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De quem é esta pornografia, de quem é este feminismo?

Maya Shlayen

Publicado no site Fair Observer em 23 de Outubro de 2013.

“Pornô feminista” não é compatível com feminismo.


Nos últimos anos, uma moda conhecida como “pornografia feminista” ganhou
visibilidade. Com filmes e até mesmo um Prêmio de Pornografia Feminista [n/t: Feminist
Porn Awards, tradução livre], um número cada vez maior de mulheres está abraçando a
ideia de que pornografia, se feita corretamente, é compatível com feminismo.
Mentiras sobre feministas anti-pornô – que nós estamos nos juntando com a direita
cristã (não estamos), que nós ignoramos as mulheres na pornografia (não ignoramos), ou
que apoiamos a censura (também não) – fizeram parecer que o movimento anti-pornô
feminista é rígido, ultrapassado e anti-sexo. Feministas defensoras da pornografia alegam
estar desafiando valores sexuais tradicionais, abrindo o caminho para que todos explorem a
sexualidade em um novo e desafiante caminho.

O fundo do poço
Ficam perdidas nos enfáticos “hurrahs!” sobre liberdade e empoderamento
quaisquer discussões sobre o que acontece na indústria pornográfica, como mulheres
entram nela ou como ela impacta as mulheres de fora da indústria.
“Nunca conheci uma mulher que tivesse uma carreira profissional e a abandonou
para entrar no universo pornô apenas pela diversão”, relata Vanessa Belmond, uma
veterana da indústria que se tornou uma ativista anti-pornô. “Muitas entram no negócio por
desespero financeiro. Muitas também tiveram infâncias de abuso. Eu tive uma colega de
quarto que estava nas ruas, se prostituindo desde os 14 anos, e quando ela entrou na
pornografia, aos 18, isso era tudo que ela conhecia”.
Mulheres no pornô geralmente estão lá por não terem outras opções e este é um fato
muito divulgado – um que nem mesmo feministas pró-pornô negam. Em um documentário
chamado Depois Que O Pornô Acaba [n/t: After Porn Ends, tradução livre], a apóloga à
pornografia Nina Hartley admite: “Elas não sabem fazer mais nada. Elas não sabem vender;
elas não sabem fazer planilhas de Excel. Muitas pessoas no entretenimento adulto... não são
educadas o suficiente para trabalhos tradicionais, de 8 às 18”.
Em vez de perguntarem-se porque algumas mulheres são tão desafortunadas,
feministas pro-pornô parem satisfeitas de deixarem essas mulheres onde elas estão – no
fundo do poço.

Algo Individual
Do começo dos anos 1980, dominados por Thatcher e Reagan, até hoje, o avanço do
feminismo pró-pornografia foi acompanhado por uma mudança dentro do feminismo na
qual o individualismo tomou o lugar do que antes era uma luta coletiva. Em uma colocação
típica, Jennifer Baumgardener escreveu em 2000: “Feminismo é algo individual para cada
feminista”.
É como se cada escolha que uma mulher faça seja feminista, simplesmente porque
ela faz esta escolha. O fato de que a “escolha” dela possa ter sido limitado por estruturas
sociais machistas, racistas, entre outras, é convenientemente ignorado, e o impacto que a
escolha dessa mulher pode ter em outras nunca é questionado.
No entanto, estruturas sociais desiguais existem mesmo assim, e elas frequentemente
limitam as escolhas e alternativas disponíveis para mulheres. No Canadá e nos Estados
Unidos, mulheres continuam ganhando de 25% a 30% menos que homens. Como todas as
médias, esse número está sujeito a variação, então mulheres brancas de classes média e alta
ganham mais (em termos absolutos e em relação a homens brancos) que mulheres não-
brancas [n/t: no original, “women of color”], por exemplo.
Para uma mulher branca com educação, que pode bancar a própria pornografia e
escrever livros sobre como tudo isso é “empoderador”, a diferença de pagamento pode ser
apagada como um inconveniente menor. Para uma mulher não-branca sem nível
universitário, como Belmond, essa disparidade salarial pode significar a diferença entre ter
que vender o próprio corpo e trabalhar muitas horas para pagar as contas.
“Eu achei que seria glamuroso e excitante estar no pornô”, Belmond explica. “Eu
pensei que seria um estilo de vida eletrizante. Eu lia livros sobre a indústria pornográfica,
como as biografias, e pensava que se eu pudesse evitar algumas das coisas ruins, eu
conseguiria ganhar muito dinheiro. Mas como quase todas as mulheres na pornografia, eu
saí sem nada. Agora, minhas fotos e videos estão na internet para sempre, para todos
assistirem e para a indústria continuar lucrando em cima disso”.

Impensável
Para mulheres mais jovens que cresceram com a internet, se opor a toda pornografia
parece impensável. Nós crescemos num ambiente tão saturado com pornografia, que nós
mal conseguimos imaginar sexo sem ela.
Para mulheres de todas as ideias, aprender a amar e aceitar nossos corpos é um
desafio. Durante toda a história, as sociedades dominadas por homens com frequência
tiveram regras bem definidas acerca do sexo. As punições por quebrar essas regras eram
com frequência exclusivas ou desproporcionalmente aplicadas às mulheres, tornando
efetivamente impossível para nós fazermos sexos nos nossos próprios termos. Sem dúvidas,
a ideia de pornografia feminista se encaixa no nosso desejo por um pouco de liberdade
sexual.
Mas “liberdade sexual” é simplesmente reduzível para mais sexo, sem importar as
circunstâncias?
“Eu usei cocaína algumas vezes, mas eu bebia com frequência. E então eu comecei a
usar analgésicos – são bem populares na indústria, especialmente entre as mulheres que
fazem muito anal. E eu fumei muita maconha, também. Eu não conseguiria fazer [pornô] de
outra maneira. Não dá para fazer aquelas coisas sóbria”, Belmond recorda.
Essa não é uma imagem de uma mulher sexualmente liberta. É, na verdade, a
imagem de uma mulher que deve deitar-se e pensar na Inglaterra para “aguentar” o ato
sexual. Aqueles que denunciam as feministas anti-pornô como sendo “puritanas” ignoram
que pornógrafos fazem exatamente o que puritanos faziam: negar às mulheres a auto-
determinação sexual.

“Desenho da Escravidão Sexual Feminina”


A palavra “pornografia” vem do grego porne, que significa “mulher escrava sexual”, e
graphos, que significa “escrita” ou “desenho”. Na Grécia Antiga, porne se referia à classe
mais baixa de prostitutas, considerada extremamente vil e de fácil acesso.
A palavra “pornografia” literalmente se refere a “retratar mulheres como putas vis”.
Se pornografia é frequentemente tida como uma representação neutra do sexo, é apenas
porque já existe uma ideia espalhada de que corpos femininos são sujos e estão disponíveis
para uso e abuso masculino. A violência da pornografia pode ser extrema, mas o ódio às
mulheres retratadas lá não poderia ser mais comum.
É essa fusão do sexo com crueldade que define a pornografia como um gênero. E é
por este motivo que a pornografia é tão efetiva em alterar as atitudes de homens em relação
a mulheres e ao sexo para pior.
E em um estudo recente conduzido pelo psicólogo Neil Malamuth, homens saudáveis
sem histórico criminal foram expostos a dez minutos de pornografia hardcore. Após essa
exposição, pediu-se que eles respondessem se mulheres “mereciam” ou gostavam de ser
estupradas. Os homens que tinham assistido ao pornô concordaram de forma veemente
com mitos do estupro de uma maneira que o grupo de controle não concordou.
Incontáveis estudos vêm mostrando que a exposição à pornografia dessensibiliza
homens para violência contra a mulher, frequentemente moldado a sexualidade deles de
uma maneira que eles se tornam incapazes de se excitar sem algum elemento de dominação
ou violência. As evidências são tão condenatórias que, ás vezes, universidades se recusam a
permitir mais pesquisas sobre o assunto. Quando um estudo mostra efeitos negativos que
não podem ser revertidos, conselhos de ética frequentemente negam estudos similares a
continuarem. Isso tem acontecido repetidamente com as pesquisas sobre o efeito da
pornografia.
Ed Donnerstein, um pesquisador na Universidade do Arizona, conclui: “Alguns
colegas meus argumentam que a relação entre... [pornografia] e subsequentes agressões e
mudanças nas... atitudes a respeito de mulheres é muito mais forte estatisticamente que a
relação entre fumar e câncer [de pulmão]”.
Santuário para Famílias [n/t: Sanctuary for Families, tradução livre], um abrigo
para mulheres abusadas e seus filhos em Nova York, é um dos muitos abrigos femininos que
abordaram os feitos da pornografia em mulheres espancadas. Uma advogada que trabalha
para o abrigo, Amairis Peña-Chavez, explica: “Em cerca de 70% dos casos... [de] abuso
sexual das minhas clientes, a pornografia está envolvida. Ou ele está assistindo e quer
recriar; ou ele está forçando-a a assistir e depois quer filmar para que ele tenha o seu
próprio filme”.
Outra advogada colaboradora do Santuário para Famílias, Hilary Sunghee Seo,
enfatiza: “Esse é um padrão que essas mulheres acham particularmente degradante e
humilhante... faz elas ficarem vermelhas, chorarem, congelarem quando contam essas
histórias”.
O que será que fará essas mulheres importarem para um movimento “feminista” que
deveria estar lutando pelas vidas delas? Quão alto uma mulher precisa gritar para ser
escutada?

Limites da Representação Sexual


“Pornô feminista” é um conceito estranho. Por definição, implica dizer que a
indústria mainstream do pornô não é feminista, mesmo que as feministas pró-pornografia
tenham passado décadas dizendo – e ainda dizem – que não há nada de errado com
pornografia no geral. Seria isto finalmente admitir que há algo de podre no reino da
Pornolândia?
O Prêmio de Pornografia Feminista, uma cerimônia premiação que acontece todo
ano em Toronto, lista três critérios para qualificar um filme como “feminista” – uma mulher
e/ou pessoa tradicionalmente marginalizada participando da produção, escrita, direção etc
do trabalho; representação genuína do prazer feminino; expansão dos limites da
representação sexual no filme; e desafiar estereótipos que são frequentemente encontrados
no pornô mainstream.
De que maneira “pornô feminista” expande os limites da representação sexual é
incerto, já que os indicados de 2012 incluem filmes como Putinha Submissa [n/t:
Submissive Slut, tradução livre] e Gatinhas do Bondage 4 [n/t: Babes In Bondage 4,
tradução livre]. Uma mulher participando da escrita, produção ou direção do filme? Por
este critério, até mesmo alguns dos filmes da indústria maistream pornográfica podem ser
considerados “feministas”.
A introdução do Livro do Pornô Feminista [n/t: The Feminist Porn Book, tradução
livre] deixa claro que: “Pornografia feminista também é produzida dentro da indústria
mainstream do entretenimento adulto por feministas cujo trabalho é financiado e
distribuído por grandes companhias, como Vivid Entertainment, Adam and Eve e Evil
Angel Productions”.
Se “pornografia feminista” significasse apenas pequenos e independents estúdios
produzindo pornografia queer, ainda assim não teria chance na tentativa de reduzir os
danos de uma indústria misógina que lucra 100 bilhões de dólares por ano. No entanto, as
chamadas “pornógrafas feministas” se juntando com a indústria mainstream mostra sobre o
que isto é, de fato: dinheiro.

Definições de Liberdade
Nenhuma questão radical sobre sexo está sendo feita – por exemplo, porque
precisamos de pornografia, em primeiro lugar? Embora prazer sexual seja saudável e
desejável, alguém realmente pode comprar o corpo de alguém para o sexo (pessoalmente ou
via vídeo)? Em vez disso, feministas pró-pornô definem “igualdade” como “oportunidades
iguais de exploração”, buscando dar a (principalmente a brancas e de classe média)
mulheres o direito de se beneficiarem em cima do sofrimento alheio exatamente como
homens já se beneficiam.
Mulheres como Belmond – estas que são machucadas na feitura da pornografia, ou
como resultado dela – estão notavelmente ausentes dessa definição de liberdade.
“Eu gostaria apenas que [os consumidores] parassem com isso de: ‘ah, ela escolheu
estar no filme, então não me sinto culpado de ver’”, Belmond suplica. “Sim, sei que escolhi
estar no filme, sei que outras mulheres escolheram. Mas muitas dessas mulheres foram
terrivelmente abusadas quando eram mais jovens, passaram por muita coisa, [e] possuem
problemas com drogas... Só porque elas fizeram essa escolha não significa que seja certo
assistir ao sofrimento delas”.
Depois de abandonar a indústria, Belmond teve que trabalhar muitas horas,
recebendo o salário mínimo, para malmente sobreviver. AntiPornography.org, uma
organização de direitos humanos para a qual ela trabalha voluntariamente, ajudou ela tanto
quanto foi possível. No futuro, Belmond diz que desejaria trabalhar em tempo integral como
Diretora para Alcance da Juventude e Indústria do Sexo (uma posição paga que eles estão
tentando fundar) para ajudar outras mulheres a deixarem a indústria.
Enquanto isso, quantas mulheres terão a dor delas transformada em diversão para
outros? Quantas mulheres estão estupradas ou espancadas em parte porque os parceiros
delas aprenderam o que sabem sobre sexo a partir da porne-graphos, da representação de
mulheres como putas vis? E o que mais acontecerá para que feministas pró-pornô se
importem?
Feministas precisam reabrir o debate a respeito da pornografia – não como um
assunto teórico, mas como a questão de vida ou morte que ela é. A maioria de nós não é
sobrevivente da indústria; nós não sofremos das mazelas específicas delas. Mas como
mulheres, nós todas vivemos dentro do mesmo sistema machista. Todas nós somos
moldadas por esta sociedade e sofremos ao menos algumas das suas consequências. Se nos
recusamos a parar uma indústria que machuca mulheres para o entretenimento público,
nós nos recusamos a acabar com o próprio machismo.
Quaisquer que sejam as soluções que encontremos, elas devem funcionar para
mulheres como Belmond, ou elas não funcionarão para nenhuma de nós.

Original disponível em: <www.fairobserver.com/region/north_america/whose-porn-


whose-femnism>. Acesso em 11 de fevereiro de 2015.
Traduzido por Patrícia K.

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