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Anchyses Jobim Lopes

Cabeça de Medusa:
de Caravaggio a Freud e Lacan
– sobre pintura e psicanálise –
Head of Medusa;
from Caravaggio to Freud and Lacan
– on painting and psychoanalysis –
Anchyses Jobim Lopes

Resumo
Caravaggio: vida e obra. Suas fantasias de castração ampliadas na infância pelas mortes em
sua família causadas pela peste, até aquelas testemunhadas na vida adulta pelas decapitações
públicas. O mito de Medusa na mitologia grega. A cabeça de Medusa nos textos de Freud e
Lacan. Descrição da obra Cabeça de Medusa, de Caravaggio. Autorretratos e decapitações na
obra de Caravaggio. O uso de lentes e espelhos pelos pintores da Renascença conectado com a
vivência infantil do estádio do espelho descrito por Lacan. O olhar: pulsão invocante, pulsão
escópica e objeto a. O olhar e a castração, a violência e a sublimação na obra de Caravaggio.
O quadro como artefato sublimatório contendo a pulsão de morte domesticada pela pulsão
de vida.

Palavras-chave: Arte e psicanálise, Mitologia e psicanálise, Castração, Estádio do espelho,


Pulsão escópica, Pulsão invocante, Sublimação.

Hor quai nemici fian, che freddi marmi


non divengan repente
in mirando, Signor, nel vostro scudo (...)
Poco fra l’armi
a voi fia d’huopo il formidabil mostro,
ché la vera Medusa è il valor vostro.

Quais inimigos ainda existem que em mármore frio


de repente não se tornem,
se olham, Senhor, vosso escudo (...)
Qual a vantagem que dentre as armas
busquem apenas o formidável monstro,
se a verdadeira Medusa é vosso talento.

(Medusa, Giambattista Marino [1569-1625],


em homenagem a seu amigo Caravaggio)

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Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan – sobre pintura e psicanálise –

Introdução1 2017, p. 55, tradução nossa). A afirmação é


Caravaggio foi um pintor que ficou famoso correta, Caravaggio diversas vezes se retra-
pela luz que esculpe figuras dramáticas. Ape- tou em seus quadros. E pintava a si mesmo
sar de alguns retratos de contemporâneos e seus modelos vivos a partir de reflexos no
e personagens mitológicos, de uns poucos espelho. Não apenas de espelhos comuns,
quadros cômicos ou singelos com adoles- possivelmente também utilizava côncavos e
centes, a maioria de suas obras é sobre temas convexos. Escreve o historiador e crítico de
religiosos. Adoração e conversões, escolhas arte Roberto Longhi, tido como o maior co-
divinas e traições, execuções e sacrifícios – nhecedor da obra de Caravaggio do século
todas prenhes de luz e escuridão, constroem XX, sobre o pintor:
cenas cinematográficas. Nunca aceitou os ti-
pos ideais ou modelos platônicos em poses Olhava ao redor, e a realidade lhe aparecia em
estudadas. Sob a forma de figuras divinas, ‘pedaços’ parados do universo [...] não seria
santos e mártires, retratou pessoas comuns melhor recortá-lo como ele aparece no qua-
com roupas da época, os pés sujos e intensas dro verídico do espelho, que sempre nos ofe-
emoções. A violência deste realismo é uma rece a ‘unidade do fragmento’ imerso na sua
das características revolucionárias e pulsan- luz: uma espécie de ‘realidade aquário’ (Lon-
tes de Caravaggio. ghi, 2012, p. 26-31, aspas do autor).
Outra era não fazer esboços a lápis como
Michelangelo ou Leonardo. Pintava direta- Caravaggio não se limitou à dramatici-
mente sobre a tela após algumas marcações dade e ao uso de espelhos. Em testemunho
ou incisões, sempre utilizando modelos vi- ainda mais antigo, cerca de dez anos após a
vos. Na maioria das vezes, suas santas e Nos- morte do pintor, o médico e colecionador de
sas Senhoras, eram duas prostitutas – Fili- arte Giulio Mancini, descreve o ateliê de Ca-
de Melandroni e Lena – imortalizadas pela ravaggio e outros pintores da época.
arte. A intensidade das emoções, associada
aos personagens em movimento, insere o Próprio desta escola é iluminar com uma luz
quadro em um universo narrativo do que unida que vem do alto sem reflexo [...], assim
ocorre antes e depois de cada cena. Destoam ficando os claros muito claros e as sombras
de simples retratos ou de mero recurso ao muito escuras, dando relevo à pintura, mas
imaginário. Possuem uma temporalidade de modo não natural, nem feito, nem pensa-
própria, uma dramaticidade narrativa, uma do em outros séculos por pintores mais anti-
passagem para o discursivo e o simbólico. É gos como Rafael, Ticiano, Correggio e outros
possível interpretá-las como relatos de cenas (Mancini, apud Zuffi, p. 49-50, tradução
oníricas ou de devaneios diurnos que têm nossa).
suas raízes em um drama muito mais amplo.
Mas se Caravaggio abre uma brecha para O que propõem Longhi (2012, p. 26, 66),
a interpretação psicanalítica de um quadro o pintor inglês David Hockney (2001, p. 110-
pelo simbólico, também exacerba seu opos- 124) e outros estudiosos ou artistas, é o uso
to. Já seu primeiro biógrafo, o pintor rival e por Caravaggio também de lentes e de uma
inimigo Giovanni Baglione, que o processou câmara escura. Tese inclusive subscrita pelo
por difamação, relata que “[...] os primeiros fato de que o Cardeal Del Monte, mecenas
quadros de Caravaggio foram por ele retra- do pintor e em cujo palácio residiu e que foi
tados no espelho” (Baglione apud Zuffi, seu ateliê em Roma vários anos, era um estu-
dioso das novidades ‘científicas’ e protetor de
1. Agradeço à psicanalista Kátia Flôres Pinheiro pela cuida- Galileu, que junto a outros revolucionava até
dosa leitura e pelas correções e sugestões. a ótica. Uso da ótica é o provável motivo pelo

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qual os quadros de Caravaggio provocam a Milão. Uma família de boa situação econô-
ilusão de tridimensionalidade. mica, que mesmo na capital servia aos mar-
Já o terceiro registro – o do real – dele a queses senhores da vila. Cinco anos mais tar-
obra de Caravaggio é plena. Há martírios, de, quando a peste assolou Milão, a família
crucificações e sepultamentos de Nossa Se- retornou à sua vila de origem. Sem muito
nhora, Cristo ou de santos. Mas, acima de efeito. Pouco tempo depois, no mesmo dia, o
tudo, há as decapitações, os decapitados ou pai e o avô do futuro pintor faleceram da pes-
os que virão a sê-lo. Que não eram somente te. Nada mais se sabe de sua infância. Uma
reflexos das histórias bíblicas. Desde a Idade única certeza é que seu talento foi precoce-
Média as pestes cronicamente assolavam a mente reconhecido. Aos doze anos retornou
Europa, ceifando milhões de vidas. E as exe- a Milão como aprendiz do pintor Simone Pe-
cuções públicas por decapitação de crimi- terzano. Aos dezenove anos faleceu sua mãe
nosos e por queima na fogueira de hereges e com vinte Michelangelo Merisi foi tentar a
eram rotina. sorte como artista em Roma. Longhi descre-
A castração não era parte apenas de um ve o amplo conhecimento do jovem pintor
eu ideal prenhe de sadismo e pulsão de mor- sobre os artistas de sua época e de seus pre-
te do artista, a partir do qual alguns autores decessores, tanto de sua terra natal como das
utilizaram o arsenal psicanalítico para inter- regiões vizinhas. E de como ‘[...] Caravaggio
pretar a biografia autodestrutiva de Cara- seguiu para Roma passando por Pietramala2
vaggio. O tipo de psicobiografia que desde o e Florença’ (Longhi, 2012, p. 20).
próprio Freud sempre foi criticada pelo seu Após de alguns anos, que biógrafos e ví-
reducionismo e como forma de análise sel- deos descrevem de grande penúria e dificul-
vagem póstuma. E que, apesar das questões dades, conseguiu ser bem-sucedido. Obteve
éticas, sempre desperta muito interesse. É um patrono poderoso: o Cardeal Del Monte,
preciso considerar o tema da castração para em cujo palácio morou e foi seu ateliê vários
compreender um pouco sua obra e a própria anos. De família toscana, o cardeal além de
construção da imagem no quadro entre as patrono de Galileu, era amante da ciência, da
intersecções do imaginário, do simbólico e alquimia, da pintura e da música. Ao mesmo
do real. tempo representava em Roma dos Médici,
Castração, criação e arte, através de uma Grão-Duques da Toscana. A partir daí, Mi-
leitura psicanalítica, a partir da obra que Ca- chelangelo, já conhecido como Caravaggio,
ravaggio erigiu em seu símbolo maior, Cabe- obteve muitas encomendas particulares, de
ça de Medusa decapitada, um quadro que se colecionadores e de várias ordens religio-
tornou ícone. O que é utilizado pelos gesto- sas e igrejas. Entre 1600 e 1606 Caravaggio
res da Galleria degli Uffizi, em Florença, um se tornou o pintor mais famoso de Roma.
dos maiores museus do mundo, para centra- Mas seu temperamento exaltado e briguen-
lizar uma sala ao redor da obra e dela toda to, adepto a frequentar locais e pessoas não
uma ala para atrair o público. muito respeitáveis, crescia. Em 1605, para
escapar de ser preso por agressões, ofensas e
Caravaggio: o drama pessoal dívidas, evadiu para Gênova por pouco mais
como obra de arte de um mês. No ano seguinte uma briga de
Michelangelo Merisi, ou Michelangelo Me- gangues acabou em duelo selvagem, e Cara-
risi da Caravaggio, mais conhecido apenas vaggio cometeu um assassinato. Rival amo-
como Caravaggio, nasceu em Milão em 29 roso ou de peleja esportiva, ou de ambos?
de setembro de 1571. Seus pais eram de Ca-
ravaggio, uma pequena cidade na região da
Lombardia, quarenta quilômetros a leste de 2. Castelo na fronteira entre Bolonha e Florença.

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A história é confusa e muito romanceada. um envenenamento crônico pelo mercúrio e


Foi condenado à morte nos Estados Papais, chumbo das tintas. Ou seu corpo teria sido
onde à época o Papa era ao mesmo tempo encontrado na praia (Lambert, 2004, p. 90).
chefe espiritual e governante terreno. Cara- Ou teria falecido no hospício da Confrater-
vaggio fugiu. Primeiro para as propriedades nita di San Sebastiano no dia 18 de julho de
da poderosa família Colonna e depois para 1610 (Schütze, 2017 p. 303). Mas sempre
Nápoles, capital do reino vizinho aos Esta- em Porto Ercole, na costa da Toscana, onde
dos Papais. Sempre com a ajuda de quem o foi enterrado quase como indigente. Sem sa-
conhecia desde criança: Costanza Sforza Co- ber do falecimento, dias depois era tornado
lonna, Marquesa viúva de Caravaggio. Em público seu perdão pelo Papa.
Nápoles executou várias obras de peso. Um
ano depois partiu para a ilha de Malta, sede Caravaggio e a castração
do principado dos Cavaleiros de Malta, onde Além desses, outros dados biográficos de
fez retratos de vários membros da ordem, Caravaggio são escassos e confusos. De sua
inclusive do grão-mestre, além de pinturas infância quase nada se sabe, o que torna uma
religiosas. Embora não fosse de família no- psicobiografia psicanalítica algo mais teme-
bre, acabou sendo consagrado Cavaleiro de rário que de costume. Mas dois fatos da vida
Malta, o que lhe poderia render o perdão pa- real não podem ter deixado de criar marcas
pal. Mas novamente um episódio mal conhe- profundas em sua história da infância e de
cido o levou a ser preso e expulso da ordem. adulto jovem: a peste e as execuções.
Com o auxílio de outros cavaleiros, fugiu da Desde o século XIV a peste negra ou bu-
prisão e foi para a Sicília. Nessa ilha passou bônica periodicamente atingia a Europa. Um
por Siracusa, Messina e Palermo. Sua fama o novo surto ocorreu entre 1573 e 1588, atin-
precedia, sempre provendo por onde passava gindo Milão em 1577. Foi mencionado que
encomendas de pinturas. E muitas histórias a família do futuro pintor, numa tentativa de
de brigas e perseguições. escapar da peste, retornou à pequena cidade
Jamais deixando de lado a compulsão pela de Caravaggio. E que de nada adiantou. Pri-
pintura, Caravaggio retornou a Nápoles em meiro em 17 de agosto de 1577 faleceu o tio
1609. E seus admiradores em Roma, os po- do menino.
derosos cardeais Gonzaga e Borghese, con-
tinuavam em seu empenho. No ano seguinte Em 20 de outubro de 1577 foi registrada em
chegou a notícia de que o Papa finalmente Caravaggio a morte do pai do pintor, Fermo
concordara em lhe conceder o perdão. Partiu Merisi, de seu avô paterno, Bernardino Meri-
em direção a Roma, primeiro por barco, com si, e (sem citar o nome) de sua avó (Graham-
alguns quadros para presentear e influenciar -Dixon, 2014, p. 56, tradução nossa).
seus protetores. Mas numa escala do barco
foi preso. Dessa vez não havia feito nada. Ou Uma hipótese ousada seria que o trauma
a lista dos procurados estava desatualizada, e a fixação de todas essas perdas ocorridas
ou fora apenas um engano. Em pouco tempo entre os cinco e seis anos do futuro pintor, te-
o pintor foi solto. Mas o barco partira sem o nham se manifestado na vida adulta através
passageiro. Caravaggio seguiu por terra, para da escolha do artista de ser conhecido pela
primeiro encontrar o barco e recuperar seus alcunha de Caravaggio. Afinal não era seu
quadros. Mesmo sua morte é controversa. local de nascimento e em toda sua vida só
Os biógrafos discutem se foi por exaustão e/ morou lá entre os cinco e doze anos
ou por uma doença que o acometia há mui- Quanto à violência política, social e reli-
tos anos, talvez malária ou sífilis. Pesquisas giosa, há dados muito concretos. Apenas em
recentes propõem que a causa tenha sido relação aos anos em que o artista morou em

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Roma, capital dos Estados Papais, território do da deusa Atena. O segundo grande autor
diretamente governado pelo Papa, um dos da Grécia Arcaica, Hesíodo (século VIII ou
estudiosos da obra do pintor que descreve: VII a. C.), descreve em sua Teogonia (A ori-
gem dos deuses) que eram três as Górgonas:
As estatísticas coligidas por Paglia em La Esteno, Euriale e Medusa. Filhas de Forcis e
Morte Confortata, apêndice 2, indicam que Ceto, deuses marinhos muito anteriores aos
no ano de 1599 cinco pessoas foram apenas deuses olímpicos, pois eram filhos de Gaia, a
decapitadas, uma foi ‘espancada, massacra- deusa Terra-mãe, por sua vez filha do Caos
da e esquartejada’, e dez foram enforcadas e primordial. Na lista de Hesíodo, Medusa pa-
esquartejadas. Durante os anos em que Ca- rece ser a mais jovem e também a única que é
ravaggio residiu em Roma, de 1592 a 1606, mortal. Além dessas diferenças, os versos de
ocorreram 21 decapitações e 112 esquarteja- Hesíodo descrevem que ‘ela deitou-se com o
mentos post mortem, dentre as 658 execuções de Crina preta (Poseidon) no macio prado
que lá ocorreram (Varriano, 2006, p. 151). entre flores da primavera’ e quando Perseu
a decapitou, de seu pescoço nasceram o gi-
As execuções eram espetáculos públicos. gante Crisaor (nome que significa ‘Espada-
Nessa lista Caravaggio deve ter presenciado de-ouro’) e Pégaso, o cavalo alado (Ziogas,
uma das decapitações mais célebres da histó- 2013, p. 84).
ria, a de Beatriz Cenci em 1599, filha de um Em seu artigo O tema dos três escrínios,
conde que com frequência a estuprava, bem Freud ([1913] 1996) descreve como na mi-
como abusava de outros filhos, da primeira e tologia grega, seguindo em narrativas épicas
da segunda esposa. Além dessas violências, e populares de outras culturas, indo até tra-
o conde chegou a ser encarcerado também gédias de Shakespeare, uma figura feminina
pela denúncia de outros crimes. Fatos que é desdobrada em três. Cada qual representa
eram notórios em Roma. Mas sua impor- uma das três mulheres da vida de um ho-
tância social sempre o levava à liberdade. mem: a mãe, a esposa e a morte. Medusa é
Os filhos e a madrasta por fim tramaram a única das três irmãs que é mortal e efetiva-
sua morte. Ao todo foram quatro execuções. mente morre.
Ao longo dos séculos os Cenci tornaram-se Uma Górgona ou três, suas representa-
tema de inúmeras obras de arte, inclusive um ções na Grécia Arcaica são de criaturas re-
poema dramático de Gonçalves Dias. Tam- pelentes e com características animalescas.
bém é pouco provável que Caravaggio tenha Eram aladas, dotadas de grandes garras,
deixado de assistir a um dos maiores espetá- presas de javali e pele coberta de escamas.
culos de Roma em 1600, a morte pela foguei- Vasos e camafeus as figuram com um corpo
ra do filósofo Giordano Bruno condenado feminino humano completo, que se continua
pela Santa Inquisição. por trás com outro com dorso e duas patas
traseiras equinas (Napier, 1986, p. 60-62).
A Medusa da mitologia Dessa forma, a Górgona é um centauro, só
Ao início da Grécia Arcaica havia apenas que do tipo mais antigo figurado pela mito-
uma Górgona. Os primeiros poemas épicos logia grega, anterior aos centauros da Grécia
que dão início à literatura ocidental, a Ilía- Clássica, que passaram a ser representados
da e a Odisseia, pela tradição atribuídos ao como seres humanos até a cintura e cavalos
poeta cego Homero (século VIII ou VII a. daí para baixo. Um pouco de imaginação
C.), descrevem a Górgona como uma criatu- freudiana, e é fácil vê-las como originárias
ra horrenda que espalhava terror e derrota, de figuras totêmicas. Nessas representações
mas cujo rosto, que também possuía o po- arcaicas, Perseu é representado decapitando
der de amuleto e de arma, decorava o escu- a Górgona ou Medusa e olhando para o lado

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oposto. O olhar da Górgona, ou alguma ou- O primeiro e mais extenso é A cabeça de


tra característica, são mortais (Gantz, 1996, Medusa, escrito em 1922, mas só publicado
v. 1, p. 303-307). postumamente em 1940. Freud traça vários
Séculos depois, o poeta Píndaro (viveu simbolismos. Ainda viva, a Górgona era uma
aproximadamente entre 522 e 443 a. C.), em caricatura da mulher fálica: uma castradora
uma de suas odes canta Medusa como uma cuja mera visão petrificava. Freud é conciso:
mulher bonita. A beleza deve ter sido acen- “decapitar = castração” (Freud, [1940/1922],
tuada ao longo das épocas Clássica e Hele- 1980, p. 289). Toda ameaça e perigo ganham
nística e originado diversas narrativas que poder pelo medo de aniquilamento do eu
não chegaram até nós. Mas a partir delas é o que, encaixando-se na ameaça e na angústia
poeta romano Ovídio quem nas Metamorfo- de castração, finalmente revivem o primeiro
ses narra que Medusa de todos os traumas: o do nascimento/morte.
Assim, quando decapitada e morta, o hor-
[...] famosa por sua beleza, provocou a cobi- ror da castração amplia-se ainda mais. Agora
ça de muitos nobres, e em toda ela não havia mesmo é que ‘a visão da cabeça da Medusa
parte mais digna de admiração que os cabe- torna o espectador rígido de terror, trans-
los. Consta que o Rei do Mar a desonrou num forma-o em pedra’. E as serpentes venenosas
templo de Minerva. A filha de Júpiter voltou- mais uma duplicação – ou multiplicação –
-se e cobriu o casto rosto com o escudo. E, da imagem do complexo de castração. Mas,
para que o fato não ficasse impune, transfor- como para o inconsciente os opostos são o
mou os cabelos da Górgona em horrendas mesmo, por assustadoras que possam ser em
serpentes. E agora Minerva, para aterrorizar si as serpentes,
e encher de medo seus inimigos, ostenta no
peito as serpentes que criou (Ziogas, 2013, p. [...] na realidade, porém, servem como mi-
84, tradução nossa). tigação do horror, por substituírem o pênis,
cuja ausência é a causa do horror. Isso é uma
Assim, Ovídio explica por que das três confirmação da regra técnica segundo a qual
irmãs, Medusa era a única com serpentes uma multiplicação de símbolos de pênis sig-
em vez de cabelos. No mito mais arcaico, nifica castração [...]. Observe-se que temos
Perseu já era representado olhando para aqui, mais uma vez, a mesma origem do
o outro lado enquanto decapitava a Gór- complexo de castração e a mesma transfor-
gona. Todavia não era dito se seu poder mação de afeto, porque ficar rígido significa
era transformar em pedra quem a olhas- uma ereção. Assim, na situação original, ela
se. Comenta o helenista Ionnis Ziogas oferece consolação ao espectador: ele ainda
(2015, p. 85): “A transformação do cabe- se acha de posse de um pênis e o enrijeci-
lo de Medusa reflete um estupro cruel e mento tranquiliza-o quanto ao fato (Freud,
uma acusação injusta”. De fato, o deus do [1940/1922], 1980, p. 289).
mar era famoso por sua violência sexual
e seus filhos monstruosos ou equinos. E Em seguida Freud lembra que a deusa
para muitas feministas contemporâneas, Atena era representada com a cabeça de Me-
Medusa tornou-se um ícone. dusa esculpida sobre a couraça em seu peito.
Símbolo de como punira quem desonrara
A Medusa de Freud e Lacan seu templo e de como castigaria quem aten-
Há três menções diretas de Freud sobre a ter- tasse contra sua virgindade.
rível Górgona em sua obra completa Além
disso, podemos associar a Górgona a mais Esse símbolo de horror é usado sobre as suas
dois textos freudianos. vestes pela deusa virgem Atena, e com razão,

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porque assim ela se torna uma mulher que é tema é repetido com um acréscimo. No pri-
inabordável e repele todos os desejos sexuais, meiro texto Freud mencionara que “[...] os
visto apresentar os terrificantes órgãos geni- gregos eram, em geral, fortemente homosse-
tais da Mãe (Freud, [1940/1922], 1980, p. xuais” (Freud, [1940/1922], p. 290), portan-
289). to era inevitável que encontrássemos entre
eles uma representação da mulher como um
Nesse momento Freud deu um salto sobre ser que assusta e repele por ser castrada. Nes-
o qual não discorreu. Conectou a imagem da se segundo texto e na contramão da maior
cabeça de Medusa com o complexo de Édipo. parte de sua obra, Freud torna sua genera-
Condensou toda a ambivalência do período lização sobre os gregos em um diagnóstico
edípico clássico por ele descrito numa ima- médico do século XIX.
gem que é a deusa da sabedoria, benfeitora
de Ulisses e do início da cultura ocidental Também é sabido o quanto a depreciação da
e, ao mesmo tempo, representa uma criatu- mulher, o horror à mulher e a disposição à
ra monstruosa e mortal se incestuosamente homossexualidade derivam da convicção fi-
desejada pelo menino. E Atena pode ser tida nal sobre a falta de pênis da mulher. Ferenczi
como uma das fontes para a criação do mito (1923) recentemente reconduziu, com toda
cristão da mãe virgem. Pode ser que Freud razão, o símbolo mitológico do horror – a
não tenha se dado conta ou aceito que a lei cabeça de Medusa – à impressão do genital
não é só aquela patriarcalmente trazida pelo feminino sem pênis (Freud, [1923] 2018, p.
pai. 240-241).
Não tendo desenvolvido o tema edípico,
Freud passa diretamente ao herói masculino. A terceira e última menção de Freud a ca-
Do mesmo modo que Perseu passou a utili- beça de Medusa ocorre dez anos depois da
zar a cabeça de Medusa como uma arma em primeira, na Conferência XXIX: Revisão da
sua defesa, Freud descreve como ela se tor- teoria dos sonhos, das Novas conferências in-
nou um amuleto com o dom de afastar e evi- trodutórias sobre a psicanálise. Com referên-
tar desgraças e malefícios. E como os opos- cia indireta ao Édipo e ao incesto.
tos são o mesmo para o inconsciente, assim
como as víboras dos cabelos de Medusa são Segundo Abraham (1922), uma aranha, em
mortais e símbolos fálicos, esculpidos em sonhos, é um símbolo da mãe, mas da mãe
couraças ou escudos, a imagem do falo tor- fálica, a qual tememos; assim, o medo de ara-
nou-se na Antiguidade um amuleto benigno nhas expressa temor do incesto materno e
complementar. horror aos genitais femininos. Os senhores
sabem, talvez, que a criação mitológica, a ca-
O órgão masculino ereto também possui um beça de Medusa, pode ser atribuída ao mes-
efeito apotropaico, mas graças a outro meca- mo motif do medo de castração (Freud, 1933
nismo. Mostrar o pênis (ou qualquer de seus [1932] 1976, p. 33).
sucedâneos) é dizer: ‘Não tenho medo de
você. Desafio-o. Tenho um pênis’. Aqui, en- É curioso que Freud sempre utilize a ex-
tão, temos outra maneira de intimidar o Espí- pressão ‘cabeça de Medusa’, nunca ao ‘mito
rito Mau (Freud, [1940/1922], p. 290). de Medusa’. Entre 1896 e 1911 Freud esteve
por quatro vezes em Florença. Parece pouco
A segunda menção de Freud sobre a ca- provável que tenha deixado de ver a Cabeça
beça de Medusa encontra-se em A organiza- de Medusa, de Caravaggio, objeto favorito da
ção genital infantil, artigo publicado um ano coleção dos Médici. E a Galleria degli Uffizi
depois que foi escrito A cabeça de Medusa. O fora iniciada como museu particular no sé-

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culo XVI e aberta ao público desde 1769. crianças. Deus associado a Baco e Príapo,
O texto de Freud de 1922 e suas duas refe- seu culto e guarda em Roma pertenciam às
rências subsequentes sobre a cabeça de Me- virgens vestais.
dusa também provocam outras questões. Há A tradição romana e a função apotropaica
toda uma ambivalência no mito e na inter- do rosto de Medusa no busto da estátua de
pretação freudiana. Há atração sexual e cas- Atena citado por Freud são de origem muito
tração, fascínio e medo, desejo e repulsa. Me- anterior a uma escultura da Grécia Clássica.
dusa foi metamorfoseada de mulher fatal em Há relevo da Grécia Arcaica, século VII a.C.,
monstro, mas continua sendo emblema de com soldado carregando um grande escudo
ambas, ou desvelando que ambas são o mes- todo talhado com a imagem de uma Górgo-
mo. A função das três figuras femininas na na (Marini, 2003, p. 167). Em época mais
vida de um homem que Freud descreve no já tardia, um conhecido mosaico encontrado
mencionado texto O tema dos três escrínios em Pompeia mostra Alexandre o Grande lu-
(Freud, [1913] 1996): a mãe, a companheira tando numa batalha tendo no peito uma efí-
e a morte. Castração será só culpa de Medusa gie de Medusa. O mosaico data do século I
e a vítima só quem é atingido por seu olhar? a.C., mas reproduz uma pintura desapareci-
Ou da cisão do eu por parte de quem a dese- da de Apelles do século IV a.C. Também é da
ja? E o conceito de pulsão de morte, descrito época romana a origem do maior número de
na década seguinte ao texto dos Três escrínios joias, túmulos e objetos diversos com o rosto
não expande a morte para desde o início da de Medusa. O busto do imperador Adriano
vida? Eros e Tânatos, o côncavo e o conve- o representa com a face de Medusa esculpida
xo como complemento e até o mesmo. Dois no peito.
objetos espelhados que são o mesmo e duas O termo ‘fascinum’, origem de ‘fascina-
identificações simultâneas? ção’ ‘fascínio’ em português (e muitos outros
As ideias de Freud sobre Medusa também idiomas), continua sendo antitético. Pode
conduzem a um texto bem anterior, aquele significar tanto ‘mau olhado’ quanto ‘encan-
em que ocorre a primeira menção direta a tamento’ e ‘deslumbramento’. E que podemos
Górgona e ao Tema dos três escrínios. Em A generalizar como sendo o efeito da duplici-
significação antitética das palavras primitivas dade de tudo que é olhado e do próprio olhar.
(1910) Freud já mencionara que: Também é curioso que, na segunda obser-
vação sobre a cabeça de Medusa, Freud men-
Em latim `altus‘ significa `alto’ e `profundo’, cione Ferenczi e na última Abraham. Seus dois
`sacer‘ ‘sagrado’ e ‘maldito’; aqui por conse- discípulos mais próximos e brilhantes. Mas
guinte temos a antítese completa de signifi- que morreram bem antes dele. E não há expli-
cação sem qualquer modificação do som da cações do editor James Strachey sobre Freud
palavra (Freud, [1910] 1996, p. 165). nunca ter publicado em vida a primeira men-
ção, o pequeno e muito interessante artigo.
Isso faz lembrar a palavra também latina De Lacan temos uma menção, retomando
fascinum significa ‘malefício’, ‘mau olhado’, a temática freudiana, a Medusa em O semi-
mas também ‘membro viril’. Em geral se re- nário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na
fere a objetos para proteger e dar boa sorte: técnica da psicanálise ([1954-1955] 1978):
estátuas, amuletos e joias representando fa-
los (origem da mão com os dedos em figa, Da imagem aterradora, angustiante, nesta ver-
no Brasil ‘boa sorte’, e em alguns países uma dadeira cabeça de Medusa, na revelação deste
ofensa grosseira). E como os romanos cria- algo de inominável propriamente falando, o
vam deidades para tudo, Fascinus também fundo desta garganta, cuja forma complexa,
é o nome de um deus benéfico, protetor das insaciável, faz dela tanto o objeto primitivo

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Anchyses Jobim Lopes

por excelência, o abismo do órgão feminino, A Medusa de Caravaggio


de onde sai toda vida, quanto o vórtice da Perseu matou Medusa por meio de uma arti-
boca, onde tudo é tragado, como ainda a ima- manha. Para evitar o olhar mortal da Górgo-
gem da morte, onde tudo vem se acabar [...] na, não a encarou diretamente. Mas foi o re-
Há, portanto, a aparição angustiante de uma flexo dela em seu escudo que guiou sua mão
imagem que resume o que podemos chamar a cortar-lhe o pescoço. Caravaggio capturou
de revelação do real naquilo que tem de me- o instante logo após: o reflexo da cabeça de-
nos penetrável, do real sem nenhuma media- capitada da Górgona no escudo de Perseu. O
ção possível, do real derradeiro, do objeto es- olhar arregalado e a boca escancarada ainda
sencial que não é mais um objeto, porém este refletem ter sido pega de surpresa. Assusta-
algo diante do que todas as palavras estacam das, as serpentes se movem furiosamente.
e todas as categorias fracassam, o objeto de A cabeça “parece flutuar sobre um funcho
angústia por excelência (Lacan, [1954-1955] esverdeado” (Schütze, 2017, p. 93-94). Do
1978, p. 196, tradução nossa). pescoço espirram jatos de sangue. Medusa,
flagrada no instante logo após a decapitação,
Nesse relato literário e poético, é de inte- não fixa seu olhar na direção do olhar do
resse a narrativa sobre a garganta. Descreve espectador, o que poderia petrificá-lo, mas
perfeitamente o grito mudo, como se fos- para baixo, para seu próprio pescoço cortado.
se um som petrificado, tal qual na imagem Mas a Cabeça de Medusa, de Caravaggio,
da Cabeça de Medusa de Caravaggio. Assim não é sobre um quadro convencional, uma
como Freud, é muito provável que Lacan ti- pintura a óleo sobre uma tela retangular ou
vesse em sua mente a imagem do mesmo es- quadrada. Mas em uma forma muito usada
cudo pintado por Caravaggio. Em O seminá- na Renascença italiana, um “tondo”: uma
rio livro 11 – os quatro conceitos fundamentais composição de pintura ou escultura realiza-
da psicanálise, ao longamente dissertar sobre da sobre um suporte de formato redondo no
o olhar, a pulsão escópica e a arte da pintura, interior de um disco. Mas a cabeça de Me-
Lacan faz uma referência explícita ao quadro dusa também não está num mero “tondo”,
exposto na sala contígua do mesmo museu mas sobre um de forma convexa: um escudo,
que a Cabeça de Medusa: “[...] o Baco de Ca- só que de madeira. Mas que também cria a
ravaggio, nos Uffizi”3 (Lacan, [1964] 1973, ilusão de algo mais que um escudo. Um leve
p. 102, tradução nossa). movimento do corpo do espectador, ou ape-
No mesmo seminário Lacan ([1964] nas de seu olhar, pode transformar o convexo
1973, p. 207) faz uma segunda e breve men- em côncavo: o escudo pode se tornar um es-
ção à cabeça de Medusa, apenas para reto- pelho (Prose, 2005, p. 52). O movimento do
mar ao tema da semana anterior. Inclusive espectador diante do escudo dá a impressão
há citações sobre a Górgona decapitada para de que a tela, principalmente as serpentes,
discorrer sobre o sonho e o real em O Semi- foi feita usando recursos contemporâneos de
nário, livro 5 (7 de maio de 1958) e livro 19 terceira dimensão (observação nossa).
(21 de junho de 1972). A lista pode estar in- A Cabeça de Medusa, de Caravaggio, data
completa, uma vez que a maior parte dos se- de 1597 ou 1598. Em seguida foi presentea-
minários publicados não possui índices e os da pelo Cardeal Del Monte ao Grão-Duque
compêndios sobre nomes e termos na obra da Toscana, Ferdinando I de Médici. Neste
de Lacan mostram-se especialmente falhos período, Caravaggio pintou outros quadros.
sobre o nome ‘Medusa’. Contudo, um chama mais a atenção: Narci-
so olhando-se no lago. A associação entre as
3. No original aux Offices, que em italiano é Uffizi e usual-
duas obras não precisa ser feita por um psi-
mente assim designado em português. canalista, descreve Schütze (2017), pesquisa-

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Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan – sobre pintura e psicanálise –

dor e especialista da obra do pintor sobre a de uma versão da imagem básica do mesmo
Cabeça de Medusa do Uffizi em seu catálogo quadro. E naquela época artistas geralmente
da obra completa de Caravaggio: não assinavam suas obras. Uma única de suas
obras unanimemente reconhecida como au-
O caráter auto referencial da pintura é mais têntica foi assinada.
enfatizado pelo fato de que Caravaggio pro- Apesar de algumas discrepâncias gri-
vavelmente estudou seu próprio rosto em um tantes com outros especialistas, a lista mais
espelho para a Cabeça de Medusa (SCHUT- acessível e didática dos quadros de Cara-
ZE, 2017, p. 94). vaggio, reconhecidos como autênticos e dos
de origem duvidosa, que chegaram até o sé-
Há uma outra Cabeça de Medusa sobre culo XX é a de Schütze (2017). Esse pesqui-
um escudo atribuída a Caravaggio. Um pou- sador lista 67 obras autênticas e 21 cuja au-
co menor, teria sido feita um ano antes da- toria sofre variados graus de contestação4.
quela que hoje está no Uffizi. Possui o que se- Nos 67 autênticos, Caravaggio pintou a si
ria a assinatura do pintor, feita com a mesma mesmo em nove: Autorretrato como Baco
tinta vermelha do sangue que jorra. Pertence enfermo, Os músicos, Cabeça de Medusa, A
a uma coleção particular. Embora Schütze captura de Cristo, O martírio de São Ma-
(2017, p. 346), assim como grande parte dos teus, O martírio de Santa Úrsula, um dos
especialistas, não a considere autêntica. Mas São Francisco em meditação e dois dos Davi
é reconhecida como tal por muitos outros. e Golias (Schütze, 2017, p. 49, 94, 143, 214,
Entre eles, Maurizio Marini, outro especia- 439; Cremona Oggi, 2016). Mais da meta-
lista e editor do primeiro catálogo filológico de deles como personagem principal, como
da obra do pintor, que defende a ideia de que no Baco enfermo, Medusa, São Francisco e
Caravaggio atenuou os traços masculinos na nos Davi e Golias. Nos demais aparece como
segunda obra e defende essa comparação en- espectador, ora observador indiferente, ora
tre as duas Cabeças de Medusa terminando crítico. Direta ou indiretamente todo artista
por afirmar que: se coloca em sua obra. Mas em se tratan-
do de Caravaggio, temos uma prova direta
Na segunda versão considera-se que Cara- de uma forte identificação. Permitindo que
vaggio integrou esta impressão ao acentuar a também se medite sobre um razoável narci-
caráter feminino de acordo com as feições de sismo do artista.
Filide Melandroni, [...], que foi pintada por Se somarmos as duas cenas concretas de
Caravaggio em [outro] quadro [...] (Marini, decapitação (Judite e Holofernes e A deca-
2003, p. 51). pitação de São João Batista), as seis cabeças
decapitadas (Medusa, Salomé e São João Ba-
Caravaggio e sua obra: tista, Salomé recebendo a cabeça de São João
decapitados e decapitações Batista e três quadros de Davi segurando a
Em todos os livros pesquisados há variações cabeça de Golias), um menino prestes a ter
sobre quais são as obras autênticas de Cara- sua garganta cortada ou ser decapitado (O
vaggio. Não que as outras sejam necessaria- sacrifício de Isaac) e cinco quadros de santos
mente falsificações. Como todos os mais fa- que estão destinados a ser decapitados (San-
mosos artistas de sua época, o pintor possuía
aprendizes em seu ateliê, ou colegas de me- 4. O livro de Schütze apresenta um total de 112 quadros,
nos originalidade, que o copiavam, além de classificando com um mesmo número quadros em que há
um bando de seguidores por ele influencia- várias cópias, autênticas ou não, do mesmo quadro ou ver-
são do tema, assim como coloca com o mesmo número os
dos ainda em vida e após sua morte. Por di- quatro quadros sobre a vida de São Mateus da capela Con-
versas vezes o próprio Caravaggio fazia mais tarelli.

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ta Catarina de Alexandria e 4 retratos de São pendente em Roma sobre sua cabeça (Schüt-
João Batista), temos um total de 14 quadros ze, 2017, p. 268-271).
entre 67 (quase 21%) da lista dos autênticos
feita por Schütze. Por fim, entre as cabeças decapitadas, três
Alguns críticos podem argumentar que retratariam o próprio Caravaggio: a de Me-
tal número tão somente reflete os gostos e dusa e dois dos Golias. Dos dois primeiros
as encomendas da época. Só que, com exce- isso até pode ser questionado, mas o último
ção da Decapitação de São João Batista, esses Golias é o mais famoso entre os autorretratos
quadros não pertencem à lista das grandes de Caravaggio. É frequentemente estampado
encomendas para igrejas, capelas ou altares. como capa de biografias do pintor.
Várias das obras parecem ter sido de inicia-
tiva exclusiva de Caravaggio e depois vendi- Caravaggio e Lacan: o espelho
das. Principalmente os vários São João Batis- A tese do uso de recursos óticos por pintores
ta jovem e os Davi e Golias. a partir do século XV ou XVI não é recen-
Sobre a profusão de quadros de Cara- te. Entre outros, Roberto Longhi a defendia
vaggio sobre São João Batista, o historiador e em meados do século passado. Teve maior
crítico de arte Roberto Longhi escreveu que: divulgação a partir de 2001 com a publica-
ção do livro O conhecimento secreto, do pin-
[...] era um tema sacro que lhe era particular- tor inglês David Hockney. Uma xilogravura
mente caro, a ponto de quase se tornar auto- de Abrecht Dürer, de 1525, em que dois ho-
biográfico: São João Batista, santo “naturalis- mens usam um mecanismo de fios para pin-
ta” por definição, rixento, selvagem, intratá- tar objetos curvos, “[...] sugere que alguns
vel: jejuador por vocação, mas sempre cheio artistas se valeram de um expediente técnico
de vida elementar [...] (Longhi, 2012, p. 81, para ajudá-los” (Hockney, 2001, p. 54). A
aspas do autor) tese torna-se mais próxima aos psicanalistas
quando o pintor inglês escreve nas páginas
E embora a Decapitação de São João Ba- seguintes sobre o quadro Os embaixadores,
tista tenha de fato sido encomendada para o de Hans Holbein, também usado como capa
oratório da catedral de São João em La Va- do O seminário 11 ([1964] 1973), onde servi-
letta, capital de Malta, e caso a primeira Ca- rá para que várias considerações psicanalíti-
beça de Medusa não seja autêntica, é o único cas sobre o olhar, a pintura e o pintor sejam
quadro assinado por Caravaggio, e de modo feitas. Entre essas, Lacan também descreve a
bem pessoal mesma experiência ótica acima e sua repre-
sentação por Dürer (Lacan, [1964] 1973, p.
As mãos estão atadas atrás de suas costas e o 81-82). Para Hockney, além da ilusão de tri-
sangue jorrando da ferida mortal em seu pes- dimensionalidade dos vários objetos curvos
coço. É exatamente aqui que, como se o pincel em Os embaixadores, a enamorfose de um
tivesse sido molhado no sangue de São João crânio, imagem do quadro mais usada por
Batista, que Caravaggio escreveu sua assina- Lacan, “[...] é uma pista de que Holbein uti-
tura “f MichelAn” [...] O fato de que Carava- lizou ferramentas óticas’” (Hockney, 2001,
ggio colocou a assinatura exatamente abaixo p. 57). E Holbein pertenceu a duas gerações
da ferida do pescoço, como se estivesse sendo anteriores a Caravaggio.
escrita pelo sangue de Batista, positivamen- O uso da ótica na pintura não foi exclu-
te indica uma identificação existencial com o sivo nem surgiu com Caravaggio, contudo
tema, motivada não somente por sua admis- ele o aperfeiçoou em tal grau que é tido por
são na Ordem (de Malta), mas possivelmente vários especialistas como precursor do foco
também pela ameaça da pena de morte ainda e do diafragma (Pasolini, 1999), o dispositi-

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Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan – sobre pintura e psicanálise –

vo que determina o tamanho da abertura da brincar. Nesta experiência lúdica se inicia a


lente para a luz, na fotografia e no cinema. unir e construir sua imagem e a de tudo que
Contudo, há obras de Caravaggio nas quais o cerca. Mas essa unidade de si mesmo, dos
as artimanhas óticas deixaram seu preço. Ou outros e dos objetos no mundo nunca será
o protagonista é canhoto (Baco), ou há es- completa.
tranhos erros de representação, que para um O estádio do espelho constitui um mo-
artista tão superdotado de técnica, só podem mento mítico, porque não acontece uma
ser explicáveis como fruto das distorções vi- única vez nem necessariamente apenas por
suais produzidas por lentes ou por espelhos meio do reflexo num espelho. Todavia é fun-
não planos (por exemplo, uma das Ceia em damental, porque, apesar de seus senões,
Emaús, onde a mão mais distante de um per- sem ele experimentaríamos a vida inteira o
sonagem é estranhamente distorcida e maior terror de um corpo despedaçado. Permite
que a mais próxima). que se copie as imagens de si e dos outros,
A tese do uso de instrumentos óticos en- que vão muito além de simples percepções,
volve tanto espelhos de vários tipos e múlti- mas constituem objetos de afeto, erotismo,
plos quanto lentes e câmaras lúcida e escura. satisfação ou repugnância, isto é, identifi-
Mas do referencial psicanalítico que precede cações. A revivência desse momento mítico
O seminário 11, o texto que deve ter surgido pode ser interpretada como a primeira fon-
primeiro na mente do leitor como uma das te do gozo estético nas artes predominan-
pontes para uma leitura psicanalítica da obra temente visuais, em especial na pintura. E
de Caravaggio, provavelmente foi o Estádio como o pequeno ser humano se compraz na
do espelho como formador da função do eu mímica e na imitação de seus gestos e caretas
(Lacan, [1949] 1998, p. 96-103). diante do espelho, e de todos os demais per-
Nesse texto é descrito como, entre os seis sonagens ao seu redor, explica a origem do
e os dezoito meses, o bebê descobre que o prazer universal pelas artes dramáticas.
espelho duplica seus movimentos e expres- Só que o estádio do espelho, apesar de sal-
sões, assim como toda a realidade ao seu var-nos do corpo despedaçado, diria Mela-
redor. Seus reflexos, os de seus cuidadores e nie Klein, da predominância posição esqui-
do mundo são fontes de prazer. A etologia zoparanoide, ele mesmo
mostra como comparar as imagens já pron-
tas e completas que os outros animais e as [...] é um drama [...] forma uma totalidade
aves trazem em si ao nascer, ou fixam para que chamaremos de ortopédica – para a ar-
sempre na primeira que veem ao início da madura enfim assumida de uma identidade
vida, passando automaticamente a procurá alienante (Lacan, [1949] 1998, p. 100).
-las pelo meio ambiente, com ausência nos
seres humanos de imagens inatas ou coladas O lado negativo do estádio do espelho vai
imediatamente após o nascimento. Pode ser além da constituição de uma unidade alie-
traçado um paralelo com a dicotomia entre nante. O bebê também reflete no espelho
instinto, para o qual o objeto de satisfação da as mesmas forças destrutivas que possui. A
necessidade já vem soldado e pronto, e pul- expulsão dos objetos maus e persecutórios,
são, cujo objeto de desejo será trazido e cons- por meio da identificação projetiva, além de
truído pela força das experiências infantis. E aumentar a alienação constitutiva do eu ima-
ao contrário dos outros animais e aves, que ginário, torna a imagem má e persecutória.
não representam para si mesmos a própria O espelho reflete um rival de si mesmo. E o
imagem, o bebê necessita de uma. Quando bebê também vai construindo a imagem re-
ele descobre que os reflexos no espelho são fletida de seus cuidadores. Imagens e corpos
seus, sonoramente se regojiza e os usa para que muitas vezes não obedecem a sua onipo-

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tente vontade. Uma enorme ferida narcísica matemático, o qual o psicanalista critica vio-
com toda a raiva e ódio naquele que se sentia lentamente, René Descartes.
como ‘sua majestade, o bebê’. O estádio do espelho inicialmente funda
Mais do que pelas obras dos pintores de um eu muito mais especular, o eu ideal, que
até então, a reexperiência do drama mítico abre passagem para o eu social. O eu carte-
do estádio do espelho seria facilitada pelos siano acentua a tendência humana a cindir
quadros de Caravaggio. Muitos de seus qua- o mundo todo a objetos, o que intensifica a
dros se iluminam de júbilo e de horror ao força de um retorno sobre si mesmo de iden-
mesmo tempo. Mas o contentamento pre- tificações coisificantes, que em filosofia pos-
domina, porque a grandiosidade do drama sui a denominação de solipsismo cartesiano.
humano supera o horror da crueldade, e Alienando ainda mais o sujeito de si mesmo.
deste modo consegue integrá-la ao prazer do O eu cartesiano aprofundou a cisão entre o
olhar. Semelhante à primeira infância, quan- eu ideal e o sujeito do desejo. Caravaggio ne-
do as experiências ruins e o ódio da criança cessitava aproximar-se sempre mais deste úl-
não devem nem podem ser negados, mas in- timo, o que se reflete em sua tumultuada bio-
tegrados ao resultado de uma predominân- grafia. E também em sua arte e em sua cons-
cia de experiências boas e de satisfação. Com tituição um novo tipo de espectador, que está
o reconhecimento intuitivo dessa realidade mais para o sujeito descentralizado do século
psíquica, Caravaggio, além de seu enorme XX que para o sujeito cartesiano de sua épo-
talento e técnica pictórica, por meio do gozo ca. Vários de seus quadros não possuem uma
estético, facilitou a integração. Mesmo que ou duas personagens principais, mas o foco
muitos de seus quadros sejam macabros e do olhar é distribuído entre várias,
dotados de extrema violência. E vimos como Apesar do tamanho e do número de per-
Caravaggio se insurge contra as idealizações sonagens, as obras de Caravaggio situam o
edificantes e maniqueístas da figura huma- olhar muito próximo à cena do quadro, quase
na, que nada mais são do que negação da- como se o espectador também estivesse den-
quilo que séculos depois veio a ser nomeado tro dele. Até mesmo como se visse a cena por
de pulsão de morte. Suas cenas dramáticas de dentro da imagem. Mas o artista foi além.
representam a vítima e o(s) algoz(es) de tal Não satisfeito com todas as obras em que re-
modo que torna possível ao espectador se tratou a si mesmo como protagonista ativo
identificar com ambos. Com Medusa, que vê ou passivo, a técnica de ver e se distanciar da
seu reflexo espelhado no escudo de Perseu, e própria cena como um espectador dentro do
com o próprio Perseu. quadro foi representada pelo próprio pintor
Além de espelhos e lentes, Caravaggio em pelo menos três quadros (O martírio de
aperfeiçoou a sensação de interioridade do São Mateus, A captura de Cristo, O martírio
espectador com as imagens de seus quadros, de Santa Úrsula). Neles colocou sua própria
colocando-o dentro das cenas utilizando ou- figura como voyeur dentro da pintura, ora
tros ardis. Os quadros do pintor não apre- curioso, ora enojado. Tal uma criança peque-
sentam figuras chapadas ou quase planas, na intensamente mobilizada pelo drama ao
como nas obras anteriores à Renascença. seu redor, que, para minimizar sua dor, cinde
E também não apresentam profundida- seu eu em um outro eu, um eu observador
des criadas a partir de grandes perspectivas que se afasta do que sente, passando ativa-
geometrizadas (a mais famosa, talvez, a do mente a julgar ou passivamente observar as
fundo da Santa Ceia de Leonardo da Vinci). atitudes das pessoas ao seu redor. Olhando
Geometrização das pinturas que Lacan traça a realidade em volta como se fosse vista de
um paralelismo com o surgimento da noção longe. Sentindo a si mesma e suas emoções
de um eu alienante (moi), por outro grande como externas a si prórpia. Como que re-

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Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan – sobre pintura e psicanálise –

flexos em um espelho distante ou vistos por a influência de seus mecenas, facilmente po-
uma lente que diminua os objetos: a cisão, a deria ser acusado de heresia. Mas permitem
esquize do olhar. identificações além das imaginárias do eu
Nos quadros de Caravaggio quase não há ideal e social. Identificações que tentem e até
cenários. Apenas duas obras sequer mostram possam unir um eu cindido.
um pedaço de paisagem ao fundo (Descanso Na pesquisa pelo aperfeiçoamento de sua
na fuga para o Egito e o primeiro Sacrifício de arte, Caravaggio utilizou espelhos e lentes
Isaac). E todos compõem imagens sem gran- não para alcançar a profundidade de gran-
des espaços geometricamente projetados ou des espaços, mas para ampliar os focos de
um eu cartesiano que tudo olha de fora e re- luz e escuridão. Há “[...] a ausência de uma
duz subjetividades a objetos. Para cenário, só luz celestial ou qualquer sugestão de paraí-
o essencial, o que importa são as cenas dra- so” (Prose, 2005, p. 104). A luz muitas ve-
máticas. A esmagadora maioria das obras re- zes se espalha criando vastos espaços vazios
presentam histórias bíblicas ou mitológicas na tela, o que realça o espanto, o medo ou a
(Medusa), que instantaneamente remetem a solidão dos personagens. Intuindo suas pro-
todo um elo de associações do que ocorreu na fundas raízes na infância, tempo do pavor do
história antes ou depois da ação pintada na escuro e da procura pela claridade que apaga
cena. Entre a imagem pintada ou a narrativa o pesadelo e o retorno ao domínio da era do
associada, aparece algo além de imaginário corpo despedaçado. O uso inédito e famoso
puro ou predominante, algo que se situa na de intensas luzes e sombras, que descorti-
intersecção entre o imaginário e o simbólico. nam rostos cujas motivações são múltiplas e
O uso de espelhos e lentes serviu a Cara- enigmáticas.
vaggio para realçar a face dramática de suas
obras. Nisso também era ajudado pela ilu- O fundo negro [...] parece ter a função não
são de tridimensionalidade que sua maestria apenas de criar um efeito adequado a um ex-
técnica sabia tão bem executar. E usou essa perimento com a luz, de acordo com as leis da
ilusão para acentuar que seus personagens ótica e as ideias de Galileu Galilei, conhecidas
não são sagrados, mas pessoas comuns, com por Merisi por meio de sua companhia com
frequência, prostitutas. o Cardeal Del Monte e o Marquês Vincenzo
Ao contrário de Michelangelo ou Leonar- Giustiniani [...], mas também em seu isola-
do, não se conhece nenhum desenho prévio mento das personagens em relação ao meio
aos quadros de Caravaggio. Pintava direta- ambiente, de criar a impressão de profundeza
mente a partir de modelos vivos. Isso reforça psicológica. A luz parece mergulhar dentro
a descrença em idealizações inalcançáveis, dos rostos e revelar seus pensamentos [...]
de cisões de um eu encharcado em narcisis- (Bandera, in Strinati, 2010, p. 190, tradu-
mo de morte. E revela os conflitos de gente ção nossa).
de pés e unhas sujos, supostos santos que são
apenas homens apavorados, ou anjos adoles- Caravaggio e o quadro: olhar e castração
centes sedutores demais para serem despro- Vimos que o tema comum mais frequente de
vidos de desejo sexual. Que por sua humani- Caravaggio é a decapitação. E entre as nove
dade possuem mais valor universal e inten- pinturas nas quais se autorretratou, três fo-
sidade estética que os personagens famosos, ram como cabeças cortadas. Analisando os
porém distantes dos livros sagrados, que só quadros como cenas de um sonho, vemos
servem como reforço de eu ideal e do sadis- que Medusa é a imago maior, hipótese com-
mo do supereu. O que fez muitos de seus provada porque o público a tornou sua obra
quadros serem rejeitados pelas igrejas ou or- mais icônica. Merecendo ser a obra princi-
dens que os encomendavam. E se não fosse pal, quase exclusiva, sendo as algumas outras

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colocadas só para realçá-la, de uma sala in- Medusa simboliza a unidade dramática en-
teira na Galleria delli Uffizi. Embora do pon- tre a vida e a arte de Caravaggio. Além de ser
to vista artístico muitos outros quadros do tema principal de sua obra e biografia, pode
próprio Caravaggio a superem. nos ajudar a compreender a dinâmica da pró-
Há muito poucos dados confiáveis e mais pria arte em si. Utilizando uma dicotomia, ar-
precisos sobre sua infância e juventude. tificial como todas, mas facilitadora e inevitá-
Uma psicobiografia psicanalítica torna-se vel, Medusa não é apenas a imago do conteúdo
quase impossível. Apenas podemos deduzir obra caravaggiana, mas também a pista para
com certo grau de confiabilidade para o re- refletirmos psicanaliticamente sobre o me-
ferencial psicanalítico a influência de dois canismo da pintura enquanto forma estética.
fatos. Primeiro, que a peste e a morte de A partir do texto do Estádio do espelho
vários membros de sua família quando ti- (Lacan, [1949] 1998), foi desenvolvida a
nha cinco anos, incluindo seu pai e seu avô, concepção de imaginário, sempre com sua
deixou-lhe a marca indelével do trauma ao marca original da etologia. Não possuímos
final da primeira infância e ao ápice do dra- formas inatas. E se nem a forma já vem com-
ma edípico freudiano clássico. Segundo que pleta, ainda menos os conteúdos, a partir
a sociedade de sua época era extremamente dos quais passamos a vida inteira procu-
violenta. O que era agudizado pelas perse- rando fora a satisfação da pulsão. Nenhum
guições religiosas da Contrarreforma que se objeto satisfaz plenamente ou o tempo todo.
iniciou pelo concílio de Trento (1545-1663) Até aqui Lacan colocou a pulsão escópica ao
e pôs fim às luzes da Renascença. Como foi nível das demais. Então surge uma diferen-
descrito, o ápice da carreira de Caravaggio ça, o olhar ao mesmo tempo é ele mesmo
se deu em Roma, com suas assustadoras es- também um objeto, “[...] o que inicialmente
tatísticas de execuções, decapitações e es- parece um tanto estranho” (Quinet, 1995, p.
quartejamentos. 139). Enquanto fonte da pulsão escópica, do
Tal como postula a equação etiológica de mesmo modo que todas as outras pulsões,
Freud, a predisposição trazida pelos traumas a demanda se satisfaz pelo prazer em olhar
infantis foi revivida pelos traumas adultos. algo que se ofereça ao olhar como objeto.
Ainda mais sendo a castração uma das três Satisfação que sempre será incompleta e/ou
fantasias primevas de Freud, para as quais temporária. Mas o olhar também oferece a si
não precisamos invocar qualquer herança mesmo como um espelho ao gozo do mun-
filogenética, mas constituídas pela situação do, mas um espelho ao qual falta um pedaço
edípica universal em que todas as crianças e, por isso, brilha com a invocação do desejo.
se encontram desde o nascimento. E como
o que se sofre passivamente se repete ativa- No nível escópico, não estamos mais no ní-
mente, Caravaggio também se tornou um vel da demanda, mas do desejo, do desejo do
exímio castrador de rivais e de si mesmo. Outro. É o mesmo nível da pulsão invocante
Marca de todos os transgressores, tanto con- que é a mais próxima do inconsciente. É por
cretamente em suas disputas e brigas que isso que o olho pode funcionar como obje-
culminaram em assassinato, perseguições to a, quer dizer, sempre no nível da falta [...]
e fugas, quanto sublimadamente através do (Lacan, [1964] 1973, p. 96, tradução nossa).
uso de seu talento, que por onde passava
ofuscava seus rivais. Como atesta o verso de E o mundo não é constituído apenas por
Marini: “[...] a verdadeira Medusa é vosso ta- objetos passivos esperando nosso olhar. É
lento”. Só que, ao contrário da Górgona da fácil deduzir que, pela seleção natural e pela
mitologia, Caravaggio ao mesmo tempo era necessidade de sobrevivência, a maioria dos
seu próprio Perseu. seres vivos ou buscam, ou fogem de ser vis-

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Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan – sobre pintura e psicanálise –

tos. Pedem ou evitam o olhar alheio. Con- Desde Sófocles e a cegueira de Édipo, o
tudo, anteriormente à psicanálise, temos de olho foi simbolizado como órgão máximo
pensar em Kant, no sentido de que até mes- para o deslocamento da castração genital
mo a natureza inanimada, suas paisagens e concreta. Talvez não apenas porque, dian-
céus, criados por ninguém e desprovidos de te da consumação real do drama edípico, o
intencionalidade, sempre despertam o prazer Tyrannos de Tebas tenha furado seus olhos
estético. Mais do que tal, além do prazer da como punição pela culpa por ter concreta-
beleza, o êxtase pela realização do sublime, mente satisfeito o desejo incestuoso. A ce-
o que fornece ao imaginário em seu narci- gueira também é mais que uma metáfora da
sismo ver características psíquicas e afetivas prévia incapacidade de Édipo de ver sua ori-
nossas projetadas na natureza. Dando-lhe gem e a causa de seus atos. Mas também por-
sentido e autoria que não possui e cuja ilusão que os olhos e o olhar já são por si mesmos
(ou delírio, como certa vez escreveu Freud) movidos pela falta, ausência de perfeita com-
de que tal exista, produzindo a marca regis- pletude e se ofereçam como objeto a. Sua di-
trada das religiões. Mas alheio se há deuses nâmica faz com que eles invoquem desejo e
ou um deus, os seres vivos e a natureza ina- representem castração.
nimada nos olham, e como olhar também Freud iniciou o ciclo da equivalência fá-
constituem objeto a e invocação. Como si- lica entre cabeça e pênis, decapitação e cas-
naliza Kant, o sublime não afeta apenas nos- tração. E também do horror com um dos
sos sentidos, mas, ao evocar a fantasia de um símbolos da fantasia primeva da castração
destino suprassensível, também atrai nossa com seu oposto, o prazer e o poder doado
orientação às ideias da razão e para a lei mo- por um símbolo fálico apotropaico. Medusa
ral, o que conduz uma leitura psicanalítica em elmos e escudos, imagem equivalente a
para algo muito além de uma simples função uma ereção: exercer o gozo do poder e de eli-
do imaginário. minar os inimigos.
Enquanto objeto a, o olhar e o que se ofe-
rece para ser visto, ambos agem Medusa e Perseu: o quadro e a sublimação
A Górgona também pode ser vista como mais
[...] como símbolo da falta, isto é, do falo, não do que uma imago simbolizando o conflito
como tal, mas enquanto faz falta (Lacan, edípico em suas vertentes de transgressão e
[1964] 1973, p. 9, tradução nossa). castração. Pode nos fornecer outras pistas
para a compreensão do mecanismo de fun-
O olhar e o que se oferece para ser visto cionamento da arte pictórica. Com sua arte
trazem em si marcas da castração. O gozo es- o pintor é o senhor do dom de domesticar o
tético pode ir do prazer do belo ao êxtase do objeto a, tanto de seu olhar, quanto do que o
sublime, por um momento atingir um gozo olha. Condensando ambos os polos das ima-
além do fálico, mas sempre de novo opera o gens trazidas pela pulsão escópica na forma
derradeiro limite da castração: a cabeça de de um quadro, artefato artístico pelo qual
Medusa decapitada. Por ser imensurável, o nos impõem seu modo de olhar. Foi men-
sublime termina por nos colocar no lugar cionada a relação entre o objeto a e a pulsão
daquele que é finito. Para Kant, o sublime invocante. Quais pistas ela nos fornece?
está para a lei moral assim como para Freud A pulsão invocante pode ser retroagida
a castração está para o supereu.5 como anterior ao estádio do espelho. Ela se
inicia através de todos os sons que a mãe e os
demais cuidadores desde o nascimento diri-
5. Agradeço ao psicanalista Michell Alves de Mello a cui-
dadosa leitura e este acréscimo ao paralelo entre filosofia e gem ao bebê. E desse ‘manhês’, que não é só
psicanálise. prosa, mas geralmente cantado, o bebê aos

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Anchyses Jobim Lopes

poucos contrapõe emitindo sua ‘lalação’. O tador, indo desde o gozo voyeurístico subli-
bebê há pouco saiu do nada, e há uma chan- mado do ato de ver até as sensações eróticas
ce enorme de ele retornar para lá. Por isso, que podem atingir o resto do corpo. Ao mes-
necessita que sua pulsão de vida seja re- mo tempo, chama incursões para o simbóli-
forçada por chamamentos do mundo. Nos co. Mesmo nas obras mais abstratas, porque
termos da segunda teoria freudiana das pul- toda forma de arte se insere em algum tipo
sões, a pulsão invocante é necessária para de linguagem, conceito não restrito apenas
contrabalançar e exceder à força da pulsão ao verbal saussuriano. Por seu talento e sua
de morte. Muito foi escrito e publicado so- técnica, o pintor invoca um espaço interme-
bre o papel da função invocante na origem diário entre o imaginário e o simbólico para
da música e da comunicação verbal.6 E de relembrar, por meio do olhar do quadro ao
sua falta como causadora de quadros gra- olho do espectador, o chamamento inicial do
ves de inibição do desenvolvimento, como mundo. Um retorno ao instante mítico da
o autismo infantil. descoberta e do início da integração da ima-
Do mesmo modo que o caminho dos sons gem no espelho. Aliás, em O seminário 1: os
até as linguagens musical e verbal, também escritos técnicos de Freud, na tópica do Sim-
quanto à incompletude de seu olhar e do bólico/Imaginário/Real, a sutura ou junção
olhar do mundo, o bebê necessita que sua entre o simbólico e o imaginário também foi
pulsão escópica seja reforçada pelo chama- descrita por Lacan ([1953-1954] 1979) como
mento do olhar materno e dos demais que o local do amor.
a cercam. Se não vierem, do ponto de vista Assim como a pulsão invocante é a que
biológico, é capaz de enxergar, mas despro- conduz à música, com sua linguagem mu-
vido de objeto a e desejo, permanecer ou sical, a pulsão adquire o nome de escópica
ficar cego para o mundo. Uma das funções quando nas artes visuais conduz à lingua-
maternas, independentemente de quem efe- gem pictórica. Linguagens, porque, assim
tivamente a exerça, é esta: não ser rival do como os sons precisam ser diversos e orga-
mundo, apresentá-lo para o bebê, gerar na nizados em uma sequência dotada de sen-
criança interesse por ele, acentuar seu cha- tido no tempo para se tornarem música, as
mamento e aprender a separar entre o logro imagens nas artes visuais também não são
e o desejo do Outro. Ao dirigir o bebê a esse apenas pura instantaneidade do imaginá-
desejo, a pulsão invocante é quase toda libi- rio. Por meio de uma sequência temporal de
do, quase puro Eros. construção do que é visto, mesmo que nos
Parte da tarefa do pintor é semelhante. cause a ilusão de imediaticidade do olhar,
Trabalha com seu corpo e com ele condensa o quadro é feito por uma linguagem de di-
o desejo de seu olhar e do Outro no quadro. ferenças de cor, luz, figuras dotadas de um
Assim, invoca pelo olho o corpo do espec- sentido. O compositor e o pintor tentam,
por meio da pulsão invocante, prender nos-
sa atenção e impor-nos algo. Sempre objeto
a, incompleto e faltoso, que em nós evocará
6. Sobre música, pulsão invocante e referências à obra do
psicanalista francês Alain Didier-Weil sobre o tema, indica-
múltiplas interpretações, conscientes e in-
mos dois trabalhos nossos: LOPES, A. J. Afinal o que quer a conscientes.
música, Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 29, p. 73- Até aqui a pulsão invocante e escópica foi
82, set. 2006; LOPES, A. J. Dos gritinhos da bebê ao canto
do fort-da (psicanálise e música 2), Estudos de Psicanálise,
descrita como libido, quase puro Eros. No
Belo Horizonte, n. 39, p. 15-28, jul. 2013. Sobre a pulsão entanto sabemos que há outro lado de cha-
invocante e a construção do eu corporal, a terceira parte do mamentos pelo bebê – a pulsão de morte,
trabalho: Transexualidades: desafio à psicanálise do século
XXI, Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 48, p. 17-
puro Tânatos, que ao final sairá vencedor,
126, dez. 2017. porque mesmo que seja depois de muitas e

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muitas décadas depois, o bebê morrerá. O escópica, o artista se aproveita da inexorabi-


ofício do pintor, como de todo artista, é criar lidade da morte contra ela mesma. Vai além
um mecanismo pelo qual a pulsão de vida da mera repetição circular e impulsiona o
prevaleça sobre a de morte, sem o que o gozo movimento em uma espiral ascendente.
estético não seria possível. E assim, retomamos a menção ao artigo
Longhi criou a descrição do espelho e do de Freud A significação antitética das pala-
quadro como algo que [...] nos oferece a ‘uni- vras primitivas no qual foi visto que palavra
dade do fragmento’ imerso na sua luz: uma latina fascinum que significa ‘malefício’, ‘mau
espécie de ‘realidade aquário’” (Longhi, olhado’, mas também ‘membro viril’ e ‘obje-
2012, p. 31, aspas do autor). Os quadros de tos para proteger e dar boa sorte’.
Caravaggio realçam através do drama sua li- Continuando a discorrer em O seminário
gação de com uma narrativa histórica e com 11 sobre a função do quadro, Lacan formu-
a temporalidade. Uma linguagem narrativa la o momento em que o ‘malefício’ se torna
que possui inserção no simbólico. Contu- ‘membro viril’.
do, tal qual uma peça musical, sua duração
temporal possui um fim. E tanto na escuta [...] O olhar em si, não apenas cristaliza o mo-
da música como em olhar o quadro, o espec- vimento, mas o cristaliza. [...] O mau olhado
tador é levado pelo prazer a repetir a canção é o ‘fascinum’, aquilo que tem por efeito parar
ou a rever o quadro. o movimento e literalmente matar a vida. [...]
Longhi possivelmente pensava em um O instante de ver só pode intervir aqui como
aquário pequeno, dos que se tem em casa, sutura, junção do imaginário e do simbólico,
no qual pela simplicidade de seu compor- e é retomado numa dialética, essa espécie de
tamento, os peixinhos reproduzem as mes- progresso temporal que se chama ímpeto, ar-
mas formas. Assim também, objeto estético roubo, movimento para frente que se conclui
é capaz de infinitamente repetir sua dinâ- no ‘fascinum’ (Lacan, [1964] 1973, p. 107,
mica interna: repetição, movimento circu- tradução nossa).
lar homogêneo, suspensão e retorno de um
mesmo fragmento. Mas precisa ir além. Di- Melanie Klein foi a autora que dedicou a
ficilmente se pode colocar de modo mais re- maior parte de sua obra a diferença teórica
sumido que a relação entre a arte e a pulsão e clínica entre inveja (do latim ‘invideo’, ‘ver
de morte necessita de ir um ponto além. O com maus olhos’), originária da fase oral e
artista cria a obra como vingança contra a embebida em pulsão de morte, quase inaces-
morte. Ao contrário dos mesmos movimen- sível ao tratamento, e ciúmes, sentimento de
tos repetitivos dos peixinhos em um aquá- natureza edípica, bem mais brando, onde a
rio, uma música ou um quadro, enquanto pulsão de vida prevalece, e é possível o trata-
também objeto a, invocam e se conjugam mento. Ao discorrer sobre a função do qua-
com o objeto a da escuta e do olhar. Cada dro, Lacan relembra a mesma diferença entre
vez repetidos, a música ou o quadro invo- inveja e ciúme. A inveja torna aquele que está
cam associações conscientes e inconscien- por ela possuído
tes diferentes no espectador,
Um modo de encarar a sublimação pode [...] pálido diante de uma imagem de com-
ser vê-la na própria estrutura do objeto ar- pletude que se fecha sobre si mesma (...). E é
tístico como uma domesticação da pulsão nesse registro do olho como desesperado pelo
de morte pela de vida. Ao tentar superar seu olhar onde temos de ir para entender a fun-
trauma da castração, por meio de seu dom ção apaziguadora, civilizatória e fascinatória
e técnica intensificando e colocando no ob- do quadro (Lacan, [1964] 1973, p. 106, tra-
jeto artístico a pulsão invocante, musical ou dução nossa).

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A escola kleiniana também postula que ameaçarem nosso eu, em todas as suas defi-
toda arte, para se manifestar como tal, ne- nições freudianas e lacanianas, incluindo o
cessita reparar objetos internos atacados e eu corporal. O sublime, “[...] por pertencer a
muito danificados na primeira infância. Pas- autopreservação, é uma das mais fortes pai-
sar o mais possível da inveja ao ciúme, da xões” (Burke, 2016, p. 127).
esquize ao luto, reparação e gratidão. Pouco Na trilha de Burke, o filósofo Immanuel
sabemos da biografia de Caravaggio, mas a Kant em Observações sobre o sentimento do
violência e o macabro são temas tão comuns belo e do sublime (2012), para diferenciar es-
que podemos interpretar a imago básica: o ses dois afetos, forneceu dois exemplos. Pri-
olhar petrificante da Górgona e o herói que meiro, um campo cheio de flores, um vale
a derrotou. Mais do que isso, domesticou-a com riachos e rebanhos pastando, uma des-
como amuleto a seu serviço e para continuar crição do paraíso terrestre ou a descrição de
seu oficio de herói. A imago de Medusa es- Homero do corpo de Vênus, proporcionan-
pelhada no escudo de Perseu representa ao do uma sensação agradável, alegre e radian-
mesmo tempo castração e uma arma con- te. Aqui temos a descrição de como surge e
tra a castração, o ódio invocado por objetos desfrutamos do sentimento da beleza. Mas
muito atacados e maus, superado pelos ob- de acordo com o filósofo, para ser desperta-
jetos bons que doam a capacidade de repa- do o sublime necessita de muito maior inten-
ração - o apaziguamento do olhar - Tânatos sidade. A paisagem de uma montanha com
sobrepujado por Eros. o cume cheio de neve a perfurar as nuvens,
a descrição de uma tempestade furiosa ou a
Conclusão apresentação do inferno pelo poeta Milton,
Foi mencionada a relação entre o sublime, o causam prazer, ‘mas acompanhado de as-
olhar e a castração. Merece maior justifica- sombro’ (Kant, 2012, p. 32-33).
ção. Tudo o que pode excitar as ideias de dor Contudo a função do sublime na arte é
e de perigo, ou seja, tudo que de algum modo muito anterior a Burke ou Kant. Inicia-se ao
é terrível ou diz respeito a objetos terríveis, início do pensamento grego e tem seu ápice
ou que atua de maneira análoga ao horror séculos mais tarde com o célebre tratado Do
é fonte do sublime, “[...] ou seja, é capaz de sublime (Peri Hypsous), de um autor desco-
produzir a emoção mais forte que a mente é nhecido, escrito entre os séculos I e III, mas
capaz de sentir” (Burke, 2016, p. 52). Mais o livro passou à história como sendo da auto-
além que o belo, o sublime é terrível porque ria de Longino, O termo ‘sublime’ nesta obra
implica a percepção de um risco extremo e, foi assim resumido:
ao mesmo tempo, dá prazer já que se tem a
consciência e está protegido contra a impres- A expressão to hypsos (para cima) sugere a
são dolorosa. O sentimento de prazer cons- ideia de ‘altura’ ou de ‘movimento para o alto’;
ciente diz respeito a qualquer modo de satis- a esfera do sublime é da ‘elevação’, uma emo-
fação, inclusive diante da beleza. O sublime ção estética conotada com subida, com trans-
vai além, é uma espécie de horror e violên- cendência das condições emotivas da experi-
cia, que, tornado suportável e majestoso pelo ência comum. Sublime é pathos da alma que
dom do artista, não mais ameaça nossa so- se projeta para o alto (Cuninberto, p. 332).
brevivência e nos torna capazes de aceitar e
integrar como a existência é tingida de terror Em termos psicanalíticos, a descrição do
e finitude. O ofício do artista, o uso de sua sublime por Burke evoca palavras utilizadas
arte como meio da sublimação, permite que para descrever a obra de Caravaggio, horror
a dor e o horror sejam modificados a ponto e violência, que se associam com uma amea-
de não serem mais concretamente nocivos e ça de uma castração que não se consuma.

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Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan – sobre pintura e psicanálise –

Mas a sobrevivência ao desafio à integridade de seus atos, para onde fosse jamais lhe fal-
narcísica ao eu psíquico e físico imaginários, taram amigos e mecenas. Deve ter sido uma
além da parcial cicatrização dessa ferida nar- pessoa fascinante. É fácil reduzir tudo a uma
císica, estão entre as fontes do sublime. E o simplificação psicanalítica tal como justificar
tornam algo além do simples prazer no belo. seu comportamento por ‘cisão do eu’. O opos-
Já a comparação de Kant da montanha to pode ser feito. Caravaggio viveu e mor-
perfurando as nuvens evoca uma imagem reu em completa harmonia com sua obra7.
fálica e a penetração, enquanto o perigo de O sublime conjuga beleza com horror. A
uma tempestade furiosa ou das punições do palavra latina fascinum significa ‘malefício’,
inferno remetem ao risco de castração. E o ‘mau olhado’, mas também ‘membro viril’.
resumo das ideias do tratado Do Sublime Fascinum para Freud e Lacan tanto é o mau
amplia essa comparação, evoca a metáfora de -olhado que mata a vida, quanto a junção do
uma ‘ereção’ psíquica como se fosse corporal. imaginário com o simbólico, lócus do amor,
E destrói qualquer explicação da sublimação do ímpeto, arroubo, movimento para fren-
como renuncia pulsional, elevação espiritual te. Os opostos conjugados na descrição de
ou caminho para um mundo suprassensível. Freud de que a petrificação pelo olhar tam-
A experiência do sublime pode ser inter- bém simboliza ereção. A arte de Caravaggio
pretada como meio de a violência e terror levou ao ápice a imago da cabeça de Medusa,
serem submetidos e sublimados pelo gozo originária do início da Antiguidade até ser
estético. A imago de Medusa decapitada re- várias vezes usada por Freud e Lacan no sé-
fletida no escudo de Perseu também pode culo XX. A transformação da Medusa espe-
representar a vida sobrepujando a morte lhada no escudo de Perseu, um símbolo de
na construção da obra de arte. Seja na fonte castração, em uma arma contra a castração,
originária do gozo estético: a revivência do Eros sobrepujando Tânatos.
momento mítico do júbilo do bebê diante do
espelho. Seja na importância do objeto a da
pulsão invocante e sua vertente escópica no Abstract
olhar e no quadro. Seja na construção do ob- Caravaggio: biographical data. His infantile
jeto estético como um aquário que se utiliza castration fantasies expanded through family
da pulsão de morte em função da de vida. deaths brought by the plague and increased
A vida de Caravaggio e sua criação esté- in adult life by public decapitations. Medusa’s
tica demonstram como a sublimação pode myth in Greek mythology. Medusa’s head
muito, mas não tudo. Apesar de seu inven- in Freud and Lacan texts. Description of
cível desejo em pintar todo o tempo, mesmo Caravaggio’s work Head of Medusa. Self-
nas mais difíceis fugas e circunstâncias, um portraits and beheadings in Caravaggio’s woks.
excedente de violência e horror excedia sua The use of lenses and mirrors by Renaissance
arte. Apesar de sua atração pelas brigas em painters asssociated with Lacan’s description
criar inimigos e a incapacidade de refletir of the child’s experience of the mirror stage.
contra a impulsividade e violência de muitos The gaze: invocatory drive, scopic drive and as
object a. The gaze and castration, violence and
sublimation in Caravaggio’s work. The picture
7. A discussão sobre as práticas sexuais de Caravaggio, ig- as a sublimatory device containing the death
noradas nos poucos dados biográficos da época, além re-
troagir o diagnóstico hoje abolido de homossexualidade do drive tamed by sublimation.
século XIX ao XVI, foi usada em artigos que manipularam a
teoria psicanalítica para condenar o pintor como ‘perverso’ Keywords: Art and psychoanalysis, Mithology
sexual e social, usando a imprecisão popular e o uso mo-
ralista do termo, deixando de lado ou desqualificando sua and psychoanalysis, Castration, Mirror stage,
obra sem qualquer análise mais profunda. Scopic drive, Invocatory drive, Sublimation.

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Anchyses Jobim Lopes

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Recebido em: 16/05/2018


Aprovado em: 26/05/2019

Sobre o autor

Anchyses Jobim Lopes


Médico e bacharel em filosofia pela UFRJ.
Mestre em medicina (psiquiatria)
e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ.
Psicanalista e membro efetivo
do Círculo Brasileiro de Psicanálise
- Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professor do curso de formação psicanalítica
do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro
da Silva do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento
Psicanalítico (CAP) do CBP-RJ.
Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre
Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Ex-professor assistente do quadro principal do
Departamento de Psicologia da PUC-RJ.
Ex-professor adjunto da Faculdade
de Educação da UCP.
Professor titular III dos cursos
de graduação em psicologia
e de especialização em teoria
e clínica psicanalítica da UNESA.

Endereço para correspondência

E-mail: <anchyses@terra.com.br>
Página: <http://www.anchyses.pro.br>

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