisão da justiça arbitrária em pena, que é a decisão adequada à
lei. Os indivíduos não podem, eles mesmos exercerem a justiça ( nem
os príncipes e governantes ) é a sociedade que se encarrega do que é
do direito e de obrigação. Com efeito, não é somente a sociedade que
defende seus interesses e realiza suas leis, mas também o criminoso
encontra nela sua proteção, pois quer ser punido de acordo com a jus-
tiça, que embora violando suas leis ele reconhece a sua autoridade18.
No tribunal todos tem o direito de se defender como também o dever
de submeter-se a ele. Torna-se assim o local onde se julgam todos os
litígios referentes aos assuntos privados da Sociedade Civil. Aqui não
há exceção. Ele está acima de qualquer outro poderio19.
No procedimento jurídico, o direito torna-se alguma coisa de de-
monstrável. Para isso é necessário favorecer as diferentes partes em
litígio, condições que façam valer suas provas e argumentos jurídicos -
isto é, provém a existência ou não existência do conhecimento do caso.
Além do mais, todos esses passos do processo constituem direitos e
devem ser determinados legalmente e devem constituir interesse da
ciência jurídica.
Ainda pode acontecer que, no desenrolar dos fatos, o processo
que começara por ser um meio, passa a distinguir-se de sua finalidade
como algo de exterior. Como bem exclama Denis Rosenfield: “O direito
à lei supõe o procedimento legal, sem, contudo perder-se nele ”. Para evitar
esses abusos, tem-se o direito de recorrer ao tribunal arbitral, o qual
porá um limite ao formalismo, evitando dessa maneira o perigo de

17
FD.§ 220.
18
FLEISCHMANN, E.Op. cit., § 220.
19
FD. § 221 Ad.

233
Marly Carvalho Soares

injustiças durante o processo20. Além do mais, esse andamento deve


ser levado ao conhecimento público. “A publicidade das leis faz parte dos
direitos da consciência ” ( § 215 ) - pois, a toda gente interessa a decisão
obtida, como também supõe-se que os cidadãos estejam sendo forma-
dos para o exercício da liberdade. Mas as deliberações tomadas no tri-
bunal, no que diz respeito à sentença a dar, são ainda opiniões particu-
lares de caráter privado21.
Na aplicação da lei a um caso particular, devemos examinar
dois aspectos. Primeiramente, é a comunicação do fato do delito na
sua individualidade, considerando todas as possíveis tentativas de
apuramento do caso. Em segundo lugar, é a elaboração da sentença,
submissão do caso às determinações da lei, para que restabeleça o di-
reito violado. Só que o encaminhamento à solução desses processos
cabe a órgãos diferentes. Um recebe a comunicação e outro delibera a
sentença22. Entretanto, só o juiz de Direito (órgão da lei) pode emitir a
sentença, isto é, dar uma qualificação legal ao fato reconhecido, o qual
supõe conhecimento das circunstâncias do caso particular, enquanto
qualquer homem de cultura pode dar seu parecer sobre o conhecimen-
to e qualificação da natureza do caso.
Ainda também para a qualificação, o juiz deve considerar o pon-
to de vista e da intenção daquele que cometeu o ato; como também
toda a matéria proveniente da intuição sensível e as correspondentes
expressões e combinações de tais declarações e testemunhos23. Mas a
última palavra é o júri, que, a partir da confissão do criminoso, julgará a
culpabilidade ou a inocência. Além disso, não podemos esquecer que o
juiz é o órgão da lei, mas, por outro lado, ele é também uma pessoa par-
ticular, com suas opiniões e interesses, os quais podem motivar o julga-
mento de uma ou de outra maneira. Ora, a defesa da Sociedade Civil,
neste ponto, diante deste lado subjetivo - inevitável dos julgamentos é
20
FD. § 223.
21
FD.§ 224.
22
D. § 225.
Exemplo: na organização jurídica romana o protetor dava a conhecer sua decisão para o
caso em questão e mandava que um juiz de Direito indagasse sobre o fato. Já no processo
inglês, a caracterização da qualidade criminal, isto é, se se trata de um homicídio com ou
sem violência, é deixada à preciação do queixoso e o tribunal não pode decidir sobre outra
determinação, embora reconhecendo a inexatidão do queixoso
23
FD. § 227.

234
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

a publicidade da administração da justiça. Ao passo que no primeiro


momento, isto é, no aspecto do conhecimento do fato, o direito da cons-
ciência é satisfeito pela confiança na subjetividade de quem decide. Tal
confiança baseia-se na igualdade entre a parte e quem decide24.
Por conseguinte, o tribunal tem por obrigação chegar ao resulta-
do justo. O que implica que o juiz deve estar atento a todas as contin-
gências possível presentes tanto na confissão do criminoso, como no
depoimento das testemunhas, como ainda na qualificação do crime.
Uma vez que todos estes conflitos privados estão carregados de “emo-
ções e de crenças”, compete ao juiz a “direção do processo”, a “imparciali-
dade na investigação” e “disposição” para chegar a uma decisão justa. Só
assim os cidadãos podem recorrer ao tribunal, reforçando mais e mais
a relação entre os indivíduos e as instituições25.
Com a publicação, chegamos a um ponto alto da sociedade, uma
vez que esta tem por objetivo a destruição da injustiça, com tal, a efetu-
ação da lei. A lei se resume apenas na proteção do que tenho - à minha
particularidade e com isto a propriedade livre, que é uma condição
fundamental do brilho da sociedade civil. É preciso, contudo, que, na
medida em que estou envolvido nos meus interesses particulares, te-
nha o direito de exigir o meu bem-estar. É preciso que considerem este
aspecto pela minha particularidade e isso se chega através da polícia e
da corporação26.

3. Precauções tomadas a respeito do bem estar


da particularidade no reino das necessidades

Com a Administração da justiça a idéia retorna ao seu concreto,


isto é, “à unidade universal em-si e do para-si”, que se havia dissociado
na separação do exterior e do interior. No entanto, a particularidade
subjetiva se manifesta apenas nos casos singulares e o universal tem a
significação do Direito Abstrato. A efetivação dessa unidade na sua ex-
tensão a todo o âmbito da particularidade cabe à Polícia e na totalidade
limitada, mas concreta, à Corporação.

24
FD. 228.
25
ROSENFIELD, Denis. Op. cit., p.195.
26
FD § 229 Ad.

235
Marly Carvalho Soares

O estudo acima mostrou-nos que todo domínio da lei encarna


meramente o “direito abstrato” da propriedade. Portanto, todo dano
contra propriedade e contra a personalidade é castigado. Mas só isso
não é suficiente, é mister que sejam suprimidas as contingências pró-
prias das relações sociais desse sistema de necessidade - possibilitando
a segurança da pessoa e da propriedade, mantendo seguras as condi-
ções materiais dos membros da Sociedade. Em suma, que o “bem-estar
particular seja tratado como um direito e realizado como tal”27. Desse modo,
a função da justiça é apenas tornar necessário o aspecto da liberda-
de pessoal na sociedade civil. O que implica que a necessidade cega
do sistema das necessidades não foi ainda elevada à consciência do
universal e nem elaborada nesse sentido28. A lei deve por isso ser su-
plementada por uma instituição mais poderosa, estabelecendo assim
“uma ordem exterior ao circulo das contingências”29 (particularidade). Sur-
ge, então, a Polícia30 e a Corporação, ambas as atividades do universal
em relação à Sociedade Civil. Só que, enquanto a polícia é identificada
como “o estado do entendimento”, o estado na esfera da exterioridade, já
a Corporação é mais uma “unidade ética”, um fim que para seus mem-
bros é um fim substancial, que é fim comum, porque produzido por
todos. Por isto, a Corporação significa a passagem do estado exterior
para o estado ético31.
A “Polícia”, portanto, passa a ser o poder da ordem pública, cuja
tarefa mais ampla é, como já citamos, a “segurança da pessoa e da pro-
priedade, na esfera contingente que escapa às garantias da lei”. Assim, por
exemplo, “velar sobre um indivíduo contra o outro, proteger um interesse
27
FD.§ 230. Enc. § 533.
28
Enc. § 532, § 533.
29
FD.§ 231; Enc. § 534; FLEISCHMANN, E. § 230.
30
“ Polizei ” - foi traduzido por police ( polícia ). O termo francês, no seu sentido do séc. XVIII
significa manter a ordem pública, social e econômica. Cf. o § 92 do manuscrito Homayer: He-
gel. La Societé Civile Bougeoise. Op. cit. “Polícia ” foi traduzido como Autoridade Pública ( no
domínio da Sociedade Civil ). De sorte que em Hegel ela abrange muitos setores, podendo ser
tradazuido por Administração Pública, no que concerne à organização e regulamentação in-
teriores de um Estado, idéia corrente na época e principalmente na Alemanha. A esse respeito
veja também ROSENFIELD, Denis. Op. cit., p.196; HEGEL. El Sistema de la Eticidade. Edicion
preparada pro Dalmacio Negro Pavoa, ed. Nacional, Madrid, 1982, p. 70 e VAZ, Henrique
Cláudio de Lima. Sociedade Civil e Estado em Hegel, ( pro manuscripto ), Curso de 1978.
31
A respeito dessa relação Polícia x Corporação, veja a explicação de ROSENFIELD, Denis,
p.196.

236
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

privado contra o outro, a fim de reinar a ordem comum entre os homens, sem
interferir diretamente na vida privada. Para isso é pressuposto pelo menos que
haja, na coletividade, consideração de um pelo outro, como também estejam
presentes os conceitos de justiça e injustiça”32. A prevenção dessas arbitra-
riedades é a primeira tarefa de administração.
Podemos dizer, para efeito de compreensão, que a segunda tare-
fa da Administração se refere propriamente à atividade econômica. A
multiplicação indeterminada das necessidades diárias, como também o
“abastecimento” e troca dos meios de satisfação dessas necessidades; as-
sim como as pesquisas e informações sobre esses assuntos dão origem
a questões universais que são de interesses comum. Pode muito bem,
como comenta E. Fleischmann, que uma empresa de grande porte em-
preenda fatos desagradáveis para a sociedade. Por exemplo, o aumento
de preços. Cabe então à Polícia intervir nas ações arbitrárias dessa em-
presa - a favor da Coletividade - pela fiscalização do mercado. Tais ne-
gócios coletivos e instituições de interesse geral requerem a vigilância e
os cuidados do poder público. Além do mais, compete ao poder público
regular as disparidades entre os produtores e consumidores, a fim de
evitar sérios conflitos. Para tanto, é necessário que essa regulamentação
esteja acima dos dois interesses e controle os assuntos da particulari-
dade. Mas o que, sobretudo, torna necessária uma fiscalização é a de-
pendência em que grandes ramos da indústria e do comércio estão de
circunstâncias externas e de combinações distantes - que não oferecem
ao homem uma segurança e fidelidade. É mister que a sociedade tome
controle do comércio externo ( exportação e importação ), não deixando
à mercê da boa ou da má vontade arbitrária dos indivíduos33.
Em face da liberdade da indústria e do comércio, pode acontecer o
oposto - que o poder público assuma o “cuidado de todos e a determinação
do trabalho de todos, como aconteceu nas grandes obras da Antigüidade - as
pirâmides do Egito e da Ásia, sem mediação do arbítrio e do interesse particular.
Mas há a necessidade de reconduzir o particular ao universal e de estruturar e
atenuar o espaço em que os conflitos se dão, em virtude da necessidade”34.


32
FLEISCHMANN, E.Op. cit., § 235.

33
FD. § 236; FLEISCHMANN, E. Op. cit., § 236.
É interessante observar que Hegel inclui, entre as intervenções do poder público, a taxação
dos artigos de primeira necessidade e o seu controle de qualidade ( § 236 N ).
34
FD. § 236 N.

237
Marly Carvalho Soares

Todo indivíduo tem o direito de participar na riqueza universal.


Pois, a riqueza universal é produzida por todos em mútua comple-
mentariedade. Mas esta possibilidade ainda é imperfeita, uma vez que
está sujeita a vários condicionamentos no que tem de subjetivo ( saúde,
capital, concorrência ). A livre concorrência favorece necessariamente
os talentosos, as famílias poderosas. Portanto, é necessária uma provi-
dência no que diz respeito a esta participação35.
Primeiramente, é à família que compete prover a totalidade de
necessidades do indivíduo. Mas, na Sociedade Civil, a família é algo
secundário, servindo apenas de base. O filho aqui é, acima de mais
ainda, filho da Sociedade Civil. Dessa maneira, arranca-o do seio fa-
miliar, torna estranhos uns aos outros membros ligados por esse laço
e reconhece-os como pessoas autônomas e para, além disso, desloca o
terreno paterno, pelo seu próprio solo, submetendo a subsistência da
família inteira à sua contingência. “Foi assim que o indivíduo se tornou
filho da Sociedade Civil burguesa, tendo esta tantas exigências em relação a
ele como direitos ele tem em relação a ela”. A Sociedade Civil deve necessa-
riamente proteger os seus membros e defender os direitos deles, tanto
quanto o indivíduo singular tem obrigação para com a sociedade civil
burguesa36. Daí a urgência de uma política social.
É dentro deste contexto que se situa a política educacional: é a so-
ciedade civil que deve aperfeiçoar e desenvolver a consciência que os
indivíduos possuem como membros da comunidade, contra o arbítrio
e contingências dos pais. Contudo, nesta matéria, a sociedade tem o
direito de proceder de acordo com as suas próprias concepções, contra
os hábitos e opiniões dos pais no que se refere à educação dos seus
filhos. A educação das crianças é obrigatória, devendo os pais enviar
seus filhos à escola37.


35
FD. § 237,
“ Com admissão da liberdade subjetiva - precisamente porque ela é livre - deve necessariamente apare-
cer o mal, ser abuso, porque, o bem não existiria sem o seu contrário: o mal ”. FLEISCHMANN, E.
Op. cit., § 237.
36 FD. § 238.
37
FD. § 239.
Há uma dificuldade em limitar os direitos dos pais e os direitos da Sociedade no que toca
à instrução. Por exemplo: os conflitos que existem na França neste sentido. Pois os pais se
acham convencidos de seu direito absoluto de fazer tudo o que está em seu poder. Cf. FLEIS-
CHMANN, E. Op. cit., § 239.

238
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

Assim, a sociedade civil deve encarregar-se da educação das


crianças, cujas famílias falharam por um motivo qualquer: morte ou
miséria. Aliás, os filhos têm o direito de serem educados quando os
pais falham. “Se os homens caem na miséria, eles não conseguirão jamais
tornarem-se membros da sociedade, pois para isto, é-lhes necessária educação,
cultura e consciência de si mesmos”38.
É igualmente uma tarefa de a Sociedade tomar sob tutela aque-
les que, por irresponsabilidade e esbanjamento, arruínam a seguran-
ça de sua própria vida e da sua família. Como também esta deve
realizar os fins que lhes pertencem na sociedade, bem como os que
lhe são particulares39.
O desafio que se coloca à riqueza da sociedade - que é fonte de
satisfação dos carecimentos - é esse antagonismo em relação à parti-
cipação dos indivíduos. Por um lado, uns que facilmente satisfazem
seus carecimentos (ricos) e, por outro lado, os que nada podem fazer
(pobres), caindo num estado de suprema pobreza. Nesse estado con-
tinuam supostos às exigências da sociedade civil, mas despojados dos
seus dotes naturais e desligados dos laços da família, perdem todas as
vantagens da Sociedade Civil. O pobre não tem condições de transmi-
tir a seus filhos as conquistas da sociedade. Até o problema do Direito
é afetado pela pobreza, pois, sem dinheiro, não é possível conseguir
direito como também saída. Até o consolo da religião lhes é negado,
pois eles não podem freqüentar a Igreja, por seus trajes esfarrapados e
indignos. Com a pobreza, é sufocado o sentimento do Direito e da hon-
ra de existir, através do próprio trabalho. Como bem afirma Manfredo:
“Todo o mundo tem direito à subsistência e porque o pobre sabe que ele tem
direito a isto - sua pobreza emerge como injustiça 40. Isto provoca uma dispo-
sição interior contra os ricos, contra o governo, contra a sociedade”. Ainda
mais numa situação de extrema miséria, o capitalista encontra muitas
pessoas a trabalhar por baixos salários e, com isto, aumenta o lucro,

38
ROSENFIELD, Denis.Op. cit., p.198.

39
FD. § 240.
Em Atenas, uma lei obrigava a todo cidadão a declarar de que vivia. Nos nossos dias, há
opinião de que ninguém tem nada com isso. É certo que o indivíduo tem o direito de exigir
sua subsistência, o que corresponde por parte da sociedade o direito de protegê-lo. Não se
trata aqui unicamente do problema da fome, mas ela deve impedir, na medida do possível,
a formação da plebe. Veja a esse respeito: FD. § 240 Ad.
40
OLIVEIRA, Manfredo A. de. ( pro-manuscripto ).Op. cit., curso 1994 - UFCE.

239
Marly Carvalho Soares

aumentando o cinturão da miséria. E a pergunta continua: “Como re-


mediar a pobreza oriunda do excesso de riqueza?”.
A solução não seria para Hegel no nível do assistencialismo, isto
é, que se sustentassem os pobres com esmolas, independentes do seu
trabalho, pois isto seria indigno do homem e nem com o aumento do
trabalho, que consistiria em aumentar mais ainda o excesso de produ-
tos existentes no mercado. Deste modo se mostra que, apesar do seu
excesso de riqueza, “não é a sociedade suficientemente rica, pois seus bens
não são bastante para pagar o tributo ao excesso de miséria e à sua conseqüente
plebe”. Daí se vê a incapacidade fundamental da Economia burguesa
de enfrentar suas contradições41.
Além do mais, com esse progresso harmonioso da sociedade ci-
vil em que conjugam todas as forças operosas - é certo que, por um
lado, aumenta a acumulação das riquezas, mas também pela exigência
da especialização e da limitação do trabalho particular, as pessoas se
tornam incapazes de sentir e exercer outras faculdades, sobretudo as
que se referem às vantagens da sociedade civil42. Daí se origina a dico-
tomia das classes43, criando um abismo intransponível. “Nesta socieda-
de, o homem chegou a um nível superior de cultura, bem-estar geral, alcançou
um grau de riqueza nunca dantes vistos e, ao mesmo tempo, o problema da mi-
séria colocou-se de uma forma ainda mais agudo”44. É de chamar à atenção a
rigorosidade de Hegel em relação aos pobres da Escócia: “ abandonar os
pobres ao seu destino e entregá-los à mendicidade pública ”. Hegel condena
terrivelmente a intervenção do Estado nos assuntos sociais sob a for-
ma de doações e contra que os ricos se encarreguem da pobreza, pois
se trataria de soluções somadas que não consideram o homem na sua
dignidade de pertencer ao Todo social.

41
FD. § 242, - § 245.
42
FD. § 243.
43
Primeiro emprego da palavra Klasse na filosofia do Direito de 1820, para designar uma cate-
goria social produzida pelo desenvolvimento da sociedade civil burguesa, pela acumulação
das riquezas, pela singularização do trabalho... e que não pode em caso algum constituir
um “ Stand ”. Cf. LEFEBVRE, J. Op. cit., §. 243, nota 1. Veja também a explicação de ROSEN-
FIELD, Denis. Op. cit., p. 200.
Hegel serviu-se desta palavra com o propósito de nomear a classe dos trabalhadores (onde
estão compreendidos os trabalhadores desempregados) em posição à classe mais rica ( der
reicheren Klasse) , § 245.
44
ROSENFIELD, Denis. Op. cit., p. 199.

240
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

A sociedade Civil, diante desta “aporia” é impulsionada, como


diz Hegel, “para além de si mesma”. É obrigada a ver outras saídas, ou-
tros meios que consumam seus recursos, em geral, na indústria, ape-
lando assim para a exportação e a colonização. Pela exportação, o mar
se torna o terreno que possibilita o intercâmbio com os outros países
distantes. A generalização em grande escala deste movimento de troca
termina por instaurar o Mercado Mundial, resolvendo provisoriamen-
te os problemas da sociedade civil45. Outra saída possível, sobretudo
para resolver a questão do excesso da população, é da colonização46.
Há uma colonização esporádica - por exemplo, na Alemanha, onde os
colonos emigram para a América, para a Rússia - esta emigração é cau-
sada pela miséria - onde cortam todas as relações com a antiga Pátria.
Já a colonização sistemática é o Estado que tem iniciativa, em vista de
crescer a capacidade econômica do país. Os povos antigos (gregos e ro-
manos) a conheceram; quando a população crescia tanto que emergia a
dificuldade de sustento, então apelava-se para a missão de nova pátria.
Só que nesta nova pátria os cidadãos tinham os mesmos direitos que
na pátria de origem, o que não acontece nas colônias dos tempos mo-
dernos, que são completamente submissas à metrópole. Esta solução
também é provisória, porque adia a desmoronamento da sociedade
- dando razão à mão-de-obra desempregada. A questão não é enfren-
tada em sua raiz47.
De tudo isto, podemos concluir que a Administração “começa por
realizar o que há de universal na particularidade da sociedade civil” - protegen-
do os interesses da sociedade em seu conjunto; mantendo a ordem exter-
na e assegurando o funcionamento das instituições. Toma igualmente as
medidas necessárias para proteger os interesses que excedem os limites
da Sociedade Civil. Mas, apesar de tudo isso, mostrou-se incapaz de pôr
fim a esta situação de injustiça; não é este quadro que assegura o bom
funcionamento da engrenagem econômica da sociedade. Só quando,

45
FD. § 246. è interessante observar o valor que Hegel dá ao mar e aos rios como meio de civi-
lização de troca, de relações jurídicas, de cultura. Além do mais, o progresso das nações que
empregaram a navegação em contrapartida àquelas que se negaram.
Cf. LEFEBVRE, J. Pierre. Op. cit., § 247, nota; FLEISCHMANN, E. Op. cit., § 247.
46
FD. § 248.
47
FD. § 248, § 248 Ad. FLEISCHMANN, E. Op. cit., § 248.
A respeito do “ além-de-si ” da Sociedade Civil - veja a explicação magistral de ROSENFIELD,
Danis. Op. cit., pp. 203 - 205: “ o além histórico e o além conceitual da Sociedade Civil ”.

241
Marly Carvalho Soares

segundo a “idéia”, a particularidade adquire como fim e objeto de sua


vontade e atividade, o universal nela imanente, então reintegra-se na
sociedade civil. Trata-se do movimento de volta do elemento ético na
sociedade civil burguesa; o conceito tornando-se imanente a si maior
cisão consegue; isto constitui a missão da corporação48.
A corporação49, como organização social do estado industrial, se
justifica pelo fato de ser este estado o único que está essencialmente
“orientado para o particular”, enquanto os demais estão orientados para
o universal50. Portanto, a corporação torna-se uma unidade econômica
e política, na qual o cidadão particular encontra, como homem priva-
do, a segurança de sua riqueza; ao passo que também ele sai dos seus
limites a fim de exercer uma atividade consciente para um fim “relati-
vamente universal” e encontra neste estado sua vida ética51.
O específico do trabalho, na sociedade industrial, é que ele se di-
vide, “segundo a natureza de sua particularidade, em vários ramos”. O que
é comum entre os diferentes trabalhos das diversas particularidades é
que constitui a base da corporação. Em outras palavras - cada um dos
quais tem seu interesses específicos, mas que são comuns a todos os
membros deste ramo. Neste sentido, a corporação é um retorno ao ca-
ráter ético - o fim perseguido de cada um, é o fim perseguido de todos
que fazem aquele setor, tornando-se assim um interesse comum., ela
é considerada “uma segunda família”52; uma vez que a Sociedade Civil
está mais distante dos indivíduos naquilo que cabe às suas necessida-
des particulares.
A partir dessa organização, todos os indivíduos conscientes
reconhecem-se como membros da sociedade, formando-se uma nova
unidade social. Este reconhecimento invalida aspectos exteriores de
“qualidades”, “rendimentos”. A sua honra está em pertencer ao estado
social. Pois pertence a um Todo para cujos interesses e fins trabalham.
No caso, porém, das ajudas caritativas em favor da pobreza, estas têm
um novo sentido: deixam de ser humilhantes pelos que recebem como

48
FD. § 249.

49
Veja a análise minunciosa do significado histórico do termo Corporação, feita por LEFEB-
VRE, J.P. Op. cit., § 250, nota 1.

50
O estado agrícola tem sua substancialidade na vida familiar e natural e o estado universal
tem sua determinação o universal por si.

51
Enc. § 534.

52
D. § 251 - § 252.

242
Estrutura jurídica da sociedade civil em Hegel

também os que ajudam perdem seu ar de arrogância. “A retidão en-


contra aí o seu verdadeiro reconhecimento e a sua verdadeira honra”. Ora, o
cidadão encontra, na comunidade, o campo onde ele com consciência
e vontade, pode exercer uma atividade universal53. E aqui se registra
uma grande diferença entre a corporação formulada por Hegel, com
uma corporação econômica, aquela que se imiscui nos assuntos da par-
ticularidade e suprime a liberdade da atividade econômica - como bem
lembra Rosenfield54.
Eis porque Hegel lamenta a tragédia das modernas nações como
a Inglaterra, de ter abolido o sistema das corporações - a única media-
ção capaz de resolver os problemas da plebe. A economia moderna se
baseia no princípio da profissão livre, que tem, na profissão, o direito de
exercê-la à mercê do seu livre-arbítrio, o que não é comum a todos - pos-
sibilitando mais e mais a disparidade ascendente entre pobres e ricos.
Apesar de toda sua autonomia pela coesão dos objetivos comu-
nitários, a corporação deve estar subordinada ao Estado. Isto se justifi-
ca pela possibilidade de degeneração por um grupo ou castas, em bus-
ca de seus privilégios. O Estado deve criar espaço para as corporações,
uma vez que este também cuida dos interesses particulares e não de
sua destruição. Aliás, na estrutura da corporação, constatamos algo de
privado e algo de universal e por essa configuração se torna a media-
ção entre a família e o Estado. Em outras palavras - é o termo concilia-
do entre o interesse particular da família com o interesse universal do
Estado. Aqui o homem deixa de ser simplesmente privado e começa a
ter uma atividade universal consciente e não mais, simplesmente, um
universal necessário e inconsciente como é o caso da Sociedade Civil.
Revisitando todo o movimento do direito no pensamento de Hegel
configurado também no tempo, podemos prever já a fundamentação e
aplicação dos direitos humanos quer no âmbito do direito abstrato, com
a posse da propriedade e, como também na proteção das necessidades
com a administração da justiça que já envolve vários direitos humanos
com o objetivo de universalizar todos os direitos particulares.


53
FD. § 253 N.

54
ROSENFIELD, D. Op. cit., p. 207.

243
Marly Carvalho Soares

Referências

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1983.
VAZ, H.C. de Lima., . Sociedade Civil e Estado em Hegel. Síntese, (19 ): 21
- 29, 1980.

244
A liberdade efetivada no estado Hegeliano

Bárbara Santiago de Souza


Universidade Federal do Ceará

Para abordamos o conceito de liberdade na eticidade de Hegel


na Filosofia do Direito, é fundamental ter como ponto de partida a ideia
de liberdade1, ou seja, que ela é a afirmação dos direitos civis e cidadãos
que vão desenvolvendo-se e concretizando em cada fase da apropria-
ção da consciência de si dos indivíduos na historia. Estas concretiza-
ções são determinações filosóficas do ‘saber-se’ e ‘sentir-se’ livre nos
momentos mais intensos da existência quando o ser e o pensar são
uma unidade em ato.
Para Hegel o espírito é exatamente o resultado do processo de re-
alização da ideia de liberdade. Ele significa tanto as instituições como
as regras jurídicas, políticas e morais que se manifestam em uma de-
terminada cultura e num determinado período histórico. Sabendo que
a historia é o lugar da realização do absoluto na sua identidade e na
sua diferenciação de si mesmo. A aparição do espírito vai determinar as
diferentes acepções da ideia de liberdade.¹
Ao decorrer de sua obra, Hegel esclarece que as formas histó-
ricas da ideia de liberdade são determinadas pela concretização no
mundo. Estas concretizações feitas num determinado tempo e espaço


1
No parágrafo 04, da Filosofia do Direito, Hegel salienta que a liberdade só se realiza através
da vontade humana que, por sua vez, se origina no espírito, c.f WEBER, Hegel: Liberdade,
Estado e História, p. 49.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 245-252, 2015.
Bárbara Santiago de Souza

são parâmetros comparativos de avaliação do maior ou do menor de-


senvolvimento da ideia de liberdade (mais direitos, mais liberdades),
entre as sociedades históricas que manifestam seus valores culturais.
Hegel tenta nos mostrar que a história é o desenvolvimento pro-
gressivo do Espírito, que é a própria Liberdade. Mas, o que é concre-
tamente a liberdade, e como ela é efetivada? Em que consiste esse con-
ceito que comumente é conhecido de uma forma tão obsoleta, e que é
tão difícil de se explicar adequando a realidade?
É exatamente na obra Filosofia do Direito, lançada em 1829, que
Hegel pressupõe uma “ciência filosófica”² do direito que tem como obje-
to a “ideia do direito”2, abrangendo as suas normas e a sua realização, e
desta forma, ampliando a ideia do direito além do seu habitual caráter
positivo. A ideia do direito é fundamentada numa liberdade que está
diretamente relacionada com a vontade. Vontade, esta, que é livre, e é pro-
duzida pelo espírito, percorrendo um caminho que se inicia nas determinações
e se concretiza por meio das formas de representações do próprio espírito.3

O terreno do direito é, em geral, o espiritual, e seu lugar e seu


ponto de partida mais precisos são a vontade, que é livre, de
modo que a liberdade constitui sua substância e sua determina-
ção e que o sistema do direito é o reino da liberdade efetivada,
o mundo do espírito produzido a partir dele mesmo, enquanto
uma segunda natureza. (§ 4)4


2
É que Hegel se propõe uma “ciência filosófica do direito” e não uma ciência do direito.
Aquela que tem por objeto a “ideia do direito”, que é normativa e não uma simples teoria do
direito, que é descritiva. Id. , Ibid, p. 46.

3
Que a vontade seja livre e o que sejam vontade e liberdade – a dedução disso, como já
se notou (§2), apenas pode ter lugar no contexto do todo. Expus na minha Enciclopédia
das Ciencias Filosóficas (Heidelberg, 1817 [§§363-399]), e espero poder dar um dia uma ex-
posição mais ampla, os traços principais dessa premissa[:] o espírito é primeiro inteligência,
e as determinações pelas quais progride em seu desenvolvimento, do sentimento ao pensam-
ento, passando pela representação, são o caminho que consiste em se produzir como vontade, a
qual, enquanto espírito prático em geral, é a verdade próxima da inteligencia, c.f. Princípios
da Filosofia do Direito, p. 2.
4 Hegel G.W.F Filosofia do Direito. Tradução Paulo Meneses, Agemir Bavaresco, Alfredo
Moraes, Danilo Vaz-Curado R.M. Costa, Greice Ane Barbieri e Paulo Roberto Konzen,
Coleção Ideias, Ed. UNISINOS, 2010, p. 47.

246
A liberdade efetivada no estado Hegeliano

É importante frisar que não há vontade sem pensamento5, assim


como não há liberdade sem vontade, e consequentemente o conceito
da ideia de liberdade que Hegel tenta nos demonstrar é fundamental-
mente pensamento, já que o conceito da ideia de liberdade somente
pode ser obtido através de um processo auto-reflexivo realizado pelo
espírito. Mas o que faz com que essa seja a autêntica liberdade e por
que ela não pode existir sem a vontade? Para Hegel a autêntica e verda-
deira liberdade é a vontade livre que almeja o universal, que se origina
no espírito e após um processo de autodeterminação no pensamento, é
concretizada na realidade prática pelo livre querer do indivíduo.
É pelo pensamento que se capta o universal, uma vez que pensar
significa universalizá-lo, e a partir de então, pode-se estabelecê-
-lo como meta ou objetivo a ser alcançado.6

Nessa liberdade são eliminados todos os ‘estados’ que são as po-


tências espirituais, em que o todo se organiza. A consciência singular
suprimiu suas barreiras: seu fim, é o fim universal; sua linguagem, a lei
universal; sua obra, a obra universal.
Minha vontade livre tem que mediar-se com a vontade livre do
outro, a fim de se universalizar. O imediato tem que ser media-
do, para que possa estabelecer um princípio ético universal.7

A vontade universal se adentra em si, e é a vontade singular, a


que se contrapõe a lei e obra universal. Mas essa consciência singular
é imediatamente consciencia de si mesma como vontade universal: é
consciente de que seu objeto é lei dada por ela, e obra por ela realizada.
Hegel procura delinear o que concebe por vontade livre ou auto-
determinação. Em sua análise apresenta três momentos ou três concep-
ções de vontade: a universalidade, a particularidade e a individualidade.
A universalidade é a concepção de vontade como pensamento puro, isto
é, a abstração de todo e qualquer conteúdo e a consideração somente da
forma do pensamento. Na particularidade, a vontade é concebida como
vontade de um sujeito determinado que tem um conteúdo determinado:
um “eu” desejante que quer um objeto determinado. A individualidade,
5
WEBER, Hegel: Liberdade, Estado e História, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1993, p. 49.
6
Id. , Ibid, p. 49.
7
Id. , Ibid, p.110.

247
Bárbara Santiago de Souza

por sua vez, é a concepção de vontade como unidade da universalidade


e da particularidade e essa união através de um processo que passa pela
“vontade natural”, pelo “arbítrio” e pela “cultura” é aquilo que Hegel
concebe por vontade livre ou autodeterminação.
E é justamente na eticidade, enquanto identidade da vontade
universal e particular, que existe uma coincidência entre deveres e di-
reitos. Pois é por meio do ético, que o homem tem direitos, na medida em que
tem deveres, e deveres, na medida em que tem direitos.8 Só pode ter deveres
quem tem, ao mesmo tempo, direitos.
Hegel desenvolve todo um pensamento dialético que passa pelas
esferas do Direito Abstrato, Moralidade e Eticidade. O direito abstrato
é tomado como a possibilidade de efetivação da liberdade, mas nesse
primeiro momento a vontade livre em si, como ainda dois momentos
do espírito, é um conceito abstrato. Ele corresponde ao primeiro está-
gio da determinação que encontra seu oposto na moralidade subjetiva,
e do encontro do direito abstrato e a moralidade surge a eticidade que
ganha maior expressividade no Estado ético.
Na moralidade o sujeito é avaliado, a partir dos aspectos subje-
tivos determinantes o seu agir, na eticidade ele é considerado como
membro de uma comunidade ética,ou seja, é qualificado, a partir das
determinações objetivas, dos resultados e consequências de suas ações.
A moralidade abstrata e subjetiva não somente é pressuposta pela eti-
cidade mas, ao unir-se com a objetividade do direito abstrato, permite
a realização efetiva ou concretização do movimento autoconsciente e
autodeterminante da liberdade humana, através da história de suas
figurações. O saber e o querer se engendram efetivamente na própria
autoconsciência que desvelará, em última análise, a substancialidade
da verdadeira liberdade, ou seja, a figura do “Bem” abstrato que é fi-
nalmente concretizado eticamente.
A eticidade é a Idéia da liberdade como bem vivo, que tem o seu
saber e o seu querer na autoconsciência, e a sua efetividade pela
sua operação, assim como esta ação tem a sua base em si e para
si e o seu fim motor no ser ético, - o conceito da liberdade que
veio a ser mundo presente e natureza da autoconsciência.9 (§ 142)


8
Hegel G.W.F Filosofia do Direito. Tradução Paulo Meneses, Agemir Bavaresco, Alfredo
Moraes, Danilo Vaz-Curado R.M. Costa, Greice Ane Barbieri e Paulo Roberto Konzen,
Coleção Ideias, Ed. UNISINOS, 2010, p. 173.

9
Id. , Ibid, p. 167.

248
A liberdade efetivada no estado Hegeliano

A eticidade trata das determinações objetivas ou da mediação so-


cial da liberdade. Tem um conteúdo e uma existência que se situa num
nível superior ao das opiniões subjetivas: “as instituições e leis existentes
em si e para si”.10
Para Hegel o Absoluto11 (o Espírito, a Ideia, Deus) é o tema da
Filosofia. A história, a manifestação do Absoluto no domínio do es-
paço e do tempo é a maneira de o Absoluto mostrar a si mesmo que
é absoluto, isto é, a totalidade do real. Por outras palavras, a história
revela progressivamente que nada existe fora do Absoluto, que este
governa tudo, que não há limites ao seu poder. Quando dizemos que o
Absoluto se realiza como absoluto devemos ter em atenção que o Ab-
soluto é uma realidade espiritual. Para Hegel espírito e liberdade são
realidades idênticas. Deste modo, a História deve ser perspectivada
como um vasto movimento de realização ou atualização da liberdade.
Assim, quanto mais a liberdade está presente no mundo humano ou
histórico tanto mais o Absoluto se absolutiza. A vida do Absoluto é
inseparável da experiência humana da liberdade.
A Eticidade está dividida em três diferentes tempos: Família, So-
ciedade Civil e Estado. A família é a primeira unidade de união social,
dá-se o reconhecimento do casamento como uma união moral: é o re-
conhecimento do outro, e sua construção exterior está no sentimento.
A família tem sua realização no casamento, e seu desfecho são os fi-
lhos, a perpetuação da família. Podemos também dizer que a família se
realiza nos seguintes momentos, casamento, propriedade e educação
dos filhos e dissolução.
A sociedade civil acontece como agrupamento de seres privados,
preocupados com a realização de suas pretensões pessoais. Realizam
então suas carências por meio das coisas no seu exterior, a proprieda-
de, riqueza, através atividade sociais e pelo trabalho. Na proporção
que o indivíduo sai do estado de solidão natural se depara com no-
vas necessidades inerentes ao convívio com seus semelhantes: São as
chamadas carências sociais. São parte do universal, comum a todos


10
Id. , Ibid, p. 167.

11
O Espirito Absoluto é resultante do amadurecimento do homem na história, todas as formas
de experiência éticas, jurídicas, religiosas encontrarão seu lugar, visto que se trata de consid-
erar a experiência da consciência em geral. Uma evolução da consciência que se sabe como
espirito, o Absoluto que se reflete em si mesmo, será sujeito e substância. Cf. Hegel G.W.F.
Fenomenologia do Espírito.2003.

249
Bárbara Santiago de Souza

antes da associação. A sociedade civil, faz surgir uma instituição de


estrutura similar à família, dentro do contexto coletivo: a corporação.
Sua finalidade primordial é velar e realizar o que há de universal no
particularda sociedade civil. Quanto aos membros como partes da so-
ciedade civil, não têm interesses exclusivamente particulares, tem o
dever de conduzir a vontade humana à esfera do universal, ao Estado.
É no Estado que se dá a realização efetiva da eticidade. A liberda-
de realiza-se plenamente, vindo tornar-se clara para si e consciente em
si. Hegel concorda então afirmar ser o Estado o fim último da razão,
detentor de um direito elevado ao relacionado com o direito individu-
al, os componentes do Estado têm nele o mais alto dever. No momento
em que as pretensões particulares colidem com o universal temos a
super posição da liberdade pessoal e da propriedade privada como o
fim último, substituindo os interesses universais.
A distinção entre o livre arbítrio e a liberdade tem o eu fundamen-
to na estrutura lógica - dialética da própria razão. Para Hegel o verdadei-
ro é o todo determinado. Este todo pressupõe a liberdade do indivíduo
enquanto fundamentalmente realizável na pólis. A moralidade expõe o
sujeito necessariamente à uma identidade entre a vontade individual e
universal(dialética da subjetividade da identidade). Na eticidade a liber-
dade não está na vontade individual, está no todo coletivo. Na eticidade
a autoconsciência se efetiva, a liberdade expõe sua verdade. O dever não
está mais posto deforma subjetiva formal, mas se objetivou.
Chegamos à conclusão de que o dever é livre e auto constituí-
do pelo sujeito coletivo auto realizável, onde o ético aparece de forma
efetiva no universal7concreto, onde a verdade de uma vontade livre
particular e efetiva que sai de si para superar a contradição dos arbitrá-
rios particulares e alcançar a verdade da liberdade como ideal. O dever
ético está concretamente determinado. A objetivação da vontade livre
em Hegel se dá primeiro na família, depois na sociedade civil, onde a
família passa a ser a grande família (comparações) onde o indivíduo
só se funde como coletivo. E em um terceiro momento o estado. É no
estado que a vontade livre supera os seu estado anterior subjetivo e in-
dividual (natural) para ir a um estado objetivo, universal e necessário
O esquema conceitual que sustenta o projeto de Hegel é a dia-
lética. Aí a razão deixa de ter uma função subjetiva unificada da mul-

250
A liberdade efetivada no estado Hegeliano

tiplicidade dada em conceitos, para converter-se em substâncias -


sujeito,realidade auto-suficiente. É a razão que dialeticamente se expõe
e não só o pensamento dos particulares. Pelo estado, o homem em si e
por si se reconhece livre e a sua liberdade é reconhecida, ele (sujeito)
ser e conhece nas leis ideais do estado em sua substancialidade obje-
tiva. O estado para Hegel é o estado pensado (ideal) normativo que
serve para o homem se orientar no seu dever - ser, em que este estado
pensado está amplamente sobreposto no estado histórico, ”real”, onde
o ser aparece. Passar da moralidade á eticidade é passar é passar de
um ser moral a um dever - ser ético. O esquema de Hegel busca uma
síntese suprassumida como síntese final no absoluto, que parte do real
racional a um ideal substancial, objetivo, final.

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252
O estado de guerra em Hegel

Rodrygo Rocha Macedo


Universidade Federal do Ceará

O direito estatal externo como topos da questão bélica

Hegel apresenta, a partir do parágrafo 330 de sua obra Filosofia


do Direito (FD), o que seja o direito estatal externo. O filósofo reputa
o referido termo como terreno jurídico onde os governos se movem e
deliberam juntamente com outros governos acerca de assuntos perti-
nentes à mutualidade de suas existências. Delineando a relação dos
Estados como entes autônomos e portadores de vontades nem sempre
harmônicas entre si, Hegel considera que a soberania nacional (enten-
dida como o conjunto de atos que o Estado pode perpetrar para pre-
servar sua unidade e características intrínsecas ante influxos e ameaças
externas) possui limites. Todavia, na discordância de interesses entre
os governos, inexiste uma instância política superior promotora da
concórdia que seja convocada em situações litígio. Justamente nesse
aspecto onde paira a dúvida sobre quem ou o que seria mediador ca-
paz e bastante para arbitrar os termos das tensões entre Estados, uma
leitura apressada do texto hegeliano leva a inferir a guerra como ins-
trumento único e alternativo de solução para conflitos.
Isto se dá pela expressa ausência, no texto, de uma instância su-
perior aos Estados para celebrar e mediar acordos (FD, § 331 e § 334).
Logo, é de chamar a atenção que as contendas entre nações devem ter

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 253-264, 2015.
Rodrygo Rocha Macedo

sua importância valorada filosoficamente, pois a violação do reconhe-


cimento do Estado implica ameaça ao seu “estar-posto” no mundo. A
guerra se apresenta como uma situação onde o direito (e seu produto,
o reconhecimento) é ausente. Numa instância, portanto, onde se anu-
lam o reconhecimento e o direito, tipifica-se o império da contingência
e violência, e como tal, bem lembra Hegel, deve ter sua duração abre-
viada (FD, § 335 e § 338).
Assim, há uma lógica que subjaz à guerra, que é também a lógi-
ca do reconhecimento. Para Hegel, a determinação histórica (somente,
cumpre lembrar) da guerra é a soberania voltada para o exterior, visto
que as relações que os Estados mantêm entre si são contingentes. Dado
que não existe um tribunal que seja superior aos Estados, cada governo
tem o direito de criar e abolir de modo sucessivo os tratados concluídos
entre si (contratos na forma frágil do direito abstrato). Mas tal criação e
destituição de normas não pode, de maneira nenhuma, ser arbitrária,
eventual e aleatória. Nesse sentido, Rosenfield (1995, p. 272-275) explica
que, a despeito de os governos, na guerra, voltarem a viver num estado
de natureza, não significa que o seu juiz será uma guerra perpétua.
É adequado indagar se o pressuposto de Hegel no Prefácio da
Filosofia do Direito – qual seja, onde “todo o real é racional, e todo o
racional é real” – também poderia ser aplicado para a realidade da
violência. Questiona-se: a violência é (ou deve ser) efetivada por forças
e vetores submetidos a uma razão que, nas linhas de Hösle (2007, p.
468), permita efetivar a liberdade dos Estados no mundo? Ou haveria
algo intrínseco ao movimento do Espírito, ainda que revolto e indeter-
minado, que promovesse um direcionamento de atos das nações em
busca da concórdia e da coexistência?

Guerra e Estado na Constituição Alemã

Na obra A Constituição da Alemanha, Hegel descreve um diag-


nóstico sobre a organização política da Germânia do seu tempo. Pres-
supondo um modelo de Estado condizente com a manifestação ética
da liberdade do mundo, Hegel listou os defeitos que urgiam ser solu-
cionados para que a Alemanha não sucumbisse aos ventos de guerra
que assolava a Europa de então.

254
O estado de guerra em Hegel

Sociedade e Estado são esferas distintas, mas intimamente cone-


xas na prática. Nos §§ 257 e 260 da FD, Hegel expressa que o Estado é a
efetividade (vontade manifesta ante si mesma, offenbare) da ideia ética.
O Estado é o fenômeno, pois ele é agente e paciente de si. Há uma ten-
são entre a ideia ética e o Estado. São dois pontos focais intermediados
pelo jogo de forças da liberdade. Dessa forma, o Direito, para Hegel,
Hobbes e Espinosa, é igual a “dever ser”. No Estado, poder e razão
são uma e a mesma coisa. A história do Estado tende a converter-se
em sua exposição ontológica, fazendo com que ele promova historica-
mente a liberdade, para a qual é necessária uma situação que assegure
a mínima concórdia. Por isso, o problema da liberdade também seria o
problema da segurança (PAVÓN: 2010, p. XXXIX-XLV).
A soberania do Estado ante outras nações é necessária para ga-
rantir em seu interior a segurança do cidadão e consequente preser-
vação da liberdade. No Estado, o poder da comunidade se concentra,
transformando-se em direito. O poder pertence ao Espírito em si, tanto
que há uma equalização do Espírito do Mundo em Poder Absoluto
dentro do Estado (Weltgeist = absolute Macht). Ocorre que as condições
do movimento do Espírito já favorecem a violência, pois a multiplici-
dade (de nações) pressupõe a possibilidade de aniquilação. A história
universal, na falta de uma instância superior aos governos, constitui,
pelo poder/espírito, o tribunal do valor do Estado. O Estado é fenôme-
no: a ideia de Estado promove a realidade (Wirklichkeit) dinâmica do
Estado (PAVÓN: 2010, p. XLVI, XLVII). Outrossim, a guerra se mostra
a força da conexão de todos com a totalidade (HEGEL: 2010, p. 20).
Foi mediante a guerra com a República francesa que a Alemanha, ex-
perimentando sua situação política, concluiu não mais ser um Estado
(HEGEL: 2010, p. 21).

Guerra, Moralidade e jusnaturalismo

Em Hegel, a guerra abrigaria em si, além da força política, um as-


pecto da Moralidade, mediante a qual a vitalidade do sujeito mostra-se
em algo diverso de si, o Outro, que seria o inimigo, bem como a disso-
ciação dele, na função de oposto da sobrevivência: o medo de lutar. Tal
oposição, presente na intersubjetividade, ascenderia para o nível inter-

255
Rodrygo Rocha Macedo

-estatal. Hegel afirma que a guerra é um instrumento de manutenção


da saúde moral dos povos, pois evitaria a sua petrificação, assim como
os ventos, agitando o mar, resguardam-no da putrefação.
Esta mantença da vitalidade estatal em nada se irmana com a
urgência expansionista do Estado, que se diferencia entre guerras jus-
tas e injustas, pelo menos no pensamento de Hegel (AVINERI:1961). O
filósofo alemão entende que, habitualmente, se avalia a guerra como
desvio da condição normal de paz. Sob a influência de várias escolas
jusnaturalistas, a guerra é concebida como regressão a algo prévio à
ordem racional sócio-política, uma reversão ao estado elementar e bár-
baro. Isto pode ser deferido da perspectiva da moralidade subjetiva,
mas não como explicação filosófica. Hegel explicita que a guerra em si
é algo transitório, e deve implicar o restabelecimento da paz.
Contudo, as ciências compreendidas como naturais, para He-
gel, afastaram-se forçadamente do aspecto filosófico ao trato do tema,
atendo-se a demonstrações empíricas e nada oferecendo para a com-
preensão da guerra, uma característica social pré-estatal incrustada na
dinâmica política dos governos. Porém, a filosofia pode dar à ciência
uma inteireza que não a faça depender de demonstrações empíricas.
Ainda que o filósofo alemão estivesse preocupado de que forma o di-
reito era visto sob certas perspectivas científicas, como o empirismo e o
formalismo, já se pode notar pontos dos quais emanam forças opostas
que tendem a eliminar-se.
Hegel toma como o princípio da empiria o Ser diverso multifor-
me, mas a ele é recusado a penetrar até o nada absoluto de suas qua-
lidades, as quais lhes são absolutas. A unidade que a empiria imagina
possuir é o instrumento pelo qual ela crê ter como chegar ao conhe-
cimento dos outros. Dessa forma, o estado de natureza é uma ficção
imaginada, uma psicologia empírica das faculdades encontradas no
homem. O necessário no estado de natureza é o não-real. Pela perspec-
tiva da empiria, entender a guerra não configura o modo mais adequa-
do de entender o Outro e o sujeito beligerante.
Hegel, com efeito, afirma que a guerra não pode justificar-se pelo
motivo utilitário da defesa da vida e da propriedade, argumento tão
caro aos jusnaturalistas. Esta ideia, a qual Hegel reconhece como uma
das respostas rasas para a questão da justificação moral da guerra, le-

256
O estado de guerra em Hegel

varia a um absurdo lógico. Pelo que é impossível exigir dos homens


o sacrifício, no ato da guerra, uma vez que a guerra extingue as coisas
pelas quais deveria zelar. Toda tentativa de justificar a guerra a partir
das necessidades culmina em um dúbio código de ética, de acordo com
o qual A deve parar com sua vida para preservar a vida e a proprieda-
de de B. Isto se resume em absoluta violação ao imperativo categórico
de Kant, o qual é a base da moralidade subjetiva hegeliana: “sê uma
pessoa e respeita os outros como pessoas”. Onde a guerra é defendida
pelo prisma (e interesses) da sociedade civil-burguesa (o império das
necessidades), há necessariamente que emergir esta violação do impe-
rativo da moral, desde que o homem assim sirva de mera ferramenta
para o seu par (AVINERI:1961).
Ainda que isto possa soar estranho à primeira vista, a teoria
hegeliana tenta evitar tal dificuldade não infringindo o imperativo
kantiano. Para Hegel, repousa sobre a guerra o elemento ético o qual
expõe o acidental, o arbitrário, o finito na vida. Previne o particular
interesse de tornar-se o mestre do universo. Exigindo tudo de todos, o
ético serve como um “lembrar que todos morrem”, tal qual o descrito
no § 324 da Filosofia do Direito.

Guerra como aspecto inerente ao Estado

É necessário voltar-se às linhas presentes na Filosofia do Direito


que tratam do Direito Estatal Externo:

Das äußere Staatsrecht geht von dem Verhältnisse selbständiger


Staaten aus; was an und für sich in demselben ist, erhält daher
die Form des Sollen:, weil, daß es wirklich ist, auf unterschiede-
nen souveränen Willen beruht.

É possível depreender da versão original (HEGEL: 1986, p. 497)


que o adjetivo “diferenciadas” (unterschiedenen) presente no § 330 se
repete no § 383 da Enzyklopädie der Philosophischen Wissenschaften (HE-
GEL: 2008), mas com o sentido de “exteriores”. Essa “diferenciação”,
“discriminação”, é o que condiciona a particularização do ser dentro
da universalidade. Os Estados, portanto, a partir do confronto textu-
al, em sua essência devem ser distintos entre si. Logo, é como se as

257
Rodrygo Rocha Macedo

tensões entre tais entes, além de ontologicamente necessárias, também


fossem inevitáveis.
Mas a possível resposta para o problema apresentado não pode
ser respondida com o excerto acima discriminado, embora aponte um
caminho, a saber, que a tensão entre liberdade e violência não seja um
agir, mas algo que, encontrado na estrutura do ser da liberdade, pro-
mova o movimento de tensão entre a vontade livre e a negação dessa
vontade no mundo.
Seria então prudente, para considerar a abordagem do ser, não
tanto a Filosofia do Direito, mas a Fenomenologia do Espírito (FE), onde
a lógica do Estado consigo mesmo é idêntica a do saber para com o
objeto no primeiro capítulo desta última obra. É nos § 444 e § 445 da ci-
tada obra em diante que se apresenta a descrição do espírito no Estado.
Nesse sentido, liberdade e violência seriam imbricações espirituais, ou
faces de uma mesma moeda, dado que o Espírito, que é liberdade, tam-
bém é cisão. A ação divide o espírito em substância e consciência dessa
substância. Não bastasse tal separação, o próprio movimento particio-
na, em um segundo nível, a substância e a consciência mesmas. Porém,
a substância encontra-se presente na consciência, desmembrada em
uma lei humana e uma divina.
A consciência-de-si, também dividida, experimenta um ato en-
ganoso, pois desconsidera a consciência da substância. A consciência
necessita ser, nas próprias palavras de Hegel, “destruída” e “encon-
trar a própria ruína”, para vir a ser consciência-de-si efetiva. O Estado
aparece então com o indivíduo possuidor do Em-si abstrato, outrora
carente de espírito, que encontrou a efetividade (FE, § 479) e agora é
para-si. Mas o Para-si no Estado é universal (FE, § 494), pois o interesse
pessoal só pode figurar na realidade se ele é um interesse que redunde
em benefício de todos.
A vontade, como ser-para-si, deve ser sacrificada, e com ela o
ser-aí, para que o universal seja posto no mundo (FE, § 506), o qual
só é completo “quando chega até a morte”. Quer isto dizer que o ser
se encontra, na origem e seus desdobramentos posteriores, em plena
tensão desintegrante. Ora, ele se afirma no mundo com um salto para
a realização da sua verdade a partir da autoconsciência, ora ele regride
para um enclausuramento que a própria consciência perpetra, com an-

258
O estado de guerra em Hegel

tolhos, para consigo. O ser, para que se ponha como ser-aí no mundo,
precisa estar em perene processo de autodestruição. Seria essa a lógica
da liberdade do mundo?
As similaridades entre Ser e Estado não são tão distantes. A von-
tade de um Estado é a força motriz para a sua singularização frente a
outros governos. Ela necessita dessa vontade, mas, a longo prazo, a
mesma vontade faz com que o Estado adquira uma posição monoló-
gica e prejudicial a si mesmo, impedindo o reconhecimento de outros
Estados. Ou o Estado “mata” essa vontade doentia em si, ou outrem o
fará pela guerra.

Pressupostos ontológicos da guerra


na Fenomenologia do Espírito

Desconsiderados o empirismo e o formalismo como métodos de


estudo do Direito, resta adequado o método lógico-dialético exposto
na Fenomenologia do Espírito. Aqui, Hegel empreende forças para de-
monstrar que a referida obra como o modo concreto do desenvolvi-
mento necessário e originário da consciência ilustrado pela história
(HYPPOLITE: 2003, p. 52).
Quando o objeto, aquilo que é o exterior ao sujeito, ao Eu, é al-
guma coisa, ele também não é uma gama de outras coisas, sendo um
nada determinado. Isto ilustra bem o que seja a suprassunção, pois o
objeto nega muitas coisas e se conserva objeto ao mesmo tempo, sendo
sensível e universal simultaneamente. Esse movimento de revolução
interna ao objeto é o agir, que não se restringe ao limite do objeto, mas
reverbera em coisas externas a si, como é o caso do Outro.
Se no agir, apenas for considerado o agir do Outro, cada uma
tende à morte do outro. O seu contrário é o agir por meio de si mes-
mo, o qual exclusivamente pode levar à consciência arriscar a própria
vida. Logo, a relação das duas consciências-de-si é determinada de tal
modo que elas se provam a si mesmas e uma a outra através de uma
luta de vida ou morte. Tal luta deve ser travada porque necessitam
elevar à verdade, no outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si.
O arriscar a vida é condicionante do reconhecimento como consciência
de si-independente.

259
Rodrygo Rocha Macedo

A comprovação por meio da morte suprassume a verdade, pois


a morte é a negação natural da consciência, assim como a vida é a po-
sição natural da consciência. Mediante a morte, veio-a-ser a certeza de
que ambas as consciências arriscavam sua vida e a desprezavam cada
uma em si e no Outro. A morte, porém, faz cessar a troca entre os extre-
mos, deixando-se livres indiferentemente, como coisas. A morte opera
a negação abstrata, não a negação da consciência.
A relação com o mundo sempre se dá com a existência de dois
pontos focais, o Eu e o objeto. Assim se dá com a guerra, por ter obriga-
toriamente mais de uma unidade estatal travando questões com outra
semelhante. Um Estado se compreende como nação no espaço e no
tempo, mas de nada vale essa percepção de si em um contexto se não
houver um fundamento jurídico para esta unidade nacional, ainda que
tal fundamento seja consuetudinário, não-escrito.
Mas até agora, o Estado só consegue plasmar-se, identificar-se,
como Estado para si. Ele, então, identifica algo no horizonte de seu
mundo, que é outro Estado. Essa percepção que ele toma garante que
ele só identificou outro Estado porque ele já se identificou como tal um
momento antes, e só. Foi o momento da certeza. O Estado tem aqui
ciência de que esta sensibilidade é vazia ainda. Falta-lhe a verdade da
situação de si como Estado.
Quando o Estado compreende que, percebendo o outro, ele perce-
be a si mesmo, ocorre o fenômeno. Ele sabe que visualizou aspectos e da-
dos que confirmam que o objeto que ele identifica é outro Estado dentro
de um mundo em que ele mesmo se insere. Não é mais uma compreen-
são “sensível”, baseada em aspectos tangíveis. Essa compreensão se dá
pelo Direito, que é universal. Mais especificamente, a nação se percebe
assim mediante sua Constituição positivada em ordenamento legal.
Ocorre que ainda é cedo para que o Estado consiga apreender
as mediações que o ligam ao outro Estado e ao mundo como se todas
essas partes fossem uma só coisa. Entretanto, esse progresso ainda não
permite que o Estado se veja no Outro, considerando-o ainda objeto. A
consciência do Estado ainda não se transformou em conceito, embora
o Estado saiba que necessita do outro Estado para manter-se.
Assim, o Estado é fenômeno porque é um movimento de ser e
aparecer simultâneos. Ele é Estado e padece por submeter-se ao for-

260
O estado de guerra em Hegel

mato de Estado. Ele aparece como Estado sendo Estado, mas não é
ainda o Estado ótimo. O Estado aqui é para-si sendo Estado para-outro
(Estado). Ele não é o melhor Estado que sua potência permite, ele é
Estado segundo o formato proposto por outro Estado.
Tem aqui lugar o jogo de forças. Enquanto o Estado é ser-para-si
e ser-para-outro, há uma grande tensão promovida com outro Estado.
Esta tensão também é interna. O Estado deixa de ser algo passivo ante
o outro. Ele sai da universalidade vaga (um país entre muitos) e se
transforma em ser para-si, num esforço pela unidade. Quando a ten-
são pela unidade atinge certos níveis, desdobra-se para o exterior. Pelo
que Hegel chama a força, que sempre é direcionada para fora, de um
Universal incondicionado.
Hegel é assertivo ao explicar o Eu incompleto por conseguir
identificar o Outro mas não identificar (espiritualmente) a si no Outro
(o Eu que é Nós e o Nós que é Eu). O Estado toma, nessa explicação, o
lugar de Eu. O Estado não visualiza o Outro como uma consciência-de-
-si (um Estado com direitos, território, legislação específica). O Estado
só visualiza o outro Estado como uma negação de si. É quando há a
guerra. O Estado quer exteriorizar-se em outros Estados. Como ainda
não há conhecimento, o Estado age contra o outro, o que lhe traz o ris-
co de vida, mas o arriscar é necessário para fazer o caminho pelo qual
o reconhecimento mais tarde irá trilhar.
Como a morte suprassume a verdade, suprassume também a
consciência, fazendo com que os dois pontos (Estados) que medem
forças entre si, compreendam adiante que são duas consciências. As
forças tendem a dispersar-se. Entende-se aqui que a guerra seja inevi-
tável para completar as consciências dos países, assim como a aliança
entre nações que assegure a paz perene. A paz internacional pode ser
entendida como o momento do reconhecimento dos Estados por ou-
tros Estados, quando todos se percebem consciências, ou unidades de
jurisdição com características e demandas semelhantes.

A Moralidade como elemento de resolução de conflitos

O direito abstrato afirma a inviolabilidade jurídica das determi-


nações universais da pessoa (seja ela o indivíduo ou o ente estatal),

261
Rodrygo Rocha Macedo

assegurando à vontade o poder de efetuar as suas próprias determi-


nações. É mediante o direito abstrato que a racionalidade se faz von-
tade livre e, consequentemente, liberdade. Assim, a pessoa abre-se a
um movimento de superação da oposição entre a natureza formal e
abstrata e o conteúdo particular de sua ação, indo da relação individu-
al a si (possessão e propriedade), passando pela relação com outrem
(o contrato), desembocando na esfera de aprofundamento do ser, no
conflito entre o direito formal e o direito de particularidade e, então
pela forma da injustiça daí resultante, interiorizando-se em uma nova
figura da liberdade.
Dessa forma, a Moralidade apresenta o lado real do conceito
de liberdade (FD, § 106), que tema função de determinar o para-si da
vontade individual de modo que esta possa elevar-se à universalida-
de do conceito. Assim, pode ela verificar o que pertence a ela de direi-
to, ao invés de desejar coisas postas por ela. Ela afirma a validez das
suas considerações (conceituais) na criação objetiva de um mundo
novo. A esfera moral pressupõe uma eticidade. Cabe aqui à vontade
subjetiva, na sua validação, confirmar ou rechaçar a eticidade na qual
se insere, atualizando ou negando a esfera jurídica (ROSENFIELD:
1995, p. 108, 109).
A atividade moral consiste em pôr uma finitude na qual ela pos-
sa reconhecer as determinações da subjetividade. O finito é por o ou-
tro de si na sua interioridade. O não-ser da vontade é o limite, deter-
minação diante da qual o sujeito poderia acomodar-se (pois no início
há a não-liberdade). O sujeito entende que o limite é o ser-outro, e esse
passa a ser a limitação, aquilo que não é, mas pode vir a ser, contendo
assim a semente da infinitude. A limitação é o processo de determina-
ção (localização e temporalização) do limite como algo amplo e vago
(ROSENFIELD: 1995, p. 110-112).
A vontade moral de transformar o mundo, e também ultrapassar
os limites da subjetividade, vê o mundo como uma passividade sus-
ceptível de determinação. A ação moral, nas suas contradições inter-
nas, engendra o ético da liberdade. O indivíduo, para chegar à univer-
salidade almejada de um mundo que sempre lhe escapa, atualiza-se na
vontade de outrem (FD, § 112). Uma vontade reconhece na outra os di-
reitos de uma mesma subjetividade (ROSENFIELD: 1995, p. 112-114).

262
O estado de guerra em Hegel

Portanto, se a vontade deve reconhecer na objetividade o que se


determina como “bom”, deve ao mesmo tempo reconhecer os direitos
dessa objetividade. O que o sujeito faz consigo em prol da efetivida-
de das coisas e conformidade interna com o Bem deve coincidir com
a conformidade exterior das leis. A conexão entre o Bem e a operação
evita a armadilha de que a vontade caia numa espécie de substituição
da eticidade pela subjetividade moral (ROSENFIELD: 1995, p. 129-130).

Considerações finais

O tópico guerra dentro da filosofia política de Hegel não pode


restringir-se a uma leitura e interpretações jurídicas, visto que o filó-
sofo alemão não se limitou a descrever as implicações bélicas apenas
na obra que trata do Direito, vez que tais vicejam em passagens de
outras obras suas. Dado que Hegel tenta dar a seu pensamento uma
organicidade, onde todas as instâncias se conectam, o tema guerra é
político, mas também ontológico, jurídico, lógico, estético, histórico e
epistemológico. O trabalho apresentado humildemente propôs expor,
em forma de recorte, os desdobramentos que as tensões entre os Esta-
dos submetem tanto numa matriz jurídica da Filosofia do Direito, quan-
to em seus matizes contemplados na Fenomenologia do Espírito. Longe
de conseguir esgotar o assunto, ao fim desse estudo compreendeu-se
que a Moralidade não consegue dar conta da compreensão da guerra,
visto que o Estado não pode apenas parar de agir com violência con-
tra outro Estado apenas por um parâmetro ético e de bem-viver. Há
que ser considerado o princípio de movimento revolto do Espírito na
Coisa que, negando-se no decurso do tempo, progride e involui nas
ações humanas. Porém, a Moralidade, a despeito de ser um elemento
pré-estatal, é conservado na eticidade e atualizado no Estado. O estado
é a efetividade da Ideia Moral. As relações entre Estados são relações
entre individualidades irredutíveis e, entre eles, haverá um laço moral
(mediante reconhecimento mútuo), e não deve ser suprimido onde há
o conflito violento pelas relações imediatas e naturais.

263
Rodrygo Rocha Macedo

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264
A Revolução sob a ótica Hegeliana:
Implicações no Estado Contemporâneo

Henrique José da Silva Souza


Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais

Considerações Iniciais

Inspirados pela tese de titularidade de Joaquim Carlos Salgado,


especialmente na terceira parte que se dedica à Idéia de Justiça1, pre-
tendemos tecer uma reflexão sobre o papel da Revolução Francesa no
pensamento hegeliano, assim como também uma análise das implica-
ções — dessa que foi a mais importante revolução da modernidade —
no Estado Contemporâneo2.
A Liberdade também encontra aqui destaque, no momento em
que o escravo e o mestre se encontram em pé de igualdade (no plano
puramente interior), na vontade livre de Rousseau, onde Hegel entende
que “a liberdade é o próprio pensar”3, e em seu ápice, com o indivíduo
livre da Revolução. Aqui ocorre uma intensa unidade dialética entre
Liberdade objetiva (ordem) e Liberdade subjetiva (individualidade).


1
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996. A terceira
parte da obra abrange do capítulo sétimo ao décimo segundo, e aqui nosso objeto de análise
e reflexão é o capítulo nono intitulado A Revolução.
2
Não podemos esquecer aqui de ressaltar duas obras que foram de extrema importância para
a construção desse trabalho, porém, não se fazem citar expressamente no texto, são elas: O
pensamento político de Hegel de Bernard Bourgeois e Hegel e o Estado de Franz Rosenzwieg.
3
SALGADO, A idéia de justica..., cit., p.298.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 265-277, 2015.
Henrique José da Silva Souza

A Ilustração deu base e arcabouço teórico para a Revolução Fran-


cesa. Essa, por sua vez, teve papel central como momento revelador
das liberdades rumo ao Estado Democrático de Direito. Ressaltar-se-á
que ali a dialética se faz intensamente presente, na ocorrência do maior
momento de negação, o Terror Revolucionário. Ela marca, assim como
nos alerta Pinto Coelho o momento em que compreendemos no pensa-
mento de Hegel acerca do devir do Espírito na história4.

A Liberdade

Durante o desenvolvimento do capítulo nos deparamos com a


reflexão sobre a Liberdade interior, ali Salgado trabalha os conceitos
de individualidade do estoicismo e do ceticismo. Para ele, no âmbito
do estoicismo todos são iguais pelo fato de serem centelhas da razão e
por serem livres. Já o ceticismo, traz consigo a figura da liberdade do
escravo, que não consegue se emancipar por meio de seu trabalho e só
consegue alcançar a liberdade por meio do puro pensamento, com a
negação absoluta do mundo.
“Assim a liberdade aparece nas figuras do estoicismo e do ce-
ticismo, como liberdade individual e interior do estóico oposta
ao mundo externo concebido como razão universal ou cosmo, e
liberdade cética que dissolve o mundo externo e se afirma como
negatividade pura e única universalidade.”5

Essas duas figuras de liberdade — que são também dois momen-


tos divididos — se comunicam e entrecruzam dialeticamente na pará-
bola do senhor e do escravo.6 Esta é trabalhada por Hegel na parte A
do quarto capítulo da Fenomenologia do Espírito intitulado Independência
e dependência da consciência de si: Dominação e Escravidão.
Não podemos nos omitir no tocante à consciência-de-si (e seu
papel na relação entre senhor e do escravo), como fator de grande im-
portância para o desenvolvimento e compreensão da liberdade.

4
PINTO COELHO, Saulo de Oliveira. Revolução e Terror como figuras-chave para a compre-
ensão da Liberdade no Estado Racional Hegeliano. In: SALGADO, Joaquim Carlos (Org.);
HORTA, José Luiz Borges (Org.). Hegel, Liberdade e Estado. p.118.
5
SALGADO, A idéia de justica..., cit., p.269.
6
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses com colaboração de
Karl-Heinz Efken. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992.

266
A Revolução sob a ótica Hegeliana: Implicações no Estado Contemporâneo

A consciência-de-si é reflexão a partir do mundo sensível e da


percepção. É um retorno a partir do ser-outro. Na consciência-de-si há
um desejo incessante em busca do outro, e dessa forma acaba por ani-
quilar este o outro, envolvendo-o em sua própria identidade.
Na dialética do senhor e do escravo, o senhor aparece como o ser
vivente e o escravo como um ser que vive em função do outro, sendo
comparado a uma coisa. O senhor é visto como para-si, enquanto o
escravo é a ponte entre o senhor e o objeto de seu querer. “[...] o que o
escravo faz é justamente o agir do senhor, para o qual somente é o ser-
-para-si, a essência: ele é a pura potência negativa para a qual a coisa é
nada, e é também o puro agir essencial nessa relação”.7
No agir do escravo não existe essência, pois se trata de pura nega-
ção. O senhor não reconhece seu escravo, somente o escravo é que re-
conhece o seu senhor. Este é consciência-de-si independente, enquanto
o escravo é a consciência reprimida para dentro si. “Cada consciência-
-de-si quer provar que é autêntica consciência-de-si, no desapego da
vida corporal. Uma abdica para conservar a vida: o escravo. A outra
emerge como autêntico ser-para-si: o Senhor”.8
Contudo, o senhor que domina seu servo não se pode dizer livre.
Esse acaba escravo, porque, acostumado a ser servido, nada sabe fazer.
Ele não pode se realizar como autoconsciente porque necessita do ou-
tro para as atividades mais banais de seu cotidiano. Na concepção de
homem hegeliana pode se dizer que se procura relacionar o homem
com os diversos níveis da realidade, sem dar elevação a um nível, pro-
cura-se considerar o ser humano como todo.
O servo vê-se contrário ao senhor através de seu trabalho, porque
no trabalho o ele alcança a consciência-de-si, dando um sentido a si
mesmo. Dessa forma vemos que o processo dialético hegeliano é uma
forma de explicar o movimento e a mudança tanto no mundo quanto
no pensamento. Essa dialética nos dá uma imagem da constituição de
nossa consciência, pois o processo de submissão degrada tanto quem é
submetido, como quem o submete.
Neste momento, o escravo é livre em-si, porém ainda está preso
no para-si, ou em sua autoconsciência, ele precisa buscar a razão para
que possa se libertar. É por meio dela que vai conquistar seu lugar

7
HEGEL, Fenomenologia do Espírito..., cit., p.131.

8
MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do Espirito. São Paulo: Loyola, 1985. p.55.

267
Henrique José da Silva Souza

de direito dentro do Estado — somente nos indivíduos livres é que a


razão se concretiza e somente quem alcança a razão se torna livre —,
encontrando seu caminho e sua completa realização.
A intenção de Hegel com o a parábola do senhor e do escravo
é conduzir a consciência a um saber absoluto, com o qual o homem
encontra seu fundamento último e tem consciência-de-si. Notamos as-
sim, como a Hegel constrói e articula seu argumento sobre a liberdade
envolvido pela consciência-de-si que se aflora no indivíduo.
Já em Salgado, o desenvolver do conceito de liberdade não se
apresenta somente na Idéia de Justiça em Hegel, mas enraizada em toda
sua obra. Em seu O Estado Ético e o Estado Poiético ele nos alerta que “A
história do pensamento ocidental é um embate entre a liberdade e o poder.”9
Nesse mesmo caminhar nos é revelado:

“A liberdade pode ser pensada num sentido transcendente,


Deus, ou no sentido imanente: a cultura e, dentro dela, o tempo
ético, a história. A liberdade é um absoluto e, como tal, é o bem
que caracteriza o mundo humano; nesse sentido, não se encontra
na natureza, que é carência.”10

Um dos alicerces centrais no qual o Estado Democrático se funda


é no princípio da liberdade, que estabelece que todos os cidadãos são
livres. A liberdade é o principal direito do indivíduo, somente a partir
do momento em que se é livre é que se pode buscar pela igualdade.
Essa liberdade, é baseada no exercício da razão e da autonomia, é
ali que o indivíduo se autodetermina e se torna apto a ser cidadão ativo
e passível de todas as garantias dentro do Estado Democrático.

“Essa liberdade, na medida em que o homem a constrói para si


e para toda a sociedade, só se concretiza no mundo do direito. A
liberdade objetivada, o ethos na sua forma e conteúdo mais ele-
vados, é a ordenação jurídica, na medida em que garanta direitos
subjetivos (quem não os tem, não tem liberdade), ou seja, a rein-
tegração da essência que se alienou da sua realidade substancial


9
SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. In: Revista do Tribunal de
Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano XVI, v. 27, n. 2., abr./ jun./1998. p. 2.
Versão disponível em: http://200.198.41.151:8081/tribunal_contas/1998/02/-sumario?next=3.
Acesso dia julho de 2011.
10
SALGADO, O Estado Ético..., cit., p. 2.

268
A Revolução sob a ótica Hegeliana: Implicações no Estado Contemporâneo

pela cisão do poder e da liberdade individual, o que se opera no


advento do Estado democrático de direito contemporâneo.”11

Ilustração e Revolução

Hegel identifica na Revolução Francesa o momento em que as


desigualdades na aquisição de direitos, os privilégios e injustiças se
mostram tão desiguais que se torna necessária à formação de um pla-
no teórico e um conjunto de idéias que possam reagir e se opor a essa
realidade. Além disso, há ainda a alienação, onde o Espírito torna-se
estranho a si mesmo.
Essa alienação, calcada na cisão da substância — onde há a sepa-
ração do mundo real em fé e realidade —, causa uma fuga do mundo
efetivo (real) para o mundo do além (apoiado na religião), ademais,
o mundo real resultante dessa cisão não é satisfatório, em especial o
Estado obtido ali.
E é o Iluminismo que possibilita essa reação e esse enfrenta-
mento. A Ilustração, ao aguçar a preocupação do indivíduo, se torna
a “reinvindicação absoluta da razão intelectiva que se afirma como
universal”12
É a Ilustração que arma a Revolução e abre caminho para sua
concretização. Ela oferece elementos para uma vida autônoma, para
que o indivíduo pudesse viver como cidadão, mostra “o universal que
é também individual ou particular, pois busca o critério universal do
conhecimento do agir na razão, que enquanto faculdade do pensar,
universal por natureza e, enquanto faculdade do indivíduo que pensa,
particular.”13
Contudo, somente Hegel consegue alcançar a reflexão do uni-
versal como dialético e especulativo, na Ilustração esse universal ainda
está no plano abstrato e imediato.
Já nos fatos que concernem propriamente à Revolução em si, Sal-
gado nos apresenta o seguinte:

11
SALGADO, O Estado Ético..., cit., p. 2.
12
SALGADO, A idéia de justiça..., cit., p. 304.
13
SALGADO, A idéia de justiça..., cit., p. 294.

269
Henrique José da Silva Souza

“(...) o movimento político mais significativo da história moder-


na do Ocidente, a Revolução Francesa, que se propõe realizar
um fim ético do universal supremo: a liberdade e a igualdade, o
“maior dos bens”, e o “objetivo de toda legislação”, no dizer de
Rousseau. Essa finalidade ética da Revolução, que traz no seu
bojo a semente do Estado ético de Hegel, não foi encetada tão-
-só contra o despotismo medieval da monarquia francesa, mas
teve um caráter universal porque afrontava todo despotismo
existente; pretendia declarar definitivamente que todo o homem
é igual e livre. Daí a grande conquista da Revolução, desde o
seu preparo ideológico até suas consequências constitucionais,
a declaração dos direitos. O movimento da razão nesse período
engloba os três momentos essenciais do aparecimento do Estado
de direito: a consciência dos direitos fundamentais do homem,
centrados na igualdade e na liberdade, o reconhecimento uni-
versal desses direitos], manifestação na vontade do povo, que
constitui o Estado democrático, na constituição, e o problema da
realização desses direitos, ou da eficácia, depois de postos pelo
reconhecimento universal da vontade do povo.”14

A Revolução Francesa traz consigo um projeto eminentemente


universal, em nenhum momento anterior pôde-se perceber intenções e
proposições de mudanças tão profundas inovadoras tanto no ponto de
vista estatal quanto no ponto de vista societal, mas especialmente no
que concerne ao indivíduo.
Mais uma vez amparados por Salgado refletimos:

“A revolução é a marca do “destino” histórico ocidental, da cisão


e da reconciliação da partida e da chegada, do abandono e do re-
torno triunfal. Afirmação absoluta do individuo livre, ela prepa-
ra o encontro harmonioso dessa individualidade com a comuni-
dade, cuja realização a história ocidental persegue tragicamente,
desde a fragmentação da bela totalidade ética da polis grega. A
nova era que se abre torna impossível aceitar a vida na sociedade
contemporânea sem o conceito harmonioso da sociedade política
e do indivíduo que a compõe e nela exerce a sua liberdade.”15

SALGADO, A idéia de justiça..., cit., p. 297.


14

SALGADO, A idéia de justiça..., cit., p.315.


15

270
A Revolução sob a ótica Hegeliana: Implicações no Estado Contemporâneo

Além das imensuráveis conquistas individuais, não podemos


esquecer-nos das conquistas políticas e estatais proclamadas pela Re-
volução. A monarquia absoluta sofreu uma inquestionável derrota,
proclamou-se uma República e o Estado Francês teve pela primeira
vez em sua história, elaborada em 1791 pela Assembleia Nacional, uma
Constituição, dentro dos parâmetros do direito e se estabeleceu como
norma fundamental daquele novo Estado.
Lima Vaz, em Destino da Revolução, nos apresenta “a revolução
como mudança está, assim, ligada indissoluvelmente ao destino do
corpo político não apenas como razão da mutabilidade e caducidade
das coisas humanas, mas em virtude da própria lógica que rege a
sua estrutura.”16
Bebendo do Estado Ético e o Estado Poiético, intensificamos a
nossa reflexão:

“É na constituição que se dá o encontro do político (poder) e do


jurídico (norma) e é na constituição democrática contemporânea
que se dá a superação da oposição entre poder e liberdade. E
isso na forma de uma organização do poder e de uma ordenação
da liberdade, qual se mostra como ordem jurídica ou liberdade
objetivada Com relação ao direito, diz-se ordenação, norma; com
relação ao poder, diz-se organização. A organização só é possí-
vel por normas; a ordenação, por órgãos. Não há função para a
norma, ou para o sistema, como quer a teoria funcionalista ou a
teoria dos sistemas.”17

Com isso, podemos concluir o quão necessária a Revolução Fran-


cesa se fez para a história e para o desenrolar de toda a civilização oci-
dental, principalmente na construção da figura de um indivíduo livre
que pode e passa a ter condições de exercer seus direitos como cidadão
e para a construção de um Estado de Direitos, que caminharia para seu
momento mais desenvolvido, o Estado Democrático de Direito.
A importância da Revolução para o pensamento de Hegel tam-
bém se mostra monumental. Salgado, em mais uma passagem da Idéia
de Justiça em Hegel, nos esclarece:


16
LIMA VAZ, Henrique Cláudio. Destino da revolução. In: Revista Síntese. Nova Fase. n. 45;
vol. XVII, jan.-abr. 1989, p.8. Disponível em: http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/
Sintese/article/view/1871/2176. Acesso em: setembro de 2013.
17
SALGADO, O Estado Ético..., cit. p. 1.

271
Henrique José da Silva Souza

“(...) Com efeito, sem o fato da Revolução não se poderá enten-


der a filosofia de Hegel, que por certo não seria a mesma. (...)
Ora, sem a Revolução Francesa não poderia Hegel desenvolver
a teoria política do Estado contemporâneo tal como a concebeu:
sistema convencional de realização da liberdade. Eis por que
Hegel reconhece na Revolução Francesa o momento histórico da
realização da liberdade, objetiva e subjetiva, bem como o do di-
reito nela fundado, pois uma constituição foi elaborada segundo
o conceito do direito; nela tudo encontra seu fundamento. Pela
primeira vez, ‘desde que o sol está no firmamento’ o homem
constrói a realidade segundo o modelo do pensamento.”18

O Terror na Revolução

O Terror, instaurado na Revolução, é um momento de genuíno


movimento dialético da Liberdade. Ele foi percebido por Hegel como
uma necessidade, que apesar de trágica foi extremamente necessária
para o contexto, foi uma ‘astúcia da razão’ que faz de si mesma o pro-
cesso de formação e afirmação máxima da Liberdade.
Apesar disso, somos alertados por Salgado que esse fato não nos
autoriza a identifica-lo como contingente histórico, ele é, ao contrário,
consequência de uma necessidade dialética, um movimento necessário
do Espírito.

“Ao afirmar a liberdade individual como absoluta, exclui-se o re-


conhecimento de qualquer outra. Afirma-se como exclusiva. Ora,
essa pluralidade como consciências-de-si absolutas é a própria
contradição em si. A consequência prática dessa afirmação é a
exclusão de outra individualidade livre e a luta para que cada
uma seja reconhecida como absoluta. Não se trata agora de re-
conhecimento da consciência-de-si, mas da luta pela liberdade
absoluta; isso, porém só ocorreria com a eliminação das outras
liberdades que também querem ser absolutas . O terror é, pois,
uma consequência inevitável no processo revolucionário, cujo
conteúdo era a liberdade.”19

Ao pretender-se absoluta, a liberdade não tem condições de acei-


tar ser limitada por outras liberdades, se afirmando como exclusiva.
SALGADO, A idéia de justica..., cit. p. 307.
18

SALGADO, A idéia de justica..., cit. p. 312.


19

272
A Revolução sob a ótica Hegeliana: Implicações no Estado Contemporâneo

Logo, se tratando de um conjunto de individualidades, e não de uma


só individualidade, ocorre o embate entre elas, sem que haja possibili-
dade do convívio, o que acaba ocorrendo é a eliminação das individu-
alidades umas pelas outras.
Esse movimento se justifica pela dialética do próprio Espírito,
que carrega consigo uma objetividade que não permite a solução estoi-
ca dada no movimento da consciência-de-si.
Como fruto da dialética, o Terror existiu como momento máximo
da negação dentro da Revolução. Ao afirmar a liberdade absoluta e
negar à objetiva — atingindo assim seu limite, decretando sua finitude
— ele justamente faz com que o giro dialético se faça completo e faz
surgir seu oposto, a liberdade objetiva.
Luiz Bicca, em Hegel e a Revolução Francesa, corrobora conosco:

“A última etapa de todo esse movimento é de um retorno ou


ressurgimento. O terror, como contemplação (Anschauuung) do
nada, desperta as consciências para a necessidade de objetivação,
para a afirmação de um mundo exterior de realizações. [...] Reor-
ganiza-se dessa forma a vida política e social, o Espírito recons-
trói a substância ética e, em termos estritamente lógicos, retorna
ao ponto de partida: à atividade e à vida cultural. Paradoxalmen-
te resulta da experiência do terror em formação (Bildung) mais
elevada. A ressurreição do espírito objetivo, como novo sistema
de essências espirituais manifesta sua superioridade na medida
mesma em que as realizações que agora o integram indicam um
“progresso na consciência da liberdade.”20

Esse movimento acaba por impulsionar a transformação da vonta-


de individual em vontade geral enquanto essência ética, fazendo surgir
uma ordem ética objetiva, possibilitando um equilíbrio entre vontade
subjetiva e vontade geral, pela superação das vontades particulares.21
As consequências trazidas pelo Terror deixam claro e eminentes
o papel e a relevância deste no fervor revolucionário e nas posteriores
consequências que a Revolução gerou e transmite até hoje, tanto no
Estado quanto na sociedade e nos indivíduos que elas compõe.

20
BICCA, Luiz. Hegel e a revolução francesa. In: Revista Síntese. Nova Fase. n. 42, vol. XV, jan.-
-abr. 1988, p. 56-57. Disponível em: http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/
article/view/1897/2201. Acesso em: setembro de 2013.

21
PINTO COELHO, Revolução e Terror..., cit., p. 128.

273
Henrique José da Silva Souza

O Estado Hegeliano e seu “caminhar sobre a terra”22

Como dito anteriormente, sem a Revolução, não haveria como


Hegel ter alcançado a forma e a teoria política do Estado contemporâ-
neo, que tem como sistema central a realização da liberdade.
Novamente, da obra que temos como inspiração:

“O pensamento de Hegel seria vazio e nem poderia ser formula-


do sem a história; a matéria da história que tem seu ponto mais
alto na vida política, no Estado. Sem o Estado é abstrato, vale
dizer, não-dialético; isso o faria apenas mais uma filosofia, sem
contudo oferecer á humanidade a grandeza de sua criação.”23

O Estado em Hegel se baseia no reencontro com o ideal ético


grego em sua unidade. Contudo, como de praxe, não um reencontro
no sentido de retorno, ou de volta ao passado, mas sim num sentido
dialético, de suprassunção, do reencontrar.
O caminho tortuoso, que tem como ponto de chegada o ideal
ético construído na antiguidade grega — já suprassumido no Estado
conquistado pela revolução —, procura alcançar a efetividade do Esta-
do, assim como Kervégan apresenta:

“ ‘O Estado é a efetividade da idéia ética.’ O Estado é uma re-


alidade ética, subjetiva e objetiva, e não um ‘aparelho’. Mas o
Estado é mais do que a realidade da eticidade: é sua efetividade,
isto é, a racionalidade realizada. Em outros termos: porque é
idéia (no sentido hegeliano), o Estado não é uma simples idéia
(no sentido comum), mas um conceito vivido. Que seja vivido de
um modo plural explica as tensões existentes tanto dentro de
cada Estado quanto as que opõem os Estados uns aos outros no
palco da história.”24


22
“Es ist der Gang Gottes in der Welt, daß der Staat ist”, HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Phi-
losophie des Rechts: über Naturrecht und Staatswissenchaft im Grundrise. 3 ed. Stuutgart:
Fr. Frommanns Verlag, 1952, adendo § 258. Em tradução livre: “O caminho de Deus sobre a
Terra, isso é o Estado”.
23
SALGADO, A idéia de justica..., cit., p. 307.
24
KERVÉGAN, Jean-François. Hegel e o Hegelianismo. Tradução, Mariana Paolozzi e Sérvulo da
Cunha. São Paulo: Edições Loyola, 2008. p. 107.

274
A Revolução sob a ótica Hegeliana: Implicações no Estado Contemporâneo

Assim sendo, o desenvolvimento desse Estado onde a efetivida-


de ética se faz presente como racionalidade realizada, passa a influir
na sociedade e em seus indivíduos de forma a ordená-los e organizá-
-los politicamente. Existe aqui uma dualidade, que constitui também
um momento de interdependência, pois sem os cidadãos o Estado não
é possível, e sem o Estado os indivíduos não atingem sua autonomia,
nem exerçam livremente seus direitos como cidadãos.
Nesse sentido Salgado nos aponta em Carl Schmitt e o Estado De-
mocrático de Direito:

“Em suma, o Estado Democrático de Direito é aquele cujo po-


der tem formalmente origem na vontade popular e, declarando
na sua constituição os direitos fundamentais como seu núcleo,
organiza-se por esse princípio de legitimidade e da divisão de
competência no exercício do poder, que se efetiva segundo o
princípio da legalidade ou de decisão conforme a lei e não pelo
arbítrio da autoridade.” 25

Para tanto, o poder, que declaradamente após a Revolução passa


a “emanar do povo”, passa a se organizar politicamente pelas mãos
do Estado e, por conseguinte, organizar também as estruturas sociais.

“ (...)o Estado é a organização na qual e pela qual a comunida-


de moral se reapropria de sua própria estrutura social e dela se
toma coletivamente senhora. É nesta ação sobre sua própria es-
trutura social que ela se mostra como uma comunidade propria-
mente política.”26

Por fim, ressaltando novamente uma das mais profundas e impor-


tantes conquistas revolucionárias, temos na Constituição a figura central
do Estado de Direito, que no papel de norma fundamental, regula, de-
termina e estabelece os limites do poder, assim como também sua legali-
dade e legitimidade. Basicamente é a coluna cervical de um Estado que
se realmente se propõe a cumprir e garantir os direitos fundamentais.


25
SALGADO, Joaquim Carlos. Carl Schmitt e o Estado Democrático de Direito. In: SCHIMITT,
Carl. Legalidade e legitimidade. Tradução Tito Lívio Cruz Romão. Belo Horizonte: Del Rey,
2007. p.xiii.

26
CAVINEZ, Patrice. A Revolução, o Estado, A Discussão. In: Revista Síntese. Nova fase. n. 46;
vol. XVI, set.-dez. 1989. p. 28. Disponível em: http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/
Sintese/article/view/1765/2090. Acesso em: setembro de 2013.

275
Henrique José da Silva Souza

No pensamento de nosso jusfilósofo:

“O Estado de Direito é, assim, o que se funda na legitimidade


do poder, ou seja, que se justifica pela sua origem, segundo o
princípio ontológico da origem do poder na vontade do povo,
portanto na soberania; pelo exercício, segundo os princípios ló-
gicos de ordenação formal do direito, na forma de uma estrutu-
ra de legalidade coerente para o exercício do poder do Estado,
que torna possível o princípio da segurança jurídica em sentido
amplo, dentro do qual está o da legalidade e o do direito adqui-
rido; e pela finalidade ética do poder, por ser essa finalidade a
efetivação jurídica da liberdade, através da declaração, garantia
e realização dos direitos fundamentais, segundo os princípios
axiológicos que apontam e ordenam valores que dão conteúdo
fundante a essa declaração.”27

Considerações Finais

A obra de Joaquim Carlos Salgado muito nos ensina sobre o pen-


samento hegeliano. O que nos encoraja mais a enfrentar esse grande
desafio — que muitas vezes se coloca à nossa frente como uma imensa
montanha, praticamente instransponível — que é Hegel.
O capítulo sobre a Revolução traz consigo conceitos chave de
liberdade e autonomia, do indivíduo e do espírito, e em especial do
Estado Democrático. Todas essas temáticas e conceitos são essenciais
para o entendimento da realidade que nos circunda e principalmente
para a construção de uma reflexão sólida e autêntica do Estado atual.
A Revolução Francesa, sem sombra de dúvida proporcionou re-
viravoltas, profundas transformações tanto societais quanto nas insti-
tuições — aos olhos da monarquia, completamente inesperadas, po-
rém cruciais para o desenvolvimento e ascensão do Estado de Direitos
— em todo o mundo ocidental.
Sem ela os patamares de desenvolvimento social, democrático e
político no qual nos encontramos hoje seriam impossíveis, e como vimos
seria improvável o desenvolvimento e aparecimento dos incontáveis fi-
lósofos, juristas, políticos e pensadores essenciais para a Modernidade.

SALGADO, O Estado Ético..., cit. p. 5.


27

276
A Revolução sob a ótica Hegeliana: Implicações no Estado Contemporâneo

Referências

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277
O Estado como Fundamento da História
em Hegel

Pedro Henrique Fontenele Teles


Universidade Federal do Ceará

Introdução

Esta pesquisa tem como foco um dos objetos centrais da Filosofia


Política: o Estado. A importância dessa temática se origina das permanen-
tes dificuldades jurídicas, morais e éticas que as organizações sociopolí-
ticas humanas vêm sofrendo desde o início da história da humanidade.
Além disso, tal temática é particularmente importante nos dias atuais,
com a onda de protestos que vem se espalhando pelo Brasil e a mudan-
ça de mentalidade dos brasileiros, que passam cada vez mais a cobrar
do Estado a prestação de serviços públicos de qualidade, assim como o
combate efetivo à corrupção e à má gestão de recursos públicos no país.
Diante disso, como forma de agregar valor e trazer um aprofundamento
a tão relevante discussão, pretende-se tratar a questão acerca do Estado
sobre uma perspectiva histórico-filosófica, expondo não apenas o Estado
em suas estruturas essenciais, mas também o modo como ele se constitui
no fundamento da história da humanidade.

1. A Concepção de Estado em Hegel

Dentre os inúmeros filósofos que se ocuparam com a questão


acerca de qual deve ser o real papel do Estado em uma organização so-

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 278-288, 2015.
O Estado como Fundamento da História em Hegel.

ciopolítica humana, Hegel (1770 - 1831) foi certamente um dos mais re-
levantes, estabelecendo assim um marco na História da Filosofia. E um
dos fatores essenciais para que sua ideia de Estado adquirisse tamanha
importância é o caráter estritamente sistemático com que é trabalhada
a sua filosofia política. O Estado em Hegel reflete toda a estrutura do
sistema hegeliano e possui assim a forma do silogismo lógico, que por
sua vez é compreendida como sendo “a apresentação do conceito nos
seus momentos. Individualidade, particularidade e universalidade
(...)”1. Diante disso, em sua obra Princípios Fundamentais da Filosofia do
Direito (1821), Hegel constrói a ideia de Estado a partir dos três momen-
tos fundamentais do silogismo lógico: o Estado Individual, considera-
do como organismo isolado que se refere a si mesmo (Direito Estatal
Interno); o Estado Particular, compreendido nas suas relações com os
outros Estados (Direito Estatal Externo) e o Estado Universal, concebi-
do como espírito que se realiza na História (Filosofia da História)2. É,
portanto, na História que o Estado em Hegel adquiri a sua dimensão
universal, o seu mais alto grau de desenvolvimento e concretização.
Dessa forma, é em sua obra Lições sobre a Filosofia da História (1830) que
Hegel aprofunda tal concepção, expondo a História Universal como o
processo de concretização da ideia de Estado3.
O propósito desta pesquisa é, portanto, compreender a ideia de
Estado em Hegel por meio do seu processo de formação ao longo da
História Universal. Desse modo, pretende-se adotar como fundamento
da pesquisa a noção de Estado em seus aspectos essenciais, com ênfase
não no formalismo jurídico, mas sim no conteúdo político, expondo
o Estado como efetivação da eticidade, isto é, como conciliação entre a
liberdade subjetiva (a vontade individual particular) e a liberdade ob-
jetiva (a vontade substancial universal). Com base nisso, pretende-se
situar a Filosofia da História dentro da compreensão de Estado e expor
como ela se constitui não apenas em seu momento culminante, mas

1
HEGEL, G. W. F. Propedêutica Filosófica. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70,
1989, p. 34, § 65.

2
______. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins
Fontes, 1997, §259.

3
“Portanto, o Estado se torna o objeto preciso da história do mundo; é onde a Liberdade ob-
tém a sua objetividade e se mantém no gozo desta objetividade.” HEGEL, G. W. F. A Razão
na História: Uma Introdução Geral à Filosofia da História. 2ª ed. Tradução de Beatriz Sidou.
São Paulo: Centauro Editora, 2004, p. 91.

279
Pedro Henrique Fontenele Teles.

também na realização máxima da Filosofia do Espírito. Diante disso, ar-


ticulando principalmente as categorias de Razão, Espírito, Liberdade e
Autoconsciência, pretende-se finalmente demonstrar como a Filosofia da
História consiste no processo de efetivação do Estado4, provando, por
conseguinte, que este se constitui no conteúdo central e essência fun-
damental da História Universal.

2. A Filosofia da História dentro do Sistema Hegeliano

Dentro do sistema de Hegel, a Filosofia da História é situada no


interior da Filosofia do Espírito e, por conseguinte, — seguindo a divisão
do sistema hegeliano em Lógica, Natureza e Espírito — seu conteúdo já
é desenvolvido inteiramente no último desses momentos. Tal fato con-
fere à Filosofia da História um diferencial importante: ela reúne em seu
interior o resultado de todo o longo e exaustivo processo dialético5 de
desenvolvimento conquistado desde o início do sistema hegeliano até
a sua conclusão. Somado a isso, os estudos de Hegel que resultaram
nas Lições sobre a Filosofia da História consistem em uma obra de matu-
ridade, representando um dos momentos mais elevados de seu pensa-
mento e cumprindo um papel de consolidação de todo o seu sistema.
No entanto, a Filosofia da História, apesar de sua grande importância
para o sistema de Hegel, não figura entre as suas obras mais estudadas,
havendo sobre ela um reduzido número de pesquisas quando com-
parada às demais temáticas do pensamento hegeliano. Além disso,
4
“(...) o Estado, enquanto liberdade que na livre autonomia da vontade particular é igualmente
universal e objetiva — esse espírito efetivo e orgânico α. é [aquele] de um povo, β. através da
relação dos espíritos dos povos particulares, γ. torna-se efetivo e se manifesta na história do
mundo como o espírito universal do mundo, do qual o direito é o mais elevado”. HEGEL, G.
W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, ou, Direito natural e ciência do estado em
compêndio. Tradução de Paulo Meneses. São Leopoldo: UNISINOS, 2010, § 33, p. 78.

5
De um modo geral, a dialética é comumente conhecida apenas em sentido amplo, que
abrange todas as três etapas do movimento lógico. Mas em sentido estrito, a dialética cor-
responde apenas ao segundo momento. Segundo Inwood: “Lato sensu, a dialética de Hegel
envolve três etapas: (1) Um ou mais conceitos ou categorias são considerados fixos, nitida-
mente definidos e distintos uns dos outros. Esta é a etapa do entendimento. (2) Quando
refletimos sobre tais categorias, uma ou mais contradições emergem nelas. Esta é a etapa
propriamente dialética, ou da razão dialética ou negativa. (3) O resultado dessa dialética é
uma nova categoria, superior, que engloba as categorias anteriores e resolve as contradições
nelas envolvidas. Esta é a etapa de especulação ou razão positiva”. INWOOD, Michael. Di-
cionário Hegel. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 100.

280
O Estado como Fundamento da História em Hegel.

não obstante o elevado número de pesquisas sobre a filosofia política


hegeliana, ainda subsiste na comunidade acadêmica, sobretudo entre
os menos familiarizados com seu pensamento, uma noção equivocada
à cerca do Estado em Hegel, que o julga como sendo totalitário, au-
toritário e absolutista. No entanto, dentro do pensamento hegeliano,
quando o Estado é compreendido juntamente com a Filosofia da História,
todos esses equívocos caem por terra. Pretende-se com esta pesquisa,
portanto, esclarecer e amenizar de alguma forma esses mal entendidos
e, assim, prestar uma pequena contribuição para o desenvolvimento
dos estudos à cerca da obra de Hegel.
Diante disso, Hegel retoma na Filosofia da História um conceito
fundamental de seu sistema: a Razão. Tal conceito é apontado como
sendo o princípio fundamental da História Universal e o objeto central
da Filosofia da História. Para Hegel: “O único pensamento que a filosofia
traz para o tratamento da história é o conceito simples de Razão, que
é a lei do mundo e, portanto, na história do mundo as coisas acon-
teceram racionalmente”6. E ainda, a Razão não é apenas “o princípio
universal da História Filosófica”7, mas — indo muito mais além — é
identificada com a dimensão do Todo, compreendendo, por conseguin-
te, a totalidade de todas as coisas existentes, o infinito reunido em uma
unidade universal. Nas palavras de Hegel:

A filosofia demonstrou através de sua reflexão especulativa que


a Razão [...] é ao mesmo tempo substância e poder infinito, que
ela é em si o material infinito de toda vida natural e espiritual e
também é a forma infinita, a realização de si como conteúdo. Ela é
substância, ou seja, é através dela e nela que toda a realidade tem
o seu ser e a sua subsistência. [...]. Ela é o conteúdo infinito de toda
a essência e verdade [...]. E ela é forma infinita, pois apenas em
sua imagem e por ordem sua os fenômenos surgem e começam
a viver. É a sua própria base de existência e meta final absoluta e
realiza esta meta a partir da potencialidade para a realidade, da
fonte interior para a aparência exterior, não apenas no universal
natural, mas também no espiritual, na história do mundo. Que
esta Ideia ou Razão seja o Verdadeiro Poder Eterno e Absoluto e
6
HEGEL, G. W. F. A Razão na História: Uma Introdução Geral à Filosofia da História. 2ª ed.
Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro Editora, 2004, p. 53.
7
______. Filosofia da História. 2ª ed. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília:
Editora UnB, 1995, p. 11.

281
Pedro Henrique Fontenele Teles.

que apenas ela e nada mais [...] manifeste-se no mundo — como


já dissemos, isto já foi provado em filosofia e aqui está sendo
pressuposto como demonstrado.8

Compreendendo o movimento da Razão no interior do Sistema


Hegeliano, tem-se que o Todo — isto é, a Razão — congrega em si o
Sistema Hegeliano em toda a sua extensão, abrangendo seu processo
de desenvolvimento em cada um de seus momentos e em todo o seu
percurso. Assim, o sistema é resumido da seguinte maneira: “O todo
da ciência divide-se em três partes principais: 1. a Lógica, 2. a Ciência da
Natureza, 3. a Ciência do Espírito”9. A Razão contém em si cada uma des-
sas partes como momentos a serem suprassumidos, sendo o momento
do Espírito o mais elevado, no qual Razão obtém sua mais completa
realização. E é a partir do momento em que o Espírito atinge a sua for-
ma de Estado que a História Universal se inicia. A Filosofia da História se
situa, então, na Filofia do Espírito, e é com base no Estado — isto é, o Es-
pírito concretizado em Estado — que Filosofia da História se fundamenta.

3. O Estado como Fundamento da História

Desse modo, através do método dialético-especulativo10, Hegel de-


senvolve seu sistema partindo do momento mais abstrato11 e indetermi-
nado — tal como se encontra na Lógica — até o momento mais determi-
nado e concreto, alcançado, por sua vez, ao final da Filosofia do Espírito,
8
______. A Razão na História: Uma Introdução Geral à Filosofia da História. 2ª ed. Tradução de
Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro Editora, 2004, p. 53-54.
9
HEGEL, G. W. F. Propedêutica Filosófica. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70,
1989, p. 17, § 10.
10
O momento dialético-especulativo compreende aqui, na verdade, os dois últimos momentos
da lógica hegeliana, a saber, o dialético em sentido estrito (ou o momento da racionalidade
negativa) e o especulativo (ou o da racionalidade positiva). HEGEL, G. W. F. Enciclopédia
das Ciências Filosóficas em Compêndio – Ciência da Lógica. Tradução de Paulo Meneses,
com a colaboração de Machado. São Paulo: Edições Loyola, 1995, § 79, p. 159.
11
Hegel aplica os termos “abstrato” e “concreto” vinculadamente aos termos “determinação”
e “indeterminação”. Assim, abstrato é utilizado em referência a algo isolado de quaisquer
relações com outros elementos, o que significa uma pura indeterminação, já que uma coisa
só é determinada quando em relação à outra coisa. Em oposição à abstração e à indetermina-
ção é utilizado o termo “concreto”. Estes se referem a algo enquanto inserido em uma rede
de inter-relações. INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 41-42.

282
O Estado como Fundamento da História em Hegel.

momento em que se desenvolve o Estado através da Filosofia da História.


Assim, os conceitos de Estado, Espírito e História se relacionam intima-
mente. A Filosofia do Espírito alcança a sua mais alta concretização a
partir do Estado, que, por sua vez se desenvolvido na Filosofia da Histó-
ria, porque é por meio do Estado concretizado na História que o Espírito
se manifesta no mundo. Para Hegel: “É, porém, no teatro da história
universal que o espírito alcança a sua realidade mais concreta; (...).”12.
Mas como momento culminante do Sistema Hegeliano, a Filosofia
da História é o resultado de um processo crescente de aperfeiçoamento
e concretização. E para definir o momento em que o sistema reuniu as
condições necessárias para avançar da Natureza para o Espírito, Hegel
estabeleceu como critério o desenvolvimento da Liberdade. Nesse con-
texto, a Liberdade é compreendida como autonomia, isto é, a não depen-
dência de algo em relação a algum outro. Para Hegel: “A substância
do espírito é a liberdade, isto é, o não-ser-dependente de um Outro
(...).”13. Dessa forma, o desenvolvimento da Liberdade no Sistema He-
geliano marca a passagem do momento da Filosofia da Natureza para
o momento da Filosofia do Espírito, isto é, a superação das limitações
inerentes a Natureza e a efetivação da Liberdade através da ascensão
ao reino do Espírito. A Liberdade é, então, identificada por Hegel como
sendo a própria essência do Espírito, isto é, o que permite ao Espírito ser
efetivamente Espírito. Nas palavras de Hegel:

É fácil acreditar que ele [espírito] possua, entre outras proprie-


dades, a liberdade. A filosofia, no entanto, ensina-nos que todas
as propriedades do espírito só existem mediante a liberdade, são
todas apenas meios para a liberdade, todas a procuram e a criam.
Isso é um conhecimento da filosofia especulativa, ou seja, a liber-
dade é a única verdade do espírito.14

Contudo, no instante em que o Espírito suprassumi a Natureza, a


consciência por ele adquirida ainda é pouco desenvolvida e o processo


12
HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. 2ª ed. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden.
Brasília: Editora UnB, 1995, p. 21.

13
______. Enciclopédia das Ciências Filosóficas – v. III: A Filosofia do Espírito. Tradução de
Paulo Menezes, com a colaboração de José Machado. São Paulo: Edições Loyola, 1995, § 382.

14
HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. 2ª ed. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden.
Brasília: Editora UnB, 1995, p. 23-24.

283
Pedro Henrique Fontenele Teles.

que o Espírito percorre ao longo do sistema consiste em que ele desen-


volva plenamente a consciência de si mesmo: a sua autoconsciência. Para
Hegel: “Na autoconsciência (...) o espírito conhece a si mesmo, ele é o
julgamento de sua própria natureza e, ao mesmo tempo, é a atividade
de voltar-se para si e assim se produzir, fazer o que ele é em si”15. Desse
modo, todo o processo de desenvolvimento do Espírito ocorrido no Sis-
tema Hegeliano tem este único objetivo: que ele conquiste essa autocons-
ciência, a consciência da Liberdade como sua essência. “Por esse motivo,
todo o agir do espírito é só um conhecer de si mesmo (...)”16 e o modo
através do qual o Espírito adquiri esse autoconhecimento, ou autocons-
ciência, é precisamente o Estado, desenvolvido por sua vez, na História
Universal: “Seguindo esta definição abstrata, pode-se dizer que a história
do mundo é a exposição do espírito em luta para chegar ao conhecimento
de sua própria natureza”17; sendo tal natureza a Liberdade: “(...) a história
universal é o progresso na consciência da liberdade”18. Essa é, por conseguinte,
a Razão, o princípio universal e motor da História, isto é, a efetivação da
Liberdade do Espírito através do desenvolvimento do Estado. Em outras
palavras: o processo de desenvolvimento do Espírito consiste na conquis-
ta de sua autoconsciência que ocorre por meio da concretização de sua
Liberdade no Estado através da História Universal. Nas palavras de Hegel:

Ao mesmo tempo, a liberdade em si mesma, que encerra a infi-


nita necessidade de se tornar consciente — pois ela é, segundo
seu conceito, o conhecimento de si —, é o fim a que ela tende e a
única finalidade do espírito. Na história universal tudo conver-
giu para esse objetivo final; todos os sacrifícios no amplo altar da
Terra, através dos tempos, foram feitos para esse objetivo final.
É o único fim que se realiza e cumpre, o único permanente na
trama mutável de todos os acontecimentos e circunstâncias, bem
como a força verdadeiramente atuante. (grifo nosso)19

15
Ibid., p. 24.

16
______. Enciclopédia das Ciências Filosóficas – v. III: A Filosofia do Espírito. Tradução de
Paulo Menezes, com a colaboração de José Machado. São Paulo: Edições Loyola, 1995, § 377,
p. 8.

17
______. A Razão na História: Uma Introdução Geral à Filosofia da História. 2ª ed. Tradução
de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro Editora, 2004, p. 64.

18
______. Filosofia da História. 2ª ed. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília:
Editora UnB, 1995, p. 25.

19
HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. 2ª ed. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden.
Brasília: Editora UnB, 1995, p. 25.

284
O Estado como Fundamento da História em Hegel.

E o Estado como concretização da Liberdade do Espírito na Histó-


ria ocorre por meio do ser humano, isto é, as organizações sociais dos
seres humanos na forma dos Estados são a própria manifestação do Es-
pírito no mundo, assim como a História Universal é a própria história da
humanidade. As civilizações humanas que constituem Estados conser-
vam, então, o mesmo propósito do Espírito: a efetivação da Liberdade.
Esta, por sua vez, é desenvolvida através da vontade e do agir nas re-
lações jurídicas, morais e éticas que os seres humanos têm entre si nos
Estados, cujo propósito — a Liberdade — vai se consolidando nos mais
variados povos e civilizações ao longo da história. O Estado é o funda-
mento e conteúdo da História Universal, por que seu desenvolvimento
rumo à Liberdade é a própria História Universal. Nas palavras de Hegel:

Na história universal só se pode falar dos povos que formam um


Estado. É preciso saber que tal Estado é a realização da liberda-
de, isto é, da finalidade absoluta, que ele existe por si mesmo;
além disso, deve-se saber que todo valor que o homem possui,
toda a realidade espiritual, ele só o tem mediante o Estado. Sua
realidade espiritual consiste em que o seu ser, o racional, seja
objetivo para ele que sabe, que tenha para ele existência objetiva
e imediata; só assim o homem é consciência, só assim ele está na
eticidade, na vida legal e moral do Estado, pois o verdadeiro é
a unidade da vontade universal e subjetiva. [...] Ele [o Estado]
é assim o objeto mais próximo da história universal, no qual a
liberdade recebe a sua objetividade e usufrui dela.20

O Estado é, então, um organismo formado por uma infinidade


de vontades individuais, que através do direito21 e das leis, se harmoni-
zam em torno de uma vontade universal22. A Liberdade se efetiva, por-

20
Ibid., p. 39-40.

21
“O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida
está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e
que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido
como uma segunda natureza a partir de si mesmo.” HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia
do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997, § 4, p. 12.

22
O universal é aqui compreendido não como uma categoria totalmente separada e distinta
do individual e do particular, uma vez que as individualidades e particularidades não sub-
sistem sem a essência e o fundamento oriundos das universalidades, assim como as univer-
salidades, se consideradas completamente abstraídas e desconectadas das particularidades,
tornam-se vazias e sem vida. Há, desse modo, uma relação dialético-especulativo entre es-
sas categorias. INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 313-316.

285
Pedro Henrique Fontenele Teles.

tanto, a partir do momento em que cada um dos membros do Estado


suprassume sua vontade individual, movida pelos desejos e impulsos
naturais23, e se eleva à vontade universal — isto é, a vontade livre —
visando não apenas a seus interesses subjetivos, mas também à objeti-
vidade do Estado. Quanto mais bem sucedido for o Estado em efetivar
essa dimensão universal, a saber, a vontade livre em cada uma dessas
vontades individuais, mais se concretizará a Liberdade24. O aperfeiçoa-
mento do Estado na realização desse propósito constitui-se, então, no
fundamento da História Universal.

Conclusão

Este trabalho discutiu a ideia de Estado como fundamento da


História Universal dentro do pensamento político de Hegel, compre-
endendo a ideia de Estado em Hegel por meio do seu processo de for-
mação ao longo da História. Utilizou-se a Filosofia do Direito de Hegel,
especificamente a exposição do Estado nela presente, para demonstrar
que é na História que o Estado em Hegel adquiri a sua dimensão uni-
versal, o seu mais alto grau de desenvolvimento e concretização. Foi
utilizada também a Filosofia da História de Hegel para demonstrar que a
concepção de História Universal segundo o pensamento hegeliano con-
siste precisamente no processo de concretização da ideia de Estado. Des-
se modo, expôs-se o Estado como fundamento da História em Hegel.


23
“As determinações da inferior faculdade de desejar são determinações naturais. Enquanto
tais, não parece necessário nem possível que o homem as faça suas. Como determinações só
naturais, não pertencem ainda à sua vontade ou à sua liberdade, pois a essência da sua von-
tade é que nada nele exista que ele próprio não tenha feito seu. Pode, pois, considerar o que
pertence à sua natureza como algo de estranho, que, portanto, apenas está nele e lhe pertence
só enquanto o faz seu, ou segue com decisão os seus impulsos naturais.” HEGEL, G. W. F.
Propedêutica Filosófica. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 276, § 15.

24
“Se a vontade não fosse universal, não se encontrariam quaisquer leis genuínas, nada que
pudesse obrigar verdadeiramente a todos. Cada qual poderia agir segundo o seu bel-prazer
e não respeitaria o arbítrio de um outro. Que a vontade seja universal segue-se do conceito
da sua liberdade. (...) A liberdade consiste justamente na indeterminidade do querer ou no
fato de que ela não tem em si nenhuma determinidade natural. A vontade é, pois, em si uma
vontade universal.” HEGEL, G. W. F. Propedêutica Filosófica. Tradução de Artur Morão.
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O Estado como Fundamento da História em Hegel.

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especulativo puro
Uma intervenção no confronto de
Heidegger e Schelling versus Hegel

Manuel Moreira da Silva


Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná

I. Introdução

Este trabalho se constitui como parte integrante de um projeto


de retomada e desenvolvimento da tradição da filosofia especulativa,
a rigor, da herança do idealismo especulativo na época atual; consiste
num esboço da parte principal – sistemática – de um escrito homô-
nimo: a sua primeira parte – preparatória –, recém publicada1. Esta
considerou a emergência historial do que aqui se designa idealismo
especulativo puro e buscou delinear o determinar-se deste à distinção
do idealismo especulativo em geral de Hegel, assim como do pensar
do seer (Denken des Seyns) de Heidegger e da Filosofia da revelação de
Schelling. A parte preparatória consistiu na explicitação da tarefa prin-
cipal do idealismo especulativo puro nos quadros de um novo início
do pensar e portanto de um novo início da metafísica; logo, no âmbito
de uma metafísica pós-moderna, cujo tema essencial deve consistir no
início mesmo. Desse modo, no início considerado, a uma vez como ser
e conceber, nos limites de uma dimensão anterior, precedente ao início
do pensar e do ente enquanto estes se mostram inteligíveis e sensíveis.

1
M. M. da Silva. Proposição pós-moderna do idealismo especulativo puro. Uma intervenção
no confronto de Heidegger e Schelling versus Hegel. In Héctor Ferreiro, Thomas Sören Ho-
ffmann, Agemir Bavaresco (Orgs.), Os aportes do itinerário intelectual de Kant a Hegel. Porto
Alegre: Editora FI, 2014.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 291-307, 2015.
Manuel Moreira da Silva

Algo exequível apenas sob a exigência de um pensar no Abrangente


enquanto um com o Abrangente mesmo, o abrangente de ser e conce-
ber. Esse o escopo da parte sistemática, que prepara pois o caminho de
um pensar de novo tipo, radicalmente livre.
Trata-se da proposição de uma forma de pensar rigorosamente
pós-moderna, capaz de pensar a pós-modernidade segundo a forma-
ção da autoconsciência pura desta. Uma forma de pensar que não se
remeta pois a um eu transcendental, nem a representações (inclusive
intuitivas) nos limites da consciência empírica, a categorias nos qua-
dros da consciência como tal ou a conceitos no âmbito da autoconsci-
ência pura, no sentido de uma razão abstrata ou de um sujeito mono-
lógico. Que essa forma de pensar não seja moderna, claro está pelo que
acaba de ser dito, em suma: porque ela não se determina a modo de
pensamento abstrato; que não seja pré-moderna ou antigo-medieval
também se mostra evidente, devido ao pensar nela em jogo não con-
sistir em um pensamento concreto2. Esse cuja vigência inicia-se antes
da filosofia – a qual, a rigor, tem início com Platão –, e em certo sentido
já com Homero e Hesíodo, e se consuma – enquanto forma de pensar
própria da antiguidade – justamente com Proclo3. Na medida em que,
assim como Proclo para o caso do pensamento antigo, Hegel se mos-
tra como a consumação do pensamento moderno, a proposição aqui
levada a termo distingue-se tanto da filosofia especulativa em geral do
primeiro, quanto da filosofia puramente especulativa do segundo. Não
obstante, mantém com estas as linhas mestras e os pilares fundamen-
tais da tradição neoplatônica enquanto essa se apresenta como filosofia
especulativa. Logo, reconhece igualmente Schelling e Heidegger como
herdeiros daquela tradição, sobretudo na medida em que estes recu-
sam o idealismo do conceito de Hegel em favor de um pensamento
concreto, em certo sentido neoplatônico.
Apresentar-se-á em seguida as linhas gerais da filosofia especu-
lativa e sua conformação unilateral no idealismo do conceito de Hegel.
Ato contínuo, discutir-se-ão aspectos comuns a Schelling e a Heidegger


2
A respeito dessa contraposição do pensamento concreto antigo e do pensamento abstrato
moderno, veja-se A. Schmitt, Die Moderne und Platon. 2, Auflage. Stuttgart-Weimar: J. B. Met-
zler, 2008, passim.

3
A este respeito, veja-se G. Reale, História da Filosofia antiga IV. As escolas da era imperial. São
Paulo: Loyola, 1994, p. 594.

292
Proposição pós-modernado idealismo especulativo puro
Uma intervenção no confronto de Heidegger e Schelling versus Hegel

referentes ao outro início do pensar, logo ao seer ou ao acontecimento-


-apropriativo, com acenos ao problema do aquém e do além da Inteli-
gência e da ordem inteligível; portanto, das ideias e dos princípios de
Platão a Hegel, segundo o desafio de pensar um início não-unilateral.
Por isso, enfim, mostrar-se-á em que sentido o pensar no Abrangente
se impõe enquanto alternativa àquelas formas de pensar e de apropria-
ção da tradição neoplatônica.

II. A filosofia especulativa e sua conformação


unilateral em Hegel

A filosofia especulativa tal como aqui entendida não é mera fi-


losofia teorética, ou ainda contemplativa, em oposição a uma filosofia
prática ou mesmo a uma filosofia poiética; ela é a uma vez teórica e
prática, logo poiética. Seja no âmbito da oposição de suas determina-
ções essenciais, seja no da passagem de uma destas a outra, de sua
exigência recíproca; ela também não é negativa ou positiva, se se com-
preende um desses polos com alguma supremacia ou prioridade em
relação ao outro. Essa homogenia radical do teórico e do prático ou do
poiético, do negativo e do positivo, implica sua radical dissolução, ou
antes, sua transfiguração; que não é mera produção técnica ou artística
em geral ou de algo em particular, ou ainda certo tipo de categoria que
se reduza à ação ou ao agir, ao pôr ou ao produzir, mas o haver. Este
não é por seu turno o subsistir dos antigos e medievais, nem o existir
dos modernos ou dos contemporâneos; ao contrário, se constitui como
a dimensão da qual o agir, o pôr ou o produzir partem e à qual retor-
nam, sem tornar-se porém tema ou problema explicito para o pensar
em geral e o pensar filosófico em particular. É o haver que está enfim
no fundo das distinções acima mencionadas, inclusive da distinção
platônica de sensível e inteligível ou dos distintos inícios do pensar e
da metafísica até aqui.
Tal como ser e conceber, o haver é também um modo do Abran-
gente; caso em que pode ser denominado a emergência daqueles em
seu ser-outro e, ao mesmo tempo, a permanência dos mesmos em seu
ser-um. Por isso, assim como eles e o próprio Abrangente, o haver é
destituído de toda e qualquer classe de atributos, predicados ou pro-

293
Manuel Moreira da Silva

priedades; da mesma forma, de suas respectivas representações, ca-


tegorias, conceitos etc. O haver é aquém e além destes em toda a sua
envergadura, não no sentido de contê-los dentro ou fora de si, mas no
de acompanhá-los e então perpassá-los em toda a sua extensão e em
todo o seu alcance, sem jamais reduzir-se a este ou àquele elemento
constitutivo de instâncias ou momentos, por seu turno, a um tempo
constituintes do real ou do ideal, bem como daquilo que destes deri-
vam. Caso em que não importa à filosofia especulativa pura se se parte
do real ou do ideal ou se se prioriza um ou outro, mas antes se se pode
pensar numa dimensão em que tanto o início como o ocaso daque-
les podem ser compreendidos e enfim explicados. Essa a dimensão do
Abrangente e de seus modos expressivos.
A filosofia especulativa em geral dos neoplatônicos, sobretudo
a de Proclo, a filosofia puramente especulativa de Hegel e a filosofia
especulativa pura que ora se instaura guardam entre si uma forte fami-
liaridade, constituem o que denominamos a tradição do idealismo especu-
lativo. Essa, reconhecida inicialmente por Hegel, remonta a Platão e seu
estabelecimento da ideia como ponto de partida fundamental do ser
(isto é, da ousia ou da substância) e do conhecer; mas é com Plotino e
Proclo que, para Hegel, a referida tradição se põe em marcha. Isso, com
a descoberta do conceito puro em Plotino, que o interpretaria entre-
tanto como êxtase, e com o desdobramento deste em Proclo, na tríade
manência, processão e conversão, que Hegel por sua vez interpreta como
a tríade lógico, natureza e espírito, de certo modo reduzindo aquela à trí-
ade ser, vida e intelecto, limitando-a ao Intelecto, à segunda hipóstase do
Uno em Proclo. A interpretação de Hegel todavia não é adequada, pois
já em Platão Uno e Díade se mostram princípios supremos anteriores
e, portanto, inclusive conformadores das ideias, sendo estas por sua
vez anteriores ao Intelecto; anterioridade investigada por Proclo, que
descobre uma importante dimensão entre o Uno, enquanto primeira
hipóstase, e o Intelecto ou a Díade, como segunda hipóstase, a saber: a
dimensão das hénadas divinas. Embora em Platão e nos neoplatônicos o
estatuto das ideias e das hénadas divinas não se mostre completamente
esclarecido, em nenhum deles estas se subordinam a um ente supremo
do qual elas derivariam de um modo ou de outro; o que não é o caso de
Hegel, para quem, tal como para os médio-platônicos, as ideias estão

294
Proposição pós-modernado idealismo especulativo puro
Uma intervenção no confronto de Heidegger e Schelling versus Hegel

sempre em Deus (ou antes, na mente de Deus) e são necessariamente


criações deste enquanto Inteligência. Com a diferença, em Hegel, de
que Inteligência ou Deus é essencialmente ideia pura ou absoluta.
Hegel deixa propositalmente para trás a dimensão das hénadas
divinas e a do próprio Uno, adotando uma perspectiva aristotelizan-
te mais própria do médio-platonismo, mas também dos discípulos de
Amônio de Hérmias, que do neoplatonismo propriamente dito, partin-
do pois da segunda hipóstase do Uno e não do Uno mesmo; ou ainda,
antes deste, deixando completamente ignorada a dimensão que o cons-
titui. Hegel parte pois somente da Díade, embora pressupondo certa
unidade originária desta no sentido do pensamento de si ou da intuição
de si mesmo do nous ou do espírito ao nível do pensar puro ou da ideia
dentro de si, assumidos a partir de uma torção do ser mesmo enquanto
imediato indeterminado, como ser sem-reflexão ou ser sem-qualidade.
Esse, apesar de esforços de filósofos como Platão, Heidegger, Plotino,
Proclo, Dionisio Areopagita, Eckhart e Schelling entre outros, ainda não
é plenamente assumido como questão; essa a questão do que é anterior
ao Intelecto e ao espírito, logo a Deus, mas também do que lhes é pos-
terior. Uma expressão desse permanecer em aberto de tal questão, que
pode então ser verificada como carente de qualquer solução, seja pelo
pensar tradicional, diversamente tomado enquanto metafísico, seja
pelo pensar que se quer pós-metafísico, não é senão a oposição dessas
duas formas de pensar pura e simplesmente autodissolventes. Por isso,
reivindicando a tradição especulativa, na qual se reconhece e especifi-
camente reconhece certa familiaridade, para além da indiferença, da
indigência e da declinação do pensar moderno e do contemporâneo,
o idealismo especulativo puro pretende elucidar, de modo rigoroso, a
dimensão da qual apenas Proclo avança certos aspectos – mas que não
tematiza – e que Hegel e outros, incluso Heidegger, deixaram intocada
como ser sem-reflexão ou ser sem-qualidade e abismo. Eis a dimensão
ora designada o abrangente de ser e conceber: anterior e posterior à
ideia, ao acontecimento-apropriativo, ao espírito e a Deus; igualmente,
a dimensão constitutiva do Uno mesmo na medida em que este, como
transcendente, só se dá a conhecer quando da distinção daqueles ele-
mentos, que enfim exprimem a própria Díade e o todo imanente no
qual essa se desenvolve, mas de um lado como ideia e de outro como

295
Manuel Moreira da Silva

seer (Seyn). Caso em que Hegel opta unicamente pela ideia e tem assim
que explicar a chamada raiz de Deus4 tão só pelo pensamento puro (rei-
ner Gedanke), limitando-se pois a uma consideração insuficiente e mes-
mo unilateral no âmbito de seu idealismo do conceito.
Embora comece a tematização do conceito, do conteúdo especu-
lativo ou divino – i.é, para ele, do início absoluto – com o Intelecto, que
o mesmo designa espírito, Inteligência ou Deus, enquanto o conceito
ou o conteúdo o mais especulativo, Hegel reconhece uma dimensão
anterior chamada, por sua vez, o pensamento (der Gedanke); o qual, não
é nem o pensar (das Denken), nem ainda o pensado (das Gedachte). Este é
a forma efetiva da coisa (Ding), ou antes o pensar pensado (das gedachte
Denken), melhor, o pensamento pensado (der gedachte Gedanke); logo,
em sua unidade com o pensar (esse como atividade), constitui o pen-
samento objetivo (objektiver Gedanke), pois, enquanto o Universal ou o
Abstrato em geral, se mostra como produto, determinidade ou forma
dos pensamentos e então como o conteúdo do pensado5. Para Hegel, o
pensar é “o saber em sua identidade simples consigo ou a Universali-
dade livre mesma”6, quando o pensar se mostra “um abstrair, enquan-
to sua liberdade e simplicidade é um suspender da multiplicidade e
da imediatidade”7; assim o mesmo se faz propriamente a atividade
do Universal ou o Universal ativo, que determina o pensamento pro-
duzindo o pensado, a um tempo como determinações de pensamento
(Gedankenbestimmungen) e enquanto suas próprias determinações, as
determinações do pensar (Denkbestimmungen). Eis porque, ao Hegel
assumir tais determinações como elementos constituintes do sistema
do Lógico, como ob-jeto (Gegenstand) da Lógica, tais determinações se
apresentam em relação ao conteúdo rigorosamente em si e para si ou
como “os pensamentos puros concretos, i.é, conceitos, com o valor e o


4
Ver, G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Beweise vom Daseyn Gottes, in Gesammelte Werke,
Bd. 18. Herausgegeben von Walter Jaeschke, 1995 (VBDG, HGW 18), p. 234.

5
Veja-se, G. W. F. Hegel, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften (1830), in Gesam-
melte Werke, Bd. 20. Herausgegeben von Wolfgang Bonsiepen und Hans-Christian Lucas,
1992 (E 1830, HGW 20), §§ 19-25, p. 61-69.

6
G. W. F. Hegel, Vorlesunguen über Logik und Metaphysik (Heidelberg 1817). In Vorlesun-
gen. Ausgewählte Nachschriften und Manuskripte. Mitgeschrieben von F. A. Good. Hrsg.
von Karen Gloy, unter Mitarbeit von Manuel Bachmann, Reinhard Heckmann und Rainer
Lambrecht. Hamburg: Felix Meiner, 1992 (= VLM), ad §12, p. 3, 19-20.
7
VLM, ad §12, p. 3, 20-21.

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Proposição pós-modernado idealismo especulativo puro
Uma intervenção no confronto de Heidegger e Schelling versus Hegel

significado de ser em si e para si o fundamento de tudo”8. Porém, ain-


da que em si e para si, os pensamentos puros concretos são, todavia,
em si apenas o conceito como tal9, isto é, em si ou em geral; devendo
pois se tornar para si de modo que se apresentem enfim como o con-
ceito em si e para si10.
Se na Lógica tudo se passa precisamente assim quanto ao conte-
údo, com os pensamentos se apresentando como as determinações em
si e para si do Lógico, permanece em aberto em que medida o pensa-
mento se torna em si e para si; caso em que a única resposta possível
poderia encontrar-se na transição da Fenomenologia do Espírito à Psi-
cologia. Quando a consciência, ainda incapaz de captar o pensamento,
dado que também ainda não é capaz de pensar, apenas intui e então
apreende o conteúdo especulativo tão só enquanto este se manifesta na
representação, como representação da representação ou autoconsciên-
cia, já que o mesmo “ocorre na representação de toda consciência”11, a
rigor, justamente por meio do intuir, como atividade própria da Inteli-
gência (Intelligenz), e com isso, mediante a rememoração, a imaginação
e a memória (Gedächtniss) da intuição, se eleva ao pensar, passando
pois, enquanto Inteligência, a ter pensamentos12. O que nada informa
sobre a origem dos pensamentos como pensamentos e a passagem dos
mesmos de determinações em si a determinações em si e para si. Hegel
limita-se aqui a dizer que “o em-si-e-para-si é o pensante e o pensado
em unidade”13; em suma, a Inteligência enquanto reconhecedora:

A Inteligência é reconhecedora (wiedererkennend): ela reconhece


(erkennt) uma intuição na medida em que esta já é a sua (§ 454);
além disso, no nome [ela reconhece] a Coisa (§ 462). Agora, po-
rém, seu Universal é para ela na dupla significação do Univer-
sal como tal e do mesmo enquanto imediato ou Sendo; portanto
como o Universal verdadeiro, que é a unidade abrangente (über-
greifende Einheit) de si mesmo sobre (über) o seu outro, o ser. As-
8
G. W. F. Hegel, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1817).
In Gesammelte Werke, Bd. 13. Herausgegeben von Hans-Christian Lucas und Udo Rameil.
Hamburg: Felix Meiner, 2000 (E 1817, HGW 13), § 17, p. 25, 28-31.
9
VLM, ad §12, p. 3, 9-10.
10
E 1817, HGW 13, § 108, p. 72, 4-6; E 1830, HGW 20, § 160, p. 177, 4-7.
11
VLM, ad §16, p. 15, 400-401.
12
Ver E 1830, HGW 20, §§ 446-468.
13
VLM, ad §33, p. 58, 760-761.

297
Manuel Moreira da Silva

sim a Inteligência é para si nela mesma reconhecedora (erkennend):


nela mesma o Universal, seu produto, o pensamento, é a Coisa (die
Sache); identidade simples do subjetivo e do objetivo. Ela sabe
que o que é pensado é, e o que é apenas é enquanto é pensado (ver
§ 5, § 21). Para si, o pensar da Inteligência é ter pensamentos; estes
são enquanto seu conteúdo e ob-jeto (Gegenstand).14

O ponto de partida de Hegel é a Inteligência enquanto esta se


reconhece a si mesma; tal reconhecimento lhe é proporcionado pela
intuição de si na medida em que ela reconhece essa intuição como a
sua própria. A Inteligência também reconhece a representação; a saber,
o nome da Coisa e nele, enquanto sem intuição e imagem, a própria
Coisa ou conteúdo sendo em si sem a oposição em face de uma inte-
rioridade subjetiva15, o que ocorre precisamente na e com a memória
(Gedächtniss), que então se faz pensar. Este é tão só e necessariamente
o pensar da Inteligência, na qual o pensamento é a Coisa e ela mes-
ma é para si enquanto pensar de si mesma, caso em que seu pensar
consiste pura e simplesmente em ter pensamentos. Desses, porém,
Hegel não afirma uma única palavra mais esclarecedora; embora ele
reconheça, ou antes, pressuponha que na Inteligência considerada em
sua objetividade, ou em sua atividade própria, os pensamentos sejam
determinados em si e para si, ele não diz nada acerca do processo de
determinação aí em jogo. Hegel porém assevera que o Universal da
Inteligência “é para ela na dupla significação do Universal como tal e
do mesmo enquanto imediato ou Sendo; portanto enquanto o Univer-
sal verdadeiro, que é a unidade abrangente (übergreifende Einheit) de si
mesmo sobre o seu outro, o ser”. Isto significa, conforme a Enciclopédia
de 181716, que se está nos quadros da Teologia especulativa, e não mais
nos de uma simples ciência formal ou real.
O Universal como tal ou em si – enquanto é pensamento – é pre-
cisamente pensamento dentro de si, indeterminado; como imediato ou
Sendo, se mostra a rigor enquanto o pensamento em si, abstrato ou
em geral, como produto da Inteligência ou a sua Coisa, que se deter-
mina em si e para si apenas na medida em que é assumida e mantida,

14
E 1830, HGW 20, § 465, p. 463-464. Tradução de mmdsilva.
15
E 1830, HGW 20, § 464 A, p. 463, 9-10.
16
E 1817, HGW 13, § 17 A., p. 26, 23-25.

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Proposição pós-modernado idealismo especulativo puro
Uma intervenção no confronto de Heidegger e Schelling versus Hegel

i.é, pensada pelo pensar. Se naquela dupla significação do Universal


este se apresenta como o Universal verdadeiro ou como “a unidade
abrangente de si mesmo sobre o seu outro, o ser”, então ele próprio é
Deus, o pensamento supremo em sua unidade com a Inteligência ou o
espírito puro. Apesar disso, entretanto, ainda não se esclareceu a natu-
reza do Universal em questão e nem o modo pelo qual ela plasma – ou
melhor, se plasma enquanto – o próprio Universal; igualmente, não
se esclareceu também a natureza do pensamento e o modo como este
se determina em si e para si, abrangendo com isso o ser mesmo. Claro
está que ele só pode constituir o (ou constituir-se em) conteúdo divi-
no, ou Deus, enquanto se fizer conceito puro ou determinar-se em si e
para si mesmo, efetivando-se pois no livre desenvolver-se do conteúdo
divino; que não é senão um autodeterminar-se e um autoefetivar-se do
próprio pensamento agora livre, que se faz, como Universal verdadei-
ro, a unidade abrangente de si mesmo e do ser. Falta, contudo, inves-
tigar os momentos iniciais do pensamento; isso, antes mesmo dele ser
determinado em geral ou em si e assim ser assumido como Coisa pela
intuição. Há que se mostrar, especificamente do lado do pensamento,
como se dá essa intuição e se ela é imprescindível para a emergência
das determinações de pensamento ou se não é o pensamento o único
imprescindível. O que impõe a consideração do solo em que o pensa-
mento nasce e se desenvolve.
Esses os limites do pensar de Hegel e de sua concepção do pensa-
mento e da Inteligência, que em certo sentido se mostra como o próprio
Deus. Hegel não é capaz de explicar a origem dos pensamentos senão
na medida em que a Inteligência os têm e isso enquanto ela própria se
capta a si mesma mediante o intuir de si, pelo qual ela se reconhece
como Inteligência. Para Hegel, tudo se resolve na Inteligência, essa ao
nível da Ciência da Lógica é tão só o espírito enquanto ob-jeto lógico, a
Inteligência em si ou para nós determinável como o Universal abstrato
que, justamente porque em si ou para nós, se mostra a nós, enquanto
consciências, (ou ainda em nossas consciências); com o que se faz real,
isto é, mundo (a um tempo abstrato e concreto ou sensível e intelec-
tual) e, por intermédio deste, se reconhece a si mesma em sua riqueza
real tornando-se para si e assim o Universal verdadeiro. Tudo isso é
Deus ou Inteligência, caso em que o saber de Deus ou o da Inteligência

299
Manuel Moreira da Silva

é um e o mesmo saber que, como saber do espírito, sobre o espírito e


para o espírito, só se efetiva no solo do próprio espírito; logo da Inte-
ligência enquanto esta se reconhece a si mesma no elemento puro do
pensar e neste, como espírito pensante, se eleva a Deus como espírito
supremo. O que, embora consistente, não resolve o problema do início
do pensar, portanto, também o dos pensamentos que a Inteligência
tem fora do intuir e do pensar puros que não são senão o intuir e o
pensar puros de si mesma.
Embora assegure que o pensamento é a raiz de Deus, ao não
esclarecê-lo, o idealismo do conceito não só faz da Lógica, enquanto
ciência primeira, uma ciência subjetiva, mas tem que excluir o próprio
ser, enquanto sem reflexão e sem qualidade, de sua exposição. O que
se explica pelo fato de, em sua retomada da tradição do idealismo es-
peculativo, a rigor, das hipóstases neoplatônicas do Uno, Hegel assu-
mir tão só a Inteligência ou a segunda hipóstase enquanto concordante
com a concepção aristotélica do nóêsis noêseôs. Esse intuir do intuir ou
pensar do pensar mediante o qual a Inteligência se intui ou se pensa a
si mesma como pensar, ainda sem nenhuma forma e portanto entendi-
da como ser puro ou como ser em geral, permanecendo pois ao nível
do ente e da substância, ou do Um que é, não avançando ao Um-Um.

III, O outro início do pensar e o desafio de pensar


um início não-unilateral

Só nos tempos modernos emergiu a questão do Início, posta pri-


meiramente por Hegel em seu limite, alcance e consciência própria na
primeira edição da Ciência da Lógica, em 1812. Hegel pensou a questão
do Início no sentido de um início do pensar e para o pensar; logo, nos
quadros de um início simultaneamente subjetivo e objetivo, imediato
e mediato. Por circunscrever-se nos limites de um início da ciência,
portanto, do ponto de vista do conceito ou da essência, e então por
apresentar-se no âmbito dos chamados pensamentos objetivos, que se
contrapõem à experiência do pensar, aquele Início permaneceu unila-
teral; permanece pois de certo modo ainda para o pensar. Dessa ma-
neira, em que pese a tentativa hercúlea de pensar esse início enquanto
absoluto, como o início de tudo, ao pensá-lo unicamente como o início

300
Proposição pós-modernado idealismo especulativo puro
Uma intervenção no confronto de Heidegger e Schelling versus Hegel

da ciência ou da filosofia, e, a rigor, como a própria ideia pura ou ab-


soluta, Hegel pensa somente um dos lados da questão do Início, o lado
do conceito ou da essencialidade da Coisa, não também o lado desta,
como a Coisa do pensar: como seer ou em sua essenciação. Essa a uni-
lateralidade constatada por Schelling e Heidegger, os quais, por sua
vez, ao pensarem o Início tão somente como início do pensar, a rigor,
do pensar não-pensante ou não-conceituante, assumindo-o em sua ati-
vidade como o próprio princípio (arché), não conseguiram igualmente
sair da unilateralidade oposta: pensar tão só o lado da Coisa, prescin-
dindo do conceito e da essencialidade. Situação que apenas se inverte
quando da intervenção de Cacciari17, a qual embora reivindique a te-
ologia negativa da tradição neoplatônica, não consegue e nem pode
abrir mão do conceito; assim, tem que pressupor a Coisa da qual o
pensar parte, algo que Cacciari tem que negar justamente pelo fato de
a filosofia, como ele a concebe, não poder pressupor o objeto do qual
inicia. Paradoxo que se mostra sem solução nos limites dessa filosofia
e cuja utilidade parece ser apenas a expressão da catástrofe que assola
o pensar contemporâneo.
O início para o pensar (für das Denken) é segundo Hegel o prin-
cípio (arché) enquanto conteúdo e como tal o ponto de partida objetivo
do pensar (des Denkens) enquanto atividade subjetiva, razão por que a
tradição metafísica o considera distinto do pensar e portanto anterior
ou primeiro (Prius) em relação a este. Essa a razão de o princípio ser
apreendido inicialmente apenas pela intuição intelectual pura (distinta
do conceito, da categoria ou da representação), como coisa ou subs-
tância inteligível separada das coisas ou substâncias sensíveis, e, logo
depois, pela representação, como ser objetivo ou representado distin-
to do ser subjetivo ou real, ou ainda como o assim chamado concei-
to objetivo distinto do conceito formal. Intuição e representação que,
com o advento do Eu, se mostram como que numa unidade originária,
com a representação sendo captada imediatamente pela intuição ou
se apresentando como decorrência necessária desta. Mas descartada
a representação pelo último Schelling e por Heidegger, a intuição é
transformada por este em compreensão, quando deixa de fazer sentido
a proposição de um início para o pensar.


17
Ver, M. Cacciari, Dell’Inizio. Milano: Adelphi, 32008, passim.

301
Manuel Moreira da Silva

O início do pensar (des Denkens) é por sua vez, para Hegel, o


princípio enquanto forma ou atividade subjetiva, ou antes, nos neo-
platônicos, em Schelling ou em Heidegger, a experiência do pensar.
Desse modo, tal início é especificamente contemporâneo e só emerge
na medida em que aquele início até então para o pensar é enfim assu-
mido e mantido como “o primeiro no caminho do pensar”18. Assim, ao
contrário do início para o pensar, o início do pensar em Hegel retoma
a homologia do nous e do noeton, consignada cientificamente na uni-
dade do intuir (nóêsis) e do pensar (diánoia), quando nele o conceito
especulativo, como herdeiro da substância formal (Aristóteles) e do
conceito formal do ente (Suárez), se mostra imprescindível. Embora
reconhecido em sua relevância própria, na medida em que permanece
início para o pensar, o início em Hegel é dissolvido ou antes deixado
de lado precisamente porque, em função de seu caráter conceitual, não
assume o fato da Coisa, logo que ela é, mas tão só o que ela é. Isso im-
plica igualmente a dissolução, o deixar de lado ou a transformação da
intuição, como já foi dito acima, em compreensão.
Tematizado como arché pelos primeiros filósofos de modo ape-
nas material, é apenas com Platão que o início para o pensar ganha
contornos epistêmicos definidos. Isso ocorre, a rigor, com a distinção
dos planos sensível e inteligível, respectivamente em sentido ontoló-
gico e epistemológico, com a instauração das ideias enquanto a ver-
dade das coisas e, assim, como o ponto de partida do saber, ou antes,
enquanto o início do pensar concebido como diálogo da alma consigo
mesma. Esse que prevalece incólume até Hegel e Nietzsche, quando a
cisão de ser (einai, esse, Sein) em ser subjetivo ou real e ser objetivo ou
formal, bem como em ser finito e ser infinito já prenunciada na escolás-
tica tardia e radicalizada em Descartes assume contornos dramáticos
ou mais propriamente trágicos, resultando na proposição nietzschiana,
de certo modo preparada por Schelling e Schopenhauer, de uma re-
versão do platonismo. Tal reversão, embora não implique de imediato
aquilo que Heidegger designa o outro início do pensar, traz para este
um esclarecimento essencial: o fato de a afirmação de um outro início,
distinto da ideia, ter que partir justamente daquilo de que a ideia se


18
Ver, G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik. Erster Teil. Die objektive Logik. Erster Band.
Die Lehre vom Sein (1832). In Gesammelte Werke, Bd. 21. Herausgegeben von Friedrich Hoge-
mann und Walter Jaeschke, 1985 (WdL 1832, HGW 21), p. 54, 4-5.

302
Proposição pós-modernado idealismo especulativo puro
Uma intervenção no confronto de Heidegger e Schelling versus Hegel

distingue, em seu próprio início, a imagem; mais especificamente, a


imagem sensível. Essa cuja natureza de novo se manifesta, agora como
pós-metafísica, reatando-se – de certo modo – precisamente com o que,
antes da instauração da ideia platônica, se constituía, por exemplo em
Protágoras, como homologia da imagem e da sensação.
Ora, o mérito de Heidegger está em mostrar que o seu outro iní-
cio, tal como a arché dos primeiros filósofos, prescinde de uma distinção
entre sensível e inteligível. Esse início é, de fato, ele próprio sensível e
assim o imaginar mesmo, sem nenhuma pretensão de pureza como
início do pensar; à diferença do pensar puro de Hegel, que, embora se
mostre no sensível e como o sensível, é tão somente aquilo que penetra
o sensível, bem como a imagem, e os perpassa como tais. Neste caso,
mesmo que Hegel já de algum modo prepare o chamado outro início,
ele ainda permanece nos limites do primeiro início; na verdade o leva
este às suas últimas consequências, nos quadros de uma filosofia que
parte da ideia e tem como seu escopo fundamental a efetivação desta,
sua consumação. Por isso, depois de Hegel, permanecer no primeiro
início só pode significar levar a termo uma tarefa não filosófica, limi-
tar-se a aplicar pura e simplesmente os resultados da filosofia em geral
e, a rigor, aqueles da filosofia puramente especulativa. Assim, a propo-
sição heideggeriana de um outro início se mostra duplamente salutar.
De um lado, a proposição heideggeriana de um outro início do
pensar assume o elemento da compreensão do existir, o sentido de ser
do existente, como o essencial na pergunta pelo porquê da coisa, ou
antes, da pergunta mesma pelo ser, ao invés de se manter nos limites
de uma explicação causal do ser-aí da coisa, de sua geração e de sua
corrupção, bem como de suas determinações formais e de suas pro-
priedades. De outro lado, a proposição heideggeriana implica partir
não mais da ideia e sim do ser enquanto este se dá ou acontece-apro-
priativamente; logo, não do ser na medida em que este devém pura e
simplesmente e que, por isso, é tomado como oposto ao devir mesmo
e, assim, sempre em vista do ente, nos limites de uma explicação for-
mal do ser-aí deste, mas nos quadros do comum-pertencer recíproco
de ambos. A isso Heidegger denomina seer (Seyn) ou acontecimento-
-apropriativo (Ereignis), a rigor, o dá-se ser em um tempo apropriado
no qual o ser-aí se apropria do que lhe é próprio; de si mesmo como

303
Manuel Moreira da Silva

liberdade. Situação resultante de um longo confronto historial entre os


dois inícios no âmbito disso que Heidegger designa história do seer;
algo que está na base de suas considerações e pode ser não só rastreado
com certo êxito, mas reconstruído e assumido como elemento essencial
da história do seer. Consideremos as linhas gerais desse rastreamento
e dessa reconstrução no sentido preciso de uma meditação da filosofia,
no dizer de Heidegger, sobre si mesma.
Ideia e seer constituem, respectivamente, para Heidegger, o pri-
meiro e o outro início do pensar. Por partir do ente (on, ens, Seiende) ou
do ser como um ente entre outros, o ente enquanto ente (da tradição
metafísica) ou o supremamente ente, o primeiro início se mostra como
ideia e o outro, por se contrapor a esta e por partir do ser (einai, esse,
Sein), se dá originariamente enquanto seer ou acontecimento-apropria-
tivo. No âmbito da Ideia o pensar pergunta apenas pela causa, pelo “o
que” (ti, quid, Was, what) das coisas e busca explicar assim a essência
abstrata ou a substância (ousia) das mesmas; na dimensão do seer o
pensar se pergunta pelo “que” (oti, quod, Dass, that) ou pelo sentido de
ser ou do existir (para Heidegger a tarefa não resolvida de Platão)19, em
especial, do que é-aí, buscando compreendê-lo sem nenhum acréscimo
formal. É importante observar neste ponto que aquilo que Heidegger
considera a tarefa não resolvida de Platão é precisamente o aspecto
relativo ao sentido de ser que em Protágoras está em questão e que
o sofista resolve mediante uma concepção de verdade que muito se
aproxima daquela do filósofo do seer. Uma concepção que pode ser to-
mada como a primeira tentativa de se afirmar o que Heidegger, séculos
mais tarde, e após a consumação do primeiro início, designa o outro
início. Outro, não o segundo, mas igualmente primeiro, concomitante
àquele; mas, não obstante, o primeiro malogrado e malogrado devido
sua própria natureza.
De Platão aos dias de hoje, a ideia foi concebida de um lado como
intuição e de outro enquanto representação, sendo esses os seus dois
modos essenciais e, por isso, respectivamente, os princípios constituti-
vos dos dois inícios da metafísica até aqui, o primeiro início no âmbito
dos comentários de Aristóteles da Escola de Amônio (séc. V-VI d.C.)


19
Ver, M. Heidegger, M. Platão: o sofista. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: GEN;
Forense Universitária, 2012, p. 486ss.

304
Proposição pós-modernado idealismo especulativo puro
Uma intervenção no confronto de Heidegger e Schelling versus Hegel

e o segundo no da filosofia de Duns Scotus20. Isso significa que o pri-


meiro início do pensar comporta nele os inícios até aqui verificados da
metafísica em sua fundação, delimitação e constituição. De Schelling
em diante, porém, com a distinção entre “o que” (Was) e “que” (Dass),
o outro início se mostra, a rigor, como o que de fato ele é, mas tão só en-
quanto o outro início do pensar, não ainda como aquilo que Heidegger
nomeia o início o mais inicial, e isso porque Schelling assume de saída
o confronto com o primeiro início e a assunção do que já nos sofistas,
se mostra fundamental: a negação da validade objetiva do conhecer, a
rejeição do lógos enquanto lugar da verdade e a afirmação desta, não
como correção (orthotés), mas enquanto desvelamento (alétheia). Quan-
do outra distinção, essa para Protágoras, se faz necessária: entre saber
algo e saber algo acerca de algo.
Em tal distinção, como observa Bostock21, o sofista afirma o co-
nhecer tão só no sentido de ter em mente, de ter constantemente à vista,
ou de contemplar algo que alguém conhece ou, ainda, somente que esse
algo é; portanto, sem passar a nenhuma determinação formal sobre o que
esse algo é. Protágoras não pretende pois assumir o conhecer no sentido
de conhecer algo acerca daquilo que se tem em mente ou se contempla,
pelo qual se possa reconhecê-lo de um modo ou de outro, logo, de saber
o que esse algo é; trata-se, para o sofista, de saber apenas que o algo em
questão é e que, nesse é, ele assume em relação ao indivíduo – para o
qual ele é, enquanto se lhe aparece, – certo valor ou “sentido”22. Situação
intrigante, mas reaberta para a filosofia apenas a partir de sua redesco-
berta por Schelling23 e de seu aprofundamento por Heidegger.
Em vista disso, é preciso mais uma vez pensar o Início, mas não
de modo unilateral. Esse o caso do outro início, de Heidegger, que ape-
nas confronta-se com o primeiro início e, assim, opõe a cada uma das
instâncias deste – consideradas então metafísicas – outras instâncias
tidas como pós-metafísicas ou, a rigor, pré-metafísicas; isso sem levar

20
Ver, L. Honnefelder, La métaphysique comme science transcendantale. Traduit par Isabelle Man-
drella. Paris: PUF, 2002, passim.

21
Ver, D. Bostock, Plato’s Theaetetus, Oxford: Clarendon, 2005, p. 41ss.

22
Termo aqui utilizado intencionalmente entre aspas para enfatizar suas profusas conotações
semânticas, mas não sistemáticas, algo muito ao gosto da sofística em geral e da chamada
filosofia do sentido em especial.

23
Ver, F. W. J. Schelling, Philosophie der Offenbarung I. In Sämmtliche Werke II, 3. TOTAL VER-
LAG, 1997, (PhO, SW II, 3), p. 58.

305
Manuel Moreira da Silva

em conta justamente esse “pré”, de certa maneira já manifesto antes


dele. Contudo, se o desafio é pensar o início de modo não-unilateral;
o mesmo só pode lograr êxito mediante uma perspectiva especulativa
pura, na qual o Início não seja concebido nem apenas como seer, nem
somente como ideia, nem só negativa ou apenas positivamente, mas
seja a um tempo o início negativo e positivo de ambos, o terceiro início
do pensar. Em suma, o abrangente de ser e conceber originários.

IV. À guisa de conclusão: o pensar no


Abrangente como alternativa epocal

Pensar no Abrangente significa assumir o próprio Abrangente


enquanto este se exprime no ser-um de ser e conceber, ser-um esse
precedente à ideia e ao seer; portanto, respectivamente, ao primeiro
início e ao outro início do pensar. Como inícios, ideia e seer se iniciam
a partir não do ser-um de ser e conceber, mas de seu ser-outro; assim,
nos quadros da diferenciação ou antes da distinção do ser-um, e.g., do
próprio Abrangente em seu mover-se dentro de si mesmo e, em vista
disso, em seu haver. Ser, conceber e haver se mostram assim como os
momentos originários do início absoluto na medida em que só este,
enquanto início, inicia livremente.
O início absoluto se mostra pois como início livre, independente
da intuição pura e do pensar puro, bem como do pensar concreto – no
sentido preciso do inventar (Erdenken) ou do imaginar (Besinnen) – e
do pensar abstrato. Em suma, tal início doa início a todas estas orien-
tações e ao que para elas se mostra como a Coisa do pensar: seja essa o
Não-ente, que jamais devém ou se torna ente; o ser puro ou o ente em
geral, que contém nele o ser e a essência e que, como o ser verdadeiro,
que se sabe em si e para si, não é senão ideia absoluta; o ser originário
e o seer (Seyn) aquém de todo ente e portanto de qualquer operação do
intelecto; ou ainda, o ser como tal e em seu todo. Tal início inicia livre-
mente na medida em que, como ser-um de ser e conceber, se faz pensar
no Abrangente; esse que não deve ser tomado como pensar facultativo,
infrafacultativo ou suprafacultativo e sim como ele mesmo segue en-
quanto pensar inicial: enquanto originariamente se origina ou enquan-
to se doa em tudo que é ou se dá ou acontece, bem como em tudo que

306
Proposição pós-modernado idealismo especulativo puro
Uma intervenção no confronto de Heidegger e Schelling versus Hegel

pensa ou em todo pensar ou intuir, e com isso abrange e perpassa a


Coisa do pensar e o próprio pensar. O pensar no Abrangente consiste
pois em um vínculo originariamente originário, sendo um com o início
absoluto, que não parte meramente do ser, como puro ou enquanto
originário, em oposição ao ser-aí ou ao ente e ao pensar que pensa pura
ou originariamente, que pensaria no ser puro ou originário, mas como
o que vincula ou origina o pensar originário. O pensar no Abrangente
é desse modo o próprio vínculo originariamente originário, não ime-
diatez ou mediação, imediato indeterminado ou mediatizado, evento,
abismo ou diverso abissal, qualquer estrutura prima ou mesmo estru-
tura ou predicado 0 (zero), mas o que origina o abismo e seu diverso
abissal, as estruturas ou os predicados 0 enquanto originários. Vínculo
originariamente originário, o pensar no Abrangente constitui enfim o
próprio início absoluto na medida em que nele e através dele o Abran-
gente e o ser-um originário assim se apresentam.
Tal apresentação pode ser designada especulativa pura, sem re-
missão a qualquer via especulativa – de tipo dialético ou hermenêutico
– que busque efetivar conceitos ou algo como o sentido de ser. Enquan-
to especulativo puro, o mesmo se volta para o próprio início e para o
iniciante que neste inicia; ele é puro na medida em que esse iniciante
não inicia a partir do ser ou do nada, nem do pensar ou do intuir, mas
tão só do vínculo que como início se apresenta a um tempo como ser
e conceber; os quais, como um e mesmo ser e conceber, iniciam o que
tem início. A apresentação aqui em jogo é portanto especulativa justa-
mente porque o vínculo assim apresentado – enquanto ser e conceber
– e que como tal se apresenta enquanto início inicia-se necessariamente
como pensar no Abrangente e como os elementos que neste se mos-
tram então neles mesmos transparentes; por isso especulativamente
vinculados e vinculantes. A via de tal apresentação subjaz à analítica, à
dialética e à hermenêutica e, desse modo, consiste na origem do idear;
que por sua vez precede originariamente todo o ideal e toda ideia, bem
como todo o real e todo seer.

307
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo
com Platão e Hegel)

Maria Celeste de Sousa


Faculdade Católica de Fortaleza

Introdução

A Liberdade para o Bem é uma temática central no pensamento


antropológico-ético de Lima Vaz e, portanto, esta relação é retomada
constantemente em todos os textos em que ele reflete sobre a vida ética
enquanto uma vida sensata que possibilita a convivência comunitária.
O seu empenho em discorrer sobre a relação ético-metafísica expressa
a profunda inquirição que ele fez dos pressupostos que dão sustentá-
culo ao modelo social hodierno e descortina a necessidade urgente de
uma reflexão que aponte para os fundamentos ontológicos que teçam
os fios inteligíveis de uma vida segundo o espírito.
Para o desenvolvimento desta temática, Lima Vaz dialoga com
dois grandes filósofos ocidentais, Platão e Hegel, que se dedicaram a
pensar a cultura de seu tempo, a partir do critério da razão universal e
estabeleceram um modelo reflexivo que conduzisse a razão em busca
de um princípio unificador da totalidade. É emblemático perceber a
metodologia dialética, ou caminho que parte de uma Ideia e permane-
ce no âmbito das Ideias, isto é, no terreno do Inteligível (noeton), para
o desenvolvimento destas filosofias que versam sobre a relação entre
Ética e Metafísica.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 308-325, 2015.
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo com Platão e Hegel)

Platão, por exemplo, discorre sobre o problema da relação entre


ethos e práxis elevando o debate para o plano do logos discursivo e
conduzindo a razão à descoberta de um princípio anipotético, o Bem, a
partir do qual ele reflete proporcionalmente sobre o todo da realidade
inserindo no “domínio do Ser” a práxis humana e seus predicados éti-
cos de liberdade e de sabedoria.
Hegel, por sua vez, resgata a intrínseca relação entre Ética e Me-
tafísica no seio do modelo historicista alemão dos séculos XVIII e XIX,
discorrendo sobre a dialética da Liberdade presente na Filosofia do Espí-
rito Objetivo. Para ele, a noção de Ideia equivale à noção de Liberdade,
ou autodeterminação. Isto significa que a Liberdade é a identidade que
permanece e se afirma em seu fazer-se outro e somente ao se fazer outro
a Liberdade concretiza-se no tempo e o qualifica como um tempo his-
tórico. Por sua vez, a História, em seu conceito, não é senão a Liberdade
- a Ideia - que se realiza no tempo conferindo-lhe a estrutura de tempo
propriamente histórico. Ela é, essencialmente, a objetivação do Espírito
livre, a concretização da Ideia no tempo, por meio das obras históricas.
Lima Vaz em seus Escritos de Filosofia atualiza também, no final
do século XX, a memória do Ser e a sua intrínseca relação com a ética e
filosofa entre os parâmetros da “rememoração” da história da filosofia
e do “pensamento” sobre a modernidade, notadamente sobre o redu-
cionismo antropológico e ético que nega os princípios transcendentais.
Seu pensamento sistemático visa reencontrar por meio da dialética a
presença do infinito, ou do Absoluto imanente no mais íntimo do ser
humano, pelo Espírito que nele habita como inteligência e liberdade e
que direciona a suas ações e o seu viver em direção ao Bem, porque o
sujeito enquanto ser-para-o-Absoluto existe de fato, como ser-para-a-
-verdade e ser-para-o-bem.
A comunicação apresenta o diálogo que Lima Vaz faz com Platão
e Hegel sobre a temática da Liberdade para o Bem. Ela divide-se em
três tópicos: 1) Platão e a metafísica do Bem; 2) Hegel e a dialética da
Liberdade; 3) Lima Vaz e a Liberdade para o Bem.

Platão e a metafísica do Bem

A philosophia practica platônica e hegeliana é imprescindível para


o desenvolvimento do sistema ético de Lima Vaz, uma vez que estes

309
Maria Celeste de Sousa

dois modelos são homólogos, quanto ao télos do logos filosófico orde-


nador do múltiplo ao Uno. Em Platão é o “Uno como Bem”, e em Hegel
é o “Uno como Espírito”1, pelo qual ele pensa “o espírito do tempo
pensando-se como espírito”2.

Para ambos, a filosofia é, obedecendo a um mesmo designo,


uma interpelação crítica da cultura e uma restituição ontológica
da sua inteligibilidade essencial. A cultura, com efeito, realiza-
-se no tempo como história do logos-da Razão- desdobrando-se
no medium da contingência, da desordem, e do não-sentido da
violência e do erro. Assim sendo, a filosofia aparece para Platão
e para Hegel como a iniciativa, insensata aos olhos da opinião
mundana, de instaurar a sensatez da razão no medium histórico
da desrazão. (VAZ, 1997, p. 19)

Lima Vaz em seu sistema antropológico-ético pretende também


relacionar a filosofia com a cultura estabelecendo a intrínseca relação
entre a metafísica e a ética, pois se Platão procurou instaurar a justa
medida na desordem do mundo humano e Hegel procurou reconciliar
as oposições que romperam a unidade ética da comunidade humana,
Lima Vaz segue em busca do Absoluto, presente no interior do homem
pelo Espírito que nele habita e que fundamenta o exercício da razão prá-
tica na vida individual e comunitária para superar o niilismo metafísico
e ético contemporâneos.
Como em seu procedimento filosófico ele inicia o processo refle-
xivo com o momento rememorativo em que ele faz a memória dos concei-
tos ontológicos e éticos constitutivos do Ethos ocidental, ele atualiza a
estrutura e o método da tradição desde a intuição socrática do conhece-
-te a ti mesmo, como o princípio que direciona a inquirição platônica
para a fundação da metafísica do Bem, enquanto resposta à questão
fundamental: como devemos viver?
A memória da metafísica do Bem incorre na problemática ética
que preocupa Lima Vaz, ele retoma os passos seguidos por Platão para
justificar a relação entre a Liberdade e o Bem e, portanto ele relembra
o logos demonstrativo para evidenciar o modo como a Razão grega pro-
1
“O Uno como Espírito é a substância como sujeito que não é apenas a ‘unidade original’ mas
a igualdade reinstaurando-se a reflexão em si mesma no seu ser-outro.” (VAZ, 1993, p. 56).
2
Ibid., p. 56.

310
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo com Platão e Hegel)

cedeu nos momentos de sua crise ética. Ele afirma que Platão, embora
não dê uma resposta pontual à inquirição socrática da virtude-ciência,
desenvolve em seus Diálogos o methodos que eleva o problema do ethos
e da práxis ao plano do logos discursivo, e conduz à descoberta do prin-
cípio anipotético do Uno-Bem.

O problema do ethos e da práxis, transposto ao plano do logos fi-


losófico e de suas exigências, mostra-se assim solidário com uma
concepção da realidade total - propriamente como uma doutrina
do ser verdadeiramente tal, que Platão denomina ontos on, ou
com uma ontologia das Ideias - e é essa solidariedade entre o
Bem e o Ser que permite a Platão propor o primeiro grande mo-
delo ético da história. (VAZ, 1999, p. 98).

Entre os vários caminhos que conduzem à interpretação da Ética


platônica, Lima Vaz opta por aquele que pressupõe a unidade socrá-
tica entre arete e razão, e que concilia a liberdade da virtude com a ne-
cessidade da razão. Essa interpretação evidencia a resposta platônica
à questão emblemática: “Como o virtuoso, ou o homem bom e justo,
sendo sábio, pode ser livre?” (VAZ, 1999, p. 99).
Platão ao inserir a relação arete-razão na metafísica da ordem re-
flete analogicamente ou proporcionalmente sobre o todo da realidade
inserindo, também no “domínio do Ser” a práxis humana e seus predi-
cados éticos da liberdade e da sabedoria.

Tanto a ideia da liberdade quanto a ideia de sabedoria deverão de-


finir-se segundo alguma proporção e serão os termos dessa pro-
porção ou analogia, retamente definidos, que irão mostrar a com-
patibilidade e mesmo a identidade na diferença das suas ideias.
(VAZ, 1999, p. 100).

Como o conhecimento da ordem nas realidades ordenadas, im-


plica o conhecimento do bem que as unifica, conforme a sua propor-
cionalidade com o todo do Ser e cada realidade cumpre o que lhe é
próprio na ordenação do todo, Platão intui a presença de um princípio
ordenador, ou a ideia suprema do Bem,
A ideia do Bem, identicamente termo último e absoluto da ascen-
são dialética, ou seja, do itinerário da Razão, e fim último do movimen-

311
Maria Celeste de Sousa

to da praxis, ou seja, do caminho da Liberdade, mostra-se como fonte


de toda inteligibilidade e bondade e, por conseguinte, razão mesma
da liberdade em sua verdade, como atributo intrínseco do ser racional.
(VAZ, 1999, pp. 106-107)
Pela experiência virtuosa, o indivíduo descobre, portanto, o espa-
ço do logos que o conduzirá à ‘visão das Ideias e dos Princípios do ser’ e
esta descoberta desperta a sua disposição pessoal de se deixar guiar por
ele. Dos desdobramentos conceptuais da noção de arete, a metafísica
platônica dos Princípios se identifica com a metafísica da liberdade, ou
seja, a ciência do ethos, a Ética constitui a outra face da Metafísica.
Ensinar a virtude para Platão é educar para a liberdade, pois a
vida ética não é um dom da natureza, embora por ela condicionado,
mas fruto de um longo, difícil e, por vezes, doloroso processo educati-
vo, em busca do inteligível puro (to noeton), ou a Ideia do Bem, funda-
mento da liberdade3. O exercício inteligível não é apenas um exercício
intelectual, mas a principal exigência do filosofar como estilo e regra
do viver, pois Platão entrelaça definitivamente a Metafísica com a Ética
ao afirmar o conhecimento do ser como norma do agir.
Este entrelaçamento entre Metafísica e Ética é continuada por
Aristóteles, em matizes diferentes, uma vez que o estagirita imanenti-
za a ideia do Bem na práxis ética do homem sábio, que deve guiar-se
pela phronesis, ou a virtude da razão reta (orthos logos), e ser capaz de
escolher o meio-termo (mesotes) entre os extremos em suas ações parti-
culares, visando pelo seu agir o bem individual e o bem comunitário.
Aristóteles evidencia, com efeito, o exercício da racionalidade
prática que prescreve no próprio operar (ergon) do homem a presença
de uma teoria que o torna bom, pois ao operar racionalmente ou ao
agir segundo a virtude (hexis), o homem atualiza a potencialidade da
sua alma, intrinsecamente voltada para o bem do seu ato (enérgeia) e


3
“A liberdade como liberdade verdadeira, será então como o selo ou o sinete do Bem na alma,
mas este só se tornará visível e o seu relevo irá configurar o próprio relevo da alma quando
ela for capaz, por sua vez, de marcar com o sinete do ser os objetos do seu conhecimento
verdadeiro. No momento em que a alma tendo chegado ao fim do aprendizado da virtude
torna-se capaz desse gesto propriamente ontológico com o qual Platão exprime metaforica-
mente o sentido da nóesis, ou da intuição do inteligível puro, ela revela finalmente a sua
liberdade essencial: a liberdade para o Bem em cujo conhecimento ela alcança a plenitude
da sua Areté, a certeza da sua imortalidade e a vitória sobre o destino” (H. C. de LIMA VAZ,
Platão revisitado: ética e metafísica nas origens platônicas, p.25.)

312
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo com Platão e Hegel)

age conforme a medida do logos . Este é o modo de como os homens se


tornam bons e felizes.

2. A dialética da liberdade em Hegel

A forma como Hegel resgata a intrínseca relação entre a Metafísi-


ca e a Ética no seio do modelo historicista4 alemão dos séculos XVIII e
XIX constitui um instrumental indispensável à reflexão vaziana sobre a
relação entre liberdade e o Bem, principalmente, a dialética da Liberda-
de presente na Filosofia do Espírito Objetivo, que corresponde ao “corpo
conceptual da Ética hegeliana propriamente dita” (VAZ, 1999, p.389).
Lima Vaz reflete sobre a equivalência entre a noção de Ideia e
a noção de Liberdade e porque ela “é a identidade que permanece e
se afirma em seu fazer-se outro” (VAZ, 1999, p. 365) e somente ao se
fazer outro a Liberdade concretiza-se no tempo e o qualifica como um
tempo histórico.
Como a existência livre é, por definição, um dever-ser, a Ética he-
geliana consiste em mostrar as diversas formas como esse dever-ser se
manifesta na história, organizando o seu programa ético em três mo-
mentos pelos quais o sujeito vai progredindo dialeticamente em sua
consciência de liberdade:

O Direito no sentido jurídico estrito, a Moralidade, a Vida ética


concreta ou Eticidade, cada um deles significando um estágio
sempre mais avançado no caminho da realização efetiva da Li-
berdade (VAZ, 1999, p. 391).

Esta estrutura dialética da Liberdade manifesta a sua progressão


imanente por meio da dinâmica do conceito que particulariza o univer-
sal, dissolvendo-o e afirmando-o na singularidade concreta da história.
“A Dialética é, pois, a ‘alma’ do conteúdo que produz e faz avançar no
discurso sua razão imanente” (VAZ, 1999, p. 391) e, ao mesmo tempo,


4
“Sendo a história a matriz da existência do ser humano no tempo e sendo o ethos a forma
simbólica que engloba, de alguma maneira, todos os aspectos de nossa existência histórica,
a essencial historicidade do ethos oferece um campo hermenêutico extremamente rico para a
constituição de um saber do ethos em seu especificidade e em sua estrutura essencial ou seja,
de uma Ética. História, cultura, ethos:esses três conceitos se articulam para constituir a estru-
tura teórica básica do paradigma historicista.” (VAZ, 2000, p. 365).

313
Maria Celeste de Sousa

determina a Ideia como ‘forma de existir’ nas diferentes ‘figuras’ histó-


ricas. O que interessa a Hegel não é a cronologia histórica das ‘figuras’,
mas a necessidade imanente do desenvolvimento do conceito, uma vez
que ele não separa teoria e prática: “A teoria do Espírito Objetivo ou do
Direito sendo uma dialética da Liberdade (ou do dever-ser do Espírito)
é, por definição prática” (VAZ, 1999, p. 392).
A dialética explicita as razões teóricas e práticas que permitem
e asseguram a convivência humana e se denominam como leis da li-
berdade. Com feito, para Hegel, “a filosofia pensa o que é, pois o que
é, é a Razão. O que é não é o fato bruto, o poder ou a força que mo-
mentaneamente se impõem na história” (VAZ, 1999, p. 392). A filosofia
pensa a efetividade racional da história presente no existir individual-
-comunitário e manifestada na presença do ethos. “Sem a presença da
Razão como enteléqueia ou alma do seu vir-a-ser, o desenrolar empírico
da história mergulharia no puro aleatório ou no absurdo” (VAZ, 1999,
p. 392). A Filosofia do Espírito Objetivo reflete a realidade como ela deve-
-ser, ou melhor, como a Liberdade se efetiva historicamente.

O desenho desse roteiro, como Hegel explicara (PhR, par. 31-32)


não segue uma linha histórica mas uma ordem dialética, que obe-
dece ao percurso da Ideia na Lógica. Aqui é a Ideia da Liberda-
de formalmente considerada como tal, que, em sua realização
efetiva, passa pelo momento da imediatez ou da Lógica do Ser no
Direito abstrato, pelo momento da mediação reflexiva ou da Ló-
gica da Essência na Moralidade, e alcança finalmente o momento
da imediatez mediatizada ou da identidade do Ser e da Essência da
Lógica do Conceito de Eticidade (VAZ, 1999, p. 395).

O momento do Direito abstrato compreende a realização da Ideia


de Liberdade na experiência imediata vivida pelo indivíduo no coti-
diano de sua existência, pela qual ele se relaciona com as coisas e com
a comunidade à qual pertence. “O indivíduo é, aqui pessoa no sentido
puramente jurídico, situando-se no plano de uma universalidade abs-
trata” (VAZ, 1999, p. 395).
O momento da Moralidade corresponde à experiência particular
do indivíduo, que, em sua subjetividade infinita para-si, reflete sobre a
relação entre a Liberdade objetiva, a lei e a Liberdade subjetiva do Eu e
se conscientiza de sua dimensão moral:

314
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo com Platão e Hegel)

Na esfera da Moralidade, portanto, a ação moral se manifesta


nas atitudes que recebem sua especificação ética a partir do próprio
sujeito: o propósito, a intenção, o bem, e o mal, segundo a Enciclopédia; o
propósito e a culpa, a intenção e o bem, o bem e a consciência do dever, segun-
do a Filosofia do Direito (VAZ, 1999, p. 395).
O momento da Eticidade compreende o exercício concreto da
vida ética ou a realização da Liberdade. Segundo Lima Vaz, Hegel re-
toma o conceito platônico-aristotélico de Bem, pelo qual a Liberdade se
quer a si mesma e que o indivíduo deve realizar como seu fim:

Desse modo, a substância ética ou o ethos é saber de si mesma


na consciência-de-si dos indivíduos que se constituem, enquanto
tais, em indivíduos éticos. Existindo na substância ética, o indiví-
duo se submete livremente ao sistema de seus deveres dando à
sua ação, ao cumpri-los, a qualidade da virtude (Tugend) e par-
ticipando, assim, do universo ético dos costumes (Sitten). Tal é o
indivíduo ético que será propriamente o sujeito concreto dos mo-
mentos da Eticidade. (VAZ, 1999, pp. 396-397).

No momento singular da Eticidade (Sittlichkeit), síntese entre o


Direito abstrato e a Moralidade, Hegel, de fato, está pensando na re-
alização da Ideia do Bem platônica “tanto na vontade refletida em si
mesma como no mundo exterior, ou seja, nos outros sujeitos” (VAZ,
1999, p. 397). A Eticidade hegeliana retrata o ethos clássico enriquecido
pela experiência cristã do livre-arbítrio e da consciência moral e pela
experiência moderna da sociedade civil, ao compreender a Liberdade
como concretamente realizada.
A dialética da Eticidade segue um ritmo ternário: Família, Socie-
dade Civil e Sociedade Política ou Estado:

A Família ou o Espírito natural correspondem à lógica do Ser, a


Sociedade civil ou o Espírito em sua cisão e aparição (Erscheinung)
correspondem à lógica da Essência, o Estado enfim ou o Espírito
em sua liberdade objetiva e universal corresponde à lógica do Con-
ceito. (VAZ, 1999, p. 397).

Esses três momentos dialéticos retratam o processo crescente na


consciência de liberdade nos níveis individual e comunitário. A experi-
ência familiar retrata a participação do indivíduo no universal abstrato

315
Maria Celeste de Sousa

ou num “ethos enraizado imediatamente na Natureza”. A experiência


social particulariza o indivíduo, fazendo-o separar-se da imediatez na-
tural familiar pela reflexão sobre o ethos dividido entre o “sistema das
necessidades” e a “regulação desses interesses pela administração da
justiça (privada) com seus instrumentos”. E a experiência política efe-
tiva a síntese entre a universalidade abstrata e a particularidade moral,
pela singularidade concreta, em que o indivíduo “reencontra a univer-
salidade agora na forma da singularidade de seu existir como indivíduo
universal: universalidade concreta do indivíduo como cidadão” (VAZ,
1999, p. 398).
A Filosofia do Espírito Objetivo expressa, por conseguinte, a reali-
zação da Liberdade, ou do Espírito no tempo em seus momentos dia-
leticamente articulados, e, como as razões da Liberdade são sempre
normativas, a Filosofia do Espírito Objetivo é, essencialmente, uma Ética.
Para Hegel, a realização do conceito do Espírito prático - a Liber-
dade - na história, não é, contudo, o fim da ação do Espírito, porque
“o conceito do Espírito tem sua realidade no Espírito”, por conseguinte,
a inteligência não se prende à finitude histórica, mas eleva-se para o
“Espírito enquanto Espírito”, ou para o Espírito Absoluto.
Com a filosofia prática hegeliana chega a seu termo o paradig-
ma ético iniciado por Platão, que tinha como fundamento a Razão, en-
quanto totalidade do real, em que o agir humano, essencialmente livre,
só era pensável dentro da unidade de um pensamento que englobe o Todo
da realidade e que permitisse, ao sujeito da ação - ao homem histórico –
referir a essa realidade que o transcendia o fundamento de suas normas
e nela descobrir seus fins. (VAZ, 1999, p. 403).

3. A Liberdade para o Bem em Lima Vaz

Filósofo do século XX, Henrique Cláudio de Lima Vaz não se


intimida com a desconstrução cultural desenvolvida pelas teorias de
Nietzsche, Freud ou Marx, não participa de nenhum “modismo” filo-
sófico, mas permanece firme na trilha aberta pela filosofia desde Só-
crates. Ele é herdeiro desta tradição que faz da Razão uma crítica e
uma norma para a conduta humana individual e social e, como Platão
e Hegel relaciona filosofia e cultura. Ele está atento ao pragmatismo

316
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo com Platão e Hegel)

e ao processo ininterrupto e demolidor do sentido da vida espiritu-


al no contexto hodierno, vislumbrando o estado crescente de anomia
em todas as instâncias existenciais, cujas consequências são os graves
problemas característicos de uma sociedade em crise de seus valores e
de seus fins, o que torna problemática, mais uma vez, a relação entre a
liberdade e o Bem.
Consciente da gravidade desta crise antropológica e ética ele se
propõe questionar o niilismo metafísico e ético, e construir a exemplo
de Platão e Hegel, um sistema que demonstre os conceitos ontológicos
da tradição: a metafísica do Bem, a racionalidade prática, a personali-
dade moral e o exercício da cidadania na vida comunitária. Seu proje-
to filosófico é, então, descortinar as razões fundamentais do Ethos por
meio de uma dialética que mostre “a teleologia imanente à Razão prá-
tica para o Bem como forma primeira do agir ético e fonte primeira da
obrigação moral” (VAZ, 2000, p.146) e, assim, educar as novas gerações
sobre as razões de viver.
Sua teoria se encontra na obra Introdução à Ética Filosófica II, sub-
dividida em duas unidades estruturais: o agir ético e a vida ética, onde
ele reflete sobre os subsistemas relacionais em uma ideia unitária e
sistemática do agir e viver humanos, encontrando na práxis, as caracte-
rísticas de um sistema aberto, já que a ação do homem se fundamenta
nos princípios causais da razão e da liberdade. Ele afirma:

É justamente na práxis ética que a interrelação dialética entre razão


e liberdade e abertura do ato à universalidade do dever-ser ou, em
termos éticos, a relação da consciência moral com o Bem definem
o invariante fundamental da vida ética que assegura, a um tempo,
a permanência do agir ético e a possibilidade de sua integração na
ordem racional de um sistema aberto.” (VAZ, 2000, p.15).

Este invariante conceptual é o conceito de Ethos, horizonte que


compreende as experiências cotidianas que se oferecem diretamente
à compreensão de nossa razão e às opções da nossa liberdade. É esta
realidade humana, que implica a relação entre a liberdade e o Bem que
lhe compete pensar. Semelhante a Platão, ele afirma a impossibilidade
de se fechar o sistema apenas com as razões do Ethos particular e apon-
ta para “a necessidade de se transgredir as fronteiras noéticas do ethos

317
Maria Celeste de Sousa

e abrir-se a uma fundamentação última de natureza metafísica” (VAZ,


2000, p.16) e, semelhante a Hegel ele evidencia estes invariantes ônticos
por meio do movimento dialético reconstruindo, em consequência, a
forma simbólica que assegura o sentido para o agir ético individual e a
vida ética comunitária em qualquer agrupamento humano.
Na primeira parte de sua teoria, ele discorre sobre a estrutura do
agir ético demonstrando o movimento da razão prática pela passagem
do dado à forma nos momentos lógicos da universalidade, particulari-
dade e singularidade, qualificando o agir como um actus humanus. Na
segunda parte, ele reflete sobre a razão prática na vida ética ou sobre a
existência ética concreta individual e comunitária, ordenando as cate-
gorias que integram a inteligibilidade da práxis ética e da existência
por ela determinada como forma de vida.
Esta unidade temática sobre a vida ética subdivide-se, por sua
vez, em três partes, nas quais Lima Vaz verifica teoricamente a estru-
tura conceptual subjetiva, intersubjetiva e objetiva, demonstrando que
sua unidade obedece a um princípio unificador, ou seja,

a práxis humana na forma da Razão prática e regida por invarian-


tes ônticos que a constituem como tal, independentemente das
particularidades históricas, culturais, conjunturais ou individu-
ais que condicionam seu exercício. (VAZ, 2000, p.7).

A justificativa da Liberdade para o Bem constitui a finalidade do


labor filosófico vaziano no conjunto arquitetônico de seu pensamento
ético, no entanto, devido ao limite deste artigo, vamos discorrer priori-
tariamente, sobre o silogismo prático presente na estrutura subjetiva da
vida ética, onde ele demonstra a dinamicidade da razão prática na inter-
relação entre estes dois conceitos fundamentais da vida ética. Esta es-
trutura corresponde ao primeiro momento da lógica-dialética de Lima
Vaz, ou seja, ao momento da universalidade.
É conforme a tradição hegeliana que ele inicia o processo
reflexivo pelo momento lógico da universalidade, espaço temporal
onde acontecem as primeiras expressões da razão prática e institui

um domínio de inteligibilidade fundamental do qual o Ethos,


como estrutura constitutiva da natureza humana no seu acon-
tecer histórico, recebe uma ‘unidade de significação’ e pode-se

318
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo com Platão e Hegel)

tornar objeto não só desse saber específico, o saber imanente da


práxis humana como tal (saber ético) do qual provêm a Ética, mas
igualmente das ciências humanas que empreendem, pressupon-
do esta unidade de significação, um estudo comparativo das di-
ferentes tradições éticas. (VAZ, 2000, p.142).

Esta forma universal transcende as particularidades históricas


das diversas éticas existentes no mundo e justifica logicamente a pos-
sibilidade racional da existência de um quadro de valores que rege e
ordena a práxis humana segundo o Bem. Lima Vaz exemplifica a partir
da práxis subjetiva que esta condição de possibilidade universalmente
contemplada expressa a ordenação intencional constitutiva da Razão
prática em direção ao Bem como fim do seu agir.
Esta teleologia imanente na razão prática a faz transcender os ele-
mentos contingentes em vista de um fim, e isto justifica a existência
histórica do Ethos, atitude que supera as outras duas possibilidades
interpretativas do agir humano, isto é, a submissão da práxis ao con-
vencionalismo social ou ao determinismo da natureza.
Lima Vaz concorda com os filósofos clássicos de que a Razão é o
aspecto diferencial entre o homem e os outros seres da natureza, seja
em razões do fazer, que lhe confere melhor qualidade de vida pela fa-
bricação dos instrumentos necessários ao domínio da natureza, seja
em razões do agir, pelo qual ele cria os

primeiros sistemas simbólicos na forma de crenças e costumes,


como tentativas de respostas à inquietação que nasce da posse da
própria razão e alimenta a interrogação sobre o sentido da vida.
(VAZ, 2000, p.144).

Já que “viver é o existir para o vivente”, como afirma Aristóteles,


a vida ética é a expressão da vivência dos indivíduos das razões pre-
sentes no Ethos, realidade histórica onde se dá a relação entre essência
e existência, uma vez que o agir humano e o hábito recebem do Ethos
o seu conteúdo em normas, valores e fins e, o Ethos recebe da práxis o
seu existir concreto.
Lima Vaz descortina, assim, a estrutura ternária da atividade
pensante, que desde o início do desenvolvimento do homo sapiens orien-
ta o pensamento, ou seja,

319
Maria Celeste de Sousa

a intercausalidade entre o elemento abstrato (por exemplo, um


sistema de regras), o ato concreto do sujeito no qual o pensamen-
to abstrato passa a existir como forma desse ato, e a permanência
dessa forma numa nova forma de vida. (VAZ, 2000, p. 146).

E ele constata que é

a forma do Ethos que liberta a vida ética do indivíduo tanto do


simples arbítrio quanto do domínio que sobre ele podem exercer
fatores condicionantes do seu agir seja intrínsecos, como as pul-
sações afetivas, seja extrínsecos como pressões sociais, culturais
e outras. (VAZ, 2000, p. 146).

Ele justifica, portanto, a importância da ciência da Ética, nos dias


atuais e afirma que seu objetivo é identificar os invariantes conceptuais ou
as categorias que mostram o fio inteligível de uma vida sensata e defi-
nem a identidade na diferença das suas manifestações históricas. Lima Vaz
demonstra a circularidade dialética da vida segundo o Ethos ou o Bem,
pelo movimento lógico: da virtude, da situação e do existir ético.
No primeiro momento da dialética, ele retoma da tradição a ideia
de que a Virtude é a categoria universal que qualifica o exercício da
Razão prática na vida ética individual, já que ela expressa o movimento
interativo entre o Bem (agathon) e o indivíduo que assume o bem como
forma de viver e, ao mesmo tempo, ele é o horizonte universal ao qual
a pessoa direciona a sua ação. É um movimento progressivo entre o
estático (o homem bom) e o dinâmico (crescimento contínuo no Bem),
que caracteriza a vida prática já que esta nada mais é do que uma vida
segundo a virtude, ou uma vida direcionada para o fim o Bem, na dife-
rença qualitativa dos múltiplos bens que se oferecem ao indivíduo ao
longo da vida.
Como mediania entre a carência e o excesso, a Virtude expressa a
difícil tarefa da educação moral, porque ela “é uma posse permanente
do sujeito ético, operando, porém, de sorte a torná-lo sempre outro
na diferença com que tende a realizar sempre melhor a enteléqueia
ou a perfeição da sua orientação para o Bem.” (VAZ, 2000, p. 146).
Por conseguinte, a vida segundo o Bem é a forma mais elevada da
vida humana, a essência da resposta socrática à exortação de Píndaro:
torna-te o que és!

320
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo com Platão e Hegel)

O segundo momento da dialética denominado de situação se


constitui o elemento mediador, em que a Virtude enquanto potência
ativa se concretiza no existir ético. Este existir manifesta-se como a pas-
sagem do livre-arbítrio à liberdade em que o sujeito ético se identifica
com o Bem como fim de sua vida, e também com o aprofundamento
progressivo da consciência de moralidade em que o sujeito assume a
sua personalidade moral.
O terceiro movimento é o ato singular da decisão que “concretamen-
te se insere numa sucessão de atos que tecem a vida ética do indivíduo”
(VAZ, 2000, p. 167). A vida ética se caracteriza como a forma em que o
indivíduo ético realiza-se como ser moral, ou como um ser virtuoso.

Sendo vivida, a vida ética é um crescimento, e sendo vida no


bem é um crescimento no qual se cumpre a ordenação ontológica
do ser humano racional e livre, para o fim que é o bem. (VAZ,
2000, p.167)

Por conseguinte a vida ética expressa a primazia metafísica do


Bem sobre as experiências que a pessoa vive historicamente no mun-
do da vida, pois se ela vive eticamente, este modo de viver tem como
causa a Razão prática, ou o fio condutor da racionalidade livre do agir
ético que emerge do turbilhão das condições empíricas por meio do
“juízo de decisão, como ato do sujeito racional e livre, na sua especifi-
cidade ética.” (VAZ, 2000, p.167)
Lima Vaz enfatiza também os dois movimentos que constituem
o núcleo inteligível do existir ético que são a liberdade moral e a per-
sonalidade moral. Ele diferencia, primeiramente, o livre-arbítrio de
liberdade, situando pela aporética histórica a forma como este dado se
constituiu ao longo do tempo. Ele afirma que a primazia da liberdade
sobre o livre-arbítrio é um tema que inicia com Sócrates quando apon-
ta o finalismo do Bem sobre o poder de cada um fazer o que quiser e
sugere “a adesão constante ao Bem na qual consiste propriamente a
liberdade.” (VAZ, 2000, p.168).
Esta intuição foi assumida pelos estoicos, por Plotino e é enri-
quecida por Agostinho que insere o “caminho da liberdade na dialéti-
ca do uso e fruição (uti-frui), ao transfundir a sabedoria no amor passando
a definir a virtude como ordo amoris.” (VAZ, 2000, p.169). Tomás de

321
Maria Celeste de Sousa

Aquino amplia o tema pela formulação de uma antropologia da liberdade


pela qual o aquinate difere entre voluntas e liberum arbitrium na uni-
dade da mesma potência ativa, isto é, a vontade. Esta tende à “adesão
imediata ao bem desejado como fim, na qual se realiza a liberdade. ao
passo que ao livre-arbítrio cabe a escolha dos meios. (VAZ, 2000, p. 169).
Com a primazia do sujeito sobre o ser, característica da moder-
nidade de Descartes a Kant, a liberdade passa a ser considerada como
forma superior do simples livre-arbítrio. Desenvolve-se, então uma
metafísica da liberdade que culmina na filosofia hegeliana, que até os
dias atuais é uma referência para o debate sobre os problemas da liber-
dade, seja nos aspectos metafísicos, como nos ético-políticos.
Após esta rememoração, Lima Vaz define a vida ética como o
“progresso ou crescimento na liberdade, na livre adesão ao Bem.” (VAZ,
2000, p.170). Isto significa o processo pelo qual o sujeito passa da inten-
cionalidade abstrata para a ação concreta na formação de uma identi-
dade intencional,

definida pela homologia Razão prática=Bem. A segunda é uma


identidade dinâmica e se exprime na tendência Razão prática –
Bem. Ela se realiza progressivamente na sucessão dos atos do li-
vre-arbítrio (juízos de decisão) cujo objetos são os bens particulares
circunscritos pela situação do sujeito, e como tais, apresentando-
-se apenas como meios ou condições no exercício da Razão práti-
ca. (VAZ, 2000, p. 170).

Estes atos são, por sua vez, suprassumidos no movimento da Ra-


zão prática, pela qual o sujeito assume a sua identidade intencional
com o Bem como Fim. “Tal é a vida ética como liberdade realizada, ma-
nifestando-se na constância e progresso de uma vida virtuosa.” (VAZ,
2000, p. 170.)
Sobre o segundo movimento da vida ética que se constitui da
passagem da simples identidade ética ou consciência moral para
a ipseidade ética ou intensidade reflexiva mais intensiva do ato da
consciência moral como ato da pessoa, ou processo permanente da
personalidade moral efetivando a interrelação entre essência e exis-
tência. Ele afirma: “do ponto de vista antropológico o ser humano
é essencialmente pessoa. Como pessoa é constitutivamente um ser
ético.” (VAZ, 2000, p. 171).

322
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo com Platão e Hegel)

A pessoa é motivada intencionalmente, a tornar-se o que ela é,


uma personalidade moral, tarefa sempre recomeçada em meio às condi-
ções adversas em que ela está situada. É por isso que Lima Vaz constata
que a personalidade moral é a forma da vida ética e é ela que assegura a
identidade na diferença dos atos do sujeito, pois ela se expressa como o
dinamismo que perpassa todas as atividades do sujeito.
O núcleo de todo este movimento formador é a consciência mo-
ral. Lima Vaz afirma ainda um último passo para a definição da singu-
laridade da vida ética pelo progresso da consciência moral como ato,
à semelhança do pensamento tomásico, quando Tomás de Aquino re-
fletiu sobre o juízo judicativo, a saber: a consciência moral desdobra-se
sobre si mesma na constituição de sua identidade moral estabelecendo
a diferença vivida no processo de sua formação moral. Este é o proces-
so que conduz à constituição da liberdade para o Bem.
Conclui-se mostrando a circularidade do silogismo ético que
parte do momento abstrato da universalidade da virtude que se par-
ticulariza na situação pela decisão livre do sujeito em constituir sua
personalidade moral, como uma vida segundo o Bem. A vida éti-
ca deve ser vivida, portanto, segundo os parâmetros da: elevação da
indeterminação do livre-arbítrio à determinação caracterizada pela
sempre mais profunda adesão ao Bem; e o progresso na formação da
personalidade moral atestado pelo exercício sempre mais exigente da
consciência moral.

4, Conclusão

Depois da apresentação demonstrativa destes três tipos de filo-


sofias sobre a relação entre a Liberdade e o Bem, chega-se às seguintes
constatações:
Elas são filosofias relacionadas com o tempo, e como todo pen-
samento autêntico, elas são progressivas e criadoras. Platão, Hegel e
Lima Vaz se assemelham na afirmação de que a filosofia vive em pri-
meiro lugar da força da tradição, da consciência de uma continuidade
viva com o passado, mas ela também aponta para a necessidade de
inquirir sobre as aporias reais que suscitam o espírito na pesquisa por
soluções para problemas que permanecem na aventura existencial hu-

323
Maria Celeste de Sousa

mana. Trata-se das grandes questões sobre o ser, o sentido e a ética.


Elas incitam a filosofia a se reinventar para recriar horizontes significa-
tivos à luz de um logos que julga, demonstra, ordena e unifica.
Os três modelos convergem para a afirmação de que é no nível
metafísico que se encontra a resposta para a conciliação entre a neces-
sidade do Bem que emerge do discurso da razão e a liberdade do agir.
E eles convidam ao exercício inteligível não apenas como um exercício
intelectual, mas como estilo e regra de viver, como afirma Hegel: “a
filosofia pensa o que é, pois o que é, é a Razão.” O que é não é a vio-
lência, a corrupção, o poder desregrado, a morte, ou qualquer tipo de
força que se impõe momentaneamente na vida das pessoas.
Lima Vaz, ao recriar a tradição ontológica da ética e ao restabele-
cer a vida segundo o Bem descortina, para o homem contemporâneo, a
estrutura ternária da atividade pensante, como ele afirma na Introdução
à Ética Filosófica III, p. 146: “a intercausalidade entre o elemento abstrato,
o ato concreto do sujeito no qual o pensamento abstrato passa a existir
como forma desse ato, e a permanência dessa forma numa nova forma de
vida.” Ele ensina a tarefa inalienável de cada sujeito sobre a conquista de
seu próprio ser, por meio do longo processo de autoconhecimento em
que ele experimenta a passagem do dado natural à forma expressiva de
sua humanidade, tarefa realizável somente no nível do espírito.
A ética pessoal vaziana é um convite para que o homem contem-
porâneo redescubra o sentido da vida ética como um crescimento na li-
berdade, já que ela é uma passagem da intencionalidade abstrata para
a ação concreta pela mudança progressiva dos atos do livre-arbítrio em
atos racionais. Tal é a vida ética como liberdade realizada, manifestan-
do-se na constância e progresso de uma vida virtuosa. Lima Vaz moti-
va o sujeito, enfim, a experimentar a passagem da simples identidade
ética ou consciência moral para a ipseidade ética ou viver segundo a
reflexão mais intensiva do ato da consciência moral interrelacionando
essência e existência, uma vez que o sujeito é essencialmente uma pes-
soa e, como pessoa, ele é constitutivamente um ser ético.

324
A liberdade para o bem
(Abordagem vaziana sobre a vida ética em diálogo com Platão e Hegel)

Referências

LIMA VAZ, H. C. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993.
_____. Escritos de Filosofia III: filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997.
_____. Escritos de Filosofia IV: introdução à ética filosófica I. São Paulo: Loyola,
1999.
_____. Escritos de Filosofia V: introdução à ética filosófica II. São Paulo: Loyola,
2000.
_____. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1993.
_____. Ética e Direito. Organização e introdução de Cláudia Toledo e Luiz
Moreira. São Paulo: Loyola, 2002.
_____. Platão revisitado: ética e metafísica nas origens platônicas. Síntese Nova
Fase, Belo Horizonte, CES: Loyola, v. 20, n. 61, p. 181-197, 1993.

325
As Conferências de 1804 de Fichte diante do
sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

Luciano Carlos Utteich


Universidade Estadual do Oeste do Paraná

I. Introdução

No Escrito da Diferença de 18011 Hegel fez um apanhado de críti-


cas ao modo de pensar transcendental do sistema de Fichte, essencial-
mente à Fundamentação completa da Doutrina da Ciência de 1794 (Grundla-
ge der gesammten Wissenschaftslehre).2 Contemporaneamente, Ludwig
Siep examinou de modo exaustivo essas objeções3, tendo constatado
que elas se mostraram problemas centrais, os quais Fichte resolveu nas
Conferências de Berlim (Doutrina da Ciência de 1804, segunda exposição)4.


1
HEGEL, G. W. F. Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen Systems der Philosophie in Beziehu-
ng auf Reinhold’s Beyträge zur leichtern Übersicht des Zustands der Philosophie zu Anfang des neun-
zehnten Jahrhundertes, I Heft. Jenaer Schriften 1801-1807. Werke 2. Frankfurt a.M., Suhrkamp,
1970, 62 (p. 70). (= Differenzschrift). Em espanhol: Diferencia entre los sistemas de filosofía de Fichte
y Schelling. Trad. Maria del Carmen P. Martín. Madrid: Tecnos, 1990. (= DSFSch).

2
FICHTE, J. G. Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre. In: Fichtes Werke. Berlin: Walter
de Gruyter & Co., Vol. I, 1971. (= GWL) (A Doutrina da Ciência de 1794 (Grundlage der ge-
sammten Wissenschaftslehre). In: FICHTE, J.G. A Doutrina da Ciência de 1794 e outros escritos.
Trad. R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1972, pp. 35-176). (= DdC 1794).

3
SIEP, Ludwig. Hegels Fichtekritik und die Wissenschaftslehre von 1804. München: Karl Alber
Freuburg, 1960. (= HFK).

4
FICHTE, J. G. Die Wissenschaftslehre. Zweiter Vortrag im Jahre 1804. Felix Meiner: Hamburg,
1986. (= WL 1804-II). No espanhol, Doctrina de la Ciencia. Exposición de 1804. Trad. Juan Cruz
Cruz, Pamplona, 2005. (DdC 1804).

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 326-347, 2015.
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

Durante o desenvolvimento de todo seu pensamento, os elementos da


crítica de Hegel à Fichte permaneceram ancorados, de modo inalterá-
vel, principalmente na avaliação da Doutrina da Ciência de 1794, tendo
ficado desconhecido para ele a mudança crucial das exposições se-
guintes de Fichte5, que consumaram sua perspectiva filosófica tardia.
Concernente ao desenvolvido na Doutrina da Ciência de 1804,
esta exprime uma perspectiva que se mostra inteiramente imune às
críticas expostas no Differenzschrift.6 A fim de conduzir esse ponto a
uma maior elucidação, enfatizamos mediante um contraponto das
objeções de Hegel à Doutrina da Ciência (1794) no Differenzschrift, refe-
rente à questão do sistema posta por Hegel e Schelling, visando con-
trastar essa noção à base de algumas considerações adiantadas da
Doutrina da Ciência de 1804, auxiliados na interpretação de Siep e nas
próprias Conferências de Berlim de 18047.
Numa breve contextualização, para Hegel e para Schelling8 a no-
ção de sistema presente no texto fichtiano não correspondia ao que de-

5
Segundo Siep, pode ser tomada a exposição de Fichte, realizada por Hegel na História da Fi-
losofia, como um resumo da crítica a Fichte. Apesar de dedicar um parágrafo em sua História
da Filosofia para O novo Sistema transformado de Fichte, Hegel não se ocupou da filosofia do
Fichte tardio. Ele identifica as exposições de Fichte do Sobre a Destinação do Douto (1794) e o
conteúdo do livro Fé (Glauben), do A Destinação do homem (1800), criticadas em Glauben und
Wissen (1802). Cf. SIEP, HFK, p. 45.

6
Segundo Helmut Girndt (La critique de Fichte par Hegel dans la “Differenzschrift” de 1801.
In: Archives de Philosophie. Paris: Janvier-Mars, 1965, pp. 37-61), o conteúdo verdadeiro da
filosofia transcendental fichtiana se conservou encoberto devido ao preconceito de que o
modelo transcendental se coadunava com um Idealismo subjetivo, sendo por isso urgente
revisá-lo atualmente. Contemporaneamente, muitos intérpretes compartilham a proposta
de correção da avaliação de Hegel e seus comentadores (R. Kroner, Bloch e outros) de que
a filosofia transcendental de Fichte seria uma filosofia subordinada e como que um degrau
na concepção do Idealismo absoluto de Hegel. Para citar alguns: cf. JANKE, Wolfgang. Die
dreifache Vollendung des Deutschen Idealismus. Schelling, Hegel und Fichtes ungeschriebene Lehre,
2009; WIDMANN, Joachim. Die Grundstruktur des Transzendentalen Wissens, 1977; VILLA-
CAÑAS, José L. La Filosofía del Idealismo alemán, s/d; FERRER, Diogo. O Sistema da Incomple-
tude. A Doutrina da Ciência de Fichte de 1794 a 1804, 2014.

7
Até o momento de sua morte em Berlim, em 1814, Fichte não havia publicado mais as exposi-
ções científicas de sua filosofia, mas apenas obras populares, como preleções sobre a filosofia
da religião (Exortações à vida bem-aventurada (Anweisung zur seligen Leben, 1806), Os Caracteres
da Idade Contemporânea (Die Grundzüge des Gegenwärtigen Zeitalters (1804-5) e os Discursos à
nação alemã (Reden um die Deutschen (1807-8).

8
Devido ao vínculo de Hegel à perspectiva do Idealismo de Schelling no período, segundo
Lauth (Hegels spekulative Position in seiner “Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen Sys-
tems der Philosophie” im Lichte der Wissenschaftslehre, 23-24), se extrai das objeções de Fichte à
exigência de Schelling (Naturphilosophie) uma resposta válida também às objeções de Hegel
no Differenzschrift.

327
Luciano Carlos Utteich

via ser o autêntico sistema, segundo a autonomia da razão (Vernunft).


No dizer de Hegel, na exposição da primeira Wissenschaftslehre o sis-
tema de Fichte tinha se mostrado refratário à produção (feedback) da
liberdade, enquanto nele, “(...) a liberdade não consegue no sistema se pro-
duzir a si mesma (...)”9 e, em consequência de tal carência, “(...) o princípio
da identidade [Eu = Eu] não se torna princípio do sistema”10, tratando-se
por fim antes só de uma “(...) liberdade [que] não se encontra como razão
(Vernunft), mas antes como ser racional [Vernunftwesen](...)”11.

II – A posição transformada nas Conferências de Berlim (1804)


Apesar de compreender relativa à noção de sistema uma apresen-
tação diferente da Doutrina da Ciência de 1794, os pontos essenciais da
exposição de 1804 não são idênticos nem se correspondem aos critica-
dos por Hegel no Differenzschrift. Da mesma forma, a solução de Fichte
a tais problemas, apontados de certo modo antes, está separada por
diferenças decisivas das soluções propostas pelo próprio Hegel, tanto
no Differenzschrift como em outros escritos. Visando tocar nas questões
cruciais da modificação na concepção de sistema por meio da posição
transformada da Doutrina da Ciência de 1804 em relação à Wissenschafts-
lehre de 1794, expomos isso, de modo sucinto, resumidos em três pon-
tos fundamentais, que são:
a) a superação do Eu puro como princípio absoluto12;
9
HEGEL, Differenzschrift, 67; DSFSch, p. 76.
10
HEGEL, Differenzschrift, 94; DSFSch, p. 111.
11
HEGEL, Differenzschrift, 82; DSFSch, p. 96. Diz Hegel: “Que o mundo é um produto da liber-
dade da inteligência é um princípio explícito do idealismo; e, se este princípio não foi construí-
do como sistema, pelo idealismo fichtiano, a razão disso se acha no caráter com que a liberdade
se apresenta nesse sistema.”(65-66; p.74). Mas somente se a liberdade se apresentasse de outro
modo, ela conseguiria “no sistema produzir-se a si mesma”(67; p. 76). Enquanto isso “o re-
sultado do sistema não retorna a seu começo”(68; p. 77). Na Doutrina da Ciência de 1794 Fichte
apresentou o Eu=Eu como princípio absoluto; para Hegel, tal princípio “(...) é uma identidade
que não é revelada pelo sistema.” (56; p. 62). A respeito dos três princípios (Eu absoluto, Eu
e Não-Eu), Hegel diz: “(...) eles expõem três atos absolutos do Eu; e são [ainda] só princípio
ideais”(p. 63). No sistema “(...) o Eu não se torna sujeito=objeto ele mesmo, se o Eu põe só as
coisas ou a si mesmo, se põe só um dos termos ou inclusive ambos ao mesmo tempo, mas se-
parados” (63; p. 70-1); “O subjetivo é em verdade sujeito=objeto [subjetivo], mas não o objetivo
e, por conseguinte, o sujeito não é igualmente objeto”(63; p. 71).
12
Como observa Omine, Fichte passa a evitar a partir das Conferências de Berlim o ponto de vista
da Egoidade (Ichheit), pelo fato de ela ser justamente aquilo “(...) que deixa nascer a oposição
(Gegensatz) entre a consciência e seus objetos” e que colocaria dificuldades à intelecção do Ab-
soluto. Cf. OMINE, A. Das Verhältnis des Selbst zu Gott in Fichtes Wissenschaftslehre, p. 331.

328
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

b) o término do dualismo dos princípios (Eu/Não-Eu); e


c) a nova concepção de sistema.13
Interessa recordar por primeiro a aporia que havia resultado, de
modo intrínseco, da estrutura e formulação da primeira Doutrina da
Ciência (1794), relativa à incongruência entre o primeiro princípio e o
sistema. Fichte exprimiu lá esse princípio, visando produzir o princí-
pio absoluto da razão, a partir de uma exigência formalista, de algo (o
Absoluto) a ser mantido de modo ideal e potencial, expresso pelo prin-
cípio da autoconsciência (o princípio “Eu sou”), cuja inabarcabilidade
(pelo fato de se tratar de uma “Tathandlung”, de um pensar fundado
numa ação originária) tornaria o princípio de valor a ser adotado para
princípio ao mesmo tempo do sistema. E, em sua efetividade, essa exi-
gência formalista acabava por promover, entretanto, um resultado pa-
radoxal: enquanto constitutiva do primeiro princípio, ela foi colocada
como dependente de um aspecto do princípio “Eu sou”, a saber, que
esse princípio reduzisse todo o dado14 a um ato espontâneo do Eu. A
seguir, por ter sido colocada sob essa dependência, a Doutrina da Ciên-
cia inteira então tem de se justificar assim: ela se mostra fundada sob a
tarefa (Aufgabe) de alcançar as camadas mais profundas da experiência,
sem nunca poder se deparar nisso com o puro dado.
Como principal consequência, a Wissenschaftslehre funda só o
pressuposto de que a consciência (Bewusstsein) podia ser mostrada
como fenômeno post-factum em que, no desdobramento dos atos cons-
titutivos da autoconsciência (Selbstbewusstsein) com vistas ao sistema
(Wissenschaftslehre), tinha de ser imputado a tal princípio uma subor-
dinação retroativa àquele elemento formalista, do primeiro princípio

13
Visto que a partir do desenvolvimento dos dois pontos (a e c) se pode subentender o “tér-
mino do dualismo dos princípios”, limitamo-nos a expor somente esses dois pontos como
principais. Nossa abordagem segue aqui à exposição de Ludwig Siep, Hegels Fichtekritik und
die Wissenschaftslehre von 1804, Dritter Teil, pp. 87-94.

14
A partir do Fichte maduro, segundo Asmuth, a filosofia transcendental trata de mostrar que
a realidade perde o caráter de “dado”, enquanto visa fundamentar “porque o mundo se nos
aparece como dado” à base de uma concepção mais além do idealismo e do empirismo. Isto é,
sem advogar um idealismo construtivista, “segundo o qual o mundo é o que nós temos feito
dele, Fichte defende antes um realismo reflexivo, de acordo com o qual o mundo é como é
[mas que], porém, nós podemos conhecer além disso a partir de que fundamento ele existe
e porque nós devemos transformá-lo”. Cf. ASMUTH, C. El carácter visual fundamental
de todo conocimiento. Teoría de la imagem y teoria perspectivista en Fichte. In: Revista de
Estud(i)os sobre Fichte, 6, (2013), 2013, p. 6.

329
Luciano Carlos Utteich

como autoexigência da razão, cuja efetividade era manifesta apenas


num nível ideal.15
Após os acontecimentos do Atheismusstreit (1798-99)16 o conteúdo
intrínseco do primeiro princípio começa a sofrer uma transformação,
cuja mudança se faz sentir no debate travado nos dois últimos anos das
correspondências (1800-1802) com Schelling, por meio de uma termino-
15
Hegel alega nessa tarefa ter Fichte tentado “(...) fazer uma filosofia na qual nada de empírico seria
recebido do exterior.” Cf. HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie,
III. In: ___. Werke [in 20 Bänden]: Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, 392.

16
Se a querela do ateísmo afetou diretamente as concepções de Fichte, alcançaram indiretamente
a Schelling, que com base nisso encontra a oportunidade de manifestar sua discordância em
relação ao fundamento das teses da Doutrina da Ciência, endossada na tomada de posição na
carta de 3 de outubro de 1801. Na sua Religionsphilosophie, Fichte separa internamente saber e
ser absoluto e defende as tarefas da especulação como tendo de ser separadas das questões
da Religião. Por sua vez, visando concretizar a perspectiva de assentar a Naturphilosophie para
fundamento da Wissenschaftslehre fichtiana, na carta de 19 de novembro de 1800 Schelling diz
a Fichte: “Naquilo com o qual não estou de acordo [com você] e que, não obstante, se trata de um ponto
essencial (por exemplo, na teoria da religião), creio que ainda não cheguei a entendê-lo”. cf. Fichte-
-Schelling Briefwechsel. Hrsg. Walter Schulz, Frankfurt, Suhrkamp, 1968, 111 (= FSCHBW);
e da versão cuidada da tradução de Hugo Ochoa, Fichte-Schelling. Correspondencia Completa,
p. 66, acessível em: https://www.yumpu.com/es/document/view/11846205/fichte-schelling-
-correspondencia-completa-instituto-de-filosofia (= FSCC). Enquanto o elemento latente das
tarefas do projeto filosófico vindouro de Schelling, na inserção dos conceitos essenciais da Reli-
gião no interior da especulação filosófica, essa discordância condiciona um desdobramento em
dois aspectos fundamentais: 1ª) por meio dela são encontradas as condições para re-arranjar
as modificações a serem iniciadas na vinculação do Absoluto à liberdade humana (ao problema
do mal) e à Naturphilosophie. E, para apresentar essa vinculação, Schelling 2ª) se incumbe de
primeiro saldar suas diferenças finais com Fichte, mas que, à base de uma avaliação datada
sobre as teses metafísicas de Fichte, no vínculo da liberdade à Naturphilosophie amadureci-
do em obras de diferentes períodos, trará essa realização como autônoma e independente da
presumida avaliação crítica das teses de Fichte. Em vista disso, que a coerência do sistema
schellinguiano seja colocada como carecendo ser tributária da discordância com Fichte, soa
algo desnecessário. Entretanto, o propósito de “saldar as diferenças finais” com Fichte se ca-
racteriza sim desde um caráter datado e assenta aqui um elemento problemático. Pois ele se
realizará, diz Serrano, prioritariamente “(...) em confrontação com a doutrina de Fichte posterior à
polêmica do ateísmo, isto é, com a versão do chamado Fichte de Berlim, [e isso] (...) com especial atenção
aos escritos populares e em particular, à Iniciação à vida bem-aventurada (Anweisung zum seligen
Leben)”, no acerto de contas expresso na Darlegung des wahren Verhältnisses der Naturphilosophie
zu der verbesserten Fichte’schen Lehre (1806) de Schelling. Todavia, segundo Serrano, consoante
ao programa filosófico de Schelling, tem de ser pensada a Darlegung, que continuava o exposto
em Filosofia e Religião (Philosophie und Religion, 1804), em vinculo com o Escrito sobre a Liberdade
(Freiheitschrift, 1809), parecendo nesse sentido “inevitável ler estes dois [o Filosofia e Religião e o Es-
crito da Liberdade] em relação com a Darlegung, constituindo as três obras os elementos que expressam
e culminariam essa primeira maturidade” de Schelling (p.11-12, nota). Schelling se remontaria ao
programa ínsito em suas investigações desde o período no Tübinger Stift, de desenvolver uma
ética a la Espinosa, a ser pensado desde já, subjacentemente, em vinculo com o desdobramento
da Naturphilosophie. Cf. SERRANO, V. Sobre la beatitudo y el mal y la diferencia última entre Fichte
y Schelling en torno a lo absoluto, pp. 6-35.

330
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

logia que não passara despercebida a Schelling17. Num sentido específi-


co, essa modificação toca as camadas latentes do que havia sido atribuí-
do por Fichte ao Eu absoluto no texto fundacional: ele havia designado ali
ao princípio-Eu o lugar vago de um princípio de todas as coisas, ao qual
não poderia corresponder, numa investigação fenomenológica, um Eu
como lhe estando na base. Esse Eu absoluto designava apenas o ato puro
(actus purus) de uma autoposição não pensável de antemão (unvordenkli-
ch), na expressão de um rompimento (gap) entre o que é produzido (pelo
Eu) e um Eu-substrato, tomado por base ontológica dessa produção.
Enquanto lugar vago do princípio, ele só podia designar um ato puro,
como o que está além da (possibilidade de) objetificação e, em virtude
disso, toda a tentativa de se referir positivamente a este “lugar” como
fundamento de determinação, restaria de antemão malfadada.18
À base disso, relativo a esse elemento da Wissenschaftslehre (1794),
a condução de Hegel dos momentos (subjetividade e objetividade) até
uma unidade suprarreflexiva, ao avaliar o sistema transcendental de
Fichte no Differenzschrift, mostra padecer de uma referência lacunar,
já que Fichte entendia a objetividade e a subjetividade em absoluta re-
ciprocidade na subjetividade absoluta e como momentos desta; neste
sentido a objetividade se determina pela subjetividade e vice-versa19.
17
Na carta de 3 de outubro e 1801, disse Schelling: “O que agora é sua síntese suprema era, ao
menos em suas primeiras exposições, estranho, pois segundo estas a ordem moral do mundo (que, sem
dúvida, é o que você agora designa como a separação real dos singulares e a unidade ideal de todos) é
Deus mesmo; se entendo bem, este já não é o caso hoje em dia, o qual muda consideravelmente todo o
conteúdo de sua filosofia”. Cf. FSCHBW, 135; FSCC. P. 90.

18
Segundo Lore Hühn, em conexão com isso Fichte deixará subsistir intacta, na Doutrina da Ci-
ência de 1804, a separação entre o saber discursivo e a verdade meramente apostrofada (apos-
trophierten) como “verdadeira”, no horizonte do qual é possível apontar ao Absoluto só pela
negatividade (Negativität). Daí Fichte se agarrar muito conscientemente na opção de assegurar
a absolutidade do Absoluto pela exclusão de toda mediação enrijecida, não apesar, mas justo
por causa da autocontraditoriedade do que tem de se pensar aqui. Cf. HÜHN, Lore. Die Un-
aussprechlichkeit des Absoluten. Eine Grundfigur der Fichteschen Spätphilosophie im Lichte
ihrer Hegelschen Kritik. In: Hattstein, Markus (Hrsg.). Erfahrungen der Negativität. Festschrift
für Michael Theunissen zum 60. Geburtstag. Hildesheim: Georg Olms, 1992, pp. 177-201.
19
Para Girndt (La critique de Fichte par Hegel dans la “Differenzschrift” de 1801, p 43), ao contrário
de Reinhold e Bardili que compreenderam corretamente ter Fichte partido da “subjetividade
absoluta” enquanto fundamento da identidade de sujeito e objeto, em sua apresentação des-
sa noção Hegel modificou isso no Differenzschrift: em vez de ser a própria “subjetividade ab-
soluta” (Eu Absoluto) essa identidade superior, Hegel converte a subjetividade absoluta em
um “princípio” absoluto, atribuindo assim um esquecimento a Fichte, do caráter subjetivo-
-objetivo de seu princípio, e como tendo considerado só o caráter subjetivo do Eu Absoluto
por ter feito abstração de seu aspecto objetivo.

331
Luciano Carlos Utteich

Que isso tenha sido passado por alto por Hegel e por Schelling, merece
um tratamento diferenciado, o qual não é possível tratar aqui.20
Assim, o enfoque “transcendental” do sistema é marcado como
só podendo assentar num princípio que escapa à toda objetificação, de-
vido à impossibilidade de se referir positivamente a ele. No entender
de Hegel, Fichte parecia ter reconhecido o princípio-Eu como identi-
dade da subjetividade e da objetividade, mas ter se utilizado, de modo
oposto à Schelling, dele por meio do entendimento (Verstand), fixando-
-se nas oposições21, e não com a razão (Vernunft), como Schelling que
manteve o caráter racional do princípio (Eu) na exposição do seu sis-
tema. Na imputação de ser uma identidade relativa do entendimento
(ou, como mencionado na citação inicial, de ser uma “(...) liberdade [que]
não se encontra como razão (Vernunft), mas antes como ser racional [Vernunf-
twesen](...)”), portanto, desde os seres racionais singulares, isso expli-
citaria o quanto está excluído do princípio de identidade de Fichte a
não-identidade e com ela, todos os opostos.
Todavia, esse é outro aspecto da referência lacunar de Hegel à
compreensão da pretensão de sistema indicada por Fichte: se (e so-
mente se) Fichte tivesse compreendido que o princípio Absoluto de-
via “ser construído” para a consciência, então poderia vir a ser válida
tal avaliação hegeliana; porém, ocorre justo o contrário e esse tipo de
compreensão do princípio sistemático não pode ser tomado para ele-
mento base. Assim, só poderia ser imputado ao Eu absoluto (tomado
por Fichte para princípio do sistema) ser uma coisa “posta” no saber
objetivador e se encontrar nele meramente um Eu relativo, relacionado


20
Para uma exposição detida sobre os limites tendenciosos da avaliação de Hegel e Schelling
da perspectiva filosófica de Fichte, cf. LAUTH, Reinhard. Hegels spekulative Position in
seiner “Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen Systems der Philosophie” im Lichte
der Wissenschaftslehre. In: LAUTH, R. Hegel vor der Wissenschaftslehre. Akad. d. Wiss. u. d.
Literatur, Mainz. – Stuttgart: Steiner-Verlag-Wiesbaden-GmbH, 1987, pp. 9-74.

21
Observa Girndt que, para Hegel, “(...) Fichte deveria ver que a tese do primeiro princípio da
Wissenschaftslehre continha já implicitamente a antítese do segundo princípio [Não-Eu] e a
síntese do terceiro princípio. Faria assim resultar como podendo ser o verdadeiro princípio
da filosofia e seu último ponto final sistemático só a identidade absoluta como unidade (dia-
lética) de sujeito e de objeto”. Cf. GIRNDT, La critique de Fichte par Hegel dans la “Differenzs-
chrift” de 1801, p. 38.

332
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

a uma oposição formal (Não-Eu)22, caso a compreensão do princípio o


condicionasse intrinsecamente à clausura da tarefa de o mesmo “ser
construído”.
Esse impasse permanece mais ou menos o mesmo no debate
de Fichte e de Schelling: para Fichte isso denota uma ação positiva (e
ainda histórica) de, ao pensar o Absoluto por um ato-de-construção,
se referir a ele sem poder salvar a diferença (as possíveis diferenças)
enquanto o único modo correto de considerar as coisas, assentado na
abordagem refratária ao e na impossibilidade de “construir” o Abso-
luto. Contrário à Schelling, para Fichte uma abordagem só se mostra
verdadeiramente transcendental enquanto a exposição do Absoluto
(como exposição do que escapa à indicação positiva e objetiva) não
seja entendida como autoconhecimento do Absoluto. Para Fichte só
pode ser pensado, de modo legítimo, a reflexividade do Saber absolu-
to, tomada necessariamente como distinta da reflexividade do próprio
Absoluto. O Absoluto pode se tornar “sabido” como Absoluto só pela
reflexão, e essa é a principal crítica dirigida a Schelling, mas que valerá
também contra Hegel: a crítica ao acesso imediato ao Absoluto, adotado
por ambos. Isto é, não deve ser encarada a autoreflexividade do Saber
como um modo deficiente do Saber, mas antes como desempenhando
uma função central no sistema do Saber.
No Differenzschrift Hegel confirma adotar o pressuposto de
Schelling (para fundamento da relação dialógica) da passagem do Ab-
soluto no fenômeno (por um elemento particular ou uma identidade
quantitativa)23, uma vez que Schelling deixara entrar no Absoluto a
forma da finitude e do saber.24 Porém, de acordo com o modo transcen-

22
Ocorre que, ao contrário da interpretação de Hegel e de Schelling, o princípio Eu devia ser
entendido como aquele que torna “possível” a relação entre Eu e Não-Eu, entre subjetivida-
de e objetividade. Nesta direção será denominada por Fichte a Filosofia transcendental, na
Doutrina da Ciência de 1804, como a filosofia que ultrapassa a alternativa entre idealismo e
realismo. Cf. GIRNDT, La critique de Fichte par Hegel dans la “Differenzschrift” de 1801, p. 39.

23
Na carta de 3 outubro de 1801, diz Schelling: “Este Absoluto (...) existe sob a forma da dife-
rença quantitativa (isto é, a intuição, que sempre é uma intuição determinada) no singular e
na indiferença quantitativa (isto é, o pensamento) no todo”. Cf. FSCHBW, 134; FSCC. P. 88.

24
Fichte dissociou o saber e o ser de Deus (absoluto), mas Schelling (como também Hegel)
pensarão o Ser e o Saber como unificados em Deus. Em prol da Naturphilosophie, Schelling
tem como interesse e propósito tomar a Filosofia como “um conhecimento e uma ciência do
divino”(SSW I/7, 29). À base da necessidade de se contrapor ao projeto fichtiano, Schelling
avalia o pensamento de Fichte lançando sua crítica exclusivamente aos escritos de filosofia

333
Luciano Carlos Utteich

dental de “demonstrar” o Absoluto, fica indicada através disso (dessa


concessão) a anulação do que fora estabelecido para princípio pura-
mente qualitativo, da passagem do limite ao ilimitado; pois, segundo
isso não é possível encarar o verdadeiro Absoluto25, já que “(...) o Abso-
luto não seria Absoluto se existisse sob uma forma particular.”26
Exclusivamente pelo fato de que não dever se colocar o que as-
senta na esfera qualitativa (unidade qualitativa) como dependente da
esfera quantitativa, doravante na transformação do modo de conceber
o princípio do sistema, tem de se manifestar o que deve ser o funda-
mento da consciência e de suas sínteses como o domínio desde o qual
se expressa a diferença efetiva entre o real (objeto) e o ideal (sujeito), a
ser entendida, por fim, nas Conferências de Berlim, no marco da relação
reflexiva como tarefa da Wissenschaftslehre, a de conduzir à evidência
genética (esfera ontológica) toda evidência meramente fática (ôntica).

popular (Popularphilosophie), tal como o Exortações à vida bem-aventurada (Die Anweisung zum
seligen Leben, 1804). Daí busca ele extrair a totalidade de sentido do pensamento metafísico
fichtiano que, segundo Serrano, teria conduzido Schelling à opinião que o conteúdo apresen-
tado nesses escritos populares (principalmente as verdades do ponto de vista da filosofia da
Religião) traziam em suas premissas “toda a carga científica depositada nas formulações de
1801 a 1806 e nas quais Deus e o absoluto aparecem ao mesmo tempo como vida”(p.16). Mas
Serrano reconhece ainda outro lado da questão, o caráter meramente vinculatório da pos-
sível conclusão schellinguiana, segundo o qual “(...) é inegável que a apresentação popular
depende, em sua forma aplicada, das conclusões filosóficas que a precederam nas distintas
apresentações científicas e, em particular, das conclusões ali expressadas a respeito do ab-
soluto em suas relações com a filosofia”(p.16). Só que não se podem ser reduzidas todas as
conclusões metafísicas a uma obra que visava atender só uma apresentação “popular”. Ser-
rano passa isso por alto e não contrastai a “avaliação” de Schelling com a Doutrina da Ciência
de 1804. Partindo do pressuposto de que as Conferências de Berlim (1804), enquanto momento
de exposição teórica e não-popular, trazem teses conformes à exposição sistemática de con-
ceitos metafísico-transcendentais de Fichte que não são redutíveis ao veiculado nos textos
de filosofia popular, discordamos do tipo de avaliação conduzida na questão levada a efeito
por Schelling e endossada por Serrano. Para uma caracterização da função dos “escritos po-
pulares” nesse período da vida acadêmica alemã, cf. TRAUB, Harmut. Johann Gottlieb Fichtes
Populärphilosophie 1804-1806. Stuttgart – Bad Cannstatt: Frommann-holzboog, 1992.
25
Na carta de 8 de outubro de 1801, Fichte diz a Schelling: “Se você tivesse a bondade de con-
siderar [...] e ao mesmo tempo refletir acerca de como pode passar por alto (a saber, porque
acedeu ao absoluto com seu pensamento de maneira imediata, sem ter em conta que é seu
pensamento, e só ele, o que com suas próprias leis imanentes formou por meios ocultos o
Absoluto para você) você chegaria a conhecer o verdadeiro idealismo e compreenderia como
não cessa de me entender mal.” Cf. FSCHBW, 143; FSCC, p. 96.

26
Cf. FSCHBW, 143; FSCC, p. 96.

334
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

Daí que se era pensada, por um lado, a apreensão da unidade


suprarreflexiva, para Hegel, nas filosofias ocupadas em “conhecer” o
Absoluto, como unidade entre subjetividade e objetividade, unidade
(dialética) dos opostos mais altos da reflexão, que transcendia a opo-
sição de sujeito e de objeto de conhecimento, para Fichte, por outro, a
apreensão da unidade suprarreflexiva, desdobrada na exposição fun-
dacional da Doutrina da Ciência (1794) como apreendida pelas catego-
rias da reflexão (identidade e não-identidade), enquanto uma unidade
não-cognoscível pelo entendimento, se desenvolverá nas Conferências
de Berlim em um sentido semelhante à não-cognoscibilidade da uni-
dade suprareflexiva superior. Agora, porém, Fichte o faz a partir da
razão (Vernunft), em virtude da qual surge a abordagem do Absoluto
acentuado pelo modo tipicamente transcendental de pensar, compac-
tuado pela razão. A noção de sistema se esboça nessas condições pelo
vinculo do Absoluto com o Saber e do Saber com o Absoluto27, numa
compreensão inteiramente outra e, por isso, fundadora de importantes
consequências.
Vejamos os pontos essenciais nas Conferências de Berlim à noção
de sistema, à base das tarefas que apontam à transformação ocorrida
na Doutrina da Ciência de 1804.

III – A Wissenschaftslehre na perspectiva da


superação do “Eu” para princípio

Na Doutrina da Ciência de 1804 a dedução das determinações fun-


damentais do Saber (Wissen) é apresentada como não podendo mais se
realizar a partir da sintetização de dois princípios opostos. Para Hegel
o dualismo dos princípios (Eu/Não-eu) havia sido derivado do fato de
ter sido adotado o Eu-puro para princípio absoluto; e, ao mesmo tem-
po, pelo fato de tal princípio ser alimentado por uma dimensão externa
(o Anstoss), enquanto motor do desdobramento do sistema.
Na medida em que a exposição do Absoluto por Fichte, assen-
tada antes na divisão de sua unidade, não é mais demonstrável nas
Conferências de Berlim como redutível à estrutura antinômica (caracteri-
zada pela crítica de Hegel), a nulidade das seguintes objeções de Hegel

27
Para uma exposição detida sobre essa distinção, cf. ROSALES, Jacinto R. Fichte: del Yo puro
al saber absoluto (1798-1802). In: Contraste. Málaga: Univ. Málaga, s/d. Artigo no prelo.

335
Luciano Carlos Utteich

e Schelling salta aos olhos: que restara ao Eu ser tomado só no sentido


subjetivo e não-absoluto (objetivo), pelo fato de se opor a esse Eu um
Não-eu objetivo, em virtude da subsistência do Eu (formalista) para
primeiro princípio.
Com as Conferências de Berlim é superado o Eu puro (autoconsci-
ência) para princípio absoluto; isso se deve a que o Absoluto (enquanto
princípio) não é mais um membro da oposição: sua carência (Mangel)
não exige mais o complemento de um segundo princípio absoluto (o
Não-eu). Pois, ao realizar um movimento de dupla direção (nas duas
partes da texto: a primeira ascendente por meio de uma doutrina da Ra-
zão (Vernunft) e da Verdade (Wahrheit); e a segunda descendente, por uma
doutrina do Fenômeno (Erscheinung) e da Aparência (Schein)), a exposição
da vinculação de toda evidência meramente fática à evidência genética
conduz ao pressuposto de um Ser absoluto por excelência (kat exoquen).
A ascensão até este Absoluto toca por isso a três limitações crí-
ticas no modo de compreendê-lo. Estas limitações dizem respeito, se-
gundo Siep28:
1) ao conceber (Begreifen) da razão (Vernunft) como sendo limi-
tado em seu alcance, desde a perspectiva filosófica estritamente trans-
cendental, a ponto de não poder ser concebido o fundamento da pró-
pria vida do Absoluto;
2) a que a consciência, ao se compreender como “imagem”(Bild),
deve enveredar no caminho da “negação” de sua própria independên-
cia; e, por fim,
3) à intelecção absoluta (Einsicht) que, ligada ao ver (Durchschauen),
torna impossível superar em definitivo a contingência da autoconsciên-
cia, na vinculação da experiência habitual e da evidência fática.
Com respeito a esses pontos, explica Siep:
1) O conceber (Begreifen) é limitado em seu alcance pelo fato de não
poder ser concebido o fundamento da própria vida do Absoluto. Isso porque,
diz ele, a intelecção (Einsicht), no fundamento da consciência que com-
preende, necessita doravante da negação do conceito (mediação) que
coloca em relação o inteligir e o Absoluto. A evidência incompreensí-
vel do Ser Absoluto surge da “negação” do conceber (como capaz de
ser um conceber completo e total). Em vista disso é que o Ser Absoluto
não se deixa desdobrar em um sistema a partir do conceito (mediação).


28
SIEP, HFK, 87.

336
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

Desde a perspectiva do ponto de unidade entre Filosofia e Vida há


uma diferença entre a experiência transcendental (evidência genética)
e a experiência ordinária (evidência fática). Nisto a experiência do Sa-
ber absoluto significará o ver se completando dentro de si mesmo (in sich
vollendetes Sehen).29
Isso remete, por sua vez, ao segundo ponto, de acordo com o qual:
2) A consciência, ao se compreender como “imagem”, nega sua própria
independência. Isso porque ela resta agora apenas como a forma de se
entender: como o pôr-se (fático) e o negar (genético-filosófico) na auto-
reflexão da consciência, distinguida em sujeito e objeto. Aqui de modo
nenhum é deduzida do Absoluto indistinto a autoreflexão da consciên-
cia. O ver-que-se-penetra se reconhece como exteriorização dependente:
ele põe um Absoluto independente como o que está se exteriorizando
no ver (que penetra a si mesmo); todavia, este “pôr” não é um algo pré-
vio (que seria a construção de seu fundamento). Este “pôr” é o negar-
-se a si como independente, na pura intelecção (Einsicht) do Absoluto.
Nisso se mostram ligados o limitar-se e a intelecção Absoluta; para Fi-
chte o conceito (e não mais a consciência) apresenta doravante uma
riqueza em si mesmo, como figura do pensamento.30
3) A intelecção Absoluta está ligada ao ver (Durchschauen); e, em vir-
tude disso, a contingência da autoconsciência (experiência ordinária e evi-
dência fática) não é superável. Isso porque a autoconsciência não se dei-
xa deduzir por um princípio de fora de seu princípio residente, como
o-que-é (seiend) e como o sendo-assim (so-seiend) necessariamente. A
possibilidade da intelecção Absoluta pressupõe um pôr-se-a-si incom-
preensível (fático) e um negar do ver objetificante e compreendedor.
Como consequência tem se que a autoconsciência reconhece sua pró-
pria limitação, como delimitação de seu conceber (Begreifen), como um
conceber dependente (conservado só como ser-imagem e como ser-ex-
teriorização), enquanto contingência (não-dedutibilidade), diante da
evidência Absoluta de um incondicionado condicionante (bedingtenden
Unbedingten). É ultrapassada assim a autoconsciência e vem a ser por
isso fundada numa evidência que é Absoluta para ela: Fichte funda-a
no Absoluto, acessível só ao Saber absoluto, de tal modo que o próprio
Eu também é limitado neste percurso ascencional. É “no seu limite” que


29
SIEP, HFK, 88.

30
SIEP, HFK, 88.

337
Luciano Carlos Utteich

se coloca a evidência do Absoluto, e não além dele.31


Pelo fato de Fichte tornar evidente nas Conferências de Berlim, na
maior parte, a alternância entre a finitude da consciência e a possibili-
dade do Saber absoluto, resulta questionável, desde a nova concepção
do Absoluto e do sistema, o que havia sido colocado à base da ava-
liação e da crítica do Idealismo transcendental. Pois, os elementos da
filosofia de Fichte soem servir de crítica, doravante, às perspectivas de
Schelling e Hegel: desde a abordagem transcendental se entende que
a reflexividade (o subjetivo) tem de ser remetida a sua validade e é ne-
cessário, por isso, reconhecê-la em sua facticidade (o objetivo).
Segundo Asmuth, nos dois primeiros parágrafos da Exposição de
meu Sistema (Darstellung meines Systems) de Schelling se reconhece já
uma fuga dessa exigência, já que se esquivam explicitamente da remis-
são da atividade autoreflexiva da razão (subjetivo) à sua facticidade
(objetivo). Na sentença do primeiro parágrafo (“§ 1 – A razão absoluta
como indiferença do subjetivo e do objetivo”), por exemplo, vê-se isso: ela
suprime que a relacionalidade, ao mesmo tempo com a determinação da
indiferença, tem de ser entendida como posta. Em sendo assim, a razão
não teria porque ser caracterizada como Absoluta, já que a indiferença,
como representação do Absoluto, não produz (necessariamente) rela-
ção alguma com algo; ele é um puro pressuposto32.
Do mesmo modo, na segunda sentença do segundo parágrafo (§
2 – A razão é tudo, e fora dela não há nada”) surge o problema da prova
sobre a qual está assentada tal proposição. Torna-se evidente no decor-
rer do texto schellinguiano que o sujeito desta prova “não reflete sobre
si”(ou: desaparece o elemento subjetivo), pois, se refletisse o sujeito
teria de estabelecer que a razão existe de fato para algo, para o sujeito
que conduz a prova; isso porque se a razão existe, ela se exterioriza e
ao se exteriorizar, se manifesta de novo para dentro33. Para Fichte a ra-
zão não é nada (por primeiro) objetivo, mas antes está como Absoluta
apenas na imediata execução. Ainda: só através do seu ser-pensado é
que algo é ou se torna objeto; antes disso não é nada, nem objeto. A
respeito dessa reflexão, observa Asmuth: aqui
31
SIEP, HFK, 88.

32
ASMUTH, C. Begreifen des Unbegreiflichen: Philosophie und Religion bei Joahnn Gottlieb Fichte
1800-1806, 337.

33
Idem, Ibidem, 338.

338
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

Schelling está pressupondo um estágio estacionário em que puros obje-


tos presidem uma dada realidade; mas isso é uma proposição arbitrária,
e em nada está ligada à exigência de reflexividade colocada pela Doutri-
na da Ciência [de Fichte].34

No fundo, o problema assenta na prova dessa proposição, já que,


completa ele,

o pensar um objeto não o deixa sem uma modificação, não deixa de al-
terá-lo. Daí que objeto pensado é objeto transformado (e não intocado;
uma zona de objetos intocados e ainda assim “pensados” é uma ficção
(Schwärmerei), que só uma Intuição Intelectual, igualmente arbitrária,
pode pretender realizar).35

Para Fichte o único caminho para encetar a marcha do descarrila-


mento do pensar e do ser-pensado se dá pelo reconhecimento da validade
fática do mundo de objetos. O limite reside nisso: assentar uma filosofia
no princípio em “uma razão que é Ser”, em que “o ser seria tudo a que se refe-
re um pensamento.”36. E isso assenta em que, como diz Fichte na Doutrina
da Ciência de 1804, “o objetivo da filosofia não é falar desde fora sobre a razão,
mas sim pôr em obra efetivamente e com toda seriedade o ser da razão.”37
Numa acirrada reversão do quadro das críticas perfiladas por
Schelling (e Hegel), as Conferências de Berlim trazem à tona um pano
de fundo epistemológico indepassável, resumido na expressão de que,
diz Fichte, “(...) O próton-pseudos dos sistemas (...) consiste justo em pro-
ceder de fatos e de pôr o absoluto” em fatos38, enquanto que, desde uma
perspectiva inequívoca da razão e dos limites humanos, unicamente
pode ser construída para nós “(...) a qualidade interna do saber.”39
Hegel (com Schelling) propusera que: “(...) O absoluto deve ser
construído para a consciência (...)” e que “(...) o absoluto deve ser refletido,

34
Idem, Ibidem, 339.
35
Idem, Ibidem, 340.
36
Idem, Ibidem, 340.
37
FICHTE, WL. ZV 1804, V. XIV, 141; DdC 1804, p.148. E ainda: “A meta da filosofia é realizar
efetivamente e com toda seriedade o ser da razão, e não falar desde fora da razão”(140; p. 148).
38
Idem Ibidem, V. XIII, 136. Segundo Fichte, “o Absoluto não é em si mesmo inconcebível, pois
isso não tem sentido. Ele só é inconcebível se se trata de lhe aplicar um conceito, e esta sua
inconcebibilidade é sua única qualidade”. WL. ZV 1804, IV, 37; DdC 1804, p. 71.
39
Idem, Ibidem, V. IV, 36; DdC 1804, p. 71.

339
Luciano Carlos Utteich

deve ser posto”. (“Das Absolut soll fürs Bewusstsein konstruiert werden (...)
Das Absolut soll reflektiert, gesetzt werden”)40. Na filosofia da Identidade
(1801), Schelling defendera que a Razão, definida como “total indiferen-
ça do subjetivo e do objetivo”, é o Absoluto. (Die Vernunft ist] totale Indif-
ferenz des Subjektiven und Objetiven”, “ist das Absolute”)41. E, para o prin-
cípio da identidade racional absoluta, comum a Hegel e a Schelling, de
que: “O absoluto mesmo é (..) a identidade da identidade e da não-identidade;
o opor e o ser-um estão nele ao mesmo tempo”. (Das Absolut selbst aber ist
darum die Identität der Identität und der Nichtidentität; Entegegesetzen und
Einssein ist zugleich ih ihm”).42
Nestes termos a concepção de sistema da Doutrina da Ciência de
1804 inova a ponto de não poder mais ser levada em conta no contraste
com a obsessiva perspectiva de Schelling e de Hegel de compreender
o Absoluto mediante a ideia de identidade a ser construída (noção de
construção) pela razão.

IV – A totalidade da Wissenschaftslehre:
a nova concepção de sistema

O sistema das determinações fundamentais do saber surge na


Doutrina da Ciência de 1804 apenas como manifestação (Erscheinung) e
imagem (Bild) do Absoluto. As formas do saber são apenas a “exterio-
rização” do Absoluto, não algo independente ou algo outro diante do
Absoluto. O saber (as formas do saber) é entendido por Fichte como
ser-fora de-si (Ausser-sich-sein) do Absoluto: “O ser de Deus fora de seu
ser”43. Assim tem de ser vista doravante a Doutrina da Ciência tardia e
40
HEGEL, Differenzschrift, 25; DSFSch, p. 25
41
SCHELLING, Darstellung meines Systems der Philosophie. Zeitschrift für speculativen Physik,
Band 2, Hamburg, 2001, § 1, 336; § 2, 337. Mas Fichte diz referente a isso: “Deve-se redaguir,
em primeiro lugar, que a razão não pode ser um ponto absoluto de indiferença sem ser ao
mesmo tempo um ponto absoluto de diferença, ela não é, pois, nenhum dos dois de maneira
absoluta, senão que é os dois só de maneira relativa; por conseguinte, da maneira que se quer
começar, não se pode pôr nesta razão a menor chispa de absolutidade. Schelling acrescenta:
a razão ‘é’; começa, pois, por se desfazer dela e a coloca diante dele, objetivando-a; (...) esta
objetivação da razão não poderia ser jamais o caminho correto”. FICHTE, WL. ZV 1804, V.
XIV, 141; DdC 1804, p.148.
42
HEGEL, Differenzschrift, 96; DSFSch, p.114.
43
Apud ROSALES, Jacinto R. Fichte: del Yo puro al saber absoluto (1798-1802). In: Contraste.
Málaga: Univ. Málaga, s/d. Artigo no prelo.

340
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

suas consequências como possibilidades próprias de um sistema das


determinações do saber fundado absolutamente.
Pela Doutrina da Ciência de 1804 é fundado o sistema das determi-
nações em um Absoluto como o produzir de si mesmo da necessidade
e da evidência, livre de membros (gliederloses); é compreensível nesse
sentido que não esteja o sistema de determinações do pensamento se
produzindo e se encadeando (gliederndes), tal como exigia Hegel. Isso
é assim porque o Absoluto tem de ser visto doravante como uma sin-
gularidade sem relações (Singulum fechado), e não uma totalidade de
relações se expandindo e se contraindo. Nesta perspectiva se vê que as
relações fundamentais do saber, na medida em que são compreensí-
veis em sua unidade e particularização (entendido o saber como mani-
festação do Absoluto), apresenta o Absoluto para princípio do sistema
das relações fundamentais do Saber.
Daí a Doutrina da Ciência de 1804 se subtrair a uma interpreta-
ção que concebe o Absoluto desde a construção abrangente do que é
(recorde-se que tal noção caracterizou o início do Idealismo alemão, no
esboço do Das älteste Systemprogramm des deuschen Idealismus: “Nur was
Gegenstand der Freiheit ist, heisst Idee”).44 A perspectiva transcendental
da razão, explicitada na variedade de matizes na primeira parte da
Doutrina da Ciência de 1804, no percurso ascensional da doutrina da Ra-
zão e da Verdade, conduz à vinculação da transcendência e da imanência
que expressa, na segunda parte (doutrina dos Fenômenos e da Aparência),
no aspecto descensional, a relação entre evidência genética (exprimí-
vel) e Absoluto (inexprimível), do ponto de vista do pensamento e da
razão humana, enquanto não separados. Ao servir de refutação da ad-
missão do alcance de uma indiferença (ponto) entre sujeito e objeto (no
Absoluto adotado por Hegel e Schelling), Fichte justifica seu ponto de
vista explicitando que tal admissão tornaria impossível explicar (epis-
temologicamente) que as sínteses têm de ocorrer a partir da relação
estabelecida entre uma base fática e uma base ideal (genética).
Isso conduz no mínimo a constatar que Schelling e Hegel esta-
vam perseguindo metas distintas do empreendido por Fichte, tanto na
Doutrina da Ciência de 1794 como na Doutrina da Ciência de 1804, prin-
cipal obra do segundo Fichte. E que os critérios do proposto pelo Ide-
alismo transcendental fichtiano, seja do ponto de vista da fundação,


44
HÖLDERLIN, F. Entwurf “Das ältestes Systemprogramm des deutschen Idealismus”, 576.

341
Luciano Carlos Utteich

seja do da perspectiva crítica a eles, são distintos em relação aos quais


Hegel e Schelling criam poder “contribuir” por algum tipo de correção
ou crítica. Permanece sendo incorreto por isso envolver os pressupos-
tos da filosofia transcendental de Fichte na avaliação do que Schelling
e Hegel visaram para seus próprios projetos filosóficos.

V – Consequências da concepção de sistema


na Doutrina da Ciência de 1804

Uma consequência geral do exposto é que os argumentos crí-


ticos de Hegel não atingem mais a Doutrina da Ciência de 1804 e que
a conclusão dos intérpretes da filosofia hegeliana (R.Kroner, E.Bloch,
etc), de que a Doutrina da Ciência existiu como uma espécie de degrau,
meramente, para conduzir ao sistema de Hegel, só pode ser equivoca-
mente endossada. Afinal, a des-potenciação da consciência se mostra
na exposição de 1804 enquanto a consciência, diz Fichte, “(...) é rejeitada
em sua validade em si”45, sendo ela superada como instância central no
sistema de 1794.
Ao mesmo tempo é deslocado de sua primazia o conceito do Eu-
-absoluto como princípio, reaparecendo num papel secundário em face
da transformação conceitual na distinção entre Absoluto e Saber abso-
luto, tornada pública com a Exposição da Doutrina da Ciência de 1801-02,
cujos indícios também se encontram no debate das correspondências
com Schelling. E, por fim, o término do dualismo Eu/Não-Eu, que desa-
parece diante da dinâmica atual do Absoluto enquanto conceito inexpri-
mível, em relação à ação própria do pensamento (intelecção): o conceito
é posto agora – e não mais a consciência – como o elemento mediador,
não apenas da relação entre a evidência fática e a evidência genética, na
relação de elevação do fundado ao fundamento, demonstrada pela Dou-
trina da Ciência como sendo a constituição do Saber mesmo.
O conceito surge ainda como figura de mediação entre o Absolu-
to e o Saber: em sua essência própria ele vincula, dos dois lados, o que
está além e é mais originário (absoluto) com o domínio do pensamento
(intelecção) que procede, na constituição do saber, por meio de uma au-
toreflexividade que é, no fundo, autonegação. O saber é então, no e pelo
conceito, só manifestação (Erscheinung) do Absoluto, e não avança o mí-

45
Fichte, WL. ZV 1804, V. XIV, 142; DdC 1804, p. 148.

342
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

nimo no domínio deste, que se mantém inexprimível (unaussprechlich).


O conceito exprime assim, à constituição do saber – e, por isso, do que é
objetificável, na necessidade de autonegação – o limite da razão humana:
a ação de inteligir está sempre colocada perante uma realidade como
algo que “há de mais”46 além da intelecção e do pensamento, algo que
resta, inapreensível, sem relação imediata com o ato de inteligir.
A exposição de 1804 trata, no reconhecimento da exigência da teo-
ria do Absoluto e da impossibilidade de deduzir adequadamente e fixar
linguisticamente o que está “além da possibilidade de expressão”47, de algo
que deve existir para-si e é incompreensível (unbegreiflich). Nisso o con-
ceito (e não a consciência) apresenta como figura do pensamento uma
riqueza em si mesmo: o conceito “(...) se concebe mesmo [a si, na autoanu-
lação] como limitado, e seu perfeito conceber-se é a concepção do seu limite.”48
E, na superação do dualismo, o texto de 1804 lida com o que havia sido
propagado de modo enganador, a saber, que “(...) a obstinação idealista
pertencia ao fantasma da Doutrina da Ciência (...)”49. Fichte manifestou na
exposição sua preferência pelo realismo, num primeiro passo para apre-
sentar a efetividade da relação estabelecida pelo conceito como media-
dor entre o pensamento (autonegação) e o Absoluto. E por isso conclui
Fichte, dizendo: “A verdadeira Doutrina da Ciência, isto é, a autêntica filoso-
fia especulativa, não pode ser nem idealismo nem realismo”.50
Mas, essa preferência manifesta haver diante da reflexão (intelec-
ção) um único algo existente e efetivamente válido em si: uma unidade
absoluta existente para-si, como limite intrínseco impossível de trans-
gredir, o entre o pensamento e o ser. A teoria do Absoluto se desenvol-
ve assim apenas como exposição da negação pura e simples de todas
as determinações relacionais, tanto com respeito à diferença nas deter-
minações como com respeito a si mesma, já que a Doutrina da Ciência
não se apresenta nem como idealismo, nem como realismo, mas algo
além destes. Dentro dos limites do conceito, a Doutrina da Ciência pode
46
Fichte, WL. ZV 1804. V. VIII, 80; DdC 1804, p. 104.
47
FICHTE, WL. ZV 1804. V. III, 22-3; DdC 1804, p. 60.
48
FICHTE, WL. ZV 1804. V. VIII, 82; DdC 1804, p. 105.
49
FICHTE, WL. ZV 1804. V. XI, 110; DdC 1804, p. 126.
50
Carta a Schelling de 3 de outubro de 1801. cf. FSCHBW, 137; FSCC, p. 91. E na carta de 31
maio/7 agosto de 1801, diz a Schelling: “(...) Não existe nenhum Idealismo por si mesmo, nem
nenhum Realismo ou Filosofia da Natureza, nem nada no estilo, que sejam verdadeiros” em si. Cf.
FSCHBW, 126; FSCC, p. 80.

343
Luciano Carlos Utteich

mostrar o saber só como gênese das condições de pensar o absoluto, e


não gênese – ela própria – do absoluto. Fichte pondera isso a Schelling
nas correspondências: “(...) o Absoluto mesmo não é nenhum Ser, nem um
saber, nem é identidade nem a indiferença de ambos, mas é justo o Absoluto, e
qualquer outra palavra induz ao erro”51.
A única relação necessária para a intelecção é entre o fático e o
genético, pensada no elemento mediador, o conceito, que traz consigo
um elemento independente, em-si e vivo, mas alcançável só a título
de cópia, de substituto, numa alusão à impossibilidade de admitir a
dedução a priori do ôntico desde o ontológico, como na conduzida por
Schelling e endossada por Hegel52.
Em virtude da inconcebibilidade de todo discurso (de toda apli-
cação de conceito) ao Absoluto, o Absoluto se subtrai à predicação;
somente como referência indireta (negativa), mediado por uma inte-
lecção que é cópia, a objetivação do saber se manifesta como Saber ab-
soluto. E o ponto principal da exposição de 1804 consiste nisso: existe
mesmo o Absoluto, todo o restante é manifestação dele (é algo não-
-originário), como predicação pensada e imediatamente autonegada,
diante do sentido inequívoco do que é inacessível ao Saber. Assim, a
questões como a schellinguiana: como se dá a passagem do finito ao
infinito ou “(...) como chego a sair do Absoluto e a passar a algo de oposto?”53,
Fichte responde:
Só uma coisa está além do limite, una, e unicamente viva: a luz mesma
[o originário]. É a luz que nos envia para fora de si, à vida ou à experiên­
cia (...), à experiência que contém o novo, a uma vida divina54.

A exposição de 1804 consolida o sentido do transcendental como


ideia, enquanto modo de se referir ao Absoluto que pensa o transcen-
dente como inseparável do imanente, devido à autonegação intrínseca


51
Carta a Schelling de 15 de janeiro de 1802, cf. FSCHBW, 153; FSCC, p. 106.

52
Em oposição a isso é que Fichte dirá: “A meta da filosofia é realizar efetivamente e com toda
seriedade o ser da razão, e não falar desde fora da razão”. Cf. WL. ZV 1804, V. XIV,140; DdC
1804, p. 148.
53
SCHELLING, F. W. G. Philosophische Briefe über Dogmatismus und Kriticismus. In: Schellings
Werke. Hrsg. M. Schröter, München: C. H. Beck, 1927-1958, 294. Em português: SCHELLING,
Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo. Terceira Carta. Trad. R.R. Torres Filhos. São
Paulo: Abril Cultural, p.184.
54
FICHTE, WL. ZV 1804. V. VIII 82-83; DdC 1804, p. 105.

344
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

do conceito na constituição do saber, diante da inabarcabilidade e in-


concebibilidade do Absoluto como fundamento inexprimível do pró-
prio Saber. Assim, ao desaparecimento da exposição da reflexividade
do Eu e Não-Eu se contrapõe a subsistência de uma vida autônoma
(na existência interna do saber) do mais-originário, como vida e uni-
dade pura que “existe unicamente por si mesma, desde si mesma, mediante
si mesma, sem nenhuma cisão”55. Essa Unidade se mostra condição de
toda possível cisão (disjunção) no Saber e fornece para isso (para esse
trabalho) a figura do conceito, como elemento que participa a um só
tempo do fundamento atemporal (unidade) na evidência genética e do
fundamento temporal (multiplicidade) na evidência fática.
O conceito, vinculado desde sempre à unidade pura incompre-
ensível (unbegreiflich), a saber, o Absoluto, é por isso apresentado em
inteira conformidade com os princípios do transcendentalismo, em
vista do qual não se deve estranhar, diz Fichte, não haver ponte (fixa)
entre a Wissenschaftlehre e o ponto de vista ordinário, pois, tanto antes
como agora,

(...) a Doutrina da Ciência responde a uma questão que ela mesma por
primeiro suscita (tem que suscitar) e resolve uma dúvida que ela mesma
tem que colocar56.

Na recepção distinta, por Hegel e Schelling, do modo de estabe-


lecer a relação entre o fundamento e o fundado, chama a atenção que
ambos visaram algo diferente em seus projetos, sem tocar na solidez da
abordagem fichtiana. O fato de Fichte ter escapado, por sua abordagem
do transcendental pela razão, do domínio da positividade objetiva e his-
tórica, fala em favor do método no acompanhamento do projeto de Kant
de pensar segundo os limites da razão humana. Ao mesmo tempo na
radicalização do projeto kantiano, Fichte manteve a coerência por visar
se colocar pela Doutrina da Ciência sempre em acordo consigo mesmo a
partir deste método. Nesta direção o projeto filosófico e as teses metafí-
sicas do pensamento de Fichte permanecem, no sentido mais autêntico,
ainda fora da história da filosofia contida nos manuais e também da con-
vencionalizada história filosófica da filosofia.
FICHTE, WL. ZV 1804. V. VIII 80; DdC 1804, p. 103.
55

FICHTE, WL. ZV 1804. V. X 94; DdC 1804, p. 114.


56

345
Luciano Carlos Utteich

Referências

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346
As Conferências de 1804 de Fichte diante
do sistema no Differenzschrift (1801) de Hegel

SCHELLING, Darstellung meines Systems der Philosophie. Zeitschrift für specula-


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SCHULZ, Walter. Fichte-Schelling Briefwechseln. Frankfurt am Main:
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TRAUB, Harmut. Johann Gottlieb Fichtes Populärphilosophie 1804-1806. Stuttgart
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347
Objetivação e essência genérica
em Ludwig Feuerbach

João Batista Mulato Santos


Universidade Federal do Ceará

Introdução

O filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872) ainda é pou-


co conhecido no Brasil, mas isso não quer dizer que suas obras sejam
portadoras de irrelevante significação para a filosofia. Feuerbach geral-
mente é associado à corrente filosófica do materialismo científico, mui-
to difundida no século XIX, e a pensadores como Karl Marx e Friedrich
Hegel. Este último foi seu grande mestre que, entretanto, o filósofo
tornou-se um de seus maiores críticos.
Podemos seguramente afirmar que a religião cristã, que é o ob-
jeto de estudo desta pesquisa, é também o principal objeto de críticas
do pensador. Ela é analisada por sua teoria da objetivação na qual ele
ressalta a importância dos objetos para compreensão da essência hu-
mana e desta forma torna-se seu principal meio ou até mesmo o único
instrumento para esta análise.
Na filosofia feuerbachiana os objetos possuem grande relevân-
cia, sejam eles materiais ou espirituais, devido ao fato de servirem de
intermédio para que o homem tenha consciência daquilo que lhe é
mais íntimo. Os objetos sensoriais ou espirituais são o meio pelo qual
o homem consegue ter acesso à sua essência.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 348-353, 2015.
Objetivação e essência genérica em Ludwig Feuerbach

A essência do homem é primeiramente exteriorizada para que


em seguida ele possa encontrá-la dentro de si mesmo. Quando os ob-
jetos pelo qual o homem identifica sua essência são materiais, isto é,
sensoriais, estes objetos possuem uma diferença em relação ao homem,
o que os torna facilmente identificável e discernível. Os objetos servem
de espelho para que o homem tenha um conhecimento concreto a res-
peito de sua essência, ou seja, daquilo que ele é. Mas quando os objetos
são espirituais ou religiosos, então há uma enorme dificuldade para
desassociá-los do homem, pois eles se encontram na própria cons-
ciência humana. No objeto sensorial o homem pode ser facilmente
separado dele, uma vez que este tipo de objeto se encontra fora deste.
Enquanto no objeto espiritual ou religioso é mais difícil discerni-lo do
homem, pois a consciência que o homem tem de si mesmo é o que dá
origem ao próprio objeto no qual ele exterioriza sua essência. Faz-se
necessário reforçar a ideia que a consciência que o homem tem de si
mesmo é o que origina o objeto religioso, no entanto essa consciência
não é reconhecida por ele como algo projetado no objeto exterior, isto
é, Deus e que volta para si mesmo como algo alheio a ele.
A essência do homem é o que lhe há de mais íntimo, mas ele não
tem acesso direto a ela. Desta forma, ele só pode conhecê-la por meio
daquilo que lhe é exterior, quando ela é revelada através dos objetos.
Para Feuerbach, esses objetos estão presentes na relação do homem
com a natureza, pois é através desta relação do homem- natureza e
consequentemente com os objetos, sejam eles materiais ou espirituais,
que realmente se conhecer seus segredos mais íntimos.

O objeto com o qual o sujeito se relaciona essencial e necessaria-


mente nada mais é que a essência própria, objetiva deste sujei-
to. Se este for um objeto comum a muitos indivíduos diversos
quanto à espécie, mas iguais quanto ao gênero, então é ele, pelo
menos na maneira em que ele for um objeto para esses indivídu-
os conforme a diferença deles, um ser próprio, porém objetivo.1

O trecho supracitado tem o intuito de demonstrar como a es-


sência objetivada de um ser é projetada em um objeto, sendo este um
elemento necessário e obrigatório para ser conhecida tal essência, isto


1
FEURBACH, L. A Essência do Cristianismo, p. 46.

349
João Batista Mulato Santos

é, a partir da relação de um ser com o objeto é que se encontra a rela-


ção deste ser com ele mesmo. Os objetos, na verdade, são um espelho
pelo qual a essência de um ser é projetada e refletida para ele mesmo
para que desta forma o homem tenha contato, ainda que indireto, com
aquilo que ele realmente é. Feuerbach usa como exemplo no livro A
Essência do Cristianismo (1841) a relação da Terra com o Sol.

O sol é o objeto comum dos planetas, mas a maneira como ele


é objeto para Mercúrio, para Vênus, Saturno ou Urano ele não
é para a Terra. Como Planeta tem o seu próprio sol. O sol que e
como ilumina e aquece Urano não tem existência física (somente
astronômica e científica) para a Terra; e o Sol não só aparece de
outra forma, ele também é realmente em Urano um sol diferente
do da Terra.2

Nesse exemplo, Feuerbach coloca o objeto que é comum a outros


seres como sendo o objeto pelo qual todos eles, os planetas, revelam
sua essência, no entanto a essência de cada planeta não é a mesma, e tal
diferença é conhecida exatamente devido à relação que cada planeta,
com sua essência distinta, tem com o objeto, embora seja o mesmo em
comum, não o é para cada planeta devido a relação deste com cada um
daqueles que revelam sua essência por tê-lo como objeto. O Sol que
banha a terra não é o mesmo que atinge a superfície de Urano, mas
a relação entre o Sol e a Terra não é o determinante para a Terra cuja
essência só é conhecida através do Sol.

Por isso é a relação da Terra com o sol ao mesmo tempo uma


relação da Terra consigo mesma ou com a sua própria essência,
porque a proporção da grandeza e da intensidade da luz com a
qual o sol é um objeto para a Terra é a proporção da distância que
determina a natureza própria da Terra. Todo planeta tem por
isso no seu sol o espelho de sua própria essência.3

Então podemos concluir que a relação do ser com o objeto con-


siste, concomitantemente, na relação do ser com ele mesmo sendo exa-
tamente devido à existência do objeto que se torna possível tal relação.

2
Ibid., p. 46.
3
FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo, p. 46.

350
Objetivação e essência genérica em Ludwig Feuerbach

A consciência que se tem daquilo que nos é exterior e nos permite co-
nhecer algo que nos é interior, íntimo, é o mesmo que a consciência que
temos de nós mesmos.
A essência que é revelada através do objeto é em si mesma per-
feita. Feuerbach fundamenta esta perfeição não à toa, mas por ela ser
o fundamento de si mesma. Qual é a essência do homem? Vontade,
razão e coração. Por que o autor se refere a elas como algo perfeito?
Somente pelo fato de terem sua finalidade em si mesmas. Mas se são
finalidades em si mesmas, então não seria dispensável a existência de
objetos para revelá-las? De acordo com o pensamento do filósofo, não.
Pois os objetos são exatamente aquilo que torna possível que a essên-
cia do homem possa ser conhecida, ou seja, é como se eles fossem um
espelho para a própria essência humana que, uma vez projetada, possa
se voltar para o próprio homem e desta forma ser conhecida.
O homem para Feuerbach, nada é sem objetos, pois sua essência
não tem consciência de si mesma diretamente, assim faz-se necessário
que, para o homem conhecer sua essência, ele deve ter contato com aqui-
lo que o permite alcançar tudo o que lhe é mais íntimo, interior, o que se
torna possível somente por meio do que lhe é exterior, isto é, os objetos.
Feuerbach quer dizer que o objeto da religião, exatamente por
ser um objeto encontrado no próprio indivíduo, está entrelaçado neste
de uma maneira que se torna praticamente impossível distingui-lo do
homem sem o uso de um juízo crítico.

O objeto sensorial é em si um objeto indiferente, independente


da intenção, do juízo; mas o objeto da religião é um objeto mais
selecionado: o ser mais excelente, o primeiro, o mais elevado;
pressupõe essencialmente um juízo crítico para distinguir entre
o divino e o não divino, o adorável e o não adorável.4

Por se encontrar na própria consciência que o homem tem de si,


o objeto religioso expressa, como nenhum outro, aquilo que há de mais
profundo no homem. Deus é esse objeto da religião, logo, ele represen-
ta, enquanto símbolo, o pensamento, a intenção, o valor e o próprio
conhecimento que o homem tem de si mesmo até aquilo que almeja
um dia alcançar e quando separamos Deus do homem separamos o
homem dele mesmo.

4
FEURBACH, L. A Essência do Cristianismo, p. 46.

351
João Batista Mulato Santos

Como o homem pensar, como for intencionado, assim é o seu


Deus: quanto valor tem o homem, tanto valor e não mais tem o seu
Deus. A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de
si mesmo, o conhecimento de Deus o conhecimento que o homem
tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo
homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa.5

Feuerbach deixa claro que o homem religioso não tem consciên-


cia direta de si enquanto ser religioso. Como já foi dito anteriormen-
te, o homem não tem conhecimento direto de sua essência, a não ser
através dos objetos. Este fato se revela como um primeiro aspecto que
é fundamental para a existência da religião. É exatamente o fato do ho-
mem não saber que aquilo que lhe é mais íntimo e essencial está sendo
projetado em algo que ele considera como totalmente alheio, diferente
e diverso de si mesmo é o que torna possível a existência da religião de
um modo bastante peculiar.

[...] Não deve ser aqui entendido como se o homem religioso


fosse diretamente consciente de si, que a sua consciência de
Deus é a consciência que tem de sua própria essência, porque
a falta da consciência deste fato é o que funda a essência pe-
culiar da religião.6

A essência peculiar da religião se encontra exatamente neste fato.


O homem não consegue se encontrar enquanto homem no objeto da
adoração que parecer ser absolutamente alheio a ele. Para ele a consci-
ência que se tem de Deus é a consciência de um outro ser. É devido a
este fato que a religião se firma como o primeiro conhecimento que o
homem tem de si mesmo, embora que de maneira indireta, preceden-
do até mesmo à filosofia. O ser que expressa tudo aquilo que ele é e o
pressupõe, não é reconhecido por ele como algo oriundo de si mesmo.
Deus somente se firma como algo exterior ao homem porque o homem
não percebe em Deus a sua própria essência, tudo aquilo que ele é e
que o fundamenta enquanto gênero. A consciência que se tem da reli-
gião é a consciência de algo alheio ao homem, mas que surge de fora
para dentro do homem, como algo que se apodera intimamente dele.


5
Ibid., p.55.
6
Ibid., p. 55.

352
Objetivação e essência genérica em Ludwig Feuerbach

Feuerbach encontra na religião a essência infantil do homem por-


que ela é a primeira consciência que ele tem de si mesmo e do mundo
que está à sua volta sem se dar conta que a essência desta consciência
divina se encontra nele mesmo. A religião é a essência infantil da huma-
nidade; mas a criança vê a sua essência, o ser humano fora de si – enquanto
criança é o homem objeto para si mesmo como um outro homem (FEUERBA-
CH. 1988, p. 56).
Desta forma, isso significa que os dois seres, pai e filho, comparti-
lham a mesma origem, sendo este último o responsável pela existência
do primeiro e não o contrário. Por não reconhecer sua essência como
algo objetivado, o homem a vê como a essência de um outro ser distan-
te dele. A cada nova religião tudo aquilo que era tido como um objeto
distante do homem acaba por se tornar algo cada vez mais próximo de
seu íntimo, ou mesmo subjetivo, tornando a essência de um ser alheio
e diverso uma essência cada vez mais semelhante e profunda, mas que
na verdade é sua própria essência que retorna para si mesma através
de um objeto espiritual. Portanto, pode-se concluir que a consciência
humana que se tem de Deus nada mais é que uma consciência que o
homem tem dele mesmo, embora de maneira indireta e que só é possí-
vel de ser conhecida através deste objeto religioso ou espiritual.

Referências

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Campinas, SP: 1988.


REDYSON, Deyve. CHAGAS, Eduardo F. Ludwig Feuerbach: Filosofia, Religião
e Natureza. São Leopoldo, RS: Nova Harmonia, 2011.
CHAGAS, Eduardo F. REDYSON, Deyve. Homem e Natureza em Ludwig Feuer-
bach. Fortaleza: Edições UFC, 2009.

353
O espírito e a prática cristã: um debate entre
Hegel e Nietzsche

Adilson Felicio Feiler


PUC RS

Introdução

Diante das críticas que Hegel e Nietzsche apresentam ao dua-


lismo cristão, seja da lei positiva como da moral, em ambos há uma
valorização do autêntico “espírito cristão”, que em Hegel é lido através
da ação de Jesus, que “(…) apareceu não muito antes da última crise e
trouxe à tona a fermentação dos múltiplos elementos do destino judai-
co (HEGEL, ECD, 2011, p 190). Em Nietzsche a ação é traduzida como
uma prática, “(…) a prática cristã, uma vida tal como a viveu aquele
que morreu na cruz, é cristã” (NIETZSCHE, AC, KSA, § 39, 1999, p.
211), ou seja, através da prática de Jesus. Assim, o problema da moral e
da razão moderna está no dualismo e positivismo que esta tem assum-
ido, frente a mesma Hegel e Nietzsche endereçam as mesmas críticas. 
Pela aproximação entre o jovem Hegel e Nietzsche de acordo
com: O espírito do Cristianismo e seu destino (1798-1800)1 e O Anticristo
* Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/9752354151429494.
e-mail: feilersj@yahoo.com.br Doutorando em Filosofia,
1
Este trabalho, que antecede o sistema hegeliano, constitui na visão de Wilham Dilthey o
mais belo de Hegel. No entanto, cabe cautela, quanto ao fato de Hegel ou o ter compilado
num todo acabado ou por fragmentos separados, por essa mesma razão muitos resistem em
concebê-la enquanto obra, mas apenas enquanto fragmento. De acordo com as pesquisas
atuais o escrito faz parte do período anímico de Hegel, referente aos anos de 1797 a 1800
quando de sua estada em Frankfurt. (Cf. BECKENKAMP, 2009). Além deste escrito, no caso

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 354-362, 2015.
O espírito e a prática cristã: um debate entre Hegel e Nietzsche

(1889)2 e, seguindo os conceitos de Amor e Destino, apresentamos a


tese de um ethos cristão que é plenitude vital, que, a cada momento,
está destinado a atingir novos pontos culminantes; revela-se, assim,
como uma ética com caráter plural. A afirmação desta ética demanda
uma crítica à moral. O percurso metodológico para chegar a esta ética
é marcado por aproximações e distanciamentos entre Hegel e Niet-
zsche, há, no entanto, uma aproximação quanto a crítica à moral em
ambos autores e também quanto a um projeto ético. Não queremos
com isso reconciliar Hegel e Nietzsche, mas mediante uma compara-
ção entre ambos destrinchar suas identidades e diferenças no que diz
respeito ao cristianismo tradicional e ao dualismo e positivismo da ra-
zão moderna. É um projeto ético de reconciliação transvalorada, que
se opera a cada momento culminante que se atinge, mostra-se como
algo aberto e, por esta razão, está ligado à vida na sua dimensão de
plenitude que tem a sua expressão no amor. No amor, a vida atinge a
sua culminância e, para expressá-la, introduzimos um conceito novo
com sentido metafórico: o de pontos culminantes de vida: Lebenshöhe-
punkte3. Essa metáfora é resultado da junção de duas outras: plenitude
vital Lebensfülle4, a abertura plena da vida (Hegel-Nietzsche) e pontos
culminantes de potência Macht-Höhepunkte5, a multiplicidade de força
que a vida assume (Nietzsche). Através do conceito de pontos culmi-
nantes de vida inferimos uma ética, mediante a qual propomos uma
reconciliação frente à complexidade do conflito da vida, marcado pelas
dimensões normativas e orgânicas. Pois, tanto Hegel como Nietzsche,

de Hegel, também incluímos, na pesquisa, seu epistolário, correspondendo ao período da


redação da obra supracitada. De modo particular, destacamos sua famosa carta a Scheling,
de 02 de Novembro de 1888.
2
Além desta obra e de seu epistolário, correspondentes, ao mesmo período de redação, incluí-
mos a Gaya Ciência, de onde extraímos o conceito de Lebensfülle, também utilizado por Hegel.
Incluímos os Fragmentos Póstumos de Nietzsche, que são assim denominados por terem
sido publicados postumamente, servindo como explicitação póstuma das obras publicadas.
De modo particular, destacamos os Fragmentos Póstumos do Outono de 1887, correspon-
dentes ao período de redação de suas obras finais. Dentre elas, destaca-se o Anticristo.
3
Pela Lebenshöhepunkte temos a intenção de aproximar o vitalismo de Nietzsche ao Jovem He-
gel, resultando numa dialética aberta, ou seja, da afirmação na imediatidade passando pela
negação na mediatidade, atingindo um grau máximo de resistência na reconciliação. Daqui se
prepara uma nova afirmação: pontos culminantes que apontam para um pensamento em rede.
4
Cf. HEGEL, ECD, TWS, 1994, p. 354 e NIETZSCHE, GC, KSA, 1999, p. 620
5
Cf. NIETZSCHE, FP Outono 1887-9 [8]. 1999, p. 343

355
Adilson Felicio Feiler

ao apresentarem um novo modo de ser no mundo, marcado pela per-


da de uma autoridade absoluta e eterna, enaltecem a prática de vida
inaugurada com Jesus de Nazaré. “O jovem Hegel tem o Cristo em alta
estima”6, assim como “Nietzsche revela simpatias por Jesus”7 Ambos
Hegel e Nietzsche defendem um espírito cristão baseado no Evangelho
de João, o evangelho acentua a prática de Jesus como uma prática de
unidade em plenitude, que reflete a soberania daquele que é responsá-
vel por ela, portanto superior à moral kantiana. No nazareno a reconci-
liação entre os polos da tensão dialética e a transvaloração dos valores
encontram a culminância. Nietzsche não quer, pelo menos diretamen-
te, resgatar o espírito do Cristianismo como um todo, porém neste, ao
alimentar uma atitude condescendente e até simpatética8 valorizar o
que nele há de mais singular: sua prática. Mediante a qua ele elabora a
sua própria ética, uma ética do “Sim” para uma vida não degenerada
pelo Cristianismo dogmático da filantropia moderna, da compaixão.
Nossa pesquisa segue a esteira daqueles que, como Stephen
Houlgate9, Walter Kaufmann10 e Robert Pippin11, empreendem apro-
ximações entre Hegel e Nietzsche no que diz respeito a crítica à moral
cristã. Da mesma forma Karl Löwith12 que, ao apresentar uma crítica à
Hegel de ser aquele que introduz a humanidade no ateísmo pela apro-
ximação de Deus ao mundo, e que vem a culminar em Nietzsche, tem
na lei e na moral adversários comuns ao estabelecimento do ethos cris-
tão singular. Hans Küng, inclusive é aquele que aproveita de maneira
positiva a encarnação de Deus na história para a salvaguarda do ethos
cristão enquanto práxis. No entanto, pretendemos ir além no sentido
de uma explicitação da crítica servindo-nos de uma estratégia e deta-
lhamento sem precedentes, como é o caso da delimitação desta críti-
ca pelas obras supracitadas, bem como pelo estabelecimento de um
método e a um projeto ético comum. Por essa razão, enfatizamos que
enquanto a moral refere-se às normas e interditos, o principium obliga-
6
Cf. KÜNG, 1973, p. 50
7
Idem, 1976, p. 349
8
Com o termo simpatético ser quer significar uma prática que se dá por um misto de simpatia
e deboche, o que reflete a postura do Idiota de Dostoiévski.
9
Cf. HOULGATE, 1986, p. 01-02
10
Cf. KAUFMANN, 1965, p. 63
11
Cf. PIPPIN, 2006, p. xiii
12
Cf. LÖWITH, 1988, p. 409

356
O espírito e a prática cristã: um debate entre Hegel e Nietzsche

tionum, a ética diz respeito à reflexão sobre as normas que repercute


em uma disposição prática, o principium praxium.13 Pela crítica à moral,
afirmamos um ethos cristão que se estabelece mediante a prática de
vida de Jesus, uma ética que se afirma pela plenitude da vida como
Lebenshöhepunkte.
Seguimos no desenvolvimento da pesquisa os passos metodoló-
gicos da dialética, principiando de uma imediatidade, passando por
uma mediatidade e confluindo na reconciliação de ambos momentos
anteriores: uma reconciliação aberta à plenitude, em redes múltiplas e
caóticas de novas reconciliações: a Fenomenologia, para principiar na
dimensão descritiva do fenômeno do ethos cristão; a Lógica, para de-
monstrar a sistematização e a crítica do ethos cristão; e a Política, para
culminar com a aplicação do ethos cristão na dimensão social.

1. A potencialidade

Partimos na fenomenologia de um ponto comum: da unidade


hegeliana imediata, aquela fonte e princípio a nada determinado e da
duplicidade nietzschiana, marcada pelas disposições artísticas apolí-
nea e dionisíaca, enquanto meras manifestações artísticas são ambas
realidades imediatas. Logo, tanto a unidade como a duplicidade são
realidades imediatas abertas que anseiam pela plenitude, portanto
Leistungsfähingkeit (potencilalidade), força que se expressa como feno-
menologia romântica. Portanto, na vida que atinge a maximização da
potência temos abertura que nos permite desconstruir a moral e abrir
a possibilidade de um projeto ético na própria pessoa de Jesus e sua
prática que valoriza todas as inclinações humanas, como em alimentar
as multidões pela multiplicação dos pães14. Daqui se depreende o fato


13
Etimologicamente não somos capazes de chegar a estabelecer as diferenças entre ética e
moral, pois embora sejam termos que procedem de línguas diferentes: ética do grego – ethos
e moral do latim – mos ambos significam costumes. A distinção entre moral e ética, que as-
sumimos em nossa pesquisa, é aquela estabelecida por Paul Ricoeur. Segundo ele a moral
refere-se “(…) uma dupla função, a designar, por um lado, a área das normas, ou seja, dos
princípios do permitido e do proibido, e, por outro, o sentimento de obrigação como face
subjetiva da relação de um sujeito com as normas” (RICOEUR, 2003, p. 591). A ética refere-se
“(…) uma metamoral, uma reflexão de segundo grau sobre as normas, ora os dispositivos
práticos que convidam a colocar a palavra ‘ética’ no plural” (RICOEUR, 2003, p. 591).

14
Cf. Mt 14,15-20

357
Adilson Felicio Feiler

de que o específico e próprio do Cristianismo “(…) está em considerar


a esse Jesus como decisiva e última instância, como critério final para o
homem naquelas suas diferentes dimensões.15” Em sendo Jesus o crité-
rio último do Cristianismo sua mensagem se traduz na singularidade16
que se depreende de sua vida.

2. A diversidade

Esse, em sua imediatidade tende num momento seguinte, a se


deparar com o seu oposto, portanto uma Vielfältigkeit (diversidade) e
desta oposição que anseia por estabelecer redes surge uma lógica. A ló-
gica, em Hegel, se depreende a partir do desbobramento daquela uni-
dade imediata e da tensão da duplicidade imediatidade como Leistun-
gsfähigkeit (potencialidade) em um outro dela mesma e em um oposto
na Vielfältigkeit (diversidade). Nesta proposta ética de apresentar Deus
como pessoa sob a terminologia Reino de Deus, Jesus em nome des-
ta força Leistungsfähigkeit (potencialidade), representada pelo Reino
de Deus, nega tudo o que a ele se opõe, e dessa negação se evidencia
a Vielfältigkeit (diversidade) de diferenças solapadas pela moral: uma
certa concepção da lei que se impõe como estranha17. Daqui se depre-
ende a antítese entre Jesus e “Deus”: Jesus como pessoa em sua men-
sagem e prática singular “(…) ergue-se face ao Deus tenebroso e cruel
e, muitas vezes, incompreensível.18” Tanto Hegel como Nietzsche, em
seu esforço de partir de uma imediatidade, a fim de romper com a
cristalização dogmática, se lançam contra a ordem estabelecida. Niet-
zsche vê a necessidade de culminar em: “(…) um ser de outro modo”
(NIETZSCHE, AC, KSA, §, 39, 1999, p. 211), portanto aberto à Vielfäl-
tigkeit (diversidade) Ou seja, ambas imediatidades, a unidade interna
e a duplicidade externa, convergem na Vielfältigkeit (diversidade), com
acento no valor da diferença para a constituição de uma totalidade que
integra a vida em sua plenitude. A relação entre estas partes reflete
abertura e amor ao destino, salvaguarda do movimento da plenitude
da vida a atingir sempre pontos mais culminantes, Lebenshöhepunkte,
15
Cf. KÜNG, 1976, p. 102
16
Idem, p. 94
17
Cf. Mt 5,17
18
Cf. KÜNG, 1976, p. 120

358
O espírito e a prática cristã: um debate entre Hegel e Nietzsche

que é uma ética em movimento, traduzida numa prática. A prática de


Jesus aponta para um ethos sempre em movimento.

3. A reciprocidade

O ethos cristão que, além de fenomênico, possui uma fundamen-


tação lógica e uma implicação política, marcada pela transição da es-
fera do privado e estranho para a esfera do público e reconciliado – o
legado cristão na história. Uma história que se expressa na abertura
da reconciliação e em valores sempre novos que vão se estabelecendo
pela sua transvaloração em redes potenciais e múltiplas, portanto na
Gegenseitigkeit (reciprocidade). Essa reciprocidade se manifesta tanto
na reconciliação de partes, no “(…) Ser [é] a síntese do sujeito e do ob-
jeto, no qual sujeito e objeto têm perdido sua oposição” (HEGEL, ECD,
TWS, 1994, p. 326), como na totalidade caótica das mesmas em “(…)
Deus como momento culminante: o ser aí uma eterna adoração e acen-
tuação. Porém nisto não é a palavra ponto culminante senão apenas
pontos culminantes de potência” (NIETZSCHE, FP Outono 1887-9 [8],
KSA, 1999, p. 343); permanece um todo em rede, cujas relações se dão
através de ações que respondem a estímulos na mesma intensidade,
sejam estes estímulos que reconciliam, como que provocam a luta. Na
reciprocidade a prática original de Jesus, que é força se opõe àquilo
que ameaça a sua diversidade, afirma o aspecto da coletividade que
se efetiva na política ao se reconciliar as diferenças, no intuito não de
negar seu princípio de diferença e individuação, mas de reforçar sua
identidade como diferença. Jesus testemunha a afirmação das identi-
dades nas diferenças ao estabelecer relações com povos estrangeiros.
Nestas relações se aprimora a dimensão da universalidade no sentido
de se acolher o destino com amor.

Conclusão

Ora, assumir o destino é maximizar a vida é intensificar a potên-


cia, de modo que esta alcançe seus pontos culminantes, que na prática
de vida de Jesus, para além do Judaísmo e do Cristianismo de seus
seguidores, se efetivou. A verdadeira religião é aquela que maximiza a

359
Adilson Felicio Feiler

prática de vida: Lebenshöhepunkte, razão pela qual afirmamos que esta


se deu quando da atuação de Jesus, que inaugurou uma ética desde
o seu aparecimento ao afirmar a vida e suas inclinações pela Leistun-
gsfähigkeit (potencialidade), em seu desdobramento e oposição pela
Vielfältigkeit (diversidade) ao negar o que se opõe a vida, e em sua re-
conciliação e redes constituídas por pólos em luta pela Gegenseitigkeit
(reciprocidade) acolhendo as identidades nas diferenças. É claro que
esta religião poderia perfeitamente continuar acontecendo através da
constituição de pequenas comunidades imbuídas do princípio de afir-
mar a vida pela prática no reconhecimento das diferenças promotoras
de uma sempre nova Leistungsfähigkeit (potencialidade). É justamente
pelo reconhecimento das diferenças como diferenças, portanto com ca-
racterísticas múltiplas que se é capaz de apresentar em Nietzsche um
projeto ético; uma ética da intensificação da potência que é expressão
de uma dada condição de vida: amor fati. Diante dessa ética se é leva-
do a enfrentar o fluxo vital dentro daquilo que este apresenta de mais
terrível. Pois, o que se tem até agora convencionado é que, por trás de
quadro caótico que este apresenta do mundo, nada se contrói; não se
contrói nada quando se atrela aos moldes da moralidade clássica e à
sua versão moderna, que cristaliza as diferenças. Ora, são, portanto,
essas diferenças as promotoras de vida, expressas na reconciliação de
redes que se opõem e atingem pontos culminantes: Lebenshöhepunkte
que acolhem e afirmam com amor o destino. Porém, estes são apenas
pontos, resultantes da intensificação da potência como necessidade or-
gânica do próprio agir, de docilidade ao destino, dos quais se consti-
tuem novas forças que, ao se diferenciarem criticamente, se atualizam
reciprocamente para dar espaço a novos pontos culminantes, e assim
sucessivamente. Portanto, maximiza a vida todo aquele que supera os
limites do estranhamento da lei positiva e a resignação moral do últi-
mo homem no ethos que é base para a praxis, o que reflete de modo
particular a prática de Jesus,
Essa atualidade que de uma fenomenologia como Leistungsfähi-
gkeit, passa por uma lógica da oposição e da diferença como Vielfäligkeit
e se reconhece como diferença na Gegenseitigkeit (reciprocidade). Tan-
to na reconciliação de partes, como na totalidade caótica das mesmas
permanece um todo em rede que reconhece as diferenças. A prática de

360
O espírito e a prática cristã: um debate entre Hegel e Nietzsche

Jesus se apresenta como aquela potencialidade que é o Reino de Deus


que se opõe àquilo que não lhe corresponde: a fixidez da moral, para
afirmar a diversidade em que se reconhece e afirma a diferença.
Logo, o Cristianismo do movimento messiânico de Jesus promo-
ve um ethos cristão que intensifica a vida até a sua plenitude e culmi-
nância: Lebenshöhepunkte pelo amor com que se acolhe o destino.

Referências

Fontes Primárias:
HEGEL, G. W. F. Frühe Schriften. Werk 1 Suhrkamp Taschenbuch Wissen-
schaft. Frankfurt am Main: Frankfurt, 1994.
_____, O Espírito do Cristianismo e seu destino. In: Revista de Opinião Filosó-
fica, n. 02, v.01, PUCRS: Porto Alegre, Jul/Dez. de 2010 (por nós traduzida).
NIETZSCHE, F. W. Sämtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Her-
ausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. München: Deutscher
Taschenbuch Verlag de Gruyter, 1999.
_____, F. W. O Anticristo, maldição do cristianismo e Ditirambos de Dionísio. Com-
panhia das Letras: São Paulo, 2007.

Fontes Secundárias:
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Nicolin and Otto Pöggeler: Bonn, 1961
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362
De Hegel a Tomás de Aquino: Lima Vaz
e o Tomismo Transcendental*

Philippe Oliveira de Almeida**


Universidade Federal de Minas Gerais

Introdução

Pretendemos, neste trabalho, analisar o impacto do neotomismo


e do hegelianismo sobre o pensamento do filósofo jesuíta Henrique
Cláudio de Lima Vaz (1921 – 2002). Defendemos que a obra de Lima
Vaz pode ser situada na corrente doutrinal conhecida como Tomismo

* O presente estudo é desdobramento de pesquisas que realizamos em sede de graduação


(em trabalho de conclusão de curso orientado pelo professor doutor João Augusto Anchieta
Amazonas Mac Dowell, intitulado A doutrina tomista do juízo em Lima Vaz) [Publicada em
ALMEIDA, Philippe Oliveira de. A doutrina tomista do juízo em Lima Vaz. Pensar – Revista
eletrônica da FAJE. Belo Horizonte, v. 2, nº 1, 2011, p. 56 a 61], e de mestrado (em dissertação
orientada pela professora doutora Karine Salgado e intitulada Raízes medievais do Estado mo-
derno: a contribuição da Reforma Gregoriana) [ALMEIDA, Philippe Oliveira de. UNIVERSI-
DADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Raízes medievais do Estado moderno: a contribuição
da Reforma Gregoriana. 2013, 200 f., enc. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de
Minas Gerais, Faculdade de Direito]. Tivemos a oportunidade de debater nossa proposta
em diferentes eventos acadêmicos (citamos, a propósito, as comunicações que apresentamos
no 1º Colóquio Vaziano de Belo Horizonte, ocorrido em 2008 – com o título A doutrina tomista
do juízo em Lima Vaz – e no Primeiro Congresso Germano-Latinoamericano sobre a Filosofia
de Hegel, ocorrido em Buenos Aires em 2014 – com o título Lima Vaz: hegeliano ou tomista?).
Somos gratos, notadamente, aos professores doutores José Luiz Borges Horta, Delmar Car-
doso e Manuel Moreira da Silva pelas críticas e sugestões feitas.
** Nossa pesquisa não teria sido possível sem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de Minas Gerais – FAPEMIG, que financiou-nos no curso do mestrado, e da Coorde-
nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Fundação Capes, que ora financia-
-nos no doutorado.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 363-378, 2015.
Philippe Oliveira de Almeida

Transcendental – inaugurada pelo jesuíta belga Joseph Maréchal (1878


– 1944). Dessa maneira, a apropriação da Filosofia Clássica Alemã feita
pelo intelectual brasileiro atenderia a necessidades inerentes ao movi-
mento neotomista. Não pretendemos, por óbvio, esgotar o problema –
não faremos uma análise exaustiva de todas as referências ao Idealismo
Alemão que constam do corpus limavaziano.1 Adstringiremo-nos a tre-
chos paradigmáticos da apropriação limavaziana da filosofia de Hegel.
Longe de representar um frívolo exercício taxonômico, nosso
esforço para localizar Lima Vaz no seio do Tomismo Transcendental
dá-se no intuito de compreender o papel desempenhado por Hegel,
por Tomás de Aquino, pelos hegelianistas e pelos tomistas nas refle-
xões do autor brasileiro. São inestimáveis as contribuições de Lima Vaz
aos estudos pátrios acerca do Idealismo Alemão, em geral, e de Hegel,
em particular. Incontáveis gerações de pesquisadores nacionais foram
influenciados pela interpretação limavaziana do sistema hegeliano.
Assim, as finalidades que guiaram a recepção de Hegel por Lima Vaz
– bem como as estratégias por meio das quais referida recepção desen-
volveu-se – revelam-se tema fundamental à investigação da trajetória
histórica do hegelianismo na Terra Papagalli.

1. Racionalismo absoluto e realismo absoluto


Em artigo, de caráter polêmico, intitulado Entre o Hegel racional
e o Hegel real,2 José Luiz Borges Horta sustenta que, desde o século
XIX, duas interpretações do filósofo alemão se impuseram: a primeira
encontraria em Hegel o artífice do racionalismo absoluto; a segunda, o
fundador do realismo absoluto. Horta chega a falar, mesmo, em leituras
castrantes e leituras fecundas de Hegel. Para além da distinção entre
hegelianos de direita e hegelianos de esquerda, a demarcação proposta
por Horta colocaria em evidência o verdadeiro cisma que, ainda nos
dias que correm, atravessa a recepção da Filosofia Especulativa.


1
Um esforço nesse sentido pode ser encontrado na publicação do primeiro volume dos Ma-
nuscritos hegelianos de Lima Vaz, iniciativa presidida pelo professor Arnaldo Fortes Drum-
mond. Nosso estudo desenvolveu-se antes do lançamento de referido trabalho – no entanto,
parece ser corroborado pela obra. V. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. A formação do pensa-
mento de Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

2
HORTA, José Luiz Borges. Entre o Hegel racional e o Hegel real. Em BAVARESCO, Agemir;
MORAES, Alfredo (Orgs.). Paixão e astúcia da razão. Porto Alegre: Editora Fi, 2013.

364
De Hegel a Tomás de Aquino: Lima Vaz e o Tomismo Transcendental

Para os que entendem ser Hegel o artífice do racionalismo absoluto,


o sistema se inscreveria na tradição racionalista, herdeiro do Esclareci-
mento. Hegel não faria mais que expandir intuições de Kant, o apogeu
da filosofia ilustrada. Seu trabalho se constituiria em uma celebração
do logos apodítico, demonstrativo, que, descoberto na Grécia Clássica,
atingiria no mundo moderno sua plena maturidade. Para os que, em
contrapartida, vêem em Hegel o fundador do realismo absoluto, seria
imperioso encontrar no sistema, junto ao legado iluminista, o aporte
romântico. Como Joaquim Carlos Salgado pontifica: “[...] o romantis-
mo provoca em Hegel a necessidade histórica de recuperar a unidade
ética da vida grega, perdida com a queda da democracia, a unidade da
cultura ocidental, dada em primeiro lugar pela religião [...]”.3 O Ilumi-
nismo – tal como o Protestantismo – refletiria os dualismos do moder-
no sistema de pensamento. A Filosofia Especulativa adviria do esforço
para conjugar irrazão e razão, paixão e intelecto, fé e saber.
Fé e saber, vale notar, é o título dado pelo jovem Hegel a ensaio
elaborado em 1802 e lançado no Jornal Crítico de Filosofia – por ele co-
-editado, juntamente com Schelling. Escrito entre a publicação de Dife-
rença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling (em 1801) e o início
da redação da Fenomenologia do Espírito (lançada em 1807), Fé e saber
analisa os sistemas filosóficos de Kant, Jacobi e Fichte, vendo, neles,
a forma acabada da metafísica da subjetividade – e o indicativo de
seu esgotamento. Para Hegel, as doutrinas dos autores citados teriam
substituído o dogmatismo do ser pelo dogmatismo do pensamento.
Hegel refere-se a Kant como o “pisoteamento da razão” e o “júbilo do
entendimento e da finitude”.4 Longe de prolongar a filosofia do enten-
dimento, o idealismo desenvolvido nos albores do século XIX acolhe-
ria a tarefa de superar a – nas palavras de Hegel – “mania de Esclareci-
mento” representada por Kant.
É possível rastrear, no programa encampado por Hegel em Fé e
saber, a influência de seu amigo, o poeta e romancista Johann Christian
Hölderlin (1770 – 1843).5 Já Franz Rosenzweig (no clássico Hegel e o
3
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, p. 17.
4
HEGEL, Georg W. F. Fé e saber. Tradução de Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2007, p. 56.
5
A propósito da influência de Hölderlin sobre o jovem Hegel, no esforço para conceber uma
filosofia da união capaz de superar as aporias da doutrina kantiana, recomendamos, efusi-
vamente, a leitura de BECKENKAMP, Joãozinho. O jovem Hegel: formação de um sistema
pós-kantiano. São Paulo: Loyola, 2009.

365
Philippe Oliveira de Almeida

Estado, publicado em 1918) salientava as críticas de Hegel à “fria eru-


dição livresca” e o impacto do romance Hipérion, escrito por Hölderlin
entre 1794 e 1795, sobre seu pensamento.6 Contra Kant, é necessário
defender a totalidade indivisível do homem – composto pela cabeça,
pelo coração e pelas entranhas, marcado pelas dimensões intelectiva
e volitiva mas, também, pelo âmbito desiderativo. Pela boca de Hipé-
rion, Hölderlin pronunciará, contra a filosofia de seu tempo, um juízo
que ecoará no trabalho de Hegel:

Mas do mero intelecto jamais surgiu algo inteligível e da mera


razão jamais surgiu algo razoável.
[...]
Do mero intelecto não surgiria nenhuma filosofia, pois filosofia é
mais do que apenas o conhecimento restrito do existente.
Da mera razão não surgiria nenhuma filosofia, pois filosofia é
mais do que a exigência cega de um progresso interminável na
confluência e discernimento de um assunto qualquer.7

No entender de Horta, parcela substancial dos hegelianistas –


notadamente na Latinoamérica – trabalha, ainda hoje, para minimizar
a presença de tonalidades românticas na Filosofia Especulativa. Para
tanto, enfatizam os elos entre Kant e Hegel. São esses os adeptos da
linha interpretativa que identifica em Hegel o artífice do racionalismo
absoluto. O Conceito – noção capital no Idealismo Absoluto – seria, não
um caleidoscópio multicolorido (que, em sua unidade, preservaria a
diversidade de matizes do real), mas uma abstração cinza. Os elementos
dionisíacos (dialéticos) do pensamento hegeliano seriam rejeitados em
prol de uma leitura apolínea (analítica), que enfatiza a racionalidade
da história, mas ignora a historicidade da razão. Semelhante leitura
procuraria aplainar a acidentada – repleta de níveis e texturas distin-
tas – topografia da obra de Hegel, tornando-a uma superfície lisa e
uniforme. Transformariam em arabesco rococó o desenho barroco da
Filosofia Especulativa.


6
V. ROSENZWIEG, Franz. Hegel e o Estado. Tradução de Ricardo Timm de Souza. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
7
HÖLDERLIN, Friedrich. Hipérion ou O eremita na Grécia. Tradução de Erlon José Paschoal.
São Paulo: Nova Alexandria, 2003.

366
De Hegel a Tomás de Aquino: Lima Vaz e o Tomismo Transcendental

2. A Companhia de Jesus e a “domesticação de Hegel”

Trata-se, para Horta, de um projeto voltado à “domesticação de


Hegel” – quer dizer, uma tentativa de neutralizar o caráter transgres-
sor de seu pensamento. É nesses termos que o autor entende o trata-
mento dado a Hegel por pensadores vinculados à Companhia de Jesus
– dentre os quais se encontra Lima Vaz. No ensinamento de Horta:
A história das idéias filosóficas no Brasil está por nos oferecer
uma análise dos limites da intervenção da Companhia de Jesus –
que para nossa alegria elegeu Hegel como seu pensador nodal (e
daí a primazia dos padres Lima Vaz, em Minas, e Paulo Meneses,
em Pernambuco) – não somente sobre todos nós como, até mes-
mo, sobre os jesuítas que nos iniciaram, direta ou indiretamente,
na leitura de Hegel. Afinal, trata-se de uma ordem.8

Como, noutra ocasião, tivemos a oportunidade de debater, na


América Latina, a Companhia de Jesus teve, desde o início do processo
de colonização, enorme impacto sobre a formação das mentalidades. O
grande historiador e crítico literário Wilson Martins dedica um volume
inteiro do clássico História da inteligência brasileira (constituído de sete
tomos) à contribuição dos jesuítas para a edificação da elite intelectual
da América Portuguesa.9
Ainda está por ser realizada uma reconstituição histórica do pa-
pel da Ordem Jesuíta na difusão, em solo latino-americano, do pen-
samento filosófico. Em terras brasileiras, diversos são os intelectuais
que, associados ou não ao catolicismo, devem sua iniciação filosófica
a escolas confessionais presididas pela Companhia de Jesus. Freqüen-
temente ignorado em virtude do preconceito (que leva muitos a ver
nas religiões mero dogmatismo infenso à reflexão crítica), o aporte dos
jesuítas é capítulo imprescindível à compreensão da trajetória da filo-
sofia no Brasil.
Os elementos acima arrolados seriam, por si sós, mais que su-
ficientes para justificar o estudo da vida e da obra de Lima Vaz. Or-
denado em 1948, o autor exerceu o magistério filosófico universitário
por quase cinqüenta anos, nas cidades de Nova Friburgo, São Paulo,


8
HORTA. Entre o Hegel racional e o Hegel real..., cit., p. 135, nota 115.
V. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: T. A. Queiroz, 1992, 1 vol.
9

367
Philippe Oliveira de Almeida

Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Lecionando na Faculdade de Filosofia


da Companhia de Jesus (que, após sucessivas transferências, fixou-se
na capital do Estado de Minas Gerais), Lima Vaz tornou-se figura po-
lar na educação de inúmeras gerações sequiosas por se aproximarem
do saber filosófico. Representou inspiração não apenas no âmbito da
theoria mas, também, no campo da práxis: a Juventude Universitária
Católica (JUC), que, durante a Ditadura Militar Brasileira (1964 – 1985)
estabeleceu-se como força de resistência, encontrou esteio em seus en-
sinamentos. Lima Vaz é exemplo paradigmático da relação dos jesuí-
tas, na Latinoamérica, com o ensino e a pesquisa.
Em arguta análise da obra de Tomás de Aquino, Ernest L. Fortin
propõe que, longe de batizar Aristóteles, o Doutor Angélico teria nega-
do ao Estagirita a plena cidadania na Cidade de Deus. O Aquinatense
(e a Ordem dos Dominicanos da qual faz parte) asseguraria ao filósofo
grego, não o dom da Graça, mas a graça de viver – no combate de vida
e morte contra os pagãos e os hereges, Aristóteles seria poupado, como
cativo, em virtude de suas habilidades dianoéticas. A filosofia grega
sobreviveria como escrava da teologia cristã.10 Poderíamos dizer que,
na perspectiva de Horta, destino semelhante foi reservado a Hegel nas
classes da Companhia de Jesus. Considerando o impacto da Ordem
dos Jesuítas sobre a educação filosófica pátria, o juízo de Horta incidi-
ria sobre boa parte dos estudos hegelianistas brasileiros.

3. Lima Vaz: hegeliano ou tomista?


É importante descartar, desde já, uma crença, difundida nos
meios acadêmicos, segundo a qual Lima Vaz seria hegeliano. Isso im-
plicaria dizer que, nos campos de batalha da filosofia contemporânea,
Lima Vaz se alistaria nas fileiras do hegelianismo, escolhendo como
aliados – isto é, como interlocutores privilegiados – os intelectuais que
optaram por florescer sob a copa frondosa e recurvada da Filosofia
Especulativa. Essa crença se deve ao fato de que, por décadas, o filó-
sofo jesuíta traduziu e ensinou Hegel, formando várias gerações de
hegelianistas brasileiros. A Lima Vaz se atribui a invenção do neolo-
gismo “suprassunção” com vistas a verter para o português o conceito

10
FORTIN, Ernest L. Tomás de Aquino. Em STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (Org.). História da
filosofia política. Tradução de Heloisa Gonçalves Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 246.

368
De Hegel a Tomás de Aquino: Lima Vaz e o Tomismo Transcendental

hegeliano de “aufhebung”. Seu amigo, também jesuíta, Paulo Meneses11


(1924 – 2012) – mais significativo tradutor de Hegel no Brasil, respon-
sável pela melhor tradução da Fenomenologia do Espírito em língua por-
tuguesa12 – teria incorporado a seu labor diversas intuições de Lima
Vaz. Ademais, são famosas as monografias de Lima Vaz que procuram
esclarecer pontos controversos da obra de Hegel.13 A terminologia he-
geliana permeia o texto de Lima Vaz, o que denuncia uma leitura aten-
ta do filósofo alemão. Porém, a despeito das inegáveis contribuições de
Lima Vaz aos estudos hegelianos, é notória sua rejeição à cosmovisão
do Idealismo Absoluto.14
É Lima Vaz, ele próprio, quem descarta dita possibilidade de
associação, em entrevista concedida, em 1997, a Anderson Gonçalves,
José Luis Herência, Luis Sérgio Repa e Sílvio Rosa Filho, e publicada
nas páginas dos Cadernos de Filosofia Alemã:

Antes de mais nada, desejaria chamar a atenção para o fato de


que não me considero um especialista em Hegel, um hegelianista
no sentido estrito da palavra. Um especialista faz de determi-
nado campo de estudo um campo prioritário. Além do mais, é
alguém que se preparou com cursos adequados para o campo
da especialidade à qual se dedica, e dispõe de instrumentos ade-
quados para pesquisar nesse campo. Ora, em primeiro lugar, não
faço do estudo de Hegel uma ocupação prioritária em minhas
pesquisas. Em segundo lugar, não tive uma formação especiali-
11
Sobre a importância de Paulo Meneses para os estudos hegelianos no Brasil, recomendamos
a leitura do texto “Paulo Meneses e a tradução da Fenomenologia do Espírito de Hegel”, escrito
por José Pinheiro Pertille e disponibilizado no endereço eletrônico http://www.unicap.br/
Pe_Paulo/documentos/fenomenologia%20do%20espirito%20hegel.pdf, acessado em 31 de
janeiro de 2014. Uma condensação das opiniões de Paulo Meneses acerca da filosofia hege-
liana pode ser encontrada em MENESES, Paulo. Hegel como mestre do pensar. Síntese, Belo
Horizonte,v. 23, nº. 73, 1996, p. 149 a 158.
12
V. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses,
com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. Petrópolis: Vozes; Bra-
gança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008. Paulo Meneses é autor de didática
introdução à Ciência da Experiência da Consciência, publicada em MENESES, Paulo. Para ler
a Fenomenologia do Espírito: roteiro. São Paulo: Loyola, 1992.

13
Por todas, citamos LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Senhor e escravo: uma parábola da
filosofia ocidental. Síntese, Belo Horizonte, v. 8, nº 21, janeiro-abril/1981, p. 7 a 29.

14
Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Transcendência: história e teoria. Filosofia e cultura. São
Paulo: Loyola, 1997, p. 220 e 221; e LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Experiência mística e
filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000, p. 20 e 44.

369
Philippe Oliveira de Almeida

zada no estudo de Hegel, nem curso especializado, no exterior,


sobre Hegel. Em terceiro lugar, como suponho ser o caso geral
no Brasil, não disponho de todos os instrumentos bibliográficos
necessários para realizar uma pesquisa especializada em estudos
hegelianos, que cobrem um campo muito vasto, têm uma biblio-
grafia impressionante, em incessante aumento. Logo, não sou es-
pecialista em Hegel. Posso dizer mesmo que, em Hegel, sou uma
espécie de autodidata, embora tenha contado com professores
especializados, sobretudo europeus.15

Na entrevista referida, Lima Vaz conta que, inicialmente, se apro-


ximou do pensamento hegeliano com o fito de compreender a obra de
Marx. O problema da (in)compatibilidade do marxismo com a filosofia
cristã era candente entre os pensadores de sua geração – geração que,
cabe frisar, edificou a Teologia da Libertação. Lima Vaz logo percebeu
que, para destrinchar a doutrina marxiana, precisaria enfrentar o texto
de Hegel. Como, posteriormente, afirmará, o marxismo surge a seus
olhos como uma província rebelde do hegelianismo de esquerda. Um
deslocamento opera-se, então: Lima Vaz passa da questão da (in)com-
patibilidade entre marxismo e filosofia cristã ao tema da relação entre
Absoluto e história no hegelianismo – e em toda a filosofia moderna,
da qual o trabalho de Hegel constitui o coroamento.

4. Hegel: teísta ou ateu

A filosofia hegeliana comporta a crença em um Deus pessoal


e transcendente? O Absoluto ideal de Hegel identifica-se com o Ab-
soluto real da doutrina cristã? Noutros termos: o Idealismo Absoluto
pretende suprassumir o cristianismo, substituindo a fé pelo saber? A
pergunta, ainda hoje, divide opiniões. No entanto, mostra-se inescapá-
vel, no trabalho de um autor – como Lima Vaz – que assume como mis-
são, inspirado na Nouvelle Théologie, revitalizar a filosofia cristã. Não é
necessário, aqui, revisar as incontáveis críticas de Hegel ao catolicismo
– a associação, feita na Fenomenologia do Espírito, entre a Idade Média
(era de apogeu do catolicismo) e a “consciência infeliz” sinaliza a dis-
tância a separar o filósofo de Stuttgart e o intelectual jesuíta. Em rese-

15
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Filosofia e forma da ação. Cadernos de Filosofia Alemã. São
Paulo, n.2. p. 77-102. jun. 1997. (Entrevista realizada em Belo Horizonte em 12 de maio de 1997.

370
De Hegel a Tomás de Aquino: Lima Vaz e o Tomismo Transcendental

nha, publicada nas páginas da revista Síntese, sobre livro de John Inglis
intitulado Spheres of Philosophical Inquiry and the Historiography of Me-
dieval Philosophy, Lima Vaz se mostrará consciente da necessidade de,
contra Hegel, rever o juízo negativo que a Modernidade lança sobre a
história da filosofia medieval.16
Alexandre Kojève via em Hegel o primeiro e mesmo o único filó-
sofo completamente ateu. Sempre foi objeto de polêmica a questão da
compatibilidade da Filosofia Especulativa com a crença em um Deus
pessoal e transcendente.17 O problema estabeleceu-se desde o século
XIX, sendo um dos principais fatores da divisão entre hegelianos de
esquerda e de direita. Será a obra de Hegel a tradução especulativa do
ateísmo, como condenavam os filósofos cristãos e celebravam os hege-
lianos de esquerda? Essa questão é capital, não só à compreensão dos
fundamentos do conceito de espírito em Hegel, mas, também, à análise
da situação da escola hegeliana após o falecimento do filósofo alemão.
Os temas do “Deus pessoal” e da “alma imortal” – as duas proposições
nucleares do teísmo – foram os principais objetos de conflito no decê-
nio que se seguiu à morte de Hegel, condicionando as tensões subse-
qüentes no cerne do “idealismo tardio”. Assim José Henrique Santos
apresentou o problema:

No que se refere ao absoluto, impõe-se a questão: deve-se iden-


tificá-lo com o Deus da tradição cristã (o que é consistente com
a fé luterana de Hegel), ou simplesmente com o inventário siste-
mático dos momentos dialéticos que o ser e o nada engendram
em seu movimento? Deve-se dizê-lo imanente ou transcendente?
Se o absoluto for apenas imanente, não seria mais adequado in-
dicar, desde já, que se trata do todo inerente às partes, de uma
espécie de pressuposto necessário para articular os segmentos
do discurso e dar-lhes coerência? Ou seria o caso de considerá-lo,
numa forma conciliatória, ao mesmo tempo imanente e transcen-
dente, com a transcendência posta na imanência?18


16
V. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. A história da filosofia medieval revisitada. Síntese,
Revista de filosofia. Belo Horizonte: FAJE, v. 27, nº 89, 2000.

17
Sobre o tema, v. JAESCHKE, Walter. Philosophy of religion after the death of god. Em DES-
MOND, William; ONNASCH, Ernst-Otto; e CRUYSBERGHS, Paul. Philosophy and religion in
german idealism. New York: Kluwer Academic Publishers, 2004.

18
SANTOS, José Henrique. O trabalho do negativo: ensaios sobre a Fenomenologia do Espírito.
São Paulo: Loyola, 2007, p. 51.

371
Philippe Oliveira de Almeida

Não são raros os eruditos que vêem, na doutrina do Saber Abso-


luto, uma tentativa de transplantar, para o sujeito finito, atributos até
então associados ao Deus infinito.19 A Providência Divina, exterior e su-
perior à práxis histórica, teria sido substituída pela Astúcia da Razão. A
filosofia hegeliana poderia ser compreendida como uma – nas palavras
de Walter Jaeschke – “progressiva secularização da riqueza espiritual da
religião”,20 que a expropria de seus fundamentos, conferindo aos mes-
mos um caráter mundano e reinserindo-os no interior da vida social e
do labor filosófico. O pensamento hegeliano, assim, inauguraria a idade
pós-metafísica. Segundo Jaeschke, o Deus pessoal do cristianismo não
passa, no sistema hegeliano, de um “ser mitológico domesticado filoso-
ficamente”, algo “cuja existência é passível de discussão”.21

5. Leitura transcendentalista, leitura imanentista

Acreditamos que, em diferentes momentos de sua trajetória inte-


lectual, Lima Vaz oferece diferentes respostas ao problema acima deli-
neado – o que sinaliza suas incertezas quanto à questão. Diante desse
impasse, embora faça uso da lógica dialética, Lima Vaz não acompa-
nha a Filosofia Especulativa em seus resultados últimos. Longe de dar
uma resposta definitiva ao problema do (a)teísmo em Hegel, Lima Vaz
optou por contorná-lo. Se não reconhecia em Hegel um dos responsá-
veis pela “morte de Deus”,22 tampouco o enxergava como esperança de
sua ressurreição no âmbito das elucubrações teóricas.23 Frente a tal im-
passe, Lima Vaz empregou métodos da Filosofia Clássica Alemã (como


19
É o caso, por exemplo, de Eric Voegelin (pensador detidamente estudado por Lima Vaz), que
encarava as filosofias da história como imanentizações falaciosas e deformadas do eschaton
cristão. A propósito, v. SANDOZ, Ellis. A revolução voegeliniana: uma introdução biográfica.
Tradução de Michael Henry. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 318.
20
JAESCHKE, Walter. Hegel. La conciencia de la modernidad. Tradução de Antonio Gómez Ra-
mos. Madrid: Ediciones Akal, 1998, 47.
21
JAESCHKE. Hegel..., cit., p. 38.
22
Como fará, dentre outros, Carlos Enrique Restrepo. Nesse sentido, v. RESTREPO, Carlos
Enrique. La frase de Hegel: “Dios há muerto”. Escritos, Medellín, v. 18, nº. 41, julho-dezem-
bro/2010, p. 427 a 452.
23
Como fará, dentre outros, Alfredo de Oliveira Moraes. A propósito, v. MORAES, Alfredo de
Oliveira. A metafísica do conceito: sobre o problema do conhecimento de Deus na Enciclopédia
das Ciências Filosóficas. Porto Alegre: EDIPUCRS; Recife: UNICAP, 2003.

372
De Hegel a Tomás de Aquino: Lima Vaz e o Tomismo Transcendental

a “rememoração”) para recuperar conteúdos por ela vistos como ultra-


passados – a tradição aristotélico-tomista, fundamentalmente.24
Chamamos de “leitura transcendentalista” aquela que encontra
compatibilidade entre o Idealismo Absoluto e a doutrina cristã; em
contrapartida, designamos como “leitura imanentista” aquela que vê
a Filosofia Especulativa como um projeto comprometido com o huma-
nismo ateu. Tentaremos, abaixo, evidenciar a presença das duas leitu-
ras no corpus teórico de Lima Vaz.
Exemplos da leitura transcendentalista podem ser encontrados
nos seguintes trechos:

Uma das exigências da leitura imanentista de Hegel é justamente


a interpretação do Espírito absoluto em termos redutivamente
antropológicos e históricos, o que significa uma completa desar-
ticulação do Sistema e a formação dos mitos do Saber absoluto
como expressão do “antropocentrismo” (A. Kojève), e da absolu-
tização do Estado (K. Popper).25

E:

Estamos aqui, sem dúvida, diante daquele durus sermo que a pos-
teridade de Hegel, quase sem exceção, se recusou a ouvir, traçan-
do assim o destino do historicismo na filosofia pós-hegeliana. De
L. Feuerbach a A. Kojève, passando por K. Marx e por todas as
variantes da tradição marxista, pelo historicismo idealista e cul-
turalista, pela fenomenologia de cunho existencialista, a leitura
de Hegel, de qualquer ângulo que tenha sido feita, deteve-se obs-
tinadamente nas fronteiras da História e erigiu um paradigma
de antropologismo radical como o único adequado para inter-
pretar Hegel, mesmo contra Hegel, ou para desvendar a verdade
e o segredo de Hegel.26

Nas passagens citadas, Lima Vaz atribui às apropriações póstu-


mas da obra de Hegel a redução antropológica e histórica da Filosofia

24
Era uma solução conservadora, ao fim e ao cabo: dar uma roupagem moderna a uma doutri-
na encampada pela Igreja desde o fim do Medievo. Em termos hegelianos, poderíamos dizer
que Lima Vaz estanca face à passagem da Representação ao Conceito.

25
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Introdução à Ética filosófica I. São Paulo: Loyola, 2002, p. 401.

26
LIMA VAZ. Introdução à Ética Filosófica I..., cit., p. 400.

373
Philippe Oliveira de Almeida

Especulativa. A crença de que no Idealismo Absoluto o sujeito ocu-


paria o locus de produtor de significado do real, dantes ocupado por
Deus, deveria ser reputada, não a Hegel, mas às gerações que o suce-
deram e dele se apropriaram.
Em contrapartida, identificamos um exemplo da leitura imanen-
tista na passagem que segue:

A titânica empresa especulativa que Hegel se propôs levar a cabo


tinha por alvo justamente assegurar ao homem a conquista da
profundeza infinita da subjetividade pela imanetização, no dis-
curso do saber – a Filosofia – do Absoluto que é Idéia (tema da
Ciência da Lógica) e do Absoluto que é palavra mundana e his-
tórica (tema da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Espírito). A
grandiosa aventura intelectual de Hegel é, pois, a primeira – a
mais ambiciosa e coerente – tentativa de redução da estrutura
meta-analógica do discurso filosófico cristão à univocidade de uma
Lógica do Absoluto que na sua “exposição” (Darstellung) no sa-
ber do homem, tornado no filósofo Saber Absoluto, atesta nele a
imanência da subjetividade infinita – Espírito Absoluto.27

No trecho indicado, Lima Vaz acusa Hegel de substituir a (para


valermo-nos da linguagem escolástica) analogia entis da Teologia pela
univocidade do Conceito. A noção de analogia entis implica o reconhe-
cimento da transcendência do Absoluto, irredutível às categorias hu-
manas. Isso significa que, por situar-se além da consciência e da his-
tória, o Absoluto nos escapa. Todo discurso a seu respeito é precário,
apresentando caráter analógico. O intelecto discurso esgota-se frente
ao Totalmente Outro. Em Hegel, a imanência do sujeito e da história
acabaria por fagocitar a transcendência do Absoluto – o intelecto dis-
curso se mostraria soberano, o que implicaria na substituição da ana-
logia pela univocidade.
É essa a leitura que Juvenal Savian Filho atribui a Lima Vaz. Sa-
vian Filho traduziu, para a língua portuguesa, a tese de doutoramento
de Lima Vaz – defendida em 1953, sob orientação de René Arnou, na
Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Intitulada Contemplação
e dialética nos diálogos platônicos, a obra (escrita originalmente em latim)
contrapõe-se a tendência – representada por André-Jean Festugière


27
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997.

374
De Hegel a Tomás de Aquino: Lima Vaz e o Tomismo Transcendental

– de ver, na contemplação platônica, uma experiência mística, supra-


-racional. A identificação, feita por Lima Vaz, da presença do intelecto
discursivo no ato contemplativo poderia ser entendida, por um leitor
incauto, como mais um indicativo do hegelianismo do filósofo. Entre-
tanto, contra tais inferências, Savian Filho argumenta:

Acentuando o caráter profundamente intelectualista da contem-


plação platônica, Lima Vaz não recebia já certa influência hege-
liana, ainda que “indecisa”, tal como ele qualificou posterior-
mente? Mas não parece possível, em todo caso, recorrer a Hegel
para “explicar” a tese de Lima Vaz, inclusive porque, como ele
mesmo diz, o pensamento hegeliano é um dos melhores exem-
plos da maneira como a noção de transcendência foi eliminada
da filosofia e de como a exigência platônica de um absoluto foi
transposta e alterada em termos de imanência.28

Imanência ou transcendência? Não há, em Lima Vaz, uma con-


clusão que encerre o debate. Ora, era necessário enfrentar as críticas
de Kant à ontologia tradicional,29 sem, no entanto, incorrer na suspeita
de absolutização da subjetividade que recaía sobre o Idealismo Ale-
mão. A alternativa encontrada por Lima Vaz, com o fito de preservar
a identidade cristã de seu pensamento, foi abraçar o realismo crítico do
tomismo transcendental.

6. Lima Vaz e o tomismo transcendental

Certa feita, Lima Vaz referiu-se a si mesmo como “maritainia-


no” – i.e., continuador do trabalho do filósofo Jacques Maritain (1882
– 1973).30 A influência de Maritain sobre Lima Vaz liga-se menos a te-
orias que a sua figura pública. Lima Vaz instruiu-se em um período

28
SAVIAN FILHO, Juvenal. Nota de apresentação do tradutor brasileiro. Em LIMA VAZ, Hen-
rique Cláudio de. Contemplação e dialética nos diálogos platônicos. Tradução de Juvenal Savian
Filho. São Paulo: Loyola, 2012, p. 13 e 14.

29
O sistema crítico de Kant opera uma clivagem entre fé e razão, o que põe em xeque toda
e qualquer tentativa de formular uma investigação racional acerca de temas de ordem te-
ológica e metafísica. Enfrentar Kant tornou-se, pois, imperativo aos autores que, na Idade
Contemporânea, optaram por se manter fiéis a um projeto de “filosofia cristã”.

30
Para uma introdução à filosofia de Maritain, recomendamos a leitura de PERINE, Marcelo.
Maritain: um contemporâneo. Belo Horizonte: FUMARC/PUC Minas, 1998.

375
Philippe Oliveira de Almeida

no qual o estudo da filosofia cristã se resumia à leitura de manuais,


de qualidade duvidosa, que filtravam a filosofia perene de Tomás de
Aquino, em interpretações descontextualizadas. Maritain foi um dos
primeiros a, atendendo aos ensejos de Leão XIII expostos na encíclica
Aeterni Patris,31 voltar-se ao aquinatense para dialogar com o tempo
presente. Tornou-se, assim, emblema do Aggiornamento, de um cristia-
nismo “progressista” preocupado em “modernizar-se”. Muitos jovens
católicos, na América Latina, tomaram Maritain como modelo.32
Embora se considerasse “paleotomista” (visto que, rejeitando
as glosas, propunha o enfrentamento direto do texto do aquinatense),
Maritain pode ser encarado como o mais significativo pensador do ne-
otomismo, corrente que, no século XX, propunha atualizar a doutrina
tomásica para responder a dilemas modernos. Diversas são as ramifi-
cações do neotomismo, que podem ser distribuídas de acordo com os
movimentos da filosofia contemporânea com os quais se propuseram
dialogar – fenomenologia, existencialismo etc.33
Dentre tais ramificações, Lima Vaz filia-se, inquestionavelmente,
àquela conhecida como tomismo transcendental. Trata-se de uma ten-
tativa de intercâmbio entre o neotomismo e o Idealismo Alemão, que
remonta ao trabalho do jesuíta belga Joseph Maréchal (1878 – 1944).34

31
Que encontra-se disponibilizada, integralmente, no endereço eletrônico http://www.aqui-
nate.net/portal/Tomismo/Tomistas/papa-leao-XIII-aeterni%20patris.php, acessado em 30 de
janeiro de 2014.

32
A propósito, v. RODRIGUES, Cândido Moreira. Catolicismo e democracia cristã na América
do Sul: a influência do filósofo Jacques Maritain. Saber acadêmico – revista multidisciplinar
da Uniesp, nº 6, dezembro de 2008, págs. 186 e 187. Disponível em http://www.uniesp.edu.
br/revista/revista6/pdf/19.pdf, acessado em 30 de janeiro de 2014. Um exemplo do impacto
de Maritain sobre católicos latino-americanos pode ser encontrado na trajetória do filósofo,
jurista, jornalista e político brasileiro Edgar de Godói da Mata Machado. V. ALMEIDA, Phi-
lippe Oliveira de. A doutrina tomista do debitum em Mata Machado. Belo Horizonte, 2009.
Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais.

33
Acerca das ramificações do neotomismo, v. CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo hoje. São
Paulo: Loyola; Santos: Leopoldianum, 1989. V., ainda, CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo
no Brasil. São Paulo: Paulus, 1998.

34
Sobre a filosofia de Maréchal, recomendamos a leitura de SOUSA, Luís Carlos Silva de. A
metafísica enquanto teoria transcendental absoluta em Joseph Maréchal e Vittorio Hösle.
Síntese, v. 33, n. 107, 2006, p. 393 a 412. A mais conhecida dentre as obras de Maréchal, que
articula o essencial de sua doutrina, encontra-se em MARECHAL, Joseph. Le point de depart
dela metaphisique: leçons sur le developpement historique et theorique du probleme de la
connaissance. Bruxelles: L’edition Universelle; Paris: Desclee de Brouwer, [19-]. 5v.

376
De Hegel a Tomás de Aquino: Lima Vaz e o Tomismo Transcendental

O pioneirismo de Maréchal pode explicar, em parte, o interesse de es-


tudiosos da Companhia de Jesus, no século XX, pela Filosofia Clássica
Alemã. Ajuda a entender, em contrapartida, as limitações das leituras
desenvolvidas por membros da Ordem. Concebido, inicialmente, para
oxigenar a filosofia cristã de cariz aristotélico-tomista, o estudo jesuíta
do Idealismo Alemão se subordina às necessidades daquela.
Maréchal focou suas investigações nas obras de Kant e Fichte, bus-
cando traduzir para o dialeto da “filosofia crítica” a metafísica tomásica.
Pretendia, com Kant, contra Kant, demonstrar a “atualidade” do tomis-
mo, que seria capaz de fazer face à “teoria do conhecimento” moderna.
Natural que, em sua esteira, outros intelectuais católicos – como o jesuíta
Johannes Baptist Lotz – tenham aprofundado a apropriação neotomista
da Filosofia Clássica Alemã, recorrendo a autores como Schelling e He-
gel. É essa a tradição que Lima Vaz se vincula, como deixa claro em sua
última obra publicada em vida, Raízes da modernidade.
Maréchal tinha por intuito transcrever, com a gramática da epis-
temologia moderna, a metafísica tomásica. Para o autor, era imprescin-
dível mostrar que a lógica subjacente à ontologia de Tomás de Aqui-
no era capaz de superar as aporias da lógica transcendental. Longe
de sucumbir ao que poderíamos entender como uma versão ingênua
da teoria da verdade como correspondência (ou adequação) – segun-
do a qual o juízo verdadeiro se fundaria no ajustamento entre a coisa
mesma e as representações mentais –, o realismo crítico de Tomás de
Aquino (na leitura de Maréchal) enfatizaria o dinamismo intelectual que
articula a inteligibilidade do objeto à inteligência do sujeito.
Maréchal procura reabilitar a metafísica, mostrando que, longe
de representar uma postulação dogmática, é ela uma exigência da pró-
pria atividade crítica. O sujeito epistêmico, ao voltar-se para o mundo
dos fenômenos, depende, desde o início, do pressuposto de que existe
um Absoluto real, dele independente, a dar consistência ao mundo das
coisas mesmas. O Absoluto real, assim, figura como condição de pos-
sibilidade para a intelecção, pressuposto necessário para a construção
de juízos da razão teórica.
Não é difícil rastrear, no labor limavaziano, a inspiração de Ma-
réchal. Lima Vaz lança-se à tarefa de encontrar, subjacente à metafísica
tomásica, uma estrutura lógica compatível com o pensamento dialé-

377
Philippe Oliveira de Almeida

tico. Tomás de Aquino poderia, desse modo, ser apresentado como


contemporâneo de Hegel – capaz de responder às aporias da Filosofia
Clássica Alemã sem sucumbir à tentação de abandonar a fé em prol do
saber absoluto. Um dado, contudo, deve ser destacado: desde o iní-
cio pairou, sobre o pensamento de Maréchal, a suspeita de que, no
diálogo com o Idealismo, restaria prisioneiro dele. A argumentação de
Maréchal não escaparia da centralidade que o kantismo dá ao sujeito
epistêmico – incapaz, pois, de reabilitar o realismo crítico.
Rechaçando tais suspeitas, Lima Vaz soma, às pretensões de Ma-
réchal, a doutrina – que Etienne Gilson se esmera em recuperar – do
ser como Esse (Existir). Tomás de Aquino teria, em sua obra, distingui-
do os conceitos de ens e Esse, mostrando que, mais que um fato, o ser
é ato. Não é um predicado que se atribui a uma coisa – mas a condição
de possibilidade para que se prediquem atributos a uma coisa. Nesse
sentido, se afirmaria como dimensão que independe do intelecto dis-
cursivo – e o mobiliza. Ao fim do dinamismo intelectual evidenciado por
Maréchal, Lima Vaz encontra a soberania do Esse (e de Deus, Ipsum
Esse Subsistens) enfatizada por Gilson.
Não temos, aqui, a pretensão de nos aprofundarmos nas sutilezas
da especulação tomista. Esperamos, apenas, haver demonstrado que,
jamais representando um fim em si mesmo, a recepção de Hegel em
Lima Vaz tem por meta impulsionar pesquisas já abertas nas vertentes
neotomistas da filosofia cristã. Na aurora de um novo milênio, é Tomás
de Aquino, e não Hegel, que Lima Vaz encontra a anunciar uma Nova
Cristandade. Apenas o tomismo é capaz de, verdadeiramente, supras-
sumir as cisões da Modernidade – cisões que Hegel tão bem conhecia,
mas das quais, menos que uma alternativa, constitui um sintoma.

378
Descartes e o começo absoluto: a interpretação
hegeliana da filosofia de Descartes

Carlos Gustavo Monteiro Cherri


Universidade federal de São Carlos

ABREVIATURAS
DM – Descartes, Discurso do método;
MM – Descartes, Meditações metafísicas;
PF – Descartes, Princípios da Filosofia;
IHF – Hegel, Introdução à história da filosofia (tradução Barata-
-Moura)
LHPh – Hegel, Leçons sur l´Histoire de la Philosophie (edição críti-
ca-tradução francesa de Pierre Garniron, 1985).
VGPh - M – Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie
(edição de Michelet, 1832-45);

Segundo Hegel, a História da Filosofia é desdobramento da úni-


ca e universal filosofia. Isso quer dizer que cada filosofia particular é
apenas um momento da totalidade, que é a filosofia. A filosofia pode
ser dividida em duas etapas, a saber, a filosofia grega e a filosofia ger-
mânica, tendo os romanos e a Idade Média como períodos de fermen-
tação. A filosofia progride de expressões abstratas para formas mais
concretas. As formas abstratas são as primeiras formulações e são de-
nominadas dessa maneira pelo fato de que seus princípios filosóficos
não atingem a totalidade, já que a filosofia não está pronta e acabada,
mas se desenvolve no devir de si mesma, de modo que a filosofia atual
contém as filosofias anteriores como unilateralidades em seus sistemas.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 379-385, 2015.
Carlos Gustavo Monteiro Cherri

Hegel afirma que a Filosofia moderna começa com Descartes.


Tal afirmação reside no fato de que Descartes renunciou a todos os
pressupostos, preconceitos e juízos para começar do pensamento puro
e livre. O princípio do pensar é um recomeço da Filosofia, pois no pas-
sado, os filósofos tiveram a necessidade de pressupor algo como ver-
dadeiro. Entretanto, Descartes rejeita esta possibilidade ao duvidar de
tudo. Nesse sentido, o presente texto tem como objetivo acompanhar
como Hegel compreende o papel desempenhado por meio do empre-
go da dúvida na filosofia cartesiana e destacar como ela representa a
ruptura com os pressupostos e com a filosofia da exterioridade.
Descartes começou pelo pensamento como tal, e este é um co-
meço absoluto1. E que deveria ser começado apenas do pensamento,
exprimindo que deveríamos duvidar de tudo. A dúvida constitui a
primeira exigência da filosofia, isto é, duvidar de tudo, afirmando que
devemos abandonar todos os pressupostos. “De omnibus dubitandum
est”, era a primeira proposição de Descartes2. A renúncia a todos os
pressupostos e das próprias determinações, preestabelecidos, este é o
significado do duvidar cartesiano.
A dúvida não tem, entretanto, o sentido do ceticismo3, no qual, a
dúvida não assenta outro objetivo do que a própria dúvida, que deve
estagnar-se diante desta indecidibilidade do espírito, e que reside nis-
so sua liberdade, expressa na forma da suspensão do juízo. Porém, ao
contrário, em Descartes, tem preferencialmente o sentido de renunciar
a cada preconceito e pressupostos e começar do pensamento. Este não
é o caso dos céticos, visto que a dúvida é o próprio resultado. O duvi-
dar de Descartes não é um fim, mas um meio de alcançar algo de indu-
bitável, tendo como regra primeira não fazer quaisquer pressupostos,
porque nada é sólido e seguro para ser admitido como ponto de parti-
da, já que não se deve admitir como verdadeiro o que não se apresen-


1
Cf. LHPh p. 1389 (334-335); VGPh-M, p.127.

2
É importante ter sempre em mente que o texto que Hegel tem como referência para a sua
exposição são os Princípios da Filosofia. Descartes dedica os sete primeiros artigos (1 a 7),
de seu livro, para a consideração da dúvida. Sinteticamente esses artigos estabelecem que
devemos ao menos uma vez na vida duvidar de tudo considerando como falso tudo o que
é duvidoso, atentando-se sempre que a dúvida não pode conduzir nossas ações. Dentre as
coisas que podem ser colocadas em dúvida estão os sentidos, as representações sensíveis e
matemáticas, assim como a existência de Deus. (PF, p. 53 a 57).

3
Cf. Art. 3. Que nunca devemos usar esta dúvida na condução dos nossos atos (PF, p. 54)

380
Descartes e o começo absoluto: a interpretação
hegeliana da filosofia de Descartes

ta como tal. O impulso da liberdade é o fundamento dessa atividade,


uma vez que, segundo Descartes, pode ser considerado como falso
tudo aquilo que não encontra evidência no interior da consciência ou
que seja passível de supor a menor dúvida. Com efeito, escreve Hegel:

Descartes coloca que é necessário duvidar de tudo, quer dizer,


abandonar todos os pressupostos. De omnibus dubitandum est,
foi a primeira proposição de Descartes, na qual se desabam todos
os pressupostos e as determinações. Distingue-se do sentido do
ceticismo, que não se propõe outro objetivo do que a própria dú-
vida e a permanência nesta indecisão do espírito (LHPh, p. 1390;
335-336; VGPh-M, p. 127).

A dúvida delimitará a consideração sobre a verdade, com o ob-


jetivo de encontrar o que é claro e distinto, o que é cognoscível e mais
certo, pois, de outro modo, antes que se possa solucionar a dúvida, e
atingir a verdade, seria preciso se contentar com o provável4. E, desse
modo, a possibilidade de agir passaria sempre antes de se libertar das
numerosas dúvidas que nos acercam a respeito dos mais diversos te-
mas. Portanto, para alcançar um princípio sólido, é preciso que se co-
loque até as coisas que sempre foram consideradas como verdadeiras
para que, dessa forma, o pensar possa partir pura e simplesmente de
si mesmo. Segundo Hegel, a recusa cartesiana de fazer pressupostos é
a garantia de que nada “intervirá no interesse da liberdade como tal,
para a qual, nada teria validade fora da liberdade, nada existiria como
a qualidade ou modo de um pressuposto, de um ser objetivo exterior”
(LHPh, p. 1391-336; VGPh-M, p.127). É isto que evidencia apenas a
pura liberdade necessária para que o pensar possa partir de si mesmo.
A liberdade consiste no fato de poder abstrair-se de tudo.
Assim, para investigar em torno da verdade, a dúvida é direcio-
nada ao âmbito sensorial: isto porque os sentidos se apresentam como
enganosos5. Para explicar as razões que levam Descartes a colocar os

4
Cf. PF, p. 54 (art. 3)
5
A dúvida sobre os sentidos é a dúvida natural. Ela tem a função de colocar sob suspeita as
impressões sensoriais, as representações sensíveis e a faculdade de imaginação. Se os senti-
dos nos enganam, é prudente não confiar neles. Esse é o argumento de Descartes. No entan-
to, a consequência é abrangente, porque ela coloca como falso as percepções sensoriais, as
representações obtidas por esta via, os sonhos, que são articulados desordenadamente pela
imaginação e o estado de vigília, visto que as percepções, que poderiam demarcam a linha

381
Carlos Gustavo Monteiro Cherri

sentidos em dúvida, Hegel recorre aos trechos dos artigos1, 2 e 3, nos


quais, Descartes constrói seu argumento, ou seja, o argumento da pru-
dência de não confiar em quem nos engana .
Em primeiro lugar, Hegel seleciona o aspecto basilar da des-
confiança cartesiana sobre os sentidos, Hegel cita Descartes nas lições
“desde crianças fomos inclinados a julgar as coisas apreendidas pelos
sentidos, sem ter adquirido o uso pleno da razão, o que levou à pre-
cipitação e ao impedimento do conhecimento da verdade” (PF, p. 53;
art.1)6. Nesse sentido, se não se pode ter certeza a respeito daquilo que
sempre fora acolhido imediatamente, já é motivo para rejeitar como
falso o que pode manifestar-se como duvidoso, mesmo que tenha se
apresentado uma só vez enganosamente. A partir daqui começa a se
desenvolver o argumento da prudência. Inicialmente, a dúvida consi-
dera como falso o que se manifesta como tal ou, no mínimo, o que não
se apresenta como verdadeiro. Em seguida, a prudência estabelece que
deve ser considerado falso o que é possível de imaginar de tal modo,
isto é, supor a menor dúvida. O passo é grande, pois Descartes passa
da certeza do que é falso para a possibilidade de falsidade. Esse é o
conteúdo do art. 2 dos Princípios da Filosofia, e nele já se apresenta que
o objetivo da dúvida não é apenas a renúncia dos pressupostos, mas de
encontrar algo de certo e possível de ser conhecido.
Colocando os sentidos em dúvida, todas as representações sen-
soriais que oferecem material para a articulação da imaginação, produ-
zindo assim, os sonhos, serão também rejeitadas como falsas. A respei-
to escreve Descartes:

Quando dormimos quase sempre sonhamos e, nesse estado, pa-


rece que sentimos e imaginamos viva e claramente uma infinida-
de de coisas que não existe de lado nenhum; e, quando estamos
assim decididos a duvidar de tudo, não resta sinal algum por
meio do qual se possa saber se os pensamentos que nos vêm em
sonhos são mais falsos que os outros (PF, p. 54; art.4)7.
Não havendo um sinal para a distinção entre o sonho e a vigília,
entre o sonho e a vigília, não possuem clareza e distinção. Mas não é só isso, se desde crian-
ças sempre fomos enganados a respeito destas representações, desde um tempo em que não
dominávamos os conceitos, ou seja, o uso pleno da razão, isso quer dizer que há numerosas
coisas que sequer suspeitamos de duvidar.

6
Cf. LHPh, p. 1392 (336-337); VGPh-M, p.128.

7
Cf. LHPh, p. 1393 (337); VGPh-M, p. 128.

382
Descartes e o começo absoluto: a interpretação
hegeliana da filosofia de Descartes

todas as representações sensíveis são colocadas de lado e, consequente-


mente, o mundo material. que já não pode ser percebido, hipoteticamen-
te, na medida em que os sentidos foram rejeitados porque as representa-
ções não apresentam clareza e distinção, e não há objetividade a respeito
delas, nem poderá ser imaginado; porque a imaginação procede a partir
das representações sensoriais, já que, para Descartes, imaginar é o mes-
mo que reproduzir na consciência a imagem de algo sensível8.
Descartes coloca também, sob suspeita, as proposições matemá-
ticas, porque é possível enganar-se, até mesmo, sobre o que se consi-
dera de mais certo, e deixar de considerar o que aparece como falso.
Há dois motivos para colocar as representações matemáticas sob sus-
peita. Em primeiro lugar, porque, diz Descartes “existem homens que
se enganaram ao raciocinar sobre tais matérias” (PF, p. 54; art.5). Esse
argumento já aparecia no Discurso do Método, quando Descartes afir-
mou que alguns homens podem cometer paralogismos a respeito da
Geometria9. No entanto, dizia Descartes que por mais que as represen-
tações se manifestem de modo enganoso, é possível conhecer algo de
simples e verdadeiro nelas. Essa reflexão é omitida nos Princípios, com
efeito, escreve Descartes: “quer eu esteja acordado, quer esteja dormin-
do, dois mais três sempre formarão o número cinco e o quadrado nun-
ca terá mais do que quatro lados; não parece possível que verdades
tão patentes possam ser suspeitas de alguma falsidade ou incerteza”
(MM, p. 87). Por isso, é necessário uma segunda razão o para colocar
as representações matemáticas de lado. Essa razão é, principalmente, a
existência de Deus, já que ele poderia ter feito o homem naturalmente
disposto ao erro. Para que a dúvida alcance a totalidade das represen-
tações, Descartes utiliza o seguinte raciocínio, com efeito, ele escreve:

Ouvimos dizer que Deus, que nos criou, e pode fazer tudo o que
lhe agrada e nós não sabemos ainda se ele quis fazer-nos de tal
forma que estejamos sempre enganados, mesmos nas coisas que
pensamos conhecer melhor. Posto que permitiu que algumas ve-
zes nos enganássemos, como já foi observado, por que não pode-
rá ele permitir que nos enganemos sempre? (PF, p. 54-5).


8
Cf. MM, p. 94.
Cf. Discurso do Método, Parte IV; p. 46, §1.
9

383
Carlos Gustavo Monteiro Cherri

Dessa forma, considerando que Deus é o Criador de todas as


coisas, e se ele nos criou inclinados ao erro, não há como nos livrarmos
do engano a respeito das coisas. O engano pode ser fruto tanto da na-
tureza humana, disposta por Deus de tal modo, como pela onipotência
divina, que pode fazer tudo o lhe apraz. Não é possível ter certeza
sobre nada, mesmo se considerarmos outra coisa como causa de nosso
ser, porque esta, diferentemente de Deus, não é perfeita, o que torna o
engano mais provável.
No entanto, Hegel destaca o conteúdo do art.6 dos Princípios da
Filosofia, a saber, de que há a liberdade de sempre se abster do que
não é fundamentado e perfeitamente certo. A única forma de evitar o
engano é não ajuizar a repeito das coisas que não são bem conhecidas.
A necessidade que serve de base ao fundamento de Descartes, para
Hegel, é que o pensamento deve começar de si10. Os pressupostos não
são colocados pelo pensamento, mas são diferentes dele, e, por isso, o
pensamento não se encontra em si ao admiti-los. O papel da dúvida
desempenhado até a suspeita sobre a ideia de Deus garante pelo me-
nos para Descartes, segundo Hegel, a ruptura com os pressupostos.
Portanto, podemos concluir que o começo absoluto é enten-
dido no sentido de que o pensamento parte de si mesmo, pura e li-
vremente, para abarcar a totalidade no interior de seu princípio. Isso
quer dizer que qualquer representação ou conceito só recebe signi-
ficado mediante à evidência no interior da consciência. O papel de
Descartes foi justamente eliminar os pressupostos que, anteriormen-
te, eram tomados como verdadeiros e, num só golpe, renunciar às
filosofias da exterioridade.
Mesmo que Hegel tenha entrado em polêmica com a ideia de
Deus cartesiana, afirmando que tal ideia é apresentada semelhante a
um pressuposto, quando Descartes disse que “temos tal ideia em nós”,
que seus atributos de perfeição, ser supremo, substância infinita, ser
anterior ao eu, entre outros, dependem do assentimento do eu, ou seja,
a evidência no interior da consciência, já que a liberdade reside em não
tomar como verdadeiro o que não se apresenta como tal. A ideia de
Deus é um pressuposto que pressupõe o eu.


10
Cf. LHPh, p. 1393 (337); VGPh-M, p.129.

384
Descartes e o começo absoluto: a interpretação
hegeliana da filosofia de Descartes

Referências

DESCARTES, René. Discurso do método; Meditações. Tradução de J. Guinsburg


e Bento Prado Júnior. 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Coleção Os Pen-
sadores).
____________. Princípios da Filosofia. Tradução de Isabel Marcelino e Teresa
Marcelino. Porto: Porto Editora, 1995. (Coleção Filosofia – Textos).
HEGEL, Vorlesungen über der Geschichte der Philosophie III. In: Werke in zwanzig
Bänden. Frankfurt: Suhrkamp, 1993, vol. 20, pp. 123-157 (Suhrkamp Taschen-
buch Wissenschaft).
___________. Leçons sur L´Histoire de la Philosophie. Tradução e reconstrução
crítica de Pierre Garniron. Paris: Vrin, 1985, vol. 6, pp. 1384-1440.

385
Vontade, Razão e Liberdade em Hegel: breves
notas a partir da obra “A Ideia de Justiça em
Hegel”, de Joaquim Carlos Salgado

Diego Vinícius Vieira


Vinícius Batelli de Souza Balestra
Universidade Federal de Minas Gerais

Introdução

A Idéia de Justiça em Hegel, obra originariamente concebida por


Joaquim Carlos Salgado como tese de titularidade da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, tem por objetivo ful-
cral tematizar a questão da justiça no sistema hegeliano.
Assim, o autor traça valiosa investigação sobre o Direito e o
Estado em Hegel, penetrando o teor da igualdade, da liberdade e do
trabalho, valores estes que, segundo o filósofo alemão, informam a
idéia de justiça.
Salgado, portanto, ilustra o percurso da filosofia hegeliana a par-
tir da Fenomenologia do Espírito, expondo primeiro, de maneira singu-
larmente acessível, a idéia na Lógica e, por conseguinte, o Estado e o
Direito como formas de realização do justo, sobretudo, o justo social.
O presente artigo, todavia, cinge-se à reflexão de A Vontade, séti-
mo capítulo da obra de Salgado, delineando sucintamente o processo
de entendimento da liberdade enquanto razão na história, pois, segun-
do o próprio autor, “é em Hegel que esse pensar concreto, que esse
logos da liberdade na história encontra a sua expressão mais clara em
termos de justificação”1.


1
SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 26.

Carvalho, M.; Tassinari, R.; Pertille, J. P. Hegel. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 386-393, 2015.
Vontade, Razão e Liberdade em Hegel: breves notas a partir da obra “A Ideia de
Justiça em Hegel”, de Joaquim Carlos Salgado

Investiga-se, assim, a noção hegeliana de vontade, movimentan-


do-se em direção a uma Ética Filosófica. Logo, partimos do reconhe-
cimento de que as categorias que permitem pensar o agir humano, o
ethos, são de natureza filosófica2.
Digno de nota, nesse sentido, é o apontamento de Lima Vaz a
respeito de uma Ética em Hegel. Lembra o autor que Hegel jamais che-
gou a lecionar Ética e sequer dedicou, como seus antecessores, uma
obra específica à Ética. Ainda assim, Vaz considera Hegel como o au-
tor, entre os filósofos modernos, que mais imprimiu uma marca ética
ao seu pensamento3.

II. Liberdade: superação do teórico e do prático

Indagar sobre a vontade em Hegel implica refletir a respeito do


postulado da liberdade. De que modo a razão, a liberdade e a vontade
estão imbricadas no Sistema da Totalidade hegeliano: eis aqui o cerne
da reflexão proposta pelo Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado no capítulo
intitulado “A Vontade”, de sua clássica obra A Idéia de Justiça em Hegel.
O jusfilósofo mineiro introduz o tema ensinando que, em Hegel,
a dialética entre liberdade e ordem social se desenvolve no âmbito da
Filosofia do Espírito, esse momento da Filosofia no qual o pensar se
auto-revela e se conhece. A Filosofia do Espírito, aponta Salgado, é o
momento da liberdade. O Espírito é livre, e busca na história a perfei-
ção dessa liberdade:

O Espírito está em si mesmo, no seu elemento ideal, como uni-


dade de si mesmo; porque está no seu próprio mundo, e não fora
de si mesmo, é essencialmente essa liberdade, cuja perfeição ele
busca na história, vale dizer, a sua liberdade é ação, movimento,
“negação constante de tudo” o que a contesta. 4

A liberdade é o conteúdo da unidade do pensar. Essa unidade só


é possível na superação da Filosofia da Natureza, a qual chamamos de

2
Tal definição de Ética Filosófica é tributária das lições de Henrique Cláudio Lima Vaz. Ver:
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1. São
Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 28.
3
VAZ. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1, cit., p. 370.
4
SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 227.

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Diego Vinícius Vieira; Vinícius Batelli de Souza Balestra

Filosofia do Espírito. Dizer, portanto, que a liberdade é erigida a partir


da Filosofia do Espírito, é dizer sobre um instante em que dualidade
entre teórico e prático é vencida, isto é, em que se suprassume a sepa-
ração entre, natureza - como exteriorização do pensar puro - e Lógica,
o pensar puro.
O Espírito é revelado em dois espaços sem precedência entre si,
quais sejam, a História e a Lógica5. Dito de outro modo, o Espírito só
pode saber de sua estrutura lógica (apresentada sob a forma de Ideia
Absoluta) no desenrolar da História, no decorrer de sua relação cons-
ciente com o mundo exterior. É na história que o Espírito se revela a
partir de si mesmo, fazendo convergir saber da razão e agir da vontade.
É dessa forma, portanto, que Hegel recupera o tempo – que,
para Kant, não podia ser pensado - e o apresenta no real (como história
do Espírito) e no logos (sucessão dos momentos).6 Veja-se a explicação
do professor Salgado:

A lógica hegeliana é o modo pelo qual Hegel interpreta o tempo


na estrutura do logos. Diferentemente de Aristóteles que sepa-
ra o lógico do temporal, mas dando-se condições de pensar o
temporal na categoria do tempo que existe fora do pensar, e ao
contrário de Kant para quem o tempo não é realidade nem cate-
goria, mera forma de intuição do sensível que não alcança o grau
do pensar, Hegel faz do logos o real e trata o tempo como modo
pelo qual o logos se mostra (no processo da Lógica) na sucessão
de seus momentos.

A Lógica7, ensina Salgado, é o momento teórico do Espírito, um


momento que é, ao mesmo tempo, início e fim. Diz-se que é momen-
to final porque é nele que o Espírito sabe de si, isto é, atinge o saber
absoluto. No entanto, para atingir esse saber do pensar, o Espírito já
deveria estar em sua plenitude no início de seu desenrolar histórico.
Seu desdobramento como práxis se dará pela mediação da estrutura


5
Salgado afirma que o liame entre histórica e lógica, em Hegel, é a Fenomenologia. SALGA-
DO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 232.
6
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 231.
7
A Lógica, ensina Salgado, é o pensar de si mesmo; a Fenomenologia, o conhecer de si mes-
mo. A Filosofia do Espírito, pensar que ao mesmo tempo se conhece e auto-revela. SALGA-
DO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 231.

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Vontade, Razão e Liberdade em Hegel: breves notas a partir da obra “A Ideia de
Justiça em Hegel”, de Joaquim Carlos Salgado

exteriorizada da Ideia, a natureza. Só então é que, dinamizado pelo


trabalho8, o Espírito se torna livre.
É com a mediação da natureza que o Espírito supera a dualidade
entre o teórico e o prático, entre a natureza e o pensar puro, e se torna
Espírito livre. Assim, a liberdade não se contrapõe, como já brevemen-
te explicitado, à natureza, mas se torna possível a partir da oposição
natureza/pensar puro. Se dizemos que o Espírito se produz na história,
é nela que ele desenvolverá seu momento teórico inicial, e retomará
esse momento teórico ao final, mas aí já mediado pela natureza.
Sabemos, portanto, que em Hegel a liberdade é conteúdo da uni-
dade do pensar, momento no qual está superada a dualidade entre
razão prática e razão teórica9. Isto porque o pensar é teórico e prático,
é ser e agir. Não há uma razão daquilo que é e outra daquilo que deve
ser (prática): intelecto e vontade se unem no pensar. O pensar, portan-
to, não é apartado da prática, vez que a prática é ela mesma o pensar
exteriorizado.
Contra interpretações de Hegel que privilegiem o momento teórico
ou o prático da razão como preponderante, o professor Salgado adverte:

Dizer, portanto, que um desses momentos dá a tônica do pen-


samento hegeliano, que o lado prático é o primeiro, subjugando
o teórico, é vê-lo somente a uma dimensão, unilateral e abstra-
tamente, ao arrepio do seu próprio modo dialético de pensar,
que se caracteriza pela inclusão do “terceiro excluído” da lógica
formal como modo de superação do “ou um, ou outro”, “nem
um, nem outro” no “tanto um como outro. A dialética do juízo
disjuntivo passa pela negação absoluta dos dois termos “nem
um nem outro”.10

III. O pensar livre, a vontade livre

O que significa partirmos de um filosofar que leva em conta a


unidade de teoria e práxis? Significa reconhecer que o agir sem pensar
não pode existir, ao menos não como fato humano. O humano age,
se determina no mundo, e tal determinação significa conhecer-se. Ao
8
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 232.
9
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 233.
10
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 235.

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Diego Vinícius Vieira; Vinícius Batelli de Souza Balestra

mesmo tempo, conhecer é agir, amparado na vontade livre. A vontade


de agir tem em si o teórico, não é possível ação sem reflexão. E o agir
como práxis, como dissemos, traz em si o téorico, na unidade que o
Espírito atingiu em seu momento de liberdade.11
Os momentos do pensar, ensina Hegel, são um auto-movimento
do próprio pensar, que não se produz por realidades externas, mas
se determina por tudo aquilo que está contido no próprio pensar. O
pensar é absolutamente livre, porque se determina a si mesmo12. Nesse
sentido é que o professor Salgado ensina que, para Hegel, o pensar é
teórico e prático, é agir e ser:

O pensar é teórico e prático. É pensar como ser e agir, como ativi-


dade livre que se conhece e tem como fim esse conhecer; o pensar
se dirige a um resultado, a um fim, que é seu conhecer. E só é
conhecer enquanto quer, enquanto se impulsiona para esse co-
nhecer. Ele é desde o início o que deve ser como fim ou resulta-
do. Ser e dever-ser não se separam, mas se completam como dois
aspectos da dialética do pensar.

Acrescenta o professor Salgado, ainda nesse sentido, que a von-


tade é um modo particular de pensar. O pensar se manifesta ativa-
mente na forma da vontade, pois se dirige para a exterioridade. De tal
modo que, se o pensar é: a) livre, isto é, como pensar auto-determinável
e b) prática e teoria, o mesmo diremos da vontade.
A vontade tem na liberdade sua substância e também está nes-
se momento de unidade do teórico e prático, vez que sem a vontade
não é possível fazer teoria. A vontade é forma de manifestação do
puramente teórico, do pensamento. Assim, reforçamos a unidade da
liberdade, posto que, como substância da vontade, é agir livremente
e pensar livremente.13
Outra lição do professor Salgado é relevante para tratarmos da
vontade. O autor aponta a distinção entre os conceitos de poetiké (tech-
né), praktiké e theoretiké, desde a filosofia grega, a partir de Sócrates e
Platão. A primeira, define Salgado, é atividade “prática”, mas voltada

11
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 236.
12
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 238.
13
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 236.

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Vontade, Razão e Liberdade em Hegel: breves notas a partir da obra “A Ideia de
Justiça em Hegel”, de Joaquim Carlos Salgado

à perfeição do objeto, enquanto a praktiké está orientada à perfeição do


próprio agir.14
A unidade desses três elementos está presente já na união da te-
oria e prática, que já tratamos. A poiésis, assim, é trabalho (exterori-
zação do Espírito na história), presente na teoria e na práxis; captar o
mundo, dominar a natureza implica em ser livre, pois conhecer a coisa
é o trabalho da consciência sobre si. Assim, oportuno citar:

O eu é livre (zu-Hause, bei-sich-sein) na medida em que capta o


mundo no seu conceito; isso implica o domínio da natureza em
todas as suas formas, já que o conceito só se perfaz na práxis do
homem na sociedade e na sua poiésis na natureza15

Disto, temos a circularidade entre pensar e querer. Querer e pen-


sar são ações, reflexão teórica e agir prático estão ambas conectadas
ao pensar. O pensar é agir, e o agir no mundo é uma exteriorização do
pensar, bem como um determinar-se que contribui para conhecer a si
mesmo. Pensar é um ato de vontade; não pode existir ato de vontade
(no sentido prático) sem o pensar.16

IV. Ideia e liberdade

O professor Salgado relaciona as noções até aqui trabalhadas


com o tema dos capítulos anteriores, a Ideia. A ideia é Espírito Absolu-
to, unidade do Espírito Subjetivo (sob a forma da razão, do pensar) e
Espírito Objetivo (na forma do agir da vontade), produto do processo
enciclopédico. Assim é que a Ideia pode ser dita vontade racional, pois
é nela que se unificam o conhecer e o agir. 17
Por isso se diz que, em Hegel, razão e vontade não são faculda-
des distintas; o pensar é que se desdobra em duas atividades distintas,
teórica e prática, sem prejuízo de sua unidade atingida como liberda-
de, isto é, como Espírito. Vontade, assim, é um desdobramento da ati-
vidade do pensar. A abolição da separação sujeito-objeto, no sistema

14
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 240.
15
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 240.
16
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 241.
17
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 241.

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Diego Vinícius Vieira; Vinícius Batelli de Souza Balestra

hegeliano, permite dizer que o objeto, a princípio exterior ao homem,


se insere no homem, se torna parte desse homem quando conhecido.
Ainda sobre a Ideia, a liberdade e a vontade, Salgado escreve:

A Ideia é essa unidade do saber do homem do que é essencial ao


pensamento, a liberdade. O saber da Idéia é o saber do saber do
homem “que a sua essência, fim” (vontade) e “objeto” (intelecto)
“é a liberdade”. Esse saber do saber da liberdade é a Idéia.

Em outras palavras, o saber tem, simultaneamente, como objeto


e fim, como essência e intelecto, o saber da liberdade. Prossegue, então,
o professor Salgado, expondo-nos a respeito da liberdade do Espírito.
Esta só pode ser real quando o Espírito sabe da sua liberdade (e o saber
dessa liberdade é a filosofia18), e esse saber tem de se dar no plano do
universal. Ou seja, a liberdade da qual o Espírito tem de saber não está
no âmbito da particularidade, é uma liberdade de todos.
No entanto, pelo próprio princípio da dialética hegeliana, de
negar, conservar e elevar, esse saber não pode ser um saber estóico,
um saber abstrato da liberdade. O saber da liberdade tem de levar em
conta a história, para que se conceba uma liberdade efetiva. Ensina
Salgado que, para Hegel, não basta ter a liberdade, é preciso ser a efeti-
vidade dessa liberdade, o que se dá no saber especulativo.19 A respeito
dessa liberdade estóica, a qual Hegel se opõe, Salgado escreve:

O estoicismo é assim a primeira forma do reconhecimento, pu-


ramente interior, segundo o qual todos são iguais porque todos
são centelhas da razão e livres. A sua liberdade interior, abstra-
ta, não se realizando plenamente e contrapondo-se à universa-
lidade da razão, traz, a partir desse conflito, o ceticismo, pelo
qual, não podendo o escravo alcançar a liberdade concreta pela
ação do trabalho – o que se fará pela ação de uma nova luta - ,
dirige-se ao mundo não para negá-lo pela ação física e racional
do trabalho, mas pelo puro pensamento, cuja liberdade ou po-
der de negação é absoluta.20

18
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 236.
19
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 242.
20
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 369

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Vontade, Razão e Liberdade em Hegel: breves notas a partir da obra “A Ideia de
Justiça em Hegel”, de Joaquim Carlos Salgado

Temos, assim, que a liberdade estóica é uma liberdade abstrata,


que não permite o saber do saber da liberdade, mas apenas pode ser
entendida de maneira interior, no puro pensamento. O Espírito Abso-
luto tem, por outro lado, que procurar o saber da liberdade no teórico
e no prático, no singular e no universal, no ter e no ser.
A respeito dessa concepção de liberdade em Hegel, uma liber-
dade que busca ser efetivamente no plano do real, Podemos trazer
valiosa lição de Pierre-Jean Labarrière, em seu texto “Hegel 150 Anos
Depois”. Nesse texto, o autor relaciona as reflexões de Hegel a respei-
to da Revolução Francesa e do ideal de liberdade absoluta nela contido
com a própria concepção de liberdade que permeará o pensamento de
Hegel. Labarrière conta então que Hegel considerava que o ideal ini-
cial da Revolução Francesa, de uma liberdade radical, mergulhou com
rapidez na confusão do período do Terror porque deixou de levar em
consideração as condições históricas que impunham limites concretos
às aspirações da vontade dos revolucionários.21
Assim, portanto, é que a liberdade em Hegel é a unidade do pen-
sar, uma unidade entre o o abstrato e o real, uma concepção de liber-
dade não meramente estóica, mas que tem vistas ao efetivo. É quando
o Estado atinge sua forma de realização da liberdade que a filosofia
pode emergir como um saber dessa liberdade não mais abstrato, mas
efetivado na vivência da organização política do Estado22.

Referências

HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes,


1997.
LABARRIÉRE, P.J. “Hegel, 150 anos depois”. In: Revista Síntese. Belo Horizon-
te: Loyola, v. IX, n°24, 1982.
SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Edições
Loyola, 1996.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima.  Escritos de Filosofia IV:  Introdução à Ética
Filosófica 1. São Paulo: Edições Loyola, 1999.


21
LABARRIÉRE, P.J. “Hegel, 150 anos depois”. In: Revista Síntese. Belo Horizonte: Loyola, v.
IX, n°24, 1982, p.11-22
22
SALGADO. A Ideia de Justiça em Hegel, cit., p. 236.

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